foucault em três tempos

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A em tres tem os Contestador de todo poder, Foucault admite, em seus últimos textos, o papel dos indivíduos livres, éticos e racionais nas lutas pela transformação social e política G UILHERME CASTELO BRANCO, mestre em filos ofia e doutor em comunicação pe la U FR], é professor associado I do De partamento de Filosofia dessa <i- universidade. Coordena o programa de pós-graduação em filosofia e o laboratório © de filosofia con t emporânea da UFR]. A subjetividade na arqueologia do saber POR GUIL HERME CAST EL O BRANCO MrCHEL FOUCAULT MARCOU DE MODO decisivo o pensamento de seus contemporâneos, não apenas no domínio da filosofia, mas também nas ciências humanas, biomédicas, jurídicas, na psicologia, na ciência política. Seus livros, artigos, entrevistas e cursos cobrem um campo tão vasto de temas e interesses, que muitos. estudiosos mais apressados desistem de investigar sua obra , tamanho o arrojo de suas hipóteses e a erudição de seus textos . • Tendo realizado sua graduação na École ormale Supérieure, Foucault revelou-se bem cedo uma personalidade pouco afeita ao academicismo e à tranqüila vida universitária. Viajou para diversos países, a trabalho, como leitor, adido cultu- ral, professor de cultura e liter?tura francesa, até que sua tese de doutorado, publicada pela Gallimard, atraiu a atenção da intelec- tualidade da época. História da loucura na idade clássica (961) não somente abriu-lhe as pOltas para um relativo sucesso, mas também tornou-se um vetor de interesse pelos livros do jovem pensador, dentre eles Doença mental e psicologia (954) e O nascimento da clínica C 1963). 7

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A

em tres tem os

Contestador de todo poder, Foucault admite, em seus

últimos textos, o papel dos

indivíduos livres, éticos e racionais

nas lutas pela transformação

social e política

GUILHERME CASTELO BRANCO, mestre em filosofia e doutor em comunicação pela UFR], é professor associado I do Departamento de Filosofia dessa

<i- universidade. Coordena o programa de ~ pós-graduação em filosofia e o laboratório © de filosofia contemporânea da UFR].

A subjetividade na arqueologia

do saber POR GUIL HERME CAST EL O BRANCO

MrCHEL FOUCAULT MARCOU DE MODO decisivo o pensamento de

seus contemporâneos, não apenas no domínio da filosofia,

mas também nas ciências humanas, biomédicas, jurídicas, na

psicologia, na ciência política. Seus livros, artigos, entrevistas

e cursos cobrem um campo tão vasto de temas e interesses,

que muitos.estudiosos mais apressados desistem de investigar

sua obra, tamanho o arrojo de suas hipóteses e a erudição de

seus textos . • Tendo realizado sua graduação na École ormale

Supérieure, Foucault revelou-se bem cedo uma personalidade

pouco afeita ao academicismo e à tranqüila vida universitária.

Viajou para diversos países, a trabalho, como leitor, adido cultu­

ral, professor de cultura e liter?tura francesa , até que sua tese de

doutorado, publicada pela Gallimard, atraiu a atenção da intelec­

tualidade da época. História da loucura na idade clássica (961)

não somente abriu-lhe as pOltas para um relativo sucesso, mas

também tornou-se um vetor de interesse pelos livros do jovem

pensador, dentre eles Doença mental e psicologia (954) e O

nascimento da clínica C 1963).

7

o TEMPO DE FOUCAULT E DELEUZE1939 1941 1951 1956 1958 1962 1966 1968 1970 1974Início da Lançamento É criada, Revolução, Charles de A Argélia torna-se Mao Tse-tung Na França, Franco Basaglia AlexandreSegunda de Cidadão na França, na Hungria, Gaulle, líder independente da França. impulsiona estudantes adota, em Trieste, Soljenitsin,Guerra Kane, dirigido a revista esmagada da resistência E publicado o livro Um a Revolução e operários métodos de Prêmio NobelMundial. por Orson Cahiers pelas forças antinazista dia na vida de Ivan Cultural na ocupam as atendimento nos de Literatura

Welles, marco duCinéma. do bloco na França, Denissovitch, denúncia China. ruas em casos de saúde de 1970, éda história do socialista. é eleito dos campos de gigantescas mental que servirão deportado dacinema. presidente concentração stalinistas manifestações. de modelo e inspiração União Soviéticé

da República. escrita por Alexandre para o MovimentoSoljenitsin. antimanicomial.

FOUCAIJIJ

I

RECUSA AO HUMANISMOCom o lançamento de As palavras e ascoisas (966), Foucault vaCainda maislonge nas suas elaborações teóricas, etorna-se conhecido do grande públicocultivado. O autor suscitou a renovaçãoda epistemologia das ciências humanas, etrouxe uma série de contribuições, nessafase, ao debate histórico-crítico. Dentreas hipóteses levantadas no grande edenso volume, talvez as mais dignas denota sejam: 1) todo o pensamento, todaa prática, toda a fala de uma época sãocoordenados, em última instância, porum conjunto pequeno e restrito de idéiasfundamentais, que o pensador francêschama de enunciados, e que constituemmatrizes anônimas de toda a intelecçãodesse tempo determinado; 2) tais matri-zes sofrem grandes transformações detempos em tempos, e modificam todaa configuração de saber, o que faz comque, entre as épocas, diferentes camadas

Uma proposiçãopolêmica de Foucault:o homem, invenção

recente da arqueologia_dopensamento,deixará de existir

em futuro próximo

de discursos e práticas se superponham(uma vez que são produtos da influênciade diferentes enunciados), tornando pos-sível uma arqueologia do saber; 3) nossaépoca leva a marca do aparecimento des-sa nova noção, o homem, que não existiaaté o século XVIII,uma vez que até entãoele era senhor da representação, con-dição prévia de todo conhecimento; 4)para passar a existir como objeto de co-nhecírnento, o homem torna-se nebulosoe desconhecido, compreensível somentea partir do impensado com o qual faz par- e é disso que tratam as novas ciênciasou saberes que estudam o homem; 5)finalmente, uma das proposições maispolêmicas: o homem, invenção recenteda arqueologia do pensamento, deixaráde existir em futuro próximo.

O par inevitável homem e impensadopõe em cena saberes privilegiados: apsicanálise e a etnologia ocupam lugarcentral na configuração arqueológica denosso tempo. A razão de ser desse lugarímpar perante os demais saberes é ofato de que ambas estudam, ainda quede forma diversa, a ação do campo do

HITLER E MUSSOLlNI em Munique. Foucaultestuda como o poder 'se faz obedecer

impensado sobre a consciência. No casoda psicanálise, uma vez que deixa fluir odiscurso do inconsciente através da cons-ciência, é o jogo do desejo, da lei e damorte que sempre afeta o sujeito, e quefaz dele um efeito de um campo estrutu-ral, aberto e estranho à consciência, masainda assim sobredeterminante do sujeito.No caso da etnologia, somos postos porela no interior da historicidade, mas deum modo todo particular, o da presençade formas culturais que nos precedem enas quais nos enraizamos. Mas sem dú-vida, dentre as duas, a psicanálise é maisimportante, devido à sua posição episte-rnológica: constituindo-se como uma prá-tica, por uma relação de escuta do desejoentre dois indivíduos, a psicanálise nãopode se prestar a converter-se numa teo-ria geral do homem ou numa outra formade antropologia. Lacan, para Foucault, éextremamente importante por ter escla-recido este ponto, por desvincular a psi-canálise do humanismo, por impedir quea psicanálise seja vista como uma teoriado homem, ao fazer do sujeito um efeitode determinações que ocorrem nele, masalhures, no inconsciente, onde a cons-ciência não reina nem poderá ter livreacesso, tanto quanto o conhecimento.

Nos anos 60, bem ao sabor das novasvagas do pensamento, Foucault partílhade algumas idéias do grupo estruturalis-ta, dentre elas a de que existem conheci-mentos e discursos, realizados de formanão-autoral (ainda que exista alguém ~capaz de postular um direito de autoria), ~advindos de um campo de pensamento ~que prescinde do sujeito do conheci- ;1mento cartesíano, Nesse novo espírito ~

metodológico e teórico, no lugar antesocupado pelo Cogito passa a vigorar Q

On. Ou seja, o "eu penso" é substituídopelo "algo pensa em mim". Desse modo,a obra do jovem Foucault inaugura-sepela recusa sistemática do humanismo.

Pois até mesmo a política pode serfeita sem o álibi de que é o homem queé centro e finalidade da ação política;antes disso, para Foucault, os problemasque são levantados aos que fazem políticasão questões como a de saber se seriamais interessante aumentar o índice decrescimento demográfico, se é melhorapoiar a indústria pesada ou a pequenaindústria, se o aumento de consumopode apresentar numa conjuntura deter-minada vantagens econômicas ou não.~esse plano da política, os "homens"não estão concernidos. Ademais, lembrao jovem pensador, a humanidade é umaespécie dotada de um sistema nervosode tal ordem que lhe é possível, sobcertas condições, controlar seu própriofuncionamento. Ora, essa possibilidadede controle induz à crença de que a hu-manidade deva ter uma finalidade, masa humanidade, na realidade, não dispõede nenhuma finalidade; ela funciona; elacontrola seu próprio funcionamento, efaz surgir a todo momento justificativasdesse controle. A tese de Foucault, nesseparticular, é digna de nota: são eles, os

j@ burocratas, que são humanistas. A tecno-~ cracia - não deixa de ser uma interessante= provocação - é uma forma de humanis--c~ mo. Pois são os tecnocratas que imaginam~ que têm a competência para definir o que'3 é a felicidade dos homens, o que é o bemS1 comum, e o modo de realizá-Ia.

Em nenhum momento Foucault con-cede espaço para qualquer espécie deatributo humano ou qualidade humanana constituição dos saberes, da ética, dapolítica. Efeito da lógica interna do cam-po estrutural, o sujeito, tal como o autoro concebe nesse momento, é um efeitode superfície, é espuma que reverberaa força das ondas, é decorrência da in-fluência de algo que o constitui e secretaseu pensamento e sua vida. O Eu pensoé substituído, na época contemporânea,pelo istopensa, e só restaria descrever oprocesso de constituição do eu pelo isto.Aísim, temos a noção verdadeiramente con-temporânea de sujeito, entendido comotramado e constituído pela ação do siste-ma, que sobredetermina o sujeito. Certasconseqüências são duras: há que deixarde lado a crença de que seria possíveltransformar o mundo através de um ato devontade, individual ou coletivo, ainda maisse motivado pela consciência humana.

ANALÍTICA DO PODER:'No inicio dos anos 70, quando entra parao College de France e profere uma aulainaugural publicada sob o título A ordemdo discurso (1970), Foucault muda de

perspectiva: procura discernir os procedi-mentos inerentes às relações entre sabere poder, decorrentes da sua rejeição dasteses estruturalistas, que ele já tinha entre-visto como sendo inócuas; no seu últimolivro da fase arqueológica, Arqueologia dosaber (1969), Foucault interroga-se, igual-mente, sobre a pertinência de suas idéiassobre os enunciados, de caráter imateriale estrutural, em relação aos quais inexis-tem parâmetros seguros acerca de sua in-fluência sobre a multiplicidade das idéiasproduzidas num determinado momento.Afinal, uma parte pode explicar um todo'Por que realizar tal redução do múltiploa uma pane? Por que não estudar osdiscursos em suas vinculações com amultiplicidade das experiências vividas,em todas as suas modalidades?

A analítica do poder (1970-1977), como conjunto de deslocamentos propostopor Foucault, apresenta um outro tipode perspectiva. Segundo o filósofo, seuproblema não é tanto de ordem teórica,mas, isto sim, de caráter histórico e me-todológico, o que faz com que sua pes-quisa incida nas técnicas e tecnologias dopoder. Trata-se de estudar como o poderdomina e se faz obedecer. Sua constata-

1980 1981 1989 1990 1991 1992 2001Guerra entre o Iraque São publicados É derrubado Reunificação Guerra do Golfo, com o ataque Formação da Atentado do grupoe a República Islâmica os primeiros o Muro de da Alemanha. de tropas dos Estados Unidos União Européia, fundamentalistado Irã. O conflito estudos sobre Berlim. e de outros países, sob a reunindo 12 muçulmano AI Qaedaestende-se até 1988. a aids, que ao bandeira da ONU, ao Iraque. países. Em nos Estados Unidos,Fundação, na longo da década Dissolução da União 2007, o bloco já contra o Pentágono ePolônia, do Sindicato alcança difusão Soviética. A maioria das ex- contava com 27 o World Trade CenterSolidariedade, cuja mundial. repúblicas passa a integrar países-membros. de Nova York.atuação abala o a Comunidade de Estadosregime socialista. Independentes.

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FOUC\UII INTl\OJ1u(A()

ção é que, após o século XVII, as tecno­logias do poder desenvolv_eram-se enor­memente, e que, entietà:hto, nenhuma pesquisa sobre esse tema foi realizada. Para levar à frente tais análises, Foucault considera que noções como as de posse, origem, campo de ação do poder, entre outras, são substituídas pela hipótese de que o poder está disseminado por todas as partes do mundo social, numa trama complexa e heterogênea de relações, na qual as resistências a ele também tomam parte e têm papel determinante.

A fase da analítica do poder é farta de relatos quanto às práticas divisórias, quanto aos procedimentos estratégicos postos em jogo pelos poderes hege­mõnicos, e evidencia uma predileção de Foucault pela descrição das técnicas de dominação e dos discursos a elas agenciados. Certamente, um dos motivos para essa escolha foi a riqueza do ins­trumental metodológico capaz de trazer contribuições originais à temática do desenvolvimento das tecnologias do po­der nos últimos séculos. Exemplar, nesse sentido, é seu Vigiar e punir (1975), que consiste numa descrição das metamorfo­ses que ocorreram nos últimos séculos nas formas de punir e de controlar as pessoas, num processo que vai do' con­trole e disciplinarizaçâo em espaços fe-

chados até o controle, na atualidade, do comportamento e das ações até mesmo em espaços abertos.

TECNOLOGIAS DE CONTROLE O foco de Foucault é que o desenvolvi­mento das tecnologias do poder, na idade moderna, levou a um grau de intervenção ímpar sobre o ser humano: o poder se exerce sobre cada indivíduo, do mesmo modo que é exercido sobre as massas e converte-se num controle que nos fabrica, impondo a todos e a cada um de nós uma individualidade, uma identidade. Foucault sustenta que a individualidade está sendo crescentemente controlada pelo poder, que somos individualizados, no fundo, pelo próprio poder. A individualização,

FALSA CONTESTAÇÃO

o INDIVíDUO na política: Rosa Parks, iniciadora da luta contra a segregação racial no transporte coletivo do Alabama. Ao fundo, Martin Luther King (c. 1955)

portanto, nâo se opõe a isso; pelo contrá­rio, a identidade obrigatória de cada um de nós é efeito e instrumento do poder.

As descrições que Foucault realizou a esse respeito abrem grandes campos de estudo e pesquisa: 1) as técnicas discipli­nares, iniciadas no século XVII, têm como foco o corpo, sua regulação, adestramento, e a ampliação de suas forças, tendo sido objeto de investimentos nas fábricas, nas casernas, nas escolas; 2) as técnicas nor­malizadoras (oriundas do poder pastoral praticado na Igreja Católica), iniciadas no século XVIII, e que têm por objeto a cons­tituição de comportamentos adequados a normas de conduta e a padrões morais, tendo como foco de investimento as faITÚ­lias, as escolas, os hospitais, os indivíduos no exercício da cidadania; 3) O biopoder e a biopolítica, desenvolvidos no final do século XIX e primeira metade do século xx, que têm como objeto a espécie hu­mana considerada em termos de eugenia e pureza raciais, bem como investimentos que visam o controle das populações e subgupos sociais que devem (ou não) ter direito à continuação na vida biológica.

Uma das teses que o pensador fran­cês levanta, nessa época, é a de que as ciências humanas, tidas por muitos como pontos de partida da contestação polí­tica e a serviço das lutas sociais, desde

A tese complementar de Foucault, na analítica do poder, é a de que só a força e a violência dos grupos têm potencial de enfrentar o poder instituído. Essa oposição,

entretanto, não é simples, pois nem toda luta levantada pel.os grupos sociais é de resistência efetiva. A oposição grupo versus poder somente pode ser compreendida após uma série de ressalvas. A primeira, talvez a mais importante,

inclusão e a legítimação na ordem estabelecida: seria o caso das lutas pelo direito à habitação, saúde, higiene etc., que acabam consolidando

As técnicas de manipulação de indivíduos, de comunidades, de grandes contingentes de seres humanos, lembra Foucault, não são específicas dos regimes autoritários; no nosso tempo, as tecnologias de controle são praticadas em todos os lugares, inclusive nas democracias. Quem, no fim das contas, desenvolveu de forma mais cabal e eficaz as técnicas de disciplinarização

10 MENTE , CÉREBRO & FILOSOFIA

vem da constatação, decorrente de suas pesquisas históricas, de que muitas lutas supostamente contestadoras visariam, desde seu início, a

MARCHA DE encerramento do 52 Congresso do MST, em 14 de junho de 2007. Rebeldia efetiva?

as estruturas do poder e auxiliando no desenvolvimento de suas técnicas de individuação. A segunda, o fato reconhecido de que toda luta acaba sendo assimilada pelas malhas do poder. A terceira, sua descrença, à época, no potencial transformador e revolucionário dos partidos e grupos políticos, a seu ver pouco inventivos e estéreis.

e normalização dos indivíduos senão os sistemas políticos inspirados no liberalismo?

www.mentecerebro.com.br.

seu nascimento estiveram a serviço dos poderes hegemônicos; na verdade, são conhecimentos postos à disposição élos poderes para controlar indivíduos e co­letividades. A psicanálise e a psicologia não são exceção.

Na História da sexualidade I. A vontade de saber (976), Foucaúlt começa contes­tando a hipótese de que nossa época é a da superação da repressão, e que vivemos tempos de libertação no campo da sexua­lidade. Na verdade, saímos do silêncio e da indiferença para entrar num campo de "ex­plosão discursiva", através do qual passa a existir uma convocação geral à revelação de vida sexual, doravante sujeita a regu­

lações, controles, cálculos, apreciações de ordem moral, higiênicas, médicas. Normas e anomalias são percebidas, discutidas, hierarquizadas; surge um amplo conjunto de teorias para regulamentar a vida sexual das pessoas e das populações. Nesse mo­mento, a psicanálise, urna vez mais situada ao lado da etnologia por Foucault, procura fazer valer como lei da estruturação da

6 sexualidade o dispositivo . implantado no ~ capitalismo desde o século XVIII, no qual :::; alianças de sangue e interesse jurídicos ~ ~ advindos da estrutura familiar burguesa ~ ocidental acabam por ditar o tom da teo­tl ria e da prática psicanalíticas. No fim das ~ contas, salvo no episódio em que Freud

Em seus últimos textos, Foucault admite

a viabilidade da cQntestação de sistemas hegemónicos de poder

e a possibilidade de modificá-los

procura afastar a psicanálise do racismo de Estado implantado no nacional-socia­lismo, a psicanálise faz tuna interpretação da estruturação do desejo como sendo a realização cabal do modo de vida burguês, da família ocidental. Desde então Foucault deixa de ser simpático para com a psi­canálise, que ele passa a considerar, sem ressalvas, como uma teoria e uma prática antropocêntrica, racista, discriminatória, a serviço do biopoder.

ARTIMANHAS DA LIBERDADE Foucault, uma vez mais, deu um novo sentido às suas interrogações, a partir de 1978, ao deparar com uma série de fatos, como o movimento iniciado pelo Sindicato Solidariedade (Polônia) e a Revolução Islâmica (Irã), que o levam a reconhecer que é viável a contestação de sistemas hegemônicos de poder e que é possível modificá-los. Onde há poder, há resistência, e as resistências ao poder, muitas vezes, têm força irresistível.

O problema que anima o último Foucault 0978-84), assim,.é o da possibi­lidade de transformação do mundo, tanto subjetivo quanto social. Para muitos intér­pretes, o pensador dá continuidade a ques­tões abertas na analitica do poder, tal como já o fazia nos anos 70, mas o acento de suas reflexões é todo outro. Ele estuda o papel das resistências, em todas as suas di­mensões, nà trama complexa das relações de poder na atualidade, 'seus antecedentes históricos e suas perspectivas de êxito. Seus interesses passam a ser os combates e as lutas inerentes às relações de poder, e não as diversas tecnologias do poder que formam as grandes estruturas controlado­ras dos indivíduos e das massas.

Desde então, Foucault considera que

TEMA FOUCAULTIANO: O pátio de exercicios ou Os prisioneiros, Vincent van Gogh, 1890

CRONOLOGIA

1926 NASCIMENTO DE MICHEL FOUCAULT,

EM P OITIERS.

1946 INGRESSA NA ÉCOLE NORMALE SUPÉRIEURE,

ONDE ESfUDA FILOSOFIA E PSICOLOGIA.

1953 ESCREVE A INTRODUÇÃO DE O SONHO

E A EXISTÊNCiA, DO PSIQUIATRA suíço

LUDWlG BINSWANGER.

1954 PUBliCA D OENÇA MENJ'AL E PERSONAliDADE.

1955 TORNA-SE ADIDO CULTURAL EM UPSALA

(SUÉCIA), VARSÓVIA (POLÓNIA)

E HAMBURGO (ALEMANHA), Só

RETORNANDO Ã F RANÇA EM 1960.

1960 DÁ AULAS NA UNIVERSIDADE

DE CLERMONT-FERRAND.

1961 DEFENDE SUA TESE DE DOUTORADO,

L OUCURA E DESRAZÃO: HISTóRIA

DA LOUCURA NA IDADE ClÁSSICA ,

PUBLICADA COM o SUBTÍTULO.

1963 P UBLICA O NASCIMENTO DA CLÍNICA.

1966 PUBLICA As PALAVRAS E AS COISAS.

DÁ AULAS NA UNIVERSIDADE DE TúNIS,

ONDE PERMANECE ATÉ 1968.

1969 PUBliCA ARQUEOLOGiA DO SABER.

1970 T ORNA- SE PROFESSOR NO COLLÊGE DE

FRANCE E PROFERE A AULA INAUGURAL

DEPOIS PUBLICADA SOB o TÍTULO

A ORDEM DO DISCURSO.

1972 ORGANIZA o COMITÉ DE AçÃO DOS

P RISIONEIROS (1972), ENTIDADE DE LUTA

PELOS DIREITOS DOS DETENTOS

NAS PRISÓES FRANCESAS.

1973 MrNrSTRA o CURSO O PODER PSIQUlÁ1RJCO.

1974 M INISTRA o CURSO O S ANORMAIS.

1975 PUBLICA VIGlAR E PUNIR.

i9i6 PUBliCA o PRIMEIRO VOLUME DE HIsTORIA

DA SEXUAliDADE, QUE TEM POR SUBTÍTULO

A VONTADE DE SABER.

1981 MINISTRA O CURSO A HERMENÊUT1CA

DO S(!JElTO.

1984 PUBLICA o SEGUNDO E O TERCEIRO

VOLUMES DE HISTóRIA DA SEXUALIDADE,

COM OS SUBTÍTULOS, RESPECTIVAMENTE,

DE O USO DOS PRAZERES E O CUIDADO

DE SI. NESSE MESMO ANO, MORRE EM P ARIS.

PE NSADORE S DA ALMA E DAS PAIXÕES 11

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FOUCAUIJ' I\TRODUÇÃO

CENA DO FILME O jardineiro fie', de 2005. Foucault talvez descrevesse o personagem como um bom moço regido pela moralidade capitalista

as resistências ao poder devem ser enten­didas como aquelas que visam a defesa da liberdade. E aqui cabe chamar a atenção: se, em seus textos iniciais, os indivíduos pouco ou nada têm a fazer nas lutas de transformação do mundo social e político, no último Foucault, restauram-se o lugar e o papel dos indivíduos éticos, sensíveis e racionais no quadro das lutas políticas. Pois é o indivíduo que é livre: porque sente, pensa e age em conformidade com sua condição de ser livre. A liberdade, todavia, não é para ser entendida como uma petição de princípio meramente teórica; a condição de liberdade deve ser elucidada no plano da vida e das lutas sociais, e como tal é precária, contingen­te, móvel. O campo da liberdade se faz de atitudes e comportamentos, decorre da maneira pela qual os indivíduos, em suas lutas, em seus projetos, recusam as práticas que lhes são propostas, ou, muito além disto, constituem-se como sujeitos autônomos de suas práticas.

É somente nesses casos que é possível compreender o tema do "cuidado de si" no último Foucault. Seus dois últimos livros publicados - História da sexu.alidade II. O uso dos prazeres, e História da sexua­lidade m. O cuidado de si -, mostram co­mo diferentes fOlmas de problematização moral, realizadas em culturas tão distantes da nossa, como a Grécia clássica e o pe­ríodo áureo do Império Romano, expri-

DETERMINISMO BIOLÓGICO: imagem dos anos 20 tenta associar tipos de cérebro ao comportamento criminoso

miram modos de re­alização da liberdade diversos c!o . nosso, e não têm mais lugar na atualidade. Foucault, na fase fmal de sua vida, deixa evidente que seu campo é o do presente histórico, que está interessado em cQntribuir para o processo''' criativo das lutas de resistência, que constituem uma nova economia das relações de poder. Enfim, cada tempo tem campos de li­bertação possíveis que estão diretamente ligados a práticas e a estratégias que são, por sua vez, móveis e flexíveis . A criativi­dade das estratégias e das lutas, portanto, decorre das artimarthas da liberdade. Sua investigação consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de po­der como ponto de pattida, em especial aquelas que se iniciam na subjetividade, sem que nenhuma época tenha caráter exemplar e possa servir de guia a nossas reflexões no presente.

Os teITI10S da oposição entre resistên­cia, liberdade e relaçôes de poder são pos­tos, por Foucault, de maneira cristalina: o poder não se exerce senão sobre "sujeitos livres" e enquanto são "livres", ou seja, sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades no qual muitas condutas, muitas reações, e diversos modos de comportamento po­dem ter lugar. Em reginles de terror tais como o stalinismo e o nazi-fascismo, o confronto entre liberdade e poder pode ser rarefeito. Mas 'a força não constitui uma impossibilidade para a liberdade. A liberdade, por sua condição ontológica, é insubmissa: diz sempre não às forças que procuram controlá-la. E o faz de modo que é necessariamente, em condições fo­ra do terror e do constrangimento, o de um afrontamento contínuo. 'A liberdade somente pode se externar em um espaço público no qual estejam garantidas as condições mínimas para seu exercício, e estas somente podem ser dadas num ambiente de tolerância político-social ao exercício da liberdade. As promessas da dialética e os sonhos do estado pleno de direito, superados pelo pensamento

reflexivo e pelos fatos históricos, para Foucault, exigem a concepção agonística do poder como substituto inevitável. Nela, a vontade (ou o desejo) e o direito (ou a lei) tomam parte no embate, mas estão longe de se tornarem fundamentais .

O verdadeiro campo de luta, a seu ver, é o que possibilita um exercício de liber­dade autônomo e radical. São embates importantes, na atualidade, as lutas contra a dominação (étnica, social, religiosa), as lutas contra as formas de exploração (que separam o indivíduo do que ele produz), e, finalmente, as lutas que levantam a questão do estatuto do indivíduo (contra o assujeitamento, contra as diversas for­mas de subjetividade e submissão). As du-as primeiras já são conhecidas de todos. A contribuição de Foucault está nas suas considerações quanto ao estatuto das lu­tas que levantam o estatuto do indivíduo. Estas últimas foram elevadas por Foucault a combates de primeira grat1deza, man­tendo relações circulares com as duas outras formas de luta. ·As mobilizações em ~ tomo da individuação são as que trazem, ~ no momento presente, questionamentos, >-

e-métodos e objetivos inovadores, com ~ efeitos que não são desprezíveis na esfera ~ pública. As lutas individualizantes, em :: suma, são efetivamente potentes contra ~ as temologias de poder desenvolvidas na ~ sociedade ocidental nos últimos séculos. ~

>­(/)

:z

A RECUSA A SER ~ Para Foucault, estas são lutas de resistência ,~

Ü'

contra o gigantesco aparato, técnicas e ~ procedimentos desenvolvidos para conhe- ~

cer, dirigir e controlar as vidas das pessoas, ~ seus estilos de existência, suas maneiras de §5

sentir, avaliar, pensar. Essas técnicas e sa- ~ beres, dentro do ~ projeto de otimização do B poder, têm o objetivo explícito de conhecer ~

www .mentecerebro.com.br

e controlar a vida subjetiva de cada um dos membros submetidos aos seus campos de ação, de maneira que Foucault alerta que a técnica característica do poder modemo é dispor, simultaneamente, de técnicas totalizantes e procedimentos que visam o "govemo por individuação". O govemo por individuação, ou normalização, é o substituto contemporâneo e ativo do po­der pastoral desenvolvido no passado pela Igreja. Mas agora, ele tem novos processos e conhecimentos à sua disposição: relató­rios, pesquisas e bancos de informações nos quais estão dispofÚveis dados cada vez mais pOlmenorizados sobre a vida das pes­soas, levando a um exercício do poder que não é viável sem conhecer o que se passa na cabeça dos indivíduos, sem explorar su­as almas, sem convencê-los a revelar seus segredos mais íntimos. O resultado desse processo de controle nada mais é do que o sujeito submetido a normas e padrões de constituição de sua subjetividade, e auto­identificado através de regras previamente perpetradas de conduta ideal. O assujeita­do é o indivíduo condicionado e autocon­dicionado, é o bom-moço instituído nos

oe padrões individualistas de entender a vida ~ e o mundo, sujeito regido pela moralidade ~ capitalista e seu modo de vida burguês. ~ Contrapondo-se às técnicas de conhe­

.~ cimento e de controle das subjetividades, 8 Foucault entende que as lutas de resistên-

o objetivo principal, hoje, não é nos

descobrirmos e sim nos recusarmos a ser

o que somos, inventando nossa subjetividade

cia em tomo do estatuto da individuação podem ser sintetizadas pela palavra de ordem seguinte: o objetivo principal, hoje, não é o de descobrirmos, mas o de nos recusarmos a ser o que somos. Não se tra­ta de encontrarmos nosso eu no mundo, mas de inventarmos nossa subjetividade. Antes de ser produto de um encontro, a subjetividade é resultado de um processo inventivo. De tal modo que a luta pela liberdade se inicia na própria esfera sub­jetiva. A questão, assim, é produzir, criar, inventar novos modos de subjetividade, novos estilos de vida, novos vínculos e laços comunitários, para além das formas de vida empobrecidas e individualistas in1plantados pelas modemas técnicas e relações de poder.

As lutas de resistência, no caso dos indivíduos, exigem um trabalho contínuo e sem descanso de afrontamento dos processos de autonomização contra as téc­nicas de individuação e nOlmalização. Um trabalho de transformação que Foucault entende se fundamentar, verdadeiramente,

nos termos da visão kantiana do escla­recimento. O Aujkldrung, para Foucault, antes de designar uma etapa da história, é uma atitude racional, ética e política, uma "atitude de modernidade", na qual são exi­gidos o diagnóstico do tempo presente e a realização da infInita tarefa de libeltaçãO (entendida como a passagem constante para novos graus de maioridade, ou seja, para uma vida cada vez mais desvinculada de guias, tutores e autoridades que con­trolariam a consciência e esfera subjetiva). Criar subjetividade implica a descobena de limites, a ultrapassagem desses limites, o reconhecimento de que novamente entrou-se em limites, o que leva a novas ultrapassagens, num processo sem fim.

O lugar ao qual se poderia chegar a panir das lutas de resistência, desse modo, seria a govemabilidade, ou se­ja, o autogovemo dos indivíduos livres e autônomos. Uma autonomia a ser considerada numa esfera pública não restritiva, dependente apenas do grau de autonomia e liberdade de cada um dos membros da comunidade e da sociedade. A subjetividade, para o "último Foucault", está situada no campo de tensào abeno entre os limites que nos determinam e sua ultrapassagem possível, tensão ines­gotável, na qual a razão tem de decidir se fica ou não a serviço da liberdade, campo de expressão maior do ser humano . •

VASO GREGO (detalhe) do século VI a.C. mostra um banquete do qual participam mulheres artistas