medicacalizao foucault

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A medicalização da educação como efeito histórico de uma sociedade mista de disciplina e controle. Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis Hélio Rebello Cardoso Jr. – UNESP, Assis Quadro Conceitual Este trabalho faz parte de uma pesquisa de iniciação científica, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Partimos, principalmente, das teorizações acerca da sociedade disciplinar e de controle, postuladas por Foucault e Deleuze, respectivamente, para pensar a atual sociedade e como ela engendra mecanismos que servem a uma lógica medicalizante. A sociedade disciplinar, teorizada por Foucault, surge no século XVIII a partir da expansão do capitalismo e da industrialização. Ela irrompe através das instituições disciplinares que são características do século XVIII e XIX, e tem seu ápice no início do século XX. As instituições características dessa Sociedade Disciplinar eram os asilos psiquiátricos, penitenciárias, casas de correção, estabelecimentos de educação vigiada, os hospitais, etc. E, além de disciplinar, tinha como atuação marcar os indivíduos: Afirmar quem era louco – não louco; perigoso – inofensivo; normal – anormal. E, ainda, determinar o lugar onde o indivíduo deveria estar de forma a exercer poder sobre ele (FOUCAULT, 2010). As disciplinas, segundo Foucault, tornam-se fórmulas gerais de dominação O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos (FOUCAULT, 2010, p.133). O exercício do poder disciplinar sobre o indivíduo tinha, em suma, um objetivo: a produção dos corpos dóceis. A produção do corpo para produção. Mansano (2009) afirma, apoiada em Foucault, que toda essa transformação do corpo, em prol do aparelho de produção que o capitalismo impunha fez necessário um aparelho de coações que atingissem o homem desde a infância, passando pela creche, escola e asilo. Sem contar, por vezes, a necessidade da passagem pela

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A medicalização da educação como efeito histórico de uma

sociedade mista de disciplina e controle.

Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis

Hélio Rebello Cardoso Jr. – UNESP, Assis

Quadro Conceitual

Este trabalho faz parte de uma pesquisa de iniciação científica, financiada

pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Partimos,

principalmente, das teorizações acerca da sociedade disciplinar e de controle,

postuladas por Foucault e Deleuze, respectivamente, para pensar a atual sociedade

e como ela engendra mecanismos que servem a uma lógica medicalizante.

A sociedade disciplinar, teorizada por Foucault, surge no século XVIII a partir

da expansão do capitalismo e da industrialização. Ela irrompe através das

instituições disciplinares que são características do século XVIII e XIX, e tem seu

ápice no início do século XX. As instituições características dessa Sociedade

Disciplinar eram os asilos psiquiátricos, penitenciárias, casas de correção,

estabelecimentos de educação vigiada, os hospitais, etc. E, além de disciplinar, tinha

como atuação marcar os indivíduos: Afirmar quem era louco – não louco; perigoso –

inofensivo; normal – anormal. E, ainda, determinar o lugar onde o indivíduo deveria

estar de forma a exercer poder sobre ele (FOUCAULT, 2010).

As disciplinas, segundo Foucault, tornam-se fórmulas gerais de dominação

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos (FOUCAULT, 2010, p.133).

O exercício do poder disciplinar sobre o indivíduo tinha, em suma, um

objetivo: a produção dos corpos dóceis. A produção do corpo para produção.

Mansano (2009) afirma, apoiada em Foucault, que toda essa transformação do

corpo, em prol do aparelho de produção que o capitalismo impunha fez necessário

um aparelho de coações que atingissem o homem desde a infância, passando pela

creche, escola e asilo. Sem contar, por vezes, a necessidade da passagem pela

prisão ou pelo hospital psiquiátrico, todas essas instituições referidas a um mesmo

sistema de poder (FOUCAULT, 2006). É notável o papel das instituições na referida

sociedade disciplinar. Eram elas que estavam fortalecidas e que difundiam os

valores da época, que deveriam ser apropriados pelos sujeitos “normais”.

Contudo, as instituições e as disciplinas passam por uma crise generalizada e

é Deleuze (1992) que explicita a nova configuração da sociedade que abandona,

aos poucos, as disciplinas para entrar na era do controle. Segundo Deleuze (1992),

na sociedade de controle, o confinamento na instituição não é mais necessário, ou

seja, os muros das instituições são “derrubados” e o controle se dá ao ar livre, de

forma contínua e imanente, o controle sobre as subjetividades e as identidades ficou

menos explícito, de forma que estamos subordinados a uma vigilância generalizada

nos espaços abertos, muito além do confinamento das instituições,

O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de educação, de tratamento. Os hospitais abertos, o atendimento a domicílio, etc., já surgiram há muito tempo. Pode-se prever que a educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional – um outro meio fechado -, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário (DELEUZE, 1992, p.216).

Deleuze descreve algumas mudanças relacionadas às instituições em crise,

exemplificando-as: nas prisões, novas penas substitutivas para os pequenos delitos,

utilização de “coleiras eletrônicas” que possibilitam o controle do outro e o obriga a

permanecer onde deve estar; nas escolas, controle contínuo, avaliação contínua, e a

proximidade da empresa nos níveis escolares; nos hospitais, novos regimes “sem

médico nem doente”, que aprofunda a produção de saber a fim de buscar doentes

potenciais e sujeitos a risco (DELEUZE, 1992a).

Com efeito, consideramos que a sociedade disciplinar ainda não se dissipou

totalmente, tampouco, a sociedade de controle emergiu por completo. Portanto,

defendemos aqui, que vivemos um período histórico em que coexistem elementos e

características da sociedade disciplinar em declínio e da sociedade de controle em

expansão. E é esta sociedade mista de disciplina e controle que produz um locus

propício para medicalização, que pretendemos mostrar a seguir.

Foucault, em seus estudos, alerta para o fato de que a loucura, no passado,

conviveu de forma livre como uma experiência que se mesclava com a lucidez, o

que ele chamou de experiência trágica da loucura (FOUCAULT, 2000) e que depois

foi apropriada pelo saber da medicina e trancada em um hospital, que não tinha

como objetivo a cura, mas o isolamento. Outro fenômeno parecido ocorreu com a

sexualidade, em que os saberes procuraram filtrar e organizar como, onde e por quê

a sexualidade deveria ocorrer.

Por fim, se estabelecemos um paralelo entre o que aconteceu com a loucura

no século XIX e a sexualidade no século XX, com o que está acontecendo com o

comportamento infantil hoje, no século XXI, chegaremos à conclusão de que os

processos são semelhantes, com o adendo importante de que a medicalização é um

fenômeno típico de nosso tempo, muito mais intenso que nos casos anteriores.

Foucault (2010) afirma que os esquemas de docilidade não são privilégio do

século XVIII, tampouco seriam do século XXI. No entanto, a descrição da disciplina e

da docilidade que o autor explicita, pode ser transportada e utilizada na atualidade

sem nenhum receio. “Em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de

poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”

(p.132). Trata-se de exercer poder sem ressalvas sobre o corpo ativo, exercendo

uma coerção sem folga, que trabalha sobre o corpo detalhadamente, direcionando

seus movimentos, gestos e atitudes.

As disciplinas, aliadas ao controle, agem de forma dupla, intensificando as

forças do corpo, em termos econômicos de utilidade; e enfraquecendo-as, em

termos políticos de obediência. É o que acontece, por exemplo, com uma criança

que não aprende na escola e é, portanto, diagnosticada como doente. Ao oferecer o

diagnóstico e tratamento, a medicina retira do papel dos pais/cuidadores qualquer

possibilidade de intervenção, já que pertence ao domínio médico – enfraqueceu as

forças políticas dos pais, que obedecem ao saber médico –; e ao mesmo tempo

potencializam as forças, ao verificar que ao receber tratamento médico, a criança

pode não recebe mais queixas dos professores, dos colegas, etc. A situação social e

política do não aprender foi silenciada. No caso da criança, sua potência de tempo

útil é fortalecida à medida que passa, na maioria das vezes, a acompanhar a massa

homogênea, no entanto, é enfraquecida ao se submeter ao diagnóstico, tratamento

e poder médico.

Nessa sociedade mista de disciplina e controle, as localizações funcionais

possuem um aspecto importante: é que ao codificar um espaço de vigília, através da

arquitetura e distribuição, cria, também, um espaço útil, ou seja, um espaço onde a

disciplina produza ação útil de acordo com o ambiente. Em relação à medicina:

Pouco a pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os sintomas, as vidas e as mortes; constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas. Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico (FOUCAULT, 2010, p. 139).

Um espaço útil que permite afirmar onde e como se colocar os doentes. Em

outras palavras permite dizer que um leproso ou um louco deve ficar isolado,

separado. De forma semelhante, com devidas ressalvas, as crianças escolares

passam ou passaram por isso. Um exemplo do passado eram as classes especiais,

no Brasil, em que eram isolados ou separados os alunos com “deficiência intelectual

leve”, mas passível de educação. Este conceito já era, em si, complicado, pois

levava em conta testes relacionados ao quociente intelectual. Por exemplo, os

deficientes intelectuais leves e educáveis são os indivíduos que se encontram na

faixa dos 50 aos 70 (MACHADO, 1994). No entanto eram encaminhadas para estas

salas crianças com dificuldades de aprendizagem, que ao receber um diagnóstico

eram transferidas e passavam a ser os “alunos especiais”. Machado (1994) afirma,

Pensar o desvio, a diferença, é pensar a classificação de pessoas na mente dos homens. É pensar a mente dos homens... Aluno especial, mas afinal o que é isso? Não são óbvios esses objetos tidos como naturais e é desviando o olhar deles que se percebe as séries de práticas que os objetivaram (p.56).

Fica claro quão eram produzidos os alunos especiais. Na análise feita por

Machado (1994), o ato “ir para a classe especial” se misturava com a loucura. Para

os alunos e professores, loucos eram os que tinham dificuldades de comportamento

como quebrar a porta, provocar os menores, sair da sala. “A classe especial é um

lugar onde cabe “repetente”, “bagunceiro”, “burro”, deficiência, delinquência,

alienação. Afinal, não é um lugar para crianças “normais” (...) É um lugar para onde

se encaminham os diferentes. Diferentes do quê?” (MACHADO, 1994, p.49).

É um espaço, portanto, onde se mescla instituições, fenômeno típico de uma

sociedade disciplina-controle, uma vez que os muros das instituições são

transpassados entre a família, a escola e a medicina. A medicina por um lado e a

escola por outro, dialogando para pensar os acontecimentos escolares, porém,

limitando-os, muitas vezes, a um diagnóstico. Na atualidade, as classes especiais

não existem mais, porém, os encaminhamentos de crianças às clínicas médicas e

psicológicas em busca de diagnóstico, tratamento e resposta só vêm aumentando.

“A sala de aula formaria um grande quadro único, com entradas múltiplas, sob

o olhar cuidadosamente “classificador” do professor” (FOUCAULT, 2010, p. 142).

Esse olhar classificador, unido às técnicas disciplinares da disposição em filas, que

individualizam os corpos e os distribuem no espaço, é presente até hoje nas

relações escolares – É importante destacar que tanto os alunos “problemas” como

os professores são constituídos nas relações, ou seja, eles são efeitos. Efeitos de

uma produção política de subjetividade. Não pretendemos aqui, culpabilizar os

professores, pois estaríamos concentrando neles a culpa. Estaríamos pensando um

“ele” fora da relação, um “ele” em si; quando no real somos/pensamos/agimos de

determinada maneira a partir da nossa constituição histórica. É, portanto, efeito das

relações de poder e saber – Com a diferença de que, hoje, esse modelo serve, em

especial, a uma lógica medicalizante (MACHADO, 2011).

O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2010, p.185).

Em relação à medicalização da infância, o mecanismo disciplinar apresenta

um aspecto importante: a escola tornou-se o lugar privilegiado de seleção das

crianças passíveis de medicalização de modo que esta instituição está sendo

inteiramente penetrado pelo saber médico.

Outro aspecto importante das operações disciplinares é a constituição dos

“quadros vivos” que organizam as multidões perdidas e perigosas, ou seja, grupo de

risco, em multiplicidades organizadas. Essa constituição permitiu, além de um

controle efetivo da economia e da tática, a construção de classificações racionais

dos seres vivos e, ainda, “repartir os doentes, dividir com cuidado o espaço

hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças: outras tantas

operações conjuntas em que os dois constituintes – distribuição e análise, controle e

inteligibilidade – são solidários” (FOUCAULT, 2010, p.143).

Para Foucault, o quadro é, portanto, um mecanismo de mão dupla: técnica de

poder e processo de saber, que impõe uma ordem ao múltiplo e tem como objetivo

principal a obtenção de um instrumento que percorra e domine. Para tanto, três tipos

de quadros são necessários: a Tática, que trata do ordenamento espacial dos

homens; a taxinomia, que trata do espaço disciplinar dos seres vivos; e o

econômico, que trata do movimento das riquezas.

Desta forma, a repartição disciplinar, permite exercer o controle total sobre os

corpos. Transportando ao nosso objeto de pesquisa, podemos prever o quanto este

quadro serve à medicalização. Todo o “ser criança” é reduzido a uma caracterização

individual, que reduz sua singularidade, e a coloca em uma multiplicidade a priori:

um transtorno específico que a faz pertencer ao grupo que possuem este

diagnóstico. Assim, o controle se dá efetivamente, docilizando a criança para o

trabalho escolar imposto, de modo que seu comportamento, aprendizagem e

subjetividade sejam modulados.

De acordo com Mansano (2009) é a produção de saberes que torna possível

o sequestro do corpo e do tempo, uma vez que são justificadas pelo saber

“científico”. Outra técnica explorada pelas disciplinas e que dialoga com a produção

de saber e que serve à medicalização é o uso do exame que a partir de quadros

vivos que classificam todos os seres é possível qualificar, classificar, comparar e

normalizar os indivíduos. É a partir deste exame que a individualidade entra num

campo documentário. Segundo Foucault:

Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. (...) [Esses códigos] marcam o momento de uma primeira “formalização” do individual dentro de relações do poder. (FOUCAULT, 2010, p. 181).

Com isso, o indivíduo passa a ser um objeto descritível pela ciência – é o que

acontece, principalmente, nos manuais de transtornos mentais – e passível de um

controle através dos saberes produzidos, afinal, “o exame está no centro dos

processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e

objeto de saber” (FOUCAULT, 2010, p. 183). Além disso, possibilita a comparação

entre os indivíduos e a “estimativa dos desvios dos indivíduos entre si” (FOUCAULT,

2010, p.182) o que permite distribuí-los na população e combinar dois mecanismos

disciplinares: a vigilância hierárquica (o olhar classificador do

professor/médico/profissional psi) e a sanção normalizadora (tratamento a fim de

adentrar a norma).

O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz cada indivíduo um “caso”: um caso que ao mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder. O caso não é mais, como na sauística ou na jurisprudência, um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra, é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou

retreinado, tem que ser classificado, normalizado, excluído, etc. (FOUCAULT, 2010, p.183).

Aliada ao mecanismo classificatório da sociedade disciplinar, que tem como

maior exemplo os manuais de classificação como o DSM e CID, temos o controle de

riscos da sociedade de controle, que pensa na prevenção de possíveis patologias.

Assim, é preestabelecido um modo de existir considerado saudável e que deve ser

seguido e para isso vale tudo: diagnóstico precoce, uso indiscriminado de

medicamentos, automedicação, não consultar médicos, etc. Afinal, a sociedade atual

também é marcada pelo consumo.

Para Foucault (2010) “O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único

olhar tudo ver permanentemente” (p.167). Vemos, atualmente, cursos e

treinamentos, por vezes patrocinados por indústrias farmacêuticas, para professores

a fim de ensiná-los como buscar em sala de aula os alunos que apresentam

sintomas de hiperatividade, dislexia, ou outros diagnósticos que justificariam seu

baixo desempenho escolar, encaminhando-os para a clínica médica.

Como já citado anteriormente a vigilância está disseminada e participamos

ativamente neste processo. Relacionado à vigilância está a popularização do saber

dito científico em rede televisiva e internet que repercute nos processos de

subjetivação. Assim, em relação às crianças escolares, é comum ouvirmos,

parentes, amigos, vizinhos e professores diagnosticando de maneira banal as

crianças. Alguns exemplos: se ela pula de mais é TDAH, se ela é quieta de mais é

autista. A diferença se torna uma doença justificada e consolidada pelo saber

“científico”. Em grande parte isso ocorre devido a presença de “especialistas” em

programas “não-especializados” que discorrem sobre assuntos científicos de forma

banal. No entanto, esse sucinto acaba sendo incorporado pelos que assistem,

contribuindo na excessiva patologização e medicalização que se assiste hoje, sem

um pensamento crítico a respeito. “É como se a lógica médica que circula no interior

dos hospitais atingisse também seu exterior e atravessasse a vida por inteiro”

(MANSANO, 2009, p. 103).

Objetivos

Neste trabalho objetivamos, principalmente, construir uma reflexão acerca da

sociedade atual em que vivemos e como esta serve a uma lógica medicalizante que

atua, principalmente, sobre a infância escolarizada a partir de mecanismos de

disciplina e controle.

Metodologia

Este trabalho consiste em uma investigação teórica e crítica, assim, a

metodologia fica no âmbito da leitura para exposição crítica do tema. Uma questão

metodológica importante é a de que não objetivamos questionar a eficácia dos

medicamentos, nem de que há crianças com problemas orgânicos que necessitem

deles. Pretendemos, isto sim, tomar como referencial teórico as explicitações de

Foucault e Deleuze que questionam o estatuto de verdade do saber psiquiátrico,

para pensarmos a atual banalização dos diagnósticos e a ideia de que este saber

não pode ser apresentado como possuidor de toda a verdade sobre a subjetividade

humana. Utilizamos, também, como metodologia, a “pedagogia do conceito”,

pensada por Deleuze & Guatarri. Segundo esses autores, todo conceito, em

filosofia, possui uma história, mesmo que esta história se cruze em outros momentos

com outros conceitos e, como consequência, outras histórias. No nosso caso,

expandimos essa metodologia teórica para pensar a dimensão histórica do saber

psicológico, psiquiátrico e médico; problematizando como comportamentos e

questões sociais passaram a ser vistas como doenças, historicamente.

Resultados

Nossa pesquisa ainda está em desenvolvimento, contudo, todo levantamento

e discussão bibliográfica que realizamos até o momento deixam claro alguns pontos:

vivemos uma sociedade mista de disciplina e controle; esta sociedade está imersa

em uma lógica medicalizante que captura, principalmente, as crianças em período

escolar; a relação entre saber/poder/verdade da atual sociedade tem produzido

subjetividades singulares que fogem ao padrão conhecido, nos convidando a

repensar nossos valores e ideias cristalizadas.

Conclusões

Não intentamos aqui concluir este assunto tão polêmico e complexo, porém,

cabem algumas considerações que são importantes. O que nos interessa e fica claro

é que a sociedade tem mudado e, com isso, novas subjetividades se apresentam.

Diante disso, a medicina tem sido chamada – ou tem se colocado – para resolver

essas questões que são sociais, políticas e econômicas. Com efeito, há déficits e

desordens orgânicas incontestáveis na área médica, assim como medicações

necessárias ao indivíduo. No entanto, atualmente, há uma supremacia das

explicações biológicas para os fatos da vida, nesse sentido uma banalização de

diagnósticos infantis tem sido apoiada pelas clínicas médicas e psiquiátricas.

Desconsiderar, portanto, a narrativa do sujeito que sofre e/ou passa por

dificuldades de comportamento, negligenciando seus devires e histórias, para

considerá-lo apenas como um corpo mecânico, que possui um cérebro máquina,

onde, funcional e estruturalmente, estão localizados seus déficits e desequilíbrios

químicos, é um erro histórico da dita ciência psiquiátrica e psicológica. Janet (apud

CANGUILHEM, 2006) afirma: “A psicologia é a ciência do homem por inteiro e não é

a ciência do cérebro: este é um erro psicológico que fez muito mal durante muito

tempo”.

Larrosa (2002) reafirma a necessidade de atentarmos aos processos de

subjetivação e produção de verdade que são constituídos historicamente.

A própria experiência de si que se constitui historicamente não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade (LARROSA, 2002, p.43).

Uma ressalva importante é a de temos consciência de que não são todos os

médicos psiquiatras que desconsideram a relação intersubjetiva e os processos de

subjetivação implicados no contato com o outro. Há médicos e médicos, assim como

há crianças e crianças. No entanto, há dados significativos sobre o crescente uso de

drogas psicotrópicas. Segundo o IDUM (Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários

de Medicamentos), em 2000 foram vendidas 71 mil caixas de metilfenidato; já em

2008, foram vendidas um milhão cento e quarenta e sete mil, o que representa um

aumento de 1.616%! Assim, a preocupação com o que estamos fazendo “em nome

da ciência” aumenta e nos faz aguçar o olhar para a questão, não desconsiderando

outras teorias, mas dialogando e discutindo a fim de criar e transformar o futuro. O

próprio Deleuze, apesar de todas suas críticas endereçadas à psiquiatria, não

desconsidera o uso da medicação e afirma, em entrevista, a importância delas na

restituição do sujeito. Nossa crítica se direciona ao uso indiscriminado e ao abuso de

poder da medicina e psiquiatria.

Segundo Poincaré (apud COSTA J.F., 2007, p.13) “um fenômeno que admite

uma explicação, admitirá também um certo número de outras explicações, tão

capazes quanto a primeira de elucidar a natureza do fenômeno em questão”.

Acreditamos e reafirmamos o que Poincaré aponta com a ressalva importante de

que a maioria dos “fatos científicos” em relação à saúde mental são hipóteses. Não

podemos considerar que a teoria está acabada, tampouco, considerá-la verdade

absoluta.

Sobre essa construção de verdades, que Foucault analisou durante toda sua

obra, Bergson, na conferência A consciência e a vida, mostra um caminho plausível.

Ele denomina de linhas de fatos as explicações possíveis que nos conduzem,

separadamente, a uma conclusão provável. Todas essas linhas de fatos podem

convergir para acumulação de probabilidades que tendem a uma certeza. Com

efeito, muitas explicações existem para as patologias mentais, mas nenhuma é

rigorosamente comprovada, é um campo de hipóteses. E é nesse campo que

devemos continuar trabalhando, afirmando o aforismo de Sócrates “Só sei que nada

sei” e continuar a investigar todos os fenômenos que perpassam a vida e,

principalmente à infância, sem parar no tempo (ou em uma única teoria).

Palavras chave: medicalização; disciplina; controle; escola; subjetivação.

Referências Bibliográficas

CANGUILHEM, G. O cérebro e o Pensamento. Trad. Sandra Yedid & Monah Winograd. Natureza Humana. São Paulo. Vol. 8, n.1, pp. 183-210, 2006. COSTA, J. F. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5ª ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. DELEUZE, G. Controle e Devir. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, G. "Post-scriptum" sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992a. FOUCAULT, M. A História da loucura na idade clássica. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. ______. Poder e Saber. In: MOTTA, M. B. (org.). Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Coleção Ditos & Escritos IV, 2006. ______. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 38ª edição. Petrópolis: Vozes, 2010. LARROSA, J. Tecnologias do Eu e Educação. In: SILVA, T.T. (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos (5a ed.). Petrópolis: Vozes, 2002. MACHADO, A. M. Psicologia, trabalho institucional, medicalização: perigos e apostas. In: AZZI, R.G. & GIANFALDONI, M.H. (orgs.) Psicologia e Educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011 (texto gentilmente cedido pela autora). ______. Crianças de classe especial: efeitos do encontro entre saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. MANSANO, S.R.V. Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na sociedade de controle. São Paulo: Summus, 2009.

A MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NAS SALAS DE APOIO À

APRENDIZAGEM: APONTAMENTOS INICIAIS

Nadia Mara Eidt- UEL1 Luciana Ramos Rodrigues de Carvalho- UEL2

Introdução

O presente artigo visa apresentar os resultados de uma pesquisa. acerca da

medicalização da educação nas salas de apoio à aprendizagem de cinco escolas

estaduais no Município de Londrina, Paraná3. As salas de apoio fazem parte de um

programa implantado pela Secretaria do Estado do Paraná (SEED) em 2004, que

visa auxiliar no enfrentamento das dificuldades apresentadas pelos alunos, com

relação à aprendizagem de Língua Portuguesa e Matemática. De acordo com

Oliveira (et all, 2009), o programa prevê o atendimento de quinze mil alunos, com

aproximadamente oitocentas turmas funcionando no sistema de contraturno. Assim,

as salas de apoio à aprendizagem integram as políticas públicas de educação do

Estado do Paraná, visando o enfrentamento do fracasso escolar.

Há quase quinze anos, Collares e Moysés (1996) denunciam a existência de

um acentuado processo da patologização e medicalização da educação, expresso

no deslocamento da investigação de aspectos político-pedagógicos para a busca de

soluções médicas. Segundo Roman (s/d), esse fenômeno se intensificou nas últimas

décadas. Isso se deve, em grande medida, ao aumento indiscriminado do uso de

cloridrato de metilfenidato (vendido sob o nome comercial de Ritalina e Concerta)

para tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O

quadro é, na atualidade, o principal motivo de encaminhamentos de crianças para os

centros de referência em diagnóstico infantil e é uma das justificativas correntes para

o fracasso escolar. Diante desses dados, interessou-nos compreender quais foram

os critérios usados para selecionar os alunos da sala de apoio, se o professor sabe

da existência de alunos nas salas de apoio que fazem uso de tratamento médico ou

com outros profissionais e como isso interfere na aprendizagem do aluno.

                                                            1 Doutora em Educação: Educação Escolar pela UNESP/Araraquara. Professora do Departamento de Pedagogia da UEL. Email: [email protected] 2 Mestre em Educação pela UEL. Email: [email protected] 3 Vale destacar que essa pesquisa integra um estudo maior, que tem como objetivo compreender as significações em torno do ensinar e aprender produzidas por gestores, professores e alunos que integram a sala de apoio à aprendizagem no Município de Londrina-PR, e conta com o financiamento do CNPq/Capes.

A medicalização do fracasso escolar

De acordo com Zucolotto (2007, pg 137) “Medicalizar o fracasso escolar é

interpretar o desempenho escolar do aluno que contraria aquilo que a instituição

espera dele em termos de comportamento ou de rendimento como sintoma de uma

doença localizada no indivíduo, cujas causas devem ser diagnosticadas”. A

medicalização escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do processo de

ensino e aprendizagem, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a

instituição escolar nele inserida. Em outras palavras, as dificuldades de cunho

institucional, social e político ficam reduzidas a supostas doenças individuais.

Collares e Moysés (1996) afirmam ainda que a Medicina, já em suas origens,

desempenhou um papel normatizador na vida dos indivíduos e dos grupos sociais.

Verifica-se que com a consolidação do capitalismo, esse processo se intensificou,

aumentando também sua eficácia. Essas ideias perduram até hoje, tanto na

formação dos profissionais de saúde e educação como no senso comum.

No contexto escolar, a medicalização da educação se expressa por meio de duas

vertentes, quais sejam, a desnutrição e as disfunções neurológicas. Pelos limites

desse estudo, focaremos nossa análise apenas na segunda vertente, cujos

distúrbios de aprendizagem constituem sua expressão mais atual (Collares e

Moysés,1996). Como bem assinala Proença (2002, pg. 185), a principal crítica à

concepção de distúrbio de aprendizagem a partir da perspectiva organicista,

hegemônica na atualidade, está em desconsiderar a “(...) complexidade do processo

de escolarização, reduzindo-o a simples falhas no sistema nervoso central”, como no

caso do TDAH. Assim, as explicações para o não aprender revelam o predomínio da

culpabilização do aluno, da família ou de outras condições geralmente consideradas

faltosas.

Nas últimas décadas, a medicalização da educação vem aumentando em

decorrência do aumento indiscriminado de crianças diagnosticadas como portadoras

de um distúrbio orgânico, o Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade

(TDAH). O tratamento baseia-se, essencialmente, no uso de Cloridrato de

metilfenidato (vendido comercialmente sob o nome de Ritalina e Concerta). A

substância pertence ao grupo das anfetaminas e atua como um estimulante do

sistema nervoso central potencializando a ação das substâncias cerebrais, como a

noradrenalina e dopamina. De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa de

Medicamentos (IDUM), dos anos de 2000 a 2008, no Brasil, as vendas cresceram

1.616%.

O conceito de TDAH tem sua origem no início do século XX. Em 1917 - 1918

ocorreu um grande surto de encefalite nos EUA. As crianças que sobreviveram à

doença manifestavam comportamentos atípicos, caracterizados por deficiências no

controle da atenção, impulsividade e hiperatividade, deficiências cognitivas,

dificuldades de relacionamento interpessoal, comportamento de desafio, problemas

de conduta e delinqüência (LOPES, 1998). Esses comportamentos seriam

consequência de lesões anatômicas no cérebro, causadas por encefalite. A partir

daí, na tentativa de generalização desse dado, postulou-se que crianças que

apresentassem comportamentos semelhantes deveriam ter uma lesão cerebral

(SUCUPIRA, 1985, p. 30).

Atualmente, os critérios definidos pelo DSM - IV são os mais utilizados para

diagnosticar o transtorno. O termo utilizado é Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade (TDAH) e tem como característica essencial a presença de

“um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade, mais frequente e severo

do que aquele tipicamente observado em indivíduos em nível equivalente de

desenvolvimento” (DSM -IV, 1994).

Embora o fenômeno da desatenção e da impulsividade seja inegável na

atualidade, ainda não há consenso, por parte dos pesquisadores, acerca das causas

desses comportamentos. Há mais de duas décadas, Sucupira (1985, pg 30) já

expressava a divergência, existente na academia, acerca de conceitos sobre o

assunto “(...) afinal, o que vem a ser a hiperatividade? Uma doença? Uma patologia

psiquiátrica? Um distúrbio do aprendizado? Ou uma alteração do comportamento?”.

Na bula da Ritalina consta que: o medicamento pode provocar muitas reações

adversas; seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente

elucidado e o mecanismo pelo qual o multifenidato exerce seus efeitos psíquicos e

comportamentais em crianças não está claramente estabelecido; a etiologia

específica dessa síndrome é desconhecida e não há teste diagnóstico específico

(MEIRA, 2011). Apesar da falta de concordância, entre os profissionais da medicina,

acerca da existência do TDAH como um transtorno orgânico, das advertências feitas

pelo próprio fabricante sobre reações adversas, o consumo do medicamento

aumenta ano após ano.

Metodologia

O presente trabalho se orientou pelos parâmetros da pesquisa qualitativa na

modalidade de estudo descritivo realizada em um espaço destinado a educação

formal. (VALENTIM, 2005, p.101). Alega que essa modalidade de pesquisa “não

visam enumerar ou medir os eventos, mas obter dados a partir das pessoas

envolvidas nos fenômenos estudados” A modalidade descritiva tem como finalidade

descrever as “características de determinada população ou fenômeno, bem como o

estabelecimento de relações entre variáveis e fatos” (MARTINS, 2002, p.36).

Participantes: Dezenove professores de cinco escolas estaduais em Londrina-

PR, escolhidas aleatoriamente, sendo 09 professores da sala de apoio e 10

professores da sala regular. Procedimento de Coleta de Dados: aplicado de modo

semelhante em cada unidade de ensino: dezenove entrevistas com questionário

semi-estruturado com os professores da sala regular e professores da sala de apoio.

Resultados e discussão

Como resultado preliminar da pesquisa em andamento, apresentamos dois

eixos de análise, a saber: 1) Critérios adotados pelos professores das salas

regulares para encaminhamento dos alunos para a sala de apoio e 2) Existência de

alunos nas salas de apoio que fazem uso de tratamento médico ou com outros

profissionais.

Eixo 1- Critérios adotados pelos professores das salas regulares para

encaminhamento dos alunos para a sala de apoio.

Nas entrevistas realizadas junto aos professores da sala de apoio e da sala

regular, (identificados, respectivamente por: Prof. PSA 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e PSR

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10), buscamos investigar os critérios de avaliação para

encaminhamento dos alunos e as características destes alunos, por meios de

questões que enfatizaram: Que critérios foram usados para selecionar os alunos da

sala de apoio? Quem selecionou? Como selecionou? e Quais são as características

dos alunos que você encaminha para a sala de apoio?

Nas falas abaixo podemos identificar três critérios usados para o

encaminhamento dos alunos para a sala de apoio, quais sejam, 1) problemas de

comportamento e de atenção, 2) imaturidade e falta de pré-requisito e 3) defasagem

de conteúdo.

No que se refere à problemas de comportamento e de atenção, alguns

professores entrevistados afirmam que

PSR7: .... “tem aluno que é bem bagunceiro, ele não consegue aprender por causa da bagunça, conversa bastante. Outro aluno que é bastante tímido e ele não consegue associar assim palavras, muito menos ler. Por exemplo, fazer um seminário, ele não vai conseguir fazer. Então ele já tem essa dificuldade em se expressar, coisa de se expressar mesmo. E a letra, o pensamento também, falta de atenção bastante né. Que é esses alunos que travam”... (grifos nossos).

PSR9: “Alunos com déficit de aprendizagem, com dificuldades de concentração e que estão encontrando dificuldades com a disciplina (grifos nossos)”.

PSA1: “Alguns deles tem dificuldades e outros são descompromissados. Então é assim, indisciplina, desatentos, descompromissados, família desestruturada. E eles pensam assim, que vir para o apoio é para vir brincar, tanto é que eu falei, eu tenho um relatório que eu tenho que fazer deles, tanto das faltas quanto da aprendizagem, se melhoro, se teve progresso ou se continuou a mesma coisa. Então a maior parte deles são descompromissados, não tem responsabilidade, a preguiça também, não tem vontade. Que nem essa Janaina que veio ontem, ela tem dificuldade mas ela vem, as vezes ela questiona, ela vem tirar a duvida, já a outra não, não tem compromisso (grifos nossos)”.

PSA2: “É perceptível que os alunos que estão aqui tem desvio de concentração, eles tem dificuldades no aprendizado, falta de atenção, indisciplina” (grifos nossos).

A partir da fala dos entrevistados, é possível afirmar que o aluno

passa a frequentar a sala de apoio como uma “punição” á sua inadequação frente ao

modelo ideal de aluno que a escola e os professores almejam e reúne em si as

impossibilidades de aprender. Trata-se de um conjunto de atributos reunidos nessas

significações, tidos como negativos que são localizados no aluno e parecem assumir

um caráter permanente.

A característica mais comum na fala dos professores é que os

alunos são desatentos, tem dificuldades de concentração, falta de disciplina, mas

estas falas nos leva alguns questionamentos: a sala de apoio tem como objetivo

desenvolver a atenção dos alunos? O que é atenção para estes professores? Como

se desenvolve atenção nos alunos? O que é trabalhado com o aluno na sala de

apoio para que desenvolva a atenção e essa capacidade se expresse também na

sala regular?

Há alguns professores que acreditam que os alunos não acompanham a sala

de regular por não ter pré-requisito. Para explicar o porquê a criança não aprende,

as professoras usaram expressões como imaturidade e ausência de pré-requisito,

como pode ser verificado abaixo:

PSR3: “São alunos que não tem pré-requisito, que não acompanham a sala de aula e que eu pensei que com a sala de apoio poderiam obter melhores resultados.” (grifo nosso)

PSA2: “Eu percebo aqui que eles são muitos ‘novinhos’ né, eles têm muito insegurança, eles têm um pouco de dificuldade de aprendizagem, mas eles têm que começar a ter um pouco mais de segurança. Procurei trabalhar com eles, deles procurarem a resposta, eles têm muito medo, eles querem saber fazer o mecânico ali, então eu percebo essa dificuldade, eles não trabalham muito o raciocínio procurar chegar na resposta, pensar, analisar a situação, acho que é isso que falta muito. Mas ai tem caso de operação mesmo, mecânico né, divisão, por exemplo, no caso da Matemática, a divisão é a maior dificuldade que eles encontram, eles têm uma dificuldade imensa em fazer divisão né, mas eu ainda acredito que essa dificuldade é que não consegue entender o fundamento dessa divisão, o que é divisão?..., né?..., qual a definição de dividir, por isso que eles têm bastante dificuldade”.

Por fim, alguns professores estabelecem relações entre as defasagens de

conteúdos curriculares e a necessidade de os alunos frequentarem a sala de apoio:

PSA4: “Então, o primeiro critério é o seguinte: o professor da sala ele faz uma revisão diagnóstica com o aluno. No início do ano ele verifica como que ele vai continuar o conteúdo, como que ele vai iniciar o conteúdo dele, então ele precisa saber como que a sala está. E nessa revisão diagnóstica ele já percebe que tem alguns alunos com a defasagem, então ele encaminha uma ficha pra nós, mostrando a defasagem dos alunos óh, aí através dessa defasagem a gente vai trabalhando com os probleminhas, com os conteúdos que eles têm a defasagem. É ele que manda. O professor da sala que manda pra nó”s. PSR1: “É para aquele aluno que realmente precisa. Porque na realidade a sala de apoio não é para tirar as duvidas daquele ano é para tirar duvida anterior, é a defasagem mesmo. Então a gente percebe na primeira semana de aula eu faço a avaliação para ver o nível deles e as dificuldades. Eu coloco só exercícios de anos anteriores.” PSR6: “Os alunos foram selecionados por mim. Inicialmente não foi baixo rendimento em nota, foi observando as dificuldades deles em sala de aula. Aí no 2º bimestre foram alunos com baixo rendimento ou que eles perceberam algumas dificuldades e pediram que tivessem acesso a sala de apoio para sanar as dificuldades que eles tinham em sala de aula”.

A ideia que a sala de apoio é um espaço para alunos com defasagem nos

conteúdos anteriores fica explicita nas falas desses 3 professores. Entretanto,

chama a atenção o fato de que a avaliação e o encaminhamento destes alunos são

feitos logo nas primeiras semanas de aula, sem que professor tenha tido tempo de

realizar uma avaliação coerente e que tenha tido tempo hábil para conhecer os

alunos.

Podemos afirmar que os critérios utilizados para o encaminhamento dos

alunos foram subjetivos: empatia ou não com o aluno, “feeling” do professor, a

observação do comportamento do aluno nos primeiros dias de aula (indisciplina). O

aluno passa a frequentar a sala de apoio devido à inadequação frente ao modelo

idealizado de aluno. É indicado porque não atende às exigências de “aluno normal”

necessárias às situações de aprendizagem. É encaminhado porque é considerado

um “aluno problema”, pois reúne em si as impossibilidades de aprender. Assim que

o aluno cumpre sua “passagem” pela sala de apoio, pode retornar à “normalidade”

da sala regular.

A significação dada pelos professores a este espaço reforça a culpabilização do

aluno por seu baixo rendimento escolar, ou seja, pelo não aprender. Ao ter a

oportunidade de rever conteúdos que não aprendeu e “desperdiçá-la”, fica reforçada

a ideia, infelizmente recorrente, de que não aprende porque é mau aluno,

confirmando que a responsabilidade pelo aprender é do aluno e se ele apresenta

dificuldades de aprendizagem, o problema está centrado nele.

Compreende-se que a forma como o aluno é avaliado na escola revela a

organização do cotidiano escolar, as concepções sobre o aprender, os pressupostos

epistemológicos que norteiam a ação pedagógica e sugerem que os

encaminhamentos dos alunos à sala de apoio, sejam objeto de reflexão. A não

apropriação dos conteúdos por parte dos alunos, em nossa compreensão, não pode

ser ponto de partida ou causa para o não aprender, mas sim um indício de que o

processo de ensino-aprendizagem não anda bem, a contento. Considerá-lo

multicausal evita a culpabilização de um ou outro elemento na produção do

fenômeno.

Ao analisarmos as falas dos professores é possível observar que os seus

determinantes têm sido atribuídos muito mais aos fatores internos à criança,

colocando em segundo plano os fatores intraescolares (como a organização do

ensino) e extraescolares (como a lógica de funcionamento da sociedade capitalista).

Todavia, sabemos que as práticas pedagógicas exercem um papel fundamental nas

condições de educabilidade da criança, questão pouco discutida entre os

educadores.

Comum a todas essas concepções é o foco no aluno: ora é o seu aparato

biológico, ora a sua família incapaz, ora suas aptidões insuficientes ou distúrbios

psíquicos são produtores do fracasso. Às vezes, é a criança em si mesma,

entendida como um ser abstrato e vago, que não quer aprender.

Compreendemos que o aprender é um fenômeno complexo e que não pode

ser visto como unilateral, centrado apenas no indivíduo, ou na escola, ou na

professora, ou na família. Compreender, portanto, a escola como um espaço no qual

interatuam diferentes mecanismos e processos responsáveis pelo aprender/não

aprender é imprescindível. As dificuldades de aprendizagem revelam um processo

de complexidade maior e a indicação de participação do aluno na sala de apoio não

deve desconsiderar esse aspecto.

Eixo 2 - Existência de alunos nas salas de apoio que fazem uso de tratamento

médico ou com outros profissionais.

Dentre os 09 professores que atuam na sala de apoio (identificados,

respectivamente, como PSA 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9), 04 afirmam que sabem da

existência de alunos que fazem uso de tratamento médico e/ou psicológico e usam

medicação, embora desconheçam as razões que justificam seu uso. Esse dado

aponta para a naturalização do uso do medicamento no interior da escola, dado que

encontra-se em consonância com a prática da medicalização da educação e da vida:

PSA 2: Você sabe se algum dos seus alunos faz tratamento médico ou com outros profissionais da saúde, psicologia ou educação? PSA 1: “Nós temos casos de alunos que tomam ritalina, eu não sei o ‘problema’ só sei a medicação, pois o próprio aluno contou pra mim”. PSA 4: “Olha... até o que eu sei, eles tomam remédio, agora pra quê, se é pra déficit de atenção, eu não sei. Não tá escrito, mas eu sei que eles tomam remédio”. PSA 5: “Deixa eu ver... Guilherme, William, Talles, no momento que eu me lembro acho que tem seis, aqui na sala de apoio. Alguns psicológico, outros neurológicos. Tomam remédio”.

O encaminhamento de alunos aos especialistas na área de saúde, bem como

a administração do medicamento são considerados imprescindíveis para que o

aluno aprenda, tenha condição de permanecer em sala e tire boas notas, em

detrimento do papel do professor e do ensino escolar, fatores que não são sequer

mencionados pelos professores entrevistados:

Você sabe se algum dos seus alunos faz tratamento médico ou com outros profissionais da saúde, psicologia ou educação? PSA8: “Sim, alguns deles... Com psiquiatra, psicólogos... alguns necessitam e não fazem. O tratamento auxilia, se não acontecer é muito difícil fazer com que o aluno aprenda, acompanhe e mesmo tenha condição de ficar na sala” Você acha que isso interfere na aprendizagem do aluno? PSA 4: “Quando não toma o remédio daí tem esse problema, que a nota cai né... Você percebe pela nota, pela escrita, que ela não tá entendendo. Você pode explicar umas duas, três, quatro vezes que ele não vai entender”.

Esse discurso é compatível com a constatação de que a educação

contemporânea vem, por um lado, fetichizando o poder do remédio e, por outro,

delegando suas funções a outros especialistas, sobretudo aos da área da saúde,

pois perde de vista o fato de que remédio não educa e não promove o

desenvolvimento de capacidades psíquicas, como por exemplo, a atenção

voluntária.

A sala de apoio à aprendizagem transforma-se em um espaço de “triagem”,

onde ficam as crianças que aguardam realização da avaliação médica e tratamento

medicamentoso. O laudo é necessário para definir a entrada do aluno na sala de

recursos, e, indiretamente, também para determinar o que a criança é (in)capaz de

aprender. Isso pode ser verificado na passagem abaixo:

Você sabe se algum dos seus alunos faz tratamento médico ou com outros profissionais da saúde, psicologia ou educação? Você acha que isso interfere na aprendizagem do aluno? “Sim. Tem vários alunos assim. Que foi constatado assim é, como é que fala?!... Laudo. Tem muitos alunos, que tem a dislexia, algum tipo de comportamento que tem laudo e a gente trabalha diferenciado. Você acha que isso interfere na aprendizagem do aluno? Sim, como interfere. Mas só que o professor, que ele tem um... por exemplo, eu tenho uma aluna do 1º ano que eu trabalho com atividade diferente com ela, porque ela não vai entender, ela não vai entender uma função, jamais, pelo laudo médico né, mas só que a gente trabalha, a gente trabalha com as continhas. E ela está aqui na SAA? Não, ela não tá na SAA. Ela tá na sala de recurso. Por que a sala de recurso nada mais é do que uma sala de apoio também, de aprendizagem. Então os alunos que tem laudo estão lá? Tão lá. E aqui na SAA? Aqui que eu saiba não. Aqui só vem aluno com defasagem mesmo. Pode ser que eles estejam assim, tipo assim, procurando laudo. A mãe tá atrás do laudo, aí tá aqui primeiro pra depois ir pra lá, entendeu? (grifos nossos).

Pesquisas posteriores poderão dar continuidade a esse estudo, no sentido de

verificar como se dá, de fato, a intervenção pedagógica junto às crianças que

frequentam a sala de apoio à aprendizagem em virtude da queixa da existência de

problemas de atenção: esse espaço têm promovido a aprendizagem e o

desenvolvimento dessas crianças ou consiste apenas em um local de espera, até

que o laudo médico seja apresentado à escola e, assim, a criança passe a

frequentar a sala de recursos? E: a necessidade de apresentação de um laudo que

confirme a existência de uma dificuldade de atenção e comportamento, cujas causas

ainda são incertas mesmo no interior da própria medicina, para assegurar o ingresso

do aluno na sala de recursos não contribuiria para o acirramento de práticas

medicalizantes dentro e fora da escola?

Considerações Finais

Patto (1999) formulou importantes contribuições no sentido de romper com o

estigma de que fracasso é culpa do aluno ou de sua família e alerta para a presença

dos determinantes institucionais e sociais na produção do fracasso escolar, do que

problemas emocionais e neurológicos. A análise dos dados do presente estudo

permite afirmar que as questões levantadas por Patto (1999) apresentam-se atuais e

pertinentes. Pesquisa anterior, realizadas nas salas de apoio à aprendizagem

(CARVALHO, 2013), mostra que os professores na maioria das vezes não estão

preparados para lidarem com as dificuldades de aprendizagem apresentadas pelos

seus alunos. Nesse contexto, a prática da medicalização do fracasso escolar

encontra terreno fértil. Para os professores, este espaço é destinado à aqueles

alunos que sofrem a “doença do não-aprender” e, como doentes, precisam de

tratamentos especializados e medicamentos, mais do que de uma escola que

ensine.

Referências bibliográficas

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A medicalização da infância pela Disfunção Cerebral Mínima e pelo

Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade: cara de um,

focinho do outro.

Rodrigo Bombonati de Souza Moraes

Centro Universitário São Camilo

RESUMO

O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nomeia o

comportamento considerado desatento e hiperativo, diagnosticado em crianças em

idade escolar. A Disfunção Cerebral Mínima (DCM) localiza, no cérebro, a origem de

comportamentos indesejados e não normais de crianças em mesma idade. Neste

trabalho, objetivamos realizar uma comparação entre essas duas modalidades de

psiquiatrização do comportamento infantil (FOUCAULT, 2006; COLLARES; MOYSÉS,

2010), tendo em vista a sofisticação discursiva dos processos de medicalização. Para

tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica, analisando as literaturas acerca dos

transtornos, publicadas em livros e artigos científicos desse campo, analisadas

criticamente. Em linhas gerais, podemos dizer que o discurso em torno do TDAH

complexificou-se comparativamente à DCM embora os temas e, muitas vezes, as

dúvidas quanto aos objetos analisados sejam semelhantes. Enquanto os

pesquisadores utilizam o manual da psiquiatria norteamericana DSM (Diagnostic and

statistical manual of mental disorders) para definir o TDAH, a definição da DCM é

orientada por meio de associações psiquiátricas. Percebemos continuidade na forma

de entender o comportamento desviante ou patológico da DCM para o TDAH, em que

a criança que tem o distúrbio ou o transtorno é aquela que está fora da norma,

incomoda, causa aversão aos colegas, familiares e professores, é insidiosa, tem baixo

desempenho escolar, não para quieta, perturba, argumenta inapropriadamente e que,

se não for diagnosticada e tratada, terá uma vida repleta de riscos, frustrações,

fracassos, desajustes sociais, em suma, de infelicidade. O diagnóstico é clínico e

ativado pelas pessoas que convivem com a criança. O tratamento é medicamentoso

com psicoestimulante. Concluímos que o TDAH é uma nova roupagem do DCM,

possibilitada pela utilização de conceitos neurocientíficos modernos, não menos

incontestados, algo que traz maior complexidade à questão da medicalização do

comportamento infantil.

Palavras-chave: Medicalização; Psiquiatrização da infância; TDAH; DCM.

INTRODUÇÃO

No Brasil, existem alguns trabalhos científicos – teses e dissertações – que

buscam criticar a medicalização da infância (PEREIRA, 2010; GUARIDO, 2008;

FREITAS, 1996). Tais trabalhos contribuem muito para a discussão ora apresentada,

além de abrirem a possibilidade de aprofundarmos a questão do controle sobre a

infância em outra perspectiva e apontar diversas consequências que transcendem o

campo educacional.

Por outro lado, o tema do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH), diagnosticado em crianças em idade escolar, ainda anima muitas pesquisas

consideradas científicas na tentativa de descobrir suas causas e modos de

tratamento. Já o tema da Disfunção Cerebral Mínima (DCM), diagnosticada nessa

mesma parcela da população, possuía as mesmas preocupações na década de 1970.

Ao comparar as formas clínicas que constituem essas duas “doenças” (definição,

prevalência, sintomas comportamentais, dificuldades escolares e comorbidades,

etiologia, diagnóstico e tratamento), observamos certa continuidade na forma de

produção de verdade sobre o corpo infantil.

Neste artigo, fruto de reflexão feita em tese de doutorado, objetiva-se realizar

uma comparação entre essas duas “patologias mentais” a partir dos discursos que as

constroem. Ou seja, trabalhamos as conceituações sobre o TDAH comparativamente

à Disfunção Cerebral Mínima (DCM) para perceber o processo de continuidade ou

desvio de um em relação à outra. O que nos aparece como fundamental é, por um

lado, a comparação entre o TDAH e a Disfunção Cerebral Mínima (DCM), que nos

fornecerá a percepção do processo de medicalização do comportamento infantil e, por

outro, a maneira como a infância insere-se no debate psiquiátrico atual.

Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica, analisando artigos e livros

que expõem a visão de mundo dos autores imersos na construção e justificação

desses temas, bem como as transformações dos conceitos utilizados nos discursos

médico-psiquiátricos e as consequências para o processo de medicalização.

Estruturalmente, além desta Introdução, o artigo divide-se em outras três

seções: na próxima etapa, faremos uma apresentação dos conceitos de

medicalização e psiquiatrização da infância, a fim de que sirvam como quadro

conceitual para a análise crítica da comparação entre o DCM e o TDAH, algo que será

realizado na última seção; entrementes, realizaremos uma revisão bibliográfica

positiva desses dois transtornos.

A MEDICALIZAÇÃO e a PSIQUIATRIZAÇÃO da INFÂNCIA

O processo de medicalização da criança no Brasil, por meio do TDAH, tem a

finalidade de criar o dispositivo de normalização do comportamento infantil para

adequação ao meio social produtivo tendo em vista um futuro repleto de riscos. Em

outras palavras, as estratégias de biopoder e de biopolítica do TDAH (FOUCAULT,

1998) visam à normalização do comportamento infantil, o que ocorre por meio dos

saberes e práticas de especialistas, criados sobre seu corpo, inseridos no campo de

poder constituído em torno da medicalização. O controle sobre esse comportamento

é uma de suas consequências. A medicalização seria assim uma justificativa científica

para a normalização da vida, visando à extração máxima de suas capacidades para

o desempenho.

Isso é feito pela assunção dos comportamos considerados anormais como

transtornos médicos e que, portanto, devem ser diagnosticados e tratados como

patologias (ROHDE; HALPERN, 2004; CONRAD, 1975). Para isso, os argumentos

médicos-científicos investem na naturalização do comportamento como patológico e

que somente será normalizado por meio de diagnósticos médicos e de tratamentos

medicamentosos (ILLICH, 1975; ROUDINESCO, 2000; ROSE; 1999, 2001;

COLLARES; MOYSÉS, 2010).

A questão disciplinar que leva à psiquiatrização do comportamento infantil

envolve um poder que, para Foucault (2006, p. 50), seria uma “forma capilar de poder,

última intermediação [...] pela qual o poder político (os poderes em geral) vem tocar

os corpos, agir sobre eles, levar em conta seus gestos, comportamentos, hábitos,

palavras”. Pensando no corpo da criança pelo dispositivo para o controle de suas

ações, os discursos constituem a criança por meio dos poderes disciplinares.

Não podemos desvincular o poder psiquiátrico do poder disciplinar, uma vez

que surgem como modalidades que podem ser chamadas de contato sináptico corpo-

poder, numa noção psicossociológica de autoridade (FOUCAULT, 2006). Além disso,

ao analisar a psiquiatria a partir do poder disciplinar, Foucault investiga o fato de a

psiquiatria produzir discurso verdadeiro que cria instituições e poderes.

A visibilidade do corpo, dos gestos, dos discursos e comportamentos, alinhada

à escrita, permite a individualização esquemática e, como efeito de poder,

centralizada. Isso faz com que o comportamento não mais precise ser,

necessariamente, punido, pois, com as informações disponíveis, o poder disciplinar

intervém antes do corpo se manifestar, antes do gesto, antes do discurso, no nível da

virtualidade, conforme ilustram os transtornos ora apresentados.

DCM e TDAH: cara de um; focinho do outro

Definições: o simpósio realizado em Oxford, em 1962, marcou um importante

momento para a DCM, pois se oficializou a nomenclatura “Disfunção Cerebral

Mínima”, uma vez que não havia suporte anátomo-clínico para sustentar a ideia de

“lesão”. A DCM refere-se a (LEFÈFRE; MIGUEL, 1975): 1) crianças sem problema de

inteligência; 2) problemas de aprendizagem e/ou distúrbios de comportamento de leve

a severo; 3) discretos desvios de funcionamento do sistema nervoso central; 4) pode

apresentar combinações de déficit na percepção, conceituação, linguagem, memória,

controle da atenção, impulsos ou função motora; 5) sintomas similares (considerados

aberrações) podem ou não complicar o problema como paralisia cerebral, epilepsia,

retardo mental, cegueira ou surdez; 6) causas por variação genética, irregularidades

bioquímicas, sofrimento na gravidez, moléstias ou traumas durante a infância ou

causas desconhecidas; e 7) nos anos escolares, há dificuldades especiais de

aprendizagem que constituem as mais importantes manifestações da condição de

DCM.

Quanto ao TDAH, Santos e Vasconcelos (2010, p. 717) atentam para o fato de

a sua compreensão ser feita pela conjunção de bases biológicas e comportamentais,

contribuindo para a implementação de terapias mais eficazes. O TDAH é um

comportamento de risco, mas que este não necessariamente representa o transtorno

e sim outra possível forma de patologia psiquiátrica. A tríade de sintomas da síndrome

caracteriza-se por desatenção, hiperatividade e impulsividade (ROHDE et al., 2000,

p. 7).

As definições apresentadas são muito similares, pois levam em consideração,

de maneiras distintas, os três sintomas que definem as patologias. Contudo, a

definição de DCM é mais genérica, menos classificatória e menos precisa. Já a

definição do TDAH parte de uma base bastante simples e descritiva (desatenção,

hiperatividade e impulsividade).

Prevalência: ambos os estudos concordam que a prevalência é maior em meninos,

mas em termos de epidemiologia, os números são discrepantes. Enquanto a

estimativa para TDAH é de 3% a 6%, o de DCM ocorre entre 5% e 10%, os estudos

de DCM parecem não ter alcançado uma maior exatidão devido à falta de precisão na

elaboração dos critérios de diagnóstico.

Sintomas comportamentais, dificuldades escolares e comorbidades: os

pesquisadores em torno do TDAH apresentam diversas características individuais e

critérios mais objetivos que possam constituir o quadro do transtorno. A

sintomatologia da DCM é bastante genérica, aponta para comportamentos que não

necessariamente correspondam ao distúrbio, além de depender quase que

exclusivamente da subjetividade do clínico. Alguns aspectos são muito semelhantes,

como a continuidade do transtorno na vida futura, as consequências negativas que

possam advir e os potenciais danos sociais que possam ocorrer caso o distúrbio e o

transtorno não sejam tratados. Ademais, os aspectos de dislexia, disgrafia e

discalculia considerados como comorbidades na DCM desaparecem no TDAH, pois

essas ganham um estatuto de transtorno em separado.

Tanto na DCM quanto no TDAH, os riscos que as crianças com os transtornos

podem sofrer em termos de sociabilidade e desempenho escolar são largamente

alardeados, principalmente, quanto à baixa performance na execução das tarefas e

trabalho e ao fracasso escolar (repetência, notas baixas etc.).

Etiologia: a ideia proposta na DCM de que o distúrbio advém de uma base orgânica

relativa ao cérebro, que possui uma causa genética, constituída por diversos genes,

e que causa deficiências nos neurotransmissores não foi abandonada nas análises do

TDAH. No caso da DCM, Lefèvre e Miguel (1975, p. 15) mostram que se trata de: uma

síndrome orgânica cerebral; prevalência no sexo masculino (4:1 em relação ao

feminino); herança hereditária, mesmo que não haja estudos que comprovem, do tipo

poligênico; etiologia ligada a distúrbios bioquímicos na esfera das catecolaminas em

função de neurotransmissores; a d. anfetamina afetar o metabolismo central da

dopamina (DA) e da noropinefrina (NE).

No caso do TDAH, os autores mostram, ainda, que as causas precisas da

doença não são conhecidas, mas que há uma aceitação na literatura de que fatores

genéticos e ambientais favorecem o desenvolvimento do transtorno. Acredita-se

assim que vários genes possuam influência sobre o transtorno (poligênico).

Investigam-se genes codificadores de componentes dos sistemas “dopaminérgico,

noradrenérgico e, mais recentemente, serotoninérgico”. Isto porque estudos

neurobiológicos têm sugerido o envolvimento desses neurotransmissores na

patofisiologia do transtorno.

Aqui, os estudos sobre o TDAH adicionaram mais um neurotransmissor, a

serotonina. Ambos os estudos, contudo, atentam para a ausência de evidências que

realmente comprovariam essas hipóteses.

Diagnóstico: ambos atestam a necessidade de exames clínicos, a partir da

identificação dos sintomas na criança. No TDAH, o diagnóstico é realizado com a

utilização do DSM e do CID, esperando verificar “se o sintoma supostamente presente

correlaciona-se com o constructo básico do transtorno, ou seja, déficit de atenção e/ou

dificuldade de controle inibitório” (ROHDE; HAIPERN, 2004, p. S64). Outro

instrumento bastante utilizado para o diagnóstico de TDAH é o chamado SNAP IV. Já

o diagnóstico da DCM deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, sendo as

suspeitas levantadas nos primeiros dias da atividade escolar, ao se observarem

problemas de comportamento e de aprendizado, momento em que se encaminham

as crianças para exames neurológicos, psicológicos e eletrencefalográfico. Contudo,

a dificuldade reside no fato de haver ausência total de sinais neurológicos (LEFÈVRE;

MIGUEL, 1975, p. 18). Os autores do TDAH e da DCM alertam para a impossibilidade

de comprovação dos transtornos por meio de exames neurológicos e por

neuroimagem ou eletroencefalógrafo no caso da DCM. Contudo, abrem a

possibilidade de que possa haver uma comprovação futura.

Tratamento: tanto os estudos da DCM quanto do TDAH advogam a utilização de

psicoestimulantes para tratar os transtornos. Além disso, os autores apontam para

uma melhora significativa dos sintomas com o uso do metilfenidato. No caso do TDAH,

por se tratar de um quadro de deficiência de estratégias cognitivas, priorizam-se

intervenções como auto-instrução, registro de pensamentos disfuncionais, solução de

problemas, auto-monitoramento, auto-avaliação, planejamento e cronogramas

(SANTOS; VASCONCELOS, 2010, p. 720-721). Uma terapêutica alternativa sugerida

no estudo da DCM são os exercícios de motricidade para os casos de dislexia,

disgrafia, discalculia e distúrbios motores. Em ambos os casos, claramente, tais

tratamentos aparecem como alternativas ao tratamento medicamentoso.

DCM e TDAH: a sofisticação discursiva da medicalização

Podemos dizer que o discurso em torno do TDAH complexificou-se

comparativamente à DCM embora os temas e, muitas vezes, as dúvidas quanto aos

objetos analisados sejam semelhantes. Além disso, enquanto que os pesquisadores

utilizam o DSM para definir o TDAH, a definição da DCM é orientada por meio de

associações médico-psiquiátricas. Talvez, naquele momento, o DSM ainda não

tivesse se legitimado como porta-voz do discurso competente. Outra característica

dos estudos em torno do TDAH é a imensa preocupação com a citação de estudos e

com a comprovação das informações por meio de dados estatísticos. Percebemos

ainda que houve uma continuidade na forma de entender o comportamento desviante

ou patológico da DCM para o TDAH, em que a criança que tem o distúrbio ou o

transtorno é aquela que está fora da norma, que incomoda, que causa aversão aos

colegas, familiares e professores, que é insidiosa, que tem baixo desempenho escolar,

que não para quieta, perturba, argumenta inapropriadamente e que se não for

diagnosticada e tratada terá uma vida repleta de riscos, descaminhos, frustrações,

fracassos, desajustes sociais, em uma palavra, infelicidade. O diagnóstico é,

invariavelmente, clínico e ativado pelas pessoas que convivem com a criança. O

tratamento é, invariavelmente, medicamentoso com psicoestimulante.

Ao se propor, no caso do TDAH, a existência de uma lesão cerebral não muito

grave ou mesmo mínima que justificaria o comportamento hiperativo da criança não

se consegue estabelecer quaisquer conexões anatomopatológicas para determinar a

causa dessas doenças. O interessante é que as práticas psiquiátricas utilizam estes

discursos como referências, mas o tratamento não os leva em consideração. Assim,

os discursos aparecem como garantias de verdade de uma prática psiquiátrica que

pretendia a verdade como lhe sendo dada, sem questioná-la.

A questão da verdade não se coloca entre o psiquiatra e a doença mental posto

que a psiquiatria já é uma ciência. Ou seja, a psiquiatria já se vê como uma ciência na

prática, aparecendo como detentor dos critérios de verdade. Impõe aos corpos

dementes e agitados um sobrepoder que dá à realidade, pois detém a verdade em

relação à doença mental (FOUCAULT, 2006). A família inicia, e não necessariamente

a escola, o que Foucault (2006) chama de disciplina psiquiátrica, tornando-se o olhar

psiquiátrico de vigilância da criança para decidir sobre o normal e o anormal, por meio

do controle da postura, dos gestos etc.

Contudo, o problema da psiquiatria refere-se ao problema da verdade. O poder

psiquiátrico é, assim, um suplemento de poder por meio do qual o real é imposto,

digamos, à doença mental “em nome de uma verdade detida de uma vez por todas

por esse poder sob o nome de ciência médica, de psiquiatria” (FOUCAULT, 2006, p.

164-165). A psiquiatrização da infância passa pelos comportamentos em forma de

furor, violência agitação e, por outro, de abatimento, inércia, não-agitação, demência,

imbecilidade expressões comportamentais observadas tanto pelo TDAH quanto pela

DCM.

Podemos dizer que o saber psiquiátrico é um dos elementos por que o

dispositivo disciplinar organiza o sobrepoder da realidade em torno da doença mental.

É próprio do saber científico moderno supor que haja verdade em toda a parte, lugar

e o tempo todo. Essa verdade é aquela que se constata, que é dada na forma de

demonstração. A questão da verdade é assim introduzida, tanto no TDAH quanto na

DCM, a partir tanto do interrogatório quanto do uso de drogas que cada vez mais se

afirma em nossa sociedade e que fora, inicialmente, silenciado. O interrogatório fixa,

enquanto método disciplinar, o indivíduo à norma da sua identidade, vincula o

indivíduo à identidade social e à assinalação de portador de transtorno que lhe foi

imputada pelo meio. Já as drogas, como o metilfenidato, eram e continuam sendo um

instrumento disciplinar evidente, pertencendo ao reino da ordem, da calma, “da

colocação do silêncio” (FOUCAULT, 2006, p. 301).

Finalmente, percebemos que esse processo de medicalização possui os

elementos analíticos propostos por Rabinow e Rose (2006, p. 29), pois há, em ambos

os casos, discursos de verdade sobre a vitalidade dos seres humanos, e um conjunto

de autoridades ou especialistas que falem sobre essa verdade, além de modos de

subjetivação, em que os indivíduos são levados a agir sobre si mesmos, sob certa

autoridade, orientados pelos discursos de verdade, por meio de práticas do self, em

nome de sua vida ou saúde, de sua família ou de uma coletividade ou ainda de uma

população como um todo.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Neste artigo, procuramos mostrar que o campo da medicalização da infância

parece tornar-se cada vez mais complexo, na medida em que os argumentos

médicos-científicos sofisticam-se. As diversas pesquisas relativas a todas as áreas

envolvidas na definição e legitimação da DCM, no passado, e do TDAH, atualmente,

fazem com que o novelo de forças atuantes no campo médico torne-se mais

intrincado, fugidio, dados os métodos empregados na constituição do TDAH como

patologia. Os saberes produzidos em torno do funcionamento das patologias cada vez

mais sem corpo (ROSE, 2001) são possíveis justamente por conta da busca das

relações entre elementos cada vez mais tênues (como as proteínas que compõem

determinado gene) que apontam para a perda há muito de um sujeito doente.

Antes, a sigla DCM ainda apontava para algo concreto (cérebro). Agora, o

TDAH aponta para ações demasiado abstratas que, embora provenham de um corpo,

esse já não é mais necessário. Acontece aqui o oposto da clínica do corpo sem órgãos

(DELEUZE; GUATTARI, 1996), em que o “corpo sem órgãos porque não requer mais

a tecnologia disciplinar do exame ou de que sejam vistos para o diagnóstico que gera

a prescrição ‘clínica’. O diagnóstico antecede o exame físico, é o diagnóstico do risco,

e estamos todos sob o risco da doença dos órgãos. Esse corpo sem órgãos, em

contrapartida, é um corpo sem forças, débil, exausto” (CECCIM; MERHY, 2009, p.

539). O corpo sem órgãos que estaria desprendido das forças que o tentariam

controlar é ainda mais controlado quando se elege o órgão (cérebro) ou o

comportamento (excesso de atenção e falta de atividade) como objetos de

investigação. Cria-se uma nomenclatura adequada à sintomatologia de um

comportamento social, ao mesmo tempo em que se buscam explicações

neurofisiológicas, para um comportamento considerado, no mínimo, diferente do

esperado ou, na realidade, anormal. O percurso da DCM para o TDAH ainda revela a

utilização de novos meios de biopoder como as técnicas psicológicas baseadas na

cognição e no comportamento. Antes, trabalhava-se o corpo com a psicomotricidade;

agora, trabalha-se a mente com a psicologia cognitivo-comportamental.

REFERÊNCIAS

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III Seminário Internacional Educação Medicalizada: Reconhecer e Acolher as Diferenças

Eixo 1: Ciência, Ideologia e Medicalização dos Diferentes Modos de Viver

A MEDICALIZAÇÃO EM ESTUDANTES: UMA REFLEXÃO A PARTIR

DA CONTRIBUIÇÃO DOS PROFESSORES

Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva

Núcleo de Educação Continuada do Paraná

Michely Baladeli Borges Fransozio

Universidade Estadual de Maringá

PALAVRAS-CHAVE: Transtorno da falta de atenção com hiperatividade;

Medicalização; Professores.

QUADRO CONCEITUAL

Ambiente Escolar

Distúrbios de Aprendizagem

Transtorno de Déficit de Atenção e

Hiperatividade

Outros Distúrbios

Visão Médica (medicalização)

Visão Contextualizada (biopsicossocial)

OBJETIVOS

Objetivo geral: O referido trabalho pretende reconhecer a visão que

professores do Ensino Fundamental da instituição particular manifestam

especificamente sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e

a medicalização no alunado.

Objetivos específicos:

- Apresentar uma breve contextualização acerca da evolução do pensamento

médico e sua influência nas diversas esferas da sociedade, inclusive na educação;

- Explicar o fenômeno da medicalização e sua relação com o aumento dos

diagnósticos de distúrbios de aprendizagem em alunos;

- Expor a dificuldade existente quanto à declaração da origem do TDAH e seu

diagnóstico;

- Suscitar a reflexão sobre os atuais diagnósticos de distúrbios de aprendizagem na

escola e a postura dos professores frente ao assunto.

METODOLOGIA

O presente estudo é de abordagem qualitativa e utilizou como principal

instrumento para levantamento dos dados, questões abertas a respeito da

compreensão que professores do Ensino Fundamental da escola particular possuem

sobre o assunto exposto. Para a realização do levantamento dos dados, foram

elaboradas perguntas abordando as informações que o professor possui sobre o

TDAH, sua postura perante o aluno diagnosticado com esse transtorno, a opinião

que o educador apresenta sobre esse tipo de medicalização na infância e as

características que considera inerente ao TDAH. A participação dos informantes foi

voluntária e salientou-se a preservação da identidade dos mesmos, pois o objetivo

principal da pesquisa permeia um levantamento geral acerca da opinião e

entendimento dos educadores frente à temática proposta.

RESULTADOS

Atualmente, no campo educacional, são crescentes os casos de crianças e

adolescentes fazendo uso de medicação por terem sido diagnosticadas com alguma

dificuldade dentro do espectro dos distúrbios de aprendizagem, principalmente o

TDAH. Tem-se identificado a utilização desses diagnósticos para justificar o fracasso

escolar dos alunos com dificuldades de aprendizagem, desconsiderando o contexto

social e histórico do sujeito e muitas vezes, a precariedade do próprio processo

ensino-aprendizagem.

Observa-se, então, a biologização da vida humana sendo tomada como

resposta para grande parte dos problemas sociais. A influência da clínica médica nos

diversos âmbitos da sociedade tem origem já no século XIII, em que o pensamento

médico positivista ganhou legitimidade enquanto atestado de verdade acerca da

doença. A partir do século XIX esse poder ficou ainda mais sustentado pela maior

objetividade e empirismo que a prática médica adquiriu (Foucault, 1977).

Como explica Priszkulnik (2000), o rigor científico passou a dirigir a clínica

médica pela objetividade, racionalidade e generalização, buscando nos sinais do

corpo a base para os diagnósticos, tratamento e obtenção da cura. Também a

regularidade dos sintomas se tornaram importantes para a classificação das

doenças por parte do médico, oferecendo melhor organização e segurança à

população geral.

Retomando o contexto escolar, Guarido (2007) refere que até o século XX a

pedagogia tinha o interesse de prevenir possíveis problemas na criança, que

pudessem desenrolar em dificuldades no adulto que ela viria a se tornar. Assim,

nesse período, o saber médico começou a se voltar para o desenvolvimento infantil,

procurando formas de tratamento para as crianças com dificuldades no meio escolar.

Surgiram, ainda, testes de inteligência visando indicar as pessoas apropriadas ao

modelo de aprendizado instituído pela instituição escolar em voga.

Por esse viés, a autora ressalta o quanto nessa época a fonoaudiologia,

psicologia e psicopedagogia, entre outras especialidades, inseriram-se no campo

escolar de modo a contribuir para que a problematização dos insucessos do alunado

recaíssem nele e na esfera familiar. Em meio à significativa intervenção do

pensamento médico, ficou difícil considerar problemas escolares para além do

biológico, ou seja, entender certas dificuldades de aprendizagem como fruto de um

sofrimento psíquico ou da não adequação aos moldes escolares vigentes. Tal

sistema se estende até os dias atuais, onde se constata o peso da psiquiatria sobre

a visão de profissionais da educação.

Adentrando na questão da medicalização, tem-se este termo para explicar

quando os problemas de ordem política e social são compreendidos e tratados como

sendo de princípio biológico. Contudo, o fato de profissionais de diversas áreas

igualmente ingressarem nessas práticas do campo médico, ampliou-se para o

conceito de patologização. O maior problema percebido é a responsabilização do

próprio sujeito e sua família sobre o que tange o processo de saúde e doença do

mesmo (Collares & Moysés, 1994).

Nesse sentido, Meira (2012) afirma não se estar fazendo uma crítica à

medicação eficaz de doenças, mas à banalização dos diagnósticos de distúrbios de

aprendizagem, sem a necessária avaliação do contexto histórico-social em que o

aluno se encontra inserido e aos fenômenos presentes na educação atual. Ao invés

da escola questionar apenas o motivo pelo qual o aluno não aprende, deveria

ampliar as indagações e investigar o que a instituição escolar tem feito para que o

aluno não tenha interesse e apresente falta de concentração.

Todas essas implicações se tornam ainda mais delicadas quando se diz

respeito sobre o diagnóstico do TDAH, o qual é palco de contradições de discursos e

inexatidão científica. Para Coelho, Chaves, Vasconcelos, Fonteles, Sousa & Viana

(2010), o diagnóstico exato é difícil, devendo abranger basicamente o quadro

comportamental do sujeito por não haver ainda comprovação científica de um

indicador orgânico ligado à origem de todas as variações do transtorno, além de não

ser eficaz o tratamento apenas com uso de psicoativos. Legnani e Almeida (2008)

destacam além da observação do comportamento, a realização de entrevistas com

pais e professores, avaliação neurológica, descarte da possibilidade de outras

doenças tanto de fundo biológico quanto psicológico e uso de testes de inteligência.

Mesmo assim, verifica-se que na maioria dos casos não se cumprem todo o

processo diagnóstico descrito acima, ficando restrito à averiguação dos sintomas e

inserção medicamentosa.

Por haver, ainda, uma discrepância entre as especialidades médicas a

respeito da origem exata do TDAH, observou-se por meio das questões aplicadas

aos professores da pesquisa, também uma dificuldade deles em falar sobre o

assunto. Muitos se sentiram inibidos em afirmar algo sobre o transtorno. Contudo,

não foi identificado o desconhecimento completo da temática, ao contrário, existe um

domínio geral construído por conhecimento prévio (estudo, leituras, discussões entre

os pares) e por experiências cotidianas da sala de aula. Ainda assim, a experiência

com o aluno no ambiente escolar se mostrou ser a fonte que melhor ilustra aos

professores, as peculiaridades e alcances do TDAH.

Ao averiguar a amplitude dos sintomas descritos no TDAH, nota-se que o

fármaco metilfenidato, comercialmente conhecido como Ritalina, consegue suprir

uma variedade de demandas, desde a agitação até seu oposto, a apatia da criança

ou adolescente. Assim, eliminando os sintomas, erroneamente se acredita que o

problema de comportamento e aprendizagem está sendo tratado. No entanto, o

medicamento parece estar mais a serviço de aliviar a angústia daqueles que não

sabem como lidar com o aluno, podendo ser a escola ou mesmo a família, do que a

ele próprio (Santos, Silva, Luzio, Yasui & Dionísio, 2012). Em vista disso, alguns

professores apontaram os efeitos positivos do medicamento nos casos difíceis de

concentração e indisciplina em sala de aula, mas, detectaram que algumas famílias

faziam o uso indiscriminado do remédio para conter o comportamento dos filhos,

quando estes se apresentavam difíceis de controlar.

Brant e Carvalho (2012) mencionam a necessidade de haver precaução ao

utilizar a Ritalina, descrito na própria bula do medicamento. Uma atenção especial

deve ser dada às pessoas com histórico de abuso de álcool e substâncias químicas

abusivas que podem ser emocionalmente instáveis.

No discurso dos professores, pôde-se reconhecer que para alguns alunos a

medicação auxilia consideravelmente no rendimento escolar, ocasionando a

diminuição da agitação e comportamentos inadequados durante a aula, e permitindo

algum nível de foco nas atividades propostas. No entanto, certos educadores

questionaram a dose medicamentosa administrada a uma parcela de alunos, que

parece ser excessiva devido ao bloqueio comportamental e engessamento inserido.

Destaca-se no discurso de alguns professores, que há os alunos que mesmo

fazendo uso de medicação não aparentam mudança considerável, continuam

desatentos, agitados, às vezes agressivos e desobedientes.

Por fim, destaca-se uma preocupação e empenho em grande parte da equipe

pedagógica para com os alunos medicados e diagnosticados com TDAH ou outras

dificuldades de aprendizagem. De forma geral, os educadores referiram tentarem

propor atividades que exijam diferentes habilidades para que o aluno que tenha

maior dificuldade em um tipo de avaliação, por exemplo, consiga mostrar sua

capacidade de outra forma. Verificou-se um cuidado do professorado também em

poupar os alunos com dificuldades escolares do constrangimento perante a turma,

auxiliando-os a se concentrarem e acompanhando mais de perto a produtividade dos

mesmos.

CONCLUSÕES

Faz-se passível de elucidação, que o campo dos distúrbios de aprendizagem

ainda não é de todo claro, havendo dúvidas, questionamentos e controvérsias tanto

entre os especialistas ligados à saúde, quanto à equipe pedagógica que lida

diretamente com essa clientela.

Todavia, verificou-se que mesmo assim, os professores do ensino particular

têm buscado envolver-se ativamente diante das dificuldades de cunho pedagógico

apresentadas por seus alunos. Dentro das possibilidades, procuram aproximar-se do

problema do aluno e sua família, para conseguir o desenvolvimento de um trabalho

melhor articulado e vislumbrando um sujeito por completo (biopsicossocial).

No que diz respeito ao TDAH, vale notar que mesmo os professores,

identificaram uma grande variação de comportamentos e reações dos alunos que

utilizam medicamento para o transtorno, não havendo um fácil discernimento de

quem realmente precisaria da introdução do fármaco para obtenção de resultados

satisfatórios no meio escolar. Apontam-se casos em que houve benefício do remédio

e outros sem mudança aparente, ou então, uma contenção desmedida do sujeito.

Acima de tudo, o atual estudo conseguiu mapear por meio da contribuição

dos professores do ensino particular, que uma parte dos alunos pode estar sendo

medicada indevidamente ou que o fármaco está sendo imposto de modo abusivo e

em um contexto errôneo. Porém, os educadores com suas limitações, procuram

atuar da melhor forma, adaptando o conteúdo à diversidade da classe e às

características peculiares que podem variar de aluno a aluno. A postura desse tipo

de educador oferece a esperança de que pelo menos no ambiente escolar, algo

esteja sendo realizado para além de um laudo diagnóstico, que se não usado

corretamente, patologiza a sociedade e uniformiza o ser humano.

Vale proferir que as reflexões desenvolvidas neste trabalho não procuram

negar a ocorrência de problemas de ordem biológica estar associadas às

dificuldades no aprendizado e aos comportamentos inadequados. Entretanto, diante

da fragilidade das constatações científicas sobre a procedência desses distúrbios,

deve-se atentar e contextualizar o problema, para não recair em rotulações sem

fundamento que podem marcar a vida e o futuro de uma pessoa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DAS QUEIXAS ESCOLARES QUE

CHEGAM A UMA CLÍNICA-ESCOLA DE PSICOLOGIA

Lorena Carrillo Colaço (UNICENTRO) José Alexandre de Lucca (UNICENTRO)

O debate conceitual sobre a relação Medicalização e as "queixas escolares"

Com o crescente número de crianças/adolescentes encaminhados aos

serviços de atendimento médico, psicológico, fonoaudiológico, entre outros, com

perfil de queixa escolar, entendemos que se faz necessária a contínua reflexão

crítica acerca da temática.

A partir do trabalho de Neves & Almeida (2006), encontramos que a queixa

escolar é o motivo mais frequente pelo qual crianças são encaminhadas diariamente

aos serviços de atendimento psicológico e existem, também, inúmeras pesquisas

que apontam para a fragilidade dos “diagnósticos” que justificam as queixas

escolares (SOUZA, 2005; NEVES & ALMEIDA, 2006; CALIMAN, 2010; PATTO,

1999, etc.) e que criam o fenômeno chamado “medicalização”.

De acordo com Collares (1992, p. 25), “a medicalização é um dos fatores

indicados como responsável pelo fracasso escolar das crianças”. Em geral, para os

agentes da escola, a causa desse fracasso é extra-escolar, vêem a criança como

doente, quando ela não se apresenta como a escola deseja. Sobre o termo

“medicalização”

[medicalização] refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e as soluções para problemas dessa natureza. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo (COLLARES & MOYSÉS, 1994, p. 25).

O uso da palavra “medicalização” se deve ao fato de que não só os médicos

estão tornando biológicas as causas dos problemas de origem social. Outros

profissionais – psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, professores – através de

uma prática organicista, também “patologizam”, tornam uma patologia/doença

aquela característica da criança que, segundo a escola, não condiz com a

“normalidade”, essa causa é encontrada apenas no indivíduo (COLLARES &

MOYSÉS, 1994).

A patologização do cotidiano escolar resulta no diagnóstico de transtornos

como, por exemplo, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Na linha de contraposição ao tdah, é necessário resgatar o conceito de atividade

que, para Leontiev, pode ser definido como a forma que o homem se relaciona com

o mundo, sempre orientada por objetivos e motivos, agindo de forma intencional

(LEONTIEV, 1978)

Leontiev enfatiza, basicamente, no conceito de atividade, o importante papel

das condições sócio-históricas em que o sujeito cresceu e se desenvolveu e também

da consciência individual (VYGOTSKY; LURIA; LEONTIEV, 2010).

As características e os critérios diagnósticos do Transtorno de Déficit de

Atenção e Hiperatividade são apresentados, pela primeira vez na 3ª edição do

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que está transitando para

sua 5ª edição (conhecido como DSM-V). Na 4ª edição, publicada em 2002 pela

American Psiquiatrist Association (APA), o TDAH é descrito como um padrão

persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade. Segundo o Manual,

“não existem características físicas específicas associadas com o Transtorno de

Déficit de Atenção/Hiperatividade” (2002, p. 115), ou seja, sua veracidade enquanto

transtorno neurológico não é comprovada. Na elaboração desse diagnóstico, os

aspectos sócio-históricos em que a criança está inserida são descartados, uma vez

que considera o TDAH como tendo origens genéticas e biológicas. Segundo

Vygotsky a única aptidão nata do ser humano é a capacidade que ele tem para

formar e aprender novas aptidões e de desenvolver sua inteligência e personalidade

(VYGOTSKY, 1998), ou seja, há uma relação dialética entre aprendizagem e

desenvolvimento.

Segundo Oliveira (2010), a aprendizagem “é o processo pelo qual o indivíduo

adquire informações, habilidades, atitudes, valores, etc. a partir de seu contato com

a realidade, com o meio ambiente e com as outras pessoas” (OLIVEIRA, 2010, p.

59).

Quando uma criança, no seu processo de aprendizagem, é “diagnosticada”,

ela acaba sendo encaminhada a outros profissionais que nem sempre desenvolvem

práticas críticas em relação à condição da criança. E dentre os vários lugares para

onde a criança pode ser encaminhada, tem lugar de destaque, aqui neste trabalho, a

clínica-escola.

A clínica-escola onde foi realizada esta pesquisa conta com serviço oferecido

pelos estagiários do curso de Psicologia da universidade, e “caracteriza-se por um

conjunto de atividades teórico-práticas executadas sob supervisão de um professor

do curso, pelo aluno regularmente matriculado nesse curso”1.

Procedimentos Metodológicos

A pesquisa aconteceu em duas etapas: primeiramente, foi realizada coleta de

dados junto à clínica-escola de Psicologia de uma universidade pública do Paraná.

Foi realizado um levantamento a partir dos encaminhamentos de

crianças/adolescentes com queixas escolares à clínica-escola, de agosto de 2011 a

agosto de 2012, a fim de apontar o número de encaminhamentos feitos pelas

diferentes possibilidades, para atendimento. Justifica-se a definição deste período

devido às mudanças ocorridas no processo de cadastros das crianças e

adolescentes encaminhados, tornando as informações mais detalhadas a partir do

segundo semestre de 2011.

Através desta pesquisa documental, foi realizado um mapeamento do

município destacando quais locais (bairros, instituições, etc.) encaminham maior

número de crianças e adolescentes para a clínica-escola e com quais queixas estes

chegam ao atendimento. Na segunda etapa da pesquisa, a atenção foi voltada para

as falas de duas gestoras da clínica-escola de Psicologia em questão. Por meio

desses relatos, que foram obtidos através de entrevista semiestruturada, se

pretendeu perceber como a clínica-escola entende e acolhe estes atendimentos,

desde a triagem até a devolutiva aos pais/responsáveis ou para as instituições.

Tanto o acesso aos prontuários quanto a utilização desses relatos/entrevistas

foram devidamente explicitados em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

assinado pela direção da clínica-escola e que contempla todos os aspectos éticos da

pesquisa.

Resultados e Discussão

                                                            

1 Segundo regulamento do espaço interno e de funcionamento da clínica-escola

Foram encontrados 46 encaminhamentos, feitos entre agosto de 2011 e

agosto de 2012, com perfil de queixa escolar, na fila de espera para atendimento.

Dentre estes 46, 5 são de 2011 e 41 são de 2012, e não estão contemplados

aqueles que, mesmo encaminhados durante este período, já foram atendidos ou

estão em atendimento. A partir da sistematização dos dados dos encaminhamentos

e das entrevistas, optou-se por subdividir esta discussão em categorias e atribuir

nomes fictícios para os sujeitos entrevistados na pesquisa, a fim de preservar o sigilo

de suas identidades – aqui elas se chamarão Marta e Raquel.

A caracterização e a triagem das queixas escolares

Analisando os dados, verificamos que 28 (60,9%) são de meninos e 18

(39,1%), meninas. Nas queixas apresentadas para encaminhamento dos meninos,

destacam-se as relacionadas ao comportamento (principalmente hiperatividade,

seguido de déficit de atenção). No caso das meninas, as queixas mais frequentes

são as referentes a dificuldades na aprendizagem, seguida de “problemas”

relacionados à introversão.

Vivemos em uma sociedade de cunho machista que ainda valoriza

comportamentos mais expansivos e extrovertidos para os meninos e mais

reservados e introvertidos para as meninas, porém, é possível observar um

paradoxo: as características destes padrões, para meninos e meninas, são

exatamente aqueles descritos como a justificativa para o encaminhamento deles. É

possível observar, portanto, como a escola ainda tem dificuldades em acolher tanto

as características das crianças como a diversidade e os diferentes modos de ser das

crianças dentro da escola.

As idades dos encaminhados variam entre 3 e 14 anos (foi encontrado,

também, um único encaminhamento onde o paciente tinha 32 anos e foi

encaminhado pelo EJA-Educação de Jovens e Adultos), sendo 9 anos (17,4%) a

idade mais freqüente, com 8 crianças. Dentro da faixa etária de 3 a 9 anos, as

queixas são, na maioria, referentes à hiperatividade, falta de atenção e agitação. As

queixas não se restringem apenas a alguns comportamentos, pois o que acaba

ocorrendo é a patologização da própria infância, já que comportamentos comuns de

crianças estão sendo vistos sob o ponto de vista medicalizante, conforme discutem

Meira (2011), Souza (2005), Angelucci (2007), Neves e Almeida (2006), entre outros.

Sobre a existência de um processo de triagem para as queixas escolares, as

duas gestoras afirmaram que este serviço não existe. O que existe é um serviço de

triagem mais amplo, para todos os encaminhamentos. Este serviço, no entanto, não

é específico da clínica-escola de Psicologia, mas uma atividade de triagem realizada

por acadêmicos de 4º ano (triagem através de uma disciplina) e de 5º ano (antes da

psicoterapia propriamente dita). Acerca da triagem, Marta afirma que existe uma

necessidade de contratação de psicóloga(o) para que “pudesse auxiliar também na

implantação de outros projetos” que viriam a melhorar e agilizar os atendimentos.

O acolhimento das queixas pela clínica-escola de Psicologia

As queixas apresentadas nos encaminhamentos são variadas. A fim de

facilitar sua exposição, optou-se por dividi-las em oito categorias, que estão

descritas por ordem de frequência: 1) Dificuldades na aprendizagem, 2)

Alteração/distúrbio do comportamento, 3) Déficit de atenção, 4)

Hiperatividade/agitação, 5) Outros, 6) Revolta, 7) Família e 8)

Hiperatividade/agitação + Déficit de atenção. Na categoria descrita como “Outros”,

constam queixas como “Distúrbio Emocional”, “Déficit Cognitivo”, “Transtornos

educativos”, “Distúrbio de conduta”, etc.

As queixas referentes a “Dificuldades na aprendizagem” são as mais

utilizadas para justificar o encaminhamento, totalizando 21,7% do total, seguida de

“Alteração/distúrbio de comportamento”, conforme Tabela 1.

Tabela 1. Categorias referentes às queixas presentes nos encaminhamentos para a clínica-

escola

QUEIXA FREQUÊNCIA PERCENTUAL

Dificuldades na aprendizagem 10 21,7% Alteração/distúrbio do comportamento 7 15,2%

Déficit de atenção 6 13% Hiperatividade/agitação 6 13%

Outros 6 13% Revolta 4 8,7% Família 2 4,3%

Hiperatividade/agitação + Déficit de atenção

2 4,3%

Sem dados 3 6,5% Total 46 100%

Com relação às queixas dos encaminhamentos, é possível observar, como já

afirmou Souza (2005), que existe uma fragilidade no processo diagnóstico, pois em

pesquisa de sua autoria, pôde observar que “um conjunto significativo de

psicodiagnósticos (...) não se confirmam no contato com essas crianças” (p. 83). O

encaminhamento é realizado apenas a partir da observação superficial do

fenômeno, desconsiderando “as mediações que o determinam e o constituem”

(ABRANTES, SILVA & MARTINS, 2005, p. 143), ou seja, além de desconsiderar o

contexto onde esta criança/adolescente está inserido e como se relaciona dentro

dele, não é observado, também, em que situações essa “queixa” ocorre.

No que diz respeito à categoria “Revolta”, é possível relacioná-la como um

princípio ao que é chamado, no DSM-IV, de Transtorno Desafiador de Oposição

(também conhecido como TOD). O diagnóstico de TOD é feito com base em alguns

critérios: discutir com adultos, desafio ou recusa a obedecer a solicitações ou regras

dos adultos, ser suscetível ou facilmente aborrecido pelos outros, deliberadamente

fazer coisas com o intuito de aborrecer outras pessoas, etc. Meira (2011) aponta que

há uma sobreposição de diagnósticos como, por exemplo, crianças diagnosticadas

com TDAH e TOD. A autora aponta ainda que autores que defendem a veracidade

do transtorno “não analisam os próprios conceitos que fundamentam o diagnóstico:

desafio e oposição” (p. 107-108).

A demanda por atendimento

Destacamos, aqui, a instituição escolar juntamente com médicos, como

maiores disparadores de encaminhamentos para a clínica-escola, sendo: 15 feitos

pelas escolas e 14 por médicos/pediatras. Todos os encaminhamentos feitos através

das escolas foram por escolas públicas (municipais e estaduais). Do total, 11 não

informavam quem fez o encaminhamento. Mais informações na Tabela 2.

Tabela 2. De onde vêm os encaminhamentos com queixa escolar para atendimento na clínica-escola de Psicologia

De onde vêm Frequência PercentualEscola 15 32,6%

Médico/Pediatra 13 28,3% Família 2 4,3%

CEEBJA 1 2,2% Conselho Tutelar 1 2,2%

CRAS 1 2,2% Médico + Psicólogo 1 2,2%

Psicólogo 1 2,2% Sem dados 11 23,9%

Total 46 100%

Sobre os encaminhamentos, Marta comentou que “às vezes [o

encaminhamento] pode vir dos pais, mas por trás desta queixa, geralmente é o

encaminhamento da escola, é mais difícil que os pais venham”. A escola aparece,

portanto, como quem mais demanda atendimento psicológico com justificativa de

‘queixa escolar’. Extensos relatórios são utilizados para a descrição da queixa para o

encaminhamento. Segundo Raquel, existe a dúvida na clínica-escola sobre o porquê

desse material:

“Algumas vezes a gente não sabe porque eles mandam muitos relatórios (...). Porque eles mandam umas papeladas dizendo ‘a criança não presta atenção’, ‘a criança não organiza a mesa de trabalho’. Então às vezes você fica meio assim: pra quê serve aquele instrumento? O que eles estão criando com aquilo? Porque eles mandam este material para a Psicologia sem nem a gente pedir?”

Como já afirmou Freller (1997, p. 76), “é preciso penetrar nas complexas redes

de relações envolvidas na queixa escolar”. Além de desconhecidos os objetivos

desse material, eles são iguais para todos os encaminhamentos. A partir disso,

torna-se possível uma reflexão crítica a partir das próprias políticas públicas em

educação que não dão condições para um trabalho mais qualificado dos professores

e, como afirmam Asbahr e Souza (2007, p. 189), “compreender o processo

educativo escolar é compreender os meandros pelos quais as políticas públicas

deixam suas marcas, suas diretrizes”.

Nos encaminhamentos feitos por médicos, as justificativas são curtas como,

por exemplo, “transtorno educativo”, “distúrbio de conduta”, “comportamento”, “déficit

cognitivo”, “distúrbio emocional”, etc. Essa objetivação traz algumas implicações

pois, ao ler um encaminhamento, não é possível saber com clareza qual é a queixa

descrita.

As dificuldades encontradas pela gestão da clínica-escola

A importância da articulação com a escola é descrita por Angelucci (2007)

quando afirma que

“o que se pode fazer é, a partir da queixa sobre a criança ou o jovem, conhecer as versões dela/dele e de sua família sobre o que está acontecendo para, então, propor-se à escola que participe do processo de reconstrução da história deste problema de escolarização” (p. 354).

Independente da queixa torna-se necessária, de acordo com Marx, “uma

análise extremamente rigorosa em relação ao homem na qualidade de sujeito

histórico” (apud MEIRA, 2007, p. 31).

Foram apontadas algumas dificuldades no que diz respeito às devolutivas dos

atendimentos para quem fez o encaminhamento e, uma delas diz respeito à

dificuldade de manter um contato com a escola. Segundo Raquel

“Quando eu supervisiono, as alunas que têm alguma questão assim [encaminhamento da escola] eu sempre peço para elas ligarem e, se possível, vir a pessoa que fez o encaminhamento: se é professor, diretora, pedagoga ou psicopedagoga. Nem sempre elas vêm, eu acabo até fazendo o contrário, acho que eu deveria repensar isso, porque acabo pedindo para as alunas irem para a escola, o que eu acho que deveria ser o contrário, a gente deveria chamar a professora para vir para cá”

Ainda que com dificuldades, é com a escola e com a família que as

devolutivas acontecem. Marta relata que quem fez o encaminhamento é chamado

para falar sobre o porquê do encaminhamento. “Eu já cheguei a atender aqui a mãe,

a professora e o aluno”, diz ela. Neste modelo, é possível explorar a queixa

conhecendo as pessoas que estão presentes nos diferentes contextos onde a

criança ou o adolescente convivem.

As gestoras apontaram grandes dificuldades em conseguir contato/diálogo

com médicos para a devolutiva do atendimento. De acordo com Raquel, um exemplo

disso foi o que aconteceu com uma acadêmica de Psicologia: “[ela] ligou e não

conseguiu falar, ela mandou uma carta, mas ele [o médico] não ligou de volta nem

deu retorno nenhum (...) acho que do pessoal da saúde a gente não tem muito

retorno não”. Esta dificuldade apresentada pela gestora aponta para uma falha na

articulação da rede de serviços do município, pois não integra as várias

possibilidades de atendimento.

Marta também relata que existem dificuldades em relação às devolutivas aos

profissionais da saúde e que, muitas vezes, é feito o contato com a escola para

conhecer melhor a origem da queixa. Segundo ela, “geralmente é feito o contato

com a escola, não necessariamente com o médico (...). Eu acho que a queixa

escolar tem que ser trabalhada (...) acho que, com quem demanda, a gente precisa

saber ‘porque você encaminhou o fulano?’”.

Foram apresentadas algumas possíveis estratégias para o enfrentamento da

alta demanda pelo atendimento psicológico para crianças com queixas escolares.

Entre elas está a possibilidade de criação de espaços – com orientação crítica e

reflexiva – para o debate e/ou diálogo sobre as questões pertinentes aos

encaminhamentos e procurar, acima de tudo, um fortalecimento na articulação com

escolas, professores, rede de saúde e os demais que demandam pelo atendimento.

Considerações Finais

A partir desta pesquisa é possível observar como as questões escolares e

sociais continuam sendo vistas sob a ótica organicista, desconsiderando o contexto

social das crianças/adolescentes, além da fragilidade nas justificativas para o

encaminhamento. Isso se comprova desde a superficialidade das descrições das

queixas nos laudos e relatórios de encaminhamentos até a impossibilidade de

contato para devolutiva e articulação críticas do atendimento àqueles que

promoveram as solicitações de atendimentos.

Neste sentido, entendemos que a partir da Teoria Histórico-Cultural, pautados

pela práxis, tenhamos elementos que auxiliem no enfrentamento e transformação

destas fragilidades que hoje promovem a banalização dos diagnósticos e do

consumo excessivo de medicamentos.

Referências ABRANTES, A. A.; SILVA, N. R.; MARTINS, S. T. F. Método histórico-social na Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005. ANGELUCCI, Carla Biancha . Por uma Clínica da Queixa Escolar que Não Reproduza a Lógica Patologizante. In: Beatriz de Paula Souza. (Org.). Orientação à Queixa Escolar. 1 ed.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 353-378. American Psychiatric Association. DSM IV: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais. Lisboa: Climepsi Editores, 1996. ASBAHR, F. S. F., SOUZA, M. P. R. Buscando compreender as políticas públicas em educação: contribuições da Psicologia Escolar e da Psicologia Histórico-Cultural. In: MEIRA, M. E. M., FACCI, M. G.D. Psicologia histórico-cultural: contribuições para o encontro entre a subjetividade e a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. CALIMAN, L. V. Notas sobre a história oficial do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade: TDAH. Brasília: Psicologia: Ciência e Profissão n° 1, ano 30, 2010, p. 46-61.

COLLARES, C. A. L. Ajudando a desmistificar o fracasso escolar. Série Idéias n ° 6. São Paulo: FDE, 1992. COLLARES, C. A. L.; MOYSÉS, M. A. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico – A patologização da educação. Série Idéias n ° 23. São Paulo: FDE, 1994. FRELLER, C. Crianças Portadoras de Queixa Escolar: Reflexões sobre o Atendimento Psicológico. In: MACHADO, A. M., SOUZA, M. P. R. Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1997. LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. MEIRA. M. E. M. Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: Meira, M. E. M. e Antunes, M. M. (orgs.). Psicologia escolar: práticas críticas. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003. _________. Psicologia Histórico-Cultural: Fundamentos, pressupostos e articulações com a Psicologia da Educação. In: MEIRA, M. E. M., FACCI, M. G.D. Psicologia histórico-cultural: contribuições para o encontro entre a subjetividade e a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. _________. Incluir para continuar excluindo: A produção da exclusão na educação Brasileira à luz da Psicologia Histórico-Cultural. In: FACCI, M. G. D; MEIRA, M. E. M.; TULESKI, S. C. (Org). A exclusão dos “incluídos”: uma crítica da Psicologia da Educação à patologização e medicalização dos processos educativos. Maringá: Eduem, 2011. NEVES, M. M. B. da J., ALMEIDA, S. F. C. de. A atuação da Psicologia Escolar no atendimento aos alunos encaminhados com queixas escolares. In: ALMEIDA, S. F. C. de. Psicologia Escolar: ética e competências na formação e atuação profissional. Campinas: Editora Alínea, 2006. OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. 5ª ed. São Paulo: Scipione, 2010. PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. SOUZA, M. P. R. de. Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar. Estilos da Clínica, vol. X, n° 18, 2005, p. 82-107 VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 11ª ed – São Paulo: Ícone, 2010. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

1

A Psicologia e a medicalização psiquiátrica da Educação

Ártemis Marques Alvarenga1

Kety Valéria Simões Franciscatti2

Palavras-chave: medicalização psiquiátrica – Psicologia – Educação

QUADRO CONCEITUAL

O referencial teórico deste trabalho é o de um dos principais representantes

da Teoria Crítica, T. W. Adorno, bem como de seu estudioso, J. L. Crochík. Tal

teoria reflete sobre as fraturas do pensamento ocidental e analisa criticamente a

finalidade das produções tecnológicas e dos caminhos percorridos pelo

conhecimento científico. Para Adorno (1967/2003, p. 132-133), na modernidade há

uma disposição de apego dos homens em relação à técnica: os meios – e a técnica

é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são

fetichizados, porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e

desconectados da consciência das pessoas. É nesse contexto que a medicalização

psiquiátrica da sociedade aqui é entendida: esse fenômeno está entrelaçado à

fetichização dos produtos tecnológicos. Dotados de vida própria, tornaram-se

independentes da sociedade que os produziu. Igualmente, o homem na

modernidade tem uma percepção tecnificada de si mesmo. Embora não seja a vilã

dos infortúnios da humanidade, pois traz bem estar e conforto, a reflexão sobre a

técnica é necessária, sobretudo quando se observa fenômenos como a crescente

medicalização da sociedade.

Fomentando a medicalização psiquiátrica da sociedade estão fatores como a

produção utilitarista acerca do sofrimento humano, bem como o avanço das

descobertas das neurociências e dos métodos diagnósticos atuais (as edições do

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que por sua vez estão

intimamente associados à indústria farmacêutica e à mídia de tal modo que se

1 MESTRE EM PSICOLOGIA PELA UFSJ 2DOUTORA EM PSICOLOGIA SOCIAL (PUCSP), PROFESSORA DO CURSO DE

PSICOLOGIA E DO MESTRADO EM PSICOLOGIA DA UFSJ.

2

fortalecem e se alimentam mutuamente. Esses “fisiologismo” acaba por gerar

produtos a serem consumidos.

No tocante ao campo educacional, entende-se que todos os esforços desse

campo deveria se destinar à emancipação dos indivíduos. Adorno (1967/2003, p.

121) afirma que a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma

auto-reflexão crítica. Sugere também que se coloque em relevo os aspectos

regressivos da civilização, como a tendência reificadora dos indivíduos: pessoas que

se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um

material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a

disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa (Adorno, 1967/2003, p.

129).

Cabe à Psicologia, seja a da Educação ou a de outros campos, a tentativa de

libertar seu objeto de estudo. Percurso esse que está, segundo Crochík (1999, p. 48)

na busca e na denúncia daquilo que o impede de se constituir, e que deve ser procurado nas condições sociais que levam as instâncias sociais, tais como a família, a escola, os meios de comunicação de massa, a desenvolverem o indivíduo para que se adapte imediatamente às exigências da produção e do consumo, sem que possa pensar se esses se encaminham para os seus interesses mais racionais, entre eles a preservação da vida.

OBJETIVOS

Identificar e discutir a incidência de artigos que analisam a medicalização

psiquiátrica da educação em uma amostra de artigos científicos do campo da

Psicologia que tratam do neologismo medicalização psiquiátrica seja da sociedade,

seja do indivíduo, é o objetivo principal deste presente estudo.

Como objetivos específicos: a apresentação do tipo de pesquisa realizada

pelos autores dessa amostra de artigos científicos; a elaboração do perfil da

produção científica específica da medicalização psiquiátrica da educação,

contemplando a formação acadêmica de seus autores, as instituições em que foram

empreendidas tais pesquisas, os periódicos em que foram publicados, os

referenciais teóricos empregados e também os tipos de pesquisas realizadas.

METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada durante a elaboração da dissertação de mestrado

intitulada “O que não tem remédio nem nunca terá: um estudo sobre a produção

3

científica da Psicologia em sua relação com a medicalização psiquiátrica do

sofrimento humano”, defendida pela Universidade Federal de São João del-Rei em

2013. De março a abril de 2011 procurou-se por publicações que tratassem do tema

medicalização nos seguintes sites de base de dados: Biblioteca Virtual em Saúde –

BVS3; Scielo4; Capes Periódicos5; Lilacs6; Ulapsi Brasil7; Pepsic8. Entende-se que

essas páginas da internet têm o potencial de fornecer o maior número de registros

sobre o tema em seus mais diversos campos.

O procedimento de seleção dos registros, em todos os sites eleitos, teve o

seguinte percurso: elegeu-se o termo medicalização para a busca. A primeira

amostra teve 529 registros. Após a exclusão dos registros que apareciam de forma

repetida nos sites, os critérios de inclusão foram: ser artigo científico (retirados foram

as palestras, dissertações de mestrado e teses de doutorado); tratar de

medicalização psiquiátrica; ter sido escrito por pelo menos um autor que tivesse

graduação ou pós-graduação (lato sensu e stricto sensu) em Psicologia.

Para se fazer tal seleção todos os artigos da amostra foram lidos. Não foi

delimitado um recorte de tempo para a entrada de artigos na seleção. Após esses

critérios chegou-se a um total de 19 artigos, publicados entre 2003 a 2010.

RESULTADOS

Nos tipos de pesquisa empreendidas pelos autores dos 19 artigos, há a

prevalência entre a empírica e a investigação teórica (9 e 8 dos 19 artigos,

respectivamente). Os casos clínicos representam 2 dos 19 artigos; os relatos dos

casos dão subsídios para exemplificar os conceitos psicanalíticos e a interferência

da medicalização psiquiátrica na vida do paciente. As pesquisas realizadas podem

ser visualizadas na tabela que se segue.

3 HTTP://REGIONAL.BVSALUD.ORG/PHP/INDEX.PHP 4 HTTP://WWW.SCIELO.ORG/PHP/INDEX.PHP 5 HTTP://WWW.PERIODICOS.CAPES.GOV.BR 6 HTTP://LILACS.BVSALUD.ORG 7 HTTP://WWW.BVS-PSI.ORG.BR/PHP/INDEX.PHP 8HTTP://PEPSIC.BVS-PSI.ORG.BR/SCIELO.PHP/SCRIPT_SCI_SERIAL/PID_1413-2907/LNG_PT/NRM_ISO

4

Tabela 1. Tipos de pesquisas realizadas Tipos de

Pesquisa Número

de artigos Conteúdo

Pesquisa Empírica

9

Entrevistas com 50 usuários de Serviços de Psicologia Aplicada de universidades públicas e particulares

Entrevistas com 400 pessoas usuários de um serviço público de saúde

Entrevistas com 17 usuárias de ansiolíticos de um serviço público de saúde

Entrevistas com 42 pessoas entre trabalhadores, gestores, profissionais de saúde e familiares de funcionários de uma empresa pública do setor de serviços

Pesquisa-intervenção realizada em grupo de acolhimento de um serviço público de saúde mental

Análise de 345 de prontuários do Pronto Atendimento de um Ambulatório de Saúde Mental

Análise da produção de um veículo da mídia destinada aos professores

Análise de propagandas de psicofármacos publicadas em periódico psiquiátrico

Pesquisa em Archivos Brasileiros de Hygiene Mental e em Anais dos Congressos Brasileiros de Hygiene o tema higienismo e eugenia

Pesquisa Teórica

8

Os autores buscaram, em referências bibliográficas diversas, elementos para defenderem seus argumentos e entenderem a medicalização da existência. Os referenciais teóricos majoritários foram as obras de Freud, Lacan e Foucault.

Relato de casos

clínicos 2

Um artigo relatou um caso clínico e outro 2 casos, ambos com fundamentação teórica psicanalítica

Nessa tabela foram identificados 2 artigos que discutiam a medicalização

psiquiátrica da educação. São eles9:

1- A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso

psiquiátrico e seus efeitos na Educação, estudo teórico de 2007 que analisa os

fatores da crescente medicalização psiquiátrica no tratamento do sofrimento

psíquico e que foram estendidos também para a infância, tais como:

a padronização de sintomas trazida pelas sucessivas edições da série DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), os resultados de pesquisas na neurociência – que tentam fundamentar o funcionamento

9 OS RESUMOS DE AMBOS OS ARTIGOS ESTÃO CONTIDOS NO ANEXO.

5

psíquico em bases orgânicas – e o grande desenvolvimento dos psicofármacos, fruto de maciços investimentos financeiros (Guarido, 2007, p. 151).

2- O que não tem remédio, remediado está?, pesquisa empírica de 2009 que

analisa a produção de uma revista destinada aos professores e tem como objetivo

refletir sobre o impacto da biologização do comportamento infantil e do

silenciamento do sujeito (Guarido, R.; Voltolini, R., 2009, p. 239) na escola;

Muito embora se reconheça a importância e relevância dos artigos para o

entendimento do tema, a presente análise se restringiu a traçar o perfil e a presença

de estudos sobre a medicalização psiquiátrica da educação no âmbito da Psicologia

– conforme o objetivo principal citado.

Em relação aos autores, ambos foram elaborados por Renata Guarido, sendo

o de 2009 em conjunto com Reinaldo Voltolini. A formação acadêmica de ambos é

graduação em Psicologia. Guarido tem especialização em Psicanálise e mestrado

em Educação. Voltolini possui mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do

Desenvolvimento Humano. A instituição a que os autores pertencem é a

Universidade de São Paulo (USP) e os periódicos em que foram publicados são

Educação e Pesquisa (2007) e Educação em Revista (artigo de 2009).

As referências bibliográficas finalizam o perfil dos dois artigos. Michel

Foucault teve o maior número de livros citados: A crise atual da medicina, A política

da saúde no século XVIII, História de la medicalización, História da sexualidade, O

nascimento da medicina social, Vigiar e punir: nascimento da prisão. Caliman,

comentador da obra do filósofo, também é citado. O referencial temático sobre a

Educação e infância está presente nos 2 artigos (Antelo, Arendt, Ariès, Donzelot,

Lefort, Legnani & Almeida, Mannoni, Moysés, Patto, Voltolini), como também o

psicanalítico (Lacan, Alemán, Bercherie, Birman, Costa, Domont de Serpa, Lebrun,

Roudinesco) e sobre ambos assuntos (Kupfer e Lajonquière). Sobre o tema

medicalização a autora elegeu Aguiar, Bolguese, Gori & Del Volgo, Postel & Quétel,

Rose e Silva.

Como os estudos da amostra dos 19 artigos, esses dois artigos lançam mão

do referencial foucaultiano e psicanalítico – bibliografia majoritária quando se analisa

criticamente o termo medicalização.

CONCLUSÕES

6

Embora os dois artigos representem muito bem o tema presente na

Educação, é notório que quando a Psicologia investiga a medicalização psiquiátrica,

o campo majoritário é a saúde mental, sobretudo os serviços públicos e a clínica

psicanalítica – a tabela 1 comprova tal afirmação. A Educação teve, no período em

que foi realizada a pesquisa, representação de apenas 2 dos 19 artigos. Algumas

hipóteses são aventadas quanto a esse resultado. Pode-se especular que a

produção científica preponderante da Psicologia no meio acadêmico é a da saúde

mental e a da clínica, o que torna reduzida a produção teórica da Psicologia em

relação à Educação. Ou então a de que a Psicologia da Educação elege como

prioritários assuntos outros que não o tema tratado nesse artigo. Pode-se supor

também que, embora haja movimentos da Psicologia a favor de práticas

antimedicalizantes na escola, eles não tenham equivalência no meio acadêmico. Ou

ainda – hipótese desalentadora – de que os profissionais da Psicologia não

apreendam a crescente medicalização psiquiátrica no meio escolar como um

problema grave que mereça análises críticas para lhe fazer frente e, nesse sentido,

corre o risco de aceitá-lo e assim naturalizá-lo. Todas essas indicações merecem

estudos aprofundados para que sejam comprovados ou refutados.

A Psicologia, ciência aplicada que contem em si a tendência dos processos

reificadores da existência, na medida em que não analisa criticamente essa

tendência nefasta, não contribui para emancipação humana (Crochík, 1999).

A presente pesquisa foi realizada no ano de 2011, portanto não se pode

absolutizar o estado do conhecimento sobre o tema medicalização psiquiátrica da

Educação. Considera-se também que até esse ano esse tema não era uma

realidade tão pungente como a de agora – um jornal noticiou que SP aumenta em

55% entrega gratuita da “droga da obediência10. Ou seja, tem crescido a prescrição

de ritalina, nome comercial do metilfenidato, medicação indicada para crianças com

o controverso diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade

(TDAH). A reportagem evidencia ainda que pesquisa feita pelo Sindusfarma, que

reúne as drogarias do País, apontou que o crescimento foi de 50% nas vendas no

período de 4 anos. Entre setembro de 2007 e outubro de 2008 foram vendidas

10 RECUPERADO EM 20 DE JANEIRO DE 2013 DE

HTTP://SAUDE.IG.COM.BR/MINHASAUDE/2013-01-15/SP-AUMENTA-EM-55-ENTREGA-GRATUITA-DA-DROGA-DA-OBEDIENCIA.HTML

7

1.238.064 caixas, enquanto entre setembro de 2011 e outubro de 2012 os números

passam para 1.853.930.

Para que o avanço técnico e científico não se desvie da destinação humana

de suas produções, mais e constantes pesquisas são sempre bem vindas ao tema

da medicalização psiquiátrica da Educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Adorno, T. W. (1967/2003). Educação após Auschwitz. In T. W. Adorno. Educação e

emancipação. (3ª. Ed., pp. 119-138). (W. Leo Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra.

Crochík, J. L. (1999). Notas sobre a formação ética e política do psicólogo. Psicologia &

Sociedade, 11 (1), p. 27-51.

Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o

discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa. 33 (1), p.

151-161. Recuperado em 20 de maio de 2013 de

http://www.scielo.br/pdf/ep/v33n1/a10v33n1.pdf

Guarido, R.; Voltolini, R. (2009). O que não tem remédio, remediado está? Educação

em Revista. 25 (1), 239-263. Recuperado em 20 de maio de 2013 de

http://www.scielo.br/pdf/edur/v25n1/14.pdf

Anexo

Resumo do Artigo 1:

Este estudo analisa criticamente as mudanças observadas no tratamento do

sofrimento psíquico na história recente, apontando a contribuição de fatores como: a

padronização de sintomas trazida pelas sucessivas edições da série DSM (Manual

Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), os resultados de pesquisas na

neurociência – que tentam fundamentar o funcionamento psíquico em bases

orgânicas – e o grande desenvolvimento dos psicofármacos, fruto de maciços

investimentos financeiros. A ação desse conjunto de fatores teve por efeito a perda

da noção de sentido/significado dos sintomas e dos sofrimentos subjetivos, própria

da psiquiatria clássica, e a crescente medicalização dos indivíduos na sociedade

contemporânea. O texto busca alinhavar como aconteceu a produção de uma nova

verdade acerca dos sofrimentos psíquicos e amplia essa análise, evidenciando que

os procedimentos de medicalização surgidos no cuidado da população adulta foram

estendidos também para as crianças. Revê a evolução do tratamento da criança,

8

marcando a interação da pedagogia e da medicina na constituição da psiquiatria

infantil. Além disso, busca evidenciar os efeitos dessa verdade sobre os sujeitos,

identificando a forma como o discurso técnico (especialmente influenciado pelo

discurso médico-psicológico) tem tido lugar no mundo contemporâneo e como este

tem influenciado a Educação. Trata de ressaltar, como produtos, a banalização da

existência, a naturalização do sofrimento e a culpabilização dos indivíduos pelas

vicissitudes da vida. Argumenta que a psicologização da escola pode ceder lugar

hoje à psiquiatrização do discurso escolar. A articulação saber/verdade/poder é aqui

tratada a partir dos textos de Michel Foucault.

Resumo do Artigo 2:

Temos observado um aumento significativo na prescrição de medicamentos

psiquiátricos para toda sorte de sofrimentos cotidianos. Sabemos que as crianças

não têm sido poupadas dessa lógica de tratamentos. A escola, por sua vez, tem

apelado intensamente ao saber médico para “corrigir” os problemas apresentados

por seus alunos. A prática descrita brevemente está sustentada por uma

biologização cada vez mais bem-sucedida de nossa condição humana, ou seja,

parece que chegou o tempo de o homem viver de perto o mito do criador,

sustentado pelo controle da bioquímica e da genética de nosso organismo. Como

efeito dessa biologização temos um silenciamento do sujeito em benefício da

amplificação do lugar ocupado por seu organismo. Neste trabalho, pretendemos

discutir o impacto dessa lógica de tratamentos para a prática nas escolas. O que

pretendemos destacar aqui é que se a bioquímica responde ao porquê o menino

aprende ou não aprende, e o remédio se torna um instrumento imprescindível na

aprendizagem da criança, o professor “não tem mais nada a ver com isto”, no duplo

sentido que a expressão indica: o de desresponsabilização e o de impotência.

A CRÍTICA A MEDICALIZAÇÃO DO TDAH

Maria Izabel Souza Ribeiro (FACED/UFBA)

PALAVRAS-CHAVE: TDAH. Definição e Diagnóstico. Medicalização da

aprendizagem.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a apresentar o tema da pesquisa de doutorado em

andamento do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação

da Universidade Federal da Bahia. A referida pesquisa destaca como recorte temático

investigativo a medicalização da aprendizagem e a produção do fracasso escolar de

estudantes com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH).

A pesquisa tem como objetivo geral investigar os fatores da/na escola de

produção das dificuldades no processo de escolarização de estudantes com

diagnóstico de TDAH e seu consequente fracasso, por meio da análise crítica dos

discursos e práticas relacionados à medicalização da aprendizagem. Como objetivos

específicos pretende: reconhecer as queixas de discentes com diagnóstico de TDAH

relativas ao seu processo de escolarização; identificar suas experiências em relação

às dificuldades enfrentadas no acompanhamento das atividades ou conteúdos

escolares e as estratégias de aprendizagem utilizadas; conhecer as queixas

produzidas pela escola e pelos professores acerca das dificuldades apresentadas por

esses alunos no processo de escolarização; como também identificar possibilidades

de intervenção pedagógica na perspectiva da superação do fracasso escolar de

estudantes com diagnóstico de TDAH.

A proposta da pesquisa é considerar que os estudantes possuem queixas em

relação à escola e, assim, valorizar suas manifestações para uma melhor

compreensão do aprender e não aprender na escola. Assim, além de conhecer as

queixas escolares produzidas por parte dos alunos, pretende analisar os fenômenos

diretamente relacionados ao TDAH na perspectiva da construção da crítica à

medicalização da aprendizagem.

Para a abordagem dos fenômenos do TDAH, a atenção e a atividade motora,

fundamenta-se nas argumentações teóricas da Psicologia Sócio-Histórica de Vigotski.

Deste modo, na tentativa de superação da medicalização da aprendizagem do TDAH

busca compreender como o processo de escolarização é construído para destacar os

fatores produtores das dificuldades e do consequente fracasso escolar de estudantes

com tal diagnóstico.

Para tratar da temática da pesquisa do doutorado o presente artigo apresenta

em sua estrutura a discussão sobre a medicalização do TDAH através do enfoque da

definição e produção do diagnóstico, além da introdução e as considerações finais.

2 A MEDICALIZAÇÃO DO TDAH: REFLEXÕES SOBRE SUA DEFINIÇÃO E

DIAGNÓSTICO

Na atualidade o TDAH tem sido diagnosticado por especialistas da área

médica, como neurologistas e psiquiatras, principalmente, a partir de

encaminhamentos realizados pela escola. Os encaminhamentos são resultado da

interpretação dos problemas no processo de escolarização e das manifestações e

expressões de crianças e adolescentes no espaço escolar, como característico de

problema/distúrbio/transtorno de aprendizagem e do comportamento. Considerado

uma Disfunção Cerebral Mínima (DCM) que afeta a atenção e a atividade do indivíduo,

é um fenômeno que, na atualidade, tem interessado profissionais, pesquisadores e

estudantes de diferentes áreas, particularmente das Ciências da Saúde, da Educação,

das Ciências Humanas e Sociais, em função do aumento na emissão de tal

diagnóstico.

Nas diferentes áreas que discutem o TDAH podemos encontrar controvérsias

em relação à sua existência. Controvérsias pautadas na dificuldade, e porque não

dizer, na imprecisão da emissão do diagnóstico e da vaga definição apresentada pelos

que defendem a existência do suposto transtorno.

O TDAH é definido na publicação da Associação Brasileira de Déficit de

Atenção (ABDA), de autoria da Dra. Kátia Beatriz Corrêa e Silva e Dr. Sérgio Bourbon

Cabral, edição de 2011 revisada pelo Dr. Paulo Mattos (Cartilha disponível para

download no site da Associação), como,

um transtorno neurobiológico, com grande participação genética (isto é, existem chances maiores de ele ser herdado), que tem início na infância e que pode persistir na vida adulta, comprometendo o funcionamento da pessoa em vários setores de sua vida, e se caracteriza por três grupos de alterações: hiperatividade, impulsividade e desatenção. (ABDA, 2011, p. 4)

Para os três grupos de alterações, a Cartilha apresenta explicações. Em

relação à hiperatividade coloca que "é o aumento da atividade motora. A pessoa

hiperativa é inquieta e está quase constantemente em movimento" (ibidem, p. 4.

Quanto à impulsividade informa que "é a deficiência no controle dos impulsos, é "agir

antes de pensar". Podemos entender impulso como a resposta automática e imediata

a um estímulo." (ibidem, p. 6). Com relação à atenção destaca que a "A falha da

atenção pode aparecer de diversas formas. A pessoa não consegue manter a

concentração por muito tempo, se começar a ler um livro, na metade da página não

consegue lembrar o que acabou de ler." E ainda acrescenta que "a mente da pessoa

com TDAH parece que não tem um "filtro", e por isso qualquer estímulo é capaz de

desviar sua atenção". (ibidem, p. 9)

Como explicitado nas explicações da Cartilha, a definição do TDAH reporta-se

a sua caracterização sintomatológica alusivas à atenção e à atividade motora,

compreendida como resultante de uma disfunção cerebral que remete à ideia de ser

uma doença, um transtorno neurológico. Assim, como sua definição relaciona-se

diretamente à sua sintomatologia, abordaremos a seguir as características

diagnósticas apresentadas na publicação da Associação Psiquiátrica Americana, o

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quarta edição (2003),

conhecido pela designação DSM-IV, que é a base de construção das explicações da

Cartilha referenciada anteriormente.

O TDAH aparece no DSM-IV como pertencente à classificação dos

“Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou na

adolescência” (p. 112). Na apresentação das características diagnósticas são

destacados cinco critérios (Critérios A, B, C, D e E), os quais servirão de base para

emissão do diagnóstico e se referem à caracterização do transtorno no que diz

respeito a sua sintomatologia. O primeiro critério expõe a característica essencial do

TDAH: “consiste num padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-

impulsividade, mais frequente e grave do que aquele tipicamente observado nos

indivíduos em nível equivalente de desenvolvimento (Critério A).” (p. 112). Para esse

Critério A é feita a diferenciação das manifestações dos sintomas de desatenção,

hiperatividade e impulsividade com a exposição de critérios específicos associados a

cada padrão persistente principal como forma de descrever as manifestações e

delimitar o diagnóstico. Os demais critérios apresentam-se complementares ao

Critério A:

Alguns sintomas hiperativo-impulsivos que causam comprometimento devem ter estado presentes antes dos 7 anos, mas muitos indivíduos são diagnosticados depois, após a presença dos sintomas por alguns anos, especialmente no caso de indivíduos com o Tipo Predominantemente Desatento (Critério B). Algum comprometimento devido aos sintomas deve estar presente em pelo menos dois contextos (p. ex., em casa e na escola ou trabalho) (Critério C). Deve haver claras evidências de interferência no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional próprio do nível de desenvolvimento (Critério D). A perturbação não ocorre exclusivamente durante o curso de um Transtorno Global do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico e não é melhor explicada por outro transtorno mental (p. ex., Transtorno do Humor, Transtorno de Ansiedade, Transtorno Dissociativo ou Transtorno da personalidade) (Critério E). (DSM-IV, 2003, p. 112)

De acordo com o Manual, para o TDAH pode ocorrer uma subclassificação a

partir do “padrão sintomático dominante nos últimos 6 meses”, o que significa dizer

que existem subtipos conforme a manifestação dos sintomas predominantes que

persistem ou apresentam regularidade durante o período de seis meses. A delimitação

do subtipo é orientada a partir da quantidade de sintomas (6 ou mais) apresentados

pelo indivíduo e pelo tempo da manifestação (pelo menos 6 meses). Os subtipos são:

Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, Tipo Combinado (6 ou mais sintomas

tanto de desatenção quanto de hiperatividade-impulsividade); Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade, Tipo Predominantemente Desatento (6 ou mias sintomas de

desatenção e menos de 6 de hiperatividade-impulsividade) e Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade, Tipo Predominantemente Hiperativo-Impulsivo (6 ou mias

sintomas de hiperatividade-impulsividade e menos de 6 de desatenção). (p. 114).

O diagnóstico de TDAH é realizado a partir da aplicação do questionário SNAP-

IV construído a partir dos sintomas descritos no DSM-IV. O questionário transcreve as

orientações do manual para servir como um instrumento operacional de aplicação

para emissão do diagnóstico através do preenchimento por parte dos familiares e

profissionais da escola onde a criança/adolescente estuda. As categorias que devem

ser marcadas conforme melhor descreve o aluno para cada item são: Nem um pouco,

Só um pouco, Bastante e Demais. Categorias que revelam o caráter bastante

subjetivo da produção do diagnóstico, pois este depende da interpretação e percepção

(relativas às manifestações da criança/adolescente) de quem responde o

questionário, bem como sua concepção sobre cada item abordado e forma como lida,

acolhe ou recusa as manifestações listadas.

Diante da apresentação da definição e do diagnóstico do TDAH realizada a

partir, principalmente, do DSM (os outros materiais utilizados tem como base o DSM)

, vale a pena destacar que existem polêmicas relativas a essa temática em questão.

Dessa forma, para uma melhor reflexão a respeito do TDAH destacaremos as

controvérsias e divergências existentes em relação à compreensão desse suposto

transtorno.

Em relação ao TDAH, a perspectiva que defende a sua existência, vale-se do

dito discurso da ciência médica para explicá-lo como sendo uma alteração

neurológica, localizada no sujeito, portanto uma doença do próprio sujeito. Visão que

camufla as condições nas quais as manifestações, interpretadas como sintomas, são

produzidas. Tal visão remete-se ao que tem-se discutido sobre a medicalização da

vida escolar.

O termo medicalização, segundo Collares e Moysés (1994, p.26)

refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo.

De acordo com Guarido (2010, p. 30) "o conceito medicalização foi utilizado em

diversos estudos, especialmente a partir da década de 70 do século XX, para tratar

de uma maneira a partir da qual as vicissitudes do processo de aprendizado das

crianças foram frequentemente traduzidas." (grifo da autora). A tradução a qual a

autora reporta-se é, por exemplo, a produção de "uma multiplicidade de diagnósticos

psicopatológicos" (p. 29) e a suposição da existência de déficit neurológico (p. 29).

Dessa maneira, na perspectiva da construção crítica à medicalização,

amparada na compreensão de que as manifestações e expressões humanas são

constituídas em um processo sócio-histórico, resultantes da síntese de múltiplas

determinações, refletiremos sobre o discurso científico utilizado para explicar o TDAH.

As omissões e distorções relativas aos supostos transtornos/distúrbios de

aprendizagem são denunciadas por Moysés e Collares (2010) ao abordarem a

história da invenção das disfunções neurológicas:

A busca por raízes científicas das disfunções neurológicas - quando e como quem comprovou o quê - leva a uma interessante viagem pelo terreno das transmutações, com omissões e distorções de fatos, criações de mitos etc. Uma viagem que passa ao largo de evidências científicas, rigor metodológico, ética; em síntese, ao largo da ciência. (MOYSÉS & COLLARES, 2010, p. 73)

Nesse sentido, ressaltamos que as críticas construídas à existência do TDAH

resultam das informações não consensuais relativas ao tema e aos elementos

ocultados, não explicitados da história da invenção do transtorno, divulgadas por uma

visão naturalizada, biologizada e idealizada do ser humano.

Ao analisar criticamente tanto o DSM-IV quanto o SNAP-IV, é possível perceber

que as questões presentes nestes instrumentos são relativas a comportamentos e

atitudes que qualquer criança, jovem ou adulto podem apresentar de forma frequente

em situações diferentes, o que demonstra uma imprecisão na produção do

diagnóstico. Diante disso, surge um questionamento relacionado à definição do TDAH,

se “é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas” como delimitar o diagnóstico

exclusivamente por relatos das manifestações comportamentais do indivíduo que são

caracterizadas como “sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade”?

A falta de exame laboratorial, avaliação neurológica e exame físico associados

ao transtorno é um aspecto relacionado ao diagnóstico tratado no DSM-IV que merece

destaque. Fato que denota o caráter subjetivo da avaliação diagnóstica, uma vez que

pauta-se na aplicação e interpretação do questionário SNAP-IV, conforme dito

anteriormente. No próprio Manual destaca-se que “o clínico deve, portanto, reunir

informações de múltiplas fontes (p. ex., pais, professores) e indagar acerca do

comportamento do indivíduo em uma variedade de situações, dentro de cada situação

(p. ex., ao fazer os trabalhos escolares, durante as refeições).” Nos tópicos referentes

aos achados laboratoriais associados e aos achados do exame físico e condições

gerais médicas gerais associadas, o Manual apresenta as seguintes afirmações:

Nenhum exame laboratorial ou avaliação neurológica ou da atenção foi estabelecido como diagnóstico na avaliação clínica do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Os testes que exigem processamento mental concentrado são anormais em grupos de indivíduos com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, em comparação com sujeitos-controle, mas estes instrumentos não demonstram utilidade quando se está tentando determinar se um determinado indivíduo tem, ou não, o transtorno. Ainda não está claro quais déficits cognitivos fundamentais são responsáveis por estas diferenças de grupo. Não existem características físicas específicas associadas com o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, embora anomalias físicas menores (p. ex., hipertelorismo, palato exageradamente arqueado, orelhas com baixa inserção) possam ocorrer em uma proporção superior ao da população em geral. Também pode haver uma taxa superior de lesões corporais. (p. 115)

Afirmações que denunciam o caráter inconsistente e impreciso do processo de

avaliação e emissão de diagnóstico do TDAH. Aspecto reforçado no item Diagnóstico

diferencial (p. 117) quando declara que “na infância, pode ser difícil distinguir entre os

sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade e comportamentos

próprios da idade em crianças ativas (p. ex. correrias e barulhos excessivo) (grifo

do original).

A consideração da causa genética do suposto transtorno explicitada na Cartilha

da ABDA apresenta-se de forma não proeminente no DSM-IV:

Evidências consideráveis atestam a forte influência de fatores genéticos nos níveis mensurados de hiperatividade, impulsividade e desatenção. No entanto, as influências da escola, da família e dos pares também são cruciais na determinação do grau de comprometimento e co-morbidade. (p. 117).

Ainda relacionado a essa “considerável evidência” identificamos informações

no Manual que não demarcam o fator genético nem sustentam o caráter

orgânico/biológico do transtorno, por exemplo, quando explicitam as peculiaridades

da sintomatologia no tópico Características diagnósticas,

Os sintomas tipicamente pioram em situações que exigem atenção ou esforço mental constante ou que não apresentam atrativos ou novidades (p. ex., ouvir a explanação do professor, realizar os deveres escolares, escutar ou ler materiais extensos ou trabalhar em tarefas monótonas e repetitivas). Os sinais do transtorno podem ser mínimos ou estar ausentes quando o indivíduo se encontra sob um controle rígido, encontra-se num ambiente novo, está envolvido em atividades especialmente interessantes, em uma situação a dois (p. ex., no consultório médico) ou enquanto recebe recompensas frequentes por um comportamento apropriado. Os sintomas são mais prováveis em situações de grupo (p. ex., no pátio da escola, na sala de aula ou no ambiente de trabalho). (p. 113)

Tais considerações são colocadas como peculiaridades da sintomatologia de

um transtorno que é definido como neurológico e herdado, ou seja, determinado

biologicamente, mas as características apresentadas indicam elementos relacionados

ao contexto da situação, daí surge o questionamento: como as características de não

prestar atenção a algo não atrativo e direcionar a atenção quando encontra-se em

uma situação nova, envolvido em atividades interessantes podem ser indicadores de

um transtorno neurobiológico?

Além disso, observamos no item Características específicas de cultura, idade

e gênero informações que denotam a fragilidade da evidência:

À medida que as crianças amadurecem, os sintomas geralmente se tornam menos conspícuos. Ao final da infância e início da adolescência, os sinais de excessiva atividade motora ampla (p. ex., correr ou escalar excessivamente, na conseguir permanecer sentado) passam a ser menos comuns, podendo os sintomas de hiperatividade limitar-se à inquietação ou uma sensação interior de agitação ou nervosismo. (p. 116)

Todas as considerações anteriores nos remetem às concepções de ser

humano, desenvolvimento e aprendizagem que não consideram o aspecto

multifatorial e multidimensional da formação e constituição humanas, o que significa

que não concebem a interação dinâmica e dialética dos múltiplos e diferentes fatores

intervenientes da vida e história humana. Concepções que focalizam a análise no

indivíduo com destaque para o elemento biológico, orgânico ou psicológico de forma

isolada, fragmentada e determinista atreladas à lógica medicalizante de conceber e

compreender as manifestações humanas.

É com a abordagem crítica à essas concepções que proponho aprofundar na

pesquisa de doutorado a discussão no contexto da Educação ao focalizar a

medicalização da aprendizagem e a produção do fracasso no processo de

escolarização de estudantes com diagnóstico de TDAH.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, o suposto transtorno do TDAH está diretamente relacionado às

questões do processo de escolarização tanto no que diz respeito às características

dos sintomas quanto à presença e aparecimento das manifestações no contexto da

escola. Assim, entre os profissionais e pesquisadores que destacam o TDAH como

transtorno neurobiológico apesar de não ser considerado como problema de

aprendizado, configura-se como a “dificuldade em manter a atenção, a

desorganização e a inquietude” que “atrapalham no rendimento dos estudos” (site da

ABDA, acesso em 26.04.2011) ou destacam que “os sintomas de desatenção afetam

o trabalho em sala de aula e o rendimento escolar” (DSM-IV, p. 116). Colocação que

foca a compreensão no sujeito que apresenta um problema supostamente biológico,

considerado como doença, e, então, resulta na dificuldade e consequente fracasso

escolar. Como doença deve ser tratada, nesse caso o tratamento é focalizado no

sujeito, assim os demais fatores de produção concreta do não aprender na escola ou

do fracasso não são apreciados, analisados.

A perspectiva de compreensão do não aprender na escola como resultante de

fatores biológicos e/ou psicológicos dos estudantes revela uma análise fragmentada

e reducionista do complexo processo de escolarização, negligenciando os diversos

fatores intervenientes da aprendizagem. É atribuída a responsabilidade do não

aprender na escola ao próprio aluno de maneira isolada. Camuflam-se os fatores

pedagógicos, relacionais, políticos, econômicos, sociais, culturais e históricos.

Com isso temos o aumento de crianças e adolescentes que são excluídos no

interior da própria escola por apresentar alguma dificuldade no processo de

escolarização já que foge do padrão esperado do aluno idealizado. A esses alunos

cria-se o estereótipo de quem tem uma dificuldade de aprendizagem, um problema,

uma doença. Juntamente a esse estereotipo associa-se a ideia de que não terá êxito

na jornada do processo educacional.

E o que esses sujeitos (crianças e adolescentes) pensam, sentem, percebem,

experimentam... O que estão dizendo com essas manifestações? A escola tem se

preocupado em escutar, olhar, observar, interpretar o que através de suas

manifestações estão denunciando?

Por outro lado com a realização da análise em uma perspectiva crítica, pode-se

inverter a compreensão no sentido de considerar que os comportamentos e

manifestações dos alunos interpretados como “problema”, “sintoma”, “doença” tem a

possibilidade de revelar, denunciar fatores da própria escola que produzem a

dificuldade do processo de escolarização e o seu consequente fracasso. Assim,

considera-se que as manifestações dos estudantes, na verdade, podem ser um

caminho de identificação e apreensão dos fatores internos da/na escola de produção

da dificuldade de escolarização ao mesmo tempo em que podem revelar

possibilidades de uma construção de uma intervenção pedagógica na busca de sua

superação. O que pode ser ampliado no sentido de incluir um desafio a ser

conquistado: construir e reconstruir a prática pedagógica atenta a atribuição de

sentidos e significados dos sujeitos em escolarização, sejam crianças, adolescentes

ou adultos.

REFERÊNCIAS ABDA. Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Disponível em: http://www.tdah.org.br/. Acessos em: 29 set. 2010 e 26 abr. 2011. DSM-IV-TR. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Tradução Cláudia Dornelles. 4 ed. rev. 1ª reimpressão. Consultoria e coordenação da edição prof. Dr. Miguel R. Jorge. Porto Alegre: Artmed, 2003. COLLARES Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS Maria Aparecida Affonso. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Idéias, n. 23, São Paulo: FDE, 1994. Disponível em: htpp://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/idéias_23_p025-031_c.pdf GUARIDO, Renata. A biologização da vida e algumas implicações do discurso médico sobre a educação. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. Capítulo 2, p. 27-39. MOYSÉS, Maria Aparecida A.; COLLARES, Cecília A. L. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. Capítulo 5, p. 71-110. SILVA, Kátia Beatriz C.; CABRAL, Sérgio Bourbon. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: TDAH. Edição revisada por Dr. Paulo Mattos. Rio de Janeiro: ABDA, 2011.

Ação do Psicólogo Escolar na Educação Infantil: pelo acolhimento e valorização da diversidade do desenvolvimento da criança

Julia Chamusca Chagas Regina Lúcia Sucupira Pedroza

Universidade de Brasília

Palavras-chave: Psicologia Escolar; Educação Infantil; Educação em Direitos

Humanos; Patologização e Medicalização da Educação; Gestão Democrática.

Quadro Conceitual

Neste trabalho, partimos de uma perspectiva de psicologia histórico-cultural

fundamentada nas teorias de Vigotski e Wallon para pensar uma atuação do

psicólogo escolar voltada para a construção coletiva de projetos educativos de

qualidade, democráticos e acolhedores da diversidade do desenvolvimento humano.

Entendemos que projetos com essas características, consoantes com as propostas

da Educação em/para os Direitos Humanos (Candau, 2007), proporcionam

possibilidades de superação dos processos de patologização e medicalização da

educação. Dessa forma, nosso objetivo é trazer experiências de psicólogas

escolares em uma escola de Educação Infantil do Distrito Federal onde o fazer

educativo propicia uma maneira diferenciada de acolhimento às crianças, contrária à

lógica medicalizante de normatização da infância.

Baseamo-nos em Vigotski e Wallon por entender que esses autores viam nos

pressupostos do materialismo dialético possibilidades de a psicologia romper com

dicotomias na sua definição do ser humano e engajar-se em um novo projeto de

sociedade em que as relações interpessoais sejam mais democráticas e solidárias.

Esses pressupostos permitem ressignificar a psicologia – ao mesmo tempo em que

são por ela ressignificados – por possibilitarem uma compreensão do

desenvolvimento humano como processo complexo, contraditório e não-linear. Os

autores definiam o indivíduo como um ser social, ativo em suas relações na

sociedade, sendo ao mesmo tempo produto e produtor dessas relações e de sua

história. Dessa forma, o seu desenvolvimento é dinâmico, marcado pelas condições

materiais, englobando uma relação dialética entre as dimensões biológica, cognitiva

e afetiva. Isso implica considerar o indivíduo concreto, em sua totalidade, como um

ser em constante mudança, ao mesmo tempo em que transforma o mundo na sua

vivência.

Essa concepção é complementada pela visão de Heller (1970/2004) a

respeito da condição humano-genérica do sujeito. A autora demonstra que o ser

humano constitui-se na estrutura da vida cotidiana de forma dialética. Assim, é

composto pela manifestação genérica dessa cotidianidade, mas sem reduzir-se

inteiramente a ela, pois tem a sua constituição particular. Dessa forma, o indivíduo é

único, mas carrega em si a história da humanidade. Ela ressalta, ainda, que nem

sempre a convivência entre particularidade e generalidade se dá de forma

consciente, atentando para a alienação da vida cotidiana. Esta constitui um abismo

entre o homem genérico e suas possibilidades individuais, entre sua produção

humano-genérica e sua participação individual consciente nessa produção. Dessa

forma, os indivíduos nem sempre têm ciência de que podem elevar-se acima da

prática cotidiana, por meio de suas escolhas particulares.

A partir dessas considerações, enfatizamos a necessidade de a psicologia

superar a noção de natureza humana que baliza a produção de teorias de

desenvolvimento que imputam à concepção de ser humano universal valores

construídos em uma sociedade excludente e desigual. Essa visão ideologizada de

ser humano reduz as suas possibilidades de existência e fundamenta uma educação

que limita a sua autonomia e a sua possibilidade de elevação acima da prática

cotidiana, transformando a realidade social. Assim, entendemos a partir da reflexão

feita por Bock (2003) que a psicologia tradicionalmente desenvolveu um papel junto

à educação comprometida com a reprodução do modelo de sociedade capitalista

neoliberal. Defendemos, portanto, que a psicologia assuma a responsabilidade na

construção de outro projeto de sociedade, mais democrática e respeitosa dos

direitos humanos, contribuindo para a superação de relações de poder marcadas

pela divisão em classes sociais que se perpetuam ao longo da história.

A educação assume um papel central nesse novo projeto, criando

possibilidades para que o ser humano se insira de forma autônoma na sociedade.

Entendemos, junto com Freire (1996), que a educação não pode se restringir à

aquisição e memorização de conhecimentos, deve voltar-se para a integralidade do

sujeito e para a sua problematização ativa em relação ao mundo. O mais importante

não é o conteúdo como produto da educação, mas sim o processo de

desenvolvimento de sujeitos de desejos e de direitos.

Este trabalho, voltado para a Educação Infantil, fundamenta-se também nas

formulações de Larrosa (2004), Castro (2001) e Pulino (2001), que permitem

repensar o conceito de infância na perspectiva adotada neste trabalho na

contemporaneidade. Esses autores trazem uma visão de infância como

imprevisibilidade e emergência do novo, que não pode ser objeto de teorias que

visam esgotá-la nem de uma educação que pretenda discipliná-la e silenciá-la. Pelo

contrário, acolher a diversidade e a novidade infantil é trazer possibilidades tanto

para uma educação mais autônoma e respeitosa dos direitos da criança, quanto

para a transformação da sociedade pela novidade.

Nesse sentido, concebemos a Educação Infantil como um espaço de acesso

ativo ao conhecimento formal produzido por uma sociedade, em que crianças e

professores são parceiros na exploração do mundo a partir da sua curiosidade e de

seus interesses. As crianças não são um receptáculo dos conteúdos que os adultos

julgam necessários para a sua formação, mas sim participativas na construção do

seu projeto de educação. O professor é um organizador do meio social, que não se

impõe às crianças, mas tem a responsabilidade de proporcionar práticas educativas

que tanto façam sentido para seus alunos, quanto despertem novos interesses pela

construção de conhecimento.

Essa questão do sentido relaciona-se tanto com o que a criança já conhece e

traz como curiosidade sobre o mundo quanto com o momento do desenvolvimento

em que essa criança se encontra. As teorias de Vigotski e Wallon trazem

referenciais importantes para pensar as crianças como indivíduos concretos, únicos

e diversos, cujo desenvolvimento não pode ser previsto nem universalizado, mas

sim estudado de forma dialética. Essas teorias abrem possibilidades de falar do

desenvolvimento infantil considerando as suas contradições e especificidades,

concebendo as crianças como seres concretos e ativos em sua relação com o

mundo. Assim, permitem uma reflexão sobre o fazer educativo e uma reorganização

da escola para acolher cada criança da maneira como se apresenta. Opõem-se à

ideia de que apenas o aluno precisa se adaptar à escola, mostrando que esta

também deve adaptar-se a ele. A diversidade do desenvolvimento infantil não é

tomada como uma dificuldade a ser corrigida pelos psicólogos a partir de

intervenções de ajustamento. Ao contrário, acolher cada criança e sua singularidade

traz a possibilidade de dinamizar a proposta educativa.

Dessa forma, essa visão de educação se opõe claramente a perspectivas de

normatização e controle da infância, nas quais a medicalização atualmente cumpre

papel central. Consideramos fundamental denunciar que a atribuição de justificativas

de cunho biológico e individual para o fracasso escolar opera conseqüências graves

na vida dos sujeitos, principalmente impossibilitando que tenham acesso aos seus

direitos sociais (Souza, 2010). Ignorar esse fato é se colocar a serviço da exclusão.

Entretanto, mais do que denunciar, pretendemos assumir a tentativa de buscar

possibilidades de superar a lógica patologizante e medicalizante, estruturada na

normatização da infância para seu controle e submissão. Acreditamos que isso se

faz possível por meio de estudos sobre práticas educacionais que não se aproximam

às crianças pela sua estigmatização, normatização, mas sim pelo acolhimento de

cada criança da maneira como se apresenta, respeitando o seu “direito de ser aquilo

que é” (Korczak, 2009, p.43, livre tradução).

Vale ressaltar que a conceituação de medicalização adotada neste trabalho é

aquela exposta no Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da

Sociedade (2010), qual seja:

“Entende-se por medicalização o processo que transforma, artificialmente,

questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes

ordens são apresentados como “doenças”, “transtornos”, “distúrbios” que

escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que

afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como

individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse

processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são

responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e

profissionais são eximidos de suas responsabilidades.”

Entendemos que propostas educativas fundamentadas nos ideais de

democracia participativa e da Educação em/para os Direitos Humanos trazem em si

possibilidades de acolhimento às crianças que permitem refletir sobre a superação

da lógica medicalizante. A participação de todos os membros da escola na sua

gestão democrática é essencial para a melhoria da sua qualidade. Vale ressaltar que

essa forma de gestão não é concebida apenas como a eleição de diretores, vice-

diretores e representantes de cada segmento no Conselho Escolar. Ela demanda a

construção e a implementação do PPP da escola por todos os seus membros no seu

cotidiano, desde a sala de aula até os espaços de reunião da comunidade escolar,

passando pelas conversas de corredor e pelo bate-papo na hora do cafezinho. É o

exercício democrático diário, a convivência em comunidade e o diálogo plural e

diverso em vários espaços da escola que constroem a gestão democrática da escola

e, consequentemente, possibilidades de uma educação mais acolhedora do

desenvolvimento humano.

Objetivos

Construir possibilidades de superação dos processos de patologização e

medicalização da educação a partir de experiências de psicólogas escolares em

uma escola de Educação Infantil que acolhe a valoriza a diversidade do

desenvolvimento infantil baseada em um projeto político-pedagógico diferenciado

construído coletivamente no cotidiano da escola por todos os seus membros.

Metodologia

Este trabalho consistiu de realização de entrevistas semi-estruturadas com

três ex-psicólogas escolares de uma escola de Educação Infantil do Plano Piloto de

Brasília que é uma associação. Além disso, as pesquisadoras mantém há vários

anos contato freqüente com a escola, seja por meio de atuação direta da primeira

autora como membro do quadro funcional da escola (2007-2008), ou da segunda

autora como mãe de uma estudante (1997-2001), além de muitas participações

formais e informais em eventos de formação de professores e outros profissionais e

reuniões da escola. Buscamos ressaltar o valor da vivência e da reflexão sobre a

própria prática como forma de saber não só para si, mas que pode ser

compartilhada como um saber para os outros (Silva, 2006). Assim, essa experiência

de proximidade com a associação é esclarecida neste estudo porque permeia toda a

sua construção e desenvolvimento, ao mesmo tempo em que pode contribuir à

investigação sobre o papel do psicólogo escolar na Educação Infantil.

As entrevistas semi-estruturadas abordaram as funções do psicólogo escolar

na associação, sua relação com todos os segmentos da escola, sua atuação na

gestão democrática e suas concepções acerca desse tipo de gestão. Realizadas em

2010, compuseram o projeto de pesquisa que resultou na dissertação “Psicologia

Escolar e Gestão Democrática: uma proposta de atuação em escolas públicas de

Educação Infantil”, defendida nesse mesmo ano. Essas entrevistas serão, portanto,

revisitadas para este trabalho, em um entendimento de que trazem informações

significativas sobre uma proposta educacional e uma postura das psicólogas

entrevistadas que permite pensar possibilidades de superação dos processos de

patologização e medicalização da educação.

Resultados

Um dos aspectos mais relevantes das entrevistas, para este trabalho, está na

concepção de criança que foi construída ao longo dos anos. Essa concepção

fundamenta a atuação do psicólogo escolar e dos outros profissionais, impactando a

maneira como as relações se constroem na escola. Essa concepção está

fundamentada no respeito à criança, na visão de que ela é uma pessoa que tem

desejos e opiniões que precisam ser ouvidos e acolhidos na escola. Contrapõe-se,

portanto, à visão de imposição da vontade do adulto sobre a criança, da autorização

para que ele fale por ela, porque se julga mais capaz. Essa é uma concepção

intimamente relacionada com a elaboração de Larrosa (2004) acerca do enigma da

criança. Para esse autor, a postura mais freqüente em relação às crianças tem sido

a de subjugá-las pelo que se julga conhecer sobre ela, pelos vários saberes

construídos sem uma escuta do que a criança tem a dizer. É uma crítica, assim

como aquela feita por Castro (2001), de que as ciências têm formulado muitos

conhecimentos que acabam por autorizar as pessoas a dominar as crianças,

discipliná-las e impor a elas uma forma de ser coerente com o status quo.

As falas das entrevistadas demonstram a crítica à escola como instituição de

imposição de uma disciplina às crianças, sem a possibilidade de elas falarem sobre

o que esperam desse processo educativo. Buscam uma concepção de educação

que parte da compreensão da criança como sujeito, prosseguindo para uma visão

semelhante à de Wallon (1952/1987) de que a escola precisa se adaptar ao aluno. É

nesse relacionar-se com a criança, conhecê-la, acreditar nela, conversar sobre as

suas opiniões, desejos e interesses que um projeto educativo deve ser construído.

Conceber a criança como um sujeito ativo na produção de conhecimento junto com

os seus colegas e seus professores implica em trabalhar os conhecimentos de forma

dinâmica, viva, em constante relação com as questões que surgem dos debates, da

experiência com o mundo. Essa é uma concepção muito relacionada com a proposta

de Freire (1996) em relação à pedagogia da autonomia, onde a realidade e o

interesse do aluno são o ponto de partida da ação do professor. Esse professor não

é passivo, está junto com os educandos, devendo inclusive realizar práticas que

despertem esse interesse dos alunos. Assemelha-se, ainda, às propostas de

Vigotski (1926/2004) quando afirma que é a problematização do mundo, o debate

sobre as vivências e o conhecimento de cada um, que move o processo de

aprendizagem na escola. Também vai ao encontro da proposta de Wallon

(1952/1987), para quem o trabalho educativo deve ser sempre adaptado às

necessidades de cada criança.

Em suma, é um projeto educativo que realiza a construção do PPP também

dentro da sala de aula. Esse projeto não está alheio ao que acontece no cotidiano,

ele é pensado e repensado nos vários espaços de debate da associação, nas

reuniões de formação continuada dos professores, bem como junto com as crianças

em sala de aula. Dessa forma, propicia às crianças a vivência dessa gestão

democrática e a sua participação ativa nesse processo. Esse fazer educativo

estrutura-se, portanto, na lógica de democracia participativa da associação. Essa

característica diferenciada da escola proporciona uma proposta educacional que

realmente acolhe e valoriza a diversidade de cada pessoa que dela participa.

Propicia, assim, o enfrentamento da abordagem patologizante e medicalizante das

crianças ao trazer possibilidades de relacionar-se com elas na escola de uma

maneira que não passa pela sua submissão nem estigmatização.

A atuação do psicólogo tem o processo educativo como foco, as suas ações

são direcionadas a todos os segmentos visando a melhoria desse projeto, da escola

como um todo, conforme propunha Wallon (1952/1987). Não é um foco individual,

buscando avaliação, seleção e diagnóstico de crianças ditas desajustadas. A

finalidade da escola é o acesso ao conhecimento formal, de forma ativa, que envolve

uma vivência social e um desenvolvimento nas e pelas relações com as pessoas e

com esse conhecimento. O foco está no processo educativo, mas a maneira como

ele se constrói, enquanto processo, também se torna central na atuação desse

profissional. Sendo assim, da mesma forma em que ele atua no sentido de

proporcionar uma melhoria no PPP da escola, ele busca trabalhar junto às pessoas

para que a participação coletiva na construção desse projeto seja promotora do

desenvolvimento de todos. Além disso, valoriza esse processo de construção

coletiva como uma forma de realização do ideal que permeia esse PPP, de uma

sociedade mais democrática.

Cria, portanto, possibilidades de vivência e de relação para as crianças e para

os adultos que trazem o reconhecimento e a valorização das diferenças. Cada

pessoa realiza seu papel criativo e transformador a partir de suas condições e da

maneira como se apresentam. Ressaltamos a importância do trabalho do psicólogo

escolar nesse processo ao voltar-se para toda a comunidade educativa no processo

de gestão democrática, ou seja, na construção coletiva e participativa de PPPs

acolhedores da diversidade do desenvolvimento humano. Defendemos uma ação

desse psicólogo junto à comunidade educativa no sentido de acolher a singularidade

de cada pessoa em desenvolvimento no processo educativo, reconhecendo e

revelando os não-ditos presentes nas relações interpessoais. Trazer à tona os mal-

estares cria a oportunidade de reconhecer e acolher as diferenças, construindo um

espaço de diálogo democrático que aproveita os conflitos enquanto oportunidade de

desenvolvimento, pois denunciam relações de exclusão e assimetria de poder.

Assim, o psicólogo escolar pode promover uma convivência junto aos diversos

atores do contexto escolar fundamentada no ideal democrático da igualdade de

direitos e da autonomia pela participação de todos na construção do PPP de sua

escola.

Conclusões

Os desafios colocados para a psicologia frente aos processos de

medicalização e patologização da educação são muitos. Reconhecer a atual

retomada desses processos de maneira hegemônica na nossa sociedade, dentro da

nova roupagem oferecida pela neuropsicologia, é fundamental no enfrentamento

desses desafios. Entretanto, entendemos que é necessário, também, reconhecer

experiências brasileiras de educação que permitem pensar na superação desses

processos que têm sido tão danosos às nossas crianças e à sociedade em geral.

Neste trabalho, buscamos explorar uma experiência educativa diferenciada

que oferece possibilidades de pensar PPPs acolhedores da diversidade do

desenvolvimento das crianças. Tomamos o papel do psicólogo escolar nesse

processo por entender que precisamos assumir a nossa responsabilidade no

acolhimento e enfrentamento dos conflitos do cotidiano escolar, sem nos isentarmos

e encaminhá-los para outros profissionais, como é feito dentro da lógica

medicalizante.

É importante ressaltar que não pretendemos oferecer um modelo educacional

e de atuação em psicologia escolar prontos, aplicáveis a qualquer contexto. Pelo

contrário, entendemos que cada contexto escolar, dada a sua diversidade e

complexidade, demanda ações que lhe são próprias, construídas junto com os seus

participantes. Assim, algumas ações podem ser replicadas, outras talvez não façam

sentido em contextos diferentes e ainda há possibilidade de desenvolver novas

ações que sejam pertinentes a demandas específicas. Fica a ressalva de que

compreendemos as nossas limitações, porém corremos um risco pela defesa do

nosso ideal (Freire, 2000).

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Acolher a diferença: uma experiência interdisciplinar na Creche Nossa Senhora Aparecida

Maria Claudia G. Maia A. do Brasil, EBPMF / IUPERJ1

Isidoro Eduardo Americano do Brasil, EBPMF, SEPAI-UCAM2

Resumo:

Este trabalho visa discutir a experiência de 18 anos da Escola Brasileira

de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) na Creche Nossa Senhora

Aparecida, RJ. Este convênio interinstitucional possibilita a prática psicanalítica

dentro de uma unidade educacional de atendimento a crianças entre 2 e 4

anos, tendo o trabalho criado condições para o exercício da psiquiatria da

infância, sempre relevando as particularidades e singularidades de cada

criança. A experiência aqui relatada produz reflexões sobre as condições de

produção entrelaçadas aos campos da Psicanálise com crianças, da Educação

e da Psiquiatria da Infância, levando em consideração a atual política

educacional para inclusão de crianças portadoras de necessidades especiais,

ressaltando que o público-alvo desse trabalho não se limita às crianças, mas

inclui também os professores, coordenadores, demais profissionais

responsáveis pelo funcionamento da creche e pais.

Histórico do Projeto:

Há 18 anos a Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano

(EBPMF) sustenta a prática psicanalítica numa creche da zona norte do Rio de

Janeiro – creche esta criada e administrada por uma igreja católica sob a

regulação de convênios públicos, que atende à população de baixa renda, em

sua maioria oriunda de favelas daquela região. O convênio entre as duas

instituições foi estabelecido, incialmente, visando o trabalho analítico com as

crianças entre 2 e 4 anos e assim se manteve por aproximadamente dois anos.

                                                            1 Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) / Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro – Universidade Candido Mendes (IUPERJ/UCAM) 2 Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) / Serviço de Psicanálise em Atenção à Infância (SEPAI) – Universidade Candido Mendes (UCAM)

Após esse período, a demanda de trabalho se estendeu aos funcionários da

creche, motivando uma transformação, como efeito, nos encaminhamentos de

crianças realizados pelo corpo docente aos psicanalistas.

Num terceiro tempo, mais precisamente há 08 anos, nosso trabalho

ultrapassa os muros da escola e surgem as solicitações de atendimento

analítico por parte da comunidade.

Há dois anos iniciamos a experiência da “entrevista-ensaio” que

acontece em função de um impasse na prática analítica ou a partir da demanda

específica de professores ou da coordenação da creche. Neste dispositivo um

psicanalista, que também é psiquiatra, entrevista a criança e seus responsáveis

com a participação de outros analistas e psiquiatras, marcando uma diferença

em relação ao campo médico: neste setting – que tem sua origem bem

delimitada no campo da psiquiatria com Charcot – a criança tem uma

participação ativa, junto a seus pais, deslocando o foco do olhar/observação

médica para a escuta de um sujeito. Esta nova experiência marca a interseção

entre a clínica da criança – pediatria e psiquiatria da infância –, a psicanálise e

a pedagogia.

O desenvolvimento desse trabalho, além de produzir efeitos de mudança

subjetiva num nível individual e particular, produz consequências político-

institucionais na medida em que o conceito de diferença, que vem acoplado ao

de sujeito e suas vicissitudes, ganha novos formatos e pode ser dialetizado,

problematizado, e ter sua referência deslocada e expandida no âmbito maior da

creche como instituição multiplicadora de políticas públicas no território da

educação infantil.

Quadro Conceitual:

Este trabalho se ampara na interseção de três disciplinas: Pedagogia,

Psicanálise com criança e Psiquiatria da Infância. Isso se justifica porque a

Psicanálise com criança, a Pedagogia e a Psiquiatria da Infância são campos

historicamente entrelaçados que contribuem, com seus diferentes saberes,

para a compreensão da criança e do adolescente em suas configurações

subjetivas. Além disso, a reflexão teórica dessas disciplinas favorece a

apreensão da atual política de inclusão pedagógica dos portadores de

transtornos psíquicos com efeitos comportamentais que, nesse contexto, são

acolhidos nas salas de aula regulares e trazem situações inéditas de

convivência nem sempre exequíveis ou tranquilas para professores e alunos.

Num primeiro momento, a interseção entre Psicanálise e Psiquiatria

infantil, para citar apenas uma parte do campo de prática, permite uma

compreensão da psicopatologia infanto-juvenil que foge às amarras das atuais

classificações de doenças (DSM IV e CID 10), centrando a atenção e o cuidado

na criança e não apenas na doença, abrindo possibilidades para outras

intervenções terapêuticas que não se resumem à farmacologia, mas, ao

contrário, que oferecem a elaboração de conflitos a partir da escuta

psicanalítica e da implicação do sujeito em seu sofrimento. Uma clínica que

aposta na linguagem, no valor do dito, pode intervir sobre uma patologia mental

caracterizada pelo prejuízo do desenvolvimento da linguagem como, por

exemplo, nos casos de crianças autistas.

Se o trabalho psicanalítico é sempre contado um a um, tal especificidade

deve ser transposta para a educação, devendo esta vincular sua investigação

na elaboração também do um a um, propondo-se a não se enquadrar num

modelo universalista, que mais segrega do que agrega. Nesse sentido, a

Psicanálise atualiza determinados fundamentos da ação pedagógica

progressista, fundamentos estes que devem colocar-se sempre à prova,

evitando formulações standards na medida em que educar não implica um

conceito com critérios prontos. Ofertar um espaço de escuta psicanalítica – de

modo privado ou no âmbito do trabalho em grupo com professores – é ofertar a

possibilidade de construção do outro, construção de um outro que atravesse,

de modo desejante, o discurso da inclusão, uma vez que múltiplas

subjetividades exigem novos paradigmas.

É no exercício da equipe interdisciplinar que se estabelece o trabalho

crítico de inclusão, tomando como autores de referência os clássicos das três

disciplinas: Freud, Lacan, M. Mannonni, Françoise Dolto, Rousseau, Freinet,

Maria Montessori, Makarenko, Paulo Freire, Itard, Binet, Kanner, Ajuriaguerra

entre outros. Tais autores orientam nossos estudos e prática, levantando

questões sobre o valor de verdade de um enunciado médico e também

desvelando o imaginário que opera nas relações médico / professor X criança

(o médico e o professor visto pela criança; a criança vista pelo médico e pelo

professor).

Objetivos:

1. Oferecer uma escuta psicanalítica que possibilite ao sujeito

analisante (criança ou o adulto professor e responsáveis) elaborar

suas questões sintomáticas e fantasmáticas;

2. Fazer circular, numa instituição de caráter pedagógico, o discurso

analítico, provocando reflexões sobre a construção do outro,

relevando as particularidades dos sujeitos;

3. No entrelaçamento dos discursos psicanalítico, psiquiátrico e

pedagógico, construir novos paradigmas acerca do imaginário sobre

o diferente, mas especificamente o outro diferente;

4. No cruzamento dos campos da Psicanálise com crianças e da

Psiquiatria da Infância, abrir a perspectiva de alternativas para a

inclusão que vá além do recurso psicofarmacológico, pois este parte

de um diagnóstico atrelado a manuais classificatórios e

uniformizantes;

5. Divulgar e discutir esse trabalho com pares como meio de submeter

a experiência ao controle e contraposição de outros saberes e

projetos.

Justificativa:

No mundo globalizado, onde questões sobre o lugar do outro tornaram-

se prementes, a política de inclusão escolar cria situações delicadas de

convivência com os sujeitos portadores de diferenças; diferenças estas que

escapam a um modelo de aluno comum e que exigem da instituição

educacional um reposicionamento acerca de sua função e estratégia

pedagógicas. Neste novo contexto, em que o elemento multicultural é relevante

e onde não há mais lugar para uma escola paralela de acolhimento ao rotulado

como desigual, demanda-se dos profissionais da educação uma outra atuação

pedagógica, um outro posicionamento subjetivo, visando assistir às crianças e

adolescentes. Esta demanda, entretanto, nem sempre vem acompanhada da

necessária formação para o profissional escolar. Nesse contexto, a experiência

da EBPMF, trabalhando diretamente com crianças e professores, inova e

produz efeitos no funcionamento institucional, isto é, produz dialetização em

relação àquilo que ideologicamente as políticas públicas classificam como

diferente.

Metodologia:

1. Os encaminhamentos para atendimento psicanalítico semanal, em

espaço privado, com duração entre 30 e 50 minutos, podem ser

feitos pelos responsáveis das crianças, pela coordenação da creche,

pelos professores ou pelas próprias crianças, ressaltando que os

menores de idade só iniciam um tratamento possível após

autorização do responsável.

2. As entrevistas psiquiátricas mensais e de duração variando entre 40

e 60 minutos são agendadas a partir da demanda dos psicanalistas;

esta ocorre diante de impasses da clínica que remetem à construção

diagnóstica envolvendo os dois campos de conhecimento: a questão

de diagnóstico diferencial entre TDAH e a agitação neurótica, por

exemplo; a questão do autismo em contraponto a uma lesão

neurológica; a criança deficiente mental; ou ainda sujeitos

depressivos que optam pela abstinência medicamentosa entre

outros.

3. Todas as atividades clínicas são submetidas a supervisão semanal

na sede da EBPMF, com duração de uma hora.

4. Encontros de estudo teórico são realizados quinzenalmente, também

na sede de EBPMF, com duração de 1h e 30 minutos.

5. Reuniões de discussão com o grupo de profissionais da creche

(professores, coordenadores e demais profissionais da instituição)

são realizadas quinzenalmente e animadas pelo psicanalista

responsável pelo convênio; nesses encontros textos são lidos e

debatidos, além de se oferecer espaço para a discussão de casos

trazidos pelos professores.

  

Resultados:

1. Resultados clínicos, em se tratando de uma pesquisa qualitativa:

1.1. Desde o início do trabalho, em 1995, as vagas oferecidas pela

instituição passaram a incluir todas as crianças, sem restrições no

campo da psicopatologia (respeitando, porém, requisitos de outra

ordem, tais como genitores com carteira de trabalho assinada,

área programática, idade mínima etc.);

1.2. As crianças consideradas com necessidades especiais foram

encaminhadas para avaliação e possível tratamento, incluindo aí

os casos de crianças autistas, deficientes mentais, com

deficiências físicas, com agitação psicomotora, enlutadas etc.

Vale ressaltar que as crianças fora do critério oficial de

necessidade especial também foram escutadas mediante

demanda dos pais ou das mesmas.

1.3. Aos professores e demais profissionais foram franqueados

espaços de escuta psicanalítica, esta se dando tanto no modo

privado como em grupos maiores de discussão.

1.4. Um melhor funcionamento na prática pedagógica criativa, uma

vez que os profissionais passaram a conhecer e lidar de modo

pacífico com o diferente (o diferente que habita em cada um e o

que diz respeito ao outro).

1.5. Estabelecimento de rede de atendimento com outras escolas

municipais do Rio de Janeiro e órgãos de defesa dos direitos da

criança e do adolescente.

2. Resultados teóricos:

2.1. Produção textual por parte dos psicanalistas no âmbito da

EBPMF.

2.2. Criação de Curso de Especialização sobre a temática da inclusão

escolar, oferecido a partir deste ano no IUPERJ/UCAM.

2.3. Uma formação diferenciada dirigida ao pedagogo em sua nova

prática escolar.

2.4. Ampliação do saber referentes aos três campos de conhecimento,

Psicanálise, Educação e Psiquiatra, diante da elaboração e

refinamento do objeto de pesquisa.

Conclusões:

A oferta de uma escuta analítica às crianças e profissionais de uma

creche no subúrbio do Rio de Janeiro promoveu efeitos de retificação subjetiva

nos envolvidos. Tais efeitos atravessaram a instituição como um todo e

interferiram, de modo positivo, no processo pedagógico não só do aluno

chamado especial, mas também do aluno e corpo docente de modo geral. Isso

porque a oferta de um dispositivo que trabalha com o sintomático do sujeito

traz consequências, mesmo para a criança que fala, que produz efeito

significante, mas que ainda não é portadora de um discurso .

Podemos resumir tal intervenção na Creche Nossa Senhora Aparecida,

então, como a passagem do discurso universitário em seu conhecimento

burocrático sobre o outro para o discurso analítico na medida em que este,

como nos ensina Lacan, é da ordem do saber e não do conhecimento ou da

representação e releva o sujeito, sujeito do desejo e da falta.

Referências Bibliográficas Básicas:

AJURIAGUERRA, J. de. Manual de Psiquiatria Infantil. SP: Atheneu, s/data.

CANDAU, V. (org.). Cultura(s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico. RJ: DP&A, 2003.

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GADOTTI, M. História das idéias pedagógicas. SP: Ática, 1999.

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PETRI, R. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil. SP: Annablume, 2003.

ROSA, de M. da G. A história da educação através dos textos. SP: Cultrix, 1995.

ZIZEK, S (org.). Um mapa da ideologia. RJ: Contraponto, 1996.

* Além dos clássicos citados no corpo do texto.

AUDISMO E DEAF GAIN: EXPERIÊNCIAS SURDAS E AS

POSSIBILIDADES DE RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS

Francielle Cantarelli Martins – PPGE/UFPel

Madalena Klein – PPGE/UFPel

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que analisou os

discursos de sujeitos surdos sobre os termos: audismo e Deaf Gain1. Aproxima-se

de autores do campo dos Estudos Surdos, procurando articular discussões acerca

desses conceitos aos entendimentos de relações de poder e resistência. O problema

que conduziu a investigação foi: como os significados produzidos por discursos do

audismo e do Deaf Gain são negociados nas práticas contemporâneas da educação

de surdos.

Quadro Conceitual

Audismo é um termo utilizado para apresentar aspectos negativos, barreiras,

marcas históricas; a falta de comunicação, a falta de convívio na sociedade, a visão

da superioridade e inferioridade, identidades que se enfrentam, entre outras coisas.

É como se os surdos fossem rotulados por coisas negativas.

Quando vista pela estrutura da normalidade, a surdez só pode ser imaginada como uma perda. Como resultado, os surdos só podem ser vistos como tendo uma perda na comunicação humana normal, a menos que eles sejam reabilitados ou curados. As instituições de medicina e educação têm há muito tempo tentado resolver as questões de perda auditiva através de pedagogias e procedimentos de normalização – desde problemas da fala e da audição a procedimentos cirúrgicos, e até mais recentemente, a testes genéticos que fornecem aos pais as opções de evitar o nascimento de crianças surdas no geral. (BAUMAN e MURRAY, 2009, p. 6)

Para entender esse termo e os demais que nos acompanharam na pesquisa,

nos aproximamos do campo teórico denominado de Estudos Surdos que analisam

1 1 Este é um termo novo, ainda não traduzido para a língua portuguesa, por isso, utilizo de uma tradução provisória. O sinal utilizado para esta expressão é emprestado da American Sing Linguage - ASL, não havendo um termo distinto em Libras. Pode ser definido como um reenquadramento do conceito de "surdez" para uma forma de diversidade sensorial e cognitiva com o potencial de contribuir para o bem maior da humanidade (Bauman e Murray, 2009).

aspectos que permeiam a vida dos surdos, que fazem parte da sua história, que

contribuem para o desenvolvimento da sua identidade. A constituição desse campo

de saber contribui para o fortalecimento da cultura e da identidade surda,

favorecendo a vivência desses sujeitos e o compartilhar de experiências que

auxiliam a mudar a visão a respeito de quem eles são. Karin Strobel (2008)

aprofundou em sua tese sobre a importância da historia dos surdos:

O sujeito surdo ao conhecer e a vivenciar a história de surdos desenvolve a sua identidade pessoal, do ‘eu’, começa a ter uma visão mais sistematizada acerca sua diferença e do povo surdo em que vive, através de suas descobertas e discussões, enxerga o mundo, discute, descreve e escreve o que vê, o que sente em relação ao seu ser surdo. Ele exterioriza a sua subjetividade e desenvolve sua auto-estima. (STROBEL, 2008, p. 41)

A história da educação de surdos registra uma mudança drástica em 1880, no

Congresso de Milão. Antes desse congresso os surdos estudavam e trabalhavam,

eram professores. Nessa época existia o Instituto de Surdos da França, fundado

pelo Abade L’Epée, que foi a primeira escola pública de surdos no mundo, referência

para outros países. Nessa escola era utilizada a Língua de Sinais como primeira

língua, mas também havia ensino da língua oral e o ensino do latim básico. Apesar

de o Instituto desenvolver a educação nessa área de maneira que contribuía para o

aprendizado e desenvolvimento dos alunos surdos, alguns anos depois iniciou o

movimento de alguns médicos, professores de fala e outros profissionais

preocupados com a cura e normalização. Procuraram então a cura para a audição e

fala das pessoas surdas. Com esse movimento, foi organizado o Congresso de

Milão, entre os dias 6 e 11 de setembro de 1880, quando foi declarado que o método

oralista2 era superior ao uso da língua de sinais. Foi aprovada uma resolução que

proibia o uso da língua de sinais nas escolas e nas comunidades surdas do mundo.

A intenção da proposta era curar para normalizar, proibindo o uso dos sinais que, na

concepção dos especialistas da fala, inibia a oralização. Uma das justificativas dessa

decisão do congresso foi a religião, que apoiava a oralização, em virtude das

confissões. Também outros aspectos de ordem política e social interferiram nessa

decisão, como a organização dos estados-nação (Itália, Alemanha, Espanha, são

alguns exemplos), que dependiam da unificação linguística. Em vista dessa e outras

justificativas e objetivos e por haver um expressivo número de ouvintes e ínfimos

2 É um método de ensino para surdos, no qual se defende que a maneira mais eficaz de ensinar o surdo é através de da língua oral, ou falada.

representantes surdos, a oralização foi vitoriosa nesse congresso, espalhando-se

pelos diferentes países. Então, devido à opinião e dominação de uma lógica

centrada na audição, preocupados com a “cura” e a normalização dos surdos,

buscando a homogeneização na sociedade, iniciou-se o método oralista em todo

mundo.

Los Sordos han estado protestando, durante más de 120 años, contra la situación de la educación para los Sordos, y para eso se han valido de variados conceptos, tales como ‘derechos humanos’, ‘reconocimiento de los lenguajes minoritarios’, ‘genocidio’ y algunos otros, la mayoría de los cuales han sido ignorados o tomados en cuenta sólo parcialmente. (LADD, 2005, p. 4)

Após essa traumática reunião e seus resultados na vida dos surdos nas últimas

décadas, recentemente o movimento surdo buscou outros discursos e práticas sobre

as questões culturais, linguísticas, educacionais e identitárias dos surdos. Através de

discussões em torno da educação dos surdos, procurou-se mostrar a importância de

pesquisas nessa área, a fim de tencionar o domínio dos discursos ouvintistas. De

um lado estavam os ouvintes que acreditavam ser os surdos deficientes; de outro a

minoria surda, buscando a visibilidade da sua cultura, identidade, entre outros.

Até hoje usa-se o termo deficiência auditiva, que significa falta de audição,

como necessidade. Mas os surdos não pensam por esse prisma, pois não sentem

falta da audição. Percebem-se como diferentes, aproximando-se das discussões e

lutas de outras minorias. Harlan Lane (1992) escreveu o livro A Máscara da

Benevolência, no qual faz essa aproximação, ao comparar os surdos com outros

grupos como negros, mulheres, latinos e asiáticos, pois, como eles, também são

vistos como estranhos culturais. As pessoas surdas se constituíam em uma minoria,

elas têm sua própria língua, valores e cultura, mas são discriminadas assim como

outras minorias, independentemente de raça, classe ou sexo.

Lutando pelos seus direitos, surgiram outras necessidades, girando em torno

da inclusão educacional e social, como o bilinguismo, a acessibilidade em espaços

públicos, o intérprete da língua de sinais, entre outros. Iniciaram-se, então,

discussões e pesquisas organizadas em um campo denominado Estudos Surdos,

lançando-se com o objetivo de luta contra a representação da surdez como

deficiência, contra a visão da pessoa surda enquanto indivíduo deficiente, doente e

sofredor, e contra a definição da surdez como experiência de uma falta.

Consideramos oportuno assinalar que esse não é um tema comum, mas por

ser novo e complexo gera polêmica, pois não é um termo conhecido/utilizado na

sociedade. Apenas a comunidade surda começou a utilizá-lo, relacionando-o à sua

própria vida.

Entre os sujeitos surdos existe uma luta pelo reconhecimento de uma cultura

própria, constituída por marcas compartilhadas entre os sujeitos surdos, quais

sejam, a experiência visual, a língua de sinais, as histórias de lutas por

reconhecimento, a importância do encontro surdo-surdo, entre outros. Estas e outras

temáticas são discutidas nos Estudos Surdos, que se utilizam de discussões dos

Estudos Culturais e que possibilitam uma problematização no campo cultural.

Os Estudos Culturais formam um campo de pesquisas de caráter

interdisciplinar na área da cultura. Gênero e sexualidade, identidades nacionais, pós-

colonialismo, etnia, políticas de identidade, discurso e pós-modernidade constituem

as temáticas abordadas por esses estudos.

É importante compreender os Estudos Culturais e os Estudos Surdos como

base teórica para aprofundar o tema do audismo e do Deaf Gain, porque neles se

apresentam entendimentos sobre as diferenças, os discursos, as identidades.

Assim, sujeitos surdos convivem na comunidade surda, têm seus discursos, fazem

parte da diferença, têm suas identidades, mas sempre enfrentam barreiras por

serem surdos, por usarem a língua de sinais, por afirmarem/mostrarem/defenderem

suas identidades.

Também na pesquisa foram utilizados alguns conceitos de inspiração

foucaultiana como relações de poder-saber, resistência, discurso. Consideramos

que esses conceitos ajudam a pensar sobre o termo audismo, pois indica as

relações de dominação de um modelo ouvinte, que pretende a normalização dos

surdos. Nessa perspectiva, Gládis Perlin3 aprofundou sua tese sobre os surdos, sua

alteridade, identidade, diferença.

No pós-estruturalismo a significância do termo ouvintismo, por exemplo, está no terreno, mais como denúncia contra toda política de obrigação a copiar identidades, de objetivação visando curar, normalizar, copiar a mesmidade no surdo, tendo por modelo o ouvinte. (PERLIN, 2003, p. 34)

3 Primeira surda a doutorar-se no Brasil.

O audismo aparece como uma forma de ver o corpo sob a ótica das práticas de

normalização, de controle das identidades, e homogeneização delas. Quando

Foucault apresenta o corpo como “[...] superfície de inscrição de acontecimentos”

(2010, p. 22), ele mostra que a genealogia está no ponto de articulação do corpo

com a história. Ela deve mostrar o corpo marcado de história e a história marcando o

corpo. Até hoje existem discussões sobre o corpo danificado. É relevante relembrar

o fato da surdez significar, para alguns, como um corpo vigiado (Wrigley4, 1996, p.

1). Apesar disso, o corpo surdo enfrenta as batalhas nos conflitos sociais,

permeando as discussões sobre identidade e igualdade. Foucault, ao analisar o

biopoder, nos ajuda a entender os processos de dominação e normalização das

pessoas surdas na nossa sociedade. Assim, Harlan Lane (1992), apoiado em

Foucault, apresenta que a sociedade busca a inserção desse sujeito surdo anormal

à norma.

Diante do exposto, podemos argumentar que a articulação dos Estudos Surdos

aos Estudos Culturais sob a ótica das teorias das relações de poder de Michel

Foucault nos foi produtiva. Acreditamos que essas perspectivas nos ajudaram

entender as relações entre de audismo e Deaf gain, ou seja entender como

acontecem as relações de poder entre surdos-ouvintes, entre surdos-surdos e entre

o sujeito surdo consigo mesmo.

Objetivos

Nosso objetivo geral foi analisar as experiências de sujeitos surdos em

relação às barreiras e suas conquistas com o audismo e o Deaf Gain.

Dentre os objetivos específicos, destacamos: - identificar situações de

experiências de audismo nos sujeitos surdos e na comunidade surda; compreender

os discursos e práticas audistas e surdistas na comunidade surda; - analisar as

barreiras na vida dos sujeitos surdos e como eles resistem a elas.

Metodologia

A metodologia utilizada na investigação previa a análise de discursos de

surdos capturados através de entrevistas. No caso dos participantes desta pesquisa,

foi necessário realizar as entrevistas utilizando filmagens, pois todos os

4 Utilizamos da versão traduzida do original, para uso em aula, pelo grupo de pesquisadores do NUPPES – Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos da UFRGS.

entrevistados e a pesquisadora/entrevistadora são surdos e utilizam a Libras, que é

uma língua visual.5 A importância das entrevistas filmadas consiste no fato de que

essa é a maneira de registrar os discursos produzidos em língua de sinais,

característica cultural para entrevistas com surdos.

A busca durante as entrevistas foi por discursos atuais que contivessem as

barreiras contemporâneas que os surdos enfrentam. Também se pretendeu saber

como eles sentem esses acontecimentos, como enfrentam e o que fazem para

sobrepujá-los, transpô-los.

Foram escolhidos seis sujeitos, sendo que cada um deles é proveniente de

uma área de formação diferente, bem como atuação profissional distinta. Eles têm

um ponto em comum: estão de certa forma envolvidos com a educação dos surdos e

com o movimento surdo; moram nas cidades em que existe uma associação de

surdos, com comunidade surda atuante e participativa, com interesse pelo

desenvolvimento da comunidade surda e da Libras.

As perguntas que serviram de roteiro para a entrevista foram as seguintes: 1)

Descreva quem você é hoje; 2) Qual sua área de atuação? Como você escolheu

esta área? Algo lhe influenciou? Por quê?; 3) Relate suas experiências sobre

audismo e surdismo; 4) O que você avalia como conquistas (deaf gain) na sua vida e

como elas se deram?

Para realizar a análise dos discursos dos sujeitos entrevistados sobre suas

experiências, foram construídas as seguintes categorias: experiências de sujeitos

surdos sobre família e experiências de sujeitos surdos sobre educação.

Resultados

Na categoria as experiências de sujeitos surdos sobre família, alguns relatos

mostraram que as famílias se chocaram quando descobriram a sua surdez, mas

mesmo assim, os entrevistados não tiveram prejuízo no seu desenvolvimento. Estes

sujeitos surdos narraram as suas experiências de reabilitação. Podemos dizer que

estas experiências contribuíram para a subjetivação desses sujeitos e não podem

ser consideradas experiências perdidas. Quando começaram a ter contato com a

comunidade surda e língua de sinais, compreenderam o que denominam de mundo

surdo. No entanto algumas das suas famílias preocupavam-se com a norma, com o

5 Cabe ressaltar que, atendendo às questões éticas da pesquisa, foi elaborado um Termo de Consentimento Informado que assinado pelos participantes.

modelo ouvinte, tanto as famílias ouvintes como algumas das famílias surdas.

Um conceito importante para as análises da pesquisa foi o de relações de

poder, a partir de Foucault. Vários relatos evidenciaram experiências dos

entrevistados sobre as relações de poder vivenciadas na sociedade, na família,

entre as pessoas.

Por toda a parte onde existe o poder, o poder exerce-se. Ninguém propriamente dito é o titular do poder; e, no entanto, ele sempre se exerce em certa direção, com uns de um lado e os outros do outro; não se sabe quem o tem exatamente; mas sabe-se quem não o tem (FOUCAULT, 2001, p. 181).

Os discursos dos surdos capturados na pesquisa fazem lembrar o autor Lane

(1992, p. 43) quando compara a história dos surdos com o colonialismo:

O colonialismo é o padrão ao qual outras formas de opressão podem ser equiparadas envolvendo, tal como ele, a subjugação física de um povo enfraquecido, a imposição de uma língua e de costumes estrangeiros, e o controlo da educação em nome dos objetivos do colonizador.

Colonialismo é uma forma de poder que pode ser bem comparada ao

audismo, o que Lane fez ao analisar as histórias das pessoas surdas.

O conceito que também é produtivo para relacionar os relatos de sujeitos

surdos sobre a norma é o biopoder em que há preocupação em aperfeiçoar a vida,

em minimizar os desvios da normalidade. Sobre o biopoder Dreyfus e Rabinow

escrevem:

O desenvolvimento do biopoder é contemporâneo do aparecimento e da proliferação das próprias categorias de anomalias que as tecnologias de poder e saber supostamente eliminariam. A expansão da normalização funciona através da criação de anormalidades que ele deve tratar e reformar (2010, p. 214).

Na mesma direção o Skliar (2003, p. 174) diz que “a ideia de biopoder torna

explícita a representação de que para administrar a vida dos indivíduos é necessário

atuar sobre as populações”. A autora Rezende, em sua pesquisa sobre o implante

coclear em crianças surdas também argumenta que biopoder é uma estratégia para

tornar a viver na norma, capturando família, sociedade, escola e entre outros:

Os discursos hegemônicos sobre os sujeitos surdos, na questão do teste de orelhinha, tecem uma rede de poderes imensa, uma microfísica de poder; poderes em cada instância, em cada prática, em cada discurso, em cada estratégia. Os discursos da norma, que instaura e promove o biopoder, são estratégias de normalização da soberania ouvinte, que captura não apenas o surdo, mas a sua forma de viver, de ser e de estar no mundo, na

sociedade, na família e na escola. (REZENDE, 2010, p. 125)

Em alguns relatos, as famílias começaram a mudar essa visão sobre ser

surdo quando tiveram contato com a comunidade surda, ou conheceram sujeitos

surdos e perceberam que eles podem ter oportunidade de ter uma vida

independente no futuro. Um exemplo foi uma família que mudou sua concepção

quando conheceu um psicólogo surdo que atendia pacientes surdos: inicialmente

tiveram momentos de resistência, estranharam quando souberam que o psicólogo

era surdo, demoraram a aceitar e mudaram a opinião sobre ser surdo. Alguns

entrevistados apresentaram suas resistências, quando as suas famílias se

preocupavam com a normatização. Alguns realizaram relatos sobre a ocorrência de

audismo na sua família, quando esta manifestava preocupação com a norma e

sociedade. Também trouxeram o Deaf Gain, quando eles apresentaram que

obtiveram benefícios, pois suas famílias mudaram a concepção e os aceitaram.

É importante entender que as famílias fazem parte de experiências dos

sujeitos surdos, pois convivem juntos o maior tempo de suas vidas. Vivenciando os

diversos momentos com surdos, teve algumas situações em que as famílias

procuraram o melhor caminho para seus filhos, mas na maior parte do tempo

desconheceram a Libras.

Na categoria as experiências de sujeitos surdos sobre educação, os relatos

são sobre as escolas nas quais os surdos ingressaram: um dos entrevistados

ingressou na escola de surdos e aprendeu Libras desde criança. E os demais

estudaram em escolas regulares, não conheciam Libras e não tinham a presença de

interpretes de Libras. Porém, teve um momento bem interessante com dois

entrevistados: eles ingressaram na universidade e a partir deste momento é que

iniciaram o contato com a Libras, através do acompanhamento de interpretes de

Libras. Em seus relatos enfatizam que acreditam que a Libras mudou suas vidas,

principalmente na aprendizagem das aulas. Consideramos que esses relatos

significam, sim, que a Libras é a língua desses surdos, por isso a importância de

conhecê-la; não entende-la como ferramenta mas sim como primeira língua de

sujeitos que necessitam dela para compreensão e entendimento do mundo, afinal de

contas é uma língua como as outras.

Esse pode ser identificado como um relato de Deaf Gain, por causa da língua

que fez com que todos fossem beneficiados, pois antes de ter acesso a esta língua

não havia compreensão, interação e comunicação de fato, Foi importante não só

para os surdos, mas também para os professores e colegas, pois eles também

mudaram a ideia sobre Libras e ser surdo.

Também, a análise desta categoria mostrou que os sujeitos surdos lutam

pelos seus direitos, pela identidade, língua, entre outros, em processos de

resistência.

Nos relatos, percebemos que esses movimentos são contemporâneos, como

o movimento a favor da educação e cultura surda, e sempre apresentados como

história das experiências vividas. Os entrevistados contaram sobre seu passado,

como aprenderam nas escolas com o ensino oralista, quando não tinham interpretes

de Libras e começaram a contatar Libras e a Comunidade Surda, e quando eles

começaram a lutar pelos seus direitos. Para Lunardi (1998, p. 161):

Algumas formas de resistências, como a criação da associação de surdos, fundadas após a imposição do ensino oralista nas escolas, a luta pelo direito de adquirirem a língua de sinais como primeira língua, os matrimônios entre os/as surdos/as, são expressões genuínas dessas resistências.

Enfim, a partir da análise dessas categorias, identificamos experiências de

sujeitos surdos em relação ao audismo e Deaf Gain. Percebemos que tem várias

situações que mostram nas experiências de sujeitos surdos barreiras e as formas

como resistem. Durante a analise dos discursos dos entrevistados, compreendemos

que o mundo tem praticas audistas pois as experiências por eles relatadas mostram

muitos exemplos. E, os momentos de grande importância são os de Deaf Gain, pois

mostram as conquistas, importâncias, benefícios e contribuições que eles têm na

sua comunidade.

Conclusões

Espero que os resultados aqui apresentados possam motivar a discussão

entre acadêmicos e as políticas públicas, principalmente entre a comunidade surda.

Ficou evidenciado que há experiências audistas na comunidade surda, mas também

há experiências de Deaf Gain entre os sujeitos surdos e isso ajuda a compreender

que é necessário mudar a visão.

Muitas pesquisas focavam experiências de audismo no passado, nesta

pesquisa, os sujeitos surdos relataram sobre suas experiências e mostraram que

elas se mantêm ainda hoje. Por isso, consideramos importante conhecer e analisar

estes termos nos discursos contemporâneos. Estes discursos mostram que têm

sentido, eles desconstroem a visão de normalização nos corpos surdos. E, claro,

que tem vários olhares sobre os discursos surdos e seus corpos, porém, neste

trabalho, os discursos de sujeitos surdos mostram as suas experiências — nada de

olhares dos outros, mas sim discursos próprios — esta pesquisa mostra que há

velhas e novas histórias.

Os termos aqui estudados podem ser utilizados em varias áreas como na

educação de surdos, e também podem se relacionar com as discussões sobre

identidade, cultura, entre outros. São termos capturados nas experiências de

sujeitos surdos, que narram sobre seus processos de construção de identidade e

cultura surda, quando participam do movimento surdo e lutam pelos seus direitos.

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Caçando não humanos ou onde anda Harrison Ford?1

LEONARDO TRÁPAGA ABIB2 ROBERTA MONTEIRO BRODT3

JOSÉ GERALDO SOARES DAMICO4 Considerações Iniciais

Outrora espaço de identificação e expulsão dos leprosos e dos loucos, a cidade

de hoje, redesenhada numa variedade de transformações urbanas, econômicas e

sociais, tem se constituído como um terreno fértil de disputas entre os modos de

gestão da vida e as determinações de como os indivíduos devem auto gerir-se.

Trata-se de uma série de práticas de governamento que buscam incluir todos

(normais/anormais, humanos/não-humanos) nos jogos de poder e que se disseminam

pelo tecido social indicando e constituindo certos modos de viver. No entanto, como

chama atenção Emerson Elias Merhy (2012, p. 13)

nesse campo, não há garantias de controle total, a produção de desviantes é parte do processo. Em paradoxo, estimular os desejantes, ativá-los gera campo de multiplicidades. E como no filme BladeRunner a sociedade que se funda nesse processo, necessita dos seus caçadores de não-humanos resultados de si mesma.

A partir da citação acima, cabe perguntar quem seriam os “novos não-

humanos” no cenário urbano contemporâneo? Como se constitui a ideia de que esses

não humanos devem ser caçados? E por último quem são seus caçadores? Trata-se

em certa medida de problematizar “como” a internação compulsória5 se coloca como

central na agenda pública (política e midiática) por parte de múltiplos setores sociais,

que clamam pelo recolhimento compulsório de sujeitos que vivem nas ruas e que

fazem uso/abuso de substancias psicoativas. Tais medidas ao serem defendidas por

determinados grupos de “especialistas”, os experts (como médicos, políticos,

colunistas) que justificam estarem defendendo a família, a sociedade e por

consequência o próprio indivíduo é que está assentada esta vontade de “capturar os

não-humanos”. Autores como Raquel Rolnik (2012) e Emerson Merhy (2012) apontam

                                                            1O presente texto é oriundo de um projeto de dissertação de mestrado, intitulado provisoriamente de “Sinais que vem da rua: encontros entre trabalhadores e usuários de um Consultório na Rua”. 2Mestrando do PPGEC/FURG. 3Mestranda do PPGEC/FURG. 4Professor do PPGEC/FURG e do PPGCOL/UFRGS e orientador dos outros co-autores. 5A internação compulsória não é uma prática inédita dos nossos tempos. Michel Foucault (2006), demonstrava que na França no início do século XIX, a política consistia em fazer o internamento passar por cima da interdição e prevalecer o poder cientifico-estatal sobre o poder familiar (já que quem pede e decide o internamento por essa lei é um médico). No Brasil, de acordo com a lei 10.216/2001, existem três tipos de internação: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

essas práticas de aprisionamento como “políticas higienistas”, “varredura social”, que

em nome de interesses econômicos, financeiros e corporativos são acionadas em

momentos específicos para gerir a população.

Diante dos pressupostos de que vivemos em um contexto urbano marcado pela

biopolítica (FOUCAULT, 2011), pela consequente produção de novos anormais

(MERHY, 2012), e pelas formas de resistência às políticas de internação compulsória

de usuários de drogas (que afeta principalmente aqueles que vivem em situação de

rua), temos o intuito de problematizar certas naturalizações que vem sendo

amplamente disseminada de que a solução única para o abuso de drogas é a retirado

do sujeito das ruas que vêm emergindo em algumas cidades brasileiras.

A partir do acompanhamento duma equipe de um Consultório na Rua - CnR,

na cidade de Porto Alegre, pretendemos analisar que sinais estão vindos das ruas

nesse contexto, que experiências podem emergir a partir do encontro entre os

trabalhadores desse CnR com as pessoas em situação de rua e com as comunidades

em que esses passam maior parte do tempo. Dessa questão principal de análise,

emergem outras, como: i) de que formas os trabalhadores e usuários de um CnR

ocupam os diferentes espaços da cidade? ii) como os diferentes discursos sobre os

moradores de rua são colocados em funcionamento?

Cientes de que iríamos acompanhar processos de circulação pela cidade e de

encontros com diferentes pessoas; de que a possibilidade do imprevisível, da abertura

de novos caminhos, da constituição de novas redes e múltiplas relações - que não

podem ser analisadas somente em si, mas articuladas com questões históricas,

políticas, subjetivas e sociais - adotamos a etnografia multi-situada (MARCUS, 1995)

como opção metodológica.

Para Sciré (2009, p. 98) a realização da etnografia multi-situada não se

restringe apenas à prática de campo, pois ela engloba também “o fazer, a forma de

relatar o que se ouviu (...) o “seguir as linhas” refere-se ao trabalho do pesquisador,

no momento de analisar os dados”. Sobre os instrumentos analíticos da pesquisa,

utilizaremos diários de campo, reportagens e imagens que dizem respeito ao assunto.

Tais instrumentos estão sendo analisados na perspectiva da analise cultural ancorada

na teorização foucaultiana (FISCHER, 2001; MEYER et al, 2004; DAMICO, 2011).

Com isso queremos dizer que os elementos que irão compor o escopo da pesquisa

não estarão de acordo com os tradicionais princípios da pesquisa cientifica, como a

suposta neutralidade e rasa objetividade.

No atual momento da pesquisa um de nós está inserido numa equipe de CnR

da cidade de Porto Alegre-RS, participando das atividades desenvolvidas pelo serviço

na zona norte da cidade. Dentre as atividades acompanhadas: abordagem e o

acolhimento dos sujeitos em situação de rua, encaminhamentos para outros serviços

tanto da saúde quanto da assistência social, práticas corporais com os usuários,

reuniões de equipe, procedimentos especializados (curativos, entrega de

medicamentos, aplicação de injeções), distribuição de preservativos e outras. A

equipe se desloca de Kombi (às vezes até mesmo a pé) até praças, viadutos, terrenos

baldios, zonas de prostituição para atender as pessoas em situação de rua que

circulam por esses espaços.

Para este texto iremos apresentar algumas das problematizações, a partir das

vivências no Consultório na Rua e de diálogos com as elaborações de autores do

campo da saúde coletiva, como Émerson Elias Merhy, Antônio Lancetti, Sandra

Caponi e outros autores que têm aproximação crítica com as formulações de Michel

Foucault.

A invenção dos Consultórios nas Ruas

Em Salvador, no ano de 1997, foi realizada pelo Centro de Estudos e Terapia

do Abuso de Drogas - CETAD/Universidade Federal da Bahia uma pesquisa

etnográfica sobre o quadro de jovens em situação de rua, usuários de substâncias

psicoativas na capital baiana. O estudo apontou que estes jovens pouco chegavam

ao CETAD e quando o faziam, dificilmente davam continuidade ao tratamento. Para

tentar dar conta dessa situação, o CETAD criou o primeiro Consultório de Rua do

Brasil, com a finalidade de acompanhar estes jovens no território, buscando novas

formas de produzir cuidado e de ampliar o acesso deles à serviços de saúde

(OLIVEIRA, 2009). Entre os anos de 1999 e 2006, esta experiência do Consultório de

Rua foi desenvolvida no município de Salvador-BA, mostrando-se como uma

estratégia interessante para o atendimento junto aos usuários de drogas em situação

de rua (JORGE; WEBSTER, 2012). A partir de 2009 foram criados mais Consultório

de Rua no país, o que tornou esse serviço, esse estilo de abordagem em uma

referência para o trabalho com pessoas em situação de rua.

No ano de 2011 os Consultórios de Rua se transformam em Consultórios na

Rua - CnR, passando de um serviço da saúde mental para se tornar um serviço da

rede de atenção básica do SUS, com o objetivo de atender às demandas e

necessidades da população de rua, para além das questões relacionadas ao uso

abusivo de álcool e outras drogas (BRASIL, 2011).

Alguns fatores nos motivaram a chegar até um CnR e optar pela inserção nesse

serviço como lócus da pesquisa. Dentre esses fatores estão o envolvimento prévio

dos pesquisadores com o campo da saúde mental e da saúde coletiva, tanto na clínica

quanto na militância; a intenção de construir narrativas sobre os processos de trabalho

desse serviço; pelo fato de ser um lócus interessante para conhecer e dialogar com

as pessoas em situação de rua; e analisar como que os sujeitos e coletivos envolvidos

com o Consultório na Rua têm atuado frente a esses desafios impostos pela biopolítica

e pelo biopoder na contemporaneidade.

O CnR se pauta pela estratégia da redução de danos como forma de

construção dos atendimentos à população em situação de rua. Tal estratégia tem por

objetivo

evitar, se possível, que as pessoas se envolvam como uso de substância psicoativas. Se isso não for possível, para aqueles que já se tornaram dependentes, oferecer os melhores meios para que possam rever a relação de dependência,orientando-ostanto para um uso menos prejudicial, quanto para a abstinência, conforme o que se estabelece a cada momento para cada usuário (CONTE et al, 2004, p. 62).

Para Rose Mayer, em entrevista à Conte et al (2004), a estratégia da redução

de danos pode ser vista como um paradigma a partir do qual se parte do real, do

existente para uma situação melhor e possível. Relaciona-se com a

interdisciplinaridade, “pois o “real” e o “possível” podem ser vistos de vários olhares.

Pressupõe autoria, protagonismo, pois é o sujeito que vai poder avaliar o “real” e o

“melhor”. É um processo educativo, de construção de autonomia” (CONTE et al, 2004,

p. 68).

A partir disso, as atividades acompanhadas até então são bem variadas. Ações

como acolhimento, escuta, distribuição de preservativos, prática de esportes,

aplicação de medicamentos, curativos, acompanhamento em outros serviços de

saúde e encaminhamento para confecção de documentos (identidade, certidão de

nascimento, etc). A equipe buscar construir as atividades baseadas nas demandas

trazidas pelas pessoas que vivem na rua e naquilo que o CnR pode ofertar à esses

sujeitos. Quanto aos locais das abordagens, são lugares localizados na zona norte da

cidade, onde há uma quantidade razoável de pessoas em situação de rua, como

praças públicas, terrenos baldios abandonados, construções inacabadas e zonas de

prostituição.

Embora o CnR seja um serviço que emerge das experiências e lutas dos

movimentos sociais da saúde, que se propõe a prestar cuidado e acolhimento à

população em situação de rua no próprio território em que a pessoa circula e que tem

como rivais aqueles sujeitos e grupos que são contrários aos pressupostos da reforma

psiquiátrica e por que não dizer também do SUS, ele ainda corre o perigo de ser um

lugar privilegiado para que governos controlem, a partir de equipes de saúde, e vigiem

essa população em situação de rua que passa a ser a mais nova categoria a se

incorporar numa biopolítica contemporânea.

Se por um lado há um risco de os serviços abertos, como o CnR, serem

capturados por uma lógica negativa da biopolítica, pautada pelo viés do controle, da

vigilância e do mapeamento de novos grupos de anormais, há por outro lado a

ampliação do acesso à saúde para a população em situação de rua, de modo a buscar

a garantia efetiva de alguns princípios e diretrizes do SUS, como a integralidade, a

universalidade e a equidade, além da possibilidade de se proporcionar novos e

potentes encontros entre trabalhadores e usuários. Tal lógica pode se encaixar

também numa perspectiva biopolítica, contudo na sua positividade. A respeito dessa

dualidade da biopolítica, Caponi (2009, p. 534) diz que

implica aceitar um processo complexo que tem duas faces. Por um lado, o domínio do vital (natalidade, saúde, mortalidade e reprodução), que para os gregos era eminentemente privado, ingressará na esfera do social e, consequentemente, da política. Os direitos das mulheres, das crianças, dos trabalhadores, o reconhecimento dos direitos básicos à alimentação e à assistência, ainda que duramente conquistados, falam da positividade dessabiopolítica. Mas existe outra face, obscura, desse mesmo processo: as políticas higiênicas, psiquiátricas e eugênicas desenvolvidas no século XIX com o objetivo de melhorar a população e a raça classificaram uma série de condutas que, sob a categoria de anormalidade, podem começar a ser medicamente controladas.

Na perspectiva dessa face obscura, negativa da biopolítica, Foucault (2008, p.

11) aponta para o fato de que os governos tentam impedir quaisquer tipos de

comportamentos que possam ser considerados desviantes, apelando para toda uma

série de técnicas de vigilância dos indivíduos, “de diagnóstico do que eles são, de

classificação de sua estrutura mental, da sua patologia própria, etc., todo um conjunto

disciplinar que viceja sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar”.

Biopolítica, “novos anormais” e os tensionamentos no contexto urbano

Muitos discursos têm sido produzidos sobre a internação compulsória para

usuários de drogas. São discursos que perpassam diferentes campos do saber, como

saúde, educação, assistência social, segurança, direitos humanos e justiça. Diversos

segmentos da sociedade têm se mobilizado em cima do tema. Parte dos

posicionamentos tem ido na direção de posicionar o morador de rua que faz uso de

substâncias psicoativas enquanto este “novo não-humano”, um “zumbi”, um sujeito a

ser medicalizado, contido química e fisicamente, a ser privado do espaço da rua

devendo este ser tratado mediante internação hospitalar para desintoxicação ou

comunidades terapêuticas ou ainda clínicas específicas para usuários de drogas. Para

os setores mais conservadores da sociedade, só dessa forma é que se poderá

“reabilitar”, “tornar apto”, “inclusivo”, esse sujeito para viver em sociedade. Esse é um

dos posicionamentos que se enquadram numa política da vida, uma biopolítica como

alertava Michel Foucault (2011), como forma de controlar e gerir as vidas das pessoas.

Nesse sentido, a biopolítica vai operar com controles precisos, regulações de

conjunto e mecanismos de segurança, para exigir mais vida, majorá-la e dessa forma

gerí-la (PORTOCARRERO, 2011). Esse modo de gerir a população, para Foucault, é

contemporâneo do aparecimento das categorias de anormalidades, como o

delinquente, o perverso e o par normal-anormal (ibidem). Ao identificar cientificamente

essas anormalidades, as possíveis estratégias biopolíticas passam a estar numa

posição privilegiada para supervisioná-las e administrá-las. O corpo passa a ser uma

realidade biopolítica, e entre as estratégias biopolíticas estariam a medicina, o

urbanismo, a demografia e outras (FOUCAULT, 2002).

Pode-se ver que ao longo dos séculos XIX e XX passam a existir novos modos

de classificação dos desvios e das anomalias e também um novo modelo de

intervenção sobre os indivíduos. Surge assim um novo espaço classificatório de

doenças e anomalias que permitirá a proliferação, na segunda metade do século XIX,

de um conjunto de doenças relacionadas a comportamentos considerados desviantes

(CAPONI, 2009).

É possível pensar que talvez entre todos os novos anormais produzidos (no

sentido foucaultiano) nos dias de hoje, os indivíduos em situação de rua, formam uma

das faces mais gritantes ao ingressarem no bojo das estratégias biopolíticas. Como

forma de gerir essa população na atualidade, governos aliados a alguns setores da

saúde e assistência traçam novos planos para supervisionar, administrar essa

categoria especifica de anormais. É aí que entram os discursos que desvalorizam e

tiram potencia da pessoa em situação de rua, tornando um problema da esfera social

em doença e motivo para “limpar as ruas”. A justificativa mais usada é de que esses

sujeitos só podem melhorar, curar-se se forem internados (nos diferentes lugares que

citamos no parágrafo acima), mesmo que contra vontade, pois no estado em que se

encontram, podem ser um perigo não mais a si mesmos, mas à toda população.

Merhy (2012) nos diz que no campo da saúde, forte aliado dos processos da

ordem biopolítica, novos biopoderes são requisitados sendo que a medicina nos dias

atuais cedeu lugar para sua transformação: de exclusivamente dos corpos de órgãos,

agora temos uma medicina do corpo sem órgãos, que opera não somente com as

questões biológicas, mas também que medicaliza condutas, comportamentos

considerados anormais. A partir dessa nova conformação do campo saúde, agora

portador de uma clínica do corpo sem órgãos, podemos perceber na micropolítica do

dia-a-dia uma série de situações que serão elencadas como objetos necessários de

suas intervenções. Os usuários de drogas, que ocupam ruas, praças e matos em

qualquer cidade, vêm se constituindo num prato cheio para normatização do não

controlado, do imprevisível (ibidem).

Essas intervenções de recolhimento da população de rua que faz uso de drogas

vêm ganhando espaço nas agendas públicas de diversas capitais brasileiras. Daí que

emerge de setores mais críticos à essas posturas governamentais, posições que

podem ser sintetizadas na ideia de que com essas políticas o que se pretende não é

ajudar esses sujeitos, mas, sim, promover uma grande “limpeza social” nessas

cidades (SILVA, 2010; ROLNIK, 2012).

Ao partirem do pressuposto que associa o usuário de droga como dependente

químico, esses governos indicam através dessas políticas que só a abstinência e a

interdição do contato com a droga podem produzir efeitos terapêuticos, como outros

sujeitos além do campo político tem advogado e tentado provar cientificamente

(MERHY, 2012). Tais ações não contam somente com o apoio de recursos

governamentais, que justificam tal investimento com o discurso de um possível caos

social caso não se adote políticas mais duras, mas também de indústrias

medicamentosas, de comunidades terapêuticas e de clínicas psiquiátricas privadas.

Ao contrário disso, as demais formas de tratar dessa temática em que não se prevê a

repressão, mas, sim, uma aposta na produção de novas formas de vida para essa

população, os investimentos estatais são parcos (ibidem).

Já na outra ponta da discussão, estão movimentos sociais; algumas entidades

representativas, como sindicatos, associações e conselhos; e trabalhadores da saúde,

justiça e assistência social, que defendem que as formas de tratar as pessoas que

vivem na rua e sofrem pelo uso abusivo de álcool e outras drogas devem ser integrais,

aliando as políticas da saúde e da assistência, de modo a colocar à disposição dessa

população diversos serviços públicos para que elas possam ser atendidas de forma

voluntária, consentida e não afastada do convívio social, das ruas. Para esses grupos

não se descarta a internação específica para desintoxicação num hospital geral, o que

se reivindica é que essa internação deve partir do desejo, da vontade da pessoa e que

ela tenha acesso a uma série de políticas e serviços quando ela sair do hospital e que

não seja vista como um “zumbi”, um “não-humano”, desprovido de razão, desejo e

direitos.

Antônio Lancetti (2012), comenta que até então no Brasil estávamos

caminhando para construção de redes de cuidados em saúde mental para pessoas

usuárias de drogas, quando então se lançou sobre o imaginário social essa intensa

campanha midiática marcada pelo alarme, desinformação, promessa de um caos e

que os serviços públicos de saúde e assistência não dariam conta dessa falsa

epidemia. Por conta desse imaginário construído fortemente pela mídia e por

governos, a população em geral desconhece a rede de apoio ao usuário de drogas,

os serviços, as políticas públicas e os profissionais que lidam com essa temática.

Atualmente no Sistema Único de Saúde – SUS existem dispositivos para além

da internação hospitalar, como os Centros de Atenção Psicossocial específicos para

atender à usuários de álcool e outras drogas – CAPS AD6. Há dois tipos de CAPS AD:

o tipo III que pode funcionar até vinte e quatro horas e o tipo II que atende das 8h às

18h. Ambos são serviços que contam com equipe multiprofissional, atendimento sob

a forma de oficinas, grupos, acolhimentos, atendimentos individuais, consultas, visitas

domiciliares e internação curta no caso dos CAPS AD III (que eventualmente podem

realizar procedimentos de desintoxicação).

Os coletivos que se posicionam contra esses projetos de internação

compulsória em massa, defendem a ampliação e a qualificação desses serviços da

rede SUS, como os CAPS AD e os Consultórios na Rua, além da construção/criação

de novos dispositivos de cuidado, de atenção e acolhimento às pessoas que vivem

em situação de rua, que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas.

Considerações Provisórias

                                                            6 Além dos CAPS AD, o SUS também prevê que os usuários de álcool e outras drogas também sejam acolhidos e atendidos nas Unidades Básicas de Saúde - UBS, pelas equipes de Saúde da Família – ESF e nos Centros de Atenção Psicossocial para pessoas em sofrimento psíquico – CAPS.

Foucault (1999, p. 150) nos indica que “tudo o que é desordem, indisciplina,

agitação, indocilidade, caráter reativo, falta de afeto, etc., tudo, daqui em diante,

poderá ser psiquiatrizado”. Portanto, os novos anormais ingressam no bojo das

biopolíticas contemporâneas pela medicina do “não-patológico”, calcada em atender

esses desviantes das condutas consideradas normais e esperadas para o sucesso de

uma dada população. Não é à toa que dentre aqueles que defendem as internações

compulsórias como forma de tratar o usuário de droga, principalmente o que vive na

rua, estão grupos conservadores representantes da psiquiatria biologicista, da

indústria farmacêutica, donos de comunidades terapêuticas, setores dos governos e

outros que não apostam em formas mais ampliadas de acolher essa demanda tão

complexa.

Sendo assim, ficam aqui nessas primeiras considerações, algumas perguntas

a serem pensadas por nós: como não produzir corpos para essa biopolítica? De que

maneiras o CnR (e outros serviços do campo da saúde, da assistência social e etc)

pode ser uma alternativa de resistência às estratégias biopolíticas de controle,

vigilância e produção de anormais?

Referências

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problematizando representações de gênero em anúncios televisivos oficiais de

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resistências em curso. Biblio3W. Revista Bibliográfica de Geografía y

CienciasSociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 895 (18), 5 de noviembre de

2010.

Conversas sobre a Medicalização da Educação numa

Escola pública na cidade de Belém.

Autor principal: Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira (Estudante de

Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará)

Demais autoras: Daiane Gasparetto, Eline Freire Monteiro, e Rafaele

Aquime.

Trabalho realizado como requisito de avaliação da Disciplina Processos

de Subjetivação, História e Política, ministrada pela Profª Flávia Lemos no

Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará.

Belém – PA. Janeiro/2013

Palavra-chave: Medicalização, Educação, Subjetividades.

Quadro Conceitual

O termo medicalização segundo Collares e Moysés (1994) está

relacionado na busca de soluções médicas para questões eminentemente de

outra natureza, ou seja, sociais e políticas. O processo de medicalização

baseia-se na concepção de saúde-doença da ciência médica a qual centra-se

no indivíduo e enaltece a abordagem organicista.

Nesta perspectiva, a medicalização das práticas educacionais tem sido

uma temática discutida em espaços acadêmicos, fóruns e congressos e o

seguinte trabalho possui como principal objetivo levar essa discussão para o

ambiente escolar, local este onde se fomenta as práticas de ensino-

aprendizagem, por meio de onde o olhar medicalizante pode estar presente.

Conforme assinala Collares e Moysés (1994), a educação, assim como

outras áreas da sociedade, vem sendo medicalizada de forma intensa, sendo a

aprendizagem ou o seu fracasso, encaradas como processos centrados no

aluno ou no máximo em sua família. Permitindo que a política educacional seja

quase nunca questionada em torno desse fato. Uma ilustração dessa

concepção é atrelar o fracasso escolar à presença de disfunções neurológicas,

rotulando a criança como disléxica ou hiperativa.

De acordo com Arantes, Lobo e Fonseca (2004, p. 3) “quanto mais a

razão de fecha em um modelo único e absoluto, maior o empobrecimento do

pensamento, a domesticação da vida e a intolerância a diferença”. A

medicalização, portanto, privilegia o saber médico em detrimento dos outros

saberes.

Nesse sentido, é essencial destacar que as contribuições da Psicologia

na área da Educação estão fundamentadas em propor uma articulação da

Política Pública Educacional com a vida escolar, com as relações

estabelecidas do sujeito com a sociedade e suas condições individuais, de

cunho orgânico ou não (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011).

Diante do exposto, o relatório irá expor as duas atividades realizadas

pelo grupo de psicólogas em uma Escola Estadual de Ensino Fundamental

localizada na Região Metropolitana de Belém.

Objetivos

A primeira atividade consistiu em uma roda de conversa com os

professores e técnicos em educação sobre a “Medicalização da vida escolar” e

a segunda atividade consistiu em uma oficina com alunos com a temática “A

escola que queremos”.

As duas atividades objetivaram uma interlocução entre a temática da

medicalização da educação num espaço onde a aprendizagem se constrói e

os atores dessa construção.

Metodologia & Resultados

Abaixo será descrito como se desenvolveu a atividade.

Atividade 1: Roda de conversa com professores e técnicos em

educação da rede pública de ensino fundamental do Estado.

No dia 14 de dezembro de 2012, às 14h00, quatro profissionais de

psicologia reuniram-se com o corpo de profissionais para discutir sobre a

temática da “medicalização da vida escolar”.

Inicialmente, perguntou-se às participantes o que entendiam por

medicalização, no intuito de consultar o que sabiam sobre este assunto. Entre

poucas opiniões explanadas, foi mencionado que o tema poderia ter relação

com médicos, remédios, bem como sobre a possibilidade de a escola estar

doente. Inclusive, fomos indagadas sobre a relação do assunto abordado com

a escola.

Observou-se que as participantes tinham poucas informações

consistentes sobre a temática, porém, demonstraram, em sua maioria,

curiosidade e interesse.

Primeiramente, foi apresentado ao grupo o conceito de medicalização,

pretendendo problematizar a relação deste assunto com as práticas no

contexto escolar, desvelando questões e interesses que estão implicados à

racionalidade medicalizante.

Como interesses ligados à esta racionalidade, foram abordadas noções

acerca da lógica do mercado de medicamentos, a exemplo do metilfenidato; da

implantação de serviços voltados para atender as novas demandas de

doenças e de promoção a saúde; da criação de doenças relacionadas à vida

escolar, tais como o TDAH, TDA, TOD, dislexia entre outros.

Outras reflexões levantadas dizem respeito ao ideal cultural de

valorização da performance na sociedade contemporânea, que estimula a

competição e o consumismo, ocasionando o assujeitamento e fragilização das

relações humanas.

Por fim, com base no documento “Recomendações de práticas não

medicalizantes para profissionais e serviços de educação e saúde” (Fórum

sobre medicalização da educação e da sociedade, 2012), foram apresentadas

proposições de saberes e fazeres não medicalizantes para serem

desenvolvidos no contexto escolar.

No encerramento, foi apresentado também o vídeo “Medicalização da

Vida Escolar” produzido pelo CRP 5, que aborda de uma forma caricata,

exagerada e com humor, os processos de medicalização da vida escolar e da

sociedade.

Após as explanações teóricas sobre o assunto, foi aberto um debate, a

partir do qual os profissionais puderam expressar suas opiniões, dúvidas e

divergências. Entre as ideias apresentadas, foram ressaltadas: a proximidade

do tema com a prática, a dificuldade de lidar com os comportamentos

diferentes e a necessidade de uma rede de serviços que auxiliem na condução

de casos de alunos que apresentem dificuldades de aprendizagem.

Compareceu também entre os argumentos, um discurso em defesa da prática

docente, buscando justificar as lacunas na atuação do professor.

Observou-se que a maioria mostrou-se aberta para a discussão.

Contudo, percebeu-se também falas conservadoras, que denotam uma

resistência ao questionamento de seu trabalho.

Importante ressaltar aqui que o intuito desta roda de conversa foi

problematizar, instigar e desnaturalizar pensamentos a respeito da

medicalização e não avaliar ou criticar a prática docente desta escola. Dessa

maneira, tanto as opiniões favoráveis ou contrárias foram acolhidas ao longo

do debate.

Atividade 2: Oficina sobre o tema “A escola que queremos” realizada

com alunos de duas turmas de uma escola de ensino fundamental da rede

pública do Estado.

No dia 19 de dezembro de 2012, às 14h00, foi realizada uma atividade

lúdica de confecção de cartazes com expressão livre de desenhos e colagens

a partir da temática “A escola que queremos”. As quatro profissionais de

psicologia dividiram-se entre duas turmas para conduzir a atividade,

totalizando 32 crianças participantes.

A condução da atividade seguiu o seguinte roteiro: 1) apresentação das

psicólogas, alunos e professores; 2) apresentação da proposta de trabalho; 3)

divisão das crianças em subgrupos; 3) elaboração dos cartazes; 4)

apresentação da produção.

A receptividade e a participação dos alunos foram favoráveis ao

desenvolvimento da intervenção, por meio da qual se sentiram livres e à

vontade para produzir o material de acordo com o ritmo individual.

Observaram-se diferenças entre na produção dos subgrupos no que se

refere ao conteúdo e na forma de abordar o tema. No entanto, em todos os

trabalhos notou-se a criatividade e as opiniões refletidas nas imagens

compostas.

A partir do conteúdo dos cartazes, pode-se intuir o que os alunos

esperam da escola, bem como o que esta poderia oferecer de melhorias.

Interessante perceber o quanto as crianças possuem a noção do que a

escola deve contemplar em termos de alimentação, espaço e tempo para lazer

e aprendizagem.

Alguns desenhos expressaram imagens que podem representar as

deficiências do ambiente escolar e as relações interpessoais presentes. A

partir disso, permitiu-se pensar no quanto os alunos tem uma percepção crítica

sobre o cenário no qual estão inseridos.

De um modo geral, a proposta da oficina foi propiciar um espaço de

expressão criativa que possibilitasse aos alunos a demonstração de seus

pensamentos e sentimentos em relação à realidade escolar.

Conclusões

Partindo da ideia de que a medicalização é oriunda do processo de

transformação de questões sociais humanas em biológicas, nota-se a

importância ampliar e democratizar o debate, fazendo interlocução com

espaços não acadêmicos, compartilhando o significado da medicalização e

suas extensas implicações nos processos de socialização.

Nesse sentido, este trabalho foi uma pequena estratégia de reflexão e

produção que se contrapôs à racionalidade medicalizante e que possibilitou

um espaço de expressão para aqueles que muitas vezes não são devidamente

ouvidos.

Assim, esta ação aponta que os problemas de aprendizagem

demandam uma compreensão abrangente, que contemple dispositivos

concretos relacionados à formulação de políticas públicas, apoiando, deste

modo, ações transdisciplinares e intersetoriais.

Referências Bibliográficas

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FONSECA, Tânia M. Galli. Pensar: a que será que se destina? Diferentes

tempos de uma reflexão sobre a morte anunciada do educador. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/psoc/v16n1/v16n1a05.pdf>. Acesso em: 7 jan. 2013.

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espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da

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em: <<http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_23_p025-031_c.pdf>> .

Acesso em: 7 jan. 2013.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Caderno Não a

Medicalização. Disponível em: <http://site.cfp.org.br/publicacao/subsidios-

para-a-campanha-nao-a-medicalizacao-da-vida-medicalizacao-da-

educacao/>>. Acesso em: 7 jan. 2013.

ANEXOS

Figura 1: Roda de conversa

Figura 2: Elaboração dos cartazes

Figura 3: Apresentação da produção

Corpos que não param: o processo de medicalização escolar

Dr.ª Cláudia Rodrigues de Freitas

Resumo Este artigo busca analisar como as instituições vêm engendrando o processo de medicalização atuando de forma rizomática na sociedade. Na segunda metade do século XX se produzem dispositivos já sendo nomeados de medicalização. No século XXI a intensidade de tais dispositivos se torna mais intensos. Nas instituições escolares podemos observar este dispositivo sendo anunciado de diversas formas. A mais intensa vem sendo através do suposto Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Este é reconhecido como um dos elementos mais frequentes no processo de Medicalização escolar. Os autores que definem as lentes teóricas utilizadas neste artigo são Foucault, Moysés e Caliman. Discute-se os espaços disciplinar desencadeados, onde crianças contam, através de seus Corpos em movimento de instituições escolares e familiares, padecendo de um “transtorno de déficit atencional” às suas crianças. O olhar valorizador do fenômeno hiperatividade, incorre no grande equivoco de centrar no aspecto biológico e cerebral a constituição do sujeito em detrimento do entendimento de que esse fenômeno é produzido na relação entre as pessoas. A produção da desatenção é de responsabilidade não só da criança, mas de todos aqueles envolvidos com ela de alguma forma. Apesar da tendência à valorização da dimensão biológica, é possível identificar uma pluralidade de fatores intervenientes ao considerar o sujeito na sua complexidade e totalidade, assim como a potência do trabalho contextual e educativo. Palavras-chave: Medicalização; TDAH; Escola. Pistas iniciais

Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (Moysés, 2008, p.1)

O século XVIII se caracterizou por uma intensa ruptura paradigmática. O tão

falado Século das Luzes pedia um sujeito determinado, um sujeito da razão.

Estabeleceu-se a possibilidade de diferentes concepções de natureza, corpo, mente

e atenção. O debate filosófico sobre mente e corpo se aqueceu. A razão teria a

incumbência de controlar o corpo. “Por sua vez, a mente também deveria ser

controlada, e atenção em excesso sobre algo não deveria ser incentivada” (FREITAS,

2010, p. 2). Apenas a artistas era permitida uma atenção excessiva, quando fosse por

seus objetos de criação. A Ciência, nesse período, era uma habilidade que se

constituía para dar sustentação à construção do conhecimento “verdadeiro”. A

medicina, como nos conta Foucault (1994, p. X), teve sua “data de nascimento em

torno das últimas décadas do século XVIII”. Essas alterações pediam modificações

aos sujeitos, demandando vida ordenada, moderada, racional e prudente.

No século XIX, a objetividade científica se estabeleceu de vez e intensificaram-

se as discussões sobre a localização e as funções mentais do cérebro, definindo a

possibilidade de desenvolvimento das teorias da neurofisiologia e da psicologia

fisiológica.

De acordo com Moysés (2008, p. 141), é no século XIX “que se funda a

medicina tal qual a conhecemos na atualidade.” No final desse século há um “processo

de cerebrização da vontade da atenção” (CALIMAN, 2006, p. 34). A referida autora traz

ainda algumas reflexões desencadeadas no final desse período, as quais me parecem

ainda pertinentes, vigentes, no século XXI:

A prática diagnóstica das patologias da atenção se deparava com dois problemas: como definir os casos nos quais o distúrbio da atenção era um sintoma secundário daqueles que ele estava em primeiro plano? Como saber quando seus excessos e suas falhas ultrapassam o limite da normalidade? (ibid, p. 40).

Os dispositivos em circulação formam a ideia de normal e anormal, na qual o

conceito de norma, segundo o latim “normális”1, significa esquadro, instrumento de

medida do ângulo reto. O normal, a partir daí, se define conforme a regra, as leis

reconhecidas. O contrário seria o (a)normal2, o (ir)regular, o (pato)lógico. O normativo,

nesta perspectiva, seria o que “constitui uma norma, uma regra de ação ou de

conduta”3.

O questionamento sobre a prática diagnóstica persiste, encontrando pertinência

no século XXI. Já na última década, passou a ser reconhecida como a “década do

cérebro” (Santos, 2011; Rose, 2011; Rose, 2007a; 2007b, Caponi, 2007). Este período

articula saberes entre “genes e cérebro” tomando a biologia como o elemento mais

potente da discussão sobre “o que é ser humano” (Santos, 2012, p 5).

A escola hoje vem produzindo discursos que identificam um número expressivo

de crianças com diagnósticos variados e, endossados pelo discurso médico, estes

                                                            1 Diccionario del Lenguaje Filosófico de Paul Foulquie (1967, p. 699). 2 Opto por esta forma na intenção de marcar a negação e não a palavra em oposição. 3(ibid, p. 699) 

identificam problemas da vida contemporânea (tristeza, cansaço, agitação, etc.) a

conceitos médicos como depressão, bipolaridade, transtorno obsessivo compulsivo,

Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) entre outros. Freitas

(2011a), da visibilidade a expressões mais evidentes da epidemia do diagnóstico de

TDAH. Assim como este, muitos outros trabalhos pensam e desencadeiam pesquisa

sobre o campo (Freitas, (2010, 2011b), Caliman, (2000, 2006, 2008a, 2008b, 2010),

Abreu (2006), Itaboray (2009), De-Nardin (2007), De-Nardin e Sordi (2007) Fernández

(2012), Richter (2012) Ortega, (2010), Pereira (2010) e tantos outros. Em forma de

epidemia o discurso escolar encaminha crianças aos consultórios médicos, mas qual

a intenção?

Mas de fato como a escola vem pensando o processo de medicalização que

atravessa a sociedade e toma vulto no cotidiano da escola? Vem pensando? Pensar

a organização pedagógica a partir do diagnóstico pedagógico é um desafio ao fazer

escolar assim como pensar as singularidades desencadeadas na temporalidade e

diversidade culturais. O saber da educação face às crianças referidas por diagnósticos

variados e de forma cada vez mais frequente toma a direção da Medicalização

Escolar. Impregnando os espaços escolares a Medicalização do Aprender na escola

deve ser objeto de preocupação das discussões escolares.

O conceito de medicalização vem tomando várias vertentes e sendo estudado

por muitos pesquisadores. O que chamo aqui de medicalização toma conforto nas

indicações de Angelucci e Sousa (2010, p.9) quando referem esse processo como a

tentativa “de conferir uma aparência de problema de Saúde a questões [...] de

natureza social”. A Medicalização não é apenas o ato em si de prescrever medicação,

mas podemos pensá-la também como engrenagem, como máquina da medicina

transformando a vida em objeto.

O tema tem proliferado em diversas revistas, artigos de jornais, não apenas os

especializados, mas os de trânsito comum, com grande tiragem para uma parcela

enorme da população4. Desdobram-se eventos sobre o tema dando evidências de sua

relevância.

Escavando este terreno, buscamos pistas de como a educação lida com os

sujeitos referidos ou acolhidos através de discursos oriundos da área médica e, ainda,

                                                            4 O trabalho de Ynayah Souza de Araujo Teixeira, intitulado “O enfrentamento da medicalização pelo trabalho pedagógico”, de 2008, relata com mais detalhes esses dados. 

de quais recursos lança mão para tratar essa questão. A educação cria um corpus de

conhecimento ou apenas convoca o saber médico? O que os escritos acadêmicos e

científicos indicam/produzem sobre/com a escola acerca da temática

“medicalização”? Reconhecemos a necessidade de detectar os efeitos de tais

evidências no cotidiano da escola.

Complexa rede de diferentes olhares e muitos atores, dentre os quais a escola

ocupa uma posição fundamental tanto na sinalização daquilo que emerge muitas

vezes como o primeiro olhar identificador, quanto na potencial oferta de acolhimento

para o sofrimento desencadeado nos fenômenos que envolvem a atenção, sua

suposta ausência e seus efeitos.

É preciso olhar com preocupação para os rumos que vão sendo inferidos nos

últimos anos com relação ao diagnóstico e sobre os propósitos da medicação.

Caliman (2008a-2008b-2009-2010) faz referências intensidade que isso vem

acontecendo.

A cultura da medicalização reconhece sinais e sintomas, esquecendo o sujeito,

num movimento que se configura “em um biologismo extremo”. Ao olhar para a vida

infantil, reconhecemos os nomes atribuídos a esta como construções “identitárias”

com caráter homogeneizante. Observo os vários discursos sobre a medicalização se

engendrando, funcionando como promessas se cumprindo e imediatamente,

rastreando a sua trajetória, se descumprindo.

O poder médico ou o de suas instituições se constrói por meio de alguns

procedimentos, pela elaboração de determinados dispositivos, os quais os definem

como conquistas da ciência na modernidade. Existe um “espírito” sendo engendrado.

[...] “espírito” como superfície de inscrição para o poder, com a semiologia por instrumento; a submissão dos corpos pelo controle das ideias; a análise das representações como princípio, numa política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia ritual dos suplícios. O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do indivíduo e da sociedade; desenvolveu-se como uma tecnologia dos poderes sutis, eficazes e econômicos, em oposição aos gastos suntuosos do poder dos soberanos (FOUCAULT, 1992, p. 93).

Delevati (2012), em sua dissertação de mestrado, destaca algumas evidências

que corroboram o foco da medicalização, assim como a preocupação com esta

temática. A pesquisadora, ao relatar sobre os sujeitos atendidos nas salas de recursos

no Município de Gravataí, aponta um número expressivo de alunos recebendo o rótulo

de “TDAH” e com a ausência deste item nas fichas “foram registrados no Censo no

campo Deficiente Intelectual” (p. 98). Seguindo seus registros

Outras crianças com diagnóstico clínico de transtorno opositivo desafiador, transtorno de conduta, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, entre outros, foram identificadas no Censo escolar tanto no campo deficiência intelectual, quanto entre os transtornos globais de desenvolvimento. (p.103) Neste ponto encontram-se as dúvidas e diferentes ações. Principalmente em relação à deficiência intelectual. Neste aspecto encontrou-se um maior nº de distorções. Entre as mais frequentes, professores que incluem o aluno no AEE e não registram no censo ou que atendem e registram no Censo, mesmo quando as evidências apontam outras tipologias não contempladas na política (TDAH, transtorno de leitura e escrita, entre outros). (p.117)

Reconheço nas pistas deixadas por Delevati subsídios para um engajamento

intenso dos professores no processo de medicalização através de diagnósticos das

mais variadas ordens. Este processo, no entanto, não é algo pontual neste município,

mas encontra eco em outros tantos.

No Município de Porto Alegre crianças passam a frequentar a Escola Especial

a partir de diagnósticos de TDAH e Déficit de atenção como descreve Silva5:

É importante notar que alunos com comprometimentos menos graves, como aqueles que apresentam diagnóstico de hiperatividade e distúrbio de atenção, passaram a compor o público atendido pelas escolas especiais. Segundo relatos de uma professora da escola em foco, esses alunos começaram “a chegar à instituição porque se entendia que os mesmos precisavam de um momento de organização”.

Silva reconhece estes dados através dos documentos escritos e descritos nas

pastas dos alunos em uma escola Especial:

Hoje em dia, a escola recebe alunos que apresentam diferentes diagnósticos como, por exemplo:

[...] transtornos de desenvolvimento, paralisia cerebral, prematuridade, atrasos no desenvolvimento, doenças metabólicas, transtorno neuropsicomotor, deficiências múltiplas, hiperatividade e distúrbio de atenção, deficiências múltiplas, como deficiência mental associada à lesão cerebral, à deficiência física, visual e auditiva (PPP, 2012, grifo meu).

São da maior gravidade os relatos e assim como contata Silva este tipo de

situação pipoca em caráter de epidemia ao nomear as crianças pelo suposto

diagnóstico de TDAH.

As educadoras, quando relatam estas “formas de nomear”, já estão contando

de um esquadro, de formas de “enquadrar” todos estes sujeitos em diagnósticos, em

                                                            5 Dissertação de Mestrado de Edson Silva, UFRGS, 2013. 

patologias, oferecendo os subsídios, permitindo, de fato, tomarem existência. É como

se reeditassem permanentemente um espaço esquadrinhado na sala de aula ou no

âmbito escolar para deixar de fora os que se mostram “diferente”.

O que eu procuro não são as relações que seriam secretas escondidas, mais silenciosas ou mais profundas do que a consciência dos homens. Tento, ao contrário, definir relações que estão na própria superfície dos discursos: tento tornar visível que só é invisível por estar muito na superfície das coisas. (FOUCAULT, 2008, p. 146).

Epílogo

Reconheço os discursos como práticas descontínuas que podem tanto se cruzar

como eventualmente se ignorar ou se excluir. O diagnóstico pode ser referido por

vários ‘núcleos produtores’, como família, escola, médico. No entanto, reconheço o

diagnóstico em sua formação inicial, é de “oferecido pela escola”. Há indícios que

permitem dizer: o diagnóstico conta com a aprovação e o incentivo médico.

O olhar valorizador do fenômeno hiperatividade, segundo meu entendimento,

incorre no grande equivoco de centrar no aspecto biológico e cerebral a constituição

do sujeito em detrimento do entendimento de que esse fenômeno é produzido na

relação entre as pessoas. A produção da desatenção é de responsabilidade não só

da criança, mas de todos aqueles - envolvidos com ela de alguma forma.

Apesar da tendência à valorização da dimensão biológica, constitutiva no

entendimento e na atenção às manifestações da hiperatividade, é possível identificar

uma pluralidade de fatores intervenientes na constituição dos Corpos Que Não Param,

nos indicando a necessidade de considerar o sujeito na sua complexidade e

totalidade, assim como a potência do trabalho contextual e educativo.

Muitas vezes o diagnóstico de TDAH se realiza a partir de uma série de

indicadores fixos e isolados, sem analisar sua dinâmica, sua origem, a singularidade

do sujeito imerso em seu contexto.

Vejo na prática, que a regra é ministrar a medicação sem maiores informações

ou preocupações com exames preliminares. Às vezes, nem ao menos se escuta a

palavra da criança. Escuta-se a mãe ou uma “cartinha da professora/orientadora” da

escola com preocupações veementes sobre o comportamento da criança. Geralmente

as queixas são trazidas a partir de comportamentos nos quais o “corpo não para”;

junto a ele, eu reconheço crianças que sintomatizam no corpo o que não conseguem

dizer com palavras ou, quando estas são pronunciadas, não fazem eco na escuta do

professor ou da família.

Na escola, muitas vezes se percebe a criança como o único ator no processo

de aprender. Quando não “conseguem” suportar a atenção nos conteúdos escolares,

imediatamente são reconhecidas como tendo algum problema. Vivemos em uma

época na qual adultos encontram-se em crise. A criança faz parte de uma história e

um contexto marcados pelas suas relações, principalmente na família e na escola, e

estas, por sua vez, na sociedade onde estão inseridas.

Proponho aqui o diagnóstico como a invenção de sentidos para cada sujeito,

cada criança, onde a dúvida seja elemento constante e proponha fissuras ao olhar. É

preciso perceber a criança como um sujeito em processo de estruturação, em

crescimento, no qual os conflitos são fundantes e fazem parte de um complexo amplo,

não podendo ser reduzido a aspectos negativos que lhe imputem rapidamente uma

estrutura de TDAH.

Reconheço crianças falando através de Corpos que não param, de uma

sociedade, de instituições escolares e familiares padecendo de um “transtorno de

déficit atencional” (Gonçalves, 2001, p. 209) às suas crianças. Não seria necessário

atendê-los, ao invés de medicá-los?

A produção da desatenção é de responsabilidade não só da criança, mas de

todos aqueles envolvidos com ela de alguma forma. Apesar da tendência à

valorização da dimensão biológica, é possível identificar uma pluralidade de fatores

intervenientes ao considerar o sujeito na sua complexidade e totalidade, assim como

a potência do trabalho contextual e educativo.

Referências

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CURRÍCULO E MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: UMA

ARTICULAÇÃO NECESSÁRIA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES?

Poliana C. A. Guilouski - UEPG

Marcelo Ubiali Ferracioli - UEPG

Palavras-chave: Medicalização. Fracasso escolar. Formação de professores.

Dificuldades de aprendizagem.

Quadro Conceitual

A proposta de formação docente deve considerar, em primazia, a capacidade

de leitura crítica do sistema educacional e cabe ao projeto político pedagógico do

curso traduzir e interpretar os desafios do contexto profissional (TOLENTINO, 2011).

Todavia, hoje comumente na leitura do fracasso escolar desprezam-se as análises

das políticas públicas e suas responsabilidades perante o atual modelo educacional,

enfocando-se em ações imediatistas e individualistas, entre elas, a medicalização.

Medicalizar o fracasso escolar é reduzi-lo à consequência de disfunções biológicas,

culpando unicamente o indivíduo como o responsável pelo não aprender,

desconsiderando a análise das relações sociais e educacionais (COLLARES E

MOYSES, 1985).

O presente trabalho ainda em andamento é parte do Trabalho de Conclusão de

Disciplina (TCD) do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade

Estadual de Ponta Grossa. É uma atividade de pesquisa da disciplina de Laboratório

de Ensino, ofertada em todos os anos da graduação, caracterizada como componente

curricular de prática escolar, obrigatório pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para

Formação de Professores da Educação Básica – documentos oficiais norteadores da

construção curricular. Cabe a esta disciplina articular e inter-relacionar os

conhecimentos específicos de Biologia com a prática escolar, desenvolvendo

habilidades e competências relativas ao trabalho docente, mediante ação-reflexão-

ação na prática educativa (PPC, 2009).

O trabalho de conclusão desta disciplina deve constituir-se de uma atividade

acadêmica de organização e sistematização do conhecimento sobre um objeto de

estudo pertinente à profissão de Licenciado em Ciências Biológicas, visando contribuir

para o ensino de Ciências e Biologia (UEPG, 2009). A escolha do tema medicalização

da educação para objeto de estudo do TDC, parte de questionamentos surgidos

durante a disciplina de Estágio Curricular Supervisionado no qual, com o contato direto

e continuo com o ambiente escolar, observou-se a aclamação naturalizada de

professores por intervenções medicamentosas para concretização do seu trabalho,

sem ao menos uma reflexão pedagógica fundamentada e crítica.

Equivocadamente, o espaço escolar tornou-se um determinante importante

para o diagnóstico massivo e precário de transtornos de aprendizagem e geralmente

é também onde ocorrem as primeiras intervenções a respeito. O processo pedagógico

que deveria ser o objeto de reflexão e mudança fica mascarado, ocultado pelo

diagnosticar e tratar singularizados (COLLARES e MOYSES, 1994) “[...] e o fim do

processo é a culpabilização da vítima e a persistência de um sistema educacional

perverso, com alta eficiência ideológica.” (p.30, 1994). Ao afastar a responsabilidade

da própria ação pedagógica, da escola e das políticas públicas, educadores

contribuem inconscientemente com o fenômeno da medicalização.

A educação é a apropriação dos conhecimentos acumulados pela humanidade

historicamente e é, também, historicamente homogeneizada e elitista. E este modelo

hegemônico da prática pedagógica, preconiza novos comportamentos e reprime

outras manifestações: [...] “grande contingente de indivíduos, particularmente

composto por aqueles que não conseguem atender as exigências da escola, e/ou que

não conseguem se manter no sistema produtivo, passam a ser considerados também

“deficientes” (CARVALHO e MARTINS, 2011, p. 22).

A história das explicações do fracasso escolar tem demonstrado a relação entre

o discurso científico que explica o fenômeno e a ideologia dominante, de acordo com

a qual só obtêm sucesso os mais aptos, os mais capazes, culpando os alunos pobres

e suas famílias, justificando assim a desigualdade social e ignorando os determinantes

escolares e políticos das dificuldades de escolarização (PATTO, 1990). O

neoliberalismo prega o individualismo e a naturalização da exclusão social

considerando-a como sacrifício inevitável para o processo de modernização e

globalização da sociedade (LIBÂNEO, 2010), em defesa aos interesses dominantes:

a contradição do capitalismo atravessa também a questão relativa ao

conhecimento: se essa sociedade é baseada na propriedade privada dos

meios de produção e se a ciência, como conhecimento, é um meio de

produção, deveria ser propriedade privada da classe dominante [...]Desse

modo, a sociedade capitalista desenvolveu mecanismos através dos quais

procura expropriar o conhecimento dos trabalhadores e sistematizar, elaborar

esses conhecimentos, e devolvê-los na forma parcelada. (SAVIANI, 2003, p.

137)

O reflexo desse mecanismo está em alunos desmotivados, recusantes,

desinteressados e apáticos em relação ao processo de ensino-aprendizagem, e estes

que se desviam do padrão considerado normal e fogem as regras hegemônicas de

controle são considerados problemáticos, portadores de algum suposto transtorno ou

distúrbio de aprendizagem. A escola tem uma forma disciplinar subjacente a uma

perspectiva educativa, um modo massificante e organicista de ver o educando que,

apartado de suas condições culturais e sociais, são analisados de forma superficial e

ambígua (LUENGO, 2008).

Concomitante, temos uma formação de professores que possui uma concepção

de educação distorcida, privilegiando a teoria em seus currículos em detrimento a

prática, afastando o futuro professor do pensamento crítico e reflexivo da realidade

educacional, pois não oferece subsídios para o exercício competente da práxis. Por

conseguinte, reduz a visão das verdadeiras causas do fracasso educacional, e assim

mantemos o sistema produtivista, onde a instituição escolar é apenas mais uma

ferramenta de controle social: a reprodução das contradições do sistema econômico

vigente.

Eidt e Tuleski (2009, p. 225) afirmam que

quando se entende que o homem apenas se humaniza em sociedade ou, dito

de outra forma, que esse processo de humanização se da a partir da inserção

da criança em seu meio histórico e cultural através das apropriações das

objetivações produzidas historicamente pela humanidade, dependendo mais

destas do que propriamente de sua herança genética para desenvolver-se,

os fenômenos caracterizados como transtornos na atualidade pode ser

reconfigurado.

O processo educativo se produz de forma deliberada e intencional, em cada

individuo singular, através de relações pedagógicas adequadas para atingir seus

objetivos, no qual cabe ao professor a mediar o saber natural ao saber sistematizado

(SAVIANI, 2000). E as funções psíquicas humanas, como a linguagem oral,

pensamento, memória, controle da conduta, escrita, cálculo “são funções psicológicas

desenvolvidas ao longo do processo de escolarização da criança e em sua atividade,

e dependem da qualidade dos mediadores culturais ofertados [...]” (EIDT e TULESKI,

2010, p. 240), os professores.

Assim, o intuito deste trabalho é verificar como as questões do fracasso escolar

e da medicalização da educação compõem o Projeto Pedagógico do Curso de

Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa

(UEPG) e como são trabalhadas no cotidiano da formação dos acadêmicos, com a

finalidade de problematizar, frente à realidade do cotidiano escolar, a forma como o

tema integra as preocupações pedagógicas de professores da formação inicial, de

acadêmicos e de professores egressos desta instituição atuantes na Educação

Básica.

Ao concluir este trabalho integralmente, encaminharemos os resultados da

pesquisa para o Colegiado do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da

Universidade Estadual de Ponta Grossa, como uma forma de contribuir para o

processo em andamento da reformulação do Projeto Pedagógico do Curso. Visamos

a geração da discussão sobre o tema da medicalização da educação na formação

inicial de professores, buscando comprovar a necessidade de sua fundamentação no

curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, a fim de diminuir os encaminhamentos

médicos, por meio de subsídios para intervenções didáticas diferenciadas.

Metodologia

Caracterizamos a presente pesquisa como qualitativa do tipo exploratório

descritiva, devido contar com dados documentais e de campo ao avaliar documentos

e realizar questionários a fim de identificar as considerações dos pesquisados. Para

Gil (1991) a pesquisa exploratória procura maior entendimento do problema a fim de

torna-lo mais explicito e a descritiva visa descrever características de um determinado

fenômeno e o estabelecimento das relações entre suas variáveis.

Tomamos como fonte de dados documentais o Projeto Pedagógico do Curso

(PPC) de Licenciatura em Ciências Biológicas da UEPG currículos 1(1996), 2 (2004)

e 3 (2008), e os programas das disciplinas pedagógicas: Fundamentos da Educação,

Psicologia da Educação, Didática, Estrutura e Funcionamento da Educação Básica.

Integrará a análise também a disciplina de Laboratório de Ensino em Ciências e

Biologia I, II, III e IV, as quais não são consideradas disciplinas pedagógicas, mas

disciplinas articuladoras entre os conteúdos específicos da Biologia e a prática

docente e Estágio Curricular Supervisionado I e II, a elas atribuídas a responsabilidade

da inserção crítica do licenciando no contexto educacional e desenvolver habilidades

de elaborar atividades de ensino levando em conta a multidimensionalidade da ação

educativa.

Ao realizar a análise, buscaremos aspectos onde questões que permeiam o

fenômeno da medicalização da educação possam estar integradas, considerando

também para o currículo oculto. Pois segundo Moreira (2005) a analise de um currículo

de ensino superior, deve superar verificações simplistas de suas disciplinas e carga-

horária e buscar a articulação entre os aspectos epistemológicos, pedagógicos e

aspectos políticos para compreender as disputas e interesses que caracterizam o

processo de produção do conhecimento na universidade.

Os dados de campo serão coletados ao longo da pesquisa, a partir de

questionários semiestruturados. Serão indagados os professores egressos do curso

de Licenciatura em Ciências Biológicas da UEPG que atuem no mínimo há quatro

anos nas séries finais do Ensino Fundamental e Médio em colégios de Ponta Grossa

– PR, da rede pública e privada de ensino. Procuramos distribuí-los entre regiões

socioeconômicas distintas.

Os questionários serão aplicados também aos acadêmicos do primeiro ao quarto

ano do curso e aos professores das disciplinas pedagógicas, Estágio Curricular

Supervisionado I e II, e Laboratório de Ensino em Ciências e Biologia I, II, III e IV, pois

a elas são atribuídas o desenvolvimento das habilidades didático-metodológicas

necessárias para o exercício da profissão. De tal modo, pretendemos discutir a

percepção dos educadores em função na rede pública de ensino com a dos

acadêmicos e professores do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas frente à

relação entre o fracasso escolar e o diagnóstico de transtornos no processo de

aprendizagem, em especial o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH), com a finalidade de contrapor a formação inicial proporcionada e as

necessidades da realidade escolar no âmbito da medicalização.

Tratando-se de uma pesquisa que envolve sujeitos, o projeto foi submetido à

Comissão de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de

Ponta Grossa. Cada participante foi devidamente esclarecido sobre os objetivos da

pesquisa e assinou o Termo de Consentimento de Livre e Esclarecido (TCLE),

declarando sua livre participação e permanecia na mesma.

Pautaremos as discussões na literatura existente sobre os temas do fracasso

escolar e da medicalização da educação como fenômenos que interferem no trabalho

pedagógico do professor, identificando quais são os pressupostos que justificam a

medicalização e quais são os fenômenos médicos que estão mais comumente

relacionados a ela. Nossas discussões serão baseadas na Psicologia Histórico-

Cultural, a partir do “principio fundamental dessa psicologia, em que o homem não

nasce humano, mas se humaniza na medida em que se insere no mundo da cultura”

(EIDT e FERRACIOLI, 2007, p. 106).

Resultados

Como já aludido, esta pesquisa encontra-se em processo de construção. No

momento encontramo-nos na fase de aplicação dos questionários e dispomos,

parcialmente, de dados documentais levantados a partir dos Projetos Pedagógicos do

Curso (PPC’s) e empíricos.

Na prévia análise dos Projetos Pedagógicos do Curso de 1996, 2004 e 2008

percebe-se que a formação de professores da instituição investigada é anacrônica ao

cenário social atual. O currículo I, de 1996 segue as premissas da formação de

professores da década de trinta, na qual as disciplinas pedagógicas eram

consideradas como complementos das disciplinas de conteúdos específicos

(TOLENTINO, 2011).

Em 2003, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) fez novas exigências para

a formação de professores, suscitando a elaboração de um novo currículo: o currículo

II, de 2004. Para atender a esta nova regulamentação, houve um aumento

considerável da carga-horária das disciplinas pedagógicas e a criação de uma nova

disciplina como componente de prática curricular: Laboratório de Ensino em Ciências

e Biologia, presente em todos os anos de formação do curso com o objetivo de

articular os conhecimentos específicos da Biologia com a prática docente.

No entanto, não ocorreu uma mudança significativa na concepção desta

licenciatura, uma vez que o currículo “não é um elemento inocente e neutro de

transmissão do conhecimento social, [...] transmite visões sociais particulares e

interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares”

(MOREIRA; SILVA, 2005 p. 7), ficou a mercê das concepções educativas dos seus

idealizadores, que possuem uma tendência às áreas específicas da Biologia, julgando

que o domínio destas, é o bastante para atuação docente. Este aspecto também

implicado no item “Competências e Habilidade Básicas Exigidas para o Profissional”

do PPC 2008: “O licenciado em Ciências Biológicas deve estar capacitado a [...] utilizar

os conhecimentos das Ciências Biológicas para compreender e transformar o contexto

sócio-político e as relações nas quais está inserida a prática profissional” (p. 36).

Não há nos currículos o reconhecimento da Educação enquanto ciência da

profissionalização docente e como elemento imprescindível na construção da

identidade e competência profissional. A redação dos PPC’s (1996, 2004 e 2008)

insinua uma preocupação na transmissão de conhecimentos científicos específicos

da área de Biologia, para a qual basta o professor ter domínio do conhecimento

específico da disciplina que ira ensinar e poucas linhas são dedicadas à formação de

professores, à construção da identidade do profissional docente e saberes práticos

necessários à competência profissional. Este modelo de formação de professores é

caracterizado por Saviani (2009) como modelo dos conteúdos culturais-cognitivos, no

qual se considera que para a formação do professor basta a cultura geral e o domínio

específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à disciplina que

irá ensinar:

“Além da cultura geral e da formação específica na área de conhecimento correspondente, a instituição formadora deverá assegurar, de forma deliberada e sistemática por meio da organização curricular, a preparação pedagógico-didática, sem a qual não estará, em sentido próprio, formando professores.” (p.149).

A especificidade da ciência Educação está nos estudos pedagógicos, que

diferentemente das ciências humanas e naturais, que se preocupam com o

conhecimento específico dos seus fenômenos isolados (SAVIANI, 2000), “preocupa-

se com a identificação dos elementos naturais e culturais necessários à constituição

da humanidade em cada ser humano e a descoberta das formas adequadas para se

atingir esse objetivo” (p.18).

Deste modo, acreditamos que as negligências – teórica e metodológica,

enquanto curso de formação de professores – aqui apresentadas, serão verificáveis

também nas respostas dos questionários aplicados aos egressos acerca do processo

da medicalização. Já que no cotidiano escolar o professor irá se deparar com

situações múltiplas, para as quais não recebeu um aporte teórico e o domínio do

conteúdo da sua disciplina não lhe serve de nada anteriormente a outros saberes

docentes, visto que: “para existir escola não basta a existência do saber

sistematizado. É necessário viabilizar condições de transmissão e assimilação”

(SAVIANI, p.18, 2000).

Conclusões

Entendemos que para superar as práticas medicalizantes, é indispensável a

apropriação deste debate pelos profissionais que estão no chão da escola,

vivenciando seus conflitos e contradições cotidianamente. Portanto, construir a

democratização da escola através da superação da cultura elitista e excludente - que

regem nosso fazer pedagógico - e buscar um currículo multicultural que pense além

das especificidades do conhecimento biológico.

Esta ressignificação da docência requer uma formação inicial que contemple

criticamente os questionamentos sociais que permeiam o processo de ensino-

aprendizagem, ao ofertar subsídios teórico-metodológicos para que os futuros

professores confrontem sua prática com uma postura crítica da sociedade. Deve

capacita-los a organizarem e reorganizarem sua prática didático-pedagógica

cotidianamente de forma intencional e consciente, a fim de desenvolver condições de

aprendizagem, se moldando entre fragilidades e potencialidades não só em seus

planejamentos, mas em movimento dialético com a prática educacional, incorporando

aos poucos, em cada dia, a sua utopia. Não só na busca da realização da educação

ideal e significativa para a transformação da sociedade, mas para que cada um dos

seus alunos possa encontrar “um lugar na escola”.

Referências Bibliográficas

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1  

Efeitos colaterais da medicação e da medicalização no

cotidiano escolar: corpo e subjetividade

Sabrina Gasparetti Braga – Universidade de São Paulo Marilene Proença Rebelo de Souza

Quadro Conceitual

Medicalização é um processo em que problemas não médicos são definidos e

tratados como problemas médicos, comumente denominados de doenças ou

distúrbios, portanto inscrever-se-iam no corpo biológico. A crítica à medicalização

repousa fundamentalmente sobre a preocupação sociológica de como o modelo

médico descontextualiza problemas sociais e os coloca sob o controle da medicina

(Conrad, 1992).

Como nos diz Moysés (2001) “a normatização da vida tem por corolário a

transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. Aí, surgem, como

exemplos na atualidade, os distúrbios de comportamento, os distúrbios de

aprendizagem” (p.176). Certas condições ou comportamentos são percebidos por um

“olhar médico” e a partir daí médicos podem reivindicar todas as atividades

relacionadas à condição vista.

No campo da aprendizagem, o “olhar médico” além de proporcionar uma

compreensão reduzida da inteligência, comportamento e aprendizagem ao corpo

físico, de forma abstrata e a-histórica emite um diagnóstico que rotula a criança como

doente por toda a vida. O tratamento fica a cargo do próprio médico que na maioria

dos casos prescreve um medicamento, e também de outros profissionais tais como

psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, que muitas vezes dão continuidade ao

processo de medicalização.

Objetivos

Este trabalho apresenta um estudo de caso que buscou resgatar o processo de

escolarização de um estudante de ensino fundamental I com diagnóstico de Dislexia

e Transtorno Déficit de Atenção Hiperatividade. A presente discussão será centrada

no processo de medicalização sofrido e nos possíveis efeitos colaterais nocivos da

medicação, a curto e em longo prazo relatados pela criança.

2  

Metodologia

Foram realizadas entrevistas com Vinicius1, sua mãe, suas professoras e com

a coordenadora pedagógica da escola. Buscou-se a partir da versão de cada um dos

participantes o acesso e compreensão da história de escolarização da criança.

Resultados

Vinicius estudou a 1ª e 2ª séries com a professora Nanci. Repetiu a 2ª série e

estudou a 3ª com professoras que não conseguimos contatar. A 4ª série cursou com

a professora Fátima, e à época da pesquisa estava refazendo a 4ª série com a

professora Maria.

Luciana, a mãe de Vinicius, relata que quando ele estava com oito anos iniciou

o acompanhamento com um médico neurologista que diagnosticou hiperatividade,

prescrevendo medicação. No final do mesmo ano a criança foi atendida em uma

instituição especializada em dislexia que realizou uma avaliação com resultado de

“quadro de risco para dislexia” e “suspeita de Transtorno Déficit de Atenção”. Embora

as conclusões do laudo sejam apenas “suspeitas” tanto a criança, quanto sua mãe e

o próprio neurologista que acompanhava o caso atuavam como se o diagnóstico fosse

conclusivo para dislexia e TDA.

O laudo diagnóstico realizado pela associação especializada em dislexia foi

concluído por duas profissionais: uma psicóloga e uma fonoaudióloga, por meio da

aplicação de testes padronizados. O diagnóstico de TDAH (transtorno déficit de

atenção/hiperatividade) foi realizado pelo médico por meio de entrevista com a mãe

sobre o comportamento da criança.

Vinicius toma medicação desde que foi diagnosticado como hiperativo em

2006, aos oito anos. Quando realizamos a pesquisa ele estava com doze anos de

idade. Iniciou tomando Ritalina2, primeira medicação prescrita pelo médico.

Atualmente, toma uma medicação manipulada. Converso com a mãe sobre a

possibilidade de saber quais eram os componentes da fórmula, Luciana diz que irá

verificar e eu poderia a contatar no trabalho para tomar nota. No entanto, todas as

                                                            1 Todos os nomes citados neste texto são fictícios. 2 Ritalina (metilfenidato) é uma droga estimulante do sistema nervoso central. “Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central.” (Transcrição literal da Bula, Novartis)

3  

vezes que liguei, ela disse não estar com a receita em mãos. Nas últimas vezes que

conversamos, ela conta que o remédio havia terminado, e a embalagem com o rótulo

e as informações sobre a fórmula jogadas no lixo. Para obter uma nova receita, iria

marcar uma consulta com o médico. Após esta data, não foi mais possível contatar a

mãe. Sobre a medicação Luciana diz que seria para o filho “acalmar, ficar mais

tranquilo, pois dislexia e TDAH não têm cura”, e que o médico aumenta a dose quando

Vinicius precisa dormir melhor. Ela também relata que Vinicius não gosta de tomar a

medicação.

Maria, a professora da quarta série, diz que Vinicius está tomando dois

remédios e que um seria “Ritalina”. No entanto, a mãe havia relatado que o filho deixou

de tomar esta medicação passando a tomar uma fórmula manipulada, além da

medicação para enxaqueca. Há um desencontro de informações que não pôde ser

verificado.

Em 1980, foi publicada no livro de Tarnapol (1980) a ata de uma mesa-redonda

sobre medicamentos. O objetivo da mesa, de acordo com a autora, era reunir médicos

e psicólogos experientes no trabalho com crianças que apresentam problemas de

aprendizagem para partilhar condutas em relação à prescrição de medicamentos. Ao

longo dos relatos percebe-se não ser uma discussão baseada em pesquisas

científicas previamente formuladas e com metodologia definidas para a prescrição das

drogas, mas sim relatos de casos clínicos individuais do tipo:

Quanto a drogas específicas, minha preferência pessoal é pelas anfetaminas, embora o metilfenidato (Ritalin®) seja provavelmente a droga mais suave. As anfetaminas são mais baratas; seu efeito mais duradouro, com preparações de liberação lenta, permite que se administre uma única dose pela manhã. Assim, a medicação se torna rotina e chama menos atenção [...] tomar o remédio é um assunto particular da criança (Clements et al., 1980, p.109)

Ou ainda: “o ‘Ritalin’ tem uma probabilidade muito maior de ser eliminado até a

tarde e por causa disso, apesar de meus preconceitos, às vezes receito algumas

doses também durante o dia”. (Clements et al., 1980, p.114). Freeman (1966 citado

por Denhoff &Tarnapol, 1980), com uma revisão dos trabalhos sobre drogas e

aprendizagem em crianças publicados 30 anos antes, já alertava para a falta de

controle científico no uso de drogas

quem ler a grande quantidade de trabalhos preliminares sem controle e positivos e depois fizer um levantamento sobre a situação da maioria dessas drogas vários anos

4  

mais tarde, ficará totalmente convencido de que o uso “científico” e “objetivo” desses agentes ainda está muito longe. Descobrirá que talvez a maioria das drogas que, de início foram consideradas isentas de efeitos colaterais, se revelou como causadora de graves efeitos secundários e que uma boa proporção delas foi proibida por ser perigosa... (p.204)

No livro, fica evidente a posição reducionista dos autores em relação à

linguagem e aprendizagem que é assim definida: “a linguagem e a aprendizagem são

fenômenos biológicos, o resultado de processos anatômicos, fisiológicos e

bioquímicos que ocorrem no sistema nervoso central.” (Denhoff & Tarnapol, 1980,

p.167). Esta visão acaba por reduzir a linguagem e a aprendizagem a processos

resultantes de um substrato neurobiológico, afastando-se do processo interacional e

intersubjetivo que é espaço de constituição dos sujeitos e da própria linguagem.

Em outro momento, autores concluem que é necessário desenvolver atenção

da criança, pois este é um requisito básico para aprendizagem e para tanto

as principais abordagens para ajudar as crianças são a medicação, modificação de comportamento e aconselhamento psicoterápico. Em certas crianças, a escolha adequada da medicação controlará a hiperatividade e aumentará a capacidade de atenção e, assim, economizará muitos meses de trabalho intenso para a criança e o terapeuta. (Denhoff, & Tarnapol, L., 1980, p.101)

Diferentemente do postulado pelos autores que definem linguagem e

aprendizagem como um fenômeno biológico, acreditamos que as diversas funções

psicológicas desenvolvidas pelo homem foram construídas em um processo histórico-

social, e que depende de mediações e condições culturais apropriadas. Tais

concepções, apesar de terem sido publicadas em 1980 vigoram até os dias atuais,

mais de duas décadas depois, à revelia de todas as pesquisas críticas que têm sido

realizadas em direção oposta por considerarem a especificidade do objeto estudado:

o ser humano e suas construções sociais. (Coles, 1987; Souza, 1996, Moysés e

Collares, 1992; Moysés, 2010; Werner Junior, 1997).

A título de exemplo e para análise do caso aqui estudado utilizaremos uma

pesquisa recente de Pastura e Mattos (2004) com o objetivo de revisar os principais

efeitos colaterais do metilfenidato, em curto e longo prazo, no tratamento de crianças

com TDAH. Dentre os efeitos colaterais em curto prazo encontrados estão a redução

de apetite, insônia, cefaleia e dor abdominal. Dentre os efeitos em longo prazo estão

alterações de pressão arterial e frequência cardíaca, diminuição da estatura e abuso

5  

e dependência que tentam ser amenizados com os termos “possível”, “discreta” e

“raramente”. Mesmo com estas descrições o autor conclui que

o metilfenidato pode ser considerado medicação clinicamente segura no tratamento do TDAH, apresentando um perfil bastante satisfatório de efeitos colaterais. Aqueles ocorrendo em curto prazo são de pequena gravidade, autolimitados, dose-dependentes e facilmente contornáveis pelo médico. Embora menos estudados, os efeitos colaterais em longo prazo não são considerados como clinicamente graves, à exceção da dependência, fenômeno apenas muito raramente observado. (Pastura e Mattos, 2004, p.103).

A seguir alguns trechos da entrevista em que Vinicius conta sobre a medicação

que toma para hiperatividade, déficit de atenção e dislexia. Quais são os efeitos de

ingerir a medicação? E de não tomá-la?

Pesquisadora – Então é isso... e você está tomando remédio? Vinicius – Tô. Pesquisadora – Qual você está tomando? Vinicius – Eu não lembro agora. Pesquisadora – E como você se sente tomando o remédio? Vinicius – Eu tenho um pra dor na perna, quando eu corro, to com dor, aí dói a perna, e tem o da dislexia. Pesquisadora – E como você se sente quando toma esse remédio? Vinicius - É, durmo…eu só tomo a noite. Só tomar, daqui cinco minutos já estou dormindo, já. Pesquisadora – Ah, você toma e dorme rapidinho. E você tem dor de cabeça? Vinicius – Tenho. Enxaqueca. Pesquisadora – E quando você costuma ter? Vinicius – É, às vezes quando eu me sinto mal, e aí eu fico com dor de cabeça, e quando eu choro demais. Pesquisadora – Quando chora? Vinicius – É, dói a cabeça, quando eu fico nervoso fico com dor de cabeça, um monte de coisa. Pesquisadora – É mais quando você fica nervoso ou quando chora? Mas assim, toda semana você tem dor de cabeça? Vinicius – Não, é mais uma vez no dia… Pesquisadora – Uma vez? Vinicius – No dia. Pesquisadora – Todo dia? Vinicius – Não, um dia sim um dia não que eu tenho. Pesquisadora – Hoje você teve? Vinicius – Não. Pesquisadora – Ontem você teve? Vinicius – Ontem eu tive. Pesquisadora – ... e você já ficou algum dia sem tomar o remédio? Vinicius – Já, e eu não conseguia dormir, é ruim.

O estudo de Pastura e Mattos (2004) relata a cefaleia como um dos efeitos

colaterais em curto prazo, que para o autor é um efeito de pequena gravidade.

6  

Pergunta-se: como vive uma criança que tem dor de cabeça dia sim, dia não? Quem

define qual a “gravidade” do efeito colateral? Como foram realizados os estudos que

concluem que a cefaleia não traz consequências significativamente graves e sofríveis

para a vida diária de uma pessoa? Este seria um efeito em curto prazo? Vinicius toma

medicação há quatro anos, e sofre com dores de cabeça por todo este tempo.

A criança também relata dependência do medicamento para dormir.

Pesquisadora - Sua mãe me falou que acabou o remédio. E você fica sem tomar... Vinicius – É, aí tem que comprar... Pesquisadora – E aí? Como você faz? Vinicius – Ah, eu tento dormir, pego o travesseiro, deito e fecho os olhos. Pesquisadora – Mas aí você dorme normal? Vinicius – É. Pesquisadora – Então com o remédio você fica do mesmo jeito que sem o remédio? Vinicius – Não, com o remédio eu durmo rapidinho, rápido, acordo tarde, melhor com o remédio. Pesquisadora – Sem o remédio você dorme.. Vinicius – Durmo, acordo uma duas horas da manhã.. Pesquisadora – E depois? Vinicius – Não durmo mais. Pesquisadora – E você fica fazendo o que? Vinicius – Nada, não fico fazendo nada, fico mexendo no celular. Pesquisadora – O que tem no celular, joguinho? Vinicius – É...eu não consigo dormir de vez em quando. Pesquisadora – Sem o remédio? Vinicius – Sem o remédio. Com o remédio eu deito na cama, do nada eu já estou dormindo, não dá cinco minutos minha mãe falou que eu já estou dormindo. Pesquisadora – E no outro dia. Vinicius - No outro dia eu não estou com sono. Pesquisadora – E sem o remédio o que mais que muda? Vinicius – Só o sono...senão eu fico cansado, já não durmo, as pernas doem...tem uma perna que o doutor falou, é essa perna aqui, dói aqui, porque... por causa do remédio, porque eu fico andando muito, dói, eu jogo bola dói. Pesquisadora – Por causa do remédio dói sua perna? Vinicius – É, porque eu não tomo o meu remédio.

Insônia também é um efeito colateral do uso do medicamento (Pastura e

Mattos, 2004). No caso de Vinícius a insônia surge porque há uma dependência do

medicamento para dormir adquirida nestes quatro anos de uso contínuo de

medicação. Os autores dizem que embora menos estudados, os efeitos colaterais em

longo prazo não são considerados como clinicamente graves, à exceção da

dependência, fenômeno apenas muito raramente observado (Pastura e Mattos, 2004,

p.103). Novamente, quem define a gravidade do efeito colateral? Se os efeitos em

longo prazo são menos estudados, como se conclui que são “menos graves”? Mesmo

7  

que seja muito raramente observado o fenômeno da dependência, ainda sim se está

lidando com vidas, e portanto deve haver maior critério para afirmações deste teor.

Além disso, existem outras dores relatadas pela criança que podem estar

relacionadas ao uso prolongado de medicação. Lembramos que dentre os efeitos de

longo prazo citados por Pastura e Mattos (2004) estão alterações de pressão arterial

e frequência cardíaca.

Pesquisadora – A Eliza falou que outro dia você estava com dor no coração, é isso? Vinicius – Do nada, eu estava jogando bola, aí, sai, e estava...e do nada eu cai no chão e começou a doer, começou a doer aí deu choque nas pernas, doeu tudo. Pesquisadora – Doeu tudo... Vinicius – Aí fui fazendo uma massagem e parou. Pesquisadora – Você falou pra sua mãe? Vinicius – Falei, ela me levou no médico e era só uma dorzinha mesmo. Falou, que era pra ir passando a mão, até melhorar.

A história de Vinicius relatada acima parece contrariar outras conclusões de

pesquisadores que dizem “os efeitos cardiovasculares do metilfenidato são pontuais

e transitórios” (Pastura e Mattos, 2004, p.103), pois em outros momentos Vinicius

relata ter sentido palpitações e dores no coração.

A coordenadora pedagógica relata sobre as queixas constantes de Vinicius

dizendo que ele procura sempre uma dor para “ser o centro das atenções”, “ele está

sempre com uma dor em algum lugar”. Como Vinicius sofre com doenças inexistentes

– dislexia e TDAH – talvez precise sentir no corpo que algo acontece com ele. Afinal,

de acordo com a professora Maria, ele tem sim dificuldades, mas a sala toda tem, ele

nem sempre presta atenção ao que ela espera, e da mesma forma outras crianças da

sala assim também o fazem, mas Vinicius teria algum distúrbio. Seria este distúrbio

representado nas queixas de dores constantes? Às vezes reais, causadas pelo uso

de medicamentos. Mas há possibilidade de que por vezes seja para manter viva a

crença dos adultos à sua volta no distúrbio que diagnosticaram, o processo de

medicalização se concretizando... dores no cotovelo, no braço, no pé, na perna...

Enquanto a cabeça de alguns pesquisadores e profissionais de saúde não pensa no

peso dos diagnósticos dados e medicamentos prescritos, o corpo das crianças

padece.

8  

Conclusões

Vinicius, desde que foi diagnosticado sofre os efeitos da medicação e de uma

doença que não parece mesmo existir. Se ele escreve e se comporta como outras

crianças (como nos conta a professora Maria), porque seria ele doente? Diversos

efeitos colaterais nocivos do metilfenidato, principal medicamento utilizado para

crianças supostamente portadoras de TDAH, são relatados na literatura, mas parecem

desconsiderados por alguns profissionais que o receitam. Redução de apetite, insônia,

cefaleia e dor abdominal; alterações de pressão arterial e frequência cardíaca,

diminuição da estatura e abuso e dependência. (Patsura & Mattos, 2004)

Vinicius relata sobre suas dores constantes, sua última crise de dor no coração,

paralização das pernas, da necessidade da medicação e de médicos. Vinicius diz que

dói o joelho, dói o tornozelo, “dói a cabeça, um monte de coisa”. Foram muitos

diagnósticos, são muitas medicações (primeiro metilfenidato, agora uma fórmula

manipulada e uma medicação para enxaqueca) durante longo período. O processo de

subjetivação desta criança é marcado pela doença. Foram muitas vozes que

convergiam em coro a favor da doença, e outras valiosas que disseram sobre sua

capacidade e o ajudaram, como ele mesmo diz “Com essa ajuda de todo mundo eu

consegui bem, né. Queria ficar, queria ser igual meus amigos, aprendendo ler

direitinho”. É na interação com as pessoas à nossa volta que penetramos num

universo de valores, crenças, modos de pensar e de sentir. Ao utilizar a linguagem

como instrumento mediador da relação entre nós e os outros, possibilitamos o

desenvolvimento do pensamento e de outras funções psicológicas superiores, o que

nos distingue dos animais, e é também, pela linguagem que significamos e damos

sentidos à realidade e à nossa própria conduta. (Trautwein & Nébias, 2006)

No cotidiano escolar relatado pela criança evidenciam-se as consequências

corpóreas em decorrência da medicação, e psicológicas em decorrência de um

processo de medicalização, campo fértil para um processo de subjetivação pautado

em incapacidades e dificuldades que estabelecem limites a priori para o

desenvolvimento do sujeito.

Palavras-Chave: Medicalização – Escolarização – Subjetivação – Psicologia Escolar

Referências Bibliográficas

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EM DEFESA DA ESCOLA: O CADERNO DE OCORRÊNCIAS E

O GOVERNO DA INFÂNCIA

Célia Ratusniak – UFSC/UNC

Palavras-chave: Foucault; escola; poder; caderno de ocorrências; infância.

Este trabalho é resultado da pesquisa de mestrado em educação, defendida

em 2012, que teve como objetivo compreender a lógica disciplinar, de controle e de

governo que legitima e regulamenta o uso do caderno de ocorrências em uma escola

pública de anos iniciais. Como caminhos metodológicos, utilizei a análise de

documentos, estudo de caso e entrevista semiestruturada. Investiguei como as

práticas disciplinares, de controle e de governo se inserem nas instituições escolares,

tomando como referencial teórico o pensamento foucaultiano. Pesquisei o surgimento

da prática dos registros de comportamentos inadequados, a partir da análise de

documentos que continham decretos que recomendavam essa prática no estado do

Paraná. Também investiguei a regulamentação, o uso, a função e os efeitos dos

cadernos de ocorrências nos sujeitos pertencentes à escola pesquisada. Para tanto,

analisei os aspectos políticos e institucionais que regulamentam e normatizam o uso

do caderno de ocorrências, examinando os seguintes documentos organizadores do

trabalho pedagógico: Plano Municipal de Educação, Projeto Político-Pedagógico e

Regulamento Interno, entendidos como estratégias daquilo que Foucault denominou

biopolítica, que se utilizam de conhecimentos produzidos sobre as crianças, a didática

e a escola para governar a infância. Nestes documentos, atribuem-se funções,

estabelecem-se ideais de comportamentos e penalidades para os que não seguem

estes padrões, normalizando, normatizando, criminalizando e judicializando a

infância. Registram-se os comportamentos inadequados dos alunos e de suas

famílias, numa identificação dos riscos sociais, julga-se, ameaça-se e pune-se,

constituindo um inquérito escolar que atribui a cada falta a sua sentença.

Os Cadernos de Ocorrências

O caderno de ocorrências é um mecanismo de registro/punição de

comportamentos inadequados na escola. São inadequados porque, de alguma forma,

produzem uma tensão que pode afetar a ordem dos trabalhos na escola. Estão fora

da norma. É uma técnica que penaliza e atemoriza os alunos e seus familiares, que

produz marcações identitárias responsáveis pela discriminação, pelo preconceito,

pela punição, pela exclusão.

O registro desses comportamentos consiste em descrever a situação de conflito

na escola, denominada ocorrência ou acontecido, em cadernos de registros,

conhecidos como livro-negro, livro-preto, livro de ocorrências, livro-ata ou cadernos

de ocorrências (denominação utilizada na escola pesquisada). Os envolvidos são

questionados, podem se justificar, são aconselhados, orientados, recebem uma

punição e assinam o documento, junto ao responsável por anotá-lo. Muitas vezes, a

situação de conflito é chamada caso, denotando a inserção de práticas judiciárias e

policialescas na escola.

As instituições modernas, como a escola, organizam formas de garantir a

manutenção da ordem, criando instâncias de investigação semelhantes aos inquéritos

para apurar as ameaças a essa organização. Questionam os envolvidos, tomando

seus depoimentos, apoiando-se no exame e na confissão para produzir jogos de

verdade que objetivam1 e subjetivam2 os sujeitos (Foucault, 2003). O inquérito se

apoia na normatização, caracterizado por um sistema de saber-poder disciplinar

assumido pelas instituições, representado por seus estatutos, regimentos, contratos,

regras, normativas, leis, que na escola estão presentes nos documentos de

organização do trabalho pedagógico. Tal sistema, por ter em sua base/fundamentação

o problema da norma e seu consequente desdobramento na identificação dos desvios,

naturaliza comportamentos dos sujeitos, pois como nos aponta Foucault “O sistema

escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário. A todo

momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor,

quem é o pior (2003, p. 120)”.

                                                            1 Na objetivação, ora o sujeito assume a posição de objeto para um saber, ora o objeto assume a posição de sujeito que se produz por um saber-poder, constituindo jogos de verdade que produzem saberes que nomeiam, classificam, definem o aluno. Esses saberes constituem o campo da Pedagogia e da Psicologia. 2 Segundo Larrosa (1994, p. 55), o aluno é constituído tanto pelos saberes que o objetivam como por aqueles que o subjetivam, ou seja, pela experiência de si: “O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito, já não é analisada apenas do ponto de vista da ‘objetivação’, mas também e fundamentalmente do ponto de vista da ‘subjetivação’. Isto é, do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e medeiam certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como sujeitos falantes; não como objetos examinados, mas como sujeitos confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles devem contribuir ativamente para produzir”.

Os dados encontrados na pesquisa apontam para o uso do caderno de

ocorrências como uma prática similar ao inquérito judiciário. Sua problematização

serve de aporte para compreender como a instituição escolar estrutura e legitima seu

sistema de gratificações e sanções em benefício da manutenção de uma ordem que,

além de garantir o ensino dos conteúdos, garanta a constituição de sujeitos

pedagógicos – alunos – produzidos através dos jogos de verdade que os objetivam e

subjetivam a partir da norma. É uma prática que vem sendo reproduzida desde o

século XVI, com as recomendações nos manuais pedagógicos europeus, como o

documento jesuítico Ratio Studiorum3.

No Paraná, lócus da pesquisa, desde o século XIX existem documentos que

tratam da normatização e da normalização4 de práticas disciplinares na escola. MORO

(s.d.) analisou documentos compreendidos entre os anos de 1837 e 1903, nos quais

recomendava-se o registro de comportamentos inadequados em locais denominados

livros-negro ou livros-ata. DALCIN (s.d.) estudou o Regulamento de ordem geral para

as escolas de instrucção primária, que trazia o protocolo de punições permitido às

escolas, com a recomendação de se registrar comportamentos em livro ata.

Essas recomendações, regulamentadas por documentos oficiais, também

aparecem na escola pesquisada, em seus documentos de organização do trabalho

pedagógico - Plano Municipal de Educação, Projeto Político-Pedagógico e

Regulamento Interno. Estes documentos são construídos a partir de vários saberes:

sobre os alunos, os professores, a didática, a gestão escolar, o sistema de ensino. No

interior dessas políticas públicas se organiza o dispositivo pedagógico, no qual se

estendem as relações de poder que classificam, examinam, compõem, organizam,

nomeiam. E em todos esses documentos, existe a recomendação dos registros sobre

os comportamentos inadequados, legitimando o uso do caderno de ocorrências e

dotando-o do status de prova contra aqueles que não se enquadram na norma.

Ritual de preenchimento das ocorrências

                                                            3 Conjunto de normas criado para regulamentar o ensino nos colégios jesuíticos. Sua primeira edição, de 1599, além de sustentar a educação jesuítica, ganhou status de norma para toda a Companhia de Jesus. Tinha por finalidade ordenar as atividades, as funções e os métodos de avaliação nas escolas jesuíticas. (HISTEDBR, [s.d.]). DALLABRIDA (2005) tem um trabalho muito interessante que analisa a Ratio Studiorum numa perspectiva foucaultiana. 4 Conforme Veiga-Neto e Lopes (2006), “[...] acontece uma normalização disciplinar quando se tenta conformar as pessoas – em termos de seus gestos e ações – a um modelo geral previamente tido como a norma. Assim, é dito normal aquele que é capaz de amoldar-se ao modelo e, inversamente, o anormal é aquele que não se enquadra ao modelo”. Os autores sugerem “[...] acrescentar a palavra normatizar e suas derivadas para designar as operações de criar, estabelecer ou sistematizar as normas”. Assim, por exemplo, podemos entender que os dispositivos normatizadores são "aqueles envolvidos com o estabelecimento das normas, ao passo que os normalizadores [são] aqueles que buscam colocar (todos) sob uma norma já estabelecida e, no limite, sob a faixa de normalidade (já definida por essa norma)".

Existe uma espécie de ritual que acompanha os registros dos comportamentos

inadequados. Começa quando um aluno é delatado por estar fazendo algo errado. Ele

é posto sentado em um banco do refeitório e deve esperar que a diretora ou a

supervisora o chame para conversar sobre o que aconteceu e se justificar. Às vezes,

é chamado à sala da direção. Dependendo do tipo de coisa errada que fez e da análise

conjuntural que as profissionais fazem da situação, esse fato é descrito no caderno,

juntamente com uma justificativa ou autodefesa feita pelo acusado/citado e com as

providências que a escola tomou, devendo ser assinado por quem registrou e pelos

que foram registrados.

Às vezes, as pessoas que fazem esse registro acham mais interessante fazer

um acordo. Utiliza-se de uma suposta compreensão, compaixão e credibilidade: o

aluno não será registrado e, como é muito bonzinho, esforçado e inteligente, de agora

em diante ajudará a professora e a diretora a cuidar da escola, vindo contar tudo de

errado que ele perceber, em uma espécie de recondução. Esse convite à delação

torna o aluno também um agente da justiça, deslocando-o da posição de aluno

problema para um ajudante da vigilância, pois, na lógica da biopolítica não basta punir,

marcar, excluir, é necessário reconduzir.

Não há uma lista de transgressões que são passíveis dos registros, ignorando

o protocolo existente no Regulamento Interno da escola. Também não há publicidade

de quais são os alunos que estão no caderno. Quando se chega à sala da diretora,

deve-se contar o que aconteceu, narrar do seu ponto de vista os fatos e passar pelo

julgamento do adulto. Nesse ritual, podemos observar várias práticas judiciárias.

Primeiramente, um aluno é acusado de um comportamento inadequado, sendo

encaminhado à sala da direção. É instaurada uma espécie de inquérito (FOUCAULT,

2003), em que a diretora ou a supervisora, imbuída de sua autoridade, faz perguntas

aos envolvidos para saber o que aconteceu. Há a possibilidade de ele fazer sua

defesa, relatando suas justificativas para o acontecimento. Também há a possibilidade

de confessar. Dependendo do julgamento que a diretora ou a supervisora faz da

defesa, o aluno recebe ou não sua punição. Mas também pode haver atenuantes,

como ser a primeira ocorrência ou não ser um aluno que tem problemas de

comportamento, ou seja, sem antecedentes. Algumas vezes, fazem-se acordos,

suprimindo assim as penas. Todas essas práticas judiciárias são produtoras de

subjetividades. Cabe ressaltar que essa prática de assinar o caderno de ocorrências

é uma espécie de extração (FOUCAULT, 1988) de verdades sobre o sujeito, em uma

forma de individualizá-lo, nomeá-lo, objetivá-lo, subjetivá-lo. Nesse ritual, tanto o

sujeito produz verdades sobre si mesmo quanto verdades acerca de si são produzidas

pelo outro, constituindo a figura do aluno problema e da família problema.

A forma com que as ocorrências estão registradas atende a um padrão. Nelas,

constam sempre o dia, o nome dos envolvidos, a ocorrência e a assinatura. Muitas

vezes, também são citados quem trouxe ou encaminhou os alunos, as justificativas

do acontecido e as providências. Quase todos os registros são terminados com a

assinatura dos envolvidos. A assinatura é a comprovação da confissão do aluno, que

o leva a comprometer-se a realizar as recomendações dadas, o faz aceitar sua culpa

ou responsabilidade no ocorrido. A assinatura supostamente encerra a discussão e

coloca uma solução para o problema. Supostamente, porque muitas vezes essas

diferenças e conflitos continuam a existir, mas agora tentam solucionar-se longe dos

olhos da diretora.

Frequência dos registros:

A tabulação dos registros foi um instrumento de análise muito importante para

compreender o modo de funcionamento do caderno de ocorrências. Nela constaram

quais foram as ocorrências registradas, como surgiram, por que aconteceram, quem

são os envolvidos e que providências foram tomadas pelas pessoas que efetuaram o

registro. Muito mais que números, essa tabulação mostra o funcionamento das

práticas disciplinares, de governo e de controle que legitima e perpetua a prática de

registros de comportamentos na escola pesquisada.

O número de ocorrências diminuiu 74% de 2009 para 2010, e 27% de 2010

para 2011. Algumas hipóteses podem ser levantadas para explicar esse fenômeno. A

primeira explicação aponta para as mudanças ocorridas nos procedimentos de

registro utilizados. Segundo a profissional entrevistada, nem todos os alunos

encaminhados para a direção assinaram o caderno, pois estavam priorizando

somente acontecimentos muito graves para dar um peso maior ao caderno. Ou seja,

existem instâncias que determinam o que é muito grave e merece ser registrado, e

que também definem se é a melhor estratégia disciplinar naquela conjuntura fazer os

envolvidos assinarem o caderno. Porém, analisando os motivos dos registros de 2010

e 2011, não há uma mudança significativa nos tipos de ocorrências, ou seja, as

ocorrências não são mais ou menos graves que as do ano anterior. E nem deixam de

acontecer. O que deixa de acontecer são os registros.

Outra hipótese para a diminuição pode ser o fato dos professores procurarem

resolver os problemas ocorridos dentro da própria sala de aula, conversando com os

alunos, estabelecendo punições próprias, mediando conflitos, reprimindo, orientando,

aconselhando. Essas ações seguem a recomendação de que só sejam encaminhados

para a direção os problemas mais graves e corroboram com a capilaridade do poder,

colocando em ação vários tipos de “micropenalidades referentes ao tempo (atrasos,

ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de

zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice,

insolência).” (FOUCAULT, 2009, p. 172). Algumas vezes, os alunos que não fazem a

tarefa de casa devem ficar sentados durante o recreio na mesa de refeições, em uma

forma de exposição aos demais. Essa forma de punição por exclusão tem o objetivo

de suscitar nos demais a reprovação, fazer com que o aluno sinta vergonha e pense

no que fez. Todos que passam pelas mesas de refeição percebem os alunos sentados

mais ao extremo, perto da sala da direção. Eles são reconhecidos pelo espaço

diferenciado que ocupam, distantes dos que estão lanchando ou conversando,

sozinhos. Essa geografia dos lugares físicos e simbólicos aos corpos, essa exposição

ao olhar são formas de exercício do poder disciplinar.

Uma terceira explicação seria o fato de o caderno de ocorrências disciplinar os

alunos, servindo como mecanismo de punição efetivamente, o que os levaria a não

cometer mais o ato transgressor. A análise nos mostra que o ato de assinar o caderno

tem um efeito disciplinador com a maioria dos alunos, visto que eles aparecem

registrados apenas uma vez. Porém, ele não funciona com todos, pois os dados nos

mostram que existem alunos reincidentes. Mesmo com os profissionais da escola

sabendo que com esses alunos o registro não funciona, ele continua sendo feito. Isso

porque seu objetivo principal não são somente esses, mas os que não estão

registrados. Nesse sentido, o caderno de ocorrências se configura muito mais como

uma forma de controle dos outros alunos do que de disciplinarização dos reincidentes.

Foucault (2008), no Seminário Segurança, Território e População, discute a questão

do gerenciamento dos riscos na população e da tentativa de manutenção da

segurança em um nível aceitável. Nesse sentido, os dispositivos de segurança agem

sobre a multiplicidade com o objetivo de atingir a individualidade, utilizando-se de

estratégias que visam controlar não só a vida da população, mas também a de cada

cidadão. A análise do caderno de ocorrências mostra isso: por mais que existam dois

alunos que reincidam ano a ano nos registros, não sendo capturados e normalizados,

a existência dessa técnica disciplinar controla o comportamento de todos os outros

alunos que não estão ali ou não reincidiram, ou seja, ela ajuda a manter a ordem em

um nível ótimo que permita que os trabalhos na escola transcorram sem interrupções,

questionamentos e modificações.

Mas, com os alunos reincidentes, os efeitos disciplinadores e de controle

falham. Para Ratto (2007), eles manifestam uma dupla resistência, pois não deixam

de ter os comportamentos inadequados e nem se dobram ao efeito de serem

registrados. Eles transgridem, questionam as relações de poder que perpassam as

relações entre os sujeitos na escola, afetando a ordem, criando um movimento que

impulsiona mudanças e a invenção de novas formas de ser e de fazer. A resistência

dá visibilidade às diferenças. Ela emerge de várias formas, pois não há apenas uma

forma de resistência,

[...] Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos, em última instância: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (FOUCAULT, 1988, p. 91)

Se as relações de poder só se exercem em sujeitos livres, é essa liberdade que

os permite não se dobrar. E é essa liberdade que pode levar a escola a fugir das

amarras que lhe são impostas pelo sistema, se deslocando dos papéis atribuídos a

ela pelo Estado, desdobrando-se a partir das problematizações que se impõe. Isso

implica questionar como nos tornamos sujeitos dos discursos que fazemos, como

essas verdades são produzidas e legitimadas nas práticas pedagógicas, como esse

discurso objetiva e subjetiva o outro e a nós mesmos, produzindo pequenas linhas de

fuga que permitem a imersão das formas de resistência.

Considerações finais

As problematizações decorrentes da análise dos registros nos cadernos de

ocorrências permitiram compreender melhor como a escola opera sobre as crianças,

regulando seu tempo, afetando-as com o fim de transformá-las e moldá-las em alunos.

As instituições estatais possuem dispositivos que operam para a formação dos

sujeitos, como seres dotados de certas modalidades de experiências de si. Nesse

sentido, é na escola que a criança aprenderá a gramática específica que a adjetiva e

a constitui como aluno: aplicado, inteligente, esforçado, desinteressado, preguiçoso,

hiperativo, lento, rápido, caprichoso, desleixado, agitado, violento, indisciplinado, mal-

educado.

Quando a criança é conduzida para assinar o caderno de ocorrências, quando

questionam suas atitudes e a nomeiam, quando lhe determinam punições,

advertências, aconselhamentos, orientações, quando lhe pedem que justifique seu

comportamento, quando observam seu desempenho na sala de aula, sua conduta no

recreio, enfim, em todas as situações escolares, estão em jogo técnicas disciplinares,

de controle e de governo, utilizadas pelo dispositivo pedagógico, que buscam

constituir o sujeito aluno.

As problematizações decorrentes da análise dos dados encontrados a partir da

pesquisa foram fundamentais para que eu pudesse compreender o funcionamento e

os efeitos da prática dos registros que está sendo utilizada por mais de um século nas

escolas paranaenses. Os cadernos de ocorrências mostram como a escola tenta lidar

com o inesperado, a desordem, aquele que não segue a norma, o aluno que escapa

às técnicas de disciplinarização, em uma tentativa de captura daquele que tem

problemas de comportamento, mas muito mais em uma estratégia de controle de tudo

e de todos na escola, na busca de uma ordem escolar, mas muito mais uma ordem

social. Nesse sentido, realiza-se na escola um intenso trabalho de moralização dos

alunos, em que eles aprendem o que é certo e errado, garantindo assim a ordem na

sociedade.

O caderno de ocorrências possui registros que traduzem de maneira muito

significativa essas práticas que objetivam e subjetivam os alunos. Existe um protocolo

de ações a serem tomadas quando os alunos não respeitam as regras ali contidas,

mas que na realidade não é seguido. A indeterminação de quem merece ser registrado

torna seu efeito mais eficaz.

Em muitos registros, o acusado não explica o que aconteceu e nem se justifica.

O não falar, nessa situação, retrata o peso das relações hierárquicas e autoritárias.

Denota a impossibilidade de um discurso, de falar sobre, de manifestar as

insatisfações e os conflitos que poderiam gerar movimentos e transformações. Por

isso mesmo, o não falar também pode ser uma forma de resistência contra essas

formas de assujeitamento e de captura. Porque não se sabe o que o silêncio pensa.

O silêncio impede o adulto de colonizar as manifestações de insatisfação das crianças

e suas formas de resolução de conflitos. O silêncio também mostra a incompetência

dos adultos em estabelecer relação de confiança com as crianças. O silêncio

incomoda com sua polissemia.

Os cadernos de ocorrências contaram parte da história da escola pesquisada.

Não toda a história. Muitas coisas acontecem na escola que não têm nenhum registro

escrito. O cotidiano da escola é uma miríade de acontecimentos que envolvem várias

práticas. Práticas apoiadas em saberes instituídos e produzidos, sedimentados, que

produzem subjetividades. Práticas que nem sempre são visíveis imediatamente, que

de tão comuns costumamos ignorar, que naturalizamos como se sempre estivessem

ali, sedimentadas. Para desnaturalizarmos essas práticas, precisamos remover parte

por parte do sedimento. E, na educação, cada uma dessas partes é constituída por

saberes e poderes instituídos sobre infância, criança, escola, professores, didática,

saberes esses que permeiam os processos pelos quais a subjetividade dos alunos é

produzida.

A maneira como a maquinaria escolar funciona procura impedir os que nela

estão de perceber como o dispositivo pedagógico se estende e captura os sujeitos.

Não somente os alunos, mas professores, supervisores, diretores. Alguns executam,

alguns se submetem, mas tanto os adultos quanto as crianças estão enredados nas

relações de poder. Não sobram muitos espaços de resistência, pois a escola possui

formas de normalização tão eficazes que dificilmente não capture os novos modos de

ser e de se fazer. Aos professores é preciso ensinar, disciplinar, educar, dar um

sentido para uma escola que não consegue mais ocupar o lugar de redentora e de

propulsora da ascensão social. Aos diretores e supervisores cabe administrar uma

escola com familiares descontentes, professores descontentes, alunos descontentes.

Aos alunos cabe aprender coisas sem saber o porquê e o para quê, a perceber que

as pessoas não são iguais e que, pelo contrário, existem muitos sinais que as

distinguem, e essa distinção pode torná-las menos ou mais, dependendo da forma

como cada um é nomeado. Mas, compondo os fatos que configuram esse contexto,

existem espaços vazios cheios de significados. O desafio desta pesquisa foi fazer

emergir esses espaços, dentro da multiplicidade e a complexidade que compuseram

a prática dos registros de comportamentos inadequados nos cadernos de ocorrências,

desnaturalizando-as e descrevendo os regimes de verdades que são produzidos a

partir delas e que constituem o sujeito registrado.

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Estágio em Psicologia Escolar e Educacional: possibilidades

de ruptura com discursos e práticas que patologizam a Educação.

Vânia Aparecida Calado

Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela

Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Psicologia da Universidade

Potiguar, Campus Roberto Freire, Natal, RN.

Palavras-chave: estágio em psicologia escolar e educacional, formação

discente, medicalização da educação.

Introdução

Para Souza (2009, p. 179), a Psicologia Escolar e Educacional trata-se de uma

área de estudos e de atuação da Psicologia:

(...) que busca compreender o fenômeno educacional com produto das relações que se estabelecem no interior da escola. Escola essa atravessada pelas políticas educacionais, pela história local de sua constituição enquanto instituição e enquanto referência educacional e de aquisição de conhecimento pelos sujeitos que a constituem e nela se constituem.

A abordagem crítica em Psicologia Escolar e Educacional enfatiza a

complexidade de fatores implicados no processo educacional, pois nele encontram-

se elementos sociais, históricos, institucionais, políticos e ideológicos. Isso significa

compreender o indivíduo a partir da cultura que o envolve, de sua posição ocupada

no todo social, a partir das redes de relações e das instituições sociais das quais

participa. (PATTO, 1990).

A escola reflete as desigualdades sociais, econômicas e culturais e também as

reproduz. Segundo Abramovay e Castro (2006, p. 26):

Na escola, a exclusão se dá principalmente através do desempenho escolar, da repetência, do abandono e da evasão. Existe uma lógica perversa em que os alunos com maiores dificuldades, ao invés de serem vistos nas suas singularidades, são conduzidos a trajetórias escolares que tendem ao fracasso escolar, o qual se concretiza através do retraimento do aluno, do abandono, da evasão e da própria violência contra o sistema escolar. A experiência com o fracasso escolar mina a autoestima e pode trazer significativas consequências para a convivência escolar.

Apesar da complexidade de elementos para se compreender o que acontece

com a instituição educacional, atualmente assistimos a uma grande tendência pela

medicalização da educação. Para Moysés e Collares (2009, p. 2), a medicalização da

educação se refere a:

A medicalização da vida de crianças e adolescentes articula-se com a medicalização da educação na invenção das doenças do não-aprender. A medicina afirma que os graves – e crônicos – problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, medicina, seria capaz de resolver; cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização. A medicalização do campo educacional assumiu, e ainda assume, diversas faces no passado recente, alicerçando preconceitos racistas sobre a inferioridade dos negros e do povo brasileiro (...)

Para as autoras, esse movimento transfere para o campo médico questões

coletivas, de ordem social e política. Além disso, reduz a aspectos biológicos,

isentando de responsabilidade outras instâncias de poder. O resultado é a

individualização e a culpabilização da vítima. Recentemente esse movimento tem sido

ampliado para outros campos de conhecimento e novas áreas, como psicologia,

fonoaudiologia, enfermagem, psicopedagogia.

Para essa concepção o fracasso escolar se deve às disfunções neurológicas,

incluindo-se aqui a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os distúrbios de

aprendizagem, a dislexia. No entanto, são pretensas doenças do não aprender,

porque nunca foram comprovadas, apesar do esforço de pesquisadores e cientistas.

Todos esses elementos precarizam as relações construídas na escola,

provocam sofrimento em todos os seus atores e prejudicam a qualidade do processo

de ensino e aprendizagem.

O objetivo desse texto é descrever um relato de experiência de supervisão de

estágio em psicologia escolar e educacional e discutir as possibilidades do mesmo, a

partir da metodologia realizada, de contribuir para a formação de estudantes de

psicologia comprometidos com a construção de uma escola democrática e de

qualidade, com o aprimoramento dos processos educativos e com a ruptura de

práticas medicalizantes na instituição educacional.

Metodologia

O curso de Psicologia é oferecido numa instituição de Ensino Superior Privada

do município de Natal, Rio Grande do Norte. A matriz curricular apresenta duas

disciplinas teóricas anteriores ao estágio: Psicologia da Educação e Teorias de

Ensino-Aprendizagem. Nessas disciplinas são apresentadas a história e a relação

entre a Psicologia e a Educação, políticas públicas em educação, as teorias de

aprendizagem, estudos de caso relacionados às pretensas doenças do não aprender,

priorizando o debate crítico acerca da medicalização da educação, teorias da

abordagem crítica psicologia escolar e educacional.

Esse relato de experiência se refere ao acompanhamento de uma turma do

curso de psicologia em duas disciplinas: Teorias de Ensino-Aprendizagem e Estágio

Básico em Psicologia e Processos Educativos ministradas em 2012 e 2013. A turma

em questão havia estudado apenas a história entre Psicologia e Educação. Durante a

disciplina teórica, o trabalho centrou-se na apresentação dos pressupostos teóricos,

com a apresentação de diversos estudos de caso, realização de pesquisas, debates

e reflexões. O objetivo foi iniciar o processo de ruptura epistemológica com os próprios

estudantes que desconheciam o processo de escolarização e sua importância na

compreensão do fracasso escolar. Muitos revisitaram suas trajetórias escolares em

escolas públicas e particulares e puderam compreender o impacto na sua forma de

aprender e viver. (ASBAHR, MARTINS, MAZZOLINI, 2011).

Na disciplina Estágio Básico em Psicologia e Processos Educativos os

estudantes deveriam compreender que o centro da natureza e gênese da queixa

escolar é o processo de escolarização, considerando a rede de relações entre alunos,

escolas e famílias. Para a realização de uma investigação desta queixa é necessário

uma intervenção institucional fundada numa concepção dialética de homem e de

sociedade com relação interdependente, que não dissocia os planos macro e

microestruturais. O plano de ensino da disciplina de estágio define que a prática

aconteça em instituições educacionais, tendo em vista a compreensão dos processos

educativos e a elaboração de intervenção.

Para que o estágio acontecesse a parceria foi realizada com instituições

públicas de ensino fundamental e médio. A proposta do estágio foi apresentada às

equipes gestoras que relatavam algumas queixas escolares. A compreensão para

problemas como turmas indisciplinadas, problemas de aprendizagem, violência e

distanciamento da família se resumia à desestrutura familiar, aos problemas das

camadas mais pobres, que são concepções características da Teoria da Carência

Cultural (PATTO, 1990). Outra justificativa se centrava em grande parte de alunos

como portadores de supostos transtornos de aprendizagem, como dislexia e

transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. O maior problema é que não tinham

apoio do poder público e dos serviços de saúde para avaliação e diagnóstico dos

alunos, por isso não sabiam como proceder para tentar promover o processo de

ensino e aprendizagem. Como estratégia, formavam turmas homogêneas para não

prejudicar os bons alunos e facilitar o trabalho do professor. Souza (2007) explica

como a formação de classes homogêneas refere-se a funcionamentos escolares que

promovem exclusão e segregação de alunos, prejudicando ainda mais seu processo

de escolarização.

A partir da primeira escuta da demanda escolar, compreendemos que seria

importante iniciar uma investigação com as turmas apontadas como o centro do

problema. As turmas apresentam em média 35 alunos. Para poder oferecer espaço

de escuta e acolhimento aos alunos, formamos grupos de 4 estagiários para cada

turma. Solicitávamos no mínino 1 hora com cada grupo para podermos propor

atividades que possibilitassem a participação de todos.

O perfil de estudantes de ensino superior privado se caracteriza por pessoas

que trabalham e estudam. O trabalho é uma necessidade, seja para custear a

faculdade, como para sustentar a família. Diante dessa realidade, o estágio deveria

ser realizado no horário da disciplina, assim como a supervisão. Para viabilizar o

estágio e a supervisão, a ida a campo e a supervisão aconteciam quinzenalmente. Os

grupos de estagiários realizaram em média 6 a 7 visitas a campo, com permanência

de 3 horas na instituição para realização de diversas atividades: investigação da

história da escola, visita à comunidade, entrevistas com equipe gestora, professores

e demais funcionários, observação de diversos momentos da rotina escolar (entrada

e saída dos alunos, intervalo, aula vaga, rotina da secretaria e da equipe gestora, uso

da biblioteca, sala de multimídia e de informática, reunião de pais, grupos com os

alunos, leitura do projeto político pedagógico, discussão e planejamento das

atividades com os professores das turmas).

Na primeira visita à escola, os estagiários reuniram-se com a equipe gestora

para apresentação da instituição. Contatos sucessivos foram feitos durante as demais

visitas com o objetivo de refletir conjuntamente com a equipe gestora sobre os

elementos que surgiam a partir da imersão na instituição.

Os procedimentos realizados com os professores variavam conforme a

instituição. Alguns professores participaram de todas as atividades realizadas com a

turma pelos estagiários de psicologia e deram continuidade às mesmas durante as

aulas seguintes. Outros participavam da discussão e planejamento, mas não da

realização das atividades. E por fim, alguns professores apenas “cediam” suas aulas

e procuravam fazer outras tarefas, recusando-se muitas vezes a dialogar com os

estagiários.

O trabalho realizado com família consistiu no agendamento de encontros no

início e no final do estágio. O primeiro teve como objetivo apresentar a proposta de

estágio, realizar uma escuta de sua visão sobre a vivência escolar de seus filhos,

sobre a escola e pedir o consentimento para que seus filhos participassem das

atividades. O segundo encontro teve como objetivo ouvir dos pais como tinha sido a

participação dos filhos nas atividades do estágio, dar mais espaço para escuta e

reflexão acerca da instituição escolar e experiência escolar de seus filhos, assim como

para pedir sugestões e opiniões sobre o projeto de intervenção que estava sendo

construído com a participação de todos os segmentos da escola.

Algumas escolas deixaram de realizar reuniões e optaram por agendar plantões

pedagógicos, ou seja, no momento de entrega do boletim ou material escolar, os

professores ficavam de plantão e conversavam com os pais à medida que esses

chegavam. Outras instituições mantinham a prática da reunião de pais, em algumas

os estagiários aproveitavam parte dessa reunião para apresentar a proposta de

estágio. Noutras foi possível agendar momento específico de encontro entre pais e

familiares das turmas que seriam acompanhadas.

Na maioria das turmas foi possível realizar 4 a 5 encontros. O objetivo desses

encontros foi possibilitar espaço de acolhimento e escuta, a fim de pensar e

problematizar a experiência escolar e a queixa relacionada ao grupo, o

desenvolvimento de potencialidades (intelectuais e emocionais), o resgate do vínculo

com a aprendizagem. Nesses espaços, os participantes tiveram a possibilidade de

serem sujeitos, de falarem sobre seus sentimentos, idéias, inseguranças, planos

futuros (CHECCHIA, 2006). O último encontro caracterizou-se pela reflexão de todos

os momentos anteriores e construção coletiva de um projeto de intervenção na

instituição que possibilitasse a participação dos mesmos, tendo em vista a superação

da queixa apresentada. (SOUZA, 2010a).

Ao final do estágio, outro momento formal foi organizado tanto com gestores

como com docentes para discussão e construção coletiva do projeto de intervenção,

tendo em vista a continuidade de ações que visem o aprimoramento do processo

educativo e que pudessem ser realizadas pelos próprios atores da comunidade

escolar: profissionais, discentes e familiares. O resultado do fechamento do estágio

com todos os segmentos foi sistematizado por escrito pelos estagiários num projeto

de intervenção entregue à instituição. O acompanhamento se dará a partir das turmas

de estagiários seguintes.

Resultados

A imersão nas instituições educacionais públicas revelou uma série de

funcionamentos escolares muito bem explicitados por Souza (2007): infra-estrutura

precária, com falta de ventilação, iluminação, material de limpeza, falta de

manutenção das instalações impedindo o uso de espaços como quadra, ausência de

refeitório; bibliotecas não utilizadas; falta de merenda e de transporte escolar que

causava cancelamento das aulas; ausência de espaços de reflexão e troca de

experiências; utilização de estratégias de homogeneização na formação de turmas;

formação de grupos homogêneos intraclasse, que implica em não acompanhar os

estudantes com maior dificuldade; faltas frequentes dos professores; disciplinas sem

professores; muitas aulas vagas; discurso da instituição em relação aos alunos e seus

familiares com preconceitos ligados à raça, gênero e classe social; relação

hierarquizada entre escola e alunos e entre escola e família; reuniões de pais

transformadas em espaço de imposição e culpabilização, sem espaço de escuta e

participação.

O contato com a equipe gestora se deu em sua maioria com a coordenação

pedagógica. Os estagiários contaram com grande apoio e suporte para a organização

das atividades, como por exemplo, espaço, material, horário. Por outro lado, a

possibilidade de escuta e reflexão acerca dos elementos percebidos no contato com

a instituição foi muito mais difícil. A maioria dos gestores apresentou muita

centralização de poder de decisão e resolução de conflitos, pois problemas

vivenciados em sala de aula não eram resolvidos pelos professores, mas pelos

gestores, a partir de ações autoritárias, como ameaças e punições. O trabalho de

orientação e apoio pedagógico à equipe ficava prejudicado, devido ao acúmulo de

outras atividades. Também tivemos a oportunidade de conhecer coordenadores que

buscavam construir uma relação de maior horizontalidade com sua equipe, alunos e

familiares, apresentando maior disponibilidade de realizar reflexões e contribuições

aos estagiários além da infra-estrutura necessária para as atividades. Este segundo

grupo de coordenadores se mostrou mais sensível, flexível e acolhedor às

manifestações de sua comunidade, assim como percebemos menos estresse,

frustração e desânimo em relação ao seu trabalho.

A escuta e observação dos professores possibilitou compreender que

trabalham isoladamente, sem apoio pedagógico, com precário material didático,

baixos salários e desvalorização profissional. Assim como com os coordenadores,

encontramos muitos professores desanimados, frustrados, apresentando muita

agressividade, estresse, acreditando cada vez menos nos alunos, na equipe e nas

políticas educacionais.

Os professores que participaram das atividades com os alunos, inicialmente

tentavam conduzir as atividades em grupo de forma a disciplinar os mesmos. A partir

de conversas e reflexões com os estagiários e da escuta e observação das

expressões de seus alunos, aos poucos tornaram sua participação mais flexível e

acolhedora, se permitindo muitas vezes expressar seus sentimentos nos encontros

com os alunos mediados pelos estagiários, assim como dando continuidade a

algumas atividades nas aulas seguintes. No final dos trabalhos, os docentes podiam

perceber seus alunos de forma diferente e compreender um sentido por trás de um

comportamento inadequado. A relação entre os professores e alunos havia mudado.

A participação efetiva dos coordenadores e professores possibilitou o

acolhimento de suas necessidades, o reconhecimento, a valorização e a

potencialização de seus recursos. Da mesma forma, tal participação permitiu que

esses profissionais pudessem compreender seus alunos como sujeitos com diferentes

subjetividades (SOUZA, 2010a; CHECCHIA, 2006). Infelizmente, não foi possível

notar esse resultado com os professores que não participaram das atividades de

estágio.

Os encontros com os pais, apesar da pequena participação, permitiu

compreender o significado que a escola tinha para eles. Todos os pais foram

unânimes em reconhecer a importância da escola para os filhos, valorizavam os

professores e o trabalho realizado. Percebiam algumas falhas, como por exemplo, a

grande quantidade de aulas vagas provocadas pelas faltas dos docentes e por

disciplinas sem docentes. Não reclamaram da qualidade da aula dos professores,

apenas da relação com seus filhos, muitas vezes desrespeitosa e autoritária. Esses

familiares não encontravam espaço de escuta e valorização de seu ponto de vista e

por diversas vezes disseram que aquele momento tinha sido o primeiro em toda a

trajetória escolar de seus filhos. Pediram mais espaços como esses. Em todas as

escolas foi possível perceber a sua relação hierárquica em relação aos pais e como

esses são culpabilizados em relação aos problemas vivenciados pela instituição.

O trabalho com os alunos foi bastante diverso, devido à diversidade de faixas

etárias. A queixa geral relacionada aos alunos das séries iniciais do ensino

fundamental se referia à indisciplina, desinteresse, transtornos de aprendizagem ou

as pretensas doenças do não aprender. Para os alunos das séries finais e do ensino

médio, a queixa era a mesma com o acréscimo da agressividade.

Os primeiros encontros eram caracterizados com atividades para integração,

construção de vínculo e elaboração coletiva das regras de convivência. A cada

encontro, os alunos davam sugestões de temas para serem trabalhados, como por

exemplo: drogas, violência, família, perspectiva de futuro, relação interpessoal. Os

grupos utilizaram de vários recursos e estratégias como dinâmicas de grupo, músicas,

jogos, rodas de conversa, filmes, vídeos, oficinas de leitura, contação de história,

desenhos, elaboração de textos, cartazes e colagens. Inicialmente, a participação foi

difícil, seja pela timidez, pela não compreensão do trabalho dos estagiários, que foram

confundidos como professores ou autoridades que estavam ali para avaliá-los.

Todavia, a cada encontro, as resistências eram quebradas, a participação e a

expressão aumentavam. Compreendemos que inicialmente, os alunos reproduziam

com os estagiários sua relação com a escola, seja por meio da indisciplina, não querer

fazer as atividades, da agressividade, da apatia. O espaço que encontraram

possibilitou a expressão, o acolhimento e o respeito à sua subjetividade, à sua

diversidade, assim como a percepção de seus colegas e professores, como sujeitos.

Os alunos trouxeram muitas queixas relacionadas aos professores, gestores,

infra-estrutura da escola, aos colegas e familiares. Queixaram-se de não serem vistos

enquanto crianças e adolescentes, de não terem espaço de escuta e acolhimento de

suas manifestações. A percepção de aulas desmotivantes, monótonas, professores

sem paciência para explicar, com muito autoritarismo, provocavam a perda da

confiança de que a escolarização poderia contribuir com suas vidas. Outros, diante de

suas dificuldades para compreender o conteúdo ministrado, relataram experiências

de humilhação, desacreditando em sua capacidade de aprender e desistindo de

qualquer perspectiva de futuro.

Estar num grupo em que não era necessário acertar, em que podiam falar o

que pensavam e sentiam, dar sugestões, a partir de uma relação horizontal,

possibilitou o fortalecimento de seus potenciais e a mudança de comportamento.

Crianças e adolescentes que inicialmente não paravam quietas, que não eram

capazes de refletir, dar opinião e realizar uma produção escrita, ao final dos encontros,

faziam tudo isso. Os encontros contribuíram para a problematização da queixa

vivenciada e sua ressignificação (SOUZA, 2010; CHECCHIA, 2006).

Considerações finais

Durante as primeiras supervisões os estagiários relatavam experiências de

intenso sofrimento devido à imersão ao cotidiano escolar e à compreensão de sua

realidade. A reflexão, leitura de textos e o planejamento dos encontros seguintes,

possibilitaram que pouco a pouco realizassem uma ruptura epistemológica de uma

visão adaptacionista da psicologia, que percebessem a complexidade do fenômeno

escolar e o quanto explicações reducionistas como a desestrutura familiar, a

violências das comunidades, as supostas doenças do não aprender eram explicações

superficiais e preconceituosas que buscavam reduzir e culpabilizar ora o aluno, ora a

família ora os professores e gestores.

Gradativamente, os estagiários compreendiam a necessidade da Psicologia

construir uma práxis frente à queixa escolar que possibilitasse o trabalho participativo

com todos os setores do processo educativo, o fortalecimento do trabalho do

educador, a análise coletiva dos diferentes discursos para o enfrentamento dos

desafios. Apresentavam outro posicionamento ético e político que se desdobrava no

compromisso com a luta por uma escola democrática e de qualidade tendo em vista

a criação de espaços coletivos que possibilitarão a expressão e construção de significados,

assim como de novas práticas sociais. (PIRES, 2007; SOUZAb, 2010).

A prática, realizada pelos estagiários da disciplina Estágio Básico em Psicologia e

Processos Educativos, ancorada na abordagem crítica em Psicologia Escolar e Educacional

pôde contribuir com uma formação comprometida com o resgate da função social da escola

em uma perspectiva histórico-crítica, a formação do pensamento científico e do cidadão

crítico, assim como a ampliação da socialização e da difusão de valores na direção da

sociedade democrática. Rompeu com práticas discriminatórias, estigmatizantes que procuram

biologizar e patologizar as dificuldades vividas de um sistema escolar complexo, vítima de

sucessivas gestões públicas que depreciaram a escola pública e prejudicasse o desempenho

de seu papel social e político.

Referências bibliográficas

. ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G.. Caleidoscópio das violências nas escolas. Brasília: Círculo de Brasília, 2006. . ASBAHR, Flávia da Silva Ferreira; MARTINS, Edna; MAZZOLINI, Beatriz Pinheiro Machado. Psicologia, formação de psicólogos e a escola: desafios contemporâneos. Psicol. estud., Maringá, v. 16, n. 1, mar. 2011 . . CHECCHIA, A. K. A. O que jovens alunos de classes populares têm a dizer sobre a experiência escolar na adolescência. 2006. 234 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Educação) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. . Moysés, M.A. ; Collares, C. A. L. O lado escuro da dislexia e do TDAH. In: Marisa E.M. Meira; Silvana Tleski; Marilda Facci. (Org.). Exclusão e inclusão: falsas dicotomias. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. . PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1990. . PIRES, S. F. S.. Protagonismo infantil e a promoção da cultura de paz: um estudo sociocultural construtivista. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Distrito Federal. . SOUZA, B. de P.. Funcionamentos escolares e a produção do fracasso escolar. In: SOUZA, B. de P. (org.). Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. . _____________. A medicalização do ensino comparece aos atendimentos psicológicos. In: GRUPO DE INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR. Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010a. . SOUZA, M. P. R. de. Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas. Psicol. Esc. Educ. (Impr.), Campinas, v. 13, n. 1, June 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572009000100021&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21/06/2012. . _______________. Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. In: GRUPO DE INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR. Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010b.

FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE - NÚCLEO BAHIA

Maria Izabel Souza Ribeiro (FACED/UFBA) Liliane Alves da Luz Teles (Faculdade São Bento da Bahia)

Elaine Cristina de Oliveira (ICS/UFBA) Lygia de Souza Viégas (FACED/UFBA)

Meire Pereira Checa (UNEB)

PALAVRAS-CHAVE: Medicalização da educação e da sociedade. Núcleo

Bahia. Ações e estratégias.

1INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta o Núcleo Bahia do Fórum sobre Medicalização da

Educação e da Sociedade a partir de sua história de constituição e exposição do

levantamento de suas realizações e propostas de ações.

O Núcleo Bahia foi fundado em 29 de outubro de 2011. Trata-se de um

grupo de profissionais e estudantes de diversas áreas, articulado com o Fórum

Nacional, instância que agrega pessoas físicas e jurídicas, instituições,

organizações governamentais e não-governamentais comprometidas com o

desenvolvimento de ações contra o processo de medicalização da vida de

maneira geral e especificamente da educação escolar. Tem como objetivo a

mobilização social para a construção da crítica à lógica medicalizante de

compreensão dos fenômenos humanos e consolidação de referências teóricas

e práticas de superação de tal lógica.

O Núcleo Bahia é constituído de Secretaria executiva e plenária.

Atualmente o Núcleo tem funcionado com uma Secretaria executiva ampliada

composta pelas seguintes instituições e representantes: Associação Brasileira

de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) - Lygia de Sousa Viégas;

Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) -

Maria Izabel Souza Ribeiro; Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da UFBA -

Elaine Cristina de Oliveira; Grupo de Trabalho Psicologia e Educação (GTPE) do

Conselho Regional de Psicologia CRP/03 - Liliane Alves da Luz Teles;

Universidade do Estado da Bahia - Meire Pereira Checa; Profissional graduado

em História - Renato Santos de Souza. A Secretaria organiza e coordena as

reuniões mensais bem como articula as atividades propostas pelos seus

integrantes em seus diferentes âmbitos: social, político, acadêmico e científico.

De caráter propositivo, o Núcleo tem se dedicado a socializar informações

relacionadas ao tema, sobretudo por meio de pesquisas, cursos, grupo de

estudos, palestras, eventos em geral, publicações, participação em espaços

políticos, além da inserção na mídia local, com destaque para diversas

entrevistas a rádios e imprensa escrita.

O presente artigo está estruturado em três seções: introdução, história e

ações do Núcleo e considerações finais.

2 NÚCLEO BAHIA: HISTÓRIA E AÇÕES

Na Bahia a formação do Grupo de Trabalho Psicologia e Educação (GTPE)

do Conselho Regional de Psicologia (CRP03) em 2007 foi um marco inicial das

articulações entre profissionais e estudantes que buscava aprofundar os estudos

a repeito da relação psicologia e educação na perspectiva da construção de

referências teóricas e práticas com vias a contribuir com a superação da lógica

medicalizante na educação na Bahia.

Entre as atividades desenvolvidas é pertinente citar a articulação da

professora Lygia de Sousa Viégas com profissionais e pesquisadores implicados

com o debate no Estado de São Paulo, integrando-se ao grupo que se constituiu

como desencadeador do Fórum Nacional.

Desta maneira, quando aconteceu o I Seminário Internacional Educação

Medicalizada, em novembro de 2010 em São Paulo, contexto de Lançamento do

Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, a Bahia esteve

representada com a participação de ao menos doze (12) pessoas, entre

profissionais e estudantes de psicologia, as quais, de maneira efetiva,

assumiram o compromisso de consolidar um núcleo na Bahia. Além da

participação no Seminário, três trabalhos foram apresentados na forma de

pôster.

Todas as ações realizadas em 2010 e 2011 garantiram as condições para

que, em reunião no dia 29 de outubro de 2011, na Faculdade de Educação da

Universidade Federal da Bahia (FACED-UFBA), 17 profissionais e estudantes

de diversas áreas, sobretudo psicologia, pedagogia, terapia ocupacional,

fonoaudiologia e enfermagem, consolidassem o lançamento oficial do Núcleo

Bahia do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Assim, no II

Seminário Internacional a participação da Bahia foi ainda mais significativa com

a apresentação do pôster do Núcleo Bahia.

Com o lançamento oficial do Núcleo Bahia, as ações empreendidas para a

crítica à medicalização no Estado passaram a ter a legitimidade enquanto

movimento social e político na luta pela garantia do direito a vida.

Entendemos por medicalização “o deslocamento de problemas inerentes à

vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de

ordem social e política, em questões individuais, biológicas” (MOYSÉS &

COLLARES, 2010, p.72).

A medicalização é um fenômeno que nega a dinâmica, a diversidade e a

riqueza da vida do ser humano. Nega por não considerar a condição de

transformação e de imprevisibilidade das manifestações do humano, bem como

por não compreender a complexidade, a multidimensionalidade, a multiplicidade

de fatores em interação e o processo sócio-histórico de sua constituição. A

negação é pautada em uma concepção reducionista e determinista do ser

humano, por focalizar no aspecto e fator biológico ou psicológico de sua

formação.

No caso do nosso Estado, dados iniciais sobre o levantamento da compra

e dispensação decloridrato de metilfenidato pelos Municípios Baianos realizada

pelo Núcleo Bahia (2012) junto a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia

(SESAB) revelam que no ano de 2011 a entrega ao consumo do mesmo pelo

Governo do Estado foi de 12.410 comprimidos e até 16 de maio de 2012 foi de

6.360 comprimidos. Como ainda não temos os dados precisos da dispensação

até o final de 2012, consideramos, através da projeção da entrega, que o número

de medicamento provavelmente ultrapassou de maneira considerável o de 2011.

Destacamos que na apresentação de 54mg o número de comprimidos

dispensados até 16 de maio de 2012 superou o dispensado durante todo o ano

de 2011.

O gráfico apresentado a seguir explicita a quantidade de comprimidos por

miligrama dispensados pelo Governo do Estado em cada ano:

Figura 4: Dispensação metilfenidato, por número de comprimido

Fonte: Núcleo Bahia - Pesquisa em andamento, 2012

Cabe aqui destacar que se o consumo desse medicamento está sendo

ampliado, significa que, provavelmente, é resultado do aumento da emissão de

diagnóstico do transtorno, o que sugere que o fenômeno da medicalização tem

avançado no Estado. Destaca-se que esse medicamento é prescrito para

crianças e adolescentes com diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e

Hiperatividade (TDAH)

Diante de dados como esses, compreendemos que a reflexão e a

discussão sobre os encaminhamentos de escolares para atendimento

especializado na área da saúde e a consequente emissão de diagnósticos de

transtornos de aprendizagem e comportamento são fundamentais para a

realização de uma análise crítica a respeito da queixa escolar e dos diversos

fenômenos educacionais. Ressaltamos que a necessidade da compreensão das

condições concretas de produção dos fenômenos da educação escolar

especificamente e dos fenômenos humanos e sociais de uma maneira geral é

notória.

Dessa maneira, espaços como o Fórum sobre medicalização da

educação e da sociedade são imprescindíveis para mobilizar a sociedade no

sentido da superação da concepção naturalizante, biologizante e patologizante

0

1000

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Dispensação Metilfenidato, por número de comprimidos, pelo Governo do Estado ‐ BA

2011

2012 (até 16.05)

da vida humana. É nessa perspectiva que o Núcleo Bahia conseguiu, desde

antes de sua fundação, mobilizar grupos e instituições de educação e saúde na

direção de uma reflexão crítica em torno do diagnóstico e tratamento das

dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento na infância e

adolescência, entre outros temas. Como resultados concretos, temos sido

convidados a promover palestras, debates, participação em espaços políticos e

entrevistas sobre a medicalização, visando tanto a formação de profissionais e

estudantes de diferentes áreas quanto o diálogo com a sociedade.

Para o desenvolvimento das ações do Núcleo, a Secretaria executiva

ampliada realiza reuniões semanais para elaboração, organização e

planejamento das atividades e para deliberação dos encaminhamentos

necessários de acordo com as demandas surgidas nos diferentes campos, por

exemplo, político, social, acadêmico e científico. Além dessas reuniões semanais

são realizadas reuniões mensais com a plenária para discussão de temas

pertinentes aos objetivos e princípios do Núcleo, informes locais e nacionais,

divulgação das ações e eventos e planejamento de atividades, dentre outras

coisas.

As ações empreendidas pelo Núcleo Bahia do Fórum a partir da atuação

individual e/ou coletiva de seus membros tem fortalecido o debate crítico no

Estado e em particular na capital Salvador. Destacamos a seguir algumas

dessas ações, além das diversas palestras ministradas e publicações de artigos

de naturezas distintas:

Reuniões temáticas:

"A crítica a medicalização da vida" na Comemoração de 01 ano do Núcleo

em novembro de 2012.

“Material didático pedagógico Alfa e Beto: por que não?” com a Mestre em

Educação e coordenadora da ONG Avante Qualidade de Vida Maria

Thereza Oliva Marcílio e a professora Dra. Elaine Cristina de Oliveira em

março de 2013;

"Medicalização do parto" com a psicóloga Marta Campos em abril de

2013.

Cursos:

"Avaliação e Diagnóstico do TDAH: medicalização do comportamento e

da aprendizagem" ministrado pela professora Maria Izabel Ribeiro

(Faculdade de Educação da UFBA) no Curso "A prática clínica com

criança" do Instituo Viva Infância em outubro de 2012;

"Correlação neuropsicológica das convulsões – Epilepsia" ministrado pelo

neurologista Dr. Leon Benasayag da Universidad de Buenos Aires em

maio de 2012;"Crianças desatentas e hiperativas: perspectiva

psicanalítica" ministrado pela Dra. Gisela Untoiglich (Programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade de Buenos Aires) em maio de

2012;

"Neurociências, dislexia e alfabetização" ministrado pelo Dr. Steven

Strauss (Departamento de Neurologia do Hospital Franklin Square) em

maio de 2012;

"Neurolinguística discursiva: afasia e infância" ministrado pela Profa. Dra.

Maria Irma Hadler Coudry (Departamento de Linguística da Faculdade de

Ciências Médicas da UNICAMP)em maio de 2012;

"Respeitar ou rotular: as avaliações de desenvolvimento" ministrado pela

Profa. Dra. Maria Aparecida Affonso Moysés (Departamento de Pediatria

da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) e pela Profa. Dra.

Cecilia Collares (Faculdade de Educação da UNICAMP) em maio de

2012;

"Medicalização da vida escolar" ministrado por Profa. Maria Izabel Ribeiro

(Faculdade de Educação da UFBA) na II Jornada Pedagógica da UNEB

em outubro de 2011;

"Orientação à queixa escolar” ministrado pela Profa. Dra. Lygia de Sousa

Viégas (Faculdade de Educação da UFBA e Fórum sobre a medicalização

da educação e da sociedade – Núcleo Bahia) no VII Congresso Norte-

Nordeste de Psicologia em maio de 2011;

"Medicalização da Educação e da Sociedade" ministrado pela Profa. Dra.

Maria Aparecida Affonso Moysés (Departamento de Pediatria da

Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) e pela Profa. Dra. Cecilia

Collares (Faculdade de Educação da UNICAMP) em fevereiro de 2011;

"Medicalização da vida escolar" ministrado pela Profa. Maria Izabel

Ribeiro (Faculdade de Educação da UFBA) no II SIEPE (Seminário

Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão) da UFBA em setembro de

2010.

Participação em eventos:

Participação no Pré-Congresso de Psicologia na subsede Sudoeste do

CRP/03 com a temática medicalização de vida em março de 2013;

Mediação do Grupo de Trabalho Medicalização no I Encontro Baiano de

Saúde Mental Infanto-juvenil: o lugar da infância e adolescência na Rede

de Atenção Psicossocial, da Secretaria de Saúde do estado da Bahia

(SESAB) e Secretaria Municipal de Saúde de Salvador em novembro de

2012;

Mesa redonda "Medicalização" com a participação do Fórum sobre a

medicalização da educação e da sociedade – Núcleo Bahia, representado

por Elaine Cristina de Oliveira, Liliane Teles e Maria Izabel Ribeiro

(coordenação de Meire Checa) na III Jornada pedagógica da DEC I:

Educação e Movimentos Sociais: enlaces multidisciplinares na

Universidade do Estado da Bahia em outubro de 2012;

Mesa redonda “Em nome da proteção e do cuidado, que formas de

exclusão e sofrimento estamos produzindo?” no I Encontro Diálogos

Psicologia e Direitos Humanos e II Curso de Direitos Humanos “Proteção,

Exclusão e Sofrimento” em Julho de 2012;

Mesa redonda “Discutindo o Transtorno de Déficit de Atenção e

Hiperatividade (TDAH) e a Dislexia” com a participação do Fórum sobre a

medicalização da educação e da sociedade – Núcleo Bahia, representado

por Elaine Cristina de Oliveira, Liliane Teles e Renato Souza na Jornada

pedagógica do SINPRO-BA em agosto de 2012;

Desfile em comemoração ao dia Dois de Julho, data da independência da

Bahia, com a participação de diversas mobilizações e Movimentos Sociais

em 2012;

Ciranda Reflexiva do Fórum Baiano de Educação Infantil intitulada

"Medicalização na Educação Infantil" com a participação do Fórum sobre

a medicalização da educação e da sociedade – Núcleo Bahia,

representado por Elaine Cristina de Oliveira e Lygia de Sousa Viégas

(coordenação de Maria Izabel Ribeiro) em março de 2012;

I Encontro de Psicólogas(os) Educacionais/Escolares da Bahia – ENPEB

promovido pelo Conselho Regional de Psicologia e o Grupo de Trabalho

de Psicologia e Educação realizado em agosto de 2011;

Apresentação de trabalhos:

Apresentação oral no I Seminário Interno do Fórum sobre Medicalização

da Educação e da Sociedade em São Paulo, setembro de 2012;

Apresentação em formato de Pôster: "Núcleo Bahia do Fórum sobre

Medicalização da Educação e da Sociedade" na 2ª Mostra Nacional de

Práticas em Psicologia em São Paulo, setembro de 2012;

Apresentação em formato de Pôster no VII Congresso Norte Nordeste de

Psicologia, maio de 2011;

Apresentação em formato de Pôster no III Congresso Baiano de

Educação Inclusiva e I Simpósio Brasileiro de Educação Inclusiva,

outubro de 2011;

Apresentação em formato de Pôster no II Seminário Internacional

Educação Medicalizada, novembro de 2011.

Entrevistas ao vivo em rádios e televisão locais: dez entrevistas, veiculadas

na TVE e nas Rádios Metrópole, BandNews, Excelsior e Candeias. Valem

acrescentar as duas entrevistas concedidas por Maria Aparecida Affonso

Moysés e Cecília Collares, nas Rádios Metrópole e Excelsior (2011).

Entrevistas mídia impressa: concedida ao Jornal A Tarde com a participação

de Lygia Viégas, Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Collares (2011);

concedida ao Jornal do CRP03 na seção "Fala, categoria" com a participação

de Liliane Alves da Luz Teles e Maria Izabel Ribeiro (Edição 08, abril-junho

2012).

Organização de evento: “I Simpósio Internacional e I Simpósio Baiano

Medicalização da sociedade e da educação: ciência ou mito?” em maio de

2012 com a proposta de publicação das palestras em um livro com previsão

de lançamento em 2013.

Desenvolvimento de pesquisas: Pesquisa de levantamento sobre a compra

e dispensação do medicamento cloridrato de metilfenidato pelos Municípios

Baianos junto a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) em

andamento desde o ano de 2012.

Atuações políticas:

Articulação com o Fórum Baiano de Educação Infantil (FBEI);

Apoio aos docentes da rede municipal de ensino de Salvador na luta

contra a implantação do Programa Alfa e Beto (2013) nas escolas

municipais de Salvador;

Participação em reunião no Ministério Público sobre a negação de

matrículas de crianças com algum tipo de diagnóstico psíquico em

fevereiro de 2013;

Interlocuções com representantes do poder público e políticos locais.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pela dimensão das ações realizadas e pelo espaço conquistado no

debate sobre a medicalização da vida consideramos que o Núcleo tem

contribuído significativamente na ampliação e aprofundamento da temática no

Estado, empreendendo esforços para construção de uma perspectiva de

compreensão não medicalizante da vida humana.

Assim, conclui-se que o Núcleo Bahia tem acompanhado de forma

decisiva a compreensão do processo de medicalização da educação e da

sociedade, contribuindo com sua superação crítica.

REFERÊNCIAS

COLLARES Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS Maria Aparecida Affonso. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Idéias, n. 23, São Paulo: FDE, 1994. Disponível em: htpp://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/idéias_23_p025-031_c.pdf MOYSÉS Maria Aparecida Affonso; COLLARES Cecília Azevedo Lima. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. p. 71-110.

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. GTPE. Grupo de Trabalho Psicologia e Educação. Conselho Regional de Psicologia 3ª Região (BA) - CRP 03. Um pouco de história. Impresso. Salvador, CRP 03: 2008. NÚCLEO BAHIA. Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Pesquisa de Levantamento sobre a compra e dispensação do medicamento cloridrato de metilfenidato pelos Municípios Baianos (em andamento). Salvador: Núcleo Bahia, 2012. SÃO PAULO. Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo: Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2010. Disponível em: www.medicalizacao.com.br ______. Regimento Interno do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo: Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2011. Disponível em: www.medicalizac

A infância medicalizada: uma análise sobre as publicações

relacionadas ao TDAH

Dalila dos Santos Silva – UNESP, Assis Daniele de Andrade Ferrazza – UNESP, Assis Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis

Pâmela Massoni Bardella Oliveira – UNESP, Assis

Palavras-chave: medicalização, TDAH, infância.

Quadro Conceitual

A transformação do sofrimento psíquico em doença e seu enquadramento no

âmbito da variedade de rotulações diagnósticas produzidas pela psiquiatria têm

apresentado sinais de estender-se, atualmente, a uma infância que até pouco tempo

era poupada dos veredictos psicopatológicos e da prescrição de psicofármacos que

costuma acompanhá-los. Na atualidade, as mais diversas condutas da infância que

são consideradas inadequadas e/ou indesejáveis têm sido transformadas, pelo saber

psiquiátrico, em manifestações sintomáticas de psicopatologias. Esta é uma

característica típica do processo de medicalização que pode ser compreendido como

uma forma do saber médico se apropriar de aspectos sociais, culturais, políticos e

econômicos e transformá-los em fenômenos da ordem médica. Nesse processo de

medicalização inúmeros aspectos, também, relacionados à infância serão apropriados

pelos saberes médicos e transformados em diagnósticos psiquiátricos.

Atualmente, a determinação diagnóstica que mais tem atingido crianças e

adolescentes é o “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH), para o

qual a psiquiatria tem recomendado, principalmente, a administração de

psicofármacos (LEGNANI; ALMEIDA, 2008; GUARIDO, 2007). Nessa configuração

contemporânea, aquelas crianças que não se adaptam às regras e normas da

sociedade vigente estariam, então, sujeitas aos discursos e práticas normatizadoras

da medicina psiquiátrica que, conforme expõe Caponi (2007, p. 344), “possuem ainda

hoje, como ocorreu no início do século XX, diagnósticos ambíguos e imprecisos,

terapêuticas de eficácia duvidosa e efeitos colaterais imprevisíveis”.

Ao longo dos últimos 50 anos os procedimentos diagnósticos podem ser

localizados, principalmente, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

Mentais (DSM). Mesmo período em que, também, assistiríamos aos avanços do

tratamento medicamentoso como forma majoritária de intervenção terapêutica no

âmbito médico-psiquiátrico (GUARIDO, 2007). É nesse contexto que pode ser

identificada a perda dos sentidos e significados de sofrimentos psíquicos e mal-

estares subjetivos, uma vez que inúmeros diagnósticos psiquiátricos pretendem

estabelecer bases biológicas objetivas para as mais diversas questões da existência

humana.

Desse modo, no mundo contemporâneo, o paradigma das ciências médicas

produziria verdades acerca da natureza do sofrimento psíquico reduzidas às

estruturas cerebrais e aos desequilíbrios neuroquímicos (CAPONI, 2012). Tal como

argumenta Guarido (2007), a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização

do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, regulável

apenas pelo uso de remédios.

Nessa perspectiva, o grupo de pesquisas “Medicalização do social no

contemporâneo” da UNESP, campus de Assis, apresenta um estudo sobre o processo

de medicalização da infância que envolve a expansão do diagnóstico de “Transtorno

de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH) e a generalizada prescrição de

medicamentos psiquiátricos destinados a silenciarem crianças e adolescentes na

contemporaneidade,

Objetivos

O presente trabalho teve como objetivo estudar o processo de medicalização

da infância através da análise de artigos científicos publicados, nos últimos três anos,

na base de dados da SciELO que apresentavam como tema o diagnóstico do TDAH.

Metodologia

Para o desenvolvimento da pesquisa foram levantados os artigos científicos

publicados e disponibilizados na base de dados da SciELO que apresentavam como

indexadores a palavra-chave TDAH, com filtro regional indicando as publicações no

Brasil. No total, foram encontrados 129 artigos científicos publicados no período de

2001 a 2013.

Para o desenvolvimento de uma análise mais detalhada das publicações sobre

a temática, selecionamos apenas os trabalhos publicados nos anos de 2010, 2011 e

2012, que perfizeram um total de 46 artigos divididos em dois grupos de análise. No

primeiro, selecionamos e analisamos os trabalhos que apresentavam pesquisas e

reflexões com bases e fundamentações críticas sobre o processo de medicalização

da infância e de banalização do diagnóstico do TDAH. O segundo conjunto de análise

seria composto por trabalhos que apresentassem pesquisas do campo das

neurociências e das psicofarmacologias que consideram o TDAH como um transtorno

da infância.

Os artigos considerados como críticos foram os que apresentaram uma

contextualização social, política e histórica sobre o TDAH, e desenvolveram

problematizações sobre o processo de patologização da infância. Já os artigos que

foram considerados como acríticos desconsideravam todos esses aspectos e

reduziram ao funcionamento biológico as dificuldades apresentadas por crianças e

adolescentes submetidos ao diagnóstico e ao tratamento medicamentoso. Além disso,

os trabalhos considerados como acríticos se baseavam no Manual Diagnóstico e

Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e apresentavam o diagnóstico sem

problematizar ou questionar a validade teórico-científica deste instrumento

psiquiátrico.

Nessa configuração, no desenvolvimento da pesquisa, selecionamos 19 artigos

científicos publicados no ano de 2010, dos quais apenas três foram considerados

como críticos. No ano de 2011, encontramos a publicação de 12 artigos, dos quais a

maioria foram considerados como acríticos e apenas 2 considerados críticos. E,

finalmente, no ano de 2012, foram analisados 15 artigos, dos quais 7 foram

considerados acríticos e 6 críticos. No total, dos 46 artigos publicados no período,

apenas 11 foram classificados como críticos.

Resultados e discussões

No ano de 2010 foram encontrados 19 artigos publicados na base de dados da

SciELO, dos quais 11 eram relacionados de alguma forma com revistas e publicações

da área da saúde, principalmente, da área da psiquiatria ou neurologia. Os outros oito

artigos estavam relacionados com publicações de outras áreas, tais como psicologia

e filosofia, porém, dentre eles, apenas três foram considerados como críticos.

Dentre as discussões apresentadas nos artigos classificados como acríticos

encontramos temas sobre o diagnóstico do TDAH e outras síndromes associadas,

sobre pesquisas no campo das neurociências que consideram a existência de

estruturas cerebrais e neuroquímicas relacionadas ao diagnóstico, estudos sobre o

uso e os efeitos da medicação nos casos de crianças diagnosticadas e pesquisas

sobre a utilização de testes para facilitar a identificação dos supostos “portadores” de

TDAH. Dentre as diversas análises possíveis, aqui, destacaremos alguns artigos

considerados significativos para representar os processos de medicalização da

infância.

A administração de medicamentos psicofarmacológicos apresenta

reconhecidamente um caráter experimental que gera, muitas vezes, a modificação

dos diagnósticos conforme a variação dos sintomas apresentados no decorrer do

suposto tratamento terapêutico determinado pela psiquiatria (GUARIDO, 2007).

Entretanto, mesmo diante de incertezas, a psiquiatria continua a levar adiante

discursos de que nossa vida mental decorreria inteiramente de explicações

neurobiológicas.

A partir dessas considerações, destacamos o artigo Síndrome de Gilles de la

Tourette associada ao transtorno de déficit de atenção com hiperatividade: resposta

clínica satisfatória a inibidor seletivo da recaptura de serotonina e metilfenidato (2010)

como um exemplo desse caráter experimental da administração de medicamentos

psiquiátricos. O artigo em questão descreve o caso clínico de um garoto de 12 anos

que foi encaminhado ao Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Gaffrée e

Guinle (HUGG) para avaliação diagnóstica e conduta terapêutica (aos nove anos,

quando cursava a 2ª série do ensino fundamental). Na ocasião, estava em uso de

carbamazepina, ácido valproico, risperidona e fluoxetina, e já utilizava todos esses

medicamentos desde os sete anos de idade. Naquele Serviço de Psiquiatria, conforme

nos descreve os autores, o menino seria diagnosticado com Síndrome de Tourette,

Transtorno obsessivo-compulsivo e Transtorno de Déficit de Atenção com

Hiperatividade, tipo combinado, segundo os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR. No

decorrer do tratamento, aumentaram a dosagem de fluoxetina, parou-se gradualmente

com a carbamazepina, o ácido valproico e a risperidona. Porém, por conta de

comportamentos considerados como hiperativos, iniciou-se o tratamento com

metilfenidato, combinado a fluoxetina. Na conclusão do caso exposto, os autores

comentam que o paciente, em uso daquelas medicações há dois anos, agora, “sentia-

se melhor” e com a resolução de todos os problemas escolares. Nesse contexto,

chamamos atenção para uma redução do sofrimento psíquico dessa criança a uma

disfunção meramente biológica que será tratada essencialmente com medicamentos

psicofarmacológicos, em números e dosagens nada desprezíveis, situação observada

na maioria dos artigos deste levantamento.

Dentre os três artigos considerados como críticos podemos citar o estudo,

Discurso médico y estrategias de marketing de la industria farmacéutica en los

procesos de medicación de la infancia en Argentina (2010), que apresenta uma

reflexão qualitativa acerca da problemática da medicalização da infância. Estudo

interdisciplinar, que busca explorar o discurso do campo médico – pediatras,

psiquiatras infanto-juvenis e neurologistas infantis – em torno da construção

diagnóstica do TDAH e sua abordagem terapêutica nos sistemas públicos e privados.

De forma complementar, aborda a relevância dos mecanismos de marketing da

indústria farmacêutica que influenciam na ampliação do diagnóstico do TDAH.

Além disso, o artigo Classificações interativas: o caso do Transtorno de Déficit

de Atenção com Hiperatividade infantil (2010) trata da questão das classificações que

o mundo ocidental constrói acerca de determinados comportamentos e fenômenos

sociais e a representatividade que tem cada um deles. Neste trabalho, os autores

abrem espaço, também, para a problematização e compreensão de um fenômeno

muitas vezes recorrente aos que foram diagnosticados por essa “classificação oficial”

de uma doença e a resposta do social sobre o mesmo. Nesse sentido, o artigo trata

de forma crítica o problema recorrente da patogênese e o efeito de arco que incide

sobre esta, e destaca ainda que cada classificação, rotulação ou, até mesmo,

enquadre medicalizante pode apresentar um peso sobre a vida das pessoas, que

ficam à deriva desses conceitos sistematicamente construídos através dos tempos. A

biologização – isto é, a postulação de causas biológicas e individuais para os sintomas

apresentados pelo sujeito – e a consequente patologização dos comportamentos

indesejados, em geral, são bem vistas e incentivadas socialmente. A problemática se

instaura quando as práticas de saúde e suas respectivas prescrições se tornam muito

frágeis perante as classificações diagnósticas, que são constantemente reformuladas

por aquilo que é socialmente aceito. Assim, os limites entre o saudável e o patológico,

entre o normal e o anormal, pouco a pouco se tornam difusos.

Nesse sentido, Moysés e Collares (2010) destacam que nas sociedades

ocidentais é crescente o deslocamento de problemas inerentes à vida para o campo

médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em

questões individuais e biológicas. Dessa forma, as autoras indicam que vivemos

tempos em que a biologização e homogeneização de comportamentos se amplifica,

de modo a tornar os seres humanos cada vez mais suscetíveis às atuais escalas de

classificação e diagnóstico.

Por fim, o terceiro artigo crítico encontrado, intitulado como Notas Sobre a

História Oficial do Transtorno do Déficit de Atenção/hiperatividade TDAH (2010),

destaca dois pontos importantes da história oficial do diagnóstico do TDAH: as

descrições do médico inglês George Still, de 1902, que vinculou o transtorno a um

defeito da vontade inibitória, portanto, um “defeito no controle moral” que tinha como

base três suportes: cognição, consciência moral e vontade; e a síndrome da encefalite

letárgica, na primeira metade do século XX, que foi uma infecção misteriosa que

possuía muitas semelhanças com TDAH e impulsionou, assim como o TDAH, uma

enorme produção científica sobre o corpo e o cérebro, se apoiando na pesquisa

cerebral dos sistemas inibitórios. Neste artigo, a autora considera também os

elementos morais e políticos na história oficial do TDAH e define que eles fazem parte

dos níveis mais profundos da constituição desse diagnóstico. Para ela, uma das

formas de se construir um diagnóstico é desconsiderando todo seu círculo, isto é,

“desconsideram os aspectos morais, sociais, políticos, econômicos e institucionais

que alimentam a constituição do fato patológico” (CALIMAN, p. 49, 2010). Desse

modo, somos convidados a pensar as variáveis culturais e históricas envolvidas no

diagnóstico e como o TDAH legitimou um discurso neurobiológico sobre a atenção e

vontade.

No ano de 2011, dos 11 artigos analisados, consideramos que 9 eram trabalhos

que se classificavam dentro do conjunto de acríticos. E apenas dois apresentavam

posicionamentos críticos que tanto traziam perspectivas contrárias ao paradigma das

neurociências quanto ressaltavam a importância de valorizarem um novo olhar sobre

os problemas relacionados à infância com o intuito de viabilizarem novas práticas para

superar as generalizadas prescrições de psicofármacos.

Em relação aos artigos considerados acríticos todos traziam apontamentos

sobre o diagnóstico do TDAH baseados no DSM sem problematizarem a validade

teórico-científica deste instrumento psiquiátrico que, recentemente, seria questionado

inclusive pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), um dos

principais órgãos financiadores de pesquisas na área e que participava efetivamente

da revisão da nova edição do manual juntamente com a APA (Associação norte-

americana de psiquiatria) e que declararia o abandono oficial da futura publicação, o

DSM V (INSE, 2013).

Em quatro daqueles artigos acríticos foram problematizados o papel da escola

no manejo com as crianças consideradas hiperativas e com problemas de

aprendizagem. Ao contrário daqueles estudos elucidarem os problemas das

instituições educacionais, das dificuldades de relacionamento professor-aluno, das

salas de aula superlotadas, entre outros fatores que poderíamos elencar aqui, todas

aquelas pesquisas consideravam que o mal que acomete cada vez mais crianças e

adolescentes está relacionado ao corpo biológico e seus desequilíbrios

neuroquímicos. Dentre os trabalhos sobre as instituições educacionais e o TDAH,

destacamos o artigo, Escola e desenvolvimento psicossocial segundo percepções de

jovens com TDAH (2011), em que os autores consideravam que a escola mal

preparada para receber e trabalhar com alunos diagnosticados com TDAH propagaria

discursos preconceituosos e bullying. Entretanto, a determinação de diagnóstico, no

âmbito da psiquiatria, já é por si só produtor de processos discriminatórios ao definir

o que seria um comportamento, atitude e gestos considerados como normais e

anormais (FOUCAULT, 2006).

Dentre os outros artigos classificados como acríticos, podemos destacar o

trabalho que recebe como título “Técnicas avançadas de ressonância magnética do

crânio em crianças portadoras de TDAH”, no qual o grupo de autores apresenta um

estudo sobre pesquisas que mostrariam que na ressonância magnética seria possível

identificar diferenças entre os cérebros de crianças diagnosticadas quando

comparados aos cérebros de crianças não diagnosticadas com TDAH. Pesquisas

como essa têm sido apresentadas no meio científico como uma grande descoberta

das neurociências e como forma de confirmar que haveria diferenças orgânicas e

estruturais no cérebro de pessoas “portadoras” e não “portadoras” de transtornos

mentais.

Por fim, no ano de 2012, foram encontrados sete artigos que se posicionavam

de forma acrítica em relação ao processo de patologização e medicalização dos

sintomas do TDAH. Esses artigos abordaram questões pertencentes ao TDAH de

forma reducionista, de modo a desconsiderar aspectos, sociais, culturais ou

educacionais em detrimento dos conhecimentos biológicos e da neurociência.

Dessa forma, os autores dos artigos se utilizaram de testes estatísticos e de

estudos com grupo controle e grupo experimental para comprovar suas hipóteses de

pesquisa. A partir dos métodos utilizados naquelas pesquisas seriam analisadas

pequenas amostras que depois seriam generalizadas para a população diagnosticada

com TDAH. Ao se fazer este tipo de análise, principalmente com crianças, os artigos

desconsideraram a subjetividade e o desenvolvimento que ocorre de forma

diferenciada em cada indivíduo. Assim, o desdobramento da infância e as aquisições

intelectuais foram examinados de forma geral sem levar em consideração o tempo

particular que cada um necessita para construir ou desconstruir um conhecimento.

Também no ano de 2012 foram encontrados seis artigos com posicionamento

crítico em relação ao diagnóstico de TDAH e ao uso de metilfenidato, com denúncias

da banalização da prescrição e do extraordinário crescimento de vendas daquele

medicamento. Os autores se utilizaram de revisões de literatura sobre o assunto, bem

como, do levantamento da história do diagnóstico de TDAH, da história de ascensão

da Psiquiatria e da indústria farmacêutica. Além disso, buscou-se analisar de forma

abrangente e multifatorial o contexto em que se notaram comportamentos atribuídos

ao TDAH e o caminho percorrido em direção à sua identificação/transformação em

sintomas patológicos.

Outros artigos apresentaram referenciais da Psicologia Histórico-Cultural,

Psicanálise, Filosofia e Ciências Sociais, que permitiram desconstruções de normas

e conceitos naturalizados pelo paradigma biomédico. Foram desenvolvidas reflexões

acerca da biomedicalização e patologização da vida apoiadas em reducionismos

biológicos, além de terem sido trazidos às discussões fatores sociais, culturais,

econômicos e políticos típicos da contemporaneidade, que nos permitem pensar a

emergência de novas formas de subjetivação características de modos de vida

pautados na globalização e capitalismo. Nesse contexto, evidenciou-se a gravidade

de pensar sujeitos apenas de acordo com o conhecimento biológico, que pode

patologizar e rotular àqueles que fogem da norma.

Enfatizou-se, em alguns artigos, a problemática do sistema educacional, que

tem se mostrado pouco efetivo no que diz respeito a acompanhar as transformações

dos modos de vida, e atribuído comodamente os problemas de ensino às crianças.

Assim, pode-se dizer que o ambiente escolar tem se constituído como uma grande

engrenagem que movimenta a ocorrência de diagnósticos de TDAH e a prescrição e

comercialização de medicamentos.

Investigaram-se aspectos das Neurociências, bem como da Psiquiatria, que

podem nos levar a pensar em uma parceria dessas áreas com a indústria

farmacêutica, uma vez que o TDAH se mostra como um transtorno

inventado/oficializado posteriormente à descoberta de um medicamento que pudesse

amenizar os sintomas atribuídos a esse transtorno.

Em suma, em alguns artigos o TDAH foi abordado como uma construção

consequente de reducionismos biológicos e genéticos. Neles, mostrou-se a

necessidade de reflexões sobre o diagnóstico e a utilização de medicamentos, que

podem ser claramente prejudiciais aos indivíduos. Contestou-se também a ampla

divulgação e incentivo ao diagnóstico, que chega aos mais variados ambientes por

meio de estratégias da indústria farmacêutica, e são acatados como formas de

combate ou tratamento a patologias já naturalizadas no imaginário social.

Conclusões

Na análise das recentes publicações científicas pudemos perceber como as

neurociências desenvolveriam diversas pesquisas e estudos que prometem

desvendar a estrutura funcional do cérebro e definir os desequilíbrios que provocariam

“perturbações mentais”, conflitos existenciais e problemas escolares e de

aprendizagem. No bojo das pesquisas neurocientíficas ainda estariam os

pesquisadores das áreas educacionais, como pedagogos e psicólogos, que

pretendem desenvolver técnicas cognitivas comportamentais que visem melhorar o

desempenho por meio do controle de comportamentos de crianças diagnosticadas

com TDAH. A artilharia direcionada à infância problema e diagnosticada com TDAH

seria composta por diversos saberes que desenvolveriam diariamente novas

estratégias e táticas que prometem acabar com o inimigo seja por meio das técnicas

de definição de diagnóstico, dos mecanismos utilizados para reconstrução da

normalidade através de ritalinas e pelas determinações terapêuticas e estratégias

educacionais nas escolas que englobariam condicionamentos, reforços e controle de

condutas consideradas inadequadas.

O presente trabalho pode notar que o número de artigos fundamentados em

critérios diagnósticos não confiáveis, como o DSM, é consideravelmente maior que o

número de artigos que levantaram um questionamento e uma problematização a

respeito do tema. Consideramos, portanto, importante o avanço das pesquisas sobre

o assunto a fim de levantar questionamentos e problematizações a todos os

pesquisadores da área da saúde mental, além de alertá-los para o fato de que o saber

psiquiátrico clássico tal como postulado nos manuais estatísticos não detém toda

verdade sobre a subjetividade humana e, ainda, está imerso em uma rede de

agenciamentos com interesses políticos, sociais e econômicos próprios que devem

ser questionados.

Referências Bibliográficas

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Jogo de resistência entre a docência e a saúde: um estudo com as professoras da Educação Infantil de uma cidade de porte médio no Rio Grande do Sul, Brasil.

 

Maria de Fátima Duarte Martins

Universidade Federal de Pelotas - UFPel

Jarbas Santos Vieira, José Roberto Feijó, Vanessa Gonçalves Bugs

Palavras chaves: medicamentação, processo de trabalho docente, educação infantil.

Introdução

Os primeiros estudos sobre as repercussões do trabalho na saúde dos

professores surgiram na década de 80. No Brasil esses estudos são mais recentes

e aparecem no final da década de 90, quando se elevou consideravelmente a

prevalência de problemas de saúde nas professoras e professores ocasionando o

aumento das solicitações de licenças de saúde, e o absenteísmo, que geraram

problemas nas escolas e insatisfação na profissão docente. Anterior a esse período

a maioria dos estudos dedicados à saúde do trabalhador estavam focados em

outras atividades laborais. (Apple, 1997; Carlotto, 2002; Delcor, N., S. et.al, 2004;

Gasparini et.al, 2005 & Araújo et.al., 2008). Essa emergência de estudos justifica-

se pela necessidade de estudar as relações entre o conflito das professoras para

adequaram-se as situações de trabalho educacional na sua maioria conflituosa e

pouco favorável, e as tentativas de atenuar os efeitos prejudiciais dessa condição

sobre a saúde, através do uso de medicamentos.

No final do século XX são instituídas no Brasil as reformas políticas

educacionais para a educação básica que estimulam a moral de auta

responsabilização e culpa por parte das professoras, que, aliada à deterioração dos

salários e das condições de trabalho, vem contribuindo para a intensificação e auto

intensificação do trabalho docente e para a geração de frustrações e desencantos

(Garcia, 2004) e isso pode levar ao adoecimento. Para o psicólogo Espanhol José

Esteve (1999) - podem ser desastrosas as desorientações provocadas por

indivíduos quando estes se vêm obrigados a mudanças excessivas em um período

curto de tempo.

José Esteve (1999) cunhou o termo - mal estar docente - para designar o

conjunto de conseqüências negativas que afetariam o professor a partir da ação

combinada das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência.

Para este autor, as repercussões psicológicas do mal-estar docente, percorrem uma

ampla escala que inclui pelo menos sentimentos de desconcerto e insatisfação ante

os problemas reais da prática do magistério, em franca contradição com a imagem

ideal do que é ser professor e o que gostariam de realizar, desenvolvimento de

esquemas de inibição, como forma de cortar a implicação pessoal no trabalho

realizado, pedidos de transferência de escola para fugir de situações conflitivas,

desejo de abandonar a docência (realizado ou não), absentismo trabalhista como

mecanismo para cortar a tensão acumulada, esgotamento e cansaço físico

permanente, depreciação do ego, depressão e auto culpabilização ante a

incapacidade para melhorar o ensino.

A combinação desse conjunto de conseqüências negativas psicológicas e

sociais em que se exerce a docência afetam o cotidiano dos professores e com o

passar do tempo conduz a um desgaste emocional e físico, estranhamento de seu

lugar de trabalho, seus colegas, seus estudantes e sua profissão. Nesse sentido de

acordo a Vieira et.al. (2009), o consumo de medicamentos está se tornando uma

busca pelo reequilíbrio e readaptação frente às intensas exigências das atividades

educativas, as inúmeras demandas e a falta de suporte social. Professoras buscam,

nos medicamentos prescritos ou não, mais que aliviar suas dores, fórmulas que

produzam disposição e energia para enfrentar a rotina diária, não somente na

escola, mas em casa e em outros espaços sociais que atravessam a profissão

docente e a vida privada. Medicamentação então se configura como um elemento

presente no processo pedagógico (e administrativo) das escolas, assim se

constituindo em mais um dispositivo de controle do professorado. Frente ao

conjunto de preocupações e desgastes físicos e emocionais no trabalho há uma

mudança da conduta das professoras, levando- as a adotar medidas emergenciais

que reorganizem as emoções, os sentimentos de inadequação e as desordens do

corpo para lidar rapidamente com as demandas do cotidiano.

Os resultados de um estudo realizado Vieira et.. al (2009) encontrou que as

professoras das crianças pequenas foram as que mais se afastaram do trabalho por

motivos de doenças. No Brasil estudos sobre o trabalho das professoras da

Educação Infantil e sua repercussão na saúde, ainda são escassos, em parte pelo

fato de ser recente a criação de instituições responsáveis pela Educação Infantil.

Com relação à rede pública municipal, foco desse estudo foi a partir de 2003

através da Lei 9394/96, que se criou o Sistema Municipal de Ensino de Pelotas (Lei

Municipal nº 4094 A nova lei contemplou a formação das professoras para atuarem

na Educação Infantil exigindo formação específica A possível relação entre

adoecimento e trabalho docente pode ter parte de sua origem nas mudanças do

papel do professorado, nas transformações do contexto social, no qual elas e eles

exercem a sua profissão, e nas mudanças das expectativas, de apoio e de

julgamento deste contexto social sobre as educadoras e educadores (Esteve, 1999;

Sacristán, 2008).

Esse trabalho é um recorde de um estudo realizado com todas as

professoras das Escolas Municipais de Educação Infantil da cidade de Pelotas, Rio

Grande do Sul, Brasil em que se avaliaram as características psicossociais das

professoras e sua relação com o trabalho e o consumo de medicamentos.

Apresenta-se resultados preliminares da pesquisa ‘A produção do mal-estar

docente nas Escolas Municipais de Educação Infantil de Pelotas (EMEIs)’ (2010-

2012)1, relativos ao uso de medicamentos por parte das docentes que atuam neste

nível de escolaridade. Trata-se, portanto, de uma discussão que funciona como

indicador de problemas relacionados à saúde do professorado, apontando alguns

elementos derivados do chamado mal-estar docente e relacionados ao processo de

trabalho educativo

                                                            

1 Pesquisa financiada pelo CNPq. 

Método

O estudo aqui apresentado é o resultado preliminar da pesquisa - A

Produção do mal-estar docente nas Escolas Municipais de Educação Infantil de

Pelotas – que teve como objetivo analisar a relação entre mal-estar docente e o

processo de trabalho desenvolvido pelas professoras que atuam nas Escolas

Municipais de Educação Infantil. Trata-se do desdobramento da pesquisa

‘Constituição das Doenças da Docência (Docenças) que analisou aspectos,

dimensões e elementos do processo de trabalho das professoras de escolas

públicas municipais de Ensino Básico da cidade de Pelotas e a sua relação com o

adoecimento. Os resultados desse estudo apontaram as professoras da Educação

Infantil como as que solicitaram mais licenças para tratamento de doenças

relacionadas aos transtornos mentais menores tais como, depressão, ansiedade e

estresse.

Mobilizados por esse resultado no ano de 2010 elaborou-se um novo

projeto voltado para esse grupo de professoras. Trata-se de um estudo de caráter

censitário. O Projeto foi financiado pelo CNPq e realizado em parceria com a

Secretaria Municipal de Educação, Biometria Médica e Secretaria de Saúde. O

projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres

Humanos, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e as recomendações da

Resolução n196/96 foram criteriosamente seguidas.

A rede municipal de Pelotas é composta de 27 Escolas Municipais de

Educação Infantil (EMEIS), que trabalham com crianças de zero a cinco anos de

idade. Para esse estudo optou-se por trabalhar com as professoras em exercício

diário com crianças. Os dados funcionais foram fornecidos pela Secretaria de

Administração, os dados referentes ao número de licenças de saúde e as doenças

mais freqüentes foram cedidos pelo Serviço de Biometria Médica. A pesquisa está

dividida em duas etapas: uma quantitativa e outra qualitativa. A etapa quantitativa

avaliou as características psicossociais do trabalho, utilizando o Job Content

Questionnaire (JCQ) desenvolvido por Karasek (1987), validado para o Brasil por

Tânia Araújo (Araújo, 2008) e traduzido para o Português como Questionário sobre

Conteúdo do Trabalho.

Foram acrescentadas ao questionário informações sobre o uso de

medicamentos por parte das professoras que atuam nas EMEIS. A primeira questão

referiu-se ao uso de medicação no trabalho - Para lidar com a rotina de meu

trabalho estou tomando alguma medicação? E a segunda referiu-se ao tipo de

medicamento utilizado. - Indique os tipos de medicamento que você toma ou já

tomou para dar aulas (uma ou mais opções).

Para a criação do banco de dados e análise das variáveis coletadas utilizou-

se o programa Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 13.0. A

pesquisa está sendo desenvolvida em duas etapas uma de caráter quantitativo, já

terminada que avaliou as características psicossociais do trabalho, e uma de caráter

quantitativo, ainda em andamento, cujo intuito é explorar as práticas educacionais

utilizadas pelas professoras em seu cotidiano de trabalho, bem como sua

compreensão sobre a relação do seu processo de trabalho com sua saúde. A

concordância das professoras em participar do estudo foi registrada em Termos de

Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Para esse trabalho analisou-se as informações sobre o uso de

medicamentos sem fazer uma análise ou relação com os resultados encontrados

referentes aos aspectos psicossociais. Portanto, todas as professoras da Rede

Municipal de Educação (N=196) responderam o questionário. Dessas 99% são

mulheres, todas trabalham 40 horas semanais com crianças de zero a cinco anos, a

média de idade é de 38 anos. Em relação à formação 77 (39,3%) possuem pós-

graduação e 27,6%, possuí nível superior completo. O tempo médio na profissão foi

de nove anos. A carga horária de todas as professoras é de 40 horas semanais.

Quanto ao uso de medicação o número absoluto totaliza 89 casos, o que

indica que menos de 50% das respondentes associam o uso de medicamentos ao

processo de trabalho docente. (figura 1).

N %

Toma algum medicamento 49 25 Não toma medicamento 106 54,1As vezes toma medicamento 40 20,4Não informado 1 0,5

Total 195 99

Na segunda questão – referente a uso de medicação para dar aulas, o

resultado demonstrou que ao analisar os dados encontrou-se que das 196

professoras, 120 docentes referiram tomar que algum tipo de droga para dar aula,

elevando o percentual de usuárias de medicação para 61,2%. (figura 2)

N %

Toma algum medicamento 120 61,20Não toma medicamento 76 38,80Total 196 100

Sobre o tipo de medicamentos consumidos, os analgésicos e os

antidepressivos são os medicamentos mais consumidos, seguidos pelos anti-

inflamatórios, antibióticos e anti-alérgicos. Os resultados apontam para um elevado

consumo de medicamentos os quais que podem ser comprados sem prescrição

médica.

Considerações finais

O trabalho da professora da Educação Infantil exige uma competência polivalente,

conforme apregoa os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). E ser polivalente

significa que à professora cabe trabalhar com conteúdos de naturezas diversas, que

abrangem desde cuidados básicos essenciais até saberes específicos provenientes

das diversas áreas do conhecimento. Sem dúvida que na forma como esse discurso

curricular está posto e vivido dentro das EMEIs vem causando muitos conflitos no

dia a dia das escolas e consequentemente na saúde das professoras.

Este caráter polivalente demanda, no plano teórico, uma formação bastante

ampla da profissional, que deve tornar-se, ela também, uma aprendiza, refletindo

constantemente sobre sua prática, debatendo com seus pares, dialogando com as

famílias e a comunidade, buscando, enfim, (in)formações necessárias para o

trabalho que desenvolve. Somado a isso a necessidade de, cada vez mais,

preencherem relatórios sobre objetivos e competências alcançados ou não por cada

um de seus alunos e alunas. Tantas exigências têm levado a intensificação de seu

trabalho e, em contra partida, a remuneração ainda não corresponde à carga

trabalhada cotidianamente.

Por outro lado os discursos das demandas oficiais com alto poder de

penetração na mídia, discursos.tem colocado os professores e as professoras tem

sido apontados como os grandes responsáveis pelo fracasso do sistema escolar

público e pelo insucesso dos alunos. Esse discurso interpelou e vem interpelando

os docentes, principalmente da escola pública do ensino fundamental e médio

(Anadon, Garcia, 2004; Hipólito et.al,2003.) produzindo uma demanda que vem

justificando as políticas de formação e certificação .

Diante de tantas exigências e de inúmeras dificuldades, as professoras

colocam em jogo diversos mecanismos de defesa para preservar sua saúde, como

são os esquemas de inibição da rotina ou o absentismo trabalhista e, no caso aqui

apresentado, no alto consumo de medicamentos. Entretanto, ao mesmo tempo em

que percebemos o compromisso com o cuidado e com a educação de crianças

pequenas, também percebemos momentos de desânimo causados pela

desvalorização salarial e pelas condições precárias de trabalho, talvez

potencializando o próprio adoecimento de muitas delas.

O alto consumo de medicamentos está cada vez mais se imiscuindo no

processo de trabalho docente dessas professoras. A isto estamos caracterizando

como medicamentação, que é a relação entre a adequação das professoras a

situações conflituosas do seu ofício e as tentativas de atenuar os efeitos prejudiciais

dessas condições sobre a sua saúde, através do consumo de medicamentos. As

docentes tentam através de medicação modos de aliviar os problemas que a

atividade laboral vem trazendo a sua saúde, procurando combater, o que pensam

ser, a origem de seus problemas.

Pesquisas no campo educacional (Codo, 2002; Esteve, 1999; Vieira et al.,

2009) têm mostrado que professoras vêm perdendo a vontade e o prazer em

exercer a docência e, com o passar do tempo, o desgaste tem conduzido grande

parte das profissionais a estranhar seu lugar de trabalho, seus colegas, estudantes

e sua profissão. Nesse sentido, o consumo de medicamentos está se tornando uma

busca pelo reequilíbrio e readaptação frente às intensas exigências das atividades

educativas, as inúmeras demandas e a falta de suporte social. Professoras buscam,

nos medicamentos prescritos ou não, mais que aliviar suas dores, fórmulas que

produzam disposição e energia para enfrentar a rotina diária, não somente na

escola, mas em casa e em outros espaços sociais que atravessam a profissão

docente e a vida privada.

Medicamentação então se configura como um elemento presente no

processo pedagógico (e administrativo) das escolas, assim se constituindo em mais

um dispositivo de controle do professorado. Frente ao conjunto de preocupações e

desgastes físicos e emocionais no trabalho há uma mudança da conduta das

professoras, levando-as a adotar medidas emergenciais que reorganizem as

emoções, os sentimentos de inadequação e as desordens do corpo para lidar

rapidamente com as demandas do cotidiano.

De acordo a Vieira et.al. (2009) o uso de medicamentos mantém um estreito

vínculo com a ideia do magistério como sacrifício - abandono e renúncia de si -,

haja vista que muitas docentes dispensam licenças de saúde ou mesmo adiam

cirurgias para finalizar o ano letivo, fechar avaliações, cumprir as obrigações com

colegas de trabalho, com seus alunos e com a escola, tornando a medicação um

componente cada vez mais constituinte do processo de trabalho.

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MEDICALIZAÇÃO DA ANORMALIDADE: FORMAS DE CONDUZIR A CONDUTA DOS SUJEITOS NA CONTEMPORANEIDADE

Kamila Lockmann – UFRGS/FURG1 Letícia Farias de Caetano - FURG2

Este texto apresenta um recorte de uma investigação que analisa os efeitos produzidos pelo saber médico nos sujeitos incluídos nas escolas contemporâneas. A partir da perspectiva pós-estruturalista e de algumas contribuições do pensamento foucaultiano analisamos um conjunto de fichas de encaminhamentos que são preenchidos por professores para encaminhar o aluno a algum atendimento especializado. Tais documentos reúnem um conjunto de discursos que descreve os comportamentos dos alunos, classificando-os e posicionando-os por meio dos diagnósticos produzidos. Além disso, esse material também expressa as intervenções desenvolvidas sobre os sujeitos escolares com o intuito de corrigir suas condutas indesejáveis. Como complemento aos discursos materializados nas fichas, realizamos entrevistas semiestruturadas com professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental de um Munícipio da Região Metropolitana de Porto Alegre-RS. Tais análises nos permitem evidenciar duas operações que o saber médico coloca em funcionamento: nomeação e normalização da anormalidade. A primeira delas desenvolve uma série de saberes sobre os sujeitos infantis com o intuito de classificá-los, descrevê-los e diagnosticá-los. A segunda desenvolve procedimentos de normalização dos sujeitos escolares, preponderantemente, aqueles vinculados à medicalização. A partir dessas discussões pretendemos mostrar como a medicina – relacionada tanto com a escola, quanto com a inclusão – pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica que pretende gerenciar ou prevenir os riscos que a anormalidade pode causar aos sujeitos e à população.

Palavras-Chave: Inclusão Escolar; Medicalização; Normalização.

Não é por acaso que a necessidade de diagnosticar os alunos a partir dos seus

supostos desvios, ou de medicalizá-los, acompanha boa parte dos discursos

educacionais e está presente nas práticas escolares atuais. Podemos dizer que a

medicina foi, pouco a pouco, se inserindo nas discussões escolares e tentando

explicar as formas de desenvolvimento, aprendizagem e comportamento

apresentadas pelos alunos. Segundo Moysés (2008, p. 4), “aprendizagem,

comportamento e inteligência são apenas exemplos de questões que são

incorporadas ao pensamento e à atuação médicos.” Atualmente a presença do saber

1 Mestre e Doutoranda em Educação pela universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pesquisadora integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Inclusão (GEPI/UNISINOS/CNPQ) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação da Infância (NEPE/FURG/CNPQ). 2 Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação da Infância (NEPE/FURG/CNPQ).

médico na escola é marcada por meio da produção de saberes sobre os sujeitos, que

através de laudos, diagnósticos ou classificações descrevem os alunos, suas

dificuldades de aprendizagem, desenvolvimento ou comportamento. Além disso, o

saber médico também se faz presente por meio de procedimentos de normalização,

notadamente aqueles vinculados à medicalização da “anormalidade”, ou seja, a tudo

aquilo que escapa, que foge, que desvia do padrão de normalidade inventado pela

ciência moderna.

Dessa forma, este artigo apresenta um recorte de uma pesquisa que analisa os

efeitos produzidos pelo saber médico nos sujeitos incluídos nas escolas regulares.

Para isso, analisamos alguns discursos coletados em 186 fichas de encaminhamento3

e em entrevistas semiestruturadas realizadas com alguns professores da Rede

Municipal de Ensino de uma Cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Tais

discursos descrevem as anormalidades dos sujeitos e não raramente receitam-lhes

medicamentos, tratamentos, ou demais intervenções que produzam efeitos

normalizadores nas formas de viver no mundo contemporâneo. A partir da análise dos

discursos selecionados, foi possível observar duas operações diferentes, mas

articuladas entre si, que o saber médico coloca em funcionamento. A essas operações

chamamos “nomeação e normalização da anormalidade”. Na primeira delas, que

abordaremos mais rapidamente, encontramos laudos e diagnósticos sobre os alunos

que tem o objetivo de nomear, de classificar, de enquadrar os sujeitos de acordo com

um aparato de saber médico que os define como normais ou anormais. Na segunda

podemos visualizar procedimentos de normalização dos sujeitos escolares,

preponderantemente, aqueles vinculados à medicalização. A partir dessas discussões

pretendemos mostrar como a medicina – relacionada tanto com a escola, quanto com

a inclusão – pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica que pretende

gerenciar ou prevenir os riscos que a anormalidade pode causar aos sujeitos e à

população. É, portanto, uma tecnologia que age por meio dos processos

normalizadores do sujeito para atingir o plano coletivo e desenvolver mecanismos

controladores/ regulamentadores da sociedade. É preciso agir sobre cada indivíduo

para conseguir alcançar o governo no plano da população. Foucault (2008, p. 63)

3 Essas fichas de encaminhamento apresentam algumas perguntas elaboradas pela equipe da Secretaria de Educação do referido município e devem ser preenchidas pelos professores e coordenadores pedagógicos das escolas, quando desejam encaminhar alunos a algum atendimento especializado, tais como: psicologia, psicomotricidade, dançaterapia, psicopedagogia, arteterapia, fonoaudiologia, neurologia e ecoterapia.

destaca que “A população é pertinente como objetivo, e os indivíduos, os grupos de

indivíduos, a multiplicidade de indivíduos, [...] o serão simplesmente como

instrumento, relevo ou condição para obter algo no plano da população”. Assim, a

biopolítica é uma tecnologia que inaugura novos mecanismos de intervenção do poder

e extração de saber, com a intenção de governar a população e os fenômenos

produzidos pela vida na coletividade.

A nomeação e a normalização dos sujeitos escolares

Atualmente podemos dizer que a presença de saberes da área psi e da área

média encontram-se em evidência no interior das instituições de ensino. O desvio de

comportamento, por mínimo de seja, causa estranhamento, incômodo e por isso, há

a necessidade de tornar tais sujeitos conhecidos, nomeados, diagnosticados e

corrigidos, garantido assim a segurança da população por meio da manutenção e da

produção da “normalidade”. Parece que podemos visualizar alguns deslocamentos no

papel e na atuação da escola na Contemporaneidade. O espaço pedagógico parece

perder seu lugar e função no interior da instituição escolar, transformando-se num

grande laboratório clínico e terapêutico. A ênfase disciplinar sempre presente na

Escola Moderna engendra-se com novas lógicas de controle da população e aquilo

que não pode ser corrigido através do disciplinamento dos corpos, passa então a ser

moldado e normalizado pelo o uso da medicação. Os saberes e procedimentos

médicos tornam-se mais uma ferramenta de governamento utilizada no espaço

escolar e a justificativa pela não aprendizagem é respaldada por diagnósticos

prescritivos. Tais prescrições acabam por definir e estabelecer o grau de capacidade

dos sujeitos considerados “anormais”, delimitando o grau de potencialidade, assim

como os investimentos pedagógicos desenvolvidos sobre eles.

A prevenção de desvios comportamentais tornou-se uma tática econômica. É

necessário identificar os sujeitos com comportamentos indesejáveis, agressivos,

agitados, que não respeitam as regras determinadas, para que seja possível agir

sobre eles com o objetivo de gerenciar riscos futuros que eles podem produzir para si

e para a sociedade. Vale lembrar que não são apenas os casos de hiperatividade que

são considerados inadequados e interpelados no/pelo espaço escolar; também os

sujeitos ditos “lentos”, distraídos são considerados um risco para a ordem social, pois

são sujeitos improdutivos e incapazes de gerir sua própria vida, causando assim, um

prejuízo para a sociedade. Estes sujeitos também devem ser conhecidos,

classificados, diagnosticados e corrigidos a partir de intervenções psicológicas,

terapêuticas e medicamentosas que vemos circular e se proliferar nas escolas

atualmente.

A partir dessas discussões adentramos no material empírico e destacamos

excertos das fichas de encaminhamento analisadas que nos permitem perceber a

primeira operação anunciada anteriormente: a nomeação dos sujeitos anormais. Os

excertos a seguir mostram a forma como os sujeitos escolares são classificados,

descritos e posicionados pelas redes de saber e de poder que instituem as práticas

da escola moderna.

Apresenta distúrbios de comportamento (Documento 2), Tem hiperatividade (Documento 3), O menino tem retardo mental (Documento 4), O aluno é portador da síndrome do X frágil (Documento 5), Tem crises convulsivas – Epilepsia (Documento 6), A aluna tem problemas de visão e diabetes (Documento 7), Tem síndrome de Down (Documento 8), Teve asma e refluxo desde bebê, bem como problemas de oxigenação (Documento 9), Suspeita-se de hiperatividade. (Documento 10).

A prescrição de laudos e diagnósticos, como os apresentados acima, ou a

descrição das diversas anormalidades dos sujeitos, tais como os distúrbios de

comportamento, síndromes diversas e problemas de saúde, passam a compor o

campo de atuação e de intervenção do saber médico, definindo as dificuldades e

potencialidades dos sujeitos escolares e produzindo novas intervenções no campo

pedagógico. Tais definições e prescrições precisam ser problematizadas. Com isso

não queremos marcar uma postura contrária à produção dos diagnósticos, como se

eles não oferecessem ferramentas produtivas para o desenvolvimento do trabalho na

escola. Como aponta Freitas (2009, p. 19),

O conceito de diagnóstico pode trazer inúmeras conformações, dependendo da teoria e/ou do tempo histórico em que se constitui. Um diagnóstico elaborado com cuidado é interessante e necessário. O diagnóstico é importante para poder tratar, mas existem outros que selam, que aprisionam. É o modo de usá-lo que estabelece sua pertinência, ou mesmo sua inconveniência. O que é necessário combater é o uso irresponsável do diagnóstico. O diagnóstico traduzido em rótulo desencadeia dispositivos de armadura.

Sendo assim, reconhecemos a importância do diagnóstico para que se possa

conhecer melhor o sujeito, suas formas de aprender e se relacionar e, a partir disso,

propor práticas pedagógicas mais adequadas e eficazes ao seu desenvolvimento.

Porém, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, em muitas ocasiões, o

diagnóstico produz um rótulo, atribui uma marca ao sujeito. É preciso compreender

que historicamente o saber médico vem ocupando um espaço de legitimidade e de

cientificidade e, quando produz um diagnóstico sobre os sujeitos, também está, ao

mesmo tempo, produzindo determinadas verdades sobre eles, conferindo-lhes uma

série de características, estabelecendo níveis do seu desenvolvimento, limitações

para a sua aprendizagem, assim como fazendo prescrições para a sua própria vida.

O questionável é justamente a forma como, muitas vezes, o saber médico

delimita os progressos, o crescimento e o desenvolvimento daquelas crianças

diagnosticadas. Problematizar essas questões não significa dizer que o saber médico

não tem importância, ou, ainda, conferir-lhe uma negatividade. Não pretendemos

produzir um juízo de valor posicionando o saber médico como bom ou ruim à

humanidade, ou à própria escola; no lugar disso, marcamos uma postura de suspeita

sobre esses determinismos que, muitas vezes, ele produz. Mais do que isso, muitas

vezes, ele limita o nosso olhar sobre o sujeito e, principalmente, sobre aquilo que

acreditamos que ele possa produzir ou aprender. Ou seja, passa-se a olhar muito mais

para o diagnóstico, para a doença e não tanto para o sujeito e suas possibilidades.

Portanto, é preciso entender que a “nomeação” dos sujeitos, muitas vezes, posiciona-

os como incapazes, não aprendentes, ou com dificuldades de aprendizagem.

Além disso, a “nomeação” vem acompanhada por uma “normalização”,

expressão que utilizamos para referir a segunda operação que o saber médico coloca

em funcionamento.

É nesse ponto que se torna possível perceber a articulação existente entre toda

essa produção de saberes sobre os anormais4, as técnicas de normalização

efetivadas e as estratégias biopolíticas. Primeiramente é preciso desenvolver todo um

aporte científico que torne esses sujeitos observáveis e explicáveis. A primeira

operação é tornar conhecido, nomear, descrever, categorizar, classificar para que, só

então, sua diferença possa ser capturada, regulada, governada. Essa primeira

operação –nomeação da anormalidade– é condição fundamental para que se possa

atuar sobre esses sujeitos, governando sua diferença, sua anormalidade.

4 Utilizamos o termo “anormais” [...] para designar esses cada vez mais variados e numerosos grupos que a modernidade vem, incansável e incessantemente, inventando e multiplicando: os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas (em todas as suas variadas tipologias), os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, os GLS, os “outros”, os miseráveis, o refugo enfim (VEIGA-NETO 2001, p. 105). Sabemos que tal expressão causa incômodo e perturbação, principalmente a partir da invenção de uma série de palavras consideradas politicamente corretas para tal finalidade. Porém, o fato é que essas palavras, sensíveis ou grotescas, suaves ou rudes, ao referirem tais sujeitos, estão colocando-os num constante processo de comparabilidade com a norma, e esse processo não tem nada de inocente, pois compara, classifica e posiciona os sujeitos em lugares diferenciados.

Conhecendo-os, produzindo saberes sobre suas doenças, suas dificuldades, suas

possibilidades; é possível intervir de forma mais eficaz para regular suas formas de

ser, de agir e de se conduzir no mundo. É através dessas intervenções, que se torna

possível prevenir ou pelo menos reduzir os riscos e perigos que tais sujeitos –

anormais –trazem a população e a si próprios. Eis, portanto, a medicina atuando como

uma estratégia biopolítica que objetiva reconduzir os fluxos desviantes, extinguindo,

diminuindo ou prevenindo a ameaça que esses sujeitos produzem à sociedade.

Nos excertos apresentados a seguir, pode-se observar algumas estratégias

desenvolvidas pelo saber médico para atuar sobre os sujeitos anormais.

Tomou Tegretol por dois anos. Nunca teve convulsões. (Documento 11). Portador de deficiência auditiva, usa aparelho em decorrência da meningite. (Documento 13). Ele toma medicação. Ele tomava dois Gardenal e agora a médica achou melhor reduzir pra meio e eu já sinto que ele aumentou o nível de ansiedade dele. (Entrevista 3, 15/09/ 2009). Toma clorpriomazina. Tem acompanhamento com psiquiatra. (Documento 15). Ele frequenta neurologista, uma vez por mês, toma medicação. (Entrevista, 15/09/ 2009). Faz acompanhamento com neuropediatra em POA e toma medicação. (Documento 16).

A ingestão de medicamentos dos mais variados tipos, o uso de aparelho

auditivo, assim como as consultas sistemáticas e o acompanhamento por

neurologistas, constituem-se em técnicas de normalização desenvolvidas pela

medicina e monitoradas pela escola com o objetivo de controlar esses sujeitos,

aproximando-os ao máximo do normal. São, portanto, técnicas de normalização a

serviço de uma estratégia biopolítica. Segundo Foucault (2008, p.82-83), “a operação

de normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidade

funcionarem umas em relação às outras e em fazer [...] que as mais desfavoráveis

sejam trazidas às que são mais favoráveis”. Ou seja, pode-se notar que o saber

médico opera justamente com esse intuito de ajustar, corrigir e normalizar, formas de

ser, de se comportar ou de aprender que se apresentam como desviantes ou

indesejáveis. Para isso, ele utiliza diferentes técnicas, entre elas: consultas,

acompanhamentos sistemáticos e o uso de variados medicamentos. Essas técnicas

são voltadas ao indivíduo particular, mas atingem um plano coletivo.

Os medicamentos são utilizados como uma forma química de conduzir as condutas dos sujeitos, acalmando, concentrando e melhorando suas possibilidades de estabelecer um convívio social mais adequado. A medicina, com seus saberes e instrumentos diferenciados, age sobre cada indivíduo que se constitui como um risco para o restante da população. Por meio do saber médico, moldam-se condutas e normalizam formas de ser, corrigindo-se e adequando-se os sujeitos para a vida em sociedade. (LOCKMANN; TRAVERSINI, 2011, p. 48).

Regulando as formas de ser dos sujeitos, seja mediante consultas

sistemáticas, seja pelo uso de medicamentos, previnem-se os riscos que eles podem

produzir para a sociedade e para si mesmos.

Há, na atualidade, pode-se dizer uma proliferação do uso de medicamentos

para os mais variados fins. É necessário atentar para o uso bastante corriqueiro que

tem sido atribuído a medicamentos como Ritalina, por exemplo. Depressão,

hiperatividade, déficit de atenção, distúrbios de comportamento, abalos psíquicos,

entre outras, são doenças inventadas recentemente, as quais afetam a produtividade

dos alunos na escola e precisam ser gerenciadas e/ou medicalizadas através do saber

médico. O fato é que muitas crianças são taxadas como hiperativas ou com Transtorno

do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) por se mostrarem agitadas, inquietas

ou, até mesmo por não se interessarem pelas aulas, anunciando assim uma falta de

atenção ou de concentração, conforme o esperado para sua idade.

Freitas (2009) aborda o fenômeno do TDAH como uma epidemia deste tempo,

visto que tem atingido um número crescente de crianças em idade escolar. A autora

destaca que “[...] desde há muito tempo fala-se em crianças com TDAH, mas nas

últimas duas décadas há uma diferencial de intensidade.” (FREITAS, 2009, p. 15).

Ainda considerando essa discussão, Caliman (2006) argumenta que a linha que

separa o indivíduo com TDAH do sujeito normal é bastante tênue. Em suas palavras:

Até o momento, nenhum teste ou exame específico e preciso para a “identificação” do TDAH foi definido. Seu diagnóstico continua sendo feito através de um processo misto que inclui testes psicológicos, história clínica, análise do desempenho escolar, entrevistas com pais e professores etc. (CALIMAN, 2006, p. 75).

A autora relata ainda que toda essa tecnologia de observação e descrição dos

comportamentos, da atenção e dos interesses das crianças, são as de maior valor na

construção do diagnóstico: “Muitas vezes, o papel do médico é apenas analisar todo

esse material e confirmar o diagnóstico. Mas, em outros casos o diagnóstico é

explicitamente rejeitado pelo médico.” (CALIMAN, 2006, p. 76). Em vista disso, a

descrição de professores, de psicopedagogos, da família, ou o preenchimento de

questionários, em nosso entendimento, bastante subjetivos, são as ferramentas que

permitem ao saber médico posicionar essas crianças como normais ou anormais, a

partir do seu enquadramento ou não nos padrões bem definidos da normalidade. Seus

comportamentos, suas formas de agir e de se comportar na escola são capturados e

analisados pelo saber médico, que rapidamente encontra em diferentes

medicamentos a solução para o problema que elas representam para a escola, para

sua aprendizagem e para o próprio convívio social. Algumas delas representam uma

ameaça passageira, e suas diferenças podem ser corrigidas em um período

determinado. Porém outras são fatores permanentes, que acompanham tais sujeitos

no decorrer de sua vida. Tem-se aqui, pode-se dizer, um exemplo de como a medicina

pode funcionar, dentro da própria escola, como uma ferramenta de controle social,

acalmando, concentrando ou alegrando corpos e mentes que escapam da

normalidade. Dessa forma, podemos entender a medicina como uma estratégia

biopolítica que encontra na escola um importante mecanismo para a sua efetivação.

No excerto a seguir, podemos perceber o uso do medicamento como um instrumento

de controle do corpo, de seu comportamento e de suas atitudes.

Eu acho que ele precisa de um remedinho. Ele é muito agitado, o nível de ansiedade dele é muito grande. Se ele tomasse um remédio acredito que ele ia se acalmar, conseguir se concentrar melhor e com isso aprender melhor. (Entrevista 2 13/09/2009).

A partir da fala citada acima, é possível notar o quanto o uso de medicamentos,

com a finalidade de moldar as condutas dos sujeitos, acabou não só se proliferando

no interior das escolas, mas também se banalizando. Pode-se dizer que, quando as

demais técnicas de disciplinarização dos corpos fracassam com determinados

sujeitos, recorre-se ao uso de medicamentos que acalmam, concentram e disciplinam

os alunos agitados, inquietos, hiperativos, agressivos, entre outros. Para usar uma

expressão de Bujes os alunos passaram a ser quimicamente disciplinados. Segundo

a autora (2006, p. 226),

Para essas crianças, nem o confinamento, nem a vigilância têm sido suficientes, os controles do tempo e sua fixação no espaço da sala de aula têm se revelado inoperantes. O encaminhamento a especialistas em terapias da área médica e psicológica tem sido a solução preconizada. Em muitos casos, o diagnóstico especializado e a intervenção medicamentosa se tornam a saída proposta. O aluno passa desta condição para a de paciente. Faz-se neste caso a transposição de uma lógica que se poderia chamar até agora de disciplinar para uma outra. [...] uma forma de impor uma ação inibitória ou estimuladora da conduta, através de um fármaco que age sobre o sistema nervoso central.

Ou seja, os medicamentos atuam como um instrumento de condução da

conduta dos sujeitos, de modulação, de regulação e contenção. Formas essas de

governamento dos sujeitos, anteriormente desenvolvidas pelo disciplinamento. “Essas

drogas prometem aumentar as capacidades de concentração, de memória e de

atenção necessárias ao desenvolvimento da performance produtiva.” (CALIMAN,

2006, p. 77). Dessa forma, pode-se entender que estamos todos inseridos em uma

lógica da seguridade, onde os sujeitos que se constituem como ameaças a ordem

pública precisam ser medicalizados e contabilizados a partir de um diagnóstico. Tais

práticas, de nomeação e normalização funcionam para minimizar o risco (da

improdutividade, da violência, das condutas inadequadas, da desordem, do caos) que

tais sujeitos produzem e garantir a seguridade do restante da população.

Alguns apontamentos finais

Com o intuito de desacomodar o que está sendo naturalizado pelo discurso

contemporâneo, as discussões levantadas neste texto trazem algumas

problematizações pelo uso exacerbado de medicamentos que circulam no âmbito

escolar, que deve ser, no mínimo, repensado; servindo de alerta para pais e

educadores. Sem reducionismos ou binarismo, estamos querendo contribuir para

repensar sobre algumas práticas que ocorrem nas escolas, que tem, cada vez mais

se afastando do âmbito do trabalho pedagógico e se aproximado de âmbitos da

medicina, da psicologia, da assistência social, etc. Ao propor essas problematizações,

não estamos anulando a capacidade das intervenções médicas ou desconsiderando

a necessidade da parceria que deve existir entre escola e setores especializados.

Apenas gostaríamos de alertar sobre os efeitos que essas práticas, podem causar no

só sobre os sujeitos escolares, mas também sobre o próprio papel da escola que

acaba priorizando, muitas vezes, uma variedade de atendimentos especializados e

esmaecendo o principal compromisso dessa instituição que deve girar em torno da

educação desses sujeitos e não da sua correção e/ou normalização.

Os saberes produzidos sobre os sujeitos e a regulação dos comportamentos

escolares tornou-se uma ferramenta de controle social, que tem na escola, um espaço

importante para a sua execução. Patologizar o comportamento dos alunos

considerados inadequados à ordem social tornou-se fundamental para poder agir

sobre estes sujeitos, trazendo-os o mais próximo possível dos padrões de

normalidade inventados. Antes de buscar a cura, a normalização e a adequação

desses sujeitos a determinados padrões pré-estabelecidos é preciso que a escola

abra possibilidades para se trabalhar com a diferença, com o outro, com o inesperado,

com o não planejado, com o desconhecido. É preciso reinventar as práticas

pedagógicas, planejando um currículo que abarque diferentes formas de aprender, de

ser, de conviver e afaste-se desse sonho moderno e ilusório da mesmidade. Eis um

grande desafio: criar intervenções pedagógicas positivas que escapem da prescrição

e da busca pela normalização. Estas sim, são práticas que parecem não apresentar

nenhuma contraindicação.

Referências Bibliográficas

BUJES. Maria Isabel Edelweiss. Uma infância inquieta? Portugal: Agosto/Setembro, 2008. Nº 181. Disponível em: http://www.apagina.pt/?aba=7& user=Maria%20Isabel%20Edelweiss%20Bujes&mid. Acesso em 04 abr. 2013.

CALIMAN. Luciana Vieira. A Biologia Moral da Atenção: a constituição do sujeito (des)atento. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006.

FOUCAULT. Michel. Nascimento da Biopolítica: curso no Collège de France: 1978 - 1979. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FREITAS. Cláudia Rodrigues de. Corpos que não param: criança, TDAH e escola. (2009) Proposta de Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.

LOCKMANN. Kamila; TRAVERSINI. Clarice Salete. Saberes Morais, Psicológicos, Médicos e Pedagógicos e seus Efeitos na Inclusão Escolar. In: THOMA, Adriana da Silva; HILLESHEIM. Betina. Políticas de Inclusão: gerenciando riscos e governando as diferenças. Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 2011.

MOYSÉS. Maria Aparecida Affonso. A institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001.

1

Na contramão da medicalização: relato de experiência na escola

Cláudia Silva de Souza - Escola de Educação Básica da UFU

Gabriela Martins Silva - Escola de Educação Básica da UFU

Este estudo é fundamentado na perspectiva crítica em Psicologia escolar e

apresenta alguns dos desafios da escola mediante os processos de medicalização

vividos em nossa sociedade. Na contramão da medicalização, apresentamos o relato

de uma experiência ocorrida numa escola de educação básica mediante a

sistematização de queixas referentes a um aluno de sétimo ano do ensino

fundamental, a partir das quais foram realizadas várias intervenções

psicoeducacionais no sentido de esclarecer, contextualizar e implicar todos os sujeitos

participantes no processo de escolarização para a criação e elaboração de novas

compreensões e, consequentemente, novas estratégias para lidar com as dificuldades

enfrentadas.

Na contramão da medicalização é como muitos profissionais da área da

Psicologia Escolar vêm se sentindo ultimamente com a ampla divulgação de

terminologias psiquiátricas na sociedade, num fenômeno capaz de produzir

atribuições individuais, de cunho biologizante e psicologizante a fenômenos que são

eminentemente produzidos socialmente, nas relações entre as pessoas, no modo de

conviver e estabelecer significados e sentidos.

Tal processo tem sido fortemente divulgado nas mídias, sobretudo as

televisivas, o que tem provocado nas pessoas um movimento de busca por

diagnósticos médicos/psicológicos frente aos problemas sociais. Ademais, conforme

aponta Aguiar (2003), há um movimento da chamada Psiquiatria Biológica que tem

triunfado nas universidades, na mídia e na sociedade, em que se busca explicar os

transtornos mentais por meio de causas biológicas, caracterizando um reducionismo

biológico da própria psiquiatria. Assim, as pílulas têm ganhado espaço nas residências

de muitos consumidores, a partir de rótulos tais como hiperativos, depressivos,

bipolares, ansiosos e uma infinidade de denominações oriundas dos manuais de

psiquiatria que, a cada atualização, aumentam o volume dos transtornos

diagnosticáveis.

2

Ademais, a tendência em naturalizar problemas de ordem social é reforçada

pelo crescente interesse pelo estudo do cérebro e o avanço da genética (Eidt e

Tuleski, 2007). Concordamos com as autoras quando afirmam:

“Essas práticas evidenciam um processo de alienação vigente na própria

ciência, na medida em que alguns pesquisadores e profissionais

desconsideram os múltiplos fatores que têm determinado o surgimento

de novas doenças – ou o aumento vertiginoso de patologias já

conhecidas – deslocando o foco de análise de questões sociais,

econômicas e educacionais, unicamente para o plano individual e

orgânico” (Eidt e Tuleski, 2007, p.232).

É claro que muitas situações demandam tratamento medicamentoso, mas a

grande inquietação do movimento oposto à medicalização é referente à transformação

de questões dinâmicas e processuais em categorias estáticas, reificando

determinados comportamentos que passam a ser considerados sintomas

cristalizados, perdendo-se a singularidade dos fenômenos e a busca por caminhos

que potencializem o ser humano. “A medicalização desloca problemas coletivos para

a esfera do individual; problemas sociais e políticos para o campo médico. E o que

significam esses deslocamentos? A biologização e, consequentemente, a

naturalização desses problemas” (Moysés e Collares, 2006, p. 14).

O processo de medicalização chega às escolas como desafios, sobretudo,

quando as dificuldades encontradas nas relações sociais são encaminhadas aos

consultórios médicos enquanto problemas individuais, retornado à escola com

terminologias que definem um quadro de sintomas, passível de ser tratado a partir de

medicação. A este mecanismo, geralmente, soma-se a culpabilização de alunos que

acabam por perceberem a si mesmos como a única fonte geradora dos problemas

que lhes são acometidos e sua consequente estigmatização (Patto, 1990; Patto,

1984).

As práticas cotidianas demonstram que o paradigma médico e individualizante

prevalece na compreensão de grande parte dos problemas escolares. Contudo, “a

esse paradigma, contrapõe-se um outro, em que o social é concreto, histórico,

construído pelos homens, portanto mutável; nele, o processo saúde-doença é

apreendido como resultante da inserção social das pessoas, da qualidade (ou falta

3

de) em suas vidas” (Moysés e Collares, 2006, p. 14 e 15). Neste enfoque, a

perspectiva crítica em Psicologia escolar tem dado suporte aos profissionais que

vivenciam este fenômeno em sua atuação profissional, com subsídios teóricos que

contribuem na compreensão das dificuldades do processo de escolarização e

apontam para práticas que levam em consideração os fatores psicossociais

constituintes deste processo (Souza, 2007; Souza, 2000; Tanamachi e Meria, 2003)

Tal aporte direciona o profissional ao esclarecimento, contextualização e implicação

de todos os sujeitos envolvidos no processo de escolarização para o enfrentamento

das queixas. É nesta direção que apresentamos este relato de experiência.

Desenvolvimento

No presente trabalho abordamos uma experiência ocorrida numa escola de

educação básica federal, em que a queixa referente a um aluno de sétimo ano do

ensino fundamental se configurou como: agitação constante, dificuldade em ouvir o

outro e esperar a sua vez de falar, brincadeiras inconvenientes em sala de aula,

contínuo envolvimento em atividades não permitidas pelas regras da escola, atitudes

impulsivas mediante os grupos de trabalho, dentre outros aspectos.

Vale ressaltar que a escola em que tal experiência ocorreu conta com uma

equipe de psicólogos escolares que realizam várias ações junto aos professores,

alunos e familiares. No tocante ao caso aqui apresentado, as ações buscaram

envolver todos esses atores. Junto ao aluno, a psicóloga escolar realizou orientações

visando compreender o modo como ele percebia as situações, bem como suas

concepções sobre o ensino e a aprendizagem, procurando acordos e incitando ao

diálogo.

Junto aos pais foram feitas entrevistas para esclarecer e explicar os fatos,

discutir as possiblidades de colaboração e entendimento, implicando-os também no

processo de compreensão das queixas e busca de alternativas e parceria para a

adoção de novas posturas mediante os comportamentos reincidentes do aluno.

Além disso, foram promovidos encontros entre equipe pedagógica,

professores, família e aluno para realizar acordos com relação à adoção de posturas

e atitudes em prol da melhoria do processo ensino-aprendizagem do aluno, em sua

condição de sujeito singular.

4

Dentro das ações realizadas, vale destacar a coordenação de reuniões

coletivas com os professores que trabalhavam no mesmo ano de ensino do aluno em

questão, uma prática corrente da área de psicologia escolar da referida escola, que

merece destaque, dada sua importância para o caso. Os diálogos realizados junto aos

docentes do aluno buscou construir, junto ao grupo, um conjunto de ações para lidar

com a situação apresentada.

Ao longo dos encontros de diálogo, em que tratávamos várias outras questões

referentes ao processo ensino-aprendizagem das turmas, tínhamos o momento em

que analisávamos a situação específica apresentada nas relações entre professores

e aluno. A psicóloga escolar desempenhava a função de coordenação das reuniões e

mediação dos demais encontros entre os atores educacionais, além de trabalhar na

investigação de elementos que somassem para melhor contextualizar as queixas e

proceder nos encaminhamentos a partir delas gerados.

A princípio, as queixas apresentadas pelos docentes com relação ao

comportamento do aluno eram pontuais, mas a elas agregaram-se novas situações

que, paulatinamente, se apresentavam e se avolumavam nas narrativas docentes, o

que denotava a complexidade da situação e a necessidade de agirmos a partir de um

esforço conjunto. Nesse sentido, precisávamos cuidar para que estes últimos

aspectos não fossem negligenciados e o espaço de reuniões coletivas gerava

oportunidades para a apresentação e compreensão das questões de ensino-

aprendizagem, por meio de diálogos que foram avançando até o momento em que o

grupo compreendeu a importância de se adotar estratégias coletivas, baseadas em

princípios comuns, que pudessem auxiliar o processo relacional inerente à prática

pedagógica.

Deste modo, foram feitos vários combinados no sentido de trabalhar a conduta

docente frente os comportamentos apresentados pelo aluno. No decorrer dos

encontros, várias hipóteses foram consideradas: a necessidade de impor limites ao

aluno; a importância de incentivá-lo quanto ao seu esforço em cumprir os acordos,

adotando atitudes positivas; a tomada de algumas medidas disciplinares na tentativa

de modificar a postura do aluno com relação aos seus comportamentos; o manejo de

situações para não expô-lo mais do que ele o fazia por si mesmo; o cuidado para

evitar que a turma o isolasse; a constante busca de garantir um ensino de qualidade

para todos, o que exigia que as aulas transcorressem bem, sem interrupções

frequentes, dentre outras.

5

Nesta situação específica, percebíamos que não se tratava de um problema

pontual, facilmente resolvido com algumas mudanças na conduta pedagógica ou de

orientação ao aluno e/ou seus familiares. Conversas individuais, orientações e

encaminhamentos para o registro de ações indisciplinadas foram realizados, no

entanto, percebiam-se mudanças momentâneas no comportamento do aluno, mas

que duravam pouco tempo, exigindo-se que o corpo docente rediscutisse as questões

e adotasse novas estratégias em sala.

Nos momentos de discussão do caso deste aluno, com frequência era aventada

a possibilidade do aluno “ser hiperativo” hipótese esta que sempre que surgia nas

reuniões por meio de perguntas ou comentários como: “esse menino é hiperativo,

precisa de remédio!”; “mas ele não tem hiperatividade?”, era discutida pela psicóloga

escolar que procurava incitar o grupo a contextualizar as dificuldades, a buscar

estratégias coletivas e a se corresponsabilizar pela situação dada naquele momento.

Ressalta-se que o movimento de compreensão da queixa oscilava na medida em que

as várias tentativas que a equipe realizava não encontravam solução permanente e,

por isso, a hipótese de que o problema era a hiperatividade do aluno foi muitas vezes

apontada como a causa das dificuldades enfrentadas na escola.

Assim, buscamos os registros sobre a história do aluno nos arquivos da escola

para ampliarmos a compreensão das questões psíquicas e pedagógicas relacionadas

ao aluno e levantarmos aspectos importantes para a contextualização do seu

processo de escolarização. Os arquivos constavam que no início do ensino

fundamental houve a solicitação de avaliação neuropsicológica, por parte da equipe

docente que considerava o aluno como um “menino hiperativo”. O aluno foi

encaminhado para tal avaliação, não havendo, porém, caracterizado nenhuma

espécie de transtorno ou laudo por parte do médico especialista que avaliou a criança.

Tal informação foi recebida pela psicóloga escolar com certo alívio, uma vez que os

laudos médicos se constituem instrumentos de poder e que costumam influenciar

bastante as condutas humanas, especialmente em situações como esta, em que os

vários recursos utilizados mostravam-se insuficientes para a tão esperada “resolução

do problema” (Barbarini, 2011).

A psiquiatra França (2012) expõe que o diagnóstico de TDAH é controverso,

baseado em sintomas e propenso a transformar questões escolares em distúrbios

mentais e corporais dos alunos, ou mesmo transformar situações de vida envolvendo

perdas, sofrimentos em doenças. A autora ressalta que “esse diagnóstico não traz

6

benefícios à criança, pois encerra-se em si mesmo, dá a falsa impressão de que

estamos entendendo o que se passa com ela, tranquiliza pais e professores, mantém

a criança parcialmente atendida (por vezes desatendida), muitas vezes estigmatizada.

É um diagnóstico que privilegia os sintomas e não a função deles” (p. 197).

Neste sentido, destacamos o cuidado necessário para profissionais do campo

da educação e da saúde no tocante à utilização de termos que definem “quadros”,

“sintomas”, “síndromes” na vida das crianças e adolescentes, o que, conforme aponta

Diniz (2013, p. 6), “muitas vezes sela irremediavelmente um destino” devido ao poder

de significação oriundo deste processo de nomeação de sintomas.

O TDAH na perspectiva histórico-cultural

De acordo com Eidt e Tuleski (2007, p. 236), muitos estudos e pesquisas atuais

focalizam comportamentos como indisciplina, desatenção ou falta de controle como

problemas individuais, localizando a causa dos problemas na história pessoal do aluno

ou em sua família, desconsiderando a sala de aula, as relações professor-aluno, as

questões pedagógicas e as influências sociais que perpassam o contexto escolar.

A Psicologia histórico-cultural aponta para a constituição social do indivíduo, na

qual as funções psicológicas elementares ou involuntárias originam-se em fatores

biológicos, inatos, enquanto que as funções psicológicas superiores, voluntárias, são

constituídas nas relações mediadas da criança com o outro, com o mundo, com a

cultura (Pino, 2000; Eidt e Tuleski, 2007).

A transição das funções elementares para as superiores compreende

processos educativos ou de inserção cultural, tais como o desenvolvimento de

conceitos cotidianos e científicos, mediados pela linguagem. Paulatinamente, a

criança vai adquirindo o controle das suas próprias funções psicológicas. “Assim,

todas as funções inatas e involuntárias nos primeiros anos de vida, como a percepção,

memória, atenção, volição, linguagem e pensamento, vão sendo revolucionadas pela

interação social, tornando-se funções sobre as quais o indivíduo adquire controle”

(Eidt e Tuleski, 2007, p. 238).

No que se refere à atenção, função psicológica que traduz a capacidade

humana de selecionar estímulos, foco atual dos diagnósticos de TDAH, esta “advém

ao longo deste desenvolvimento e a partir das mediações realizadas pelo meio social

7

com a criança, nos âmbitos familiar e escolar, entre outros” (Eidt e Tuleski, 2007, p.

238).

Também a vontade ou controle voluntário, ou seja, a capacidade de refrear a

satisfação imediata dos impulsos e necessidades e retardar reações imediatas a

estímulos externos é associada aos diagnósticos de TDAH, cuja origem reside na

história social do homem. Nesse sentido, “tanto a atenção quanto o controle voluntário

são funções psicológicas desenvolvidas ao longo do processo de escolarização da

criança e em sua atividade, e dependem da qualidade dos mediadores culturais

ofertados para que possam ser conduzidos a bom termo na adolescência” (Eidt e

Tuleski, 2007, p. 240).

Vale ressaltar que “no contexto escolar, a hiperatividade e/ou déficit de atenção

apresenta-se como justificativa recorrente para o fracasso escolar de um número

expressivo de crianças, atribuindo-lhes a responsabilidade pelo não-aprender e

isentando de qualquer análise o contexto escolar e social onde estão inseridas” (Eidt

e Tuleski, 2007, p. 222). Por isso, buscando evitar a reprodução deste fenômeno,

foram desenvolvidas várias ações que envolvessem a todos no processo.

Encaminhamento para psicoterapia: na contramão da contramão?

A partir das ações realizadas com o aluno, professores e familiares, decidiu-se

pelo encaminhamento do aluno à psicoterapia, concomitantemente à continuidade das

ações já realizadas. Este encaminhamento foi realizado tendo em vista que, havendo

sido realizadas várias ações de cunho coletivo para conhecer e lidar com os

problemas, percebemos que questões de caráter afetivo-emocional, relacionadas ao

vínculo do aluno com a família estavam desencadeando alguns comportamentos em

sala de aula que prejudicavam tanto a aprendizagem do próprio aluno como a dos

colegas de sala. Igualmente, compreendemos que um trabalho de acompanhamento

psicoterapêutico consistiria num apoio para que o adolescente e sua família pudessem

estabelecer novas configurações, de modo que isso refletisse também na escola.

Entretanto, numa perspectiva de crítica à culpabilização e à medicalização, o

encaminhamento para a psicoterapia individual não seria uma forma de

psicologização, nos colocando na contramão do que criticamos?

Acreditamos que a individualização, aspecto tão fundante da nossa cultura,

perpassa todas as formas de atuação contemporâneas. Contudo, consideramos que

8

a crítica à medicalização e a psicologização refere-se, justamente, à redução das

queixas e possibilidades de resolução das mesmas ao indivíduo, buscando apenas

nele causas médicas ou psicológicas para as dificuldades. Assim, em que pese o

discurso teórico sobre a possibilidade de incorrermos em equívocos mediante os

encaminhamentos de alunos à psicoterapia, dando a impressão de que concordamos

que o aluno o “portador do problema”, conforme ocorrem nos processos de

culpabilização que tanto combatemos, tal ação foi realizada dentro de um conjunto de

outras ações de caráter coletivo e contextualizador da queixa, o que nos previne de

incorrermos à psicologização.

Nesse sentido, destacamos a importância de ressaltar aos envolvidos – equipe

docente, família, aluno – a contextualização dos fatores que interferem na qualidade

do processo ensino-aprendizagem, sobretudo no que se refere à construção de novos

modos de se relacionar, tendo em vista a constituição social dos fenômenos e seu

caráter intrinsecamente relacional.

A Psicologia histórico-cultural nos aponta que os processos de

desenvolvimento e aprendizagem se constituem nas relações entre as pessoas e,

sendo assim, “as funções psicológicas superiores existem concretamente na forma de

atividade interpsíquica nas relações sociais antes de assumirem a forma de atividade

intrapsíquica” (Eidt e Tuleski, 2007, p. 224), o que torna evidente o pressuposto

vigotskiano segundo o qual é através dos outros que nos constituímos (Vigotski,

2000). Nesta perspectiva, as queixas são sempre produto de relações sociais.

A experiência apresentada, à luz dos pressupostos da Psicologia escolar crítica

nos mostra que as concepções dos educadores incidem sobre o seu modo de produzir

educação e que sendo representantes de uma perspectiva que ainda traduz o

pensamento de uma minoria que combate a medicalização, é nosso o compromisso

de conquistar espaço e reconhecimento nesta luta nos mais variados segmentos

sociais.

Considerações Finais

Este estudo ressalta os desafios enfrentados para a realização de intervenções

psicoeducacionais que se apresentem no sentido contrário à medicalização dos

problemas escolares e aponta para o papel do psicólogo escolar neste processo. O

estudo demonstra que a transformação de questões dinâmicas e processuais em

9

categorias estáticas, tais como a “hiperatividade”, permite que os comportamentos

sejam cristalizados, perdendo-se a singularidade dos fenômenos e a busca por

caminhos que potencializem o ser humano.

Nesta conjuntura, o psicólogo escolar precisa acolher as queixas como material

inicial de análise e cuidar para transformá-las dentro de um processo mais amplo,

respeitando as concepções advindas dos vários atores institucionais, mas agregando

questionamentos e outras possibilidades frente aos processos de culpabilização e

medicalização da escola.

O caso aqui relatado continua nos desafiando e incitando a novas ações. No

entanto, o modo de enfrentá-lo adquiriu novos delineamentos, passando a ganhar

mais força as ações coletivas em detrimento das individuais, o olhar e o agir para o

processo e não para os resultados e a implicação de todos como responsáveis pela

produção e enfrentamento das dificuldades apresentadas.

Palavras-chave: medicalização; escolarização; Psicologia Escolar

Referências:

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O cinema usado como intervenção no contexto de medicalização do social no contemporâneo

Autor:

Kwame Yonatan Poli dos Santos

Mestrando da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Assis

Co-autores:

João Paulo Lustosa Balsani

Graduando em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis

Laura Basoli Graduanda em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis

Luísa Milano Navarro

Graduanda em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis Quadro conceitual

Vivemos um processo de expansão das rotulações de diagnósticos

psiquiátricos que hoje atinge pessoas das mais diversas idades. Na atualidade todos

nós estamos submetidos às estratégias de patologização das mais diversas

questões existenciais. Nesse contexto, problemáticas interdisciplinares passaram a

ser capturadas por discursos e práticas do saber-poder médico-psiquiátrico e

transformadas em psicopatologias, cujo tratamento não escapará do principal

instrumento da psiquiatria na contemporaneidade: os psicofármacos.

Percebe-se que a medicalização é um fenômeno atual que submete cada vez

mais sujeitos ao julgo médico-psiquiátrico, que considera qualquer referência aos

conflitos e sofrimentos psíquicos como algo exclusivamente de ordem biológica

(INIART E RÍOS, 2012; BRZOZOWSKI E CAPONI, 2012).

Essa dinâmica, nos dias de hoje, é consequência da banalização de

diagnósticos psiquiátricos e da generalização da prescrição de psicofármacos, o que

culminaria no fenômeno de individualização de questões da ordem social, política,

econômica, cultural, familiar e educacional referentes à infância. Processo atrelado a

valorização da concepção organicista do sofrimento psíquico que, por meio de

diversas estratégias, promovem o apagamento das diferenças e das singularidades.

O grupo de estudos e pesquisas, ”Medicalização do social no

contemporâneo”, surgiu a partir destas problematizações relacionadas ao tema da

medicalização e psicopatologização da vida. Criado após as discussões realizadas

no evento “Medicação em debate: simpósio sobre a expansão do uso de

psicofármacos” realizado no ano de 2009 na Unesp - campus Assis,São Paulo, e

que contou com a participação de mais de 200 pessoas entre estudantes,

professores e profissionais da saúde e educação. O surgimento do grupo teve como

objetivo dar continuidade ao debate e promover novos encontros e produções.

A partir das discussões suscitadas no simpósio, formou-se um grupo de

estudantes da graduação e pós-graduação em psicologia com o intuito de

aprofundar os estudos e difundir debates acerca da temática da medicalização. Com

a construção de pesquisas por meio de levantamento de dados, a produção de

trabalhos científicos, a promoção de discussões e intervenções que pudessem ser

disparadores de reflexões sobre o problema da medicalização do social e da

banalização da prescrição de psicofármacos na atualidade, o grupo conquistou

também os espaços das instituições de saúde e de educação naquele município

paulista.

Buscando ampliar e democratizar a discussão acerca dos temas estudados

em grupo e de promover discussões que não atingissem apenas os alunos

vinculados ao curso de psicologia, mas também os estudantes de outras áreas do

campus, professores e, principalmente, profissionais da saúde e educação, além da

população do município, no segundo semestre do ano de 2012 foi realizado o “I

Ciclo de Filmes e Debates sobre o processo de medicalização do social”. Com a

periodicidade de exibição de um filme por mês, foram projetados e discutidos os

seguintes filmes e documentários: “Impulsividade” (2005), “Marketing da loucura”

(2005), “Geração Prozac” (2001), “DSM - A farsa mais mortífera da psiquiatria”

(2011) e “Requiem para um sonho” (2000).

Escolhemos a experiência estética promovida pelo cinema por ela não só

condensar uma série de informações ligadas ao fenômeno da medicalização, como

também pela sua capacidade de interceder junto à afetação, à sensibilização da

temática da sistemática patologização das diferenças no contemporâneo.

A escolha dos filmes e documentários ocorreu durante as reuniões do próprio

grupo de pesquisa, que selecionou obras que pudessem sensibilizar e disparar

discussões sobre as seguintes temáticas: a patologização e medicalização da

infância, a expansão da determinação de diagnósticos psiquiátricos, a banalização

da prescrição de psicofármacos, as relações de interesse entre a indústria

farmacêutica e a medicina, bem como as relações entre as dependências químicas

provocadas tanto por drogas lícitas quanto por drogas ilícitas.

Ao final das exibições dos filmes e documentários, professores de diferentes

áreas de conhecimento promoveram análises e problematizações relacionadas às

temáticas colocadas pelo filme em questão.

A intervenção teve como propósito instigar uma reflexão a partir da

experiência estética do cinema, acerca do processo de naturalização de patologias e

de medicalização de comportamentos, atitudes ou gestos que fugiam da construção

social sobre aquilo que é considerado, pelos discursos médico-psiquiátricos, como

normalidade. Ela contou com a participação de estudantes, professores e

profissionais da área da educação e da saúde, além da população em geral

interessada no tema da medicalização e patologização da vida na

contemporaneidade.

O foco principal do ciclo de filmes foi a problematização de um duplo

movimento do processo de medicalização do social na contemporaneidade:

primeiramente, o investimento da psiquiatria biológica nas neurociências, ao tentar

circunscrever todas as manifestações singulares em disfunções neuroquímicas; e,

consequentemente, o processo de invenção de novos transtornos, novas doenças,

fenômeno de patologização de todo comportamento desviante da norma social, com

fins de normatizar as diferenças.

Sinteticamente, as temáticas dos filmes versaram sobre: TDAH

(“Impulsividade”); o papel da indústria farmacêutica no processo de patologização

(“Marketing da loucura”); depressão (“Geração Prozac”); o manual auxiliar de

diagnóstico, o DSM (sigla em inglês para o Manual de Diagnóstico e Estatística dos

Transtornos Mentais), (“DSM - A farsa mais mortífera da psiquiatria”); e, por fim, uma

possível aproximação entre o uso de drogas psiquiátricas e as drogas ilícitas

(“Requiem para um sonho”).

Dado a complexidade da trama discursiva dos saberes implicadas na

temática, Contamos como marco teórico norteador do nosso trabalho os estudos do

campo da Esquizoanálise, visto que

[...] a Esquizoanálise não incide em elementos nem em conjuntos, nem em sujeitos, relacionamentos e estruturas. Ela só incide em lineamentos, que atravessam tanto os grupos quanto os indivíduos. Análise do desejo, a Esquizoanálise é imediatamente prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade. Pois, antes do ser, há a política (DELEUZE & GUATARRI, 1996, p. 77-78).

Objetivo

O presente trabalho objetiva relatar a intervenção do grupo de estudos

“Medicalização do social no contemporâneo” realizada por meio da utilização do

recurso estético do cinema como instrumento disparador de discussões relacionadas

à temática da patologização e medicalização da infância e da adolescência na

contemporaneidade.

Metodologia

O método de intervenção utilizado pelo grupo de estudos foi o cinema como

disparador de discussões e produção de conhecimento, que serviu como estratégia

para viabilizar e proporcionar uma linguagem acessível a todos, com fins de

sintetizar uma série de informações sobre o assunto. Buscamos com essa

intervenção uma forma de aplicar os nossos estudos teóricos em uma interface com

o cinema, de maneira a efetivar uma prática de resistência frente ao paradigma

medicalizante, hegemônico na atualidade.

No campo da psicologia contamos com diferentes propostas de intervenção,

que visam à produção de um desvio para a diferença em uma determinada

realidade. Acreditamos que o cinema seja um potente dispositivo, capaz de disparar

discussões e produzir reflexões, portanto, valioso instrumento para a realização

destas intervenções.

O cinema, segundo Deleuze, é um tipo de filosofia, é um exercício puro de

pensamento, com a ressalva de que não carece de conceitos, mas de sensações

que produzem subjetividades na medida em que causa um estado de

estranhamento entre o olhar e o desenrolar da estória. O cinema é pensamento

autônomo com linguagens próprias, uma “matéria inteligível” que ocupa “um espaço

de irrupção do diferente, um campo de imanência para o exercício do pensamento e

da alteridade” (BUENO, 2010, p.38).

De acordo com a filosofia de Deleuze, o pensamento tem afinidade com o

caos, ou seja, ele busca um mundo além das significações dadas e prontas. “Pensar

é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses

pensamentos não é melhor que o outro, ou mais plenamente, mais completamente,

mais sinteticamente pensado” (DELEUZE & GUATARRI, 1992, pp. 253-254). É

através deste contato com o caos que singularizamos diferentes formas de pensar,

que podem ser constituídas a partir do exercício da filosofia, das artes ou do cinema.

Assim, para o filósofo citado, não há uma afinidade natural entre o

pensamento e a verdade. Isto sugere variadas formas de exercício do pensamento,

que não detém verdade, mas problematizações. Desta forma, o cinema se fez

importante no nosso exercício de pesquisa-intervenção para que

problematizássemos as questões de nosso interesse: a excessiva patologização e

medicalização da diferença.

Para tanto, tentamos promover um exercício do pensamento, através da arte,

ao público presente. Uma vez que, segundo Deleuze, “o pensamento não nasce

sem algo que o force a pensar, algo que violente o sujeito e o force a pensar. O

pensamento só funciona em relação com uma força que o faça pensar” (BUENO,

2010, p. 38).

Nessa perspectiva, resgatamos o filósofo Gilles Deleuze para nos ajudar a

apreender a estética do cinema. Segundo o autor, “o cinema coloca em movimento a

imagem, similar ao que tenta a filosofia com o pensamento. Diferente de outras

obras de arte, o cinema, por meio do automovimento da imagem, e até de uma

autotemporalização” (Deleuze, 1992, p. 79), permite, assim, uma mudança de olhar,

o que implicaria uma possível alteração na concepção que tínhamos do objeto.

A experiência estética possibilita a reflexão criadora por realizar uma dupla função

de invenção, pois ao mesmo tempo em que proporciona um distanciamento, por se

tratar de um filme, proporciona uma aproximação, já que a obra utiliza diversos

elementos presentes no nosso cotidiano.

Por esse motivo, entre outros possíveis, tal intervenção tenha ressoado com

mais facilidade em um público que não estava tão atento as questões da

medicalização no contemporâneo. A partir desse ponto de vista, consideramos que o

cinema possibilitou a movimentação, criação e produção de um novo olhar em torno

da questão da medicalização das diferenças na contemporaneidade.

Resultados

Diante das preocupações relacionadas ao processo de patologização da

diferença, a intervenção relatada neste trabalho, realizada por meio da exibição dos

filmes, teve o intuito de levantar discussões e problematizações críticas sobre o

processo de construção social das noções binárias opositoras de

normalidade/anormalidade. Noções produzidas e reproduzidas por práticas e

discursos veiculados por saberes disciplinares, tais como a psiquiatria e a psicologia

(Foucault, 1982) e que repercutiriam na mídia, sem deixar de atingir alvos certos

como pais, professores, instituições educacionais e de saúde (Legnani e Almeida,

2008).

Os filmes exibidos são documentários e obras ficcionais, contudo não deixam

de ter uma verossimilhança com a realidade. Os enredos baseados nas histórias de

tantas sujeitos que são submetidos aos discursos de normalização, trazem

possibilidades instigadoras para se refletir sobre os processos de psicopatologização

e dos tipos de tratamentos determinados na contemporaneidade, reduzidos

principalmente à prescrição de medicamentos. Por exemplo, assim como ocorrera

com o personagem do filme “Impulsividade”, que foi (as)sujeitado ao diagnóstico de

TDAH e submetido às prescrições psicofarmacológicas, na vida real a história não é

diferente. Pelo contrário, inúmeros são os casos de crianças e adolescentes que

enfrentam dramas semelhantes todos os dias no mundo inteiro.

O número de diagnósticos de TDAH tem aumentado consideravelmente no

Brasil, ainda que psiquiatras vinculados a associações patrocinadas por laboratórios

farmacêuticos aleguem o subdiagnóstico (Mattos & cols., 2004). Além disso, a

patologização de grandes contingentes da população infantil e juvenil é um problema

enfrentado não apenas no Brasil, onde dados divulgados pelo IDUM (Instituto

Brasileiro de Defesa dos Usuários de medicamentos) revelaram um aumento de

1.616% na venda de metilfenidato no país entre os anos de 2000 e 2008 (IDUM,

2009), mas representa um fenômeno global que tem preocupado alguns intelectuais

e profissionais de diversos países no mundo. Em 2013 foi divulgado boletim da

ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária Brasileira), que aponta um

aumento de 75% no consumo de metilfenidato realizado por crianças e adolescentes

de 6 a 16 anos (ANVISA, 2013), dados que revelam o crescimento significativo do

consumo desse medicamento.

Os trágicos índices referentes à patologização da infância atualizam dramas

da ficção vivenciados no cotidiano, com consequências mais do que reais para a

vida daqueles sujeitos. Como pudemos observar nas histórias contadas através do

cinema, confirma-se a retirada de responsabilidade política, econômica, social e

delega-se ao dispositivo psiquiátrico o agenciamento desses impasses.

Dessa forma, retira-se dos sujeitos padecentes o saber/poder sobre o seu

mal-estar, prejudicando-os no desenvolvimento dos recursos internos para a

construção de saídas e invenção de sentidos para o seu sofrimento, assim,

conseguindo lidar com situações de sofrimento psíquico, tendo uma participação

ativa na resolução de seus próprios conflitos.

Nesse sentido, podemos dizer que a psiquiatria biológica reduz as

explicações do sofrimento psíquico ao déficit neuronal (Brzozowski e Caponi, 2012),

de modo a desimplicar o impasse subjetivo da criança. É inegável a relação de

dependência orgânica e psicológica que o medicamento prescrito provoca, visto que

desde muito cedo são passadas duas prescrições, além da medicamentosa: a

primeira é que, diante de qualquer mal-estar, existiria uma pílula para solucioná-lo; e

a segunda é a transmissão de uma ilusão, de que seria possível passar por uma

vida sem sofrimentos, uma vida esterilizada. Isso seria o contrário da concepção de

que ter saúde é, justamente, ser capaz de conviver com o sofrimento e buscar a sua

superação.

Conclusões

Atualmente, as condutas desviantes da norma social, consideradas

inadequadas e/ou indesejáveis, são transformadas pelo saber psiquiátrico em

psicopatologias, as quais têm atingido a todos nós com rotulações diagnósticas.

A intervenção relatada neste trabalho, realizada por meio da exibição dos

filmes ainda que longe de conseguir abranger toda a temática que envolve os

fenômenos da medicalização, possibilitou a construção de debates direcionados não

apenas à academia, mas também às pessoas da comunidade local, sobretudo

profissionais de instituições de saúde e educação, que puderam participar e

contribuir com discussões.

A partir de algumas reflexões suscitadas no debate promovido na sequência

da exibição dos filmes, conclui-se que os processos de patologização e

medicalização da sociedade têm ocorrido com o objetivo de incentivar antigos

mecanismos e estratégias de normalização, relacionadas a uma suposta adaptação

de sujeitos a uma norma estabelecida pelas sociedades disciplinares, conforme nos

convida a refletir os estudos realizados por Michel Foucault (1982).

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mat%C3%A9ria-%E2%80%9Critalina-%E2%80%93-usos-deabusos% E2%80%9D-

da-revista-veja.html.

O processo de escolarização de egresso de escola especial e a tentativa de retorno após freqüência no ensino comum.

Tatiana Platzer do Amaral – UMC Luciano Nunes Sanchez Cores – UMC

Algacir José Rigon - UMC Anderson Borges de Santana - UMC

Esta pesquisa tem como tema a inclusão escolar de alunos especiais na rede

pública de ensino. A função da educação especial está diretamente relacionada às

características e interesses da sociedade capitalista, na qual se evidenciam

parâmetros claros de produtividade e homogeneidade, fatores que influem

diretamente na integração ou na segregação da criança dita deficiente, como aponta

Amaral (1988):

Intrínseca a esse processo de produtividade está a visão da homogeneização, na qual o indivíduo para ser produtivo precisa corresponder a um determinado padrão, seja de conduta, visão de mundo... Para se atingir determinados resultados é preciso, inclusive na escola, estar dentro de padrões determinados. (p.27)

Segundo Patto (1999) para se compreender as idéias dominantes sobre a

escolaridade e as várias opiniões detectadas com maior regularidade nos alunos

oriundos das classes populares, torna-se necessário recuperar a origem dessas

idéias e sua relação com os princípios dominantes de nossa época. O

desenvolvimento da política educacional se deu em meio à existência da crença no

talento individual como base para o sucesso social:

O fato de os novos homens bem sucedidos o serem aparentemente por habilidade e mérito pessoal – já que não o eram pelos privilégios advindos do nascimento – confirmava uma visão de mundo na qual o sucesso dependia fundamentalmente do indivíduo (...) (Patto, 1999, p.40).

Outro princípio dominante, citado pela autora e presente em muitos estados

americanos a partir de 1941, é o reconhecimento da diversidade das aptidões dos

seres humanos, ou seja, a desigualdade intelectual, e a explicação com base na

desigualdade social. Conseqüentemente atribuiu-se à escola a tarefa de induzir

cidadãos a uma aceitação quanto às suas posições sociais. Em virtude do advento

desse pensamento de controle social, teorias racistas e de “carência cultural”

surgiram e ainda estão presentes na tentativa de se justificara a perpetuação do

status de determinadas classes sociais. De acordo com Ferreira (1995)

  2

A consolidação da ideologia burguesa depende, sem abdicar do discurso da igualdade de oportunidades, do seu poder de atribuir as diferenças entre os indivíduos à distribuição desigual de aptidões e dons. Isto serve para reafirmar o discurso da burguesia, segundo o qual “sendo todos livres e iguais no direito, o destino do ser humano não depende mais da ordem estabelecida, mas das capacidades individuais”. (p.24)

Considerando-se que a escolarização dos ex-alunos de escola especial

inseridos no ensino comum, perpassa duas modalidades de ensino distintas, porém

historicamente relacionadas, é necessário destacar que nenhum destes alunos não

teve acesso ao ensino, ou seja, não vivenciaram o que Patto (2000) denomina de

práticas de eliminação brutais, predominantes na história da educação brasileira por

meio da impossibilidade de acesso à escola. Outra prática descrita pela autora é a

eliminação sutil, que se caracteriza por meio de fenômenos como multi-repetência,

exigências materiais impossíveis de serem cumpridas, rituais de degradação e o:

encaminhamento a lugares oficiosos ou oficiais de diversificação da qualidade de ensino, como classes fracas, classes especiais para deficientes mentais ou outros estabelecimentos de ensino existentes na região, todos eles lixeiras da escola e do bairro, nas quais a aprendizagem marca passo ou dá meia volta. (p.192)

Coloca-se como desafio nesta pesquisa compreender o processo de inclusão

destes alunos, uma vez que, são originários de um processo de escolarização

marcado pelo descrédito social em suas capacidades de aprender. Segundo Ferreira

(1995) são crianças marcadas e:

O rótulo cria expectativas, ajuda a realizá-las e tem grande poder de generalização. A um aluno de dez anos, com uma idade mental igual a de seis anos, provavelmente estarão reservadas atitudes sociais e atividades apropriadas a uma criança de, no máximo, seis anos. (p.42)

São alunos que passaram pela escola, mas segundo Amaral (1997) ao

retornarem ao ensino comum sempre são inseridos nas séries iniciais, revelando o

desconhecimento dos rudimentos da escrita, dos cálculos matemáticos e de uma

leitura de mundo a partir de um conhecimento construído na escola. Mais ainda,

querem permanecer na escola, mesmo não aprendendo.

Esta pesquisa tem como objetivo compreender o processo de inclusão

escolar insatisfatória de ex-alunos de escola especial no ensino comum, a partir do

relato da mãe do aluno.

Esta pesquisa caracteriza-se como uma abordagem qualitativa que se

configura como Estudo de Caso. Foram feitas entrevistas não-estruturadas com a

mãe de um ex-aluno de escola especial e que buscava o retorno de seu filho para a

mesma escola especial, após ter passado um tempo na escola comum. A finalidade

era obter informações sobre a trajetória escolar de seu filho, desde o início de sua

  3

vida escolar até a sua tentativa de retorno à escola especial, precedida pelo

surgimento da sua condição de especial. Antes de contemplarmos os resultados

obtidos e relacioná-los aos objetivos para este trabalho, cabe uma breve descrição

da realidade do aluno.

Resultados e Discussão

Lauro (nome fictício) é um menino de 13 anos que atualmente freqüenta a 2ª

série da classe especial em uma escola estadual. Não costuma falar sobre o

cotidiano escolar à sua família, e quando fala o faz somente sob muita insistência.

Reside em um bairro da periferia de um município da grande São Paulo, junto com

seus pais e seu irmão. Seu pai, 52 anos, atualmente trabalha como porteiro em São

Paulo, parou de estudar na 4ª série. Sua mãe trabalha como doméstica, tendo

abandonado a escola na 4ª série, uma vez que a escola ficava longe de sua casa.

Costuma dedicar boa parte de seu tempo livre às questões referentes à vida escolar

do filho, sendo a principal responsável pela escolarização do mesmo. Seu irmão é

mais novo, está com seis anos, e em breve ingressará na escola. Segundo a mãe

parece não ter os mesmos problemas do irmão. A gravidez de Lauro foi bastante

agitada e acabou nascendo depois do tempo. Lauro costuma se relacionar melhor

com pessoas mais velhas, tendo vários conhecidos em seu bairro. Porém não tem

amigos na escola, segundo a mãe.

Eixo 1: Recuperar o processo de escolarização do ex-aluno de escola especial;

Sua escolarização pode ser resumida conforme a tabela.

ANO IDADE ESCOLA SÉRIE Situação

Final 1997 3 Pré-escola 2002 7 Escola municipal 1 1ª Aprovado 2003 8 Escola municipal 2 2ª Retido 2004 9 Escola especial 1ª série adaptada Aprovado 2005 10 Escola especial 2ª série Evadiu 2005 10 Escola estadual - Classe especial para DM 2ª Retido 2006 11 Escola municipal 1 - Classe comum 2ª Retido 2007 12 Escola municipal 1 - Classe comum 2ª Evadiu

2008 13 Escola estadual - Classe especial 2ª Em

andamento Aos três anos, a mãe começou a suspeitar das dificuldades de seu filho

quando o matriculou na pré-escola. Soube, por intermédio das professoras, que seu

filho não tinha um relacionamento bom com elas. Não interagia com as demais

crianças, não participava das brincadeiras e chorava muito. A pedido da escola

levou Lauro para fazer um exame de eletro-encefalograma que não revelou nenhum

  4

problema. Após alguns anos, saiu da pré-escola ingressando imediatamente no

ensino fundamental.

Ingressou na primeira série de uma escola municipal, aos sete anos. Além

das já conhecidas reclamações sobre a falta de entrosamento com os colegas,

somou-se, segundo as professoras, dormidas freqüentes em sala de aula e urina

nas calças. Analisando o comportamento, a diretora da escola insinuou à mãe que

tais atitudes seriam resultantes das possíveis brigas que aconteciam em casa, ou

mesmo de outras situações desagradáveis, como o consumo de álcool pelos pais.

Após o termino do ano letivo, Lauro foi promovido à segunda série. Diante do

incômodo e aborrecimentos com a suspeita de implicância da direção com o seu

filho, a mãe resolveu matriculá-lo em outra escola.

Na nova escola as queixas em relação a Lauro foram as mesmas. Após

relatar a situação à sua patroa foi indicada uma psicóloga de confiança para que

levasse seu filho então com 8 anos. Após três sessões, foi diagnosticada deficiência

mental e identificada a idade mental de 4 a 5 anos. Mediante a esse resultado, a

psicóloga encaminhou o aluno a uma escola especial. Segundo a mãe, toda a

família aceitou e compreendeu a nova situação, visto que anteriormente alguns

parentes acreditavam que tais comportamentos eram “sacanagem” de Lauro. O

aluno não ofereceu resistência ao ingressar na nova escola.

Na escola especial, com 9 anos, após avaliação da equipe multidisciplinar foi

inserido em uma primeira série com adaptações e no final do ano letivo promovido

novamente para a 2ª série. Ao longo do ano mudanças positivas foram identificadas.

Lauro tornou-se mais comunicativo, de forma a interagir mais com os colegas e a

própria família. Não reclamava para ir à escola. A mãe identifica como uma das

vantagens para ela e seu filho o atendimento da equipe médica oferecida na

instituição. No entanto, no ano seguinte a mãe precisou desligar o filho da escola por

motivos de mudança da sua família para São Paulo. Seus pais tentaram sem

sucesso encontrar outra escola especial na região. Acabaram matriculando o filho

com 10 anos na 2ª série de uma escola pública estadual com classe especial para

deficientes mentais. Sua mãe apontou que o ensino da escola era fraco, sem que

houvesse nada de aprendizagem significativa durante esse tempo ou qualquer

situação com seu filho. Ressaltou que a equipe escolar sempre foi educada e

atenciosa. Após esse breve período, a família retornou para Mogi das Cruzes,

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matriculando Lauro na mesma escola onde ele cursou a primeira série, aos 11 anos

(novamente na segunda série).

Inicialmente não houve problemas entre a escola e o aluno, o que causou

estranheza na mãe, considerando o histórico anterior. Mesmo os relatórios da escola

mostravam uma realidade até então desconhecida pela mãe, registrando

comportamento e desempenho satisfatório. Todavia, após breve período, os

relatórios da escola apontaram todas as dificuldades já conhecidas. Uma das vezes

que a mãe foi até a escola encontrou Lauro isolado em uma sala, sem colegas ou

professoras. Também acontecia de ficar fora da sala dormindo no banco do pátio ou

prestando auxílio nas manutenções da escola. No caderno Lauro nunca apresentava

conteúdo. A mãe estava apreensiva e muito preocupada até que a situação se

agravou após encontrar casualmente uma funcionária da escola que disse que “não

estavam sabendo trabalhar com o filho dela, que ele era inteligente, mas não estava

sendo bem estimulado”. Fato esse que evidencia os malefícios causados pela

condição de “aluno especial”. De acordo com Glat (1989):

Esse rótulo acarreta um julgamento antecipado do indivíduo como alguém totalmente desprovido de raciocínio, potencial de aprendizagem ou capacidade para qualquer tipo de desempenho formal ou acadêmico (p.19)

A situação atingiu o seu ápice quando a mãe se ausentou da reunião de pais

por julgar que não teriam nada para falar de seu filho e Lauro saiu sozinho da

escola, segundo um funcionário da escola que o alcançou e o levou até sua mãe,

mostrando-se rude e impaciente pela situação inesperada e por ser obrigado a levar

o aluno até a casa. A mãe decidiu procurar a diretoria de ensino – conforme nos

relatou – mesmo receando receber retaliações da direção da escola posteriormente,

a fim de relatar os acontecimentos. Foi imediatamente encaminhada ao Conselho

Tutelar. Após a denúncia no conselho que entrou em contato com a direção da

escola. Como retaliação Lauro foi impedido de participar de um passeio promovido

pela escola, sob a alegação de “medo” do comportamento do aluno. A mãe relatou

que sentiu revolta. Ainda entendido como retaliação, em outra ocasião, Lauro foi

ameaçado de “ser levado pela polícia”, após se recusar a entrar à sala. A mãe ficou

sabendo após muita insistência porque notou o comportamento estranho do filho,

visto que ele não costuma falar sobre os assuntos da escola. Lauro foi desligado da

escola antes do final do semestre.

Aqui não somente o descaso (ou mesmo frieza) para com o aluno é

evidenciado, como a própria incapacidade da escola em acolher e manter o aluno

  6

com necessidades especiais inserido adequadamente na rede regular de ensino, o

que, segundo Prieto e Sousa (2006), não se resume ao acesso à rede pública

assegurado pelas leis específicas:

Ainda que o atendimento educacional de alunos com deficiência mental preferencialmente deva se dar na rede regular de ensino (cf. art. 208, inciso III,CF/88)6, atender a esse objetivo não é meramente viabilizar seu acesso ao ensino regular. É também garantir sua permanência na escola, com condições de ensino que, de fato, respondam às suas necessidades educacionais específicas. (p.1)

Com base nas afirmações acima, podemos dizer que a escola em questão

permanece distante não somente da consolidação da educação inclusiva, mas

também de atingir aspectos básicos como o acesso permanente à sala regular e

condições dignas de ensino ao educando com necessidades especiais.

Com o auxílio do Conselho Tutelar, sua mãe finalmente conseguiu matriculá-

lo, aos 13 anos, na segunda série de uma escola estadual com classe especial para

deficientes mentais, situada no centro da cidade, na qual Lauro permanecia até o

momento das entrevistas.

Neste ano de 2008, Lauro não apresentou problemas com relação à

adaptação na escola. Sua mãe só tem acesso às atividades realizadas em dias de

reunião de pais ou no final de ano, visto que a escola não permite a entrega das

atividades aos alunos por receio de que esses estraguem seus trabalhos. O aluno

leva somente algumas frases em um caderno de caligrafia para casa. Os horários de

entrada e saída da classe especial, assim como o intervalo e mesmo as festas

escolares são distintos das demais classes da escola. O maior rigor da escola com

relação à classe especial é quanto à pontualidade dos relatórios médicos, bem como

à medicação freqüente dos alunos e suas consultas periódicas ao neurologista, o

que, segundo a mãe, é difícil de realizar considerando-se a precariedade dos órgãos

públicos de saúde. Ressalta-se aqui a biologização do ensino, manifestada na

escola especial e mesmo no ensino público, visto que as ditas classes especiais

giram em torno da medicalização do ensino, mostrando-se rigorosa quanto às

exigências de atendimento médico aos alunos e colocando em segundo plano as

preocupações referentes ao conhecimento transmitido aos alunos. Reiterando essas

idéias, Moysés e Collares (nos afirmam que:

A biologização – e conseqüente patologização – da aprendizagem escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do fracasso escolar, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a instituição escolar nele inserida. (p.32)

  7

Ou seja, por trás da visível rigidez que envolve o processo de medicalização

dos alunos está implícita uma política educacional que se isenta da responsabilidade

de promover ao aluno dito especial conhecimentos relevantes ao seu

desenvolvimento integral, cerceadas por questões alheias ao processo de ensino e

aprendizagem dos educandos. No momento, a preocupação de sua família se volta

à necessidade de manter seu filho na escola, não havendo maiores expectativas

quanto ao futuro dele após a vida escolar. Embora não tenha conseguido matricular

seu filho na antiga escola especial, ainda alimenta a esperança de conseguir esse

feito, aguardando também uma vaga em outra escola com recursos especiais.

Eixo 2: Analisar os motivos da tentativa de retorno à escola especial;

Verificou-se que a tentativa de retorno à especial está diretamente

relacionada às experiências negativas acumuladas nas escolas públicas ao longo da

trajetória escolar de Lauro, conforme sua mãe nos afirmou ao longo das entrevistas:

“Eles não estão preparados, é como se diz: ‘a criança não sabe, então que se dane.

Não sabe então também não vou quebrar a cabeça’, sabe perder tempo. Então eu

penso assim, porque foi o caso dele (...)”. (primeira entrevista)

Destacamos aqui a sucessão de fatos negativos ocorridos na penúltima

escola freqüentada por Lauro, na qual permaneceu em sala isolada, foi excluído de

eventos escolares e prestou serviços de manutenção à escola junto aos demais

funcionários, como já foi citado.

Em contraste aos problemas enfrentados nas escolas públicas, sua mãe

enaltece os diversos benefícios obtidos na escola especial sempre que questionada

sobre o estabelecimento:

“Eles são ótimos, são como uma família pra gente, porque tudo o que você precisa

está ali, médico, de tratamento, de tudo. Então, não tenho o que reclamar da escola,

eles sempre foram ótimos, até hoje se eu volto para procurar alguma coisa eles me

atendem muito bem, não tenho o que reclamar.” (primeira entrevista)

A necessidade de retorno à escola especial está atrelada à necessidade de

se adquirir atendimento médico, tarefa essa atualmente dificultada pela escassez

dos serviços públicos, embora a escola onde Lauro estude atualmente exija

constantes exames e atendimentos médicos dos alunos matriculados em classe

especial, conforme nos diz sua mãe:

“Porque é assim, queira ou não queira a escola do estado cobra muito da gente essa

parte de médico, neuro, psicólogo, só que eles não entendem que a gente tem

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dificuldade para conseguir esses médicos, porque vira e mexe eles estão cobrando,

só que não é fácil. A gente leva quatro, cinco meses pra conseguir um neuro e aí

quando a gente consegue ele saiu, não está mais no posto aí lá vai você correr atrás

de novo, é complicado, e a escola está cobrando.” (terceira entrevista)

Novamente torna-se clara aqui a priorização do discurso médico, em

detrimento dos projetos educacionais, agravada pela responsabilização das famílias

nos que diz respeito às burocracias com atendimento médico, reduzindo as

questões de ordem escolar a uma busca constante por soluções de ordem médica.

No que concerne a essa questão, Moysés e Collares (1993) nos dizem que:

O reducionismo biológico pretende que a situação e o destino de indivíduos e grupos possam ser explicados por – e reduzidos a – características individuais. As circunstâncias sociais teriam influência mínima, isentando-se de responsabilidades o sistema político e socioeconômico e cada um de seus integrantes. (p.39)

Atualmente, a maior preocupação de sua mãe é com o futuro do filho caso

não consiga matriculá-lo na escola especial, visto que ele permanecerá na atual

escola somente até os 16 anos. Não alimenta muitas expectativas em relação ao

futuro do filho fora da escola, tendo como meta garantir a sua permanência em

algum estabelecimento de ensino.

Eixo 3: Investigar o conhecimento construído ao longo do processo de

escolarização.

Lauro ainda apresenta dificuldades na linguagem, é copista e ainda não lê

sem auxílio. Não realiza operações matemáticas, uma vez que segundo a mãe as

atividades de matemáticas são raras na escola. Entretanto, sua mãe afirma que a

rotina doméstica é normal, realiza algumas tarefas domésticas – auxiliando na

limpeza da casa e fazendo o almoço quando necessário. Não viaja, isto é, vai para a

escola no centro sozinho. A mãe leva e busca o filho. Lauro recebe medicamento

diariamente, – Trofranil, comprimido, uma vez ao dia – indicado pela neurologista da

escola especial para melhoria do comportamento, segundo a mãe, que costuma

pegar o remédio nos postos de saúde.

Segundo sua mãe, os locais onde Lauro obteve maior rendimento escolar

foram a escola especial e a escola onde ele estuda atualmente, ressaltando que “em

dois meses que ele ficou nessa escola, o que ele não fez durante o tempo que ele

ficou aqui (na escola do bairro) ele fez nessa escola”. Entretanto, ela nos relatou que

a atual professora parece não ser rigorosa quanto à anterior no que concerne às

atividades propostas:

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“Na verdade a gente gostava mais da outra professora porque ela cobrava mais

deles, essa parece que não exige deles, não cobra deles.” (terceira entrevista)

Diante dessas informações, podemos constatar a descontinuidade do

processo de ensino e aprendizagem nas classes regulares da rede pública de

ensino, visto que as atividades promovidas na classe especial parecem não seguir

uma ordem curricular. Evidencia-se aqui a estagnação do ensino, a qual é alicerçada

nas características negativas típicas do rótulo de “criança especial”, tais como a

descrença na capacidade de aprendizagem, como afirma Glat (1989):

... a partir do momento em que um indivíduo, em função de um ou mais atributos seus, é identificado como desviante ou anormal, todos os seus demais atributos são subestimados e ele passa a ser visto unicamente em termos da característica estigmatizante. Ele é agora apresentado como um negro, um homossexual, um deficiente mental; em vez de como uma pessoa que uma de suas características é ser da raça negra, ter preferência por pessoas do mesmo sexo, ou sofrer de deficiência cognitiva. Em termos lingüísticos, pode-se dizer que o estigma é uma metonímia, em que o todo é nomeado em função de uma das partes.” (p.17)

Ou seja, o rótulo atribuído a esses alunos automaticamente determina as

prováveis limitações e estabelece limite no que diz respeito à atribuição de novos

conhecimentos. Um breve exemplo disso é o fato de Lauro permanecer ainda na

segunda série, conforme nos afirma sua mãe:

“Vamos supor que até os 16, 17 anos ele vai estar na 4ª, 5ª série e olhe lá, não sei

né? Porque vai fazer 2 anos que ele foi pra lá, ele entrou na 2ª, continua na 2ª série.

Aliás, ele continua na 2ª desde que começou a estudar. Quando ele evoluiu bem foi

quando ele estava na escola especial, quando ele passou da primeira pra segunda.

Quando ele saiu dessa escola estava na segunda. Foi pra São Paulo pra segunda

série, voltou aqui na outra escola na segunda e foi pra atual escola pra segunda, e

continua na segunda.”

Revela-se também a suposta impossibilidade da escola pública em manter

salas de aula heterogêneas, considerando que esta ainda mantém espaços distintos

aos alunos com supostas limitações cognitivas, o que mostra que a abolição das

salas segregadas caminha a passos extremamente lentos. Conforme nos afirma

Ferreira (2007):

O sistema educacional, em termos gerais, parece estar cristalizado e institucionalizado para lidar apenas com a homogeneidade, porque esta não apresenta nenhum perigo, já que não põe em dúvida valores, verdades e, principalmente, hábitos tradicionais.” (p.7)

CONCLUSÕES O processo de inclusão escolar de Lauro pode ser considerado precário, já

que sua escolarização, após o surgimento de sua condição de especial, se deu

  10

quase que totalmente em ambientes especializados – quando não esteve

completamente isolado. A respeito dessa lacuna existente entre teoria e prática,

Ferreira (2007) nos afirma que:

A história das tentativas de mudanças pedagógicas tem centrado a inovação educacional na reforma de métodos, técnicas e programas, deixando intocadas as práticas, a estrutura da instituição, as relações escolares, as posturas profissionais, os tempos e espaços onde se processa a educação do aluno e, ainda, os rituais que dão concretude aos conteúdos intelectuais e formativos da escola. (p.3)

Ao passo em que se intensificam os discursos em defesa de uma educação

inovadora para todos, vemos em contrapartida a permanência de ações que nos

remetem a décadas de exclusão e segregação. A inexistência da comunicação entre

as escolas regular e especial, assim como a segregação das salas especiais da

escola pública em relação às demais salas da instituição escolar, reafirmam essa

realidade. Os resultados obtidos com a presente pesquisa revelam uma escola

mantenedora da exclusão e do preconceito, sendo necessárias reparações urgentes

no âmbito das práticas adotadas no ensino público, assim como a imediata

qualificação dos profissionais das salas regulares nos que diz respeito à

contemplação das necessidades específicas dos alunos tidos como especiais, visto

que o despreparo do corpo pedagógico representa um dos maiores empecilhos à

concretização da educação inclusiva, como nos aponta Sant’Ana (2005):

autores como Goffredo (1992) e Manzini (1999) têm alertado para o fato de que a implantação da educação inclusiva tem encontrado limites e dificuldades, em virtude da falta de formação dos professores das classes regulares para atender às necessidades educativas especiais, além de infra-estrutura adequada e condições materiais para o trabalho pedagógico junto a crianças com deficiência. O que se tem colocado em discussão, principalmente, é a ausência de formação especializada dos educadores para trabalhar com essa clientela, e isso certamente se constitui em um sério problema na implantação de políticas desse tipo. (p.2)

Todavia, ressaltamos que, se a especialização dos professores urge em ser

concretizada, tão importante e imediata se faz também a prática do respeito, da ética

e da sensibilização, valores imprescindíveis na formação do ser humano e,

inevitavelmente, em nossas escolas.

“Porque eu costumo falar assim: quando eu vou brigar pelo meu filho eu não brigo

só pelo meu filho, eu brigo por todas as crianças que tem essas dificuldades. Eu não

estou ali para brigar só por ele, porque não é só ele que tem essas dificuldades, tem

meio mundo que a gente nem sabe a conta de quantos têm. Então você não está ali

pra dizer “eu vou brigar pelo meu filho, você tem que brigar por todos, é um direito

deles, entendeu?” (mãe de Lauro)

  11

REFERÊNCIAS

ALVES-MAZZOTTI, A. J. e GEWANDSNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2ª ed. São Paulo: Pioneira. 1999 AMARAL, Tatiana Platzer do. Recuperando a história oficial de quem já foi aluno especial. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 1998 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394, de 20 de dezembro de 1996 (2005). http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf COLLARES, C. A. L. e MOYSÉS, M. A. A. A História não Contada dos Distúrbios de Aprendizagem. Cadernos CEDES no 28, Campinas: Papirus, 1993 FERREIRA, Júlio Romero. A Exclusão da Diferença - A educação do portador de deficiência. 3ª ed. Ed. Unimep, 1995. FERREIRA, Júlio Romero. A nova LDB e as necessidades educativas especiais. Cad. CEDES v. 19 n. 46 Campinas, 1998. FERREIRA, Maria Elisa Caputo. O enigma da inclusão: das intenções às práticas pedagógicas. Scielo http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022007000300011&lng=pt&nrm=iso 2007 GLAT, Rosana. Somos iguais a vocês – Depoimentos de Mulheres com Deficiência Mental. Livraria Agir, 1989. PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar; Histórias de Submissão e Rebeldia. Casa do Psicólogo, São Paulo, 1999 PATTO, Maria Helena Souza. A Miséria do Mundo no Terceiro Mundo. In Mutações do Cativeiro: Escritos de Psicologia e Política. Hacker Editores/Edusp, São Paulo, 2000 PRIETO, R. G. e SOUSA, S. Z. L. Educação Especial no Município de São Paulo: Acompanhamento da Trajetória Escolar de Alunos no Ensino Regular. Scielo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-65382006000200004&lng=pt&nrm=iso 2006 RICHARDSON, Roberto Jerry. Pesquisa Social: métodos e técnicas. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 1999. Sant’Ana, I. M. Educação Inclusiva: Concepções de Professores e Diretores. Scielo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722005000200009&lng=pt&nrm=iso 2005 YIN, Robert K. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. 3ª ed. Bookman, Porto Alegre, 2005.

1  

O psicólogo na atenção primária à saúde e o atendimento ao

escolar: reflexões sobre a patologização da educação

Helivalda Pedroza Bastos

Universidade de São Paulo

O presente trabalho é parte de nossa pesquisa de doutorado,

vinculada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, área de

concentração Psicologia Social, nele nos propomos a estudar o processo de

patologização da educação que se mostra na atuação dos psicólogos da rede

pública de saúde, mais especificamente nas Unidades Básicas de Saúde

(UBS’s). Nosso trabalho consiste na revisão da literatura e em entrevistas com

profissionais concursados lotados na região norte do município de São Paulo –

compreendidas entre as subprefeituras Jaçanã/Tremembé, Vila Maria/Vila

Guilherme, Santana/Tucuruvi e Casa Verde. As entrevistas foram norteadas pelo

referencial teórico de José Bleger e a análise dos dados pelo referencial teórico

de grupos operativos, tal qual formulado por Enrique Pichon-Rivière.

Entendemos que o processo de patologização da educação produz

diferentes formas de exclusão e forja subjetividades medicalizadas. A

subjetividade é aqui entendida como fabricada e modelada no registro social,

não dada a priori nem interior ao indivíduo, mas produzida pelos vetores mais

diversos presentes na coletividade (TORRE e AMARANTE, 2001). No sentido

2  

aqui posto medicalizar significa definir em termos médicos problemas sociais e

buscar sua origem na biologia (ILICH, 1975). À ampliação do espectro da

Medicina para outras áreas das ciências da saúde – Psicologia, Fonoaudiologia,

Enfermagem etc. - se dá o nome de patologização, entendida como um processo

ideológico que transforma questões sociais em problemas orgânicos. (MOYSÉS

e COLLARES, 1997).

Dentre as formas de patologização encontramos a psicologização,

que se caracteriza pela utilização recorrente de explicações de caráter

psicológico para descrever e analisar fenômenos educacionais,

desconsiderando o processo de produção social. Esse tema é amplamente

analisado por diversos autores que discorrem criticamente sobre a participação

das psicologias no campo educativo (PATTO, 1996; MOYSÉS e COLLARES,

1992; MACHADO, 1996).

A presença do discurso psicológico na educação é um fenômeno

recente, intensificado por volta de 1970, estando intimamente relacionado ao

avanço da lógica capitalista e à hegemonia do discurso técnico e cientificista da

atualidade. Neste sentido, as teorias psicológicas têm sido utilizadas com

finalidades adaptativas e normativas, estando a serviço da patologização da

educação, sendo o psicólogo o profissional à qual é atribuída uma função

prescritiva no campo educacional, passando a ditar as normas sobre o que deve

ser feito com o aluno com dificuldades.

Não é novidade o grande número de encaminhamentos das

escolas para as UBS’s sendo esta, desde muito tempo, a principal clientela dos

psicólogos nas unidades de Saúde Pública. Devido à psicologização dos

3  

fenômenos sociais, a escola transferiu ao psicólogo a responsabilidade pelas

crianças com dificuldades de aprendizagem ou problemas de

comportamento/ajustamento. (Oliveira, 2005 p.224).

Morais (2000) em pesquisa realizada na região sul do município de

São Paulo nos informa que nos casos envolvendo escolares,

“independentemente da queixa, na conduta adotada pelos profissionais,

predominam o psicodiagnóstico (58,1%), a terapia com a criança (85%) e a

orientação familiar (73,2%)”, sendo raras as intervenções desenvolvidas nas

escolas (23,5%) – apontando para uma conduta patologizadora dos profissionais

(p.73).

Para justificar o atendimento clínico dos alunos sobre os quais recai o

“fracasso escolar” as explicações mais comumente usadas são: “distúrbios

emocionais, desestruturação familiar, hiperatividade, lentidão e incoordenação

motora, rebaixamento intelectual, falta de atenção dos pais, más condições de

vida, desnutrição, herança genética e distúrbios neurológicos”, explicações

essas que, em geral, negam a realidade dos alunos o que propicia o rótulo a eles

destinado. É importante frisar que se parte da ideia de um aluno abstrato e

idealizado “ignorando-se as conjunturas concretas de sua vida e de seu meio

social. E, muitas vezes, quando essas são conhecidas, são utilizadas para

justificarem seu fracasso” (MORAIS, 2000, p.82-83).

Isso ocorre porque se acredita que as crianças carregam em si – em seu

organismo - as dificuldades que geram o fracasso na escola ou que as suas

famílias são as responsáveis pelo mesmo. Com isso a reflexão para além da

4  

esfera familiar deixa de existir, mantendo-se inalterados os âmbitos

institucionais, interinstitucionais, políticos e sociais geradores dos problemas.

Neste sentido a Psicologia aparece como uma profissão que

dependendo da forma de atuação que adote – patologizadora ou não – poderá

contribuir para o processo de exclusão de alunos quando do diagnóstico e

acompanhamento dos problemas de aprendizagem escolar. Principalmente no

momento atual em que as respostas aos problemas escolares têm sido

encontradas na farmacologia, através da utilização de psicotrópicos que são

prescritos e comercializados em escalas cada vez maiores, tendo como alvo

crianças e adolescentes em idade escolar.

Temos acompanhado – como psicóloga e pesquisadora - o processo

crescente de medicalização, principalmente no campo da educação, onde

alunos que não aprendem o conteúdo escolar ou não se comportam de acordo

com as normas institucionais são encaminhados para profissionais da saúde, em

geral médicos e psicólogos, que muitas vezes identificam neles “doenças”,

fazendo com que, não raramente, sejam medicados para que alcancem a

performance esperada pela escola.

Neste cenário as instituições saúde e educação se entrelaçam na busca

de solução para os problemas enfrentados pela escola. O problema se instaura

quando se transformam sensações físicas ou psicólogicas normais em sintomas

de doença provocando a formulação de diagnósticos medicalizadores que

acabam por transformar grandes contingentes de pessoas em pacientes

potenciais, tornando-os muitas vezes usuários de medicamentos. (MEIRA, 2012,

p.02).

5  

Esse fenômeno vem ocorrendo em escala cada vez maior em nossa

sociedade e, no caso específico da educação, diz-se que as crianças não

aprendem ou não se comportam adequadamente na escola devido a transtornos

neurológicos que interferem em campos tidos como fundamentais para a

aprendizagem, dentre eles: percepção e processamento de informações,

atenção e habilidades sociais. Dentre os transtornos mais comumente

associados ao baixo desempenho escolar estão o TDAH (Transtorno de Déficit

de Atenção e Hiperatividade) e o TOD (Transtorno de Oposição e Desafio) que

tem levado um número cada vez maior de crianças e adolescentes a serem

medicados com um estimulante do sistema nervoso central conhecido pelos

nomes comerciais Ritalina® e Concerta®. Com isso, se dissimula falhas no

sistema educacional, transformando um problema de ordem político-pedagógica

em um problema de caráter individual, orgânico, do aluno, em nome da

normatização da conduta.

Tendo em vista essas questões apresentamos os resultados das

entrevistas da presente pesquisa. Estas apontam para as dificuldades do

psicólogo no atendimento em saúde pública. Dois motivos para essa dificuldade

foram desvelados, o primeiro ligado à formação deficitária do psicólogo no que

tange a atuação em instituições e, o segundo, a filiação profissional que aparece

negada em relação à instituição que o contrata, propiciando o atendimento

clínico, inspirado na atuação do profissional liberal, fundadas numa concepção

abstrata de indivíduo desconsiderando seu contexto social para além do grupo

familiar.

Muitas vezes o trabalho do psicólogo é desenvolvido de forma solitária em

detrimento de ações em equipe multidisciplinar. Devido a esse tipo de atuação

6  

existe uma falsa percepção de autonomia no trabalho, levando a priorização do

atendimento clínico nos moldes do profissional liberal, muitas vezes

desconhecendo os programas instituídos pela Secretaria da Saúde. Isso se dá

devido à “herança” da formação acadêmica em Psicologia, que dá o tom da

atuação, deixando em segundo plano os programas de governo, que em geral

não são citados. Isso também ocorre devido à falta de subsídios teóricos

voltados à atuação em Saúde Pública, pouca difusão dos programas previstos

para atuação na atenção primária, falta de preparo conceitual que

instrumentalize o psicólogo a atuar com grupos e instituições, falta de clareza

das políticas públicas de saúde voltadas para essa área de atenção, políticas de

Saúde Púbica instituídas sem a devida discussão com os trabalhadores.

Devido à falta de investimento do governo nos profissionais na área da

Saúde Pública, incluindo supervisão, cursos e aquisição de materiais, detectou-

se que os psicólogos têm em sua atividade diária experiências de abandono,

impotência e frustração, muitas vezes impedindo o desenvolvimento do trabalho

que não seja o atendimento clínico voltado ao usuário considerado

individualmente. Como consequência ocorre um ataque ao enquadramento

institucional que é percebido muitas vezes como abusivo, levando a sensação

de desconforto. Essa sensação acaba gerando, como defesa, um afastamento

da experiência vivenciada no local de trabalho que vá além da atividade clínica,

fazendo com que os psicólogos passem a maior parte do tempo de sua atividade

profissional dentro da sala de atendimento junto com a sua clientela. Isso se

mostra quando o psicólogo trabalha sem utilizar o apoio de profissionais de

outros setores, inclusive o administrativo, sobrecarregando o profissional.

7  

Devido à experiência despertada no cotidiano de trabalho os psicólogos

fazem de sua sala de atendimento um refúgio contra os ataques sofridos e

encontram conforto no seu ambiente privatizado, desenvolvendo um trabalho

que não contempla ações mais abrangentes voltadas à instituição, entre os

âmbitos da psicologia social, grupal e institucional. Com isso a atividade

prioritária dos psicólogos nessa área de atenção é a de realizar

psicodiagnósticos e psicoterapia. Essa também é a expectativa das instituições

que buscam o serviço desses profissionais, muitas vezes com o objetivo de

classificação e adequação social.

A questão que se coloca é que o psicólogo, incentivado por sua formação

acadêmica e também pela perspectiva a-histórica e apolítica dos fatores

implicados na queixa que trás o aluno para atendimento, ao receber a demanda

das escolas tende a abarcá-la sem uma reflexão critica prévia, podendo inclusive

auxiliar no processo de exclusão dos alunos e expropriação dos seus direitos a

uma educação de qualidade. Quando isso ocorre o profissional tende a entrar

em conivência com as instituições escolares, transformando em casos clínicos

os alunos que lhes são encaminhados. Dessa forma os problemas de

aprendizagem ou de comportamento dos alunos que são forjados no ambiente

escolar deixam de ser de responsabilidade das escolas, com isso, transfere-se

o problema aos psicólogos que atuam na rede pública de saúde.

Tendo em vista os resultados obtidos fica clara a necessidade de revisão

dos currículos de formação de psicólogos em nível de graduação para atender a

demanda da Saúde Pública no país e também para evitar atuações

patologizadoras nessa área de atenção. Faz-se necessária também uma

discussão com a categoria para que se reflita sobre a sua atuação nas UBS’s e

8  

as vivências que esse trabalho desperta, bem como, se faça uma reflexão sobre

os pedidos de avaliação e tratamento que partem das instituições educacionais

para que se compreenda a serviço de que está a avaliação e o tratamento

solicitados, evitando assim que se rotule o aluno e que se patologize a vida, risco

que se corre já que o usuário não é visto em sua complexidade e as instituições

que solicitam a intervenção não são analisadas.

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coletiva 6 (1):73-85.

Palavras-chave: Patologização da Educação, Atuação do psicólogo; Atenção

primária à saúde, Escola Pública e Instituições.

 

1

O TDAH e o metilfenidato: tecnologias subjetivas

Luciana Vieira Caliman (Programa de Pós-graduação em

Psicologia – Universidade Federal do Espírito Santo); Pedro

Henrique Pirovani Rodrigues; Pedro Henrique Sena Peterle,

Nathalia Domitrovic

Palavras chave: TDAH, metilfenidato, produção de subjetividade,

Políticas Públicas de Assistência Farmacêutica.

QUADRO CONCEITUAL

O consumo de medicamentos, a partir da segunda metade do século

XX, aumentou significativamente devido ao fortalecimento do paradigma

biomédico, ao crescimento da indústria farmacêutica, à ampliação do acesso

aos medicamentos, além da intensificação dos processos de mercantilização

da saúde e medicalização da sociedade (POLI NETO & CAPONI, 2007). O

medicamento foi transformado na principal tecnologia médica moderna em um

momento no qual o sofrimento humano e as insatisfações cotidianas têm sido

patologizadas e medicalizadas (CALIMAN, 2008; CONRAD, 2007; CAPONI,

2009). Neste panorama, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH) tem sido descrito como um dos diagnósticos que mais sustenta o

processo atual de medicalização da vida, associado ao consumo crescente de

metilfenidato (ORTEGA et al, 2010; ANVISA, 2010). Algumas das questões

apontadas como problemáticas são: o número excessivo de diagnósticos em

crianças e adultos; a patologização de questões que são de ordem educacional

e a expansão do uso não-médico do medicamento, no qual jovens e adultos

fazem uso do medicamento com o objetivo de melhorar a performance

cognitiva ou para fins recreativos (CALIMAN, 2008).

Diante desse cenário, a pesquisa realizada objetivou analisar os efeitos

da Política Estadual de Assistência Farmacêutica voltada para o TDAH na

produção de subjetividade dos sujeitos residentes em Vitória, que solicitam o

metilfenidato na Farmácia Cidadã Metropolitana. No Espírito Santo, a dispensa

de medicamentos essenciais e excepcionais tem sido realizada pelas

Farmácias Cidadãs. O cloridrato de metilfenidato, conhecido popularmente

2

como Ritalina1 e principal medicamento indicado para o TDAH, é dispensado

pelo Estado desde 2007, ano em que passa a integrar a Relação de

Medicamentos Essenciais e Excepcionais – REMEME. Embora a grande

maioria da população atendida seja a infantil, constatou-se um aumento

crescente da procura do metilfenidato por indivíduos maiores de 19 anos, o que

impõe novos desafios à análise do impacto das políticas de assistência

farmacêutica voltadas para o TDAH (CALIMAN & DOMITROVIC, no prelo).

Devido a sua expansão recente, o diagnóstico adulto de TDAH tem sido

pouco analisado e discutido, sendo ainda controverso. Ao mesmo tempo, a

análise do uso do metilfenidato por essa população foi pouco explorada.

Apesar do número exorbitante de livros, artigos e pesquisas publicados sobre o

TDAH, a maior parte da literatura têm como foco o diagnóstico infantil. O

diagnóstico do TDAH em adultos e seu tratamento medicamentoso trazem

novos problemas, que devem ser melhor discutidos e analisados.

Ao trazer a narrativa dos usuários de metilfenidato sobre seu tratamento

e sobre o impacto do diagnóstico em suas vidas busca-se preencher uma

lacuna nos estudos científicos sobre o tema: a investigação da experiência dos

sujeitos que vivem diretamente o impacto do diagnóstico e do medicamento.

Acredita-se que para análise e acompanhamento das políticas públicas torna-

se imprescindível considerar a experiência dos usuários desta política, além

dos profissionais e gestores que a viabilizam. Neste sentido, o diagnóstico de

TDAH e o metilfenidato são analisados como tecnologias subjetivas que

interferem na produção de subjetividade e de mundo dos sujeitos

diagnosticados e que fazem uso do medicamento.

OBJETIVOS

Ao trazer a narrativa dos usuários de metilfenidato sobre seu tratamento

e sobre o impacto do diagnóstico em suas vidas, esta pesquisa busca

preencher uma lacuna nos estudos científicos sobre o tema: a investigação da

experiência dos sujeitos que vivem diretamente o impacto do diagnóstico e do

medicamento. Acredita-se que para análise e acompanhamento das políticas

1 Atualmente no Brasil, também se encontra disponível no mercado para tratamento de TDAH outro medicamento que possui o metilfenidato como princípio ativo. Concerta, que é administrado com uma única dose diária, não está incluso na lista de medicamentos dispensados pela Assistência Farmacêutica do Espírito Santo.

3

públicas torna-se imprescindível considerar a experiência dos usuários desta

política, além dos profissionais e gestores que a viabilizam. Neste sentido, o

diagnóstico de TDAH e o metilfenidato são analisados como tecnologias

subjetivas que interferem na produção de subjetividade e de mundo dos

sujeitos diagnosticados e que fazem uso do medicamento.

METODOLOGIA

A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. Na primeira, associada

diretamente à Farmácia Cidadã Metropolitana, foram obtidos dados acerca da

dispensa pública do metilfenidato no Estado do Espírito Santo, além de

informações sobre os usuários desse medicamento que residem no município

de Vitória. Foram investigadas informações referentes ao número de processos

de solicitação do medicamento, de outubro de 2008 até janeiro de 2012 e ao

número de processos ativos de cada Farmácia Cidadã do Estado. Outros

dados importantes que não constavam nessas listas, como residência, idade e

telefone de contato dos usuários, foram obtidos através de consulta nos

prontuários. Desse modo, foram pesquisadas e registradas, em arquivo digital

e físico, informações de 622 usuários de metilfenidato que, até janeiro de 2012,

retiravam o medicamento na Farmácia Cidadã Metropolitana. Para realização

das entrevistas priorizou-se os usuários residentes em Vitória, maiores de 19

anos. Foram realizadas nove entrevistas, por um ou dois pesquisadores do

grupo, gravadas em áudio e posteriormente transcritas. É importante destacar

que esta pesquisa se realizou mediante aprovação do Comitê de ética em

pesquisa com seres humanos da Secretaria Estadual de Saúde do ES,

conforme a Resolução nº 196/96 do CNS.

Assim, a segunda etapa da pesquisa foi dedicada à construção e

realização das entrevistas, desde sua concepção metodológica até sua

realização com os usuários do medicamento em questão. Inicialmente, um

roteiro foi elaborado a fim de orientar as entrevistas, contendo eixos principais

trabalhados pela pesquisa. A saber:

1) Queixa/situação ou demanda que levaram ao diagnóstico de TDAH e a

prescrição de metilfenidato;

2) Experiência com o uso do medicamento;

3) Experiência do impacto do diagnóstico de TDAH;

4

Através da utilização destes eixos-guias, questões diversas foram sendo

pontuadas na entrevista no intuito de abordar a experiência da medicação e o

impacto do diagnóstico.

RESULTADOS

Experiência com o diagnóstico

De acordo com Hacking (2007), vivemos em um mundo de

classificações e estas têm efeitos particulares quando se referem a

comportamentos de pessoas. Pode-se dizer que sempre houve na história

formas de classificação, mas foi somente nos últimos 200 anos de nossa

história que o conhecimento científico tornou-se fundamental na definição do

que nós somos ou devemos ser e fazer. Hacking está interessado nas

classificações das ciências humanas, da medicina à sociologia. O autor utiliza a

expressão “making up people” para designar formas através das quais novas

classificações científicas (das ciências humanas especialmente) fazem emergir

novos seres, novas subjetividades, “tipos” de pessoas que não existiam antes

de serem classificadas. Poderíamos dizer que nos últimos 30 anos, no cenário

científico, as classificações biomédicas, baseadas nos saberes

neurocientíficos, têm ganhado cada vez mais legitimidade na definição do que

somos e de como devemos nos comportar (ROSE, 2007). O TDAH é um

diagnóstico biomédico e, portanto, uma classificação. Assim, analisamos o

diagnóstico do TDAH como uma tecnologia subjetiva que interfere diretamente

na produção da subjetividade dos indivíduos diagnosticados. Ele não

simplesmente revela o que estava oculto sobre a pessoa ou nomeia algo que já

presente de forma manifesta, mas interfere na sua constituição (HACKING,

2007).

A literatura sociológica tem destacado os diversos efeitos, muitas vezes

descritos como “benéficos”, do diagnóstico médico na vida das pessoas

diagnosticadas. Para muitos, ter um diagnóstico acena a possibilidade de cura

ou ao menos tratamento de uma situação geradora de sofrimento e mal-estar.

Nas palavras de uma entrevistada: “que bom saber que tudo tem hoje uma

solução, quando tem distúrbio, né?!”. O diagnóstico oferece ainda uma

resposta ou explicação para um comportamento que, por desviar da norma, é

experienciado como diferente e indesejado. Ele pode fazer com que uma

5

queixa ou demanda seja acolhida pelo sistema de saúde e garantir acesso a

outros direito. Um dos sujeitos da pesquisa, por exemplo, atesta receber passe

livre de ônibus, justificado pelo diagnóstico de TDAH. Quando se trata de

comportamentos vistos como desviantes ou socialmente indesejáveis, o

diagnóstico pode produzir um efeito desculpabilizante naqueles que eram

vistos e julgados como os únicos responsáveis pela conduta, agora explicada

em termos médicos (ROSE, 2007; CALIMAN, 2008; ORTEGA & ZORZANELLI,

2010).

Na literatura sobre o TDAH e nos sites da internet sobre o assunto, é

comum encontrarmos depoimentos de adultos diagnosticados destacando que

a identificação do diagnóstico mudou suas vidas de forma radical. Quase

sempre, esses depoimentos se dividem em dois grupos: o primeiro relata como

o diagnóstico do TDAH propiciou a constituição de um sentimento de

desculpabilização e alívio diante dos fracassos pessoais, antes vistos como

decorrentes da vontade individual. Nestes casos, aparentemente está em voga

um processo de identificação com o diagnóstico que produz o sentimento de

“ser um TDAH”. Diferentemente, o segundo grupo expõe o desconforto

individual e social no processo de passar a se ver (e ser visto) como um doente

mental, acometido por um transtorno cerebral, crônico e incurável.

As entrevistas realizadas colocaram em evidência que entre estes dois

polos, diversos outros efeitos são produzidos na experiência de ser

diagnosticado. Ao mesmo tempo, sentir-se desculpabilizado pelo diagnóstico

não impedia que a mesma pessoa descrevesse o peso ou desconforto de se

reconhecer ou ser reconhecido como portador de um transtorno mental, fosse

ele visto como “leve” ou “grave”. A relação estabelecida com o diagnóstico é

quase sempre mutante e não se assemelha aos relatos encontrados na

literatura. A dimensão experiencial parece portar, necessariamente,

sentimentos ambíguos e paradoxais.

A crença na cronicidade do transtorno é por vezes sentida como um

peso e, em alguns casos, surge atrelada à “possível” gravidade do problema: “o

que eu tenho é muito grave, [porque] não tem cura, é muito grave”. O fato de

considerar que o transtorno não tem cura e é muito grave faz com que o

tratamento medicamentoso ocupe um lugar central na vida destes sujeitos,

sendo vivenciado como uma necessidade da qual não se pode escapar.

6

Interrogado sobre os momentos nos quais seria desejável não tomar o

medicamento, um entrevistado declara que às vezes tem vontade de “se dar

férias”, mas interroga: “mas não tem cura, ‘né’?!”. Outra entrevistada, que

afirmava que seu caso era muito grave, também relatava que “sem o

medicamento não posso ficar”. Nestes casos, o tratamento medicamentoso

deixa de ser uma possibilidade terapêutica pontual para tornar-se uma

imposição da qual não se pode escapar.

Por outro lado, as pessoas que descreviam o TDAH como um “pequeno

transtorno” ou “apenas um déficit”, diferenciando-o de doenças “realmente

sérias”, apontavam para a possibilidade de uso circunstancial do medicamento.

Ao ser experienciado como situacional e pontual, o diagnóstico passa a

interferir menos na construção do que Ortega (2003) chamou de

bioidentidades. Nestes casos, se podemos falar que há uma identificação com

o transtorno, ela não é completa, na medida em que o diagnóstico é

transformado e apropriado pelos sujeitos de acordo com suas necessidades e

pode ser abandonado: “passou, hoje posso caminhar sozinha”. Percebe-se

aqui um uso ativo do diagnóstico, no qual os sujeitos deixam de ser vítimas de

uma classificação que aprisiona e impossibilita novas formas de produção de

subjetividade.

Em quase todas as falas surge o efeito “desculpabilizante” do

diagnóstico de TDAH. Uma entrevistada relata que, na faculdade, “se sentia a

burrinha da turma”. Ao receber o diagnóstico este sentimento é aliviado. Em

outro caso, no qual havia um relato de comparações na família, entre as

competências acadêmicas do jovem entrevistado e sua irmã, a explicação

diagnóstica fez com que “as coisas lá em casa ficassem mais tranquilas [...] eu

era a ovelha negra dos estudos”. Para outro entrevistado este efeito de

desculpabilização tornou-se aspecto crucial. O sentimento de culpa pelos

comportamentos indesejados, fracassos, impossibilidades esteve sempre

presente em sua vida. As cobranças e autocobranças eram constantes.

[...] quando eu descobri o transtorno eu falei assim, ‘pô, então eu não

sou incompetente, é um transtorno’ [...] e só isso já traz um alívio, que

tira um pouco o peso da incompetência, de você não ser compatível

com a sociedade, de você não ser capaz de produzir algo, quer dizer,

7

não, eu tenho limites pra produzir, mas eu posso produzir (Fala de um

entrevistado).

Impera em seu relato a lógica de uma sociedade culpabilizante e

competitiva, que responsabiliza cada um por seus sucessos e fracassos

(EHREMBERG, 2010). Nela, ser autônomo significa ser independente, o único

responsável pelo destino a ser individualmente traçado. Ao ser diagnosticado

com TDAH um pequeno desvio em tal lógica parece tornar-se possível. O

diagnóstico possibilita dizer que “não foi culpa sua”, “você não é o

responsável”. Para algumas pessoas, o impacto deste sentimento pode ser tão

marcante a ponto de sentir que “nasceu de novo”, quando recebeu o

diagnóstico de TDAH. Trajetórias profundamente marcadas pela culpabilização

e cobrança social parecem ganhar aqui uma redenção, mesmo quando há um

uso “consciente” da desculpa diagnóstica. Assume-se que, em certos

momentos, o diagnóstico é usado como uma autodefesa, “eu tenho que sair de

algum lado, alguém ‘ta’ me cobrando uma coisa que eu não consegui [...] eu

digo que o DDA não deixa eu fazer”. No entanto, um dilema ético passa a ser

vivenciado: “o que sou eu e o que é o TDAH? Quando é culpa minha e quando

meu comportamento resulta de uma incapacidade gerada pelo transtorno? Até

que ponto tenho usado do diagnóstico para justificar meu comportamento?”.

Como vimos na fala acima, o entrevistado acredita que o diagnóstico explica

que ele tem limites para produzir, mas que ele é capaz de produzir. Onde

estaria a fronteira? Esta é uma pergunta que ressoa nas falas, uma busca

continua: “É isso que eu preciso saber”. Ao responsabilizar o cérebro por certos

comportamentos, a explicação diagnóstica não possibilita completamente a

desconstrução da lógica individualista imbuída no culto à responsabilidade

individual. Permanece o sentimento de que, em alguma esfera, continuo sendo

o único responsável pelo meu destino.

Experiência com o uso do medicamento

As publicações médicas afirmam que o metilfenidato é imprescindível no

tratamento de TDAH (ORTEGA, 2010). As informações difundidas sobre o

medicamento em literatura científica e outros meios procuram destacar sua

eficácia e seus efeitos desejáveis. Sustentando estas posições está a crença

8

em uma ação objetiva do medicamento sobre um corpo, independente de seu

caráter experiencial.

Todavia, estudos em Antropologia Médica têm contribuído para a

discussão das respostas individuais a psicofármacos e a seus efeitos, os quais

são experimentados em contextos reais de vida (SCHLOSSER &

NINNEMANN, 2012). Aponta-se aqui para a interação do medicamento com

um corpo biológico (zoé), que é também dotado de vida sociopolítica (bios),

sendo estes dois aspectos inseparáveis e em constante tensão (MA, 2012). Ao

mesmo tempo, estudos na área de farmacogenética apontam que, mesmo no

que poderia ser definido como efeito “químico” do medicamento, é preciso

considerar a singularidade de um organismo em interação constante com o

meio (NINNEMANN, 2012). É nesta direção que se critica a perspectiva

biomédica que descontextualiza o uso do medicamento da experiência de vida

desses usuários (SCHLOSSER & HOFFER, 2012).

Na pesquisa realizada, assim como o diagnóstico de TDAH é descrito

como uma tecnologia subjetiva, a Ritalina é pensada como um artefato que, em

relação com seus usuários, altera sujeito e mundo. O medicamento é

compreendido não como um “auxiliar externo às habilidades individuais”, mas

como um operador de transformações, “seja das habilidades cognitivas e das

tarefas, seja do próprio indivíduo e do seu mundo” (BRUNO, 2003). O

medicamento participa ativamente da própria construção da cognição2 e atua

sobre a atividade reflexiva dos sujeitos que o experimentam.

Destacam-se, nesse sentido, os relatos sobre a agressividade. Um dos

entrevistados, fortemente impactado pelo diagnóstico e pelo uso do

medicamento, traz questionamentos a respeito de quem ele realmente é.

Considera que o medicamento tem sido importante para as tarefas cotidianas,

mas com o uso do metilfenidato se defronta com a percepção de um novo “eu”.

Relata, a respeito da agressividade, que “não gostaria de me tornar essa

pessoa que eu to me tornando”. Em outra entrevista, a agressividade

2 O conceito de cognição aqui implicado baseia-se na compreensão de que os seres humanos são sistemas cognitivos constituídos por “uma topologia onde os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior não são firmemente traçados pela pele dos indivíduos e não constituem dimensões espaciais estáticas e definidas de antemão, mas construídos e continuamente transformados ao longo de um processo de trocas e mediações” (BRUNO, 2003). Desse modo, tanto os processos mentais, como a linguagem, quanto os artefatos técnicos nos constituem como sujeitos e integram nosso pensamento, participando do modo como agimos sobre o mundo e de como concebemos a nós mesmos.

9

comparece de forma “desejável”. Em sua fala, o efeito do uso medicamento

comparece atrelado à luta por direitos e questionamentos em contexto

acadêmico. Neste caso, o efeito da Ritalina “parece que criou um novo mundo”.

O que seria o efeito de “melhora de comportamento” apontado pela literatura

médica? Percebemos que a experiência do uso do medicamento extrapola a

noção de eficácia medicamentosa, funcionando como uma tecnologia subjetiva

potente, alterando sujeito e mundo a um só tempo.

Destaca-se o uso do medicamento para fins de produtividade acadêmica

e de trabalho. Nestes casos, são relatados efeitos no estado de ânimo, que

retiram o sujeito da apatia – aqui a condição de “tônico do humor”, atribuída ao

medicamento em décadas passadas, conforme Dupanloup (2004), se faz

presente. Neste sentido, fala-se em um “up” produzido pelo medicamento, uma

energia para realização de tarefas. Entretanto, percebemos que esse efeito

produtivista de aumento do desempenho não está dado a priori. Uma das

entrevistadas, por exemplo, diz que com a Ritalina consegue “render mais”

para trabalhar, mas também para brigar. Outro entrevistado diz que, com a

Ritalina, tem sua capacidade de planejamento aumentada, mas que esta não

corresponde à efetiva execução da tarefa. A despeito de sentir que “rende

muito mais” sob o efeito do medicamento, uma entrevistada não sente o

mesmo especificamente em suas aulas de Inglês: “nem a Ritalina me segura

lá, é horrível”. Desse modo, a função de integração social dos psico-

estimulantes (EHREMBERG, 2010), característica de um uso para aumento da

performance produtiva, possui limites e não pode ser compreendida fora do

contexto de vida dos sujeitos que fazem uso do medicamento. Ainda que o

problema de concentração seja a principal queixa que leva ao uso do

medicamento, questões diversas da vida dos entrevistados ganham novos

contornos após o medicamento, resignificando a queixa inicial e modulando a

produção de si e de mundo dos sujeitos que fazem uso do metilfenidato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise da experiência dos usuários percebemos que o

diagnóstico de TDAH e o uso de metilfenidato não produzem sempre o mesmo

efeito ou impacto na produção de subjetividade dos sujeitos diagnosticados.

Trata-se de uma relação na qual classificação e classificados transformam-se

10

mutuamente. Importa interrogar, portanto, a relação construída com o

diagnóstico e o medicamento e seus efeitos na vida dos sujeitos, que são

sempre circunstanciais e mutáveis. Não podemos desconsiderar, no entanto,

que vivemos em uma sociedade na qual impera o culto à performance

produtiva (EHREMBERG, 2010). Para muitos, é mais desejável ser

considerado doente ou portador de um transtorno do que carregar a culpa

advinda do processo de individualização e responsabilização dos nossos

sucessos e fracassos (COSTA, 2005; ROSE, 2007). Mas a que custo? É

preciso interrogar.

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OS IMPACTOS IATROGENICOS DA MEDICALIZAÇÃO NA VIDA SOCIOEDUCACIONAL DA CRIANÇA EM IDADE ESCOLAR

Sílvia Ester Orrú1 – Universidade de Brasília

Ana Luiza Sá Alvarenga2 – Universidade de Brasília

Resumo

Este artigo é fruto de revisão crítica da literatura acerca dos impactos iatrogênicos da

medicalização na vida social e escolar de crianças que, indiscriminadamente,

recebem diagnósticos de supostas doenças, síndromes ou transtornos que as

caracterizam em sua essência como doentes ou anormais. O processo investigativo

partiu da análise conceitual no campo de ação social, cultural e educacional sobre os

efeitos iatrogênicos da medicalização como ferramenta para controle do

comportamento das pessoas frente à sociedade. O método empregado foi a

investigação documental e a análise de artigos que dizem respeito aos processos

iatrogênicos e seus impactos na vida de crianças em idade escolar. Tem como

objetivo promover à reflexão por meio de análise crítica sobre o tema que aponta a

propensão à medicalização exacerbada, à aniquilação do sujeito, além dos cuidados

sobre os efeitos iatrogênicos que podem prejudicar o desenvolvimento e a

aprendizagem de crianças em idade escolar.

Palavras-chave: iatrogenia; medicalização; crianças em idade escolar

Quadro Conceitual

O texto se constitui por uma reflexão acerca dos impactos iatrogênicos na

vida social e escolar de crianças que, indiscriminadamente, recebem diagnósticos de

1Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Brasília. Contato: [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Brasília. Contato: [email protected]

2

supostas doenças, síndromes ou transtornos que as caracterizam em sua essência

como “transtornadas”. O processo de construção do texto partiu da análise

conceitual no campo de ação social, cultural e educacional sobre os efeitos

iatrogênicos da medicalização como uma ferramenta de controle do comportamento

das pessoas frente à sociedade.

Objetivo

O principal objetivo é promover à reflexão por meio de análise crítica sobre o

tema desenvolvido que aponta a propensão à medicalização exacerbada, o controle

do comportamento da criança, à aniquilação do sujeito como ser social, além dos

cuidados sobre os efeitos iatrogênicos que podem prejudicar seriamente o

desenvolvimento da aprendizagem de crianças altamente medicalizadas a partir de

diagnósticos de supostos transtornos psíquicos.

Metodologia

Qualifica-se como revisão crítica da literatura cujo referencial teórico é

marcante e incisivo no tocante à análise construída acerca da temática proposta. O

método empregado foi a investigação documental e a análise de artigos nacionais e

internacionais que dizem respeito aos processos iatrogênicos da medicalização e

seus impactos na vida de crianças em idade escolar.

Discussão dos resultados da pesquisa

A realidade do impacto da medicalização na vida da criança com idade

escolar

A criança cujo diagnóstico lhe é imposto tem sua marca biológica espelhada

como um fator determinante para o fracasso em seu processo de aprendizagem. Ela

sofre o peso do estigma de ser percebida como alguém doente ou anormal, carrega

sobre si a culpa pelo não aprender e passa a ser invisível como sujeito singular. Ela

é a materialização da doença, síndrome, anormalidade ou transtornos imputados

pelo diagnóstico. Ao referirem-se a ela apontam ser a autista, o TDAH, o esquisito,

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sua identidade é o reflexo da anormalidade. Nesta percepção é comum ouvirmos as

frases: “os autistas vivem isolados”, “os TDAHs são agressivos”, “Muitos Downs

aprendem”. Já não há mais a singularidade, a subjetividade do João, da Juliana, do

Marcos, há nomeações e classificações coletivas baseadas nos parâmetros

patológicos. Esse talvez seja o pior dos efeitos iatrogênicos que se perpetuam de

modo histórico, social e cultural na vida destas crianças.

A medicalização por sua vez, numa tentativa de contorlar, estirpar ou

modificar os comportamentos indesejáveis identificados a partir do diagnóstico da

suposta doença ou transtorno, submete a criança a sérios e comprometedores

efeitos colaterais. A exemplo do encontrado na bula da Ritalina, os efeitos colaterais

das drogas provocam sintomas similares aos de graves doenças mentais

consideradas graves e, inclusive, podem gerar outras doenças psíquicas e danos

cerebrais. Em nossa pesquisa analisamos os sintomas mais comuns em

psicotrópicos prescritos para crianças com algum tipo de transtorno mental, tal como

é entendido pela psiquiatria: Rivotril: xerostomia (Secura excessiva da boca devido à

secreção insuficiente ou deficiente de saliva), fraqueza muscular, tontura, amnésia.

Haloperidol: insônia, fraqueza, tremores, anemia, edema cerebral, tontura. Concerta:

dor de cabeça, dor de estômago, insônia e redução do apetite, náusea, vômito,

tontura, nervosismo, tiques, reações alérgicas, aumento da pressão arterial e

psicose (pensamentos anormais ou alucinações) (Ebah, 2013). A respeito do

Metilfenidato, o princípio ativo da Ritalina e Concerta, esses são seus efeitos

colaterais descritos:

Acatisia (agitação), Alopécia (queda de cabelos), Alteração da pressão e dos batimentos cardíacos (aumento ou redução), Alteração do humor, Angina (dor no coração devida a isquemia miocardíaca, resultante da falta de sangue, que aumenta a falta de suprimento de oxigênio nos músculos cardíacos), Arritmia cardíaca, Ataques de ansiedade ou pânico, Dilatação das pupilas, Dores de cabeça, Dores no estômago, Discinesia (presente em pacientes com mal de Parkinson), Enjôos, Hipersensibilidade (incluindo coceiras na pele, urticária), Insônia, Interrupção do crescimento, Letargia, Perda de apetite, Perda de sono, Palpitações, Perda de peso temporária, Ressecamento dos lábios (xerostomia), Sonolência, Sudoração excessiva, Taquicardia, Tonturas, Perda de peso, hepatoblastoma, anemia, leucopenia, hipersensibilidade, visão embaçada e convulsões.

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Nesta direção, a criança assujeitada à medicalização descrita se encontra

numa condição passiva de apresentar quaisquer dos efeitos colaterais dispostos e,

cientificamente comprovados pelos laboratórios farmacêuticos. Portanto, ao invés da

sociedade (da escola) aprender a aceitar, a lidar, a trabalhar com as novas

configurações subjetivas que as crianças apresentam e com seus novos modos de

se relacionarem com o mundo que as cerca, preferem se render a psiquiatrização e

a medicalização da vida, sem se questionar sobre o impacto iatrogênico

socioeducacional na vida da criança, tampouco sem questionar sobre os interesses

comerciais da indústria farmacêutica.

Concretamente, o que podemos dizer é que o transtorno do déficit de atenção

e hiperatividade, o transtorno do espectro do autismo são apenas dois dos 374

transtornos mentais listados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

Mentais (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana (APA). Contudo, segundo

Tana Dineen:

Ao contrário dos diagnósticos médicos que comunicam uma causa provável, tratamento apropriado e também prognósticos, os transtornos listados no DSM–IV (e CID–10) são termos a que se chegou através de consenso entre semelhantes” — literalmente, um voto pelos membros do comité da APA — e desenvolvido amplamente para propósitos lucrativos. (Eastgate, J, 2013, p. 1)

E ainda, segundo Paul R. McHugh, professor de psiquiatria na Escola de

Medicina da Universidade Johns Hopkins, por causa do DSM:

Pessoas incansáveis e impacientes são convencidas de que tem transtorno de déficit de atenção (ADD); pessoas ansiosas, alertas sofrem de stress pós–traumático (PTSD); pessoas teimosas, ordeiras e perfeccionistas sofrem com o transtorno obsessivo–compulsivo (TOC); pessoas tímidas, sensíveis, que manifestam transtorno de personalidade esquiva (APD), ou fobia social. Todos foram convencidos de que o que realmente importa sobre a sua individualidade são, pelo contrário, problemas médicos e que como tais devem ser resolvidos com drogas. E, o mais preocupante de tudo, onde quer que olhe, essas pessoas encontram psiquiatras

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dispostos, e até ansiosos, para acomodá–los. Com a sua paixão recente por remédios sintomáticos e de prescrição automática, a psiquiatria perdeu o seu caminho, não só intelectualmente, mas também espiritual e moralmente. (Eastgate, J, 2013, p. 2)

É impressionante notar como a sociedade aceitou bem as classificações e

imposições do DSM sem questionar a real gênese dos transtornos nominados. De

acordo com Baughman, um neurologista pediátrico,

Muitos medicamentos psiquiátricos para o TDAH e outras questões da infância interferem com o desenvolvimento adequado do cérebro, que tem um impacto a longo prazo na vida da criança e de bem-estar. Enquanto os pais e encarregados de educação são esperados para defender a criança, na verdade, porque o sistema médico convencional tende a impotência do pai em tais decisões, muitos pais, incluindo os que não desejam a usar drogas aos seus filhos são oprimidos pela influência da escola e as figuras de autoridade que defendem o uso de medicamentos de primeira sobre seus filhos. O resultado é que uma criança não tem defensor eficaz e drogas viciantes e prejudiciais são forçados a ele sem o seu consentimento, apesar de haver muitos estressores potenciais tais como a negligência dos pais, a má nutrição, a comida lixo tóxico e intimidação que não tenham sido previamente eliminados. (Baughman, F. 2005/06)

Na verdade, o que realmente podemos afirmar é que até a presente data não

há comprovações da existência de uma doença neurológico-psiquiátrica que

realmente comprometa a aprendizagem.

Contribuições da abordagem histórico-cultural para uma concepção do sujeito

cujo fator biológico não é determinante para o desenvolvimento da

aprendizagem

Segundo a abordagem histórico-cultural no que diz respeito ao

desenvolvimento da criança e sua aprendizagem, esta ocorre mediante a

transformação construtiva de pensamentos, sentimentos e ações, envolvendo uma

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interação entre conhecimentos preliminares e conhecimentos novos que constroem

outros significados psicológicos, resultantes em outras ações, pensamento e

linguagem. Desenvolvimento e aprendizagem são coisas distintas e relacionadas,

sendo preciso considerar o nível de desenvolvimento já conquistado e também o

nível de desenvolvimento emergente ligado à capacidade de resolução de

problemas, a partir do auxílio de outras pessoas que se encontram mais

experientes ou possibilitadas, indicando que a criança poderá ser autônoma no

porvir quando o nível de desenvolvimento da mesma permitir (Vigotsky, 1994). Com

relação ao desenvolvimento da atenção, o indivíduo durante toda sua vida constrói

signos que o possibilitam ter conhecimento sobre os estímulos diversos que lhe

exercem influência, igualmente, conhecer e dominar seus processos de

comportamento e desenvolver e tomar para si o autocontrole daquilo que faz, sente

e pensa (Vigotski, 1995).

Na perspectiva histórico-cultural, o aluno é sujeito ativo de seu processo de

formação e desenvolvimento intelectual, social e afetivo. O professor cumpre o papel

de mediador desse processo com o proporcionamento e favorecimento da inter-

relação (encontro/confronto) entre o sujeito, o aluno, e o objeto de seu

conhecimento, que é o conteúdo escolar (Orrú, 2010).

Nesse processo de mediação, o saber do aluno, enquanto sujeito ativo é

muito importante na formação de seu conhecimento. O ensino é compreendido

como uma intervenção repleta de intencionalidade, inferindo nos processos

intelectuais, sociais e afetivos do aluno, visando à construção do conhecimento por

parte do mesmo, sendo ele o centro do ensino, o sujeito do processo. Portanto,

neste sentido, o professor deve ser um mediador que explora a sensibilidade de seu

aluno a fim de perceber quais são os significados construídos por seus alunos com

referência aos conceitos que estão sendo formados, quer sejam conceitos mais

elementares ou complexos.

O fator biológico não deve ser considerado como determinante para o

desenvolvimento e aprendizagem da criança. Segundo as proposições de Vigotsky

(1997) acerca da criança com dificuldades de aprendizagem e seu desenvolvimento

são importantes com relação à determinação da maneira como essa condição deve

ser compreendida e trabalhada no contexto da educação, conferindo a este aluno o

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direito a seu papel ativo na construção de seu desenvolvimento, a partir de sua

capacidade individual de apropriar-se e internalizar formas sociais de

comportamento como participante de seu processo de conhecimento como

sujeito histórico. Deste modo, esta criança passa a ser percebida e compreendida

como indivíduo possuidor de diferentes capacidades e potencialidades em

emergência que devem ser encorajadas para serem o alicerce do

desenvolvimento das funções superiores. (Orrú, 2008)

Sob este prisma, o professor deve ser um facilitador da aprendizagem, um

mediador envolvido e participante ativo de todo esse contexto e o aluno deve ser

concebido como sujeito ativo da construção de sua história, de seu aprendizado, um

sujeito com possibilidades de aprendizagem. A supervalorização dos diagnósticos

pela escola e seu apoio à medicalização da vida da criança são caminhos opostos

cujo enfoque é a desconsideração da subjetividade do sujeito e aniquilação de sua

personalidade. É a expressão mais nítida de barreiras atitudinais que adjetivam uma

escola excludente e esse não deveria ser o reflexo de uma instituição formadora de

cidadãos.

Conclusões

A partir da pesquisa realizada é conclusivo que a forte tendência à

medicalização da sociedade tem alcançado a vida de muitas crianças em idade

escolar. Essa medicalização indiscriminada que se justifica a partir dos critérios

diagnósticos que materializam supostos transtornos psíquicos na criança, tem as

conduzido às inúmeras dificuldades no processo de aprendizagem produzidas por

efeitos colaterais diversos. A medicalização nesses parâmetros sobressalta os

resultados iatrogênicos na vida sócio-educacional da criança numa tentativa de

homogeneização que acaba por aniquilar o sujeito.

Percebe-se também que a realidade educacional em que vivemos muitas

vezes impede que a criança com alguma necessidade especial ou dificuldades de

aprendizagem se desenvolva plenamente em razão de conclusões precipitadas,

preconceituosas e estigmatizantes acerca de seu processo de desenvolvimento e

aprendizagem.

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Ao professor não cabe diagnosticar doenças, tampouco justificar suas falhas

a partir das singularidades de seus alunos e diagnóstico médico impetrado. O fator

biológico não é determinante para o fracasso escolar e até o momento presente não

há comprovações de que exista uma doença de cunho psiquiátrico que comprometa

o processo de aprendizagem das pessoas.

À escola cabe promover e favorecer a educação de todos e para todos a

partir da organização do meio social e a favor de um processo de ensinar e aprender

repleto de sentido e significado para os alunos.

As crianças com diagnósticos de supostos transtornos psíquicos devem ser

concebidas como sujeitos ativos de seu processo de aprender, sem desconsiderar

os aspectos: biológico, social, cultural, histórico e suas singularidades que as

constituem de modo pleno e integral.

Cabe à escola se preparar continuamente para uma prática pedagógica na

qual tanto a coletividade quanto a individualidade sejam favorecedoras e promotoras

do desenvolvimento da aprendizagem de todos os alunos de modo que todos se

relacionem, sejam acolhidos pela escola, participem e compartilhem de todas as

atividades desenvolvidas.

Finalmente, destacamos que as relações sociais são geradoras de

transformações no desenvolvimento humano. Por conseguinte, a escola não deve

focar suas práticas pedagógicas nos quadros sintomáticos, nas falhas, nos déficits,

como ocorre comumente nos critérios diagnósticos, ao contrário, deve prestigiar e

sobressaltar as possibilidades que podem ser desenvolvidas pelo sujeito que

aprende, tal como é próprio da espécie humana.

Referencias bibliográficas

AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION - APA. (1995). DSM-IV: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Brasil, Porto Alegre: Artmed. BAUGHMAN, F. Porque Drogas Psicotrópicas não deve ser usado em crianças. Entrevista com Mike Adams, Editora Verdade, 2005/06. Disponível em: http://emaxilab.com/saude-e-bem-estar-artigo-2-7068.html Acesso em: 27/03/2013. EASTGATE, J. Distúrbios Inventados: Para Lucrar com as Drogas. Comissão dos Cidadãos para os Direitos Humanos Internacional. Disponível em:

9

http://www.cchr.pt/cchr-reports/inventing-disorders/introduction.html Acesso em: 27/03/2013. EBAH. Fármacos Psicotrópicos. Disponível em: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAzBIAD/farmacos-psicotropicos Acesso em: 27/03/2013. ORRÚ, S.E. Contribuições da abordagem histórico-cultural na educação de alunos autistas. Rev Hum Med v.10 n.3 Ciudad de Camaguey sep.-dic. 2010 ORRÚ, S.E. Os estudos da análise do comportamento e a abordagem histórico-cultural no trabalho educacional com autistas. Revista Iberoamericana de Educacion. n.º 45/3 – 25 de febrero de 2008. VIGOTSKI, L.S. (1995) Obras Escogidas III. Madri: Visor. VIGOTSKY, L. S. (1994). A formação social da mente. . São Paulo: Martins Fontes.

VIGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. In: Obras completas. Tomo V.

Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1997.

1  

Percepções acerca da medicalização na educação na cidade de Piracicaba

Ana Paula Witzel Beltrame – UNIMEP Camila Cobelhanski Evans Miras – UNIMEP

Marcelo Silveira Coury - UNIMEP Orientadora - Prof Drª Nilce Arruda Campos- UNIMEP

(Universidade Metodista de Piracicaba)

Palavras – chave: medicalização – percepções – entrevistas

QUADRO CONCEITUAL

O que se tem visto nos últimos tempos, com relação às dificuldades escolares de

grande parte das crianças das escolas públicas é o retorno das explicações biológicas para

justificar as defasagens no aprendizado. É a chamada medicalização da educação que é

definida por especialistas de educação, psicologia e pediatria como um processo que

transforma questões coletivas e sociais em questões individuais e biológicas, mais

especificamente em doença1.

As discussões críticas sobre a Medicalização do processo ensino/aprendizagem

começaram a ganhar corpo através das pesquisas realizadas, principalmente, por Maria

Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares. Segundo as autoras (2010) para

compreendermos o fenômeno da medicalização é, primordialmente, necessário conceitua-lo e

identificá-lo de acordo com sua historicidade.

No Brasil o termo medicalizar foi amplamente difundido, na década de 70, como

decorrência da prática de submeter às dificuldades escolares observadas em crianças de

baixa renda ao tratamento médico. Já nesta época, a utilização do termo ocorria para retirar o

foco dos problemas escolares que deveriam ser debatidos e resolvidos para deixar ocultas as

precárias políticas governamentais na área da educação.

Conforme Moyses e Collares (2010), no contexto no qual houve o surgimento do termo

“medicalização” a ciência médica empenhava-se em fornecer aos sintomas suas doenças,

suas causas. Contudo, no campo educacional medicalizar passou a ter o sentido reducionista

                                                            1 Página da internet do  Forúm sobre medicalização da Educação e Sociedade (2011) 

2  

de encurtar caminhos, de patologizar um fenômeno crescente e isso vem ocorrendo até os

dias atuais. Para as autoras, a análise da problemática na aprendizagem em termos escolares

deveria ser abordada à luz da antropologia, sociologia, economia, história, ciências políticas,

psicologia e, também, medicina, e não exclusivamente desta última.

Ademais, é de se verificar que por não tratar-se verdadeiramente de uma doença, são

vários os riscos e consequências de se utilizar uma determinada droga, com o intuito de

supostamente cessar o problema hoje, criando, porém, sérias e danosas consequências

futuras diante da periculosidade e dos transtornos causados por essas drogas nos

organismos das crianças e adolescentes. Segundo Aguiar: (2004, p. 133)

“O conceito de medicalização, bastante usado na sociologia, foi inicialmente proposto por Irving Zola em 1972, e se referia à expansão da jurisdição da profissão médica para novos domínios, em particular àqueles que dizem respeito a problemas considerados da ordem espiritual/moral ou legal/criminal. (...) Os teóricos críticos à medicalização consideravam a medicina um agente de controle social, na medida em que ele traduzia fenômenos sociais – como o alcoolismo, a homossexualidade, o aborto e o uso de drogas – em conceitos médicos, incluindo esses problemas no domínio do saber e das instituições médicas. (...) Determinados problemas sociais foram, cada vez mais, sendo medicalizados, ou seja, vistos sob o prisma da medicina como “doenças” a serem tratadas.”

Hoje em dia medicalizar significa, segundo Moysés (2010): “definir em termos médicos,

problemas sociais e buscar sua origem na biologia.”2 Essa ação empregada por diversas

ciências vem ditando a reprodução das relações sociais, dentro de um sistema capitalista que

tende a uma homogeneização, uma adaptação dos indivíduos, docilizando e padronizando

comportamentos.

Moysés e Collares (2010) apontam que o TDAH e a Dislexia são hoje os dois principais

distúrbios na aprendizagem identificados em crianças que possuem o comportamento

contrário ao esperado. O grande problema é que estes transtornos diagnosticados por

profissionais multidisciplinares (neurologistas, psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos,

entre outros) estão sendo solucionados com a prescrição de medicamentos à base de

metilfenidato, que possuem o nome comercial de Ritalina® e Concerta®, acarretando muitos

                                                            2 Conselho Regional de Psicologia, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Organizador). Medicalização de Crianças e Adolescentes ‐ conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, (2010), pág. 150. 

3  

outros problemas, entre eles, a predisposição ao vício de outras drogas que possuem

anfetamina, como a cocaína e a heroína.

Ray Moynihan e Allan Cassels (2007), jornalista e pesquisador, respectivamente,

alertam quanto às estratégias da indústria farmacêutica, para perpetuar a medicalização

induzindo, cada vez mais pessoas saudáveis ao uso de medicação. Neste estudo os autores

identificam o “epicentro” das vendas como sendo os Estados Unidos, porém, apontam que a

venda de medicamentos ligados aos transtornos na aprendizagem, também, é bastante

expressiva no Brasil.

O tema da Medicalização e patologização da vida vem sendo incluso, também, nos

Projetos Integradores desde 2012 pelo CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia-SP), sendo

uma temática que discute os efeitos deste processo. Conforme a atual gestão e das diretrizes

do planejamento estratégico, um dos seis projetos integradores, sobre o nome de

“Medicalização e Patologização da Vida”:

“Estes são exemplos de questões sociais que são artificialmente transformadas em problemas individuais. As soluções usualmente dotadas pela sociedade são consideradas pela Psicologia como adoecedoras e, muitas vezes, criminalizantes.” 3

Conforme os dados obtidos por Moysés e Collares (2010) podemos ter uma ideia do

montante econômico que mobiliza:

“A produção mundial de metilfenidato (MPH), a droga mais usada para pessoas rotuladas com TDAH, cresceu 400% entre 1993 e 2003. (...) Nesse ano [2008], ao preço no varejo, gastou-se cerca de 88 milhões de reais com a compra de metilfenidato.”4

Observa-se, portanto, que quando o esforço e o investimento na Educação das

crianças são ineficientes, muito trabalhosos ou excessivamente custosos, a saída mais prática

e rápida utilizada pelos profissionais da educação parece ser a de usar, ou apoiar o uso, de

medicamentos que alterando a atividade neuroquímica dos estudantes, controlem suas

atitudes e “domem seus impulsos”.

                                                            3 http://www.crpsp.org.br/portal/conselho/pis.aspx, acesso em 6/5/2013. 

4  Conselho  Regional  de  Psicologia, Grupo  Interinstitucional Queixa  Escolar  (Organizador). Medicalização  de Crianças e Adolescentes ‐ conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São 

Paulo: Casa do Psicólogo, (2010), pág. 96. 

4  

Atualmente vários são os movimentos que ocorrem com a finalidade de barrar esse

processo de medicalização das questões sociais. As mais diferentes áreas de atuação vêm se

juntando, através de seminários, simpósios e fóruns, a fim de denunciar e dar visibilidade

crítica às posturas medicalizantes entre vários profissionais ligados a saúde e a educação.

No entanto, infelizmente, a psicopatologização dos problemas escolares, que afirma

que os transtornos educativos devem ser tratados e medicalizados, parece ainda ter primazia

na maior parte dos discursos dos profissionais que lidam com os processos educativos, basta

ver as reportagens e artigos veiculados pela mídia nos últimos tempos que mostram o grande

número de crianças rotuladas como portadoras de TDAH ou Dislexias.

Com relação aos profissionais da educação observa-se que a patologização tem sido a

alternativa utilizada para explicar as dificuldades dos alunos em sala de aula. Essa postura

dificulta a ruptura com uma concepção de educação que tem produzido o fracasso escolar e

tem facilitado a medicalização. Segundo Valla (1992):

“Atribuindo a responsabilidade ao “outro”, profissionais de educação fazem da culpabilização do aluno uma solução mais fácil para não se exporem, fugindo à reflexão quanto ao seu papel na instituição escola. Desse modo o fracasso escolar transforma-se em uma questão de incapacidade pessoal.”

Foi a preocupação com as questões acima expostas que nos impulsionou a investigar

se os discursos medicalizantes, se encontravam absorvidos pelo cotidiano das escolas

públicas do Município de Piracicaba apresentado neste artigo.

Objetivos

O objetivo do presente trabalho é investigar as percepções de alguns profissionais

ligados à educação a fim de verificar como em seus discursos aparecem às questões

referentes à medicalização dos processos educativos.

Metodologia

A metodologia adotada para a realização deste trabalho foi à entrevista dirigida, a fim

de atender melhor à investigação e poder retirar conclusões da rotina escolar acerca do

assunto debatido. A focused interview tem como essencial objetivo abordar experiências

vividas à luz de determinado tema, por isso a nossa opção por esta modalidade de entrevista.

Assim, podemos conhecer o modo de pensar a medicalização daqueles que realmente se

deparam com o tema no dia-a-dia escolar.

5  

As entrevistas foram realizadas no próprio ambiente escolar de trabalho dos

entrevistados por livre escolha. Os sujeitos foram escolhidos de forma aleatória. A coleta dos

dados foi realizada por estudantes de Psicologia, da Universidade Metodista de Piracicaba,

dois do 3º semestre do curso de Psicologia e um do 9º semestre. Foram entrevistados 20

profissionais da Educação pertencentes a quatro escolas: duas Públicas e duas particulares,

pertencentes à cidade de Piracicaba, interior do estado de São Paulo.

Foram elaboradas duas questões norteadoras das entrevistas: A primeira: “O que você

faz quando um aluno apresenta dificuldades de aprendizagem”. E a segunda: “Qual a sua

opinião a respeito do uso de medicamentos quando a criança apresenta alguma dificuldade

de aprendizagem?”.

É válido ressaltar que todos os integrantes da pesquisa, assinaram o termo de

consentimento. Foram utilizados para a mesma, gravadores e registro cursivo. A analise dos

dados foi realizado a partir de três eixos aglutinadores: respostas que concordam com o

processo de medicalização, respostas que negam esse processo e respostas que expressam

ambivalência com relação a utilização ou não utilização da medicalização.

Resultados

Com relação aos dados obtidos no levantamento de dados com relação a primeira

questão “O que você faz quando um aluno apresenta dificuldades de aprendizagem?”,

pudemos observar duas categorias de respostas: a primeira, que agrupa a maioria das

respostas refere-se aqueles profissionais que encontram a solução para as dificuldades de

seus alunos encaminhando o aluno diretamente ao médico. Vejamos alguns exemplos nos

fragmentos abaixo:

“Primeiro trabalho com atividades diferenciadas para que este supere sua dificuldade. Se não houver nenhum avanço na aprendizagem será conversado com a direção da escola e com os pais para que seja encaminhada ao neurologista (...). ou (...) caso o diagnóstico da criança for dificuldade cognitiva, a criança deve ser encaminhada para um psicopedagogo que poderá ajudar no desenvolvimento dos processos de aprendizagem. Se for gerador por um fator emocional, psicólogos e psicanalistas com especialização em clínica infantil, são os profissionais adequados para realizar uma avaliação e tratar da criança. Ainda o acompanhamento com o neurologista ou o fonoaudiólogo é indispensável diante deste diagnóstico.”

A segunda categoria, de respostas obtidas a essa questão aparece em menor número

e tende a expressar à compreensão do profissional de que a solução para as dificuldades da

6  

aprendizagem depende de certo esforço do professor que deve alterar seu processo

pedagógico a fim de possibilitar alternativas para a aprendizagem da criança, porém assim

mesmo não deixam de explicitar dúvidas sobre a responsabilidade de o problema centrar-se

no próprio aluno devido a sua família. Vejamos alguns exemplos:

“Nem sempre a metodologia que o professor utiliza, é suficiente para garantir a aprendizagem do aluno. Lembre-se: Cada um aprende de um jeito. Se o aluno não conseguiu entender o que lhe foi passado, procuro explicar o mesmo conteúdo de outras maneiras. Uso outros exemplos, outros materiais, outras técnicas. E sempre me pergunto: será que o aluno está passando por algum problema emocional? ou (...) Procuro saber se o aluno esteve mentalmente presente na sala de aulas, se realmente esteve interessado, para fazer outras atividades e, ainda me pergunto se há um interesse dos pais pelo aprendizado do(a) filho(a) e como está sendo discutido: a importância do ensino e aprendizagem.”

Com relação à segunda pergunta “Qual sua opinião a respeito do uso de

medicamentos quando a criança apresenta alguma dificuldade de aprendizagem?”, pudemos

observar três categorias de respostas:

A primeira refere-se aos profissionais que aderem claramente ao uso de medicação

como solução para as dificuldades de aprendizagem. Cabe salientar, no entanto que esses

profissionais não compõe a maioria das respostas encontradas perfazendo 30% delas.

Vejamos alguns exemplos:

“Acredito que se o médico receitar é porque há a necessidade, não sou contra. Pelas experiências que já tive com alunos que tomavam medicamento e melhoraram bastante. (...) ou (...) sim, sou totalmente a favor, visto que podem acontecer várias situações, falta de Vitaminas do Complexo B, além de alimentos muito industrializados que provocam até queda de pressão arterial, atrapalhando inclusive a circulação normal de sangue no cérebro, dentre outras.”

A segunda categoria de respostas refere-se aqueles profissionais que recusam

totalmente ao uso de medicamentos. Como era de se esperar diante do histórico processo de

medicalização das questões educativas, o número de respostas aqui classificadas perfaz 10%

das entrevistas realizadas. Vejamos alguns exemplos:

“Sou totalmente contra medicamentos. Existem outras formas, por exemplo o esporte(...)”

Por fim, a última categoria, que perfaz 60% das respostas observadas refere-se ao que

denominamos de respostas ambivalentes que são aquelas que apesar de negarem a

7  

medicalização, relativizam a possibilidade de utilização de remédios em alguns casos.

Vejamos alguns exemplos:

“Concordo com o uso de medicamentos que sane algum problema específico que possa levar à dificuldade de aprendizagem, entre outros danos. Só a dificuldade de aprendizagem, isoladamente, não é razão para medicar(...) ou (...) Acredito que existam certas dificuldades muito específicas, onde há a necessidade de medicação, mas para ser sincero em muitos casos presenciei dificuldades maiores ainda, além de "oscilações" por conta das trocas de e tentativas de novos medicamentos.(...) ou (...) Acho que os pais devem procurar um profissional que oriente, compartilhe e explique, de modo que eles tenham consciência das consequências positivas e negativas dos tratamentos com e sem medicação. Existem crianças que não precisam de drogas e estão tomando, assim como várias outras que precisam e não estão sendo medicadas.(...) ou (...)- Na minha opinião o uso de medicamentos tem que ser algo bem estudado. Acredito que a maioria com alguma dificuldade não precise de remédio e sim de atendimento.”

De modo geral podemos afirmar que as entrevistas realizadas com os profissionais da

educação expressam que a velha temática do fracasso escolar ainda é colocada na família

e/ou na criança. Pode-se perceber claramente uma biologização e medicalização do

comportamento da criança por parte dos profissionais entrevistados, assim como uma

responsabilização da família pelo fracasso dessa criança, por ser parte de um grupo

desestruturado, de pais alcoólatras, desatenciosos, isto é, referem-se a uma família

idealizada, totalmente distante da real.

Transparece nas respostas não haver entendimento de qual é a origem das dificuldades

– pois numa mesma entrevista pode-se encontrar argumentos referentes às causas de origem

orgânica, intelectual, cognitiva, emocional/comportamental, e outras que se fixam na base

educacional, relacional e estrutural da família. Pode-se afirmar que praticamente não há

reflexões e/ou questionamentos sobre o próprio fazer didático-pedagógico, sobre a relação

ensino/aprendizagem e a dificuldade do aluno em aprender. A necessidade de encontrar um

responsável pelo insucesso das crianças parece levar esses profissionais a , rapidamente,

estigmatizarem as crianças e a aderirem ao processo de medicalização.

Conclusão

Diante das análises acima realizadas podemos concluir que as concepções

medicalizantes, ainda, predominam como percepções por parte dos profissionais ligados à

educação. No entanto, ressalta-se que a ambivalência observada na maioria das entrevistas

parece nos dar indícios de que as discussões críticas desenvolvidas em âmbito nacional,

8  

pelos atuais Seminários, Simpósios e Fóruns de Medicalização da Educação e da Sociedade

já estão produzindo alguns resultados, pois expressam estar abalando as certezas que levam

os profissionais a aderir de modo incondicional aos discursos medicalizantes.

Eventos como estes são de suma importância, pois coloca em cheque a visão

autoritária da indústria farmacológica, bem como a visão organicista que centra as

explicações apenas no indivíduo. A partir da investigação pode-se conjecturar que os

processos de discussão e tematização da medicalização da educação ainda devem percorrer

um longo caminho, uma vez que pode-se observar a ambivalência nas percepções dos

profissionais dessa área, mas é exatamente essa ambivalência que nos da a certeza de que

avanços já foram conquistados!

Bibliografia

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Moysés, Maria Aparecida Affonso; Garrido, Juliana. Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Ed. Casa do Psicológo. 2010, pág.151 a 159.

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RYAN, W. Blaming the victim. Nova Iorque, Random House, 1971.

AGUIAR, A.A. A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2004, pág.133.

VALLA,V.V. Educação e cidadania:investigação científica e assessoria popular. Cadernos de saúde pública v. 8, n.1, jan/mar. Rio de Janeiro, 1992.

http://www.crpsp.org.br/portal/conselho/pis.aspx, acesso em 6/5/2013. http://www.crpsp.org.br/medicalizacao/, acesso em 6/5/2013.

http://www.crpsp.org.br/medicalizacao/, acesso em 6/5/2013.  

Psicodiagnóstico Interventivo X Medicalização: possibilidades de

prevenção junto a uma constituição de família.

O presente trabalho tem como objetivo apontar as possibilidades de um

trabalho em psicodiagnóstico em uma clínica escola de Sorocaba no

enfrentamento do uso abusivo de medicalização, quando o jovem casal vem com

a queixa de suspeita de TDAH de sua filha de dois anos de idade. A mãe relata

que M. (como a chamaremos) já toma “passiflora” para acalmá-la, por

recomendação médica e que esta nos indicou para um psicodiagnóstico.

O incômodo dos pais era o de que a filha era muito agitada e se

autoagredia fisicamente, batendo contra seu rosto, em outras pessoas ou

arremessando objetos quando frustrada. Diziam que sua agressividade estava

mais dirigida á figura da mãe.

A família veio em busca de tratamento para o comportamento de sua filha,

que foi considerado por eles como agressivo, incômodo, hiperativo.

Contextualização do TDA neste contexto familiar

Os pais que aparecem na clínica com esta demanda, parecem ter instituído

a ideologia que subjaz à medicalização é a tendência em se discriminar condutas

tidas como “desviantes” – leia-se: intolerância à diversidade. Essa tendência

explica a fácil aceitação do discurso medicalizante.

A não existência de evidências científicas rigorosas e confiáveis de que

exista alguma anomalia anatômica, mesmo que sutil, em sujeitos com dificuldades

de aprendizagem também se aplica aos comportamentos agitados como no caso

referido de M. que tem apenas dois anos de idade.

O TDA (com ou sem hiperatividade) está sendo medicalizado de forma

generalizada com o Metilfenidato em nossa sociedade e a tendência é que sua

prescrição, assim como a de outras drogas similares, seja disseminada para a

dislexia. Os pais em questão procuram o serviço do psicodiagnóstico no intuito de

terem a resposta para suas dúvidas no que respeita à certeza do TDAH em sua

filha. Dar-lhes a certeza do diagnóstico esperado por eles é a mesmo que colocar

em risco o futuro do desenvolvimento psíquico e emocional da filha.

O que estes pais não sabem é que o mecanismo de ação do Metilfenidato e

de outras anfetaminas é o mesmo da cocaína, estimulando a atenção e a

produtividade. Aumentam os níveis de dopamina (responsável pela sensação de

prazer), bloqueando sua recaptação. Esse tipo de droga tem grande potencial

aditivo (viciante), pois os demais estímulos prazerosos passam por

dessensibilização – o sujeito passa a buscar apenas a droga.

As possíveis reações adversas dessa droga são inúmeras e graves, como

alucinações, depressão, ansiedade, agressividade, convulsão, problemas

cardíacos, pressão alta, anorexia, náuseas, disfunções gastrintestinais, alterações

endócrino-metabólicas, dentre outras.

Existem inúmeras formas para se aprender e se comportar, características

próprias à diversidade humana, e seus extremos não deveriam ser colocados

como doença neurológica sem evidências científicas rigorosas e concretas.

A verdade é que os pais de M. com um diagnóstico de TDAH em mãos,

estariam colaborando para que M., desde muito cedo, recebesse o metilfenidato

(Ritalina e Concerta), ainda que sob prescrição médica, como método de controle

familiar e, posteriormente, social.

Sabemos que, pais procuram ajuda profissional “quando a criança começa

a apresentar atitudes e comportamentos que rompem com algumas expectativas

dos pais” (YEHIA, 1998, p.117). M. se comportava de maneira que estava

causando sofrimento e incômodo à família.

Por esta razão o trabalho de Psicodiagnóstico com esta família teve um

caráter interventivo/preventivo desde o início de modo a garantir o direito da

criança de ser ela mesma alertando os pais para o cuidado com o excesso de

medicalização.

O psicodiagnóstico foi realizado sob o método fenomenológico-existencial.

O processo foi grupal, com 6 crianças de 2 a 4 anos e seus pais. No caso em

questão da menina M. Os dois pais participaram ativamente dos 11 encontros.

Apesar de não parecerem confortáveis perante pessoas desconhecidas, os

pais contaram sobre o motivo pelo qual procuravam ajuda. Mas também, segundo

Raymundo (2000), “pode ocorrer o fato de os pais verbalizarem o motivo, porém,

não o mais verdadeiro ou o mais autêntico, dentro de sua percepção” (p.39).

Para o nosso trabalho foi essencial a colaboração dos pais no fornecimento

de informações, pois, “existe a necessidade de definir quem são os clientes e

como responder adequadamente às demandas de cada um deles” (TAVARES,

2000, p.55).

Nos momentos iniciais discutimos acerca do caráter de cooperação do

processo, sendo extrema importância da participação dos pais. Neste encontro

também foram entregues o termo de consentimento para o uso ou não das

informações fornecidas por eles. Enquanto o atendimento ocorria, as crianças

brincaram com a caixa lúdica. M. não ficou na sala, pois começou a chorar e pai

saiu com ela. Ambos permaneceram fora da sala até o final do atendimento.

Dados da anamnese foram se esclarecendo e nos primeiros encontros já

sabíamos que M. é a única filha do casal, porém o pai tem mais um filho de outro

relacionamento, que tem dezoito anos, e que vem visitá-los nos fins de semana. A

única criança com a qual M. tem contato é com seu priminho, quatro meses mais

velho e nas suas brincadeiras ela gosta de mandar. A mãe deixou do trabalho

para cuidar de M. e o pai trabalha fora, mas almoça em casa todos os dias. Foram

levantadas hipóteses acerca da agressividade de M. como manifestação de

sofrimento e estresse. Aos poucos M. ia permanecendo na sala, mas sem interagir

e brincar com as demais crianças, apenas jogando os brinquedos no chão. M. se

auto-agrediu algumas vezes, mostrando-se bastante agitada; bebeu muita água e

comeu bastante bolacha.

A maioria dos relatos foi da mãe e o pai apenas concordava com a esposa.

Em um dos encontros, discutimos como se dava as diferentes constituições

familiares e como a psicologia a família, apontando para os papeis do pai, da mãe

e do filho, na importante construção de um diálogo entre as partes. Ao ouvir os

pais em seguida, ficou evidente o medo que paira sobre a relação que eles têm

com a filha. Neste encontro aproveitamos para dar alguns esclarecimentos e

orientações acerca de sua ansiedade. M. estava sonolenta neste atendimento,

brincou pouco e permaneceu mais tempo no colo dos pais, ouvindo as

intervenções, chegando a dormir.

A mãe relatou que estava tentando colocar em prática as orientações

recebidas no processo. Os pais trouxeram dados que, para eles, fundamentam a

questão do medo na relação com a filha: dois acidentes não com M., mas

diretamente ligados a ela e muito estressantes para a mãe. O primeiro, de uma

sobrinha da mãe que aos dois anos caiu de uma escada de sua casa, ainda em

construção e ficou com sequelas cerebrais que comprometeram seus movimentos

e sua fala até os dias de hoje (a sobrinha tem 15 anos); o segundo, quando a mãe

estava grávida de M. indo para o hospital para exames, pois estava prestes a ter o

bebê, quando um carro colidiu com o da família e ela pensou que todos iriam

morre, pois a batida na trazeira do veículo chegou a rodopiar o carro na avenida.

Neste encontro, M. interagiu bem com as outras crianças, tentando chamar a

atenção da mãe por diversas vezes.

Nesse primeiro momento, entendemos que M. uma criança carregada de

tensão e estresse. De acordo com Romaniuc e Rubio (2012), uma hipótese acerca

do comportamento de M., é a de que os gritos e a atitude agressiva são usados

como veículos de escoamento dessa tensão, visto que o estresse produz

respostas orgânicas. Ela lida com a situação de estresse com os mecanismos dos

quais dispunha.

Pensamos que, devido ao fato de M. ser uma criança que ainda nem

completou dois anos, podemos trabalhar a dinâmica familiar como um todo, todos

seus elementos e o papel que cada um ocupa na família.

Os pais acreditam que M. intensifica seu comportamento autoagressivo ou

os gritos diante da presença de mais pessoas que não os pais. Seu interesse

parece estar em ser o centro das atenções onde quer que vá.

Em certos momentos, a mãe parece apreciar o comportamento de

curiosidade da filha, dando-lhe ênfase. Porém, repudia seu comportamento

agressivo, repreendendo-a. “Os primeiros sinais de agressividade dirigida, nessa

fase, coincidem com a fase anal; igualmente cresce o sentimento de posse e

impulsiva avidez do bebe em relação à mãe” (MAHLER, 1982, p. 35). M. está na

fase de aprendizado de controle de esfíncteres e seus pais estão auxiliando-a.

Nesse período, são esperados os comportamentos agressivos voltados para si e

para os outros.

Outro fator a ser considerado, é o fato de M. não conseguir estabelecer

uma brincadeira e não ter interesse pelos brinquedos, o que pode estar

correlacionado com a queixa inicial dos pais (agressividade e agitação).

Observamos seu comportamento durante o atendimento. M. não interagia com as

outras crianças, somente chutava os brinquedos que estavam no chão. Algumas

vezes, pegou o brinquedo das mãos de outra criança e o jogou.

Segundo Aberastury (1992, p. 55): “A criança que brinca, investiga e

precisa ter uma experiência total que deve ser respeitada. Seu mundo é rico e, em

contínua mudança, inclui um intercâmbio permanente entre fantasia e realidade”.

E sob o pensamento de Mahler (1982) é comum, em crianças entre 18 e 24

meses, a busca pela exploração do mundo à sua volta, assim como o desejo e a

necessidade de que a mãe compartilhe de suas conquistas e suas novas

experiências.

O que chama a atenção de M. é a brincadeira com barulho das outras

crianças com seus estagiários-terapeutas. Quando as crianças ou os estagiários

gritavam ou faziam sons altos, M. se aproximava e queria interagir. Quanto mais

agitação, maior seu interesse. Por vezes, foi introduzida na brincadeira.

A experiência do brincar é apontada por vários autores como fundamental

na formação do indivíduo. Segundo Sakomoto (2008), na infância, o brincar é o

veículo da elaboração e manifestação da criatividade; e esta, por sua vez, está na

base das construções individuais importantes na vida do sujeito, também atrelada

aos sentimentos de felicidade, bem-estar e realização.

O brincar envolve a capacidade de estabelecer relações entre as

dimensões ‘fantasia e realidade’, capacidade esta que é construída na e a partir

da relação com o brinquedo. Algumas vezes, M. se interessou pela brincadeira

com os fantoches, onde representávamos os personagens. Sua interação e

brincadeira consistiam em abraçar e beijar os fantoches.

Em todos os encontros utilizamos o recurso da caixa lúdica, que é

constituída por brinquedos que acreditamos que possam provocar situações em

que as crianças tenham que dividir os brinquedos, aprender a ceder e

compartilhar. Essa estratégia lúdica se faz necessária para criar situações em que

o comportamento-problema possa ocorrer (EMIDIO, de-FARIAS e RIBEIRO,

2009).

M. já não apresentava comportamento agressivo em nenhum momento

durante o processo. Conseguiu estabelecer uma brincadeira criativa, assim como

suportar a ausência da mãe, fato que causou estranheza na mesma.

Não foram observados comportamentos de agressividade explícitos de M.

durante a visita domiciliar. Porém, houve um movimento no qual M. quis sentar-se

sobre uma foto da mãe, muito estimada por esta, e logo em seguida, o pai

percebeu que a filha havia feito cocô. Neste episódio, verificamos uma

agressividade implicitamente dirigida à mãe, fato que já havíamos hipotetizado em

atendimento e que foi, posteriormente, confirmado pela mãe.

No decorrer dos atendimentos, M. havia criado um vínculo com a estagiária-

terapeuta, dirigindo-se a esta quando precisava de algo, principalmente na

ausência da mãe. Podemos dizer que se construiu, aos poucos, uma relação de

confiança.

Segundo Scarpato (2001), o vínculo é baseado em confiança e protege a

abertura do espaço singular do indivíduo e “O vínculo terapêutico é também um

campo de experimentação de modos novos de vinculação, de diferenciações em

relação aos padrões conhecidos e de confrontação com os modos habituais.”

(p.107).

M. também começava a se interessar por brincadeiras mais organizadas,

como quando guardou os gizes de certa na embalagem para poder jogá-los no

chão e rir. Ela também se interessou por brincadeiras coletivas que as outras

crianças e estagiários desenvolviam, como brincar de fazer comida e jogar bola. O

que, segundo Rojas (2007) é o adequado para sua idade, já que “com menos de

três anos de idade, é essencialmente impossível envolver-se em uma situação

imaginária” (p. 24), uma vez que essa capacidade imaginária depende de um novo

comportamento não mais restrito ao ambiente imediato.

Uma dinâmica foi proposta para os pais, para que eles escrevessem em

sua linha do tempo, desde a primeira infância, inserção na escola e adolescência,

vida adulta até o dia atual, fatos que consideravam importantes em cada fase de

suas vidas, inclusive, da vida de M. A atividade exigia reflexão e conhecimento

deles próprios e o que se evidenciou foram muitos momentos de perda dos dois

lados da família. Enquanto realizavam a tarefa, M. explorou o ambiente: janela,

banheiro e conteúdo da caixa lúdica. Não interagiu com as outras crianças, mas

observou durante momentos as brincadeiras e pareceu divertir-se com isso. Fez

algumas atividades que não tínhamos visto ainda e inseriu o pai na brincadeira.

Em um dos encontros todas as crianças interagiram, brincando com a bola,

até que M. pegou a boneca de outra criança e esta começou a chorar fortemente.

Embora M. tivesse devolvido a boneca, a outra menina não quis mais brincar.

Comentamos com os pais sobre a capacidade de lidar com frustrações e sua

importância para o desenvolvimento infantil. M. brincou principalmente com o

fantoche, com a caixinha de giz de cera e com a bola e nas brincadeiras pareceu

divertir-se bastante. Neste encontro combinamos a visita domiciliar para nos

apropriarmos melhor de suas relações interfamiliares.

No dia da visita domiciliar as estagiárias-terapeutas que acompanharma o

caso foram bem acolhidas e M. ajudou os pais a mostrar a casa. Através da visita

pudemos estabelecer um maior contato com M. e seus pais, e também ampliar a

nossa percepção acerca do caso e da dinâmica familiar. Observamos que M. se

auto-agrediu apenas uma vez durante a visita.

Os pais também participaram de uma atividade (foram levados a outra

sala), a fim testarmos a capacidade da criança de se distanciar dos pais e vice-e-

versa, além de propor aos pais que assistissem um curta sobre consumismo

infantil (criança: a alma do negócio). Parte dos estagiários acompanhou a

professora-orientadora e os pais, e parte ficou em atividade com as crianças.

Todas as crianças conseguiram suportar a ausência de seus pais. M. chorou

pedindo pela mãe em determinado momento, mas logo começou a brincar e

pareceu divertir-se nas brincadeiras. Mostrou-se perceptiva e inteligente,

reproduzindo alguns movimentos e palavras direcionadas a ela. A brincadeira de

M. foi mais simbólica neste atendimento e não apresentou sinais de agressividade

mesmo em momentos difíceis ou de frustração.

Houve um momento do processo em que atendemos somente as M.,

pedindo aos pais que aguardassem na sala de espera. Nosso objetivo foi verificar

se conseguíamos separá-la um pouco dos pais e se M. conseguia suportar a

ausência deles durante alguns minutos e subir sozinha. M. desceu do colo da mãe

e nos acompanhou alegre, mas ao chegar na sala começou a pedir pela mãe.

Brincou um pouco durante o atendimento, não chorou, mas ficou constantemente

chamando pela mãe. Embora visivelmente contrariada, M. não manifestou

comportamentos agressivos. Após o atendimento, ao encontrar a mãe na sala de

espera, M. contou a todos que havia se separado da mamãe. Percebemos que a

mãe tem muita dificuldade em se separar da filha, pois ela acredita que M. irá

atrapalhar ou incomodar as pessoas com quem está devido a seu comportamento

agitado. É essencial para o desenvolvimento psíquico de M. que ela atravesse o

processo de separação-individuação. Que, no início, lhe causará sentimentos de

abandono, medo da perda da mãe, frustração, mas que estarão contribuindo para

seu crescimento e preparação para as fases seguintes de sua vida. “As fases que

propõem como sendo organizadoras do psiquismo, incluem uma etapa do

desenvolvimento no qual o eixo psicológico é a separação-individuação da criança

em relação à mãe” (MONDARDO; VALENTINA, 1998, s/p.).

Na entrevista de natureza devolutiva parcial aos pais, falamossobre nossa

percepção sobre M. e sobre a dinâmica familiar. Ressaltamos o quanto ela é

inteligente, perceptiva, comunicativa e cheia de energia. Falamos também sobre a

aparente dificuldade que a menina apresenta para lidar com emoções,

principalmente em situações limitadoras. Esclarecemos aos pais a necessidade de

continuarem o processo de psicodiagnóstico interventivo no próximo semestre, e

sobre a possibilidade da mãe fazer terapia. A mãe disse que gostaria de continuar

com o atendimento da filha e também começar um atendimento individual.

No último encontro, lemos com os pais e a criança o relatório final do

atendimento, finalizando a devolutiva. Com os pais discutimos sobre os pontos

positivos da relação com a filha, assim como apontamos alguns aspectos a serem

pensados, e na medida em que compreendiam, fornecemos algumas sugestões

de ações que poderiam melhorar a dinâmica familiar. Refletimos sobre suas

atitudes, por mais que imaginem ser boas, por vezes, podem causar sofrimento

em ambas as partes, como no caso de aplicar o castigo à M., quando mãe e filha

acabam sofrendo.

Para M., elaboramos uma “mini caixa lúdica” contendo os brinquedos que

mais lhe prenderam a atenção durante o processo e explicamos a ela que aquilo

era dela e que ela poderia brincar da maneira que quisesse.

Apontamos, por último que a medicalização usada atualmente é um fator

preocupante. A mãe ainda queria tirar sua dúvida sobre a filha ter TDAH e

ressaltamos que M. é uma criança saudável de apenas 2 anos de idade.

Descartamos a possibilidade de ela ser hiperativa, assim como mãe desconfiava.

Acreditamos que com a compreensão, esforço e colaboração dos pais é possível

atravessar essa fase se M. sem maiores comprometimentos e sem medicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABERASTURY, A. A criança e seus jogos.Ed. Artes médicas, Porto Alegre, 1992. ANDRADE, M. L. de; MISHIMA-GOMES, F. K. T.; BARBIERI, V. Vínculos familiares e atendimento psicológico: a escuta dos pais sobre a alta da criança. Rev. SPAGESP, Ribeirão Preto, v. 13, n. 1, 2012 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702012000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em: 17/05/2013. EMIDIO, L. A. S.; RIBEIRO, M. R.; de-FARIAS, A. K. C. R. Terapia infantil e treino de pais em um caso de agressividade. Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., Campinas-SP, 2009, Vol. XI, nº 2, 366-385. MAHLER, E. O processo de separação-individuação. Ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1982. MONDARDO, A. H; VALENTINA, D. D. Psicoterapia infantil: ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 11, n. 3, 1998 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721998000300018&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 12/05/2013.

RAIMUNDO, M. G. O contanto com o cliente. In: CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico V. Porto Alegre: Artmed. 2000, Cap. 4. ROJAS, Jucimara. Jogos, brinquedos e brincadeiras: a linguagem lúdica formativa na cultura da criança. Campo Grande: UFMS, 2007. ROMANIUC, R.C; RUBIO, J.A.S. Stress Infantil: Causas e Efeitos do Stress na Criança. In: Revista Eletrônica Saberes da Educação – FAC- São Roque. Volume 3, nº 1, 2012. SAKAMOTO, Cleuza Kazue. O brincar da criança – criatividade e saúde. FAPCOM, Boletim Academia Paulista de Psicologia - Ano XXVIII, nº 02/08: 267-277. SCARPATO, Artur Thiago. Transferência Somática: A dinâmica formativa do vínculo terapêutico. Revista Hermes do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo, 2001, p. 107-123. Disponível em: http://www.psicoterapia.psc.br/scarpato/t_vinculo.html. Acessado em: 27/04/2013. TAVARES, M. A entrevista clínica. In: CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico V. Porto Alegre: Artmed. 2000, Cap. 5. YEHIA, G. Y. Reformulação do papel do psicólogo no psicodiagnóstico fenomenológico existencial. In: ANCONA-LOPEZ, MA (org.) Psicodiagnóstico: Processo de intervenção. 2ª edição SP Cortez, 1998, p. 115-134.

Moysés, M. A. F. & Collares, C. A. L. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da

ciência médica in “Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos

silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos” São Paulo:

Casa do Psicólogo, 2011. Organizado pelo Conselho Regional de Psicologia de

São Paulo

COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso. A

Transformação do Espaço Pedagógico em Espaço Clínico (A Patologização da

Educação). Série Idéias, 23, pp. 25-31. São Paulo: FDE, 1994.

Conselho Federal de Psicologia – XV Plenário – Gestão 2011-2013

1  

Saúde na Escola e Medicalização: análise do tema nos Projetos

Político-Pedagógicos das escolas municipais de Maringá.

Isabela Quaglia1 UniCesumar

Bárbara Magalhães Barros Arco-Verde2 UniCesumar

Lizia Helena Nagel3 UniCesumar

Ana Paula Machado Velho4 UniCesumar

EIXO 1: CIÊNCIA, IDEOLOGIA E MEDICALIZAÇÃO DOS DIFERENTES MODOS DE VIVER Palavras-chaves: Saúde; Escola; Medicalização; Projeto Político Pedagógico; Maringá. Introdução

Pensar em uma escola promotora da saúde é acreditar em uma instituição que

promove também qualidade de vida. Segundo Pelicioni e Torres (1999, p.09), pensar

neste modelo de escola é “implementar políticas práticas e outras medidas que se

referem à autoestima dos indivíduos, à provisão de múltiplas oportunidades para seu

sucesso e ao reconhecimento de bons esforços e iniciativas, bem como de realizações

pessoais”. Isto quer dizer: ela oferece informações fundamentais para que o sujeito se

construa saudavelmente. Em outras palavras, é impossível pensar a formação de um

sujeito social, político sem investir na educação e na saúde. Porém, a quantos

indivíduos está assegurado o direito de se construir como sujeito e atuar na sociedade

como cidadão crítico e reflexivo por meio da escola promotora da saúde? As unidades

educacionais de Maringá estão se estruturando por meio dos seus Projetos Político-

Pedagógicos como construtoras do conhecimento em saúde?  

                                                            1 Mestranda do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 2 Mestranda do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 3 Professora doutora, co‐orientadora, do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 4 Professora doutora, orientadora, do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 

2  

Para os autores a “promoção da saúde no contexto escolar deve enxergar o ser

humano de forma integral e multidisciplinar, considerando-o em seu contexto familiar,

comunitário e social” (PELICIONI E TORRES, 1999, p.03). Assim como afirmam

Collares e Moisés (1987), a educação e saúde trabalham com o mesmo sujeito: o ser

humano e também com um mesmo propósito: proporcionar o desenvolvimento do

bem-estar.

Partindo deste princípio, trabalhar com o tema saúde na escola implica não

somente em transmitir informações descontextualizadas, mas sim desenvolver no

educando conhecimentos, competências e habilidades para que sejam adotados

modos de vida saudáveis, de forma prática.

Mas não é isso que se tem visto no ambiente escolar na cidade de Maringá.

Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação (SEDUC), 4,94%, ou seja, 530

alunos da rede de ensino fundamental usavam medicação para o Transtorno de Déficit

de Atenção com Hiperatividade (TDAH), em 2012. Uma consulta feita recentemente

junto aos alunos do 4º ano de escolas de Ensino Fundamental de Maringá mostra que

18,75% dos 48 alunos que tomam medicação para o controle do TDAH, e

concordaram em participar da pesquisa5, foram “aconselhados” pelos professores6.

Os dados foram fornecidos pelos pais dos estudantes e coletados em abril de 2013.

No entanto, o problema pode ser maior, porque se sabe que, informalmente, a

escola está frequentemente encaminhando alunos para os neuropediatras da rede

pública. E só o fato do professor ser citado como quem indicou o tratamento com

medicamentos para a minimização dos efeitos de um comportamento hiperativo já é

um grande problema. Esse fato já vem sendo criticado por Collares e Moysés (1986),

que acrescentam que, além de indicar, professores e médicos vêm fazendo isso de

forma inadequada.

Enfim, as estatísticas acima ajudam a levantar a questão de que a escola está

contribuindo com o processo de medicalização, o que nos leva a propor a hipótese de

que as unidades escolares não estão lidando com o tema saúde de maneira adequada

desde o processo de planejamento das unidades, que se reflete nos Projetos Político-

Pedagógicos (PPP).

                                                            5 Em 2012, o total de alunos do quarto ano com TDAH que tomavam medicação era de 136, de um universo de 3.031, o que representa um percentual de prevalência na série de 4,49%. 6 Os dados desta pesquisa  são  inéditos  e  serão publicados  em breve na dissertação da mestranda Bárbara Magalhães Barros Arco‐Verde, co‐autora deste artigo.  

3  

Nessa perspectiva, este artigo tem o objetivo de traçar um panorama de como

as informações sobre saúde aparecem nos Projetos Político-Pedagógicos das

Escolas Municipais de Maringá. Afinal, defende-se que ações que podem posicionar

a escola contra o movimento da medicalização na escola devem começar a ser

planejados nos Projetos. Será que o tema saúde consta nos Projetos Político-

Pedagógicos das instituições analisadas? Será que a construção de uma escola

promotora da saúde está mesmo entre as preocupações das equipes que elaboram

estes Projetos?

Para responder a estas questões, foi feita a análise de conteúdo em 13 Projetos

de escolas municipais de Maringá. A ideia foi verificar como são implementadas e

planejadas as atividades educativas, culturais, políticas, curriculares e

extracurriculares que visam uma educação de qualidade e a constituição de cidadãos

promotores de saúde. A proposta é utilizar esse levantamento para propor novas

estratégias de Promoção da Saúde para o Ensino Fundamental da cidade de Maringá,

entre elas, a de redução da medicalização dos alunos da rede municipal de Maringá.

Os problemas da pesquisa já começaram no início do levantamento

bibliográfico inicial que sustentou o projeto. A primeira preocupação que se teve foi

compreender a legislação que regulava a elaboração dos Projetos. Porém, as séries

iniciais do Ensino Fundamental possuem Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN´s),

que apenas orientam as decisões e ações dos gestores escolares na sua elaboração

e não propõem modelos a serem desenvolvidos.

Sabe-se que estes Parâmetros são fruto de políticas públicas, isto é, propostas

dos governos da União, dos Estados, dos Municípios para o atendimento de

necessidades e demandas advindas da sociedade. De acordo com Eyng (2010, p.38)

“as políticas educacionais são parte do conjunto das políticas públicas que as

englobam e tratam das questões relativas ao provimento da educação, seguindo

determinações da Constituição Federal, do Plano Nacional de Educação (PNE), da

Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e de resoluções e leis complementares”. Segundo a

autora, a LDB aponta nos artigos 12 e 13, que as escolas devem de forma coletiva

otimizar a comunidade e a equipe pedagógica a desenvolver sua proposta

pedagógica. Em seu art. 14, no qual trata da gestão democrática, a Lei apresenta o

termo Projeto Político-Pedagógico da escola, no qual enfatiza a importância da sua

intenção educativa.

4  

Vasconcellos (2004) destaca que o Projeto Político-Pedagógico é o plano

global da instituição. Para o autor esse termo pode ser entendido como

a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. Portanto, é um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição no processo de transformação (2004, p. 169).

Para Eyng (2010, p. 43), “o planejamento e desenvolvimento do currículo

escolar se orientam nas determinações emanadas das políticas curriculares”. Porém,

não há uma diretriz específica para adequação do Currículo da Educação Infantil e

dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Há, sim, alguns apontamentos. Essa falta

de modelo traz prejuízos ao conteúdo dos Projetos, como será visto mais a frente.

Metodologia

Diante de um documento norteador, que não propõe modelos estruturais para

os PPP, procurou-se perceber algum padrão estrutural nos Projetos escolhidos para

a análise aqui proposta, de forma que se pudesse sistematizar as observações sobre

como lidam com o tema saúde. Porém, e aí surge o segundo problema, não há

modelo, padrão e, muito menos, capítulos ou subtítulos que especifiquem as ações

de promoção da saúde nos projetos que chegaram às mãos das pesquisadoras. Desta

forma, a saída foi propor uma análise de conteúdo desses documentos, utilizando a

metodologia de análise de conteúdo de Bardin (2011). Segundo a autora “há

diferentes fases neste processo: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e 3) o

tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação” (BARDIN, 2011, p. 125).

Desta forma, foi definida uma amostra por cotas das 49 Escolas Municipais de

Ensino de Maringá, que ofertam turmas de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. A

amostra por cotas se baseou em Gil (1999). Para o autor a análise de cotas também

é desenvolvida em três fases: (1) classificação da população; (2) determinação da

proporção da população; e (3) fixação de cotas para cada observador ou entrevistador

(GIL, 1999, p. 104). Assim, como foi possível verificar que as unidades escolares

contemplavam características diferentes, a coleta de dados foi realizada em 13 das

5  

49 escolas de Ensino Fundamental, divididas entre as quatro regiões da cidade: Norte,

Sul, Leste e Oeste, que apresentam diferentes características socioculturais. Nestas

regiões, foram selecionadas as escolas que apresentavam o maior número de

estudantes. A Secretaria Municipal de Educação, então, repassou os Projetos Político-

Pedagógicos das escolas para que fosse feita a análise. Destaca-se que documentos

oficiais como os PPP constituem-se numa fonte fidedigna de dados, visto que

representam oficialmente as escolas, junto à Secretaria de Educação. Coube às

pesquisadoras apenas selecionar o que lhe havia interesse e, apesar de não exercer

controle sobre a forma como os documentos foram criados, o material foi interpretado

e comparado de modo a poder traçar e apresentar a ação das instituições.

Foram determinados os descritores “saúde” e “prevenção” para a pesquisa. A

Constituição Brasileira de 1988 afirma que a saúde é direito de todos e dever do

Estado. Portanto, “deve ser garantida por políticas sociais e econômicas, reduzindo o

risco de doença e promovendo acesso universal e igualitário às ações e serviços em

promoção, proteção e recuperação da saúde. A saúde deve ser compreendida como

qualidade de vida e não apenas ausência de doenças” (BRASIL, 2005).

Os resultados da análise de conteúdo mostraram, então, que quando se fala

em saúde nos PPP das 13 escolas estudadas, não se foca especificamente prevenção

e nem se toca na questão comportamental, tão em voga nas escolas, como mostra o

índice de medicalização para o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH) exposto acima.

O perfil dos Projetos Políticos Pedagógicos

O município de Maringá possui dez mil educandos, em cinquenta e sete

Centros Municipais de Educação Infantil, e dezessete mil educando dos anos iniciais

do Ensino Fundamental, em quarenta e nove Escolas Municipais, conforme apresenta

informações disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Educação (SEDUC, 2012).

Portanto, perante esse âmbito foi realizado o levantamento de dados em 13 Projetos

das Escolas Municipais e boa parte das 102 vezes em que a palavra “saúde” aparece

se refere a garantir a saúde no ambiente escolar. Um dos projetos aponta em

“valorizar a vida e sua qualidade como bens pessoais e coletivos, desenvolver atitudes

responsáveis com relação à saúde”, entendendo-a como “direito social” (31,37%).

Esses direitos sociais surgem misturados ao direito à educação, e à vida digna e

6  

discorre-se sobre o fato de que devem ser garantidos a partir da participação civil da

escola “em associações civis, conselhos de escola, conselhos tutelares, conselhos de

saúde etc”.

A maior parte das ocorrências (37,25%) foca a discussão sobre saúde dentro

da Proposta Curricular, na disciplina de Ciências, sugerindo como tema o Corpo

Humano e Saúde. Há projetos que apontam a questão da estrutura institucional, que

deve atender às “práticas e normas de segurança; às condições e normas de higiene

e saúde” (16,66%). “Outros assuntos” somam 8,82%. E ainda há um grupo que,

quando fala em saúde, propõe conteúdos a serem trabalhados a partir de ações de

“atividade física” (5,8%), como proporcionar oportunidades de “alongamento e

relaxamento”.

Pouquíssimos apontam particularidades que consideram problemas psíquicos

e emocionais, apenas dois, na realidade, o que representa 1,96% do total de

ocorrência da palavra. Um Projeto sugere o estreitamento “da relação com os pais

quando o tema é saúde, sugerindo o acompanhamento e análise socioeconômica e

cultural das famílias que compõem a comunidade escolar e a inserção dos

responsáveis”. E acrescenta questões bastante focadas:

Um desenvolvimento integral depende tanto dos cuidados relacionais que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a conhecimentos variados. (2) A forma de cuidar, muitas vezes, é influenciada por crenças e valores em torno da saúde, da educação e do desenvolvimento infantil. (3) Os procedimentos de cuidado também precisam seguir os princípios de promoção da saúde (ESCOLA MUNICIPAL PROFESSORA PIVENI PIASSI MORAES – ENSINO INFANTIL E FUNDAMENTAL).

Outro Projeto é mais enfático no que diz respeito ao TDAH. Pondera que é

preciso envolver a família no ambiente escolar, no processo de ensino e

aprendizagem, “quanto à realização das tarefas de casa, comparecimento em

reuniões ou em outras convocações, falta de compromisso quanto à frequência, a

saúde dos filhos, principalmente, no que se refere aos problemas de hiperatividade”,

conforme abordado no Projeto Pedagógico da Escola Municipal Professora Odette

Alcântara Rosa. Por outro lado, há grupos que eximem a escola de responsabilidades.

7  

“Discordamos [...] nas questões que não fazem parte da função da escola e sim da

área da saúde, pois o responsável em garantir o bem estar do filho é a família e não

a Escola, cabendo sim [a esta última] a oferta de um ambiente prazeroso para a

sistematização do saber”. Este trecho é parte do Projeto da Escola Municipal

Professor Renato Bernardi. Quando se fala em prevenção, a situação é ainda mais

complicada. Em 61,53% das 13 vezes em que a palavra aparece se refere à

"prevenção e erradicação das drogas” ou da “criminalidade”. Sendo que 30,76% das

aparições se referem de forma geral à busca da prevenção; e uma vez apenas (8,7%)

fala de promoção da saúde.

Diante dessa realidade todas as instâncias - família, sociedade e escola - têm

a responsabilidade de favorecer e fortalecer comportamentos que estimule e

promovam a saúde. Segundo Veiga (2004, p. 49), “a educação, assim,

contextualizada faz com que a escola, especialmente a escola pública, assuma

importância cada vez maior como espaço-tempo em que as prioridades

socioeducacionais dos cidadãos podem se concretizar”. Portanto a escola é um das

instâncias onde as informações em saúde devem estar em constante discussão.

Considerações finais

É importante destacar que se apresentou aqui uma breve discussão sobre as

questões de saúde na escola. Utilizou-se parte dos dados que estão sendo levantados

para uma dissertação que visa discutir em profundidade como os PPP refletem a

preocupação da comunidade em construir uma escola promotora da saúde. Sabe-se

que outros fatores compõem o que o universo de condições que vão produzir o sujeito

sadio. Estas questões passam pela alimentação, renda, meio ambiente, entre outros

aspectos. Mas, a frequência e o contexto que os Projetos Político-Pedagógicos

apresentam a palavra saúde já denotam uma profunda deficiência no que diz respeito

à questão do problema do comportamento dos estudantes na escola, que passa pela

discussão da medicalização e do TDAH.

Diante da prevalência do distúrbio na rede e da prática da medicalização, é

preciso que se reveja o debate desta questão nas unidades escolares. E mais: é

fundamental que se mude o comportamento também dos professores no que diz

respeito ao “aconselhamento” da medicalização. Como já foi dito, só o fato do

professor aparecer como um dos agentes incentivadores da indicação

8  

medicamentosa já é um fator a de grande preocupação. Afinal, este não é o papel da

escola e nem do docente.

Sugere-se, então, que as autoridades de saúde cuidem mais da questão da

medicalização na escola, começando por fornecer modelos mais consistentes a serem

seguidos pelos Projetos Político-Pedagógicos e exigindo mais comprometimento das

equipes gestoras na produção deste documento. Este precisa, também, ir além das

proposições gerais e apontar de forma mais significativa ações concretas que dêem

conta dos problemas atuais que envolvem a educação. Entre eles, sem dúvida, está

a saúde.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 1ª Edição. São Paulo: Edições 70, 2011. BRASIL. Ministério da Saúde. A educação que produz saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2005. COLLARES, C. A. L. e MOYSÉS, M. A. A. Educação ou Saúde? Educação X Saúde? Educação e Saúde! Cadernos CEDES no 15, São Paulo: Cortez, 1986, pp. 7-16. COLLARES, A. L., MOISÉS, A.A. Educação, saúde e formação da cidadania na escola. Trabalho apresentado no Congresso Nacional de Didática e Prática de Ensino, Recife, 1987. EYNG, Ana Maria. Currículo Escolar. Curitiba: Ibpex, 2010. GIL, Antônio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social.5ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. MARINGÁ. Prefeitura do Município de Maringá. Secretaria Municipal de Educação. Currículo: Educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Paraná, 2012. PELICIONI. Maria Cecília Focesi; TORRES. André Luis. Promoção da Saúde: A Escola promotora de Saúde. Monografia. Departamento em Prática em saúde pública, Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, 1999. VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Planejamento: Projeto de Ensino-Aprendizagem e Projeto Político – Pedagógico: elementos metodológicos para a elaboração e realização. 12ª ed. São Paulo: Libertad, 2004. VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org). Projeto Político – Pedagógico da Escola: uma construção possível. Campinas: Papirus, 2004.

Saúde Mental, compromisso de todos:

tecer conhecimentos e redes para enfrentar desafios

Ivana Serpentino Castro Feijó

Osvaldo Cardoso Santana Filho

Prefeitura Municipal de São Paulo

1. Apresentação:

A reforma psiquiátrica propõe a substituição dos hospitais psiquiátricos por

uma rede de serviços composta por Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, Centro

de Convivência e Cooperativa – CECCO, leitos de observação e internação em

Hospital Geral, Residência Terapêutica - RT. Por outro lado, a Saúde Pública propõe

a Saúde da Família como estratégia da Atenção Básica, sendo responsável pela

saúde, e também pela saúde mental, da população adscrita em conformidade com

os princípios do SUS.

Há importantes pontos de convergência entre a Política de Saúde Mental e da

Atenção Básica, principalmente quando se trata da Estratégia de Saúde da Família:

constatamos que ambas se desenvolvem em um dado território, que não se limita

apenas um recorte geográfico, contemplando, também, dinamicidade e a dimensão

sociocultural das vidas das pessoas que nele habitam; o trabalho de ambos se

desenvolve através de relações democráticas e participativas de equipes

interdisciplinares, levando em conta os saberes dos diversos profissionais que as

compõem e os saberes de outros campos, como os das próprias comunidades;

ambos são norteados pelos princípios da responsabilização pela clientela adstrita ao

território, da consideração da singularidade do sujeito em sua complexidade e

integralidade, buscando o estabelecimento de vínculo para o cuidar e promover a

inserção sócio-cultural através de rede de assistência integrada profundamente à

vida diária dos usuários e da cidade, estimulando a participação e a autonomia,

promovendo um viver de modo saudável.

Considerando as profundas mudanças trazidas por este modelo de saúde, é

de fundamental importância que seja proporcionado um espaço de formação e de

reflexão entre todos os envolvidos, inclusive os usuários.

A região do Campo Limpo, atualmente com uma população em torno de

650.000 habitantes, possui cobertura de aproximadamente 95% para oferta de

cuidados em saúde na atenção básica através da Estratégia de Saúde da Família.

Há também equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF que apoiam o

trabalho das ESF junto à população para que grande parte das demandas de saúde

sejam atendidas nas Unidades Básicas de Saúde - UBSs. É sempre um desafio para

a ESF, manter equipes estáveis num contexto de trabalho que favoreça a

promoção de ações de saúde a partir de vínculo, marcadas pelo compromisso

e a corresponsabilidade destes profissionais com os usuários e a comunidade.

Seu desafio é o de ampliar suas fronteiras de atuação visando uma maior

resolutividade da atenção, muito mais ainda, superar o modelo biomédico que

é predominante na formação dos profissionais da saúde.

A retaguarda de saúde em nível terciário da região é o Hospital Municipal do

Campo Limpo e Hospital Municipal de M’Boi Mirim, ambos com leitos de saúde

mental: observação /ou internação. O trabalho em rede é um grande desafio para

todos os serviços de saúde devido à forte tradição hospitalocêntrica, mas

principalmente para os de saúde mental que tem como antecessor o hospital

psiquiátrico.

Temos também serviços de saúde mental comunitários, que na época eram:

um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, dois Centros de Convivência e

Cooperativa - CECCO e um Serviço Residencial Terapêutico – SRT. O desafio

desses serviços no Campo Limpo é consolidar novos dispositivos de cuidado em

saúde mental orientados pela reforma psiquiátrica, reinventando formas de

inserção social da loucura que se articulem nos territórios.

Os Conselhos Gestores das unidades de saúde são obrigatórios no município

de São Paulo, o que desencadeou um processo de articulação da discussão das

políticas de saúde junto aos representantes da população. Neste espaço dá-se o

confronto das demandas de saúde da população das quais os membros do

Conselho Gestor são porta-voz com as diretrizes das políticas de saúde pública de

superação do modelo biomédico e hospitalocêntrico porém com muitos problemas

na gestão da oferta de serviços e com recursos insuficientes. Temos o duplo desafio

de estabelecer espaços de diálogo entre os profissionais da saúde, gestão dos

serviços e representantes da população e constituirmos alianças em torno de lutas

por melhoria de qualidade de vida em relação à saúde, cujos objetivos, muitas

vezes, rompem com a expectativa e compreensão das necessidades de saúde da

população.

Como cenário dos desafios que se colocam para as ações de saúde na região

de Campo Limpo, temos uma região de alta vulnerabilidade social que sofre após

um período de longo desinvestimento das políticas públicas nas periferias da cidade

de São Paulo com fragilização na prestação de serviços de qualidade para todos.

A proposição de um curso de saúde mental para profissionais atuantes nos

diversos níveis de atenção à saúde de uma microrregião e representantes da

população através dos membros dos Conselhos Gestores das unidades de saúde

envolvidas foi o espaço proposto para integração entre os protagonistas do processo

de saúde na região de Campo Limpo. Como decorrência, o debate sobre as práticas

de saúde mental em suas continuidades e descontinuidades com a Reforma

Psiquiátrica e as necessidades de cuidados em saúde mental dos moradores da

região.

2. Objetivos:

Formação, atualização em saúde mental para profissionais da atenção

básica (ESF) e dos equipamentos especializados em saúde mental e realinhamento

político;

Integração entre profissionais de saúde mental do CAPS, NASF,

CECCO, Residência terapêutica, Hospitais e representantes da população como

membros dos Conselhos Gestores das unidades de saúde envolvidas;

Informar e discutir o modelo de saúde mental com representantes da

população e de outros setores que atuam no mesmo território;

Contextualizar os conceitos teóricos de modo a apresentar sua

dimensão prática e discutir práticas de saúde mental em seus fundamentos teóricos.

3. Metodologia de trabalho:

Foram realizados 4 grupos de profissionais e população, cada um deles

trabalhando e morando num mesmo território de aproximadamente 80.000

habitantes, o que na região de Campo Limpo significa um conjunto de 18 a 20 ESF

distribuídas em 2 ou 3 UBSs que são apoiadas por uma única equipe NASF além de

alguns profissionais do CAPS, CECCO e hospital de referência na proporção abaixo.

3 Profissionais de cada Equipe de Saúde da Família – ESF daquela

microrregião: 2 Agentes Comunitários de Saúde e/ou Técnicos de Enfermagem, 1

Enfermeiro ou Médico da equipe;

2 Profissionais do NASF da mesma microrregião: Psicólogos, Assistente

Social, Terapeuta Ocupacional, Nutricionista, Fonoaudióloga, Fisioterapeuta,

Educador físico

4 Profissionais da equipe do CAPS Jardim Lídia: Psicólogos, Assistente

Social, Médicos Psiquiatras e Profissionais de Apoio administrativo ou Auxiliares de

serviços gerais;

3 Profissionais dos Hospitais de referência de cada microrregião;

2 Profissionais da SRT;

2 Profissionais dos CECCOs de referência;

Membros dos conselhos locais de saúde dos equipamentos de saúde citados

acima

Cada grupo reuniu-se em cinco encontros semanais num total de 30 horas. A

primeira parte do encontro apresentava informações sobre os temas abaixo e a

segunda parte, era reservada para reflexão e discussão desses temas utilizando a

técnica de Grupo Operativo:

a. Reforma psiquiátrica: avanços e dificuldades vividas em Campo

Limpo e o contexto brasileiro;

b. A desinstitucionalização e o Projeto Terapêutico Singular (PTS):

invenção de novas formas de cuidar; o lugar do diagnóstico e da medicação

no PTS; Novos dispositivos clínicos;

c. A rede de serviços e a rede de apoio/social e atuação no

território;

d. Institucionalismo e cronificação: a importância do cuidado no

primeiro episódio psicótico e na abordagem preventiva do suicídio;

e. Levantamento de morbidade em saúde mental e a inclusão de

usuários graves na rede de serviços de saúde;

f. Painel de Experiências interessantes vividas pelas equipes.

Ao longo do curso, no momento do grupo operativo, realizávamos anotações

sobre o trabalho do grupo. A partir da análise desse material, produziamos, o que

chamamos de crônica, que era lida ao grupo no início do trabalho do grupo operativo

subsequente.

Outra função da crónica era apresentar a metodologia de trabalho do grupo

operativo de modo que os participantes se apropriassem desse dispositivo enquanto

membro do grupo. De forma, alguma havia intenção de formação técnica, mas de

compartilhamento da metodologia de trabalho utilizada e seus princípios

fundamentais.

O grupo operativo é uma proposta democrática de refletirmos o que fizemos, o que pensamos e o que sentimos e para além disso, é um dispositivo que se propõe a construir algo, a operar algo, a propor ações,soluções.

Não é a toa que na cidade de São Paulo, durante a instalação da política de reforma da assistência em psiquiatria, nos anos de gestão popular de 1989-1992, houve todo um incentivo para a formação de grupos operativos, bem como para a instrumentação dos agentes de saúde em abordagens grupais.

Ora grupos aprendemos fazendo grupos, conversando sobre grupos em grupo.

A premissa do grupo operativo é de que TODOS, do mais simples cidadão, até o mais erudito, todos temos algum saber, algum conhecimento que pode ser útil na soma, na contradição e na reflexão para a solução de problemas humanos. O que precisamos é pararmos, estabelecermos um lugar e hora para pensarmos, ousarmos sonhar e aí encarar a realidade do possível no aqui agora do momento em que estamos vivendo. Para Pichon Rivière, o idealizador dos grupos operativos, temos um compromisso histórico, temos um compromisso com o futuro, mas não devemos jamais deixar escapar o aqui e agora. Trata-se de um conceito de saúde mental;- de adaptação crítica à realidade. Não é um simples se adaptar que isto seria doentio, mas um modificar algumas questões hoje, aceitar algumas imobilidades para viabilizar o futuro.

Vamos ver então como produzimos teoria a respeito da Reforma Psiquiátrica, tema de nosso primeiro encontro do curso: “Saúde Mental compromisso de todos”.

A Reforma Psiquiátrica é um processo e se tem um lado positivo que aparece na fala de um membro do grupo como o retorno ao convívio familiar, o passear juntos, o reaprender a lidar com o dinheiro.tem um outro que é o seu negativo, temos usuário que tem ficado em situação de rua, desassistidos, desfamiliarizados. Enquanto equipes temos que enfrentar problemas sociais, econômicas. Como dar sustentação às famílias, às estruturas extra-hospitalares? É preciso aumentar o numero de equipamentos de saúde mental, melhor capacitar os profissionais de saúde da família.

Fica evidente através das falas, que a reforma psiquiátrica como processo, não está pronta,... ela se constrói nas suas contradições, nas suas brechas. E o belo que vemos neste grupo operativo é que isto aparece escancarado, de pronto logo nos primeiros momentos do grupo, o que chamamos de emergente de abertura... e é um momento de síntese, de obra= ópera.

Como toda obra-síntese que olhamos, segue-se um momento que chamamos de desenvolvimento ou análise que se instala com as falas que denunciam buracos, falhas nas propostas atuais da reforma.

São os usuários que têm que se adaptar aos dispositivos de cuidados

ou o contrário? Ou ambos teríamos que abrir mão de algo na construção de uma solução mutuamente satisfatória, suficientemente boa?

As famílias e as equipes são postas na posição de sustentáculos da reforma psiquiátrica e se demanda que a cada uma destas partes se dediquem ações de instrumentação e suporte, cuidado. As falas vão no sentido de pensar o PSF, os NASFs, os CAPSs.- sozinhos não temos pernas.- cuidar de pessoas não se aprende na escola. Pessoas falam, conversam e escutar/conversar não aprendemos na escola.

Elaboram a questão da necessidade de estabelecer pontes, aproximações, relações, comunicação e eventualmente se chegar ao vinculo. Falam do desconhecimento dos recursos da região, de um dar suporte ao outro. De trocarem conhecimentos; conhecemos bem o dia a dia do paciente, lá onde mora..., mas nos falta o conhecimento técnico, fazemos grupos, mas nos falta suporte, podemos até conversar.

Saem da questão de passar para o outro o problema, para como? Juntos resolvermos?

Começam a potencializar o que fazem “o conversar” e colocam este conversar inicial como a possibilidade do vínculo e este sim potencializador da Reforma Psiquiátrica.

Vincular o sujeito a seu território aos cuidadores de seu território. Não é a medicação que trata, mas sim o vinculo... se eu confio eu vou usar a medicação, eu vou seguir as orientações... eu acompanho, eu me deixo ser acompanhado.

Vão caminhando para o fechamento do grupo, no sentido de uma nova OBRA síntese.

A mudança de paradigma, de mentalidade, que a reforma traz a necessidade de vincular os serviços, de vincular os familiares aos serviços, de vincular os usuários entre si e conosco.

Sozinho ninguém tem a solução, mas no conjunto tecemos uma rede e esta potente, sim é capaz de no mínimo apontar soluções mais respeitosas para com seres humanos,e isto é Reforma Psiquiátrica.

4. Reflexões sobre a medicalização a partir de extratos do

trabalho do grupo

Destacaremos a seguir alguns aspectos do cotidiano dos trabalhadores e dos

serviços de saúde que aparecem na discussão do grupo e que precisam ser

apoiadas por ações da gestão pública para que as diretrizes das políticas públicas

se concretizem e enfrentem a questão da medicalização da sociedade.

O primeiro deles relaciona-se com a concepção de equidade que precisa

sustentar ações de saúde mental no território.

As questões sociais na região do Campo Limpo são muito importantes, e o

grupo vai trazendo várias facetas a serem consideradas, desde as relações de

causalidade entre pobreza e loucura perpassadas de preconceito até o

questionamento sobre a crescente padronização de condutas normais e a

consequente produção de diagnósticos:

Precisamos lembrar que estamos num país pobre. Acredito que não adianta colocar mais CAPS, pois as pessoas continuam vindo para cá e continuarão vindo enquanto ser miserável aqui for melhor que ser miserável em outro lugar. Acho que não é o número de profissionais que vai resolver esse problema.

Importante percebermos que estamos produzindo doença. As pessoas

vem para São Paulo e adoecem. ... com padrões de normalidade e felicidade bem definidos as pessoas

vão se diagnosticando e nos vemos infestados pela doença mental, pela população que migrando para São Paulo não pára de crescer... Por outro lado, os serviços vão diagnosticando, medicando e os pacientes vão de um lado a outro. O que estamos fazendo?

O conceito de saúde mental apresentado refere-se a um trabalho que

estuda o desenraizamento como produtor de adoecimento, a discriminação como fator de doença mental e física. O CECCO através da cultura e do encontro trabalha com isto, e então na mesma lógica do PSF que é promover a saúde.

Estou com a impressão de que se acabasse a migração, acabaria a

miséria e a doença mental. Isto para mim é preconceito. Eu não sou nordestina, mas meus pais são. O preconceito faz a gente adoecer.

As diversas concepções de saúde mental e a compreensão da relação com a

questão social, muitas vezes produz assistencialismo e, outras vezes, ações que

promovem equidade.

O especialista inicia o benefício e o clínico dá continuidade, mas muitas vezes é iatrogênico dar o laudo somente porque o paciente pediu. Não se trata de profissionais incompetentes, mas de excesso de demanda com muitos casos acompanhados.

Somente soube da proporção em que a doença mental abala a

população quando vim trabalhar na saúde pública. Percebo que a estrutura familiar se precariza muito quando o pai é o

doente mental, a família sofre demais. Não podemos ir aos extremos se naquele momento há uma fragilidade inerente à doença dele, muitas vezes parte do seu delírio.

O uso dos benefícios, de forma cuidadosa, é importante para apoiar

processos de cuidado em saúde. Pois, muitas vezes, premido por econômicas, seja

o gasto com transporte para comparecer ao CAPS ou o prejuízo com o afastamento

do trabalho, recorre-se à medicação como recurso principal do tratamento pela

ilusória rapidez de melhora clínica.

A discussão do grupo afirma em alguns momentos que os pacientes

psiquiátricos somente poderiam viver com seus familiares se tivessem condições

financeiras para sobreviver com aporte para o tratamento e com inserção social pelo

trabalho. Mas o dilema em relação às proposições da Reforma Psiquiátrica se

reconfigura com a contextualização dos problemas sociais e a atuação dos serviços

de assistência:

Dada a complexidade dessa questão, muitos atores são necessários. Ficamos imobilizados muitas vezes e então tudo piora. O que eu, enquanto profissional tenho disponibilidade de fazer, pois aos poucos, um pouco cada um, teremos avanços.

Não supriremos jamais todas as necessidades da população da

periferia, mas dentro dos nossos limites temos muito para melhorar.

Um segundo aspecto que gostaríamos de destacar é a importância

estratégica que o acesso facilitado aos novos dispositivos de cuidados de saúde e

saúde mental tem para a superação do modelo biomédico e da medicalização da

sociedade. Enquanto a medicação estiver mais acessível à população do que a

participação em grupos de acolhimento nas unidades de saúde ou em atividades

comunitárias, nenhuma mudança ocorrerá.

Nesse sentido, a ação capilar dos ACSs que cotidianamente visitam às

famílias, inclusive as que não frequentam as unidades de saúde é fundamental.

A afetividade, a solidariedade, e a emoção que perpassam o trabalho desse

profissional são elementos centrais nos mecanismos de produção de vida, de

sentido e de sociabilidade nas instituições que se pretendem terapêuticas. Basaglia

nos lembra ainda: mas é só a emoção que eu experimento diante do doente que me

impele a agir em sua direção. Eles(as) relatam:

É preciso ajudar, eu estou mensalmente nas casas e crio um vínculo de família. É lógico que absorvo o sofrimento daquela realidade, mas tento não me afundar e detectar o que acontece. Em relação a cada família, a gente já tem uma base. Vai devagar, mas não vou estacionar.

Neste trabalho é preciso familiaridade para compartilhar com as

famílias e estranheza para nunca desistir.

Vincular o sujeito a seu território aos cuidadores de seu território. Não é a

medicação que trata, mas sim o vinculo. Se eu confio eu vou usar a medicação, eu

vou seguir as orientações, eu acompanho, eu me deixo ser acompanhado.

Propomos o trabalho da saúde a partir do vínculo, mas quais os espaços que

oferecemos para cuidar da relação que ACSs estabelecem com seu trabalho que

possibilite elaboração para sentimentos de onipotência/impotência e que favoreça a

construção do lugar profissional desse trabalhador nessa nova ocupação?

Um terceiro aspecto é a reafirmação do principio da autonomia como diretriz

da política nacional de saúde e dos diversos programas de saúde de âmbito

nacional.

A frustração do trabalhador de saúde diante das escolhas que as pessoas

fazem revela meandros que precisam ser investigados e questões a serem

elaboradas para que se concretize e consolide a política no cotidiano dos

trabalhadores e da população que utiliza os serviços de saúde.

Algumas ESFs têm como proposta a imposição de um modelo positivo de

saúde. Essa atitude embasada na recusa do sentimento de omissão quando não

interferem mais incisivamente nas situações.

Em contraponto a isso, alguns profissionais problematizam:

Eu entendi diferente. É preciso discutir com o outro o que ele quer. Sabemos o que é melhor para todos?! O que ele traz como necessidade? A gente constrói tudo para depois perceber que não era o que ele queria. Para nós pode parecer absurdo ou insignificante o que o outro deseja. Ficamos na queixa do que ele não faz, ao invés de conversar para saber o que o outro quer. Em visita domiciliar para J., pensamos em inseri-lo no CECCO e em muitos outros espaços, mas o que ele queria? Ele queria se alfabetizar.

É preciso trabalhar a nossa cabeça. Há vários pontos de vista

possíveis e precisamos trabalhar nossa cabeça para aceitar. Eu não nomearia esse sentimento de culpa, mas de compaixão, porque

cada um tem um destino diferente com seus sofrimentos. Este é o segredo desta vida.

Há uma angústia em relação ao tempo que demora para isso

acontecer.

Essa mesma frustração e angustia tem importância no desencadeamento do

empurra-empurra entre os serviços. Quando superam o sentimento de frustração, as

falas vão no sentido de pensar que o PSF, os NASFs, os CAPSs. sozinhos não ”tem

pernas”. Saem da questão de passar para o outro o problema, para como? Como

juntos resolveremos?

Elaboram a questão da necessidade de estabelecer pontes, aproximações,

relações, comunicação e eventualmente se chegar ao vinculo. Falam do

desconhecimento dos recursos da região, de um dar suporte ao outro, de trocarem

conhecimentos. As ESFs afirmam que conhecem bem o dia a dia do paciente, lá

onde mora, mas lhes falta o conhecimento técnico, por outro lado, nos serviços de

retaguarda, acontece o contrário.

5. Conclusões

Não podemos pensar como solução o que já foi ultrapassado. O manicômio

trouxe a solução desejada em 1846 (fundação do primeiro hospital psiquiátrico no

Brasil) e parte da dificuldade atual é produto desse sistema anterior que se

perpetuou ao longo de séculos em contextos que já indicavam a necessidade de

investimento na construção de novos dispositivos de cuidado. A solução não está

pronta pois envolve o cotidiano e uma complexidade para a qual é preciso agenciar

muitas instâncias da sociedade: o sistema jurídico e legislativo, a escola, a igreja –

muitas parcerias ao invés de uma única resposta – manicômio – para todos os

problemas.

É importante sempre reafirmar os princípios que regem as políticas de saúde:

o acolhimento, trabalho no território e rede, equidade e autonomia e viabilizar os

meio para que transformem nosso cotidiano. Somente abriremos mão do antigo

quando realmente tivermos alternativas concretas fundamentadas em novas bases.

As concepções dos trabalhadores e da população usuária dos serviços de saúde por

vezes mantem o velho no novo, mas quando encontram espaço adequado podem

ser elaboradas e lançam perspectivas transformadoras do cotidiano.

Então teremos construído uma real mudança.

Palavras-chave: saúde pública, saúde mental, formação em serviço

6. Referências bibliográficas:

BRASIL. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Brasília, 1990. BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Brasília, 2001. BRASIL. Lei nº 10.507, de 10 de julho de 2002. Brasília, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Circular Conjunta 01/2003. O Vínculo e o Diálogo Necessários. Inclusão da das ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Brasília, 2003. DRUMMOND JUNIOR, M. A. Ações de saúde mental por agentes comunitários de saúde - investigando uma experiência de saúde mental na atenção básica. Dissertação de Mestrado UFMG, MG, 2009. FONSECA, K, F. B. S. Saúde Mental: a percepção do grupo de agentes comunitários de saúde. Dissertação de Mestrado UNICAMP, SP, 2006. LANCETTI, A. (org). Saúde Mental e Saúde da Família. SaúdeLoucura; 7. 2ed. São Paulo: Hucitec. NICÁCIO, F. (org), Desinstitucionalização. SaúdeLoucura (TEXTOS) 1. São Paulo: Hucitec, 2001. PICHON-RIVIÈRE, E., 1982. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes

TDAH – O que pensam pais e professores?

Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis.

Mary Yoko Okamoto – UNESP, Assis.

1. Quadro conceitual

A discussão acerca do comportamento indesejado de crianças escolares

tem tomado caminhos sinuosos ao longo da história; alguns teóricos enfatizam

o problema no indivíduo, ao supor causas biológicas (GOMES et al, 2007);

outros acreditam que a causa está na vida social e familiar (LIMA, 2006;

RAMOS, 1954); e outros, ainda, apontam aspectos que envolvem a instituição

escolar. (PATTO, 2000). A preocupação com a profilaxia associa-se a essa

vasta gama de possibilidades causais que serve de base para a realização de

diagnósticos para a dificuldade de comportamento que deseja prevenir,

orientar, medicar e segregar.

Retomando alguns pontos históricos importantes, podemos localizar

uma importante influência conceitual em relação às crianças que apresentam

dificuldades de comportamento e fracasso escolar na obra de Arthur Ramos

(1907-1949), autor que influenciou o olhar para as dificuldades de

aprendizagem e comportamento da criança. Ele aponta, sobretudo, que muitas

crianças consideradas anormais não sofriam de anomalia cerebral ou orgânica,

mas eram afetadas por causas extrínsecas. Com esse olhar, ocorreu uma

importante mudança terminológica e conceitual: de criança anormal para

criança problema, sendo que este conceito indicava os desajustamentos de

conduta, pobreza, etc., englobando as dificuldades físicas, mentais e sociais, e

não apenas orgânicas.

E por que as crianças? Ora, para que haja adultos saudáveis é

necessário que tenhamos crianças saudáveis. Assim, a saúde mental infantil se

aproxima da educação, adentrando o ambiente escolar com a finalidade de

prevenir e corrigir as doenças mentais sob o lema “manter normal a criança

normal” (RAMOS, 1954, p. 22). Com essa modificação conceitual, há uma

ampliação na visão dos determinantes das questões da infância da época, para

a influência social no desenvolvimento infantil, quebrando a visão predominante

de que tudo é causado pelo biológico. Para esse autor, “enfermidade psíquica

é, pois, perturbação da capacidade de adaptação social” (RAMOS, 1954, p.

19).

Dentre as crianças problemas, Ramos (1954), já destacava a criança

turbulenta que, segundo ele, é o problema de comportamento escolar que mais

fere a atenção dos educadores. Para o autor, “A fachada motora é o traço mais

aparente (...) contrariando as “regras” da disciplina escolar. Sob esse termo

“turbulência”, acham-se compreendidos, aliás, (...) a turbulência simples, a

agressividade, a instabilidade, a impulsividade, etc.” (RAMOS, 1954, p. 193).

Essa criança turbulenta, descrita por Ramos (1954), foi se modificando e

passou a ser conhecida como a criança com defeito no controle moral; depois,

a criança portadora de uma deficiência mental leve; passou por hiperativa,

hipercinética; e a que possuía um cérebro moderadamente disfuncional;

chegando à criança com Déficit de Atenção; e, por fim, a criança com

Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH); um dos transtornos

mais associados à infância na atualidade que leva grande número de

encaminhamentos às clínicas médicas. Na história do TDAH, portanto, muitas

terminologias e explicações surgiram ao longo do tempo, na tentativa de

explicar as dificuldades de comportamento (CALIMAN, 2006). Notamos,

contudo, que atualmente há uma preponderância dos aspectos orgânicos para

compreender essas crianças.

Tal evolução pode ser notada ao verificar o Manual Diagnóstico e

Estatístico de Transtornos Mentais, ferramenta diagnóstica utilizada pela

psiquiatria. Em sua 2ª versão, o DSM II (1968), o transtorno aparecia apenas

com seu caráter motor e no DSM III (1980), onde as referências a autores e

teorias foram banidas de tal classificação, o número de diagnósticos foi

multiplicado e ele surge associado ou não a um déficit de atenção. Foi nessa

edição que a Reação Hipercinética foi renomeada para Desordem do Déficit de

Atenção/Hiperatividade (DDAH) e surge como uma categoria psiquiátrica que

chega ao DSM IV como TDAH, incluindo três subtipos (TDAH, tipo combinado;

predominantemente desatento e predominantemente hiperativo/impulsivo),

cujos critérios diagnósticos são avaliados através de uma entrevista (SNAP-IV)

realizada com pais/responsáveis que descrevem o comportamento da criança

(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2000).

É comum encontrar, nos encaminhamentos, queixas sobre dificuldades

de aprendizagem justificadas e sustentadas por questões orgânicas e o

problema recai sobre o indivíduo, ao invés de se questionar e analisar o

contexto escolar, familiar, social e político envolvido como produtor desta

dificuldade ou fracasso (PATTO, 2000). Depositam-se os déficits em um único

sujeito considerado isento de relações institucionais que produzem déficits.

Dessa forma, surge o conceito de patologização, ou seja, a classificação em

forma de uma patologia de comportamentos indesejados, desconsiderando o

contexto no qual tais comportamentos surgem e estão associados.

Outro conceito importante é o de medicalização, que reduz e transforma

questões políticas e sociais a um único domínio: a medicina, transformando,

assim, questões sociais em problemas de origem e solução no campo médico;

processo este que interfere nas regras da higiene, normas de moral e

costumes prescritos e tenta apropriar o modo de vida dos homens,

transformando o sofrimento natural em doença, o que desresponsabiliza os

indivíduos pelos seus atos (CRP & GIQE (orgs.), 2010).

O que preocupa, acima de tudo, é a falta de conhecimento crítico acerca

deste assunto por pais e professores, ou seja, aqueles que estão próximos à

criança. São eles, também, os responsáveis por encaminhar aos consultórios

essas crianças a fim de conseguir uma “receita rápida” para os problemas.

Nessa busca, o consumo de metilfenidato – droga utilizada no tratamento de

TDAH – no Brasil aumentou 1.616% de 2000 a 2008 (IDUM, 2009); e segundo

boletim divulgado pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Brasileira) em 2013, houve um aumento de 75% no consumo de metilfenidato

por crianças e adolescentes de 6 a 16 anos (ANVISA, 2013). Conhecida como

“droga da obediência”, é usada como forma de controle social e

homogeneização da sala de aula.

Além disso, o método de observação transcritiva, utilizado pela

psiquiatria no DSM, amplifica a ordem de grandeza dos quadros clínicos

deslocando a posição dos pais para os especialistas, já que, supostamente, o

saber parental não pode reconhecer e cuidar do déficit do filho levando-o a

confiar na voz anônima da verdade da ciência (VORCARO, 2011).

Diante dessa problemática exposta de crescente banalização de

diagnóstico para a infância, sobretudo do TDAH; do fenômeno da

medicalização e patologização da infância e da crescente imersão da medicina

na vida escolar, associa-se outro aspecto, o qual se refere ao lugar ocupado

pela infância e a família no cenário atual.

Diante de todas as transformações históricas, sociais e políticas

ocorridas desde o séc. XVII e XVIII, a infância tornou-se um campo privilegiado

de geração de novos saberes e novas formas de controle, que ultrapassa os

contornos da família e da escola, sendo abarcado pelo discurso médico, em

especial sobre a saúde e a prevenção em busca de um adulto sadio e feliz.

Essa representação de futuro que a infância traz embutida assume importância

fundamental nos dias de hoje, revelando a necessidade em conhecê-la,

estudá-la e pesquisá-la profundamente e sob todos os ângulos,

[...] para que se previnam todos os riscos, superar os efeitos danosos do meio familiar ao seu florescimento eficaz, otimizar suas potencialidades são imperativos asseguradores do controle das incertezas do futuro da civilização, e esperança de garantia de estabilidade da ordem social (VORCARO, 2011, p. 220).

A crescente visão de que o meio familiar constituía-se num risco para o

desenvolvimento da infância desadaptada (DONZELOT, 1986), ao mesmo

tempo no qual enfraqueceu e destituiu o poder familiar quanto ao seu papel,

possibilitou o fortalecimento dos aparelhos do Estado e, especificamente a

psiquiatria, como um dispositivo disciplinar solicitado para avaliar e diagnosticar

a condição da criança e de sua família, fortalecendo a necessidade de um

diagnóstico precoce e de uma intervenção profilática sobre o conjunto de

causas que poderiam favorecer os fatores de degenerescência social. Esses

fatores foram essenciais para a saída da psiquiatria de seu campo de atuação

por excelência – o asilo – e sua inserção em aparelhos sociais em pleno

desenvolvimento, como a escola e o aparelho jurídico.

2. Objetivos

Objetivamos nessa pesquisa, em andamento, analisar a compreensão

de pais e professores sobre as causas e as repercussões do diagnóstico de

TDAH na vida familiar e escolar de quatro crianças de 6 a 12 anos.

3. Metodologia

A pesquisa, aprovada sob o parecer 35288, pelo Comitê de Ética local,

foi realizada em uma escola de ensino fundamental da rede pública do

munícipio de Assis. Após explicitação dos objetivos da pesquisa, a

coordenação da escola indicou quatro alunos que receberam o diagnóstico de

TDAH e posteriormente contatamos seus pais e/ou responsáveis e seus

respectivos professores para participarem das entrevistas. Iniciamos a coleta

de dados através da realização de entrevistas semidirigidas com

questionamentos básicos a respeito do TDAH; sua relação com a vida escolar

e o impacto do diagnóstico e do tratamento na vida da criança.

Foram entrevistados quatro professores e quatro pais e/ou responsáveis,

todos relacionados às crianças indicadas pela escola. A amostra dos pais e/ou

responsáveis foi composta por uma avó e três mães. Abaixo, iremos descrever,

de maneira geral, cada criança a partir de documentos analisados na escola,

como fichas de professores e relatórios, o discurso dos professores e dos pais.

Todos os nomes aqui utilizados são fictícios.

Pedro, tem 7 anos de idade, está matriculado no 2º ano e mora com a

avó. Segundo a avó, um médico “achou” (sic), que ele tinha um “problema” (sic)

de hiperatividade e receitou um remédio do qual a avó não lembra o nome.

Segundo relatório de uma professora da pré-escola, em 2009, a criança era

quieta e conversava pouco. Já no último relatório da pré-escola, escrito no ano

anterior ao ingresso ao ensino fundamental, 2011, Pedro apresentava

dificuldades em se concentrar e cooperar com os colegas e professora. Não

obtivemos acesso aos relatórios do 1º ano, mas segundo a coordenadora ele

era bastante inquieto e hiperativo. Segundo a sua atual professora, ele é um

aluno muito inteligente, mas não para quieto. De acordo com sua avó, ele

presta atenção por pouco tempo nas coisas e é muito agitado até para dormir.

Por conta disto, foi receitado outro remédio para ele acalmar e dormir à noite,

mas a avó não vê melhora. Relata ainda que é inteligente, mas não consegue

prestar atenção.

Carlos está no 3º ano e tem 8 anos. Possui dois diagnósticos médicos

em sua ficha, com um mês de diferença entre eles. No primeiro, uma

neuropediatra diagnosticou TDAH, da forma combinada: hiperatividade e

desatenção com prescrição de Ritalina e ajuda pedagógica individual. No mês

seguinte, a mesma médica diagnosticou transtorno de aprendizagem por

imaturidade cerebral, justificando que essas crianças não respondem ao

psicoestimulante e que há necessidade de ajuda pedagógica individual. A

professora relata que Carlos é uma criança agitada, movimenta-se o tempo

todo e não presta atenção em nada durante muito tempo. A mãe concorda com

essa agitação.

Samuel está no 4º ano e tem 11 anos. Já passou por vários médicos e

psicólogos, com os seguintes diagnósticos: transtorno de aprendizagem,

dislexia e déficit de atenção. Segundo a professora ele está em outro mundo e

basta passar um bichinho em sua frente para sua atenção voltar totalmente

aquilo. A mãe procurou ajuda médica devido a duas convulsões que ele teve

na escola, e a partir de então começaram as buscas por um diagnóstico. De

acordo com a mãe, ela procurou ajuda profissional após a solicitação da

professora do 1º ano. A criança passou a tomar Ritalina para ir à escola e

Amytril para ele se acalmar e dormir à noite. Segundo a mãe, ele usou a

Ritalina por dois meses, mas como não fazia efeito, ela voltou à médica para

retirar a medicação. Para ela, a criança apresenta maiores dificuldades na

escola e em casa ela acaba nem percebendo diferenças, embora ele também

seja agitado em casa. Vale ressaltar que a mãe, quando contatada, se negou a

participar da pesquisa, pois estava cansada de ir atrás disso tudo e nada

resolver. No entanto, ela compareceu no horário sugerido e cedeu a entrevista.

Henrique está no 5º ano, tem 10 anos, e diagnóstico de Déficit de

Atenção. Segundo a atual professora, ele tem muita dificuldade e é

desorganizado, embora seja muito esforçado, fato atribuído à família que é

bastante presente e dá total apoio ao filho. Foi medicado com Ritalina, porém,

a professora avaliou como negativo tal uso de medicação. A mãe relata que na

escola ele é de um jeito e na casa é totalmente diferente; os sintomas só

apareceram a partir do 3º ano na escola. Segundo a mãe, ele é agressivo e

não falta concentração; mas ela considera que ele está bem melhor agora no

5º ano, e que não foi chamada à escola nenhuma vez ainda.

4. Resultados e Discussões

Nesse momento, apresentaremos os dados analisados através das

entrevistas realizadas com os pais e professores.

4.1. Entrevistas com os professores

Todos os professores apontam, de alguma forma, a questão familiar

como causa da queixa apresentada pela criança. Para alguns, existem também

questões genéticas e psicológicas (rejeição, trauma), para uma, a família é

crucial e a genética influencia; para outra, a genética é a principal causa e a

família tem alguma influência. Apenas uma professora apontou a questão

socioeconômica:

“A gente não conhece as crianças fora daqui. Então, a maior parte tem

problemas sérios familiares, rejeição... A gente percebe, assim, muita pobreza,

né?” (sic). (Professora do Pedro).

“Seria um transtorno genético ou é.... Como colocaria? Em algum

momento da vida.... passado por um trauma ou algum outro tipo de transtorno

teria gerado esse problema a nível psicológico” (sic). (Professora do Carlos).

Em relação às mudanças percebidas após o diagnóstico/tratamento, os

resultados demonstram que apesar de todos os professores apontarem a

conscientização sobre o transtorno algo positivo, com relação ao tratamento

existe uma diversidade de opiniões. Chama a atenção o fato de que a melhora

está principalmente associada à participação em atividades tais como estímulo

pedagógico e natação, considerada uma atividade que “acalma” os alunos e

não necessariamente ao uso de medicação.

Quanto à mudança relativa ao uso de medicação, uma professora

referiu não perceber nenhuma mudança e duas consideraram o uso da

medicação como algo negativo, pelo fato de dopar a criança: “por que ter uma

criança dopada também aos 8 anos, 9 anos de idade não resolve nenhum

problema, né?” (sic). (Professora de Henrique).

Um dos professores entrevistados não respondeu a essa questão, pois

assumiu a classe nesse ano e não participou desse processo.

De modo geral, para os professores, as crianças não se sentem

diferentes dos outros alunos devido ao diagnóstico e dificuldades

apresentadas: “Acho que ele está bem adaptado à sala e a sala de aula

adaptado a ele” (sic). (Professora do Henrique).

Apenas uma professora aponta tal diferença: “Eu acho que ele já foi

rotulado” (sic). (Professora do Samuel).

Porém, apesar do discurso preponderante de que os alunos não

percebem claramente a diferença, quando indagados a respeito do modo como

lidam com essas crianças em sala de aula, todos afirmam colocar a carteira

próxima ao professor, chamar mais a atenção, uma professora tenta passar

atividades mais “lúdicas”, etc.

4.2. Entrevistas com os pais

Na compreensão de pais e/ou responsáveis, as causas atribuídas às

dificuldades apresentadas pelas crianças são variadas e de modo geral, os

mesmos apresentam-se confusos com relação a tal questão.

A avó de Pedro apresenta o fator psicológico como causa: “A rejeição eu

acho que se torna algum problema pra criança” (sic). (Avó de Pedro).

Embora demonstrassem desconhecimento, a genética foi apontada:

“Será que não é genético? De alguém que ele...” (sic). (Mãe de Carlos).

“Acho que é da própria criança, né? Não tem como a gente saber o que

passa no cérebro, né?” (sic). (Mãe de Samuel).

A mãe de Henrique não atribui causa alguma, ela não sabe, mas localiza

no âmbito do comportamento adquirido que da doença.

De acordo com os pais, algumas crianças apresentaram melhoras após

o diagnóstico e o tratamento, porém, em nenhum dos casos a melhora está

associada ao uso da medicação. Ao contrário, a melhora é apontada ao

atendimento psicológico ou à evolução e maturidade da criança, com a idade.

“Eu acho que lá com 8 anos ele não pensava pra fazer as coisas, agora

com 10 anos ele já tá amadurecendo, ele vai aprendendo...” (sic) (Mãe do

Henrique).

Em relação aos sentimentos das crianças, de maneira geral, os pais não

sabem responder ou nunca pararam para pensar sobre essa questão, mas

referem que as crianças não percebem muita diferença. De qualquer maneira,

o tratamento oferecido é compreendido como algo em favor da criança: “Se

mandar eu ir lá na psicóloga eu vou, se mandar.... ele vai no projeto de

natação..” (sic). (Mãe do Carlos).

Apenas a mãe de Samuel afirma que seu filho sente uma diferença,

percebida diante de uma afirmação do filho: “ah mãe, você não sabe que eu

sou diferente?” (sic).

5. Conclusões

Notamos, de maneira geral que, apesar dos relatos tanto de pais e

professores a respeito da ineficácia da medicação, a busca por uma solução

terapêutica é preponderante diante das dificuldades apresentadas ou notadas

nas crianças.

É importante ressaltar que no âmbito escolar, a medicalização é um

processo cada vez mais presente, independentemente do fato apontado nessa

pesquisa, no qual os professores não notaram “melhoras” no comportamento

da criança com o uso da medicação, porém, a busca por diagnóstico e uma

solução externa (medicação, psicoterapia, aulas de natação) é contínua. Tal

posicionamento corrobora a literatura que aponta que a partir desta

popularização do saber psiquiátrico, se exclui o saber parental constitutivo do

laço social e afetivo, reduzindo-se apenas ao saber médico. Considera,

portanto, uma lacuna no saber parental que busca sempre fora de seus

domínios a resolução dos conflitos e sofrimentos (VORCARO, 2011).

Com relação aos pais, nota-se o discurso de que os problemas surgiram

na escola, e de certa forma, após o apontamento do problema, todos buscaram

a ajuda e seguiram as recomendações oferecidas pelos especialistas

consultados (médicos e psicólogos).

Tal fato aponta para o processo de enfraquecimento do papel parental,

no qual notamos a confusão quanto ao lugar ocupado pelos pais na

configuração subjetiva dos filhos, acarretando uma busca em ajuda externa,

pois o problema apresentado pelos seus filhos extrapolou a capacidade em

exercer sua função. Ou seja, a resposta encontra-se com especialistas. Apesar

dos pais não perceberem mudança nem problema no comportamento dos

filhos em casa, continuam a buscar ajuda no qual se excluem.

Através dessa pesquisa, notamos que em nenhum momento existe uma

reflexão a respeito das relações para a compreensão da produção dos sujeitos,

no caso, as crianças diagnosticadas. Apesar do discurso sobre a existência de

possíveis dificuldades (rejeição, trauma, pobreza), tais aspectos não são

percebidos como relações, muito menos relacionadas à produção de relações

subjetivas na instituição escolar.

As dificuldades apresentadas são compreendidas e localizadas

unicamente no indivíduo, ou seja, na criança, uma visão na qual se reduz

qualquer aspecto do ser humano a um único saber e domínio. Larosa ressalta

que o sujeito individual, descrito pela pedagogia e pela psicologia da educação

como objeto de estudo, não é, em absoluto,

uma evidência intemporal e acontextual (...) esse sujeito não pode ser tomado como um “dado” não problemático. Mas ainda, não é algo que possa analisar-se independente desses discursos e dessas práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas (pedagógicos e/ou terapêuticos, entre outros), que ele se constitui no que é (LARROSA, 2002, p. 40).

Assim, concluímos, que essa forma de compreender as pretensas

dificuldades dos alunos apenas confirmam a necessidade da utilização de

tecnologias e saberes para o controle do comportamento das crianças,

reduzindo as relações familiares, escolares e sociais a um diagnóstico e

portanto, a uma doença que necessita de tratamento e cura.

Palavras chaves: TDAH; medicalização; infância; pais; professores.

6. Referências Bibliográficas

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LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.

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RAMOS, A. A Criança Problema: a higiene mental na escola primária. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1954.

VORCARO, A. O Efeito Bumerangue da Classificação Psicopatológica da Infância IN: JERUSALINSKY, A. e FENDRIK, S. (orgs) O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea. São Paulo: Via Lettera, 2011.

TDAH e Atenção Voluntária na Psicologia Histórico-Cultural: entre a cristalização e a possibilidade de mudança

Sabrina Gasparetti Braga – Universidade de São Paulo Hilusca Alves Leite

Cristiane Toller Bray Marilene Proença Rebelo de Souza

Quadro Conceitual

Este trabalho apresenta um estudo de caso que buscou resgatar o processo de

escolarização de um estudante de ensino fundamental I com diagnóstico de Dislexia

e Transtorno Déficit de Atenção Hiperatividade. Enfocaremos a discussão das

possibilidades de desenvolvimento desta criança, especialmente no desenvolvimento

da função psicológica chamada atenção voluntária que possibilita ao sujeito

permanecer atento a uma determinada atividade de maneira arbitrária, isto é,

consciente. Partimos do pressuposto de que o não desenvolvimento da atenção

voluntária se expressa no que hegemonicamente atribui-se o nome de Transtorno de

Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Contudo, de acordo com a teoria

Histórico-Cultural, que embasa nossa análise, compreendemos que o fato desta

função psicológica não ter se desenvolvido adequadamente não se traduz em

transtorno ou na impossibilidade de vir a se desenvolver, pois a capacidade da

manutenção da atenção prescindindo de demais estímulos não decorre unicamente

da maturação orgânica, mas está intrinsecamente vinculada às apropriações culturais

e às mediações que a criança recebe no seu percurso de desenvolvimento.

Objetivos No presente trabalho buscaremos discutir a história do processo de

escolarização de uma criança diagnosticada como portadora de déficit de atenção

hiperatividade, como foi realizado o diagnóstico e como à luz da concepção de

desenvolvimento proposta pela Psicologia Histórico-Cultural pode-se compreender o

desenvolvimento da atenção voluntária não como um transtorno ou distúrbio, mas

como função psicológica superior construída socialmente ao longo do tempo, via

apropriações culturais e mediações.

Metodologia

Foram realizadas entrevistas com Vinicius1, sua mãe, suas professoras e com

a coordenadora pedagógica da escola. Buscou-se a partir da versão de cada um dos

participantes o acesso e compreensão da história de escolarização da criança.

Vinicius estudou a 1ª e 2ª séries com a professora Nanci. Repetiu a 2ª série e estudou

a 3ª com professoras que não conseguimos contatar. A 4ª série cursou com a

professora Fátima, e à época da pesquisa estava refazendo a 4ª série com a

professora Maria.

Luciana, a mãe de Vinicius, relata que quando ele estava com oito anos iniciou

o acompanhamento com um médico neurologista que diagnosticou hiperatividade,

prescrevendo medicação. No final do mesmo ano a criança foi atendida em uma

instituição especializada em dislexia que realizou uma avaliação com resultado de

“quadro de risco para dislexia” e “suspeita de Transtorno Déficit de Atenção”. Embora

as conclusões do laudo sejam apenas “suspeitas” tanto a criança, quanto sua mãe e

o próprio neurologista que acompanhava o caso atuavam como se o diagnóstico fosse

conclusivo para dislexia e TDA.

O laudo diagnóstico realizado pela associação especializada em dislexia foi

concluído por duas profissionais: uma psicóloga e uma fonoaudióloga, por meio da

aplicação de testes padronizados. O diagnóstico de TDAH (transtorno déficit de

atenção/hiperatividade) foi realizado pelo médico por meio de entrevista com a mãe

sobre o comportamento da criança. Não é possível afirmar se o profissional que

realizou o diagnostico fez uso de algum questionário específico, porém o Manual

Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR, 2003) afirma que a

identificação do TDAH deve basear-se num conjunto de sintomas relativos à

desatenção, hiperatividade e impulsividade2. A título de ilustração transcrevemos dois

dos sintomas listados pelo manual, o primeiro deles relativo a desatenção e o segundo

à hiperatividade: “Frequentemente não presta atenção a detalhes ou comete erros por

omissão em atividades escolares de trabalho ou outras”; “Frequentemente agita as

mãos ou os pés ou se remexe na cadeira”. Percebe-se que as respostas para estes

sintomas são bastante subjetivas. A respeito disto Moysés (2010) faz a seguinte

crítica:

                                                            1 Todos os nomes citados neste texto são fictícios. 2 Este conjunto de sintomas que o DSM IV lista, foi transformado em um questionário chamado SNAP IV. O leitor interessado pode encontrar um modelo deste no site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção.

sair do lugar na sala de aula ou em situações em que se espera que fique sentado; aqui está posto o problema básico, que é o seguinte: quem espera que ele fique sentado? Quem disse que é normal uma criança de cinco anos ficar sentada na sala de aula? Quem disse que é normal um adolescente ficar sentado enquanto a gente espera que ele fique sentado? É o peso da autoridade de quem define o que o outro deve fazer e não o que é normal.( p.20)

Para que o diagnóstico do TDAH se confirme cinco critérios precisam ser

seguidos: ao menos seis dos sintomas de desatenção e/ou seis dos sintomas de

hiperatividade/impulsividade propostos pelo DSM-IV devem estar presentes na vida

da criança; os sintomas precisam ocorrer em diferentes ambientes frequentados pela

criança; manterem-se constantes; trazer prejuízo significativo para sua vida; e se

houver algum outro tipo de transtorno (mania, depressão, psicose, etc.) o quadro não

pode ser atribuído exclusivamente ao TDAH. Para concluir em qual categoria

diagnóstica enquadrar o paciente este profissional faria um diagnóstico diferencial,

excluindo outras patologias orgânicas ou problemas psicológicos (tal como um déficit

de inteligência significativo) por meio de avaliação neurológica e aplicação de teste de

inteligência.

Diante de todas as incertezas e indefinições do diagnóstico de hiperatividade,

questiona-se aqui também o profissional que realizou o diagnóstico de Vinicius que

não seguiu as orientações da sua própria área de atuação. Mesmo que este

procedimento diagnóstico acima descrito pudesse ser considerado válido o médico

não o fez de maneira correta, pois não poderia prescindir de uma entrevista com o

professor que é um dos critérios diagnósticos (os problemas causados pelos sintomas

devem estar presentes em pelo menos dois contextos diferentes). As professoras de

Vinicius, inclusive aquela da época em que o diagnóstico foi realizado, nem sequer

sabiam da existência do laudo, o que nos faz concluir que não responderam ao

questionário SNAP-IV.

Por sua vez, as considerações da mãe a respeito do comportamento do filho

pareciam estar em pleno acordo com os critérios e sintomas para TDAH. Ela queixava-

se que ele não ficava sentado, mexia nas coisas constantemente, desviava sua

atenção por qualquer motivo. Dizia também que as professoras reclamavam muito da

falta de atenção e da inquietude de Vinicius na sala de aula, que ele não fazia as

atividades por não conseguir parar quieto.

As ações descritas pela mãe são muito próximas àquelas que constam da lista

do DSM-IV. “Ele não para”, “não presta atenção”. Leonardi, Rubano e Assis, (2010)

falam sobre uma deficiência importante na classificação da hiperatividade que consta

no DSM-IV que é a categorização circular, isto é, estruturas inobserváveis (supostas

deficiências neurológicas) são inferidas a partir da observação de determinados

comportamentos, ao mesmo tempo em que são utilizadas para explicar a causa

destes comportamentos. Dessa forma, pode-se dizer que “um indivíduo tem

hiperatividade através da observação de determinados comportamentos e explica-se

que ele emite tais comportamentos porque é hiperativo.” (Leonardi et al, 2010, p.117)

Parte-se do pressuposto tanto em casa quanto na escola de que desde muito

cedo a criança seja capaz de focar sua atenção, controlar seus comportamento e

impulsos voluntariamente. Werner (1997) nos conta que a atenção voluntária, como

uma das funções psicológicas superiores, não é passível de ser compreendida

analogamente à atenção natural e instintiva dos animais, pois desenvolve-se por um

processo social e dependente de motivações e significados.

Cabe explicar um pouco melhor a respeito deste processo. A atenção é a

instância psíquica responsável por selecionar determinadas tarefas importantes ao

indivíduo, bem como as ações fundamentais para o cumprimento da referida tarefa

(Luria, 1979), ela não está dada desde o nascimento. Nos primeiros anos da infância,

predomina a chamada atenção involuntária – tipo de atenção que responde a qualquer

estímulo novo (luzes, cores, sons diferenciados) –, mas que se extingue conforme o

indivíduo se adapta à novidade. Paulatinamente, a atenção involuntária vai sendo

substituída pela atenção voluntária, responsável por fazer com que o indivíduo

permaneça em uma atividade mesmo que esta não seja inteiramente interessante

(Vygotski, 2000a).

Essa passagem da atenção involuntária à voluntária não acontece como um

simples processo de transposição ou transformação de uma forma em outra. Ocorre

um processo de superação por incorporação da primeira pela segunda. A esse

respeito Vygotski (2000b) afirma que as chamada funções psíquicas superiores são

primeiramente externas, pois decorrem da organização social3. Assim quando falamos

                                                            3 Não será possível nos alongarmos nesta questão, mas é importante destacar que Vygotski fundamenta sua teoria no método Materialista Histórico Dialético desenvolvido por Marx e Engels. Esta concepção metodológica compreende que o homem, ao modificar a natureza criando instrumentos que possam satisfazer suas necessidades, não modifica apenas o meio externo (natureza), mas modifica a si próprio e são estas mudanças que possibilitam sua humanização. Em termos psicológicos são estas mudanças que possibilitam o desenvolvimento das funções

em desenvolvimento, toda função aparece duas vezes, primeiramente no plano social

– interpsicológico – e mais adiante, enquanto função psicológica internalizada –

intrapsicológica. Isso ocorre com todas as funções superiores, atenção voluntária,

memória lógica, formação de conceitos, desenvolvimento da vontade (Vygotski,

2000b).

Para que ocorra a transposição do meio inter para o intrapsicológico, de uma

função superior é imprescindível que haja mediação, ou seja, é necessário que um

par superior (as figuras que cuidam e educam a criança) ensine a criança a utilizar os

instrumentos disponíveis na sua cultura, ensine-a a falar, a portar-se, etc. Pois ao

nascer, a criança encontra um ambiente dado, mas não é capaz de compreendê-lo

como algo criado por homens, utiliza-o conforme recebe indicações para fazê-lo

(Markus, 1974). A partir dessas indicações terá inicio o processo de desenvolvimento

das funções superiores.

No caso da atenção, os reflexos de orientação inatos na criança que

correspondem à atenção involuntária, pouco a pouco, passam a ser dirigidos por

fatores socioculturais. Ocorre um processo de superação da fase mais primitiva, por

incorporação às mais complexas, decorrentes da interação do indivíduo com seu

ambiente sociocultural, que lhe impõe tarefas para as quais necessitará da regulação

efetiva de seu comportamento e atenção. Neste processo tem especial importância a

aquisição e desenvolvimento da linguagem. Inicialmente a criança divide seus atos e

atenção voluntários com a linguagem da mãe que lhe indica objetos, nomeia-os, e a

criança realiza a ação de pegá-los.

Com o desenvolvimento da linguagem da própria criança, suas ações passam

a ter caráter ativo, já que ela mesma pode nomear objetos, identificá-los e destacá-

los dentre tantos outros que estejam a sua volta. Pode da mesma forma, dar ordens

a si própria. Estas inicialmente ocorrem de forma extensa, porque a linguagem ainda

é externa, mais adiante a linguagem é interiorizada pela criança, as ordens acontecem

de forma abreviada e interna. A linguagem interna tem a função de regulação da

conduta, com isso, desenvolve-se a ação voluntária consciente na criança, mediada

                                                            superiores. Resgatamos o exemplo de Leontiev (1994) para explicitar a constituição social das formas voluntarias de atenção e controle voluntário do comportamento. O autor explica que, os homens das tribos primitivas, quando saiam para exercer a atividade da caça, precisavam submeter o controle do próprio comportamento de acordo com a organização estabelecida para o grupo a fim de garantir a caça. A atividade de trabalho consistiu em algo indispensável para o desenvolvimento da atenção, enquanto que esta se tornou imprescindível para o desenvolvimento da atividade de trabalho desdobrada nesses povos primitivos.

pelo pensamento verbal, conforme Luria (1986). Observa-se, portanto que, “A ação,

antes compartilhada por duas pessoas, se converte em procedimento de organização

da atividade psíquica, a ação interpsicológica adquire uma estrutura intrapsicológica”

(Luria, 1979, p. 58).

Mais adiante, com a inserção da criança na escola, a atenção voluntária tende

a se tornar mais estável, porque o ambiente escolar impõe tarefas que exigem do

aluno voluntariedade na atenção, na memória, no comportamento, etc. No entanto,

não se pode esperar que já nas primeiras etapas da escolarização a criança seja

capaz de manter-se atento e controlar voluntariamente seu comportamento em todas

as atividades (Smirnov e Gonobolin, 1960). Da mesma forma que nas primeiras

etapas do desenvolvimento em que ocorre aquisição da linguagem oral é necessária

a participação da figura cuidadora para destacar elementos importantes no que diz

respeito aos conteúdos cotidianos, nos conteúdos escolares, também é necessário

que a atenção da criança seja constantemente guiada. Neste período ocorre o

desenvolvimento dos conteúdos científicos – dentre eles a aquisição da escrita – que,

de acordo com Vigotsky (2009) promovem saltos qualitativos no desenvolvimento da

criança.

Havia uma preocupação da professora em relação a atenção de Vinícius, pois

ela relata que o colocava sentado logo a frente, para que realizasse as próprias

atividades ou para que permitisse que os colegas o fizessem. No entanto, ela parecia

desconhecer o impacto fundamental que a mediação do professor e a aquisição de

conhecimentos tem para o desenvolvimento do sujeito, pois relata que identificava a

hiperatividade em outros alunos da sala, além de Vinícius. Sentia-se “aliviada” ao ter

um nome para os comportamentos de Vinícius e que a partir do laudo passou a

compreender melhor o que acontecia, o que o deixava tão distraído.

Enquanto a mãe de Vinicius e as primeiras professoras o descrevem

principalmente como uma criança que “não para”, “não fica sentado”, “incomoda os

colegas”, a professora Maria destaca principalmente sua falta de atenção (“muito

disperso”, “é complicado fazer com que ele preste atenção”). Em conversa breve com

a psicopedagoga que o atendeu4 esta o descreve: “ele era um menino muito ativo,

                                                            4 Em razão da dificuldade para obter autorização de acesso ao prontuário e aos profissionais de saúde que atenderam Vinicius 

no  contra  turno  escolar,  em  uma  organização  não  governamental,  foi  realizada  uma  conversa  telefônica  breve  com  a 

profissional psicopedagoga que o atendeu, e esta descreveu de forma sucinta suas  impressões no contato com a criança, 

tomando‐se todos os cuidados éticos de autorização por termo de consentimento livre esclarecido. 

muito alegre, muito, ele era assim muito carinhoso, falava muito, se expressava,

queria se expressar”. O discurso da mãe e das primeiras professoras coincide com o

momento que Vinicius foi atendido no programa social, pela psicopedagoga. Talvez,

ele não fosse “uma criança agitada, que não parava, que não dava, muito danado”,

mas sim aquela descrita pela psicopedagoga: uma criança que queria se expressar,

curiosa pelo mundo, por isso procurava sempre algo novo para prestar atenção. Com

o tempo, esta ânsia foi diminuindo dando lugar a uma apatia e distração, principal

queixa da professora mais recente. Daquele menino que se dizia apenas ser “agitado”,

mas que era também expressivo e curioso pelo mundo o processo de medicalização

retirou a energia vital, característica das crianças que tanto contagia os adultos.

Quando se perguntou a mãe a respeito das preferências do menino ela disse

que ele não conseguia parar assistir a um filme, ou ficar na igreja assistindo ao culto

inteiro. Contudo o próprio Vinícius conta a respeito de um filme (inteiro) que já assistiu.

O encontro de versões evidencia que Vinicius passou por um processo de

desenvolvimento que não foi testemunhado pela mãe. Diagnosticado como incapaz

de manter atenção quando ainda estava com oito anos (e talvez não se interessasse

tanto por filmes), aos 12 anos a ideia a respeito do filho havia se cristalizado e a voz

do diagnóstico manteve sua força com a certeza: ele é hiperativo, ele não consegue.

Entre as professoras houve o questionamento sobre a validade do diagnóstico,

se Vinicius seria de fato disléxico e hiperativo. Fátima e Nanci parecem perder-se em

meio às afirmações de que ele tem tanto TDAH quanto Dislexia, porém,

contraditoriamente afirmam que outros casos muito semelhantes ao de Vinícius já

puderam ser resolvidos somente com trabalho pedagógico. Sem saída, afirmam: o

problema dele está na falta de concentração.

Dizer “ele não tem concentração” (discurso da professora Nanci) parece ser

diferente do discurso “não tem o hábito de se concentrar” (discurso da professora

Fátima), isto é, concentrar-se não é uma prática frequente para Vinicius. Se não é

uma prática frequente, quer dizer que ele não pôde aprender e desenvolver a função

psicológica superior correspondente. Hábito é algo que pode se adquirir por meio de

aprendizagem, experiências propiciadoras que talvez ele não tenha tido oportunidade

de vivenciar. Dizer que Vinicius não tem concentração soa taxativo e pressupõe algo

que ele já deveria ter e não terá possibilidade de construir, pois que é de sua

                                                            

constituição individual. Importante relembrar que foi a professora Fátima, que concebe

de maneira um pouco diferenciada o desenvolvimento das capacidades de atenção e

concentração, quem o alfabetizou. Como relatado no item sobre a história do processo

de escolarização de Vinicius até o ano de 2010 as professoras não tinham

conhecimento do diagnóstico, portanto não houve na relação professor-aluno e no

desempenho de Vinicius em seu processo de alfabetização influência do laudo, mas

sim da concepção de desenvolvimento humano de cada professora.

Vinicius por sua vez, apropriou-se da sua condição de criança com problema,

afirma que não consegue ficar parado e não consegue ler por conta da dislexia, sem

conseguir diferenciar o que seria o TDAH e o que seria Dislexia. Porém, quando

questionado porque está parado concedendo a entrevista, consegue elaborar que o

que lhe falta são motivos. As situações de inquietude surgem justamente quando se

encontra diante de uma tarefa que considera desagradável, ou quando está em aula

com um professor com quem não tem afinidade (como o de artes, por exemplo).

Para a Psicologia Histórico-Cultural toda atividade, seja ela de estudo ou não,

deve ter um sentido pessoal, envolvendo os motivos e significados sociais

correspondentes a atividade. Asbahr (2011) amparada nessa teoria realizou uma

pesquisa que nos auxilia na compreensão dessa questão. A autora explica que a

atividade pedagógica, para cumprir sua finalidade, não pode estar separada dos

motivos e ações (do estudo) nem distante dos significados e sentidos da atividade de

estudo. Por isso, o papel do professor nesse processo é fundamental, inclusive

durante o planejamento e organização da atividade pedagógica. Atividades de estudo

“não motivadas” e sem finalidade das ações podem gerar ações esvaziadas de

sentido, não permitindo a formação dessa atividade. Valorizar os motivos, ou seja,

“produzir ações geradoras de motivos” na atividade educativa, é a possibilidade de

tornar o conteúdo escolar em conteúdo realmente vivido pelo estudante, provido de

sentido. Conforme discutimos, para a Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento

das funções psicológicas dependem das mediações. Além disso, a aprendizagem está

à frente do desenvolvimento e para que essa aprendizagem ocorra a ação/interação

do educador é fundamental.

Conclusões Historicamente, a escola tem demandado ações no âmbito da saúde quando

necessita de auxílio para cumprir com a sua função de socialização do saber. Neste

movimento, os profissionais de saúde demandados acabam por produzir diagnósticos

que não auxiliam, mas justificam a não aprendizagem ou dificuldades encontradas

pela criança na instituição escolar. Desse modo, assim como aconteceu com Vinicius,

crianças acabam em consultórios médicos e dos mais diversos especialistas, em

serviços públicos e particulares, sendo diagnosticadas como portadoras de

transtornos ou distúrbios. O que nos preocupa é a afirmação de transtornos ou

distúrbios que estariam localizados no corpo individual do estudante diante de um

problema que tem sua produção social ignorada. A Psicologia Histórico-Cultural ao

compreender a atenção voluntária como uma função superior que se desenvolve e

que depende de mediações e condições culturais apropriadas desconstrói a

concepção de que uma criança possua um transtorno e abre a possibilidade de auxiliar

a instituição escolar na compreensão e solução do fenômeno, pois passa a considerar

o contexto social em que a dificuldade se produziu. Portanto, em um processo de

avaliação diagnóstica há que se reverem as condições concretas que podem estar

propiciando à criança apresentar comportamentos diversos daqueles esperados pela

escola. A investigação da história do processo de escolarização e a compreensão do

desenvolvimento da atenção voluntária a partir da Psicologia Histórico-Cultural nos

conduz a considerar processos históricos e sociais envolvidos nos fenômenos

escolares, e acaba por desconstruir concepções que depositam apenas na criança a

responsabilidade pelas dificuldades encontradas em seu processo de escolarização.

Referências Asbahr, F.S.F. (2011) “Por que aprender isso professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. Tese de doutorado – Programa de Pós-graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. DSM IV-TR. (2003). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4ªed. Texto revisado). Porto Alegre: Artes Médicas. Leonardi, J.L, Rubano, D.R. & Assis, F.R.P. (2010). Subsídios da Análise do Comportamento para avaliação de diagnóstico e tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) no âmbito escolar. In Conselho Regional de Psicologia de Saõ Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (orgs). Medicalização de Crianças e Adolescentes. Conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Leontiev. A. N. Actividad, conciencia, personalidad. Cidad de La Havana: Editorial Pueblo Y Educacion, 1983.

Leontiev, A.N. (1994). The development of voluntary attention in the child. In Vigotskii, L.S. The Vigotsky reader (cap. 11, pp. 288-312) Edited by René van der Veer and Jaan Valsiner. Obra original publicada em 1932. Luria, A.R. (1979c). Las funciones psíquicas superiores del hombre y el problema de su localizacion. In: A. R. Luria El cérebro humano y los processos psiquicos. Analisis neuropsicológica de la actividade consciente (pp. 53-66). Barcelona: Fontanela. Luria, A.R. (1986). Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas. Markus, G. (1974). Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Smirnov, A.A. & Gonobolin, F.N. (1960). La atencion In: A.A. Smirnov; S.L. Rubinstein; A.N. Leontiev y B.M. Tieplov (Orgs. Florêncio Villa Landa, trad.) Psicologia (Cap. VI, pp. 177-200). México: Tratados y Manuales Grijalbo. Vygotski, L.S. (2000a). Dominio de la atención. In: L.S. Vygotski. Obras escogidas. (tomo III, Cap. 9, pp. 213-245). Madrid: Visor (obra original publicada em 1931). Vygotski, L.S. (2000b). Génesis de las funciones psíquicas superiores. In: L.S. Vygotski. Obras escogidas. (tomo III, Cap. 5, pp. 139-168). Madrid: Visor (obra original publicada em 1931). Vigotsky, L.S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed. Trad. Paulo Bezerra). São Paulo: WMF Martins Fontes. Werner J., J. (1997) Transtornos hipercinéticos: contribuições do trabalho de Vygotsky para reavaliar o significado do diagnóstico. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP.

1

TDAH e Infância contemporânea: algumas considerações

críticas

Rosana Vera de Oliveira SCHICOTTI1 Jorge Luis Ferreira ABRÃO2

Sérgio Augusto GOUVEIA JÚNIOR3

Contextualizar e compreender o crescente número de diagnósticos do

Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, bem como o aumento da venda de

medicamentos para este transtorno, tem sido uma empreitada comum de muitos

autores que se dedicam ao tema da infância. O presente trabalho é uma síntese de

uma pesquisa de doutorado4 cujo objetivo principal foi compreender os significados e

as peculiaridades da sintomatologia do TDAH, elucidando a polissemia imbricada na

singularidade de cada caso particular. A perspectiva teórica adotada foi a

psicanálise. Esta se enquadra em um modelo de pesquisa qualitativa, visto que -

neste enquadre - o conhecimento tem um caráter interpretativo, na medida em que é

construído em um processo de atribuição de sentidos.

Para concretizar os objetivos, realizou-se um trabalho de psicodiagnóstico

com crianças que foram encaminhadas para atendimento psicológico em uma

cidade do interior paulista. Desta forma, no presente trabalho, após esclarecer os

caminhos desta pesquisa de doutorado, pretende-se trazer os principais sentidos

que foram apreendidos por meio dos psicodiagnósticos realizados e, a partir daí,

oferecer algumas sugestões para os profissionais e instituições que atuam com a

infância.

No município onde se realizou a pesquisa, as psicólogas escolares atuavam

diretamente nas escolas e faziam diagnósticos das crianças que eram

encaminhadas para o setor de psicologia. Nesse trabalho, elas costumavam

1 Psicóloga e Profª Draª da Faculdade de Psicologia da Unoeste. E-mail: [email protected] 2 Psicólogo e Profº Livre-Docente do Departamento de Psicologia Clínica da Unesp/Assis e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da mesma instituição. E-mail:[email protected] 3 Professor do Ensino Médio, Mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação na Unesp/Presidente Prudente 4 SCHICOTTI, R.V.O. TDAH e infância contemporânea: um olhar a partir da psicanálise.Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis- SP, 2013.

2

identificar, grosso modo, os seguintes diagnósticos: TDAH, Transtornos de

Aprendizagem e Transtornos de ordem emocional.

Após realizarem essa triagem, essas profissionais encaminhavam as crianças

aos diversos serviços especializados do município. No período em que se fez o

trabalho de campo, puderam-se encontrar tais encaminhamentos e diagnósticos no

departamento de saúde onde atuavam os psicólogos clínicos da cidade e, assim,

atenderam-se três casos de crianças diagnosticadas com TDAH, todas medicadas

com Ritalina5 e outros medicamentos, as quais tiveram seus diagnósticos

referendados por médicos neuropediatras e psicólogos.

Esses casos estavam na lista de espera do ambulatório de saúde mental do

município para atendimento psicológico. Após o consentimento da família, foi

realizado um trabalho de psicodiagnóstico com essas crianças. Tal procedimento

enquadra-se na denominação descrita por Trinca (1984) como processo diagnóstico

do tipo compreensivo, descrito pelo autor como um bom recurso para a pesquisa

psicológica.

Segundo Trinca (1984), a ideia de um processo diagnóstico de tipo

compreensivo justifica-se pela necessidade de abranger uma multiplicidade de

fatores que estão em jogo na realização de estudos de casos. Esta forma de

designar o processo diagnóstico possibilita:

[...] encontrar um sentido para o conjunto das informações disponíveis, tomar aquilo que é relevante e significativo na personalidade, entrar empaticamente em contato emocional e, também, conhecer os motivos profundos da vida emocional de alguém (TRINCA, 1984, p.15).

Tornando nossas as palavras de Tsu (1984), queremos esclarecer que,

apesar deste trabalho ter se apropriado de instrumentos ou ferramentas para captar

o mundo interno infantil, bem como alguns fenômenos que emergem no campo

relacional, as crianças não foram vistas como objetos submetidos a exame ou à

pesquisa, mas sim como pessoas que mereciam ser escutadas com muita atenção.

Deste modo, apesar de não ter sido possível fazer um trabalho de

psicoterapia posterior com as crianças atendidas, todos os envolvidos na pesquisa

(criança, família e escola) receberam uma devolutiva e um espaço para dialogar

5 Nome comercial do cloridrato de metilfenidato, psicoestimulante do sistema nervoso central.

3

sobre os sentidos das queixas escolares e da sintomatologia apresentada pela

criança. A pesquisa realizada buscou questionar com os envolvidos a forma tão

preconizada em nossa sociedade de transformar sintomas em doenças e, assim,

esvair-se de um real enfrentamento e de uma mais ampla compreensão das

diversas causas de manifestações de sofrimento e descontentamento humanos.

Além disso, em virtude de trabalharmos principalmente com o tema da

infância e consequentemente escutarmos meninos e meninas, também gostaríamos

de salientar, de acordo com Zornig (2000), que não devemos recorrer a soluções ou

reflexões simplistas que desconsiderem a inserção da criança em um discurso

parental e social. Ela está atrelada a um discurso que a nomeia, que a constituiu e

ocupa um lugar na fantasia parental. O grande desafio é encontrar “[...] as

possibilidades de fazer operar uma clínica que coloque a criança numa posição de

sujeito perante sua história”. (ZORNIG, 2000, p.13).

Vincent (2003), psicanalista francesa, mostrou que mesmo um país como a

França – considerada pelos não-franceses uma nação onde se vive muito bem - tem

enfrentado suas mazelas em relação à falência da autoridade em geral e aos novos

sintomas escolares. Ela discorreu que, ali, o médico generalista costuma nomear

como depressão tudo aquilo que não vai bem com a criança. Em decorrência de

nossa pesquisa e de nossa experiência, podemos afirmar – parafraseando a autora

– que, no contexto onde trabalhamos, o TDAH tem sido a nomeação mais frequente

utilizada pela medicina para expressar o sofrimento infantil.

Na realidade, pouco importa a nomenclatura; por meio deste estudo pudemos

verificar que essa forma de compreender os problemas da criança e seu entorno faz

parte de um profundo processo social de medicalização do Ocidente, iniciado há

cerca de duzentos anos, e que atualmente está em seu ápice. Em linha oposta a

essa postura, a psicanálise tem outra proposta para a escuta do mal-estar expresso

pela criança ou pelos adultos mais próximos a ela, como seus pais e professores.

Os sintomas da desatenção, da impulsividade e da hiperatividade investigados nas

crianças diagnosticadas puderam exprimir - por meio do método psicanalítico –

angústias de separação, falhas na constituição do eu e do superego e,

consequentemente, denotaram falhas na capacidade de pensamento.

Pudemos, ainda, perceber que tais modos de subjetivação são mais

propensos em uma cultura na qual, de acordo com autores que nos acompanharam,

as proibições são cada vez menos respeitadas, a escola não assegura mais a

4

disciplina e os laços familiares não desempenham seu papel regulador. (VINCENT,

2003; GUARIDO, 2011). Em outras palavras, o contato das crianças e adolescentes

com seus pais e professores tem sido de pouca intensidade e de sentido

empobrecido, pois há uma série de fatores que contribuem para isso, dentre os

quais destacam-se a falta de sentido significativo nas relações sociais no

contemporâneo (LA TAILLE, 2009), as falhas nos processos de formação dos

professores (PIMENTA, 2002) e a situação de isolamento e desestímulo em que a

maioria dos profissionais da educação se encontram (LESSARD; TARDIF, 2007).

Com efeito, em determinado contexto cultural, não é possível dar uma

resposta rápida ou apressada às diversas questões que têm afligido a todos. Em

verdade, nosso compromisso ético (enquanto educadores, pesquisadores,

psicólogos, psicanalistas, etc) nos obriga a dizer que temos mais perguntas do que

respostas e, diante de tantas dores, uma das saídas é resgatar a função do

pensamento e aprender com a experiência. Entretanto, há muitas lacunas entre a

nossa análise – ainda insuficiente – sobre os problemas que vivenciamos e a

possibilidade de ação no combate às dificuldades que vemos. Sendo assim,

colocaremos a seguir alguns exemplos ilustrativos, de modo que facilitem a

compreensão dessas proposições.

Primeiramente gostaríamos de enfatizar que uma instituição voltada para a

criança e o adolescente precisa renunciar ao apelo medicalizante e tornar-se um

lugar mais propício à criação e à interpretação. Onde o educando tenha, de fato a

oportunidade de ouvir, ser ouvido, ler-se, ler seu mundo e dialogar com tudo isso,

sentindo a possibilidade real de criar e recriar-se, de superar uma tendência de

padronização cultural e comportamental e de superar as situações de opressão e

transmissão de informações (FREIRE, 1975) para se conquistarem momentos em

que se possam executar novas ações educativas e sociais (FREIRE, 1976) e, assim,

construa-se uma aprendizagem com a qual o educando se relacione (CHARLOT,

2000) e dialogue com o contemporâneo.

No entanto, há uma tendência de boa parte dos envolvidos nos processos de

ensino-aprendizagem de fixarem-se na patologia dos alunos, buscando

principalmente estratégias individualizantes para lidar com os comportamentos

desviantes que percebem em seu meio. É muito difícil para a equipe escolar rever

suas estratégias pedagógicas e propor novas formas de atuação e de

relacionamento com sua clientela. Se a escola conquistar maior espaço para o

5

planejamento e para a boa execução de manifestações culturais e criativas, os

professores terão mais instrumentos para lidar com o contemporâneo e com a

heterogeneidade de seus alunos.

Winnicott (1975, p. 9) afirma que: “A experiência cultural não encontrou seu

verdadeiro lugar na teoria utilizada pelos analistas em seu trabalho e em seu

pensar.” O trabalho de discriminação entre aquilo que é objetivamente percebido e

aquilo que é subjetivamente concebido é para a vida inteira. Para o autor, o alívio

desta tensão, isto é, de relacionar a realidade interna e externa, é proporcionado por

uma área intermediária de experiência que não é contestada. Esta área abrange as

artes, a religião, os jogos, a literatura, e outras formas de diversão e ocupação

reflexiva.

O pensamento de Winnicott (1975) também nos remete à ideia de que nossa

cultura - predominantemente imagética e produtora de ilusões – não facilita o alívio

da tensão apontada pelo autor, pelo contrário, acentua-o. Assim, assistimos

cotidianamente ao surgimento de constantes “epidemias”: de TDAH, de anorexia e

bulimia, de adicção às drogas, de violência, de dislexia, etc. (A lista é infinita e a

nova versão do DSM promete muito mais!).

Birman (2006) também demonstrou que a modernidade forjou mitos que

desafiam o criador e reafirmam a autonomia e soberania do indivíduo. O autor cita

os mitos de Fausto, Prometeu e Frankenstein, todos eles simbolizando a força do

humano e sua capacidade ilimitada de realização e transformação do mundo. Esses

mitos também sinalizam a onipotência da ciência enquanto estatuto da verdade e

trazem em seu bojo a ideia de que tudo é possível em uma sociedade onde reina a

racionalidade científica. A modernidade faz os indivíduos pensarem que o sujeito é o

único responsável por suas conquistas e assumir que, quando seus planos não se

realizam, ele é um derrotado. O sujeito moderno pensa (ou é levado a pensar) que

as possibilidades são infinitas.

Se sugerimos que na escola haja um espaço maior para as manifestações

culturais e criativas, é porque também acreditamos que a arte tem o poder de

expressar e ajudar a resolver nossos conflitos contemporâneos de um modo

bastante significativo. Por exemplo, o filme de Almodóvar - “A pele que habito” -

expõe claramente o mito de Frankenstein. Roberto Ledgard (Antonio Banderas) é

um conceituado cirurgião plástico que, após a morte de sua esposa, interessa-se em

criar uma pele sintética, cultivada em laboratório. É um filme bastante rico em

6

sentidos e representações, o qual denuncia a negação da morte na sociedade

contemporânea, a negação da distinção entre os sexos, a busca da perfeição

estética e corporal e outros fatores cuja análise não é o foco deste trabalho. Em

suma, Ledgard cria uma Afrodite a seu bel prazer, ele é o próprio doutor

Frankenstein, o cientista todo-poderoso.

Há “doutores Frankenstein” por toda parte. Implicitamente a pesquisa de

doutorado e os autores que nos acompanharam neste trajeto trouxeram um pouco

desta problemática. A questão da otimização da atenção, ideal buscado por

acadêmicos ou executivos que buscam uma melhora da função atentiva por meio de

medicamentos, trazida por Caliman (2008), é um modo “Frankenstein” de solucionar

as impotências ou procurar um desenvolvimento maior de nossas faculdades

mentais.

Também as crianças que participaram da pesquisa puderam expressar - por

meio de seus desenhos - suas dores e horrores diante da negação da nossa

humanidade. Wendy fez um desenho onde duas crianças foram representadas

somente com suas cabeças, sem corpo e sem vitalidade; demonstrando talvez que

todos só estavam preocupados com a cabeça dela. Miguel fez um menino pequeno,

solto no espaço e com braços mecanizados. Ele sinalizou o quanto a inteligência

pode ficar dissociada do afeto em nossa sociedade narcisista.

Buchianeri colocou na introdução de sua tese de doutorado que “[...] em 25

anos, os chips de computadores serão milhões de vezes mais poderosos que os

atuais, tornando-se comparáveis em eficiência a setores do córtex humano”.

(OLIVEIRA, 2007 apud BUCHIANERI, 2012, p.1). É o homem querendo ocupar o

lugar do Criador e, para realizar o seu intento, ele não tem medido esforços; nem

respeitado regras.

Estas questões nos colocam novamente com o tema da função paterna,

compreendido por Vincent (2003, p.73-74) da seguinte forma: “Pode-se dizer que o

papel do pai consiste em dizer e mostrar que nem tudo é possível. O interdito do

incesto é o primeiro de todos estes interditos.”. Ou seja, tal papel entra em

contradição com o ideal moderno, pois contraria o desejo de tornar-nos um sujeito

capaz de solapar todas as impotências humanas.

Todavia, é necessário frisar o seguinte: se a ideia de declínio da função

paterna faz sentido em nossa cultura atual, isto não deve ser tomado como um

chavão que explica todos os quadros sintomatológicos do TDAH. Se pensarmos

7

assim, corremos o risco de nos distanciarmos do papel que tem a academia: o de

pensar sobre os múltiplos fatores que geram um problema e de buscar formas que,

considerando a complexidade da situação e não isolando um elemento, amenizem

as angústias sociais que vivemos ou, ao menos, apontem caminhos biopsicossociais

para isso.

A psicanálise não pretende eliminar a dor humana, mas sim capacitar o

sujeito para tolerá-la, poder pensá-la e suportar o desconhecido. Nas palavras de

Salomonsson (2008), o psicanalista não pode ter uma posição baseada

fundamentalmente na etiologia, tal como definida na ciência natural. Os sintomas da

criança com diagnóstico de TDAH devem ser vistos como qualquer outro sintoma;

eles refletem conflitos e a maneira da criança responder a eles. Os mundos internos

dessas crianças podem ter aparências muito diferentes e a homogeneização do

diagnóstico não tem contribuído para ajudá-las.

Se atualmente as instituições responsáveis pela educação de crianças e

adolescentes - como a escola e a família - têm presenciado comportamentos

violentos, indisciplinados e intolerantes ao estudo e ao desenvolvimento do

pensamento e à convivência entre seus pares, alguma coisa isto tem a nos dizer. As

formas de resistência ao pensamento medicalizante têm sido raras, mas nem por

isso menos significativas. O filme “Escritores da Liberdade”, do diretor Richard

LaGravenese, também pode nos dar importantes pistas e caminhos de reflexão: ele

relata a história de uma professora iniciante, Erin (interpretada por Hilary Swank)

que vai lecionar Língua Inglesa e Literatura para uma turma de adolescentes

predominantemente negros e latinos. Alguns de seus alunos cumprem pena judicial

e a grande maioria mostra-se bastante hostil ao ensino convencional e às tentativas

da professora de criar um vínculo com eles.

Lima (2008)6 pontua que, diferentemente de outros filmes americanos sobre

escola, este filme diferencia-se porque mostra o incentivo da professora para que

seus alunos leiam literatura, escrevam em seus diários sobre conteúdos de seu

cotidiano, objetivando que os mesmos ressignifiquem suas vidas. Neste sentido, Erin

vai além de uma prática pedagógica eminentemente transmissora/bancária

(FREIRE, 1975), na medida em que aplica dinâmicas de grupos, leva os alunos a

visitarem o museu do holocausto e ler o livro “O Diário de Anne Frank”.

6 Ao leitor que quiser uma análise mais aprofundada sobre o filme “Escritores da Liberdade”, pesquisar em: http://www.espacoacademico.com.br/082/82lima.htm

8

O acesso à cultura e à história universal; o contato com outras histórias de

violência e superação fizeram com que esses adolescentes fossem estimulados a

usar a função do pensamento. Isto não pôde ser feito segundo os moldes

tradicionais, visto que os adolescentes carregavam histórias de muito sofrimento e

desamparo e não tinham condições de desenvolverem-se sem um trabalho anterior

de vinculação e acolhimento. Eles necessitaram de uma professora amorosa e

presente com a qual puderam se identificar e construir um vínculo de confiança.

É nesse contexto que se encontram a clínica e a escola com crianças que

sofrem de uma irrepresentabilidade, possuem uma perturbação ou inibição na

formação de símbolos ou não conseguiram renunciar à violência pulsional. E ela

exige do psicoterapeuta ou psicanalista algumas atitudes específicas. Pretendemos

aqui nos apropriar das sugestões de Minerbo (2009) e Salomonsson (2008) que

oferecem algumas recomendações técnicas para atuarmos com pacientes que

possuem essas características. Apesar desses autores atuarem com clientelas bem

diferentes, a primeira trabalha com adultos e o segundo com crianças, suas

orientações foram escolhidas devido à clareza e à forma didática como escreveram

a respeito da clínica psicanalítica.

Minerbo (2009) afirma que as intensidades afetivas dos pacientes precisa ser

contida por meio de experiências emocionais que criam uma rede de representações

mais firme e significativa. Com esses casos, o analista não vai representar o objeto

primário, ele se tornará o próprio objeto.

Salomonsson (2008) apresenta sua experiência de atendimento clínico com

crianças diagnosticadas com TDAH e nos auxilia a compreendermos a orientação

acima. Seus pacientes rejeitavam violentamente o conteúdo de suas interpretações

e percebiam suas palavras como se fossem coisas concretas lançadas sobre eles.

Ao questionar sobre o que deveria fazer para que suas interpretações fossem

compreendidas como uma forma de tradução da realidade psíquica e não como um

ataque, ele compreendeu que primeiramente era necessário construir com a criança

um objeto interno bom e continente que pudesse abrigar as representações.

Nesses casos, o analista vai “emprestar” seu próprio equipamento mental

para o analisando de modo que o mesmo possa construir, paulatinamente, o seu

próprio continente. O analista será o próprio objeto primário de seu paciente e

promoverá principalmente as ligações que não puderam ser estabelecidas no início

de seu desenvolvimento.

9

Podemos tomar como exemplo o caso de João, atendido por meio do

psicodiagnóstico, o qual apresentou uma formação simbólica precária, com

tendência maior à evacuação da frustração do que à sua elaboração. Nas formações

psíquicas características do caso de João, podemos inferir que um trabalho analítico

mais atento à situação de transferência-contratransferência pode auxiliar melhor

crianças como ele. Isto é, um analista mais sensível aos mecanismos de

identificação projetiva de seu paciente, com maior capacidade de reverie, ajudará a

prover uma experiência capaz de suportar a dor da entrada na posição depressiva.

As recomendações e sugestões oferecidas aos profissionais que têm

enfrentado a problemática discutida neste trabalho são, com certeza, insuficientes

para abarcar a imensa complexidade do trabalho realizado com crianças, seja na

escola ou na clínica. O melhor uso que se pode fazer delas é pensá-las como

inspiração para novas pesquisas nesta área. Ainda carecemos de pesquisas que

tragam relatos de análise ou de psicoterapia com crianças diagnosticadas com

TDAH. Contudo, pudemos constatar em nosso trabalho que, externamente, as

crianças diagnosticadas com esse transtorno podem ter alguns aspectos em comum

que refletem o atual estado das relações intersubjetivas na sociedade

contemporânea. Além disso, o mundo interno de cada uma delas retratou um

universo rico e diversificado; porém infelizmente bastante cerceado pelas

identidades psicopatológicas que lhe são atribuídas.

Palavras - chaves: 1. Infância; 2. Psicanálise; 3. Distúrbio da falta de atenção com hiperatividade; 4. Contemporâneo.

REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. BUCHIANERI, L. G. C. Velocidade e tédio: o paradoxo da adolescência no mundo contemporâneo. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis – SP, 2012. CALIMAN, L. V. O TDAH: entre as funções, disfunções e otimização da atenção. Psicologia em Estudo, Maringá, v.13, n.3, p. 559-566, jul./set., 2008. CHARLOT, B. Da Relação com o Saber: Elementos para uma Teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.

10

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. __________. Ação Cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. GUARIDO, R. A Biologização da vida e algumas implicações do discurso médico sobre a educação. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011, p. 27-39. LA TAILLE, Y. Formação ética: Do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009. LESSARD, C ; TARDIF, M. O trabalho docente: Elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas.Petrópolis-RJ: Vozes, 2007. LIMA, R. O filme “Escritores da Liberdade” e a função do pensamento em Hanna Arendt. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, mensal, n. 82, março, 2008. Disponível em: : http://www.espacoacademico.com.br/082/82lima.htm Acesso em: 29 mai. 2013. MINERBO, M. Neurose e não-neurose. São Paulo: Casa do psicólogo, 2009.

PIMENTA, S. G. ; GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002. SALOMONSSON, B. O impacto das palavras em crianças com TDAH e TAMP: conseqüências para a técnica psicanalítica. Livro Anual de Psicanálise, XXII. São Paulo: Escuta, 2008. SCHICOTTI, R.V.O. TDAH e infância contemporânea: um olhar a partir da psicanálise.Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis- SP, 2013. 1 TRINCA, W. E col. Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984. TSU, T.M.J.A. A relação psicólogo - cliente no psicodiagnóstico infantil. In: TRINCA, W. & col. Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984, p.34-50. VINCENT, D. A infância na modernidade: Carta aos brasileiros. Trad. Francisco F. Settineri. In: MEIRA, A. M. (Org.). Novos sintomas. Salvador: Ágalma, 2003, p. 64-75. WINNICOTT, D. W. O Brincar & a Realidade. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975. ZORNIG, S. A. A criança e o infantil em psicanálise. São Paulo: Escuta, 2000.

1

O DISCURSO DE PROFICIONAIS DA SAÚDE E EDUCAÇÃO NA COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO DE ALUNOS

DE ESCOLA ESPECIAL

Tatiana Platzer do Amaral – UMC

Luciano Nunes Sanchez Cores – UMC Algacir José Rigon - UMC

Anderson Borges de Santana - UMC

O objetivo principal desta pesquisa é compreender a condição de especial de

alunos regularmente matriculados em uma escola de educação especial, a partir do

registro de diferentes especialistas, tanto no encaminhamento como na justificativa

de permanência na escola especial.

Historicamente, a educação especial é marcada pelo domínio das instituições

particulares e a evolução do atendimento em educação especial se deve à influência

de várias dessas instituições, bem como uma perspectiva de atendimento centrada

na deficiência do aluno. Para Ferreira (1998) a inserção da educação especial nos

textos oficiais vem para reclamar um maior compromisso da escola pública com

essa modalidade de ensino. Reflete um interesse maior das políticas públicas em

educação e dos especialistas da área em desmistificar o caráter assistencialista que

acompanha essa modalidade desde sua origem. Busca-se romper com o

atendimento ao excepcional restrito a conceitos como caridade e filantropia que

desconsidera termos como “organização curricular” e “desenvolvimento cognitivo”.

De acordo com Ferreira (2004), “independente das peculiaridades desses

alunos, a educação a eles destinada deve revestir-se dos mesmos significados e

sentidos que ela tem para os alunos que não apresentam deficiência” (p.40). Essa

afirmação reflete o caráter das atuais políticas públicas voltadas à questão dos

educandos com necessidades especiais, a qual propõe uma plena integração

dessas pessoas em todas as áreas da sociedade, conforme o Plano Nacional de

Educação, em seu capítulo voltado à Educação Especial.

Método

A pesquisa caracteriza-se por uma abordagem qualitativa que se configurou

com algumas características de Estudo de Caso. Os dados foram coletados no

arquivo-morto de uma escola especializada no atendimento a crianças com

2

deficiência mental. A escola oferece atendimento pedagógico de acordo com a fase

escolar e o grau de deficiência do aluno, bem como atendimentos de fonoaudiologia,

terapia ocupacional, psicológico, médico, assistente social, fisioterapeuta entre

outros. Foram analisados documentos da secretaria da escola que possibilitaram a

sistematização do processo de matrícula e desligamento, bem como os prontuários

de 6 alunos disponíveis no arquivo morto da escola. Foram selecionados com base

na data de seus desligamentos, últimos dois anos. Segue análise dos dados.

Motivo do encaminhamento

A escola pesquisada acolhe alunos com variados níveis de deficiência mental.

Até outubro de 2006 haviam 678 alunos matriculados na escola. No mesmo período

o ingressaram 60 alunos e foram desligados 20. Vale ressaltar que essas

informações foram colhidas nos cadernos de controle utilizados pela secretaria e

pela coordenação pedagógica, visto que não estavam informatizadas até o momento

dessa coleta de dados.

Destes 20 desligados, foi possível analisar os prontuários de seis alunos já

desligados da escola especial. São 2 alunas do sexo feminino e 4 alunos do sexo

masculino com idade entre 7 e 28 alunos.

Alunos Sexo

Data de nascimento

Data da 1ª matrícula

Idade na matrícula

Após a saída da escola especial

JACS

Masculino. 17/09/1983 23/12/1998 14 anos

Foi enviado à Educação de Jovens e

Adultos.

JGV

Feminino 02/03/1992 22/02/2002 9 anos

Foi enviada à escola regular com recursos

especiais.

JRAR

Masculino 06/01/1993 18/07/2000 7 anos

Foi enviado à escola regular.

JS

Masculino 24/06/1995 22/07/2003 8 anos

Foi enviado à escola regular. Sabe-se,

informalmente, que permaneceu pouco

tempo.

LHS

Masculino 11/05/1994 20/12/2002 8 anos

Foi enviado à escola regular. Sabe-se,

informalmente, que não permaneceu e que

estava na fila de triagem da escola especial.

MSC

Feminino 01/11/1976 10/07/2003 28 anos

Não se matriculou em outra escola.

Caracterizados os ex-alunos cabe a análise do motivo de encaminhamento à

escola especial.

Motivo do Encaminhamento

Psicólogo Fonoaudióloga Assist. Social Médico

JACS Atraso no desenvolvimento. Encefalopatia

Atraso no desenvolvimento

Atraso no desenvolvimento e nervosismo

3

JGV Fica brincando sozinha, parece que é surda.

Deficiência auditiva

JRAR Atraso no desenvolvimento

Atraso no desenvolvimento/ Dificuldade de aprendizagem. (pediatra)

JS

Dificuldade de Aprendizagem; Não fala direito, é agressivo na escola

Encaminhado pela diretora da escola pois tem dificuldade de aprendizagem, freqüenta a 2ª série.

Atraso no desenvolvimento

Dificuldade de aprendizagem, as vezes é agressivo. (pediatra)

LHS Não acompanha a escola. Dificuldade na fala.

Atraso no desenvolvimento

MSC

Atraso no desenvolvimento, não consegue acompanhar a escola.

Atraso no desenvolvimento

Não foi encontrado nenhum documento de encaminhamento para a escola

especial. Não há registro de informações por parte dos seguintes profissionais:

Coordenação Pedagógica, Fisioterapia e Terapeuta Holística. Sobre o que foi

possível coletar como informação no registro da psicóloga, fonoaudióloga, assistente

social e médica, podemos perceber que os motivos apontados envolvem, de forma

unânime, atraso no desenvolvimento. Apenas JGV tem a especificidade da

deficiência auditiva, apontada por apenas dois profissionais. É necessário relembrar

que a escola especial tem como foco de atendimento a deficiência mental, o que não

possibilitaria que JGV fizesse parte de seu corpo discente.

O motivo de encaminhamento evidencia-se como um problema individual do

aluno, sem que seja considerado o contexto em que o egresso estava inserido. Para

Souza (1997) questões referentes ao processo de escolarização são tomadas como

problemas de aprendizagem e comportamentais. Em pesquisa realizada pela autora

pôde perceber que professores e diretores de escolas públicas tendem a localizar as

causas dos problemas de escolarização nas crianças e suas famílias, de forma que

há uma culpabilização do aluno pela sua própria condição de insucesso na escola.

Uma parcela expressiva dos participantes da pesquisa apontou como causa

problemas biológicos/neurológicos, desnutrição, problemas emocionais. Poucos

apontaram as distorções crônicas do sistema educacional. Conseqüentemente, a

alternativa possível diante do que é chamado dificuldade de aprendizagem é o

encaminhamento para atendimento psicológico e médico. Feito um “diagnóstico”

centrado nas dificuldades do indivíduo, a partir de um modelo clínico, cabe o

encaminhamento ao atendimento educacional especializado.

Considerando-se que estes alunos estavam matriculados em uma escola

especial, que têm como premissa o direito à vivência da escolarização com os

4

mesmos significados e sentidos da escola comum, fica evidente a fragilidade do

registro do profissional da educação. É um registro que remete a pouca esperança

de aprendizagem dos alunos especiais diante de um discurso centrado na

dificuldade do aluno.

Justificativa de permanência na escola especial

Partimos da constatação de que a qualidade do registro na escola era

precária, marcada por lacunas comprometedoras do entendimento da história de

escolarização dos alunos na instituição, bem como da própria prática pedagógica

desenvolvida na escola especial. Nos documentos pesquisados não encontramos

informações detalhadas acerca do histórico pedagógico dos alunos, ou mesmo uma

avaliação feita pela coordenação pedagógica que possibilitasse entender o processo

diagnóstico pedagógico. As informações eram bastante sucintas:

DIAGNÓSTICO (COORD. PEDAGÓGICA)

J.A.C.S. O aluno poderá freqüentar o Núcleo Raro. Coloco, porém uma ressalva pois está na 4ª série e tem bom nível de escolaridade.A mãe prefere que ele freqüente escola. É agitado e não se concentra muito. Logo fica cansado. Fica ansioso e perguntando se acertou a lição.

J.G.V.

Trata-se de menor (grifo do pesquisador!) apresentando atraso em seu desenvolvimento cognitivo, com acentuada dificuldade auditiva. Durante a avaliação mostrou-se calma e cooperante, realizou as atividades mediante ajuda (demonstrando como deve ser feito). Não fala, conhece cores, formas, números e letras. Faz cópia. Segundo a avó é independente nas atividades de vida diária. Dorme bem, alimenta-se pouco. Atualmente freqüenta a escola “Dr. Washington Luís”. Enquadra-se no trabalho desenvolvido em sala de 3ª série – ensino fundamental adaptado desta instituição. A melhora em seu desempenho está atrelado ao uso do aparelho auditivo. A avó foi orientada neste sentido, pois tem uma grande expectativa no trabalho da instituição.

J.R.A.R.

Trata-se de menor com dificuldade em acompanhar o ensino de 1ª série. Durante a avaliação mostrou-se calmo e cooperativo. Reconhece cores e formas. Confunde números e letras. Não lê, apenas copia. Possui boa manipulação com materiais de encaixe. Encaixa-se no trabalho desenvolvido em sala de Prontidão B.

J.S. J. necessita dos atendimentos oferecidos nesta instituição e enquadra-se nos trabalhos realizados em sala de aula de 2ª série adaptada

L. H.S.

Trata-se de menor apresentando atraso no seu desenvolvimento. Durante a avaliação mostrou-se cooperante, porém um pouco impaciente. Entende e atende ordens. Realizou encaixes e quebra cabeças simples, identifica cores, formas. Possui noção corporal básico. Lateralidade não definida. Identifica cores. Reconhece as figuras geométricas. Não lê, não escreve. Copiou algumas letras e números com dificuldade. Segundo a mãe é independente nas atividades de vida diária, necessitando de supervisão. Freqüenta a sala de 2ª série, sem acompanhar. Enquadra-se em sala de 2ª série adaptada desta instituição.

M. S. C.

Trata-se de jovem apresentando atraso em seu desenvolvimento. Freqüentou escola até os 10 anos, posteriormente alfabetização no SESI, parando por ser a noite, fez até a 3ª série. Freqüentou por um pequeno período o TRADEF, não continuando devido a distância. Durante a avaliação mostrou-se calma, adaptada. Realizou as atividades adequadamente. Está alfabetizada. Lê e escreve. Faz ditado. Interpreta pequenos textos. Faz contagem, reconhece numerais, associa a quantidade. Faz as operações de adição, confunde-se na subtração, realiza com ajuda. Segundo relato da sua mãe é independente nas atividades de vida diária, auxilia nas tarefas da casa. Não conhece dinheiro, auxilia em pequenas compras. Enquadra-se no trabalho realizado em sala do EJA pré-profissionalizante, período da tarde.

Considerando-se as informações acima descritas, percebe-se que remetem

ao enquadramento dos alunos nos serviços oferecidos na instituição ou relatos

comportamentais. Evidencia-se a fragilidade do pedagógico na educação especial.

5

Evidencia-se também uma participação diminuta da equipe pedagógica na triagem,

claramente baseada no modelo clínico. Para Ferreira (2004):

Nesse contexto, os alunos com deficiência podem ser ainda mais penalizados pela combinação de três percepções: uma visão otimista de uma escola que se tornou democrática e que não mais reprova; a premissa de que não são mais necessários apoios ou serviços específicos para quaisquer grupos; e, mesmo que de forma não explícita, o pressuposto de que a educação escolar ocupa um espaço apenas secundário no processo de formação de pessoas com deficiência, principalmente aquelas com limitações mais marcantes. (grifos meus) (p. 35)

Os documentos referentes ao desenvolvimento pedagógico dos prontuários

contêm informações semestrais da coordenação pedagógica, que sintetizam as

informações dos professores e as análises da psicóloga escolar. Sempre baseados

no desenvolvimento comportamental do aluno, acompanhadas de informações de

outros profissionais que por ventura tenham atendido o aluno durante o período. É

preciso esclarecer que forma retirados alguns trechos do processo de

desenvolvimento pedagógico na escola especial, uma vez que eram repetitivos.

Desenvolvimento Pedagógico na Escola EspecialCoord. Pedagógica Psicóloga Escolar

J A

C S

1º e 2º s 2002 Ótima compreensão e assimilação dos conteúdos. Apresenta um bom desempenho nas atividades pedagógicas, porém nas atividades profissionalizantes não tem força de vontade nem atenção. Seu grau de responsabilidade anda baixo. Está disperso do serviço e desmotivado. É preguiçoso e interesseiro. (2) É muito inteligente e comunicativo. Gosta de realizar tarefas diversificadas, não tem muita paciência de ficar tempo grande em uma só atividade, se cansa fácil e desmotiva rapidamente. É lento para atividades profissionalizantes. Gosta muito de conversar e pouco de trabalhar.

1º semestre de 2000 Aluno do Núcleo Raro que participou junto aos outros alunos, de grupos psicoterápicos tanto para aconselhamento, orientação geral, com a finalidade preventiva de obter um equilíbrio intrapsíquico do indivíduo, melhorando o ajustamento familiar e social. E assim sendo, levá-lo a ter uma melhor qualidade de vida. Medida profilática. 2º semestre de 2002 Passou algumas vezes pelo setor para orientações no relacionamento familiar. A monitora recebeu orientações em sala de aula.

J G

V

º semestre de 2005 Realiza-se cópia da lousa com capricho. Participa das AVDs. Boa coordenação motora grossa e fina. Reconhece as vogais e algumas consoantes. Identifica numerais até 10. Obtêm sucesso nos jogos de memória e quebra-cabeça. Freqüenta a 3ª série adaptada.

2º semestre de 2005 Atingiu vários objetivos da sala neste semestre. Boa compreensão dos conteúdos, copia tudo da lousa com capricho. Participa das AVDs, possui boa coordenação motora ampla. Freqüentará a 3ª série básica no próximo ano.

1º semestre de 2005Recebe acompanhamento (em sala de aula). Tem dificuldade de aprendizagem devido a sua deficiência auditiva e não tem domínio da língua de sinais. Menos resistente em entrar para aula, tem bom comportamento. Socializa-se pouco. A avó recebeu orientações.

2º semestre de 2005 Recebe acompanhamento em sala de aula e individual quando necessário. Seu comportamento somente se altera devido a situações familiares conflituosas. Mostra-se mais interessada pelas atividades escolares. A professora esforça-se para incentivá-la. A avó recebeu orientações.

6

J R

A R

1º s 2001 O aluno freqüenta a sala de Prontidão B. Durante o semestre apresentou bom aproveitamento no trabalho pedagógico. 2º s 2001 - O aluno freqüenta a sala Prontidão B, onde foram trabalhadas durante o semestre atividades visando seu desenvolvimento cognitivo e social, treino de AVDs e tarefas ocupacionais. 1º s 2002 Recebe atendimento escolar em sala de 2ª série do ensino fundamental básico. 2º s 2002 Durante esse ano foi atendido em sala de 2ª série do ensino fundamental básico, sendo promovido para a 3ª série

1º s 2001 J, no grupo de atendimento quinzenal, porta-se de forma interessada, falando muito, reproduzindo comentários adultos ou “fantasiando” (caso com os pais em outra cidade). Demonstra ser “carinhoso” e bastante educado, interesse infantil e muito “delicado”. Mora com a avó, a quem respeita muito.

2º s 2001 J tende a fazer apenas o que lhe agrada. Mesmo em termos de relacionamento exige dos colegas que se comportem da forma que ele quer. Percebemos desatenção da família para adequar limites.

J S

UNICAS INFORMAÇÕES 2º semestre de 2003 Em atendimento escolar em sala de 2ª série adaptada A, passando para 2ª série adaptada B.

1º semestre de 2004 Bom vocabulário, boa compreensão dos conceitos básicos. Quando tem interesse realiza muito bem todas as atividades propostas

Em acompanhamento em sala de aula, apresentou dificuldade em aceitar regras e limites, resistente e agressivo. A mãe foi orientada quanto a forma de lidar com J. em uma visita domiciliar. Seu quadro comportamental é controlável e ele trata-se de criança carente afetivamente.

L H

S

1º semestre de 2003 Coordenação Pedagógica: Em atendimento escolar em sala de 2ª série do ensino fundamental adaptado. 2º semestre de 2003 Coordenação Pedagógica: “Em atendimento escolar em sala de 2ª série adaptada, atingiu os objetivos propostos. Passará a freqüentar a sala de 1ª série do ensino fundamental, no próximo semestre.”.

1º semestre de 2003 Psicóloga (escolar): Em acompanhamento em sala de aula, sem intercorrências.

2º semestre de 2003 Psicóloga (escolar): Em acompanhamento em sala de aula, sem intercorrências.

M S

C

1º semestre de 2005 “Gosta de ler e escrever, apesar de trocar letras. Realiza contas e numerais. É participativa e demonstra interesse nas atividades. Apresenta dificuldade em trabalhar com valor monetário. Gosta de computação e trabalhos das oficinas. Freqüenta o EJA 7 com qualificação.”

2ºsemestre de 2005 “Demonstra interesse por atividades envolvendo valores monetários. Lê e escreve bem, com apenas algumas trocas de letras. É crítica, comunicativa e alegre. Foi reclassificada a freqüentar o EJA 8 no próximo ano

1º semestre de 2005 “Recebe acompanhamento em sala de aula. Passou pelo setor para a orientação geral. Participa do grupo da bijuteria. Excelente comportamento e socialização.”

2ºsemestre de 2005 “É acompanhada em sala de aula. Bom comportamento e adaptação. Também participa muito bem do curso de bijuteria.”

O desenvolvimento pedagógico se resume às características

comportamentais da criança, que acaba sendo a única informação da condição de

especial da criança. Permanecendo distantes as discussões acerca dos métodos de

ensino de sua escola anterior. Uma vez, negada a possibilidade de aprendizagem

dos alunos cabe resgatar as contribuições de Vygotsky (1996) que divide as

crianças em dois grupos: fisicamente retardadas e socialmente retardadas. Em sua

visão, a maioria se enquadra na segunda categoria; tais crianças têm atraso de

desenvolvimento devido a condições adversas em sua vida e na escola. Nesses

casos se as circunstâncias são alteradas, muitas começam a florescer e a exibir

talentos. O que não é o caso dos alunos que freqüentaram a escola especial – os

alunos passaram por ela e não foi possível ir além de um diagnóstico rígido e

7

inflexível. De modo geral, podemos afirmar que a condição de especial desses

alunos é descrita de maneira que parece estar diretamente relacionada com o

desenvolvimento cognitivo aliado às características sociais, sem qualquer indicação

dos aspectos pedagógicos. A fim de discutirmos algumas características do

processo e a condição de especial dessas crianças, explicitaremos aqui o caso de

JRAR.

DIAGNÓSTICO

Psic.

Pode se observar que trata-se de uma criança com problemas de estrutura familiar onde os pais estão ausentes e foram substituídos pela avó materna. Demonstra ser um lar conturbado, muitas pessoas morando na mesma casa. Observou-se também que J. é tímido, mas tem iniciativa e criatividade nas brincadeiras. No teste observa-se que a criança provavelmente terá possibilidades boas de progredir no 1º ano, porém mostra-se necessário atenção quanto à possível lentidão da criança. Sugiro verificar a possibilidade de acompanhamento diferenciado em sala, sendo necessário atendimento psicológico no momento, para adaptação na escola. Sugiro também, posteriormente uma visita domiciliar.

Assist.

Social

Família desestruturada. Mãe ao se separar foi embora deixando os filhos c/ (avó materna) que é responsável por eles. Dos filhos só a D. foi desejada, os filhos J. e N. sempre foram desprezados pela mãe. Genitora fazia uso do álcool, entrou na prostituição. Genitor tem pouco contato com os filhos. Irmãos de Jonas fazem tratamento psicológico

Coord.

Pedag.

Trata-se de menor com dificuldade em acompanhar o ensino de 1ª série. Durante a avaliação mostrou-se calmo e cooperativo. Reconhece cores e formas. Confunde números e letras. Não lê, apenas copia. Possui boa manipulação com materiais de encaixe. Encaixa-se no trabalho desenvolvido em sala de Prontidão B.

Méd. Encefalopatia fixa da infância por desnutrição (intra-útero) e pós natal Dislexia. Síndrome cromossomo “X” frágil. (neurologista)

T. Holística Desequilíbrio energético. Indicado uso dos Florais de Bach.

Mais uma vez evidencia-se o diagnóstico baseado nos padrões sociais acerca

da instituição família, ressaltando-se aqui também a explicação médica para as

supostas dificuldades de aprendizagem e o imediatismo do diagnóstico pedagógico,

cujas conclusões parecem ser baseadas somente no comportamento e exercícios

realizados durante um breve momento. Sobre o conceito o limiar entre anormalidade

e anormalidade que permeia o relato dos profissionais é preciso resgatar as

contribuições de Glat (1989):

(...) a sociedade estabelece regras ou padrões dos atributos físicos e comportamentais considerados “normais”, e os indivíduos que se desviam dessa norma são rotulados de “anormais”, e estigmatizados. O conceito de normalidade, por sua vez é determinado pelas exigências de cada momento histórico; portanto, os critérios de desvio, excepcionalidade ou deficiência estão sempre relacionados com o contexto social. (p.20).

Neste contexto, Collares (1996) nos remete à força do discurso médico nesse

processo de normatização da sociedade e, conseqüentemente, do ensino:

Nesta maneira de pensar o processo saúde/doença, não há espaço para determinantes como políticas públicas, condições de vida, classe social. A ignorância é a grande responsável pelas altas prevalências de doença. Então, a solução só pode ser por meio do “ensino”. Neste campo, a Medicina exerce seu papel normatizador com grande eficiência. E essas idéias perduram até hoje, seja na formação de profissionais, seja no famoso “senso comum”, reflexo das concepções ideológicas dominantes. (p.74)

8

O aluno e sua família sempre são os responsáveis por seu problema de

aprendizagem. As discussões sobre as condições de ensino nas escolas não ficam

em segundo plano, pois simplesmente não há o que se questionar, uma vez que há

a crença de poucas possibilidades de desenvolvimento cognitivos dos alunos.

Durante o processo de triagem, todos os profissionais falam pela criança, que é vista

não como sujeito, mas sim como objeto de análise no processo de sua identificação.

A leitura dos registros dos especialistas acerca dos alunos, de modo geral,

revela a repetição do discurso dos profissionais nos processo de triagem dos alunos,

principalmente no que diz respeito às características consideradas como “negativas”

na vida do educando. A pobreza e vinculada aos problemas familiares parecem, por

várias vezes, serem os principais fatores para a condição diferenciada e permanente

do aluno, estando presente no discurso de vários profissionais:

ALUNOS PROFISSIONAIS

JACS

O pai é alheio à educação do filho, de acordo com relato da mãe. É ela quem sempre buscou os tratamentos para J. O convívio familiar é bom. J. briga com o irmão do meio e se da muito bem com o irmão mais velho. (Psicóloga)

JGV

Avó cuida da neta desde seu nascimento, mãe de J. tem problemas mentais psiquiátricos, já foi internada mais de 20 vezes. Avó reclama muito, pois precisa trabalhar e não pode. Passava com Dra. J. no P.S., J. não tem limites (mexeu em tudo), segundo sua tem surdez profunda (fez BERA). Avó parece ser muito ansiosa, falando muito e sendo repetitiva. Disse estar passando por dificuldade financeira. Avó freqüenta a Igreja Universal. (Assist Social)

JRAR

Família desestruturada. Mãe ao se separar foi embora deixando os filhos c/ (avó materna) que é responsável por eles. Dos filhos só a D. foi desejada, os filhos J. e N. sempre foram desprezados pela mãe. Genitora fazia uso do álcool, entrou na prostituição. Genitor tem pouco contato com os filhos. Irmãos de Jonas fazem tratamento psicológico. (Assist Social)

JS A mãe da criança tem hoje 7 filhos com 6 homens diferentes e um deles está preso por assalto a banco. (Terapeuta Holística)

LHS

De acordo com a mãe, a gestação foi agitada c/risco de perder a criança. O marido bebia e ela tomou apenas medicamentos para segurar o bebê. Fez pré-natal. Parto cesária. Sofreu anóxia. Sentou aos 6 meses andou com 1 ano r 5 meses e iniciou a fala com 1 ano e 6 meses, apenas palavras isoladas como “mama”, “papa”. Aos 3 anos entrou na escola, e a mãe percebeu dificuldades, não se interessava, só dormia e teve problemas com a professora e a diretora da escola. (Fonoaudióloga)

Os problemas de ordem social e familiar são aqui evidenciados, em

detrimento das questões pedagógicas. A respeito das normas acerca da família,

Collares (1996) afirma que:

Os que não se ajustam à norma, por usufruírem de valores diferentes, ou talvez pela ausência de bens materiais, de herança (...) ou, simplesmente por viverem um padrão distinto de família, passam a ser considerados, rotulados como “desajustados”. E a família se torna “desestruturada”, perniciosa para a sociedade, sem afeto, sem qualidades... Quase agrupamentos subumanos.” (p. 176)

Considerando-se o fato de todas as crianças dessa pesquisa pertencerem às

classes baixa e média baixa, cabe a nós questionar se os registros em questão

seriam os mesmos – ou seriam repetidos com a mesma intensidade – caso os

9

problemas em questão fossem encontrados em uma família de classe alta. Collares

(1996) ilustra bem essa questão:

(...) esse discurso moralizador não se aplica indistintamente a todos. O mesmo comportamento tem significados diferentes, segundo o estrato social. Ninguém ousaria chamar de promíscuas as pessoas que trocam de parceiros, ou companheiros, ou maridos, se elas pertencerem à classe alta, por exemplo. E se elas morarem na periferia, o que se fala (p. 177)

Antes de mostrar alguns dados coletados, torna-se necessário explicitar aqui

o significado dessa “medicalização”. Segundo Moysés e Collares (1992), esse

processo caracteriza-se pela biologização dos problemas pedagógicos, tornando as

questões educacionais em questões de ordem médica, seja por meio dos distúrbios

de aprendizagem ou das disfunções cerebrais:

Portanto, distúrbio de aprendizagem remete, obrigatoriamente, a um problema, ou, mais claramente, a uma doença que acomete ao aluno – o portador – em nível individual, orgânico. Para um problema individual, só podem surgir soluções individuais. Para um problema médico, soluções médicas. (...) A biologização – e conseqüente patologização – da aprendizagem escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do fracasso escolar, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a instituição escolar nele inserida. (p. 31 e 32)

Para elucidar essa afirmação, trazemos aqui parte do diagnóstico médico dos

alunos pesquisados, os quais, ainda que não estejam fechados, já apontam um

distúrbio biológico existente nos educandos:

ALUNOS NEUROLOGISTA (DIAGNÓSTICO)

JACS Encefalopatia fixa infância por sofrimento pré e perinatal. CD: Creio que a criança se adaptaria melhor em oficina ou núcleo rural, ou sala especial com acompanhamento pedagógico

JGV

Desde 01 ano de idade com epilepsia. As vezes com alteração no comportamento, atualmente sem medicação. Emagrecida, não está se alimentando corretamente, pálida. Criança fica mais agressiva quando mãe está perto. HD: Encefalopatia fixa da infância por sofrimento pré-natal Surdez congênita

JRAR Encefalopatia fixa da infância por desnutrição (intra-útero) e pós natal. Dislexia??? Síndrome cromossomo “X” frágil. (neurologista)

JS Encefalopatia a esclarecer. Desnutrição (?). Torches (?) (neurologista)

LHS HD: Encefalopatia fixa infância – seqüela anóxia neo natal. Cardiopatia congênita ?

Fica evidente que todos os alunos dessa pesquisa tem algo em comum, a

encefalopatia, que envolvem uma ampla possibilidade de apresentação, mas com

uma característica central: gera a incapacidade nos alunos. Essa parece ser a

explicação final para a história de fracasso escolar de cada um dos alunos, em

detrimento da escassez de informações referentes às escolas anteriores, seus

métodos e a conseqüente influência desses na vida de cada educando. Segundo

Collares (1996):

Para praticamente todos os segmentos que compõem a sociedade brasileira, os problemas de saúde constituem uma barreira para a aprendizagem e, logicamente, uma das principais causas do fracasso escolar. Inclusive para os profissionais da Educação (p.76)

10

As explicações médicas para o fracasso escolar são comuns à própria equipe

pedagógica, que se coloca de forma subordinada às determinações do discurso

médico. Merece destaque a indiferenciação dos discursos dos profissionais, que

sem a identificação de suas especialidades poderiam ser afirmações de qualquer

pessoa ou profissional. Causa estranheza a presença no espaço escolar de uma

terapeuta holística, mas o seu discurso não. Como já apontado por Moysés e

Collares (1992) são discursos calcados no senso-comum, em preconceitos e mitos

que culpabilizam os alunos da própria incapacidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio dessa pesquisa foi possível perceber que não há diferenciação, em

termos de informação, entre o registro dos profissionais, o que dificulta o

reconhecimento das especificidades de cada área. A discussão da condição de

especial dos alunos centra em características individuais, principalmente rendimento

escolar, comportamento e organização familiar. Em contrapartida, não encontramos

nos prontuários quaisquer registros voltados ao questionamento dos determinantes

pedagógicos que contribuíram para o fracasso escolar do aluno.

Nos documentos analisados o discurso dos profissionais da saúde e demais

profissionais se sobrepõe à contribuição diminuta da equipe pedagógica, diante da

força do modelo médico de compreensão da condição de especial. Revela o

processo de biologização do ensino, marcado pelo enfraquecimento do

conhecimento educacional. De acordo com Padilha (2001), os “desvios de conduta”

aqui são transformados em doenças, reduzindo-se questões do âmbito pedagógico

a questões patológicas:

(...) ainda estamos vendo desvios do que é considerado padrão de conduta (valorizado pela classe dominante, e que professores, psicólogos e legislação continuam a defender) serem apontados como sintoma de doença, indício de patologia. Estes mesmos indícios vêm justificando o encaminhamento de crianças para as classes especiais destinadas a deficientes mentais e vêm negando os determinantes sociais de tais “desvios”, sem perguntar o que é que a escola tem a ver com tudo isso. (p.39)

Para finalizar, não se pretende com esta pesquisa negar a existência de

educandos com necessidades especiais, todavia é preciso reafirmar constantemente

o direito de todos a uma educação que seja capaz de garantir a constituição da

humanidade. Requer ousadia e formação capazes de romper com o discurso de

senso comum permeado por preconceitos e mitos que responsabilizam e penalizam

o indivíduo pela sua própria incapacidade.

11

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1

Teoria social em psicanálise: destinos éticos da clínica e implicações na inserção social do sujeito

Luiz Paulo Leitão Martins Psicólogo e Mestrando em Teoria Psicanalítica pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro (Bolsista pela CAPES)

Palavras-chave

Psicanálise; teoria social; reconhecimento; sujeito; alteridade.

Resumo

Esta pesquisa pretende explorar algumas consequências do discurso

psicanalítico para a teoria social. Não obstante ao fato de historicamente a

psicanálise ter sido alocada em geral junto à experiência particular da clínica ou da

terapêutica individual, apontaremos já em Sigmund Freud alguns elementos que

indicam a necessidade de uma outra conjunção teórica, esta entre sujeito e

coletividade em psicanálise. Essa nova disposição seria fundamental para a

intervenção de Jacques Lacan, uma vez que ele parece se utilizar dela sobretudo

para sustentar uma certa especificidade na articulação que promove entre a

constituição do sujeito e a esfera social. A experiência da psicanálise deveria, num

primeiro momento do ensino do autor, promover o reconhecimento da verdade do

inconsciente num plano intersubjetivo de análise, para depois, num segundo

momento, propor a destituição subjetiva somente possível pela aposta na hipótese

de travessia da fantasia fundamental. Em ambos os casos na teoria lacaniana, o que

parece estar em questão, no fundo, é o modo pelo qual o sujeito lida com a

dimensão do grande Outro, de forma que a psicanálise se configuraria, nesses

termos, como uma intervenção que para além da esfera individual da clínica supõe

questões éticas que tocam profundamente a relação entre a produção da

subjetividade e o modo pelo qual este sujeito se insere no espaço social.

Controvérsias em psicanálise: saber, ciência e sociedade

Antes de começar devemos reconhecer que durante um longo período a

comunidade psicanalítica depois de Freud silenciou-se a respeito das possíveis

contribuições da psicanálise para a teoria social. Não obstante os diversos textos

2

freudianos que abordam explicitamente essa questão (e outras relacionadas a ela,

como política, religião, antropologia etc.), tais como: Totem e tabu (1913), Psicologia

das massas e a análise do eu (1921), Mal-estar na civilização (1937), O homem

Moisés e a religião monoteísta (1939), para apenas citar alguns, os pós-freudianos

de um modo majoritário falaram muito pouco a esse respeito, praticamente excluindo

as temáticas da sociedade e da política do arquivo discursivo psicanalítico (BIRMAN,

2008). Esse procedimento coletivo findou por distanciar a psicanálise de disciplinas

como teoria social, economia política e filosofia, restringindo-a, como uma

experiência do particular, à referência terapêutica da clínica. Ora, sabe-se desde

Michel Foucault (1963) do perigo de se pensar uma intervenção direta e sem

conceito de uma dada disciplina diante de certo objeto de pesquisa, como é o caso

da clínica, como se esse atuação fosse possível num espaço isolado,

independentemente da distribuição a priori estabelecida no nível do discurso entre

visibilidade e enunciação. Numa crítica a tal falácia predominante no discurso

histórico da medicina, o filósofo francês irá denunciar sob a ideia de uma soberania

da descrição clínica a especulação e a parcialidade intrínsecas às proposições

científicas, defendendo a necessidade de se pensar efetivamente os jogos de força

presentes e mascarados por uma abordagem positiva e pretensiosamente neutra.

Com efeito, devemos entender que por mais singular que seja a clínica na

psicanálise não deve seguir como exceção à regra nesse caso. Apesar de

consentirmos que sua experiência possa dar lugar a uma compreensão

completamente outra do dispositivo clínico, de fato, ela pode também incorrer no

mesmo perigo narrado por Foucault ao equacionar a sua atuação apenas no nível

isolado política e socialmente do encontro clínico, restando tão somente uma

suposta dualidade hermética entre analista e analisando. Quando as palavras de

Freud dizem ser “um trabalho de civilização” (FREUD, 1933/1996, p. 84.) o advento

do eu diante do isso do inconsciente, para nós, consiste em pensar, no fundo, como

a psicanálise numa discussão íntima com os diversos campos que compõem a

cultura e a civilização pode oferecer uma contribuição significativa na disposição da

subjetividade frente às exigências do social. Ou seja, em outros termos, entendemos

que para o pai da psicanálise realizar pesquisa e prática clínica em psicanálise

implica necessariamente em gerar destinos específicos na relação entre o individuo

e a coletividade a que pertence para que ele possa amar, trabalhar e criar

socialmente.

3

Com efeito, a psicanálise há algumas décadas tem se deparado com

questões oriundas tanto de seu interior quanto de seu exterior que têm levado os

pesquisadores da área a repensarem o seu papel enquanto representantes de uma

certa proposta de intervenção, por assim dizer, psicológica na sociedade. Para

abordar de um modo bastante breve, diríamos que na esfera pública a

especificidade teórica da psicanálise em sua dimensão de eficácia terapêutica vem

sendo tomada constantemente como alvo de avaliações negativas. Esse diagnóstico

é corroborado pelas pesquisas de um determinado grupo da comunidade científica,

predominantemente da área médica, da ciência neurológica e da análise do

comportamento, malogradas as tentativas por parte de alguns psicanalistas em

defendê-la discursivamente, proporcionando, assim, um verdadeiro debate quanto

ao reconhecimento dos procedimentos metodológicos em questão no dispositivo

psicanalítico1. Para o psicanalista Joel Birman (2011b), o projeto do DSM IV (1995),

representaria a expressão máxima das operações de medicalização do espaço, de

psiquiatrização dos normais e de controle social dos indivíduos presentes no espaço

social da atualidade, de modo que qualquer outro discurso que, ao inverso, valorize

a singularidade das subjetividades e considere a responsabilização do sujeito

relativamente ao seu ato tenderia a se tornar marginal, para não dizer excluído dos

ditos cânones da ciência moderna. Entendemos tal projeto de exclusão e denegação

da psicanálise como o reflexo sintomático de uma proposta de tratamento da

dimensão psicológica individual, na qual o sujeito encontra-se propriamente ausente,

e, nesse ponto, seguimos a leitura empreendida por Jacques Lacan, ao entender a

retomada da temática do sujeito pela psicanálise (LACAN, 1965/1966, p. 857).

Assim, defendemos que uma agenda da ordem do dia na psicanálise, para resistir a

um tal processo, trata-se de dar razões de seus procedimentos reflexivos e justificar

suas metodologias de pesquisa e de prática terapêutica no interior desta realidade

social, que atravessaria a sua experiência, e isso não necessariamente pela

comprovação de sua eficácia, mas pela positivação e demonstração da devida

consistência de uma outra abordagem de produção e de construção de si.

Por outro lado, ainda no tempo presente, a psicanálise, internamente à sua

reflexão, estaria lidando com agenciamentos psíquicos pouco convencionais no que

1 A esse respeito, vemos a polêmica coletânea de artigos críticos organizada por Catherine Meyer, Le

livre noir de la psychanalyse (2005), e as respostas em defesa da psicanálise de Elisabeth Roudinesco, Pourquoi tant de haine? Anatomie du livre noir de la psychanalyse (2005), e de Jacques-Alain Miller, L'Anti-Livre noir de la psychanalyse (2006).

4

concerne à tradicional abordagem das psiconeuroses que Freud desenvolvera. Em

decorrência das transformações no espaço social contemporâneo, para o

psicanalista Joel Birman (2006), novas modalidades de dor e de sofrimento se

fizeram valer: daí, por exemplo, um deslocamento ostensivo, claramente observável,

da sintomática associada à categoria da palavra para aquela ligada à dimensão da

ação, denotado de uma forma bastante apropriada pela expressão da “passagem ao

ato”. Tais mudanças teriam sido responsáveis por fundar outras formas de ser das

subjetividades, sendo correlata disso toda uma interpretação médica

intrinsecamente vinculada tanto ao registro da normalidade, quanto ao processo de

patologização da diferença. De qualquer modo, tudo se passa como se na atual

conjuntura a psicanálise fosse convocada a repensar sua operação e a

problematizar sua convencional forma de atuação no cenário social. A comunidade

psicanalítica, assim, parece ser chamada a responder às novas situações de doença

mental e a alargar suas perspectivas de intervenção e de transformação no social.

Para dar conta dessa demanda, entretanto, torna-se necessário que a psicanálise

invista na formulação teórica de sua proposta de saber sendo capaz de equacionar a

extensão de suas proposições às dimensões sociais e políticas da esfera coletiva. O

presente trabalho apresenta uma proposta de vínculo entre psicanálise e teoria

social a partir de duas perspectivas diversas formuladas ao longo da obra de Lacan,

e desse modo quer pensar as consequências éticas e políticas da produção

subjetiva em questão na psicanálise.

Psicanálise como teoria do reconhecimento: a esfera social do psiquismo e a

clínica no plano intersubjetivo

Desde sua tese de doutoramento em 1932, o médico Jacques Lacan

entendera a temática da experiência social como fator principal na elaboração de

uma proposta conceitual para pensar os fenômenos da personalidade e da paranoia.

Numa crítica ao modelo vigente da psicologia na compreensão da personalidade, de

sua origem, vinculada aos aspectos individuais observáveis, Lacan sustentaria sua

formação calcada no tripé do desenvolvimento biográfico, da concepção de si e das

relações sociais (LACAN, 1932/1975). Para ele, o grande desafio da psiquiatria,

como um problema de tópica causal, seria o de fornecer, nesses termos, um modo

teórico de apreensão da experiência da personalidade que fosse deslocado para o

lugar mesmo de sua determinação, a saber, o da sociedade. É preciso notar que

5

essa leitura lacaniana esteve profundamente marcada pela reflexão desenvolvida

por Georges Politzer (1927/1978) a respeito da psicanálise, em que, no objetivo de

constituir os fundamentos de uma psicologia concreta, em oposição ao modelo

clássico da psicologia, valorizou o complexo de Édipo freudiano em detrimento à

metapsicologia a fim de pensar o drama humano como marca da experiência

subjetiva na relação com os outros. É por isso que para Lacan, contra a ideia

psicanalítica de um inconsciente individualizado, se existia no sujeito um

desconhecido que o fundava existencialmente este deveria advir não de outro lugar

senão da incorporação subjetiva, pela identificação, da estrutura social que o

perpassa.

A influência decisiva para Lacan, com efeito, para o estabelecimento da

importância do inconsciente teria sido a da linguística estrutural tal qual incidira na

teoria antropológica de Claude Lévi-Strauss. Entendendo a organização da

experiência subjetiva como dada em torno de estruturas simbólicas de parentesco

(LÉVI-STRAUSS, 1949/1982), o antropólogo atribuiu ao inconsciente definitivamente

o caráter social, de modo que para falar do quadro das patologias do psiquismo, ele

pensaria justamente nas posições da subjetividade frente à sua inserção no espaço

social (LÉVI-STRAUSS, In: MAUSS, 1950/2003). Responsável por tal organização, a

estrutura inconsciente se revelaria sobretudo pela distribuição linguística e

antropológica entre o eu e o Outro. Longe do padrão psicologizante, Lacan pôde

aceitar o conceito de inconsciente de modo a incorporá-lo em sua experiência

teórica. É pensando a linguagem do inconsciente e o desejo em termos estruturais

que o social será tomado como um dado importante e até mesmo fundamental para

a teorização de Lacan do psiquismo e para seu projeto de retorno à Freud.

Mas haveria uma terceira influência decisiva na experiência de Lacan. Esta

consistira na retomada que o psicanalista faz da filosofia dialética de Hegel, tal qual

fora transmitida no cenário intelectual francês principalmente por Alexandre Kojève e

Jean Hyppolite. Conforme Birman (2011a), tratava-se de uma versão pantrágica da

filosofia hegeliana que se utilizando da Fenomenologia do espírito (1807) tomava

como centrais as noções de negatividade, alienação, dialética e reconhecimento. A

estratégia de Kojève (1947/2002), resumidamente, consistia numa leitura

antropológica da fenomenologia que transformava a filosofia hegeliana numa

verdadeira filosofia da práxis humana. O trabalho, enquanto categoria prática,

detinha um papel fundamental no progresso da consciência à sua realização como

6

Espírito Absoluto. Operando sobre a natureza pela negatividade, a consciência

passaria do estado ingênuo da certeza sensível à reconciliação transcendental com

a verdade do objeto. O desejo individual passaria da condição de necessidade, ou

seja, do desejo de objetos naturais, para a condição superior de desejo do desejo,

uma vez que importava menos o vínculo deste com os objetos do mundo e mais a

sua relação de superioridade e de conquista frente às demais consciências. Em

Lacan, essa luta assumiria a dimensão do imaginário, que poderia ser devidamente

reconhecido pelo registro simbólico na análise e a sua verdade trazida à tona pela

interpretação simbólica do signo da negativa. Nesse sentido, a interpretação de Jean

Hyppolite para a Negativa (1925) de Freud seria fundamental, já que ele iria

identificar a estrutura inconsciente ao momento de desconhecimento da consciência,

que poderia passar do “isto eu não pensei” ao isto “eu sempre soube” pela estratégia

de reconhecimento num plano intersubjetivo (HYPPOLITE, 1971, p. 211). Assim, a

incorporação à sua maneira operada por Lacan dessas referências discursivas se

desdobrará principalmente numa acepção da experiência clínica como uma

“maiêutica analítica” (LACAN, 1948/1966, p. 109), de modo que, procedendo por um

diálogo de estrutura dialética, a análise viabilizaria o desvelamento do inconsciente

pela assunção subjetiva do desejo num espaço intersubjetivo. O sujeito terminaria a

análise falando de si – podendo reconstituir historicamente as lacunas

transindividuais do inconsciente desconhecido (LACAN, 1953/1966, p. 257; 1953-

1954/1996, p. 20) – ao analista – ficando demonstrada, assim, a necessidade

dialética de isso se dar num processo intersubjetivo, por assim dizer, entre duas

consciências de si (1954a/1966, p. 373).

As implicações dessa perspectiva para a esfera social devem ser tomadas

como que incorporadas na estrutura prévia inconsciente imaginária da relação entre

o eu e os objetos. Ou seja, o indivíduo se relacionará com o mundo das coisas sob a

marca imagética do complexo das identificações e do estádio de espelho (LACAN,

1938/1984; 1949/1966), submetendo o outro ao papel de rival em sua busca

desejante por objetos de satisfação. Trata-se de relações marcadamente narcísicas,

cuja mediação se dá apenas pela forma ilusória do imaginário. Frente a isso, a

operação analítica buscaria resgatar como base para um diálogo entre sujeitos a

categoria do simbólico, necessária para o reconhecimento do que fora rejeitado

pelas identificações, por exemplo, a carência estrutural do corpo do infante, e

remanejar o imaginário para transformá-lo. O sujeito da psicanálise lacaniana

7

deveria assim advir a partir dessa mediação, única possível, como troca simbólica e

reconhecimento intersubjetivo. Essa passagem, do imaginário para o simbólico,

pode ser definida como que constituinte do programa para a clínica pensado por

Lacan nesse primeiro momento que definimos.

Sujeito e alteridade: a destituição da identidade e a experiência do amor

A partir de 1960, o que vai acontecer no ensino de Lacan, sobretudo com o

seminário sobre A transferência, é a recusa completa da intersubjetividade enquanto

paradigma da operação clínica (LACAN, 1960-1961, p. 9). Ora, se antes o

reconhecimento da verdade do inconsciente se daria diante de um analista que

assume a figura de sujeito, agora seria necessário que ele saísse justamente dessa

posição a fim de que como um objeto opaco e resistente às determinações

simbólicas mostrasse aquilo que para o analisando rompesse com os protocolos de

relação imaginaria entre eu e outro. No primeiro caso, a dimensão ética do encontro

analítico parecia estar regida por um modelo de relação em que as duas

consciências ingênuas podem se tornar consciências de si e se relacionar a partir de

um Outro pleno, daí a reconciliação no simbólico, resultando disso uma espécie de

respeito e de dignidade subjetiva. E nesse sentido, a descrição realizada por Axel

Honneth para tal momento relativamente à teoria do reconhecimento e à ética do

amor na filosofia hegeliana é bastante ilustrativa:

Hegel entendeu a vida ética como um tipo de relação social que surge quando o amor é refinado sob as impressões cognitivas da lei e no interior da solidariedade universal entre os membros de uma comunidade. Uma vez que todos que tem essa atitude podem respeitar ao outro em sua particularidade individual, é nessa atitude que a forma mais avançada de reconhecimento mútuo é realizada (HONNETH, 1995/1992, p. 91).

Ora, no segundo caso, para Lacan não seria por essa via que o sujeito

alcançaria a sua verdade – uma vez que esta estaria obscurecida pelo sintoma –,

mas por um tipo de encontro nu e, portanto, por assim dizer, traumático com um

Real que é radicalmente Alteridade. Estando excluído do campo simbólico, por uma

operação de forclusão originária, regida pelos protocolos do prazer (FREUD,

1925/2007, p. 148; LACAN, 1954b/1966, p. 388), tais conteúdos retornariam na

experiência subjetiva sob a forma da repetição, que como inquietação abalaria as

estruturas narcísicas da subjetividade (FREUD, 1919/2010). A descrição de Lacan

8

para isso segue a indicação do texto O inquietante (1919) de Freud, de modo que irá

afirmar:

Existem momentos de aparição do objeto que nos jogam numa dimensão totalmente outra que aquela dada na experiência e merece ser destacada como primitiva na experiência. Trata-se da dimensão do estranho. Este não será de nenhuma maneira apreendido, como deixando diante de si o sujeito transparente para seu conhecimento. Diante desse novo, o sujeito literalmente vacila, e tudo é colocado em questão na dita relação primordial do sujeito a todo efeito de conhecimento (LACAN, 1962-1963/2004, p. 73-74).

Trata-se de uma modificação na relação, por assim dizer, natural do eu com

os objetos, já que esta pressupõe toda uma disposição do conhecimento a partir da

identidade de um eu narcísico e da referência do simbólico na relação de objeto.

Conforme o psicanalista francês, a partir do encontro subjetivo com um objeto tal

objeto, capaz de carregar consigo a dimensão mortífera da pulsão, de fato, o sujeito

se vê questionado em suas posições até então assumidas no plano do saber, de

modo que outra posição da subjetividade é exigida (LACAN, 1964/1973, p. 162),

para além daquela dada por um Mesmo. É por isso que Lacan irá caracterizar o

sujeito ao fim da análise como:

Ser do não-ente: é assim que advém Eu [Je] como sujeito que se conjuga da dupla aporia de uma substância verdadeira que se abole por seu saber e de um discurso no qual é a morte que sustenta a existência (LACAN, 1960/1966, p. 802).

A pergunta que fazemos, portanto, é, como o reconhecimento do sujeito

nessa experiência de confrontação com o objeto da pulsão pode, por fim, intervir

sobre a realidade social que o perpassa? Se formos retomar a perspectiva aqui

apenas indicada de Honneth, sob o ponto de vista da ética da relação de amor numa

coletividade, poderíamos estender essas questões para: como o encontro subjetivo

com um objeto imerso no amor de transferência pode, por assim dizer, a partir daí

influenciar na formação de um sujeito capaz de operar vínculos para além de uma

experiência da identidade? Como se daria sua ligação com o outro pela formulação

de sua autonomia como diferença radical?

A hipótese dessa experiência do amor para além da estrutura narcísica quer

propor a possibilidade da constituição de uma relação de objeto que tome o outro

como diferença não submissa aos protocolos autoidênticos dado por um eu. A

9

presença do outro como manifestação daquilo que no objeto resiste aos protolocos

simbólicos de síntese da fantasia, nesse sentido, deve recair sobre o sujeito da

relação como desvelamento de um núcleo de indeterminação na alteridade e em seu

próprio ser subjetivo. De modo que seria somente por meio de uma tal experiência,

de um reconhecimento da falha simbólica do Outro e de uma travessia da fantasia,

que o sujeito poderia se estabelecer numa relação com a alteridade que independe

da constatação de sua ineficácia relativamente à pretensão de completude da

relação sexual. É por isso que Alain Badiou, ao discorrer sobre o famoso aforismo

de Lacan: “não há relação sexual”, irá dizer:

O amor é alguma coisa que vem ao encontro dessa não relação. [...] Isso significa acima de tudo que o amor é uma operação articulada com um paradoxo. O amor não alivia esse paradoxo, mas lida com ele. Mais precisamente, ele faz de sua verdade o próprio paradoxo (BADIOU; TRUONG, 2009, p. 28; BADIOU, In: ZIZEK, 2003, p. 56).

A partir dessa compreensão, na destituição do círculo de identidade fundada

pelo objeto fantasmático e na revelação da falta constitutiva no Outro, a inserção do

sujeito no espaço social pode acontecer, de fato, pela produção singular da

subjetividade e pelo acolhimento da diferença na relação com a alteridade.

Referências

BADIOU, A. What is love?. ZIZEK, S. (org.) Jacques Lacan: critical evaluations in cultural theory. Londres e Nova Iorque: Routledge, v. 4, 2003.

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10

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A Produção da Marca-Mancha (anormalidade) na Escola.

Bruna Pontes (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP)

Prof. Drª Anelice Ribetto (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP)

RESUMO:

O presente ensaio é um desdobramento do “Projeto de Pesquisa Diferenças e

Alteridade na Educação: saberes, práticas e experiências (inclusivas) na rede de

ensino pública em São Gonçalo”.1 Faz parte do Projeto de Iniciação Cientifica “Quando

o olhar mancha: a marca da anormalidade (na escola) através dos laudos” e se

apresenta como parte da Monografia de final do Curso de Pedagogia do mesmo nome,

ainda em andamento. Propõe uma primeira escrita como exercício de pensamento

sobre a produção da anormalidade no espaço escolar, perguntando-se por que se

produz essa marca em alguns sujeitos e quais são as características que os agrupam

no discurso da anormalidade. Discute conceitos como anormalidade, diferença,

relações na diferença e principalmente formas de produção da subjetividade na tensão

da relação normal-anormal. Este exercício levou-me a discutir o paradigma médico

clínico como fonte de cura, questionando-me acerca do olhar sobre a diferença, do

controle e homogeneização dos alunos e da necessidade de padronização. Pensando

a história da educação especial (na perspectiva médico-clínica) enquanto campo de

saberes que funciona como mecanismo de solução para a anormalidade, como elo de

exclusão e classificação. A temática insere-se no campo de discussão da pedagogia

das diferenças e aborda a construção da escola enquanto espaço de subjetivação e

as relações que produzem os chamados anormais. A pesquisa aborda a construção

de um dispositivo pedagógico – os laudos médicos - que reforça a marca da

anormalidade nos sujeitos definidos como diferentes. Dessa preocupação constante

com as diferenças e não uma simples e continua obsessão pelos diferentes, pois “de

                                                            1 Projeto coordenado pela professora Anelice Ribetto na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro que tem como principal objetivo estudar as formas como se materializam as chamadas políticas da inclusão no cotidiano escolar e os efeitos destas nas relações pedagógicas. Bruna Pontes é Bolsista de Iniciação Cientifica da UERJ neste projeto.

fato, o problema não está em saber que e quais são as diferenças, ou qual é a “melhor”

definição de “diferenças”, mas em como inventamos e reinventamos,

quotidianamente, os outros “diferentes”, a alteridade “diferente”. (SKLIAR, 2005, p.

53). Presos no paradigma da normalidade reproduzimos uma forma padronizada de

ver-estar-pensar-aprender o mundo. Na escola reforçamos a uniformização como se

todos fossem ser e aprender da mesma forma, ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

Os que não conseguem fazê-lo de forma igual e dentro das normas são classificados

e rotulados de anormais.

PALAVRAS CHAVE: diferença, normalidade, paradigma médico-clínico.

Futucando bem 

Todo mundo tem piolho 

Ou tem cheiro de creolina 

Todo mundo tem um irmão meio zarolho 

Só a bailarina que não tem 

Nem unha encardida 

Nem dente com comida 

Nem casca de ferida 

Ela não tem. (Ciranda da Bailarina Chico Buarque) 

Não parece que a Escola2 vem se preocupando com as relações com o “outro”,

mas sim e apenas em diferenciar, classificar e rotular os chamados diferentes. Ou

seja, a Escola, em geral e como instituição homogeneizadora não tem pensado esse

“estar juntos na educação” (Skliar, 2005), mas apenas, resolver a “questão do outro”.

Os discursos sobre a inclusão ou as propostas encontradas para incluir os sujeitos

ditos diferentes se constroem, principalmente, idealizando a convivência (entre) como

uma relação harmoniosa, sem atritos. Porém muitas vezes essa suposta inclusão vem

mascarada por uma forma determinada de entender a convivência. Um discurso vazio

e frio associado apenas à tolerância ou aceitação. "E a convivência é ‘convivência’

porque sempre há - inicial e definitivamente - perturbação, intranquilidade, conflito,

turbulência, diferença, afeição e alteridade". (SKLIAR, 2011, p. 31). A busca obsessiva

pela tranquilidade e harmonia entre alunos e professores não contempla a

multiplicidade de existências do e no espaço escolar, não permite uma convivência.

                                                            2 Chamaremos de Escola com letra maiúscula a instituição moderna como generalidade discursiva, mas não descartarei as práticas de resistência que acontecem nas escolas, aí propositalmente com letra minúscula.

Como nos diz Skliar "a soma presente de presenças, mas não de existências" 3Nos

preocupamos em incluí-los (aos ditos diferentes), mas não nos preocupamos em

discutir a ideia de normalidade construída socialmente e encarnada em cada um de

nós, nos subjetivando e produzindo um olhar que marca e mancha (SKLIAR 2009)

esse sujeito. Pensamos nas nomenclaturas e nas classificações. Nos observamos e

policiamos quanto aos nossos olhares, nossos gestos, para não dizer “essas” ou

“aquelas” palavras para esconder os conflitos existentes entre nós.

A pesquisa contribuiu para questionarmos nossas práticas e percepções

acerca da normalidade/anormalidade, das diferenças, da relação com o outro,

entendida como relação entre, sendo em especial o conceito de experiência

(LARROSA, 2002) do qual me utilizei nessa pesquisa para pensar e experimentar

intensamente o caminho. É justamente pensando(nos) na experiência

(experimentando) que entremos no campo da pesquisa. Com o cuidado de ouvir e

estar disponível para enxergar o que a correria do dia-a-dia nos impossibilita de

perceber... ficar atentos e problematizar o obvio. É ouvir-nos, pensar sobre o que sinto

e o que faço sentir, e também sobre o que acontece no encontro com o outro. É esse

encontro que vem me possibilitando um novo pensar, não um certo pensar, mas um

pensar diferente, um questionamento dos discursos sobre as deficiências, sobre as

ditas “verdades” sobre os outros.

A metodologia utilizada nessa pesquisa não corresponde à construção

tradicional do método de pesquisa no qual inicialmente definem-se os passos para

posteriormente efetivar o caminhar. Obviamente que o incomodo inicial da escrita

corresponde a uma pergunta, o despertar de uma questão, um problema, e que

implicitamente ninguém parte do zero, mas a construção metodológica surge do

encontro, nas relações, no efetivo trânsito do campo de pesquisa considerando as

questões e inquietações que surgiram no rascunho desse trabalho. Poderíamos dizer

que acompanhamos o processo de construção da pesquisa e que, esse

acompanhamento desenha-se, experimenta-se como uma cartografia.

Como será que pensamos a diferença? O que aconteceu para que ousássemos

rotular- julgar as diferenças como boas ou ruins? Compartilho a algumas ideias de

Clímaco (2010) que, inspirada em Skliar, propõe em virar o espelho para o nós e nossa

                                                            3 SKLIAR, Carlos. Op., Cit., p.32.

busca incessante pela normalidade, repensar o lugar que reservamos a nós e aos

outros. Deixar de pensar, caracterizar e esmiuçar a dita anormalidade para

problematizar e desconstruir a normalidade. De que forma temos olhado e marcado?

Conhecer e discutir a produção da normalidade nos possibilita transitar um

outro caminho, uma outra forma de estar e de pensar o mundo. Talvez, de olhar sem

manchar, sem impedir, sem assassinar. “Educar la mirada también es um ejercicio de

repensar y reelaborar cómo miramos a quien miramos” (SKLIAR, 2009, meio digital).

Mas para educar esse olhar é preciso conhecer como o constituímos até agora, como

o naturalizamos, a quem chamamos de “outro” e que manchas temos projetado sobre

eles.

Diz Climaço –inspirada em Davis (1995)-

Considerar que o normal é construído e não um dado natural é dizer que esse conceito nem sempre existiu, ou pelo menos não como se apresenta hoje. Temos a ideia de que algum tipo de norma e de normalidade sempre existiu. (2010, p. 21).

E historicamente a diferença tem sido conservada por um conjunto de

normas constituídas. Uma relação de poder que alimenta a diferenciação e a

construção do juízo: do bom e do ruim, do apto e do inapto, do sadio e do doente.

Assim foi tratada a diferença –atribuída à deficiência-.

A palavra norma etimologicamente surge do latim norma e se refere a um

esquadro, uma régua usada por carpinteiros para verificar se as peças de madeira

estavam em ângulo reto4. Quando as peças de madeira não estavam retas, dizia-se

então que elas estavam anormais (com o prefixo grego de negação a-). Parte desse

processo histórico de construção da norma, da normalidade contrapõe-se a

anormalidade, pois na construção desse padrão as diferenças delimitam não somente

quem está fora dele, mas principalmente quem está dentro do limite da normalidade,

construindo uma forte relação de poder e superioridade.

Podemos então pensar que o conceito da norma, tal qual o percebemos hoje,

emergiu no contexto da modernidade, pela prática de vigilância e de controle

constante. Para isso utilizou-se das ciências como forma de legitimação e aceitação

de um modelo “normal”. Na medida em que nos transformamos em agentes da

                                                            4 Clímaco, 2010.

normalização, passamos a exigir para nos e para os outros uma adequação aos

padrões. Para Foucault a disciplina fabrica corpos submissos e adestrados, corpos

"dóceis". “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de

utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)"

(FOUCAULT, 2010, p.133 e 134).

Foucault também nos chama a atenção para a construção histórica das

patologias do corpo, que está diretamente ligada ao campo político e a história das

sociedades e mesmo que hoje não nos façamos valer dos castigos físicos ainda nos

utilizamos de formas sutis de ordená-los, corrigi-los, doutriná-los com objetivo de

dominação e submissão.

A construção discursiva em torno desses sujeitos os descaracteriza enquanto

indivíduos pensantes, com ideias e desejo. Para a sociedade eles “não falam por si,

são objetos da fala, sujeitos de um descaso que não lhes pertence” (CLÍMACO, 2010

p.32). Um corpo incompleto, incapaz, imperfeito, inacabado. Sua existência resume-

se a deficiência entendida como falha. A descoberta do corpo como objeto de poder

trouxe a modernidade a importância da norma, a necessidade de padronizar para

progredir – “o corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde,

se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT 2010, p. 132).

Inicialmente pensava-se a Escola como fonte de controle como um mecanismo

de coerção sem folga, sem possibilidades. Posteriormente a escola foi pensada como

objeto, enquanto linguagem e eficácia, a repetição como forma de padronização. Por

fim a modernidade apresentou uma escola ininterrupta. Essa nova metodologia que

pretende domesticar e docilizar os corpos é chamada por Foucault de “disciplina”.

“Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos

exércitos, nas oficinas também” (FOUCAULT 2010, p. 133). A disciplina, portanto, é

uma das técnicas da modernidade perpetuadas para a construção e manutenção do

padrão. Os regulamentos e normas vieram posteriormente apenas para delimitar o

espaço da normalidade... “o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas

parcelas da vida e do corpo [...] e desses miuçamentos, sem dúvida, nasceu o

humanismo moderno” (FOUCAULT 2010 p.136).

O olhar da normalidade nos obriga a incessante e cansativa busca pelo padrão,

pois não há lugar para o meio termo, ou se está dentro ou fora dele, ou somos normais

ou somos anormais. Não há tensão. Não há possibilidade histórica que nos permita

ficar sobre a linha fronteiriça da norma, da normalidade. Clímaco nos atenta para a

necessidade de afirmação dessa fronteira como forma legítima de delimitar “o que é

aceito e o que é marginalizado, o que é desejado e o que deve ser evitado; quem pode

falar e quem é sentenciado pelo nosso olhar soberano: o olhar da norma” (2010, p.34).

E assim, o sujeito anormal “El individuo a corregir, paradójicamente

denominado también como el incorregible […] quem demonstrou-se ser incapaz de

aprender [...] perfilándose en el interjuego entre la familia, la escuela, el taller, la

policía, la parroquia; contemporáneo a la valoración del espacio cerrado al servicio de

la domesticación y el adiestramiento de los cuerpos”(VALLEJOS, 2009, p. 97-98).

Na Escola isso não é diferente, pois ela faz parte dessa rede de verdades e

saberes. Afinal é uma instituição social filha da modernidade. E não é difícil identificar

nos espaços escolares padrões e normas que buscam incessantemente dominar e

controlar os alunos, professores, pais e etc. “Um local heterogêneo a todos os outros

e fechado em si mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 137). Não distante dos modelos de

conventos e de estrutura semelhante aos das prisões. Os encarceramentos, as

clausuras, o internato se assemelham no aparelho da disciplina como uma das

ferramentas para o controle e domesticação.

O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração (FOUCAULT, 2010, p.138).

Não é despretencioso que os espaços escolares sejam construídos a fim de

possibilitar a vigilância e manutenção da ordem. A possibilidade de observação

constante facilita a aplicação da disciplina. Dentro das salas de aula a distribuição de

alunos obedece à clara regra de aproximar da professora os mais bagunceiros ou os

que potencialmente podem causar problemas.

Reproduzimos ainda hoje esse sistema de compensações e distinções. Onde

cativamos os lugares dos que merecem (ou os que têm futuro) e os que – segundo

nosso olhar que marca-mancha - não correspondem às expectativas e não progridem

como esperado.

Algumas outras características da Escola nos alertam quanto à permanência

da norma: a organização das carteiras, a localização da mesa da professora, a

uniformização dos alunos, a ordem de entrada, a organização em filas, a vigilância

constante, entre outros. Torna-se fundamental entender a construção histórica desse

espaço, bem como problematizar a permanência desses aspetos normalizadores que

delimitam o espaço da normalidade. Uma representação ideológica da sociedade,

fabricada e mantida pelas relações de poder.

E talvez voltar o espelho para nós não seja tão tranquilo ou simples como

possamos pensar. Posto que constitui-se em uma nova possibilidade de olhar o

espaço escolar; um novo olhar carregado de experiências (LARROSA), de emoção,

que cultiva a arte do encontro, que nos provoca, nos derruba, nos enverga e que nos

transforma. Uma nova leitura interna, sem palavras ... leitura de pensamentos, de

coisas não ditas, de atitudes impensadas. Um olhar que nunca está acabado,

terminado, que não se bloqueia frente ao medo. O medo de ser politicamente

incorreto, de não dizer palavras “feias” que nos possa rotular como cruéis e

insensíveis. A leitura de um aforismo “uma leitura que força o olhar para trás, não para

adiante; uma leitura destemperada, desnuda, tão irreverente quanto impossível”

(SKLIAR, 2012, p.29).

A educação especial tem passado por fortes mudanças paradigmáticas

tensionadas pela relação com o campo das políticas públicas. Uma mudança

significativa que lança luz sobre a necessidade de minar os processos de afastamento

da convivência em sociedade. Por muito tempo o isolamento social e posteriormente

os cuidados médicos implicaram uma visão borrada sobre a deficiência.

Na história da educação especial percebemos o reconhecimento jurídico

gradativo dos direitos desses sujeitos. Porém essa mudança de olhar veio sobre o

viés médico, que inicialmente os classificava para sentenciar os intelectualmente

superdotados, os que possuíam possibilidade de convívio em sociedade, os treináveis

e os que precisariam de cuidados eternos, os incapazes. Parâmetros da medicina que

referenciaram e ainda referenciam a produção de normalidade. Essas pessoas

deixaram de ser encarceradas para serem consideradas inaptas para o pleno

desenvolvimento em sociedade.

A prática que vemos hoje nas escolas é decorrente de um caminho histórico,

um hábito crescente de transpor as dificuldades da vida para problemas orgânicos,

que, aparentemente, podem rapidamente ser diagnosticados e tratados. De certa

forma traz a segurança de uma resposta concreta, afasta o medo e a incerteza das

impossibilidades.

A medicalização da vida de crianças e adolescentes articula-se com a medicação da educação na invenção das doenças atribuídas ao fracasso escolar. A medicina afirma que os graves – e crônicos- problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, medicina, seria capaz de resolver; Cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização. (MOYSÉS e COLLARES, 2011, p.3).

Nesse estreito espaço de normalidade, onde nega-se qualquer possibilidade

de diferenças, não constitui-se apenas quem encontra-se fora dela, mas também

quem está dentro, em uma relação de poder que alimenta-se das marcas que se

evidencia no encontro com o outro.

Mesmo que hoje os espaços físicos de exclusão “estejam em processo de

extinção, por uma série de lutas políticas travadas” (CLÍMACO, 2010, p. 36), ainda

continuamos delimitando espaços que impedem, nomeiam e rotulam esses sujeitos,

o lugar da anormalidade. Sendo assim a discussão do paradigma médico clínico

fundamental para o debate no campo da educação especial. A construção de um

paradigma clínico para justificar o desvio. Uma prisão, um encarceramento, um rótulo,

um laudo ... que aprisiona as possibilidades e as singularidades.

E é esse um dos objetivos dos laudos na escola “de acalmar os conflitos que

um aluno que não-aprende-na-escola gera” (MOYSÉS, 2011, p. 10). Um rótulo, uma

marca que o diferencia de “mim”, que justifica para todos os motivos que o leva a ser

diferente de “nós”. Um triângulo do poder, direito e verdade como nos disse Foucault.

Uma produção de verdade que se perpetua pelo silenciamento de outras verdades.

Uma mancha.

A medicina tomou para si, como seu objeto, o conhecimento do homem

saudável, embutindo em si mesma a autoridade de lançar o olhar sobre o homem que

entende doente e legitimando sua busca pela cura das doenças. Apontando o que é

saúde e doença a medicina enraizou e instrumentalizou sua intenção no campo da

vida social. “Tomando para si a tarefa de definir o homem modelo, a medicina

constituiu-se, por sua vez, em modelo epistemológico para as ciências do homem”.

(MOYSÉS, 2001, p. 152).

Tudo que está fora da norma, o que não alcança o estipulado, não atende as

necessidades é transformado em doença. O mau comportamento é um dos sintomas

tomados pela medicina como características de infinitos transtornos e distúrbios.

Quando limitamos nosso olhar sobre o outro, quando negamos nossos sentimentos,

não os enfrentamos ou os questionamos, quando restringimos sua presença ao

sentimento de pena e aceitação, reforçamos voluntariamente o pré-conceito que

construímos e constituímos em nós ao longo dos tempos. Muitas das vezes

silenciamos sua voz com a nossa presença e insistência em manchá-los com nosso

olhar e nossas atitudes. Assim o fazemos quando simplificamos essa relação tensa a

uma rápida e eficaz solução que falsamente pretende dar conta desse encontro.

Encontro inoportuno, que por vezes negamos, talvez porque assim tenhamos a

sensação de que podemos seguir adiante, manter o curso previsto.

E o laudo, dispositivo que reforça o paradigma médico clínico, uma folha, um

pedaço de papel, um lugar de discurso, um espaço em que vozes ecoam e

sentenciam, é ao mesmo tempo o lugar em que a voz da normalidade se mantém.

Uma palavra que mancha o outro.

A partir deste ensaio tentamos experimentar e sistematizar um exercício de

pensamento inicial sobre a produção da marca-mancha (anormalidade) na Escola e

trazer publicamente os efeitos de um trabalho de iniciação cientifica em andamento

no intuito de contribuir não mais para, apenas, uma discussão “obsessiva com os

diferentes” (SKLIAR, 2005), mas politicamente preocupada com a problematização da

normalidade.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

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SKLIAR, Carlos. Experiências com a palavra; notas sobre linguagem e diferença, Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.

VALLEJOS, Indiana. La categoria de normalidad: uma mirada sobre viejas y nuevas formas de disciplinamiento social. In: ANGELINO, María Alfonsina. Discapacidad e Ideologia de La normalidad: desnaturalizar el déficit. María Alfonsina Angelino y Ana Rosato (orgs). 1ª ed. Buenos Aires: Centro de Publicaciones Educativas y Material Didáctico, 2009.

UMA ANÁLISE DA DISPENSA PÚBLICA DO METILFENIDATO

NO BRASIL: O CASO DO ESPÍRITO SANTO

Luciana Vieira Caliman (Programa de Pós-graduação em

Psicologia – Universidade Federal do Espírito Santo);

Nathalia Domitrovic

Palavras chave: Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade;

Metilfenidato; Assistência Farmacêutica.

QUADRO CONCEITUAL

Comercializado no Brasil sob os nomes Concerta® ou Ritalina®, o cloridrato de

metilfenidato é o psicoestimulante mais consumido no mundo, superando todos os

outros somados (ITABORAHY, 2009). Atualmente encontra-se disponível no

mercado em apresentações de liberação imediata, cujo efeito é de curta duração, ou

de liberação prolongada, que se mantém durante mais tempo no organismo. O

metilfenidato é o principal medicamento prescrito para o tratamento do Transtorno

do Déficit de Atenção/Hiperatividade – TDAH, sendo indicado também para

narcolepsia. (ANVISA, 2009; LIMA, 2005; CALIMAN, 2006; ITABORAHY, 2009).

Frequentemente descrito como uma desordem global do comportamento, o

TDAH se caracteriza pela tríade sintomatológica composta por desatenção,

hiperatividade e impulsividade (BARKLEY, 1998; ROHDE et al, 2004; FARAONE,

2003). Embora os sistemas classificatórios atualmente utilizados, CID-10 e DSM-IV,

apresentem critérios semelhantes para o diagnóstico, há algumas diferenças que

merecem especial atenção. A CID possui critérios mais exigentes, tendo como

condição para o diagnóstico, por exemplo, a existência mútua dos quadros de

desatenção e hiperatividade. Por sua vez, o DSM IV traz a possibilidade da

classificação em três subtipos: o TDAH com predomínio de sintomas de desatenção;

TDAH com predomínio de sintomas de hiperatividade/impulsividade; TDAH

combinado.

Apesar de ser aclamado como um dos diagnósticos psiquiátricos mais

estudados atualmente no campo biomédico (BARKLEY, 1998; ROHDE et al, 2000,

2004; FARAONE, 2003), o TDAH também tem sido descrito como um diagnóstico

controverso, a espera de uma melhor definição (CONRAD, 2006; DUPANLOUP,

2004; RAFALOVICH, 2002; ROSE, 2006; ROSEMBERG, 2002; SINGH, 2006,

2007). Dados sobre o número de sujeitos diagnosticados nos últimos anos e o

alarmante aumento do consumo de metilfenidato em várias regiões do mundo

deflagram a necessidade da análise cautelosa acerca do diagnóstico.

Em 1998, o Instituto Nacional de Saúde Americano (National Health Institute –

NHI, 1998) publicou um documento intitulado Consensus Development Statement on

Diagnosis and Treatment of Attention Deficit Hyperactivity, que faz importantes

considerações sobre o TDAH e seu tratamento. O documento revela que, embora

haja um grande volume de pesquisas direcionadas para o desenvolvimento de

medicamentos e intervenções psicossociais, são raros os estudos que investigam os

riscos e benefícios em longo prazo de tais intervenções. Neste sentido, não é

possível afirmar que tipos de impactos provocam nos desempenhos educacionais e

profissionais, queixas principais dos indivíduos com TDAH terapêuticas utilizadas. O

documento do NHI atesta ainda que pacientes com problemas diversos de

desatenção e não diagnosticados com TDAH respondem positivamente ao

medicamento. Neste caso, alerta-se para o risco do uso não-médico do

metilfenidato, fenômeno que tem sido comum entre jovens universitários de diversos

países, inclusive no Brasil (ANVISA, 2009; BARROS, 2011).

O tratamento medicamentoso do TDAH vem sofrendo transformações, quanto

à sua complexidade e duração. Até o ano 2000, a maioria das crianças

diagnosticadas com TDAH era tratada com medicamentos de liberação imediata,

apenas no período escolar e durante 1 ou 2 anos. Atualmente, muitas crianças já

fazem uso das drogas de liberação prolongada, de forma a permanecer sob seu

efeito durante e depois o período escolar. Segundo Parens e Johston (2009), o

posicionamento recente de um número considerável de especialistas se centra no

uso cada vez mais precoce da medicação, “pelo tempo que for necessário” (p. 2,

tradução nossa), de forma que a tendência é que as crianças diagnosticadas no

momento atual recebam doses muito mais altas do que as diagnosticadas no

passado.

Ao mesmo tempo, verifica-se que o diagnóstico vem se expandindo em várias

regiões do globo. Em uma pesquisa recente, o US Centers for Disease Control

estimou que aproximadamente 4.600.000 (8,4%) das crianças americanas, entre 6 a

17 anos, em algum momento de suas vidas receberam o diagnóstico de TDAH.

Entre elas, 59% estão fazendo uso de algum medicamento. A pesquisa indica que

tem crescido o número de pré-escolares sob medicação, principalmente nos EUA,

onde 0,44% destes já estão recebendo tratamento medicamentoso (PARENS &

JOHNSTON, 2009). Entre a população adulta o TDAH vem também ganhando

destaque: a prevalência do transtorno em 4% dos adultos nos EUA levou ao

reconhecimento oficial do TDAH enquanto um dos problemas mais graves da saúde

pública americana (CALIMAN, 2006).

No Brasil, o uso de metilfenidato também tem crescido ao longo dos anos. Em

2000, o consumo nacional foi de 23kg. Segundo documento da ONU, apenas seis

anos depois, o Brasil fabricava 226kg e importava outros 91kg (LIMA, 2005). O

medicamento vem também sendo ponto de pauta constante nos boletins da Agência

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que lançou recentemente um documento

dedicado exclusivamente a ele. A publicação mais recente da ANVISA sobre o

metilfenidato demonstra que o seu consumo continua a crescer: o aumento

percentual de caixas consumidas, somente por via particular, foi de 28,2% de 2009 a

2011. Já o aumento de miligramas alcançou a taxa de 74,6%, indicando que este

consumo tem se dado em doses cada vez maiores também no Brasil (ANVISA,

2012).

No que tange às políticas de assistência farmacêutica voltadas para o TDAH,

alvo deste trabalho, é importante ressaltar que o Ministério da Saúde não financia a

dispensa do metilfenidato no âmbito do Sistema Único de Saúde. No entanto, no

Espírito Santo, o metilfenidato está incluído na Relação Estadual de Medicamentos

Essenciais e Excepcionais – REMEME, desde 2007 (ESPÍRITO SANTO, 2007).

Embora seja o psicoestimulante mais consumido no Brasil e no mundo, a

maior parte dos dados e pesquisas sobre o metilfenidato se refere à realidade de

outros países, principalmente dos EUA. Além disso, a literatura científica brasileira

sobre o medicamento não diferencia o consumo via particular de sua dispensação

pública. Assim, dado o caráter polêmico e controverso do TDAH e seu tratamento

medicamentoso, acredita-se que o crescimento na produção e no consumo do

metilfenidato no Brasil, em tão pouco tempo, torna imprescindível a compreensão

dos usos do medicamento em território nacional, principalmente no que diz respeito

à sua dispensação pelo SUS. Espera-se, portanto, que as análises oferecidas sobre

o Espírito Santo possam estimular a investigação das Políticas Públicas da

Assistência Farmacêutica voltadas para o TDAH em outros estados e municípios.

OBJETIVOS

Este trabalho resulta de uma pesquisa realizada entre 2010 e 2012 que visou

investigar a dispensa pública do cloridrato de metilfenidato pelo Sistema Único de

Saúde brasileiro (SUS). Analisou-se principalmente o caso do estado do Estado do

Espírito Santo, que, desde 2007, incluiu o metilfenidato em sua Relação Estadual de

Medicamentos Essenciais e Excepcionais - REMEME. Para tanto, foi investigado o

processo de inclusão do medicamento nas políticas públicas de assistência

farmacêutica do Estado e como esta inclusão tem sido avaliada pela gestão da

assistência farmacêutica, após 4 anos de dispensação. Além disso, foi traçado o

perfil da dispensação pública do metilfenidato no Espírito Santo, identificando as

variações regionais no que se refere tanto à demanda quanto à retirada do

medicamento. Tal investigação é fruto de um projeto de pesquisa ainda em

atividade, que visa criar subsídios técnicos e teóricos para a avaliação e análise das

políticas públicas de saúde voltadas para o TDAH, especialmente no que tange as

Políticas da Assistência Farmacêutica.

METODOLOGIA

A pesquisa em questão é de cunho predominantemente qualitativo. Para uma

melhor compreensão do panorama brasileiro das Políticas Públicas de Assistência

Farmacêutica voltadas para o TDAH, foi construído um mapa da dispensação

pública do metilfenidato no país, utilizando-se de informações coletadas por meio de

ligações telefônicas junto às Assistências Farmacêuticas estaduais. As ligações

tinham como principal objetivo esclarecer sobre a existência de uma relação

estadual de medicamentos incluídos na dispensação pública e, em caso de resposta

positiva, se o metilfenidato encontrava-se entre os elencados.

Com o intuito de investigar o processo de inclusão do metilfenidato na

REMEME e, a partir de então, o posicionamento da Gerência da Assistência

Farmacêutica do Espírito Santo (GEAF) sobre sua dispensação, foram realizadas

entrevistas semi-estruturadas com 3 profissionais da GEAF. Todas as entrevistas

foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas para então serem analisadas.

Em seguida, mapeou-se as características da demanda e da dispensação

pública de metilfenidato no Estado do Espírito Santo. Para tanto, foram coletados os

seguintes dados: número de abertura de processos de solicitação, entre 2009 e

2011, nas oito Farmácias Cidadãs Estaduais do Espírito Santo; quantidade média de

comprimidos dispensados por mês em cada Farmácia; gasto anual da secretaria

estadual de saúde com o medicamento, de 2008 a 2011.

Após o tratamento e análise dos dados, os resultados da pesquisa foram

apresentados, discutidos e validados em reunião com a GEAF e coordenadores das

8 farmácias cidadãs do Estado do Espírito Santo. Esta pesquisa se realizou sob

aprovação do Comitê de ética com Seres Humanos da Secretaria Estadual de

Saúde do ES, conforme a Resolução nº 196/96 do CNS.

RESULTADOS

A Dispensa Pública do Metilfenidato no Brasil

No primeiro semestre de 2010, dez das 27 Assistências Farmacêuticas

Estaduais do País não possuíam listagens próprias de dispensação pública de

medicamentos, adotando, portanto, as definições nacionais. O Espírito Santo, por

sua vez, se destaca entre os 11 estados que possuem elencos próprios de

medicamentos, estando, ainda, entre os únicos quatro que incluem o metilfenidato.

É importante considerar que tais dados não trazem informações conclusivas

sobre a dispensa pública do metilfenidato no Brasil, mas indicam como estão

organizadas as Assistências Farmacêuticas estaduais. O fato de o metilfenidato não

estar padronizado em certos estados não garante que a dispensa pública do mesmo

não ocorra. Tal afirmação se explica, em parte, pela possibilidade da existência de

listagens municipais que contemplem o medicamento. O Estado de São Paulo, por

exemplo, possui lista de medicamentos estaduais, mas não inclui nela o

metilfenidato. A cidade de Santos, no entanto, dispensa o medicamento a nível

municipal (SANTOS, 2009). Além disso, mesmo quando o medicamento não é

incluído nas listas estaduais e municipais, a dispensa pública pode ocorrer via

abertura de processos judiciais pelos usuários, para a solicitação de medicamentos

não padronizados. As entrevistas realizadas revelaram que no Espírito Santo, antes

de 2007, a demanda pelo metilfenidato era motivo freqüente de processos judiciais

impetrados contra o Estado, sendo este um fator motivador para a inserção do

medicamento no elenco padronizado.

Além dos processos judiciais, a entrada do metilfenidato na REMEME foi

também impulsionada pela solicitação formal de um médico especialista. Diante

destas demandas e após uma revisão da literatura sobre as evidências científicas

que aprovavam o uso médico do metilfenidato, o medicamento passou a constar na

lista de medicamentos estaduais, na medida em que a comissão responsável

acreditava que, “tendo o diagnóstico bem feito, é um recurso terapêutico que pode

melhorar, promover qualidade de vida para ela [criança]” (Entrevistado 1).

No entanto, alarmada com o aumento de solicitações do medicamento e com

problemas nos critérios de sua dispensação, dois anos após sua inclusão na

REMEME, a GEAF decide rever o protocolo clínico que regularizava a dispensa

pública do metilfenidato. O protocolo regularizador da dispensação pública do

metilfenidato no Espírito Santo encontra-se, portanto, em sua segunda versão,

homologada em setembro de 2010 (ESPÍRITO SANTO, 2010). O primeiro protocolo

data de 2007, ano em a REMEME entrou em vigor. Entre as motivações para a

revisão do protocolo, os entrevistados apontam, ainda, o grande número de

processos solicitando o metilfenidato de liberação prolongada, em detrimento do de

liberação imediata, além de uma expressiva demanda por parte de adultos.

A leitura comparativa entre os dois protocolos evidencia um movimento de

abertura dos critérios de dispensação do medicamento, principalmente no que se

refere à população atendida: o CID F90.1 (Transtorno hipercinético de conduta) é

incluído junto ao F90.0 (TDAH) na classificação de usuários habilitados a solicitarem

o medicamento, assim como usuários adultos passam a ser também aceitos, já que

antes o medicamento era dispensado somente para o público infantil. Além disso, no

segundo protocolo, o acompanhamento psicoterápico deixa de ser exigência para a

retirada do medicamento, decisão motivada, segundo um dos entrevistados, não

pela negação de sua importância, mas pela dificuldade de acesso à psicoterapia por

parte dos usuários na rede pública.

No novo protocolo, as posologias de duração prolongada passaram a ser

também padronizadas, mas sob exigências mais rígidas para sua dispensação,

como comprovação da dificuldade de adesão ao tratamento de liberação imediata.

Se o paciente fez uso do metilfenidato 10mg durante 3 meses com a posologia de pelo menos 3 tomadas diárias e este indivíduo apresentou dificuldade de adesão ao tratamento, com o comprometimento da eficácia, comprovado por laudo médico, a gente entende que está justificado que ele faça uso de um medicamento que permita menos tomadas, que facilita a adesão. Fora isso não. A gente entende que [o uso do medicamento] fica mais racional desta forma (Entrevistado 1).

Assim, o novo protocolo, embora mais abrangente em termos de público

atendido e posologias disponíveis, sugere, por outro lado, uma tentativa de maior

regulação da dispensação, principalmente diante da constatação do aumento

“explosivo” dos pedidos do medicamento de liberação prolongada.

Tanto as entrevistas realizadas quanto contatos posteriores com a gestão da

GEAF demonstraram que, no Espírito Santo, a dispensação pública do metilfenidato

é acompanhada de incertezas e tensões. Ao falar da situação paradoxal do

metilfenidato para a assistência farmacêutica, um profissional da CEFT afirma: “ruim

com ele, pior sem ele”. O medicamento é descrito como um recurso importante para

o tratamento do TDAH, demandado pelas associações médicas e usuários, mas ao

mesmo tempo é envolto em polêmicas que alertam para o perigo de seu uso isolado,

não acompanhado por outras medidas que abrangeriam a rede pública de saúde e

educação. Por outro lado, o próprio diagnóstico de TDAH é descrito como complexo

e incerto.

O metilfenidato se constitui enquanto objeto de preocupação para a

Assistência Farmacêutica capixaba, que atesta a necessidade de criação de

dispositivos de regulação da dispensa e acompanhamento de seu uso terapêutico.

Em reunião de devolutiva, realizada para a apresentação dos dados desta pesquisa

à GEAF e aos coordenadores das 8 Farmácias Cidadãs do Estado, tal postura de

alerta se fez ainda mais presente diante do mapeamento da demanda estadual pelo

medicamento. Apesar de constatar o aumento das solicitações do medicamento e

este ser um fator de preocupação da GEAF, até então as características deste

aumento não tinham sido alvo de um estudo pormenorizado.

A demanda e dispensa pública pelo metilfenidato no Espírito Santo

Os números abaixo se referem às aberturas de processos de solicitação de

metilfenidato em todas as Farmácias Cidadãs estaduais do Espírito Santo, de 2009

a 2011. Portanto, expressam a demanda pelo medicamento à dispensa pública do

estado:

Observa-se que houve um aumento crescente na procura pela dispensa

pública do metilfenidato no ES entre 2009 e 2011, chegando ao acréscimo de quase

duas vezes e meia no último ano em relação ao primeiro. Tal crescimento na

demanda vem acompanhado de um robusto aumento dos gastos com o

metilfenidato pela secretaria: em 2009 o gasto anual na compra do psicoestimulante

totalizou R$ 1.699.254,20. Dois anos depois, o investimento para sua compra havia

sofrido um aumento de 178%, alcançando a cifra de R$ 3.026.167,80 (GEAF,

mensagem obtida em 24 fev. 2012).

No entanto, a mesma configuração não se reproduz em todas as Farmácias

Cidadãs Estaduais, quando analisadas separadamente. O número de abertura de

processos de solicitação de metilfenidato variou de forma significativamente

heterogênea nas diferentes localidades do Espírito Santo no período entre 2009 e

2011. Apenas duas das Farmácias Cidadãs Estaduais concentraram 69% da

demanda total do ES nos três anos estudados.

A variação no consumo do medicamento no Espírito Santo encontra também

paralelo com os dados nacionais, advindos do relatório sobre a rede privada de

farmácias publicado pela ANVISA em 2012. Segundo a ANVISA (2012), os estados

do Brasil apresentam perfis variados de consumo do medicamento durante o triênio

estudado. Em algumas Unidades Federativas houve aumento do consumo, e em

outras, ocorreu uma redução. O Distrito Federal registrou o maior consumo de

metilfenidato, chegando a 114,59 caixas dispensadas a cada mil crianças, em 2011.

A diferença regional do consumo do metilfenidato encontrada no âmbito

brasileiro acompanha, ainda, os dados sobre a prevalência do diagnóstico de TDAH

que variam amplamente entre os países e também no interior de cada nação nas

quais dados epidemiológicos encontram-se disponíveis (ROSE, 2006; SINGH,

2006). A análise de tal discrepância oscila entre a denuncia de banalização do

transtorno e o excesso de diagnósticos em alguns países e regiões (COLLARES;

MOYSES, 2010) e a defesa de que, em certos lugares, o TDAH seria ainda sub-

diagnosticado (ROHDE, 2004; FARAONE, 2003), por efeito de informação

insuficiente de alguns profissionais da saúde e educação sobre a doença, “e / ou

equívocos quanto ao seu impacto negativo sobre crianças” (FARAONE, 2003, p.

104, tradução nossa).

Por outro lado, outros autores apontam para a interferência de questões

culturais, sociais, políticas e subjetivas na definição do diagnóstico de TDAH e na

opção pelo seu tratamento medicamentoso (CONRAD, 2006; PARENS &

JOHNSTON, 2009; RAFALOVICH, 2002; ROSEMBERG, 2002). É preciso lembrar,

ainda, que próprio o manual diagnóstico adotado produz resultados diferentes, além

de que a própria existência ou não de políticas educacionais, de saúde e da

assistência farmacêutica direcionadas para o TDAH podem interferir na maior ou

menor demanda pelo diagnóstico. Em todo caso, os dados apresentados reforçam a

importância de se afirmar que o debate em torno do transtorno e seu tratamento

permanecem em aberto, e que as políticas públicas envolvidas devem ser melhor

analisadas e acompanhadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Amplamente presente no meio científico e midiático, a discussão em torno do

TDAH e o metilfenidato tem ganhado também espaço no âmbito das Políticas

Públicas de Saúde brasileiras. A presença do medicamento nos últimos boletins da

ANVISA (2010; 2012), bem como no interior das políticas de Assistência

Farmacêutica são demonstrativos de tal fato.

Tanto o vertiginoso aumento do consumo do metilfenidato em várias regiões

do mundo quanto a discrepância numérica e regional de seu uso alertam para a

importância de uma análise cuidadosa do fenômeno. Uma vez que tal quadro se

mostra presente na realidade brasileira, seu estudo se faz fundamental,

principalmente a fim de se embasar a formulação de políticas e o funcionamento de

serviços no contexto da saúde pública. Como aponta a ANVISA, para tanto é

indispensável a análise cuidadosa da realidade de cada região.

Este trabalho visou demonstrar que não somente o uso abusivo ou não-

médico do metilfenidato deve ser alvo de análise cuidadosa, como também aquele

autorizado pela identificação médica e social do diagnóstico de TDAH, uma vez que

a fronteira entre este e aquele nem sempre é claramente demarcada. Ao mesmo

tempo, destaca-se que tal análise deve ser ampliada, considerando os múltiplos

aspectos que interferem tanto na constituição do diagnóstico de TDAH quanto no

uso do metilfenidato, a as experiências singulares que aí se engendram.

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