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O CONCEITO DE RISCO SISTÊMICO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A DEFESA
DA CONCORRÊNCIA NO MERCADO BANCÁRIO
Tiago Machado Cortez
O sistema financeiro é sem dúvida um dos setores mais sensíveis da economia. Nele
todos os agentes econômicos, de assalariados a grandes empresas, ainda que indiretamente,
interagem, criando relações de interdependência, nas quais a poupança de alguns representa o
investimento de outros e o lucro de um é o que gera o rendimento do outro. Dentro deste setor, é
num segmento específico que esta relação de interdependência entre diversos membros da
sociedade fica ainda mais cristalizada, qual seja, o sistema bancário. Numa economia eficiente, o
papel primordial dos bancos é captar a poupança individual, através de produtos financeiros que
geralmente são de amplo acesso popular, tais como contas corrente e cadernetas de poupança, e
direcionar esses recursos para aqueles que deles necessitam para investir em atividades
produtivas. As instituições bancárias, por isso, são típicos intermediários financeiros, uma vez que
se colocam entre poupador e tomador de empréstimos, criando relações distintas e independentes
com cada um deles, mas que ainda assim são inter-relacionadas.
Canalizar a poupança para o investimento não é, contudo, o único papel social
desempenhado pelos bancos. Também de importância fundamental para a economia é a
existência e o bom funcionamento do sistema de pagamentos, do qual os bancos são os
participantes fundamentais. É por meio deste sistema que grande parte das relações de
pagamento da sociedade são realizadas, como compensações de cheques e transferências
bancárias.
Esses dois papéis desempenhados pelos bancos, de intermediários financeiros e
membros do sistema de pagamentos, por um lado, tornam a preservação da solidez do sistema
bancário e, por conseqüência, de cada uma das instituições participantes, essencial para a
manutenção da estabilidade financeira de qualquer país e, portanto, para o bom funcionamento da
economia. Por outro lado, da própria natureza das atividades desempenhadas por essas
instituições decorrem algumas fragilidades estruturais comuns a todos os bancos, as quais
possibilitam a ocorrência de crises sistêmicas, dando origem ao risco sistêmico.
Essa permanente tensão imposta ao sistema bancário em razão do famigerado risco
sistêmico cria, do ponto de vista de política públicas, a necessidade de se dispensar um tratamento
especial às instituições bancárias, seja através da imposição de regras específicas de natureza
prudencial, a serem observadas por todas elas, seja através da injeção de recursos públicos para
manutenção do sistema, ou mesmo através do abrandamento das condições concorrenciais dentro
do mercado bancário. É em relação a este último aspecto da política regulatória dispensada aos
bancos a que se refere a recente decisão do plenário do Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (CADE), reafirmando a sua competência para analisar, nos termos da Lei 8.884, de 11
de junho de 1994, os aspectos anticoncorrenciais das fusões e aquisições que envolvam
instituições financeiras.1
Inspirando-se no fecundo debate suscitado em torno do julgamento do Caso Banco
Finasa, este artigo terá dois objetivos. Na primeira parte, buscar-se-á aclarar o conceito de risco
sistêmico, bem como aqueles outros conceitos a ele relacionados, especificamente no que se
refere às instituições bancárias.2 Para tanto, será explicado o que é específico aos bancos que os
fazem mais suscetíveis ao risco sistêmico, bem como as causas e mecanismos de propagação a
ele relacionados. A segunda parte terá como objetivo demonstrar, a partir de uma perspectiva
histórica, como o ambiente institucional e econômico em que os bancos exercem suas atividades
vem sendo transformado, para analisar as implicações dessas transformações na regulação e na
concorrência no mercado bancário. Com isso, pretende-se demonstrar que apesar da mitigação do
risco sistêmico ser o grande desafio da intervenção do Estado no mercado bancário, o
desenvolvimento das técnicas de regulação abre cada vez mais espaço para que a defesa da
concorrência seja também um dos objetivos dessa intervenção.
I. Risco sistêmico e estabilidade do sistema bancário
1.1. A idéia de risco
Antes de se analisar o conceito de risco sistêmico propriamente dito, é de grande valia
tentar deixar claro sobre o que estamos nos referindo quando utilizamos a palavra risco, para que
possamos melhor entender e perceber as limitações do próprio conceito. Essa tentativa será
baseada em algumas observações feitas por Niklas Luhmann sobre risco, na sua obra Risk: A
Sociological Theory.3
1 Ato de Concentração n. 08012.006762/2000-09, o qual, neste artigo, será chamado de Caso Banco Finasa. 2 2 Não será objeto deste artigo discutir a aplicabilidade do conceito de risco sistêmico em outros segmentos que não o sistema bancário, tal como no mercado de capitais em razão de quedas significativas e generalizadas nos preços dos ativos financeiros. 3 3 Luhmann, Nikls, Risk: A Sociological Theory, traduzido do original alemão para o inglês por Rhodes Barret (Walter de Gruyter, Belin – Nova Iorque, 1993). Importante ressaltar que, ao utilizar
Uma primeira observação, que apesar de parecer óbvia deve ser enfatizada em razão de
sua importância, é que risco pressupõe incerteza quanto ao resultado de nossas ações, ou, como
delimita Luhmann, de nossas decisões.4 Assim, quando alguém toma uma decisão que envolve
riscos não sabe, e nem tem como saber, qual será o resultado da decisão tomada. Uma vez
tomada a decisão, contudo, não há como voltar atrás e o resultado passa a ser inevitável. A partir
desta constatação, pode-se identificar uma condição essencial para a existência do risco, mas que
com ele não se confunde: a ocorrência de dois eventos que se distinguem no tempo, o primeiro
que gera o risco e o segundo que é conseqüência do primeiro. No entanto, esses dois eventos são
incertos. Nesse sentido, Luhmann afirma que a idéia de risco implica duas contingências: a
decisão (primeiro eventos) e a perda (segundo evento).5 A relação entre essas duas contingências
é o que impõe uma inafastável conotação de incerteza sobre as decisões que envolvem riscos.
Mesmo depois de tomada a decisão e verificados seus efeitos, não se pode ter certeza se era essa
a decisão mais correta, pois nunca será possível saber o que teria acontecido se outra fosse a
alternativa escolhida. Nas palavras de Luhmann, “[P]ermanece incerto se não tendo aproveitado a
oportunidade perde-se alguma coisa ou não; e o que permanece é uma questão aberta se se deve
arrepender-se por não se ter optado pela alternativa ‘segura’, ou não. No entanto, esta é uma
questão que freqüentemente será impossível de ser respondida, caso a outra alternativa não foi a
escolhida e o procedimento de causalidade gerado pelo risco não foi iniciado”.6 A nuvem da
incerteza desta forma, sempre pairará sobre decisões que envolvem risco, seja no momento em
que se decide, seja depois que seus resultados tenham sido constatados.
Outra observação feita por Luhmann, muito útil para que se entenda a idéia de risco,
refere-se à distinção entre risco e segurança; risco, nesse sentido, pode ser entendido como o
oposto da segurança. A grande implicação desta distinção é que dela fica claro que o risco está
sempre presente. No atual estágio da sociedade moderna, em razão dos avanços tecnológicos que
acarretam não só o desenvolvimento de novas tecnologias (e os riscos nela envolvidos) mas
neste artigo parte do arcabouço teórico desenvolvido por Luhmann ao tratar sobre o risco, não se tem como objetivo fazer uma análise sociológica sobre risco sistêmico, mas tão e somente colocar alguma luz sobre o conceito de risco, que poderá ser útil para o entendimento do conceito de risco sistêmico e suas implicações políticas. 4 Para Luhmann só se pode falar de risco quando a perda sofrida é decorrência de uma decisão daquele sofreu a perda. Ob. cit. págs. 21-22. 5 Ob cit. pág. 17. 6 Ob cit. págs. 20-21: “It thus uncertain whether by foregoing the opportunity on has lost out on something o not; and what remains is a open question of whether one ought to regret preferring the ‘safe’ variant or not. However, this is a question that will frequently be impossible to answer if the opportunity is not taken up at all, and the risky casual proceeding is not even set in motion”.
também o reconhecimento da falibilidade e dos limites do conhecimento humano,7 segurança na
mais é do que um conceito vazio, já que cada vez mais nada no mundo pode ser considerado
absolutamente seguro.8 Esse fato é ainda mais evidente quando se considera do mercado
financeiro, onde por mais seguro que seja o investimento ainda existe a possibilidade de perda.
Risco, nesse sentido, é um elemento constante no sistema financeiro, enquanto a segurança é
sempre ilusória.
Do reconhecimento de que segurança é um conceito vazio, decorrem duas importantes
conseqüências. Como todas as decisões envolvem riscos, a única diferença possível entre
diversas alternativa é definir qual delas representa os maiores riscos.9 Assim, a noção de risco
passa a ser mensurada quantitativamente,10 através de cálculos de probabilidade. A partir de
dados estatísticos relativos a eventos passados que são similares aos eventos cuja ocorrência se
quer prever, torna-se possível calcular os riscos envolvidos em cada alternativa.11 Em decorrência,
sendo risco mensurável, passa-se a existir uma base objetiva para que se possa definir qual é o
limite de risco aceitável para que determinada decisão possa ser tomada, ainda que o critério para
definir esse limite seja subjetivo. Em outras palavras, com fundamento em análises quantitativas,
obtém-se a probabilidade de que certo evento adverso venha a ocorrer caso determinada decisão
seja tomada, podendo-se, com esse instrumental, comparar os riscos envolvidos em cada
alternativa. No entanto, a análise quantitativa não fornece um instrumental para que se defina qual
o limite de risco aceitável, o que dependerá, para se utilizar um jargão do mercado financeiro, do
perfil de risco de cada indivíduo. De qualquer forma, diante de tal realidade, a distinção inicial entre
risco e segurança perde muito do seu sentido, podendo ser substituída por uma outra, mais útil e
7 Sobre esse ponto, Ulrich Beck afirma que “producing confliting knowledge on risk is a matter of good and not bad experts”. Em “The Politics of Risk Society”, in Franklin, Jane (ed.), The Politics of Risk Society (Polity Press, Reino Unido, 1998), págs. 13 e 14. 8 É exatamente esse fenômeno que inspirou todo o desenvolvimento teórico sobre a sociedade do risco (risk society). Sobre o assunto ver Beck, Ulrich, Risk Society: Towards a New Modernity (Sage Publication, Londres, 1992). 9 Ressalte-se que mesmo a alternativa pela não decisão envolve riscos; no mínimo a perda dos eventuais benefícios que teriam sido alcançados por ter se tomado a decisão. 10 Luhmann, apesar de reconhecer o papel da abordagem quantitativa, entende que ela não fornece um conceito de risco que sirva para uma análise das implicações sócio-políticas do risco. Ver ob. cit. n. 3, pág. 13-14. 11 11 O controle dos riscos de mercado envolvidos nas aplicações feitas pelos agentes no mercado financeiro com base nos modelos denominados Value at Risk (VaR) é baseado nesses cálculos de probabilidade a partir de dados estatísticos sobre eventos passados. Ver Jorion, Value at Risk: the benchmark for controlling market risk (Mcgrow-Hill, Nova Iorque e Londres, 2000). Para uma exposição geral do ponto de vista histórico sobre a mensuração do risco sob uma perspectiva técnica ver Bernstein, Peter L., Against de Gods: The remarkable story of risk (John Wiley & Sons, Nova Iorque, 1996). Sobre o tema, ver também Baldwin, Robert e Cave, Martin, Understanding Regulation – Theory, Strategy and Practice (Oxford University Press, Reino Unido, 1999), capítulo 11.
realista, entre o risco aceitável e o risco inaceitável. A partir deste momento, risco deixa de ser um
mito ou uma questão puramente técnica, para se tornar uma questão de decisão individual, ou, no
plano social, numa questão política.
Em alguns casos, contudo, não é possível calcular as probabilidades de que
determinado evento venha a acontecer por não existirem dados disponíveis sobre eventos
passados. Diante dessa situação, sabe-se que há um perigo no futuro, mas não se pode calcular
as chances de que essa ameaça venha realmente a se concretizar, dando origem a uma nova
distinção, essa proposta pelo economista Frank Knight, entre risco e incerteza. Enquanto eventos
que ocorrem ao acaso, mas com certa regularidade, são considerados riscos, pois a distribuição de
probabilidades de sua ocorrência durante certo espaço de tempo pode ser calculada, eventos com
pequena probabilidade de ocorrência não são passíveis de cálculos de probabilidade, não sendo
considerados assim riscos propriamente ditos, mas incertezas.12
1.2. Risco sistêmico no sistema bancário
Com o auxílio das observações acima expostas, pode-se agora analisar de maneira mais
clara a idéia de risco sistêmico que envolve a atividade bancária. A expressão risco sistêmico
utilizada cotidianamente não tem um significado muito preciso, mas é geralmente empregada para
referir-se sobre o receio de que vários bancos venham a quebrar em razão de algum
acontecimento específico. Esta crença gera alguns problemas e não serve como um conceito
direcionador da ação pública, pois não se tem claro sobre o que se está falando quando tal
conceito é invocado. Por um lado, o temor do risco sistêmico dá carta branca às autoridades
responsáveis pela manutenção da estabilidade do sistema financeiro, no caso brasileiro, o Banco
Central do Brasil, para que tomem as iniciativas que entendam necessárias para controlá-lo. E, por
outro lado, cria uma indignação pública contra supostos “privilégios” que são concedidos aos
bancos para que se evite a crise sistêmica, como exemplifica a grande polêmica criada em razão
da instituição do PROER após a quebra de grandes bancos nacionais a partir de 1994. Por isso,
algumas questões devem ser revolvidas para que se delimite o âmbito de aplicação do conceito
risco sistêmico. Seria importante investigar, por exemplo, qual é a relação entre risco sistêmico e
os riscos assumidos pelas instituições financeiras? Qual tipo de evento pode gerar o risco
sistêmico? Quem pode arcar com as perdas ocasionadas pelo risco sistêmico? Por que o risco
sistêmico é próprio ao sistema bancário? Para responder essas questões, é preciso que primeiro
se defina o que e o risco sistêmico.
12 Knight, F., Risk, Uncertainty, and Profit, 1921, citado por Mayer, Colin, “The Assessment: Financial Stability”, in Oxford Review of Economic Policy, Vol. 15, n. 3, págs. 1-8, 1999.
De Bandt e Hartmann13 oferecem uma definição de risco sistêmico que se baseia na
noção de evento sistêmico. Essa definição é bastante esclarecedora por mostrar todas as
implicações deste conceito. Referidos autores definem que um evento sistêmico pode ser tanto um
evento em que a divulgação de informações sobre uma instituição financeira, ou sua própria
quebra, acarrete efeitos adversos sobre uma ou mais instituições financeiras (hipótese em que se
fala em evento sistêmico singular), como também o evento em que se verifiquem vários
acontecimentos que tenham efeitos adversos sobre uma ou mais instituições financeiras (nesse
caso, fala-se em evento sistêmico amplo). Assim, um evento sistêmico pode ser originado por fato
isolado, relacionado inicialmente a uma única instituição financeira, ou por um acontecimento cujos
efeitos refletem sobre várias instituições financeira simultaneamente, como, por exemplo, uma
alteração abrupta nas condições macroeconômicas.14 No entanto, o evento sistêmico não se
esgota neste fato ou acontecimentos, mas abrange também suas conseqüências.
O conceito de evento sistêmico pode, assim, ser decomposto em dois elementos:
choques e mecanismos de propagação sistêmico (i,e., a quebra de uma única instituição financeira
em razão de fraude interna, ou a maxi-desvalorização da moeda nacional). Já mecanismos de
propagação são os mecanismos pelos quais o choque se propaga de uma instituição financeira
para outras.15 Como o próprio nome indica, para que um evento sistêmico ocorra é que exista uma
relação de causalidade entre o choque e os acontecimentos a ele posteriores. Assim, se duas
instituições tornarem-se insolventes por razões independentes, por exemplo, por fraude cometida
pela administração de cada uma delas, não se estará diante de um evento sistêmico, mas de
casos isolados e simultâneos. Isto não quer dizer, contudo, que esses dois fatos não possam
constituir um choque, que dará início a um evento sistêmico, contaminando outras instituições
financeiras sólidas.
Os eventos sistêmicos também se diferenciam quanto aos seus desfechos. Se as
instituições financeiras afetadas durante o evento sistêmico absorverem o choque, mantendo a sua
solvência, estar-se-á diante de um evento sistêmico fraco. Contrariamente, no caso de uma ou
mais instituições afetadas tornarem-se insolventes, sendo que se encontravam financeiramente
sólidas antes de ter-se iniciado o evento, terá ocorrido um evento sistêmico forte. Nesse caso, se
mais de um banco vier a quebrar, pode-se falar em crise sistêmica.16
13 De Bandt, O. e Hartmann, P., Systemic Risk: A Survey, Working Paper n. 35, Banco Central Europeu, Working Paper Series, Novembro de 2000. 14 Ob. cit. n. 13, pag 10. Efeitos sistêmicos singular e amplo são traduções para as expressões narrow systemic event e broad systemic event. 15 Ob. cit. n. 13, pág. 10 e 11. 16 Ob. cit, n. 13.
A partir dessas colocações, De Bandt e Hartmann definem risco sistêmico como “o risco
de que ocorram eventos sistêmicos no sentido forte”.17 Portanto, para esses autores o conceito de
risco sistêmico pressupõe a possibilidade de duas ou mais instituições financeiras venham a
quebrar em razão de um acontecimento independente de suas ações. A ênfase na possibilidade de
quebra é importante porque tantos choques como mecanismos de transmissão são
acontecimentos naturais em toda a economia. Na medida em que esses choques são absorvidos,
a sua transmissão faz com que a economia saia de um equilíbrio, para funcionar em outro ponto de
equilíbrio. O que é específico ao risco sistêmico é que nessa hipótese a transmissão do choque
pode levar a uma desestabilização geral do sistema, ou ao seu colapso.18 Ou, como afirmam
Anglietta e Moutot, o que se verifica é a passagem de um equilíbrio normal para um equilíbrio
anormal.19
Note-se, contudo, que nem todos os autores parecem aceitar que a quebra de
instituições financeiras seja essencial para a caracterização de risco sistêmico. Julia Black, por
exemplo, conceitua risco sistêmico como "o risco que uma quebra (de uma firma, de um segmento
de mercado, do sistema de pagamentos, etc.) cause dificuldades generalizadas em outras firmas,
outros segmentos de mercado, ou no sistema financeiro como um todo, através do contágio de
efeito dominó, expectativas convergentes, rumores e especulação”.20 No entanto, entendemos que
diante da volatilidade da economia moderna e com o aumento da capacidade das instituições
financeiras de absorver os choques daí derivados (por meio das modernas técnicas de controle de
risco, ou em razão da regulação prudencial), como também para evitar a banalização do conceito
de risco sistêmico,21 deve-se limitar tal conceito, pelo menos no que se refere ao sistema bancário,
para os casos em que de fato exista a possibilidade de quebra de instituições financeiras sólidas
em razão de fatos a elas independentes. Essa caracterização permite que se possam distinguir
situações normais de mercado de situações anormais, sendo que só nas últimas estar-se-á diante
17 “Systemic risk (in the narrow and broad sense) can be defined as the risk of experiencing systemic events in the strong sense.” Ob. cit., pág. 11. 18 Black, J., "Perspectives on Derivatives Regulation", in Hudson, A. (ed), Modern Financial Techniques. Derivatives and Law (Kluwer Law, Londres, 2000). 19 Aglietta, M. e Moutot, P, "Le Risque de Sistéme et sa Prévention", in Cahiers Économiques et Monetaires, n.41, 1993, págs. 21-53. Ver especificamente página 23. De Bondt e Hartmann também fazem afirmação semelhante no sentido de que enquanto a transmissão de choques naturais levam ao ajustamento da economia para um novo equilíbrio, no caso de risco sistêmico esses choques levam a uma desestabilização geral – ver ob cit. n. 13, pág. 11. 20 "The risk that a disruption (in a firm, in a segment market, a settlemenl system, etc.) causes widespread difficulties in other firms, in other market segments or in the financial systems as a whole through the contagion domino effects, convergent expectations, rumours and speculation.” Ob. cit. n. 18. 21 Como bem ressaltou o Conselheiro Celso Campilongo quando do aditamento de seu voto no julgamento do Caso Banco Finasa.
de risco sistêmico ou crise sistêmica, enquanto nas primeiras tratar-se-á de riscos normais,
inerentes ao mercado bancário.
Diante desses apontamentos, pode-se dizer que a idéia de risco sistêmico, ao menos no
que se refere ao setor bancário, se baseia em três elementos: choques, contágio (ou mecanismos
de transmissão) e resultados que incluam a possibilidade de quebra de outras instituições
financeiras. Considerando esses três elementos básicos, pode-se dizer que risco sistêmico no
setor bancário é o risco de que a quebra de um banco, ou de qualquer outro fato, contagie uma ou
outras instituições, resultando na quebra de uma ou mais instituições que anteriormente se
encontravam solventes. Colocando-se de outra forma, é a possibilidade de que a quebra de uma
ou mais instituições financeiras seja conseqüência, direta ou indireta, de um fato que não foi por
elas diretamente causado, que permite dizer que tal fato cria um risco sistêmico, ou seja, que
coloca em risco a estabilidade de parte ou de todo o sistema financeiro.
Chegando a esta primeira conclusão, duas questões devem ser colocadas. Por que uma
instituição bancária solvente pode tornar-se insolvente em razão da quebra de outra instituição, ou
de outro fato dela independente? E, como os choques são transmitidos dentro do sistema
bancário?
1.3. Por que os bancos são vulneráveis ao risco sistêmico
Para que se entenda porque os bancos podem ser considerados estruturalmente mais
vulneráveis ao risco sistêmico do que outras instituições financeiras, é preciso que se olhe para a
composição de seus balanços patrimoniais. Por um lado, os ativos dos bancos constituem-se de
empréstimos por eles concedidos aos seus clientes, a serem pagos em determinado prazo e com o
acréscimo dos juros contratados. O termo de duração desses empréstimos pode variar entre
alguns dias, meses ou até anos. Mas o que é certo é que os bancos não podem exigir o seu a
pagamento a qualquer momento ou quando necessitarem do dinheiro emprestado.
Já o passivo do banco é constituído primordialmente de depósitos à vista, contas
correntes, ou contas remuneradas com determinado tempo de carência (por exemplo, conta
poupança). Essas contas ou depósitos caracterizam-se pelo fato de que seus titulares podem
reaver o seu dinheiro a qualquer momento, pelo seu valor integral, descontando-se apenas os
juros do período no caso de contas remuneradas que ainda não cumpriram o prazo de carência.
Não podem os bancos, portanto, negar a devolução do dinheiro depositado sob argumento de falta
de liquidez, sob pena de, ao menos no caso brasileiro, terem a respectiva liquidação extrajudicial
decretada.22
Ou seja, se nas suas operações passivas (depósitos) os bancos devem cumprir as suas
obrigações a qualquer momento, tão logo o depositante assim exigir, nas suas operações ativas
(empréstimos), os bancos devem esperar o prazo de maturação de seus créditos para que
recebam o valor devido. O que torna essa situação patrimonal bastante arriscada é que os bancos
financiam grande parte de suas operações ativas com os recursos captados por meio das suas
operações passivas. Em outras palavras, é o dinheiro depositado pelos seus clientes que é
utilizado pelos bancos para concederem seus empréstimos. Assim, pode-se dizer que os bancos
incorrem num risco relativo à estrutura temporal de suas obrigações (term structure risk), na media
em que é impossível sincronizar o vencimento de suas obrigações passivas com o vencimento de
suas obrigações ativas.23
É exatamente essa característica nos balanços patrimoniais dos bancos que tornam
essas instituições vulneráveis a crises de confiança. Tais crises podem acarretar em corridas
bancárias, as quais acontecem quando os depositantes decidem sacar os valores depositados por
temerem que os bancos não terão capacidade de honrar seus compromissos de pagar à vista e
em moeda todo o valor depositado.24 A razão desta fragilidade reside no fato de que os bancos
não mantêm em dinheiro todos os valores registrados em depósito, mas apenas uma pequena
parte dessas quantias para que possam atender as necessidades normais de liquidez. Assim, caso
todos os depositantes decidam sacar seus valores simultaneamente, qualquer banco irá à
insolvência. Isto ocorrerá não só porque os bancos consumirão as suas reservas de liquidez ao
restituir os depósitos aos primeiros depositantes que os demandem, mas porque, uma vez
consumidas as reservas de liquidez, os bancos terão que se desfazer de seus ativos no mercado
secundário, o que farão por valores muito abaixo do valor de face dos créditos, já que não existe
um mercado secundário eficiente para grande maioria dos créditos bancários.25 Assim, caso os
22 Artigo 15, inciso I, alínea "a", da Lei 6.024, de 13 de março de 1974. 23 Corrigan, E.G., "Why Banks Are Special", Annual Report 1982, Federal Reserve Bank of Minneapolis. Este autor afirma, ainda, que o que torna os bancos instituições específicas é exatamente a composição de seu passivo, composto por depósitos à vista, uma vez que nada há de diferente em relação ao seu ativo - pág. 14. 24 Dwyer Jr, G. P. and Gilbert, R. A., "Bank Runs and Private Remedies", in The Federal Reserve Bank of St. Louis Review, vol. 71, n. 3, maio/junho de 1989, págs. 43-61. 25 Goodhart et al. explicam que os ativos dos bancos são de difícil comercialização no mercado secundário porque existem assimetrias de informações entre o banco vendedor e os potenciais compradores sobre a qualidade dos créditos, uma vez que os últimos não têm as informações necessárias para avaliarem a situação financeira dos devedores dos créditos à venda. Ver Goodhart, C. Hartmann, P., Llewellyn, D., Rojas-Suárez, L. e Weisbrod. S., Financial Regulation - Why, how and where now? (Routledge, Londres e Nova lorque, 1998), pág. 11.
depositantes de um banco, que inicialmente era financeiramente sólido, decidam sacar seus
depósitos simultaneamente, este processo levará o banco a uma crise de liquidez, que resultará,
em continuando o processo, na insolvência do banco.
Importante ressaltar que esta característica no balanço patrimonial dos bancos é
essencial ao exercício de uma das funções mais importantes por eles desempenhadas na
sociedade moderna: a de provedores de liquidez ao sistema econômico.26 José Tadeu de Chiara
explica essa função desempenhada pelos bancos com as seguintes palavras: “Apenas uma parte
do total de depósitos é conservado como encaixe para atender saques, e, o remanescente,
instrumenta a concessão de créditos. A partir de uma quantidade determinada de moeda recebida
em depósito, opera-se o efeito multiplicador nos registros contábeis dos bancos. Ao lado do poder
emissor do Estado, verifica-se que o sistema bancário pela peculiaridade de seu funcionamento
opera a criação contábil de disponibilidades monetárias identificadas como moeda bancária ou
moeda escritural”.27
Desta forma, torna-se claro que, diante da eminência de uma corrida bancária, é
absolutamente racional que os depositantes corram ao banco para tentar sacar as quantias
depositadas, já que a lógica de funcionamento dos bancos se baseia na regra de que serão os
primeiros da fila que receberão o valor integral de seus depósitos (first come, first served) Disto,
duas conclusões podem ser extraídas. Primeira: mesmo sendo absolutamente racional, uma
corrida bancária pode ser altamente ineficiente do ponto de vista social, uma vez que, no caso
extremo, pode levar um banco à insolvência.28 Segunda: as corridas bancárias, caso não haja uma
intervenção governamental para estancá-las, podem ser auto-realizadoras, no sentido de que o
banco será levado à insolvência caso seus depositantes acreditem que ele está insolvente, mesmo
o contrário sendo verdadeiro.
Tendo sido demonstrado que os bancos são mais vulneráveis a crises sistêmicas porque
eles correm um constante risco de liquidez em razão da natureza das suas operações, o próximo
26 Ver Corrigan, E. G., ob cit. n. 23. 27 De Chiara, José Tadeu, Moeda e Ordem Jurídica, Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986, págs. 82-83. Para uma explicação pormenorizada da capacidade do sistema bancário de emitir moeda escritural, criando liquidez, ver o Capítulo IV dessa Obra. 28 Isto não quer dizer que toda a corrida bancária é ineficiente para sociedade. Conforme explicam De Bandt e Hartmann, caso uma corrida bancária seja desencadeada contra um banco que já está insolvente, mas ainda continua operando, ao financiar as suas necessidades de liquidez no mercado interbancário ou na janela de redesconto, a conseqüente quebra da instituição pode ser socialmente eficiente, ao evitar que a mesma continue a acumular perdas, desde que não haja o contágio de outros bancos solventes. Ver, ob. cit. n. 13, pág. 15.
passo será expor como operam os mecanismos de transmissão, que são responsáveis pelo
contágio de um banco solvente em razão de um fato a ele estranho.
1.4. Mecanismos de transmissão
Existem essencialmente dois mecanismos de transmissão de choques no sistema
bancário que tornam possível a existência de crises sistêmicas: o informacional e aquele que se dá
pelas exposições reais entre bancos.29
O mecanismo informacional é explicado pela existência de informações assimétricas
entre os bancos e seus depositantes quanto às situações patrimoniais dos primeiros. No atual
cenário, os depositantes, mas principalmente os pequenos depositantes não têm como saber qual
é o verdadeiro estado patrimonial do banco em que suas economias estão depositadas, muito
menos a qualidade dos créditos concedidos pelo banco, cujos pagamentos, em última instância, é
o que o manterá solvente. Assim, mesmo diante de boatos infundados quanto à situação financeira
do banco, ocasionados, por exemplo, pela quebra de outra instituição financeira, mesmo que
insolvente, pode levar a um a crise de confiança em todo o sistema bancário, alimentada pela falta
de informação dos depositantes sobre a situação patrimonial dos bancos dos quais são clientes,
dando origem a uma corrida bancária generalizada. Desta forma, do ponto de vista teórico, é
possível ver como a quebra de apenas uma instituição financeira pode gerar o risco sistêmico,
pondo em risco a estabilidade de todo o sistema bancário a partir de uma crise de confiança.
Veja que o mecanismo informacional não se limita a casos em que o evento sistêmico
tem início com a quebra de determinado banco. O mesmo pode ocorrer caso seja declarada a
falência de uma grande empresa não financeira, a qual os depositantes acreditam que seja
devedora de grandes quantias aos bancos em que os mesmos mantêm seus depósitos. Desde que
essas exposições não sejam grandes o suficiente para levar o banco à insolvência, pode suceder a
quebra de uma instituição financeira que será ineficiente do ponto de vista social e que poderá
levar a uma crise sistêmica. O mesmo raciocínio é válido em relação a uma inesperada maxi-
desvalorização da moeda nacional, caso os bancos tenham parte de suas dívidas denominadas
em moeda estrangeira. O importante a ressaltar é que, para que se considere que o contágio
sistêmico seja causado em conseqüência de informações assimétricas, é necessário que exista
uma falsa presunção por parte dos depositantes em relação a situação patrimonial dos bancos,
decorrente da incapacidade de obter informações fidedignas sobre o real estado patrimonial em
que os bancos se encontram.
29 De Badt e Hartmann, ob cit. n. 13.
Eliminar o potencial de contágio de crises sistêmicas por meio do mecanismo
informacional é um dos objetivos do Comitê da Basiléia ao propor que a disciplina pelo mercado
(market discipline) seja adotada no Novo Acordo da Basiléia (The New Basel Capital Accord), que
ainda está em discussão, como pilares a direcionarem as autoridades nacionais na regulação
prudencial dos bancos. A idéia é disponibilizar a maior quantidade possível de informações ao
mercado sobre a situação patrimonial das instituições bancárias e os riscos a que estão expostas,
incluindo quem são os seus principais devedores, não só para que os bancos sejam constrangidos
pelo próprio mercado a adotarem políticas de crédito mais consistentes, mas também porque
dessa maneira diminuir-se-ia a assimetria de informações existente entre os bancos e seus
depositantes.30
O outro canal de transmissão de choques dentro do sistema bancário são as exposições
reais existentes entre os bancos. O inter-relacionamento entre os bancos se dá em dois ambientes:
no mercado interbancário e no sistema de pagamentos. O mercado interbancário funciona como
um mecanismo de seguro entre os bancos, na medida em que uns financiam as necessidades de
liquidez dos outros, de forma a diluir os riscos de liquidez de cada instituição.31 Assim, caso um
banco tenha problemas momentâneos de liquidez, pode ele socorrer-se no mercado interbancário
para financiar suas necessidades, sem ter que apelar para a janela do redesconto.
Ocorrer que, em momentos em que a demanda por liquidez torna-se muito grande, a
liquidez agregada do sistema bancário pode ser insuficiente para cobrir as necessidades de seus
participantes. Neste caso, a situação mais delicada de uma instituição pode contagiar as outras em
razão das exposições anteriormente estabelecidas para financiar o que era de início uma
necessidade isolada de liquidez. Desta forma, o que começou apenas como uma crise de liquidez
limitada a uma instituição pode colocar todo o sistema bancário em risco, caso na haja uma injeção
de liquidez por parte do Banco Central, que estará exercendo, assim, sua função de emprestador
de última instância.
Já o sistema de pagamentos é onde são compensadas as posições de cada banco
depois de verificados quais são os valores devidos entre os bancos em razão dos pagamentos
efetuados pelos seus clientes por meio de cheques ou transferências interbancárias, que, por sua
vez, nada mais são do que transferências de créditos contra essas instituições.32 Ocorre que as
30 Para uma visão geral sobre as novas propostas apresentadas pelo Comitê da Basiléia, a serem adotadas na regulação prudencial dos bancos, ver The New Capital Accord: na explanatory note, Secretariat of the Basel Committee on Banking Supervision, January 2001, Bank for International Settlements (www.bis.org). 31 De Bandt e Hartmann, ob. cit. n. 13. pág. 32 Ver José Tadeu de Chiada, ob. cit. n. 27, pág. 81.
posições finais de cada banco são saldadas com transferência real de recursos. No entanto, caso
uma instituição credora também fique inadimplente perante outros bancos, criando, assim, um
efeito em cadeia, que poderá causar uma crise sistêmica.33
1.5. Considerações finais sobre risco sistêmico
Em razão dos próprios mecanismos de funcionamento do sistema bancário, o risco
sistêmico é algo a ser realmente levado a sério quando da regulação das instituições bancárias.
Apesar de ser possível limitar os riscos assumidos por cada instituição a fim de reduzir as chances
de ocorrência de uma crise sistêmica, é muito difícil prever quando uma crise vai ocorrer, pois o
seu estopim, muitas vezes, é um concerto de ações individuais na mesma direção. Nesse sentido,
pode-se dizer que as crises sistêmicas, principalmente no que se refere aos seus mecanismos de
contágio, tem um quê de psicologia social, o que as torna eventos raros, mas cujos resultados
podem ser devastadores. Por isso, é possível argumentar que o risco sistêmico é muito mais uma
incerteza, no sentido proposto por Knight, do que um risco propriamente dito.
Já o mesmo não pode ser dito em relação aos riscos assumidos por cada banco
especificamente. Apesar da incerteza que existe em relação à ocorrência de corridas bancárias, os
riscos que cada instituição assume em suas operações cotidianas são riscos propriamente ditos,
pois podem ser calculados e, no mais das vezes, controlados. Por isso, a distinção proposta por
Luhmann entre risco inaceitável pode ser aplicada em relação aos riscos ordinários que estão
presentes no dia-a-dia da atividade bancária. E também aqui o critério a ser utilizado para definição
do que é, ou não, aceitável, deve ser político, não só em razão da importância social dos bancos,
mas também por causa das conseqüências que os riscos assumidos por uma instituição pode
causar a todo o sistema bancário, em função da própria noção de risco sistêmico, bem como
porque em ocorrendo uma crise bancária é a sociedade quem, direta ou indiretamente, arcará com
sues custos.
Diante disso, vê-se que a regulação dos bancos, tanto no seu sentido prudencial, quanto
sistêmico, apesar de serem baseadas em conhecimentos altamente técnicos, tem um componente
político que não pode ser esquecido. Em última instância, a questão a ser formulada é qual é o
nível de riscos que a sociedade aceita que sejam assumidos pelo sistema bancário? E a resposta
a esta pergunta passa pela consideração dos riscos assumidos por cada banco individualmente. É
33 Para uma explicação consistente sobre risco sistêmico no sistema de pagamentos, ver Folkerts-Ladau, D. Garver, P.M. and Wiesbrod, S.R., “Supervision and Regulation of Financial Markets in a New Financial Environment”, in Wihlborg, C. Frantianni, M. and Willett, T.D. (eds.), Financial Regulation and the Monetary Arrangements after 1992 (Elsevier Science Publishers, Amsterdam, 1991).
esse componente político que deverá ser sopesado para decidir sobre o papel que a concorrência
deverá ter no mercado bancário.
II. Regulação bancária: estabilidade financeira e promoção da eficiência
O objetivo desta segunda parte é analisar o atual estágio da regulação bancária e o
papel que deve ser atribuído à defesa da concorrência. Para tanto, inicialmente serão revistos os
mecanismos de intervenção governamental no sistema bancário para garantir a estabilidade
financeira, notadamente a regulação prudencial e a regulação sistêmica, traçando uma distinção
entre ambas. Em seguida serão analisadas algumas mudanças ocorridas no mercado bancário nos
últimos vinte anos e seus reflexos tanto na regulação bancária quanto no papel a ser
desempenhado pela defesa da concorrência nesse mercado.
2.1. Regulação prudencial e regulação sistêmica: diferenças
Para mitigar a possibilidade de quebras no sistema bancário, o Estado lança mão de dois
instrumentos básicos: regulação prudencial e regulação sistêmica. Apesar da distinção entre
regulação prudencial e sistêmica ser bastante utilizada na literatura, pode-se dizer que o seu papel
maior é o de limitar o âmbito de utilização da segunda, na medida em que existe uma relação de
complementaridade entre ambas. Assim, enquanto regulação prudencial tem como objetivo
primordial a proteção do depositante, buscando preservar a solvência e a higidez de cada
instituição isoladamente considerada, regulação sistêmica visa proteger o sistema bancário como
um todo, protegendo o depositante apenas indiretamente.
A justificativa econômica da regulação prudencial é a incapacidade dos depositantes de
avaliarem e supervisionarem a evolução patrimonial dos bancos. Diante desta situação, o Estado
cria uma série de normas a serem observadas pelos bancos nas suas operações diárias, que
visam garantir a sua higidez ao impor exigências de capital mínimo, bem como limites à
concentração de riscos e à exposição a grupos ou a setores específicos da economia. Apesar de
objetivar a proteção do consumidor, a regulação prudencial acaba beneficiando também a
estabilidade sistêmica ao criar bancos mais sólidos.
Já a regulação sistêmica justifica-se porque em alguns casos os custos sociais da
quebra de instituições financeiras podem superar os custos privados, os quais na maioria das
vezes não são considerados nas decisões individuais de investimento. Caso a quebra de uma
instituição financeira leve a uma crise sistêmica, os custos dela decorrentes não serão suportados
apenas pelos acionistas, credores e depositantes da instituição, mas, em casos limite, por toda a
sociedade. Crises bancárias de grandes proporções podem ter reflexos negativos generalizados
não só em todo o sistema financeiro, como também no setor real da economia, na medida em que
geram uma contração significativa na liquidez do sistema econômico, podendo levar a sociedade à
recessão.
São instrumentos clássicos da regulação sistêmica o seguro de depósitos e a função de
emprestador de última instância desempenhada pelo banco central. O papel do seguro de
depósitos é basicamente desestimular corridas bancárias, ao dar uma garantia ao pequeno
poupador que ele receberá até determinado limite, o valor depositado numa instituição que foi à
insolvência. Assim, a razão de ser do seguro de depósito é servir como um remédio contra crises
sistêmicas, não como um instrumento paternalista de proteção ao consumidor.
A atuação da autoridade monetária como emprestador de última instância (também
denominada como janela de redesconto) visa socorrer, de forma temporária, instituições bancárias
que são solventes, mas que se encontram transitoriamente com problemas de liquidez. A janela do
redesconto pode ser vista não como uma forma de ajuda a uma instituição isolada, mas sim a todo
o sistema bancário em momentos em que há uma escassez de liquidez agregada. Conforme acima
explicado, nessas situações o mercado interbancário não é capaz de solucionar problemas
isolados, em razão da falta de liquidez em todo o sistema. No entanto, a grande questão a ser
enfrentada pela autoridade monetária no desempenho da função de emprestador de última
instância é distinguir a instituição solvente, mas com problemas temporários de iliquidez, da
instituição insolvente. O que é importante deixar claro é que a janela de redesconto não é uma
forma de co-responsabilização entre o banco central e as instituições bancárias. Em outras
palavras, não há direito adquirido das instituições bancárias a janela de redesconto, pois a
autoridade monetária tem total discricionariedade de decidir quanto irá, ou não, socorrer um banco,
sempre tendo como fim último a preservação da estabilidade do sistema.
A utilização limitada dos instrumentos de regulação sistêmica é importante para que se
evite a criação do que se chama de moral hazard. Moral hazard pode ser explicado como a
possibilidade de que os agentes econômicos façam as suas decisões de investimento sem
considerar todos dos riscos envolvidos, por disporem de mecanismos que funcionam como
verdadeiras apólices de seguro contra eventuais prejuízos, que podem incentivar o aumento dos
riscos do sistema como um todo.
Em casos extremos, alguns países também outorgam às suas autoridades bancárias o
poder de impor reorganizações societárias, acompanhadas de financiamento com dinheiro público,
ou mesmo a nacionalização de bancos, como instrumentos para solucionar crises sistêmicas.
Nesses casos, o objetivo é viabilizar a continuidade dos contratos das instituições insolventes,
preservando principalmente os seus depositantes, a fim de evitar a perda generalizada de
confiança no sistema, mas limitando ao máximo a transferência de renda para os acionistas e
administradores da instituição. Nesse sentido, pode-se dizer que a responsabilidade das
autoridades governamentais é impedir que uma pseudo-crise, isto é, limitada apensas ao sistema
financeiro, transforme-se em uma crise real, que atinja toda a economia.
Apesar de existir uma relação de complementaridade entre regulação prudencial e
regulação sistêmica, pode-se dizer que a primeira, além de visar a proteção do consumidor, tem
um caráter preventivo, sendo pautada por diretrizes técnicas que visam limitar os riscos incorridos
por cada banco. Já a segunda é mais um remédio a ser utilizado quando já iniciado, um evento
sistêmico, para que se limite o contágio do choque inicial, evitando-se assim uma crise sistêmica:
Para tanto, é necessário em muitos caso a injeção de dinheiro público no sistema bancário, o que
reforça, ainda mais o caráter político da regulação sistêmica.
2.2. Internacionalização, liberalização, estabilidade financeira e concorrência no Setor Bancário
O mercado bancário vem sofrendo muitas mudanças em diversos países nos últimos
anos, as quais vem afetando de maneira sensível tanto a estabilidade financeira como a
concorrência. Dentre elas, três fenômenos podem ser destacados como bastante significativos:
desintermediação financeira, desregulação e internacionalização da economia.
Desde a década de 70 observa-se uma crescente integração da economia mundial, tanto
em decorrência do desenvolvimento tecnológico como em razão da abertura dos mercados
nacionais e da liberalização das contas de capital. Essa maior integração da economia
internacional aumentou de forma acentuada a concorrência entre os grandes bancos com atuação
internacional e, por conseqüência, criou um ambiente de concorrência entre as próprias
autoridades governamentais dos grandes centros financeiros (regulatory competition), cada uma
querendo garantir a sobrevivência no cenário mundial de seus bancos líderes, e principalmente
manter a posição de preponderância de seus centros financeiros. Em contrapartida, o poder de
cada país supervisionar seus bancos ficou bastante limitado, na medida em que os mesmos
realizavam suas transações em diversos países, muitas vezes fora do alcance das autoridades
nacionais. A limitação da capacidade regulatória das autoridades bancárias tornou-se um problema
ainda mais acentuado com os crescentes volumes de capitais transitando pelo mundo e a grande
volatilidade da economia internacional decorrente do abandono de Acordo de Bretton Woods e dos
dois choques do petróleo ocorridos na década de 1970.
Diante dessa situação de grande instabilidade financeira e acentuada concorrência
internacional, o grupo dos G-10, que incluem os dez países com maior participação no mercado
bancário mundial, uniram-se no Comitê da Basiléia para criar alguns princípios básicos a serem por
eles observado na regulação de seus bancos, visando não só coordenar a ação das respectivas
autoridades bancárias, mas também definir um nível regulatório mínimo no qual se daria a
concorrência internacional.
Apesar dos países periféricos terem participado desse processo apenas como
espectadores, eles sentiram de maneira bastante acentuada os seus reflexos. Primeiramente
porque os princípios estabelecidos para regulação bancária pelo Comitê da Basiléia foram
adotados pela grande maioria dos países no mundo, em grande parte por pressão dos países
membros do G-10. Em segundo lugar, porque os grandes bancos com atuação mundial acabaram
por adentrar os seus mercados -nacionais, mudando de maneira bastante sensível à composição
do mercado bancário em diversos países.
Como decorrência do fenômeno de internacionalização, verificou-se também um
movimento de desregulação ou liberalização dos mercados internacionais, caracterizado pela
tendência de abandono de um modelo estrutural de regulação bancária, para adoção de um
modelo prudencial. O modelo estrutural foi implementado nos Estados Unidos depois da Crise de
1929, para ser adotado em diversos países pelo mundo, inclusive pelo Brasil. Tal modelo
caracterizava-se pela limitação das atividades a serem desempenhadas pelas instituições
financeiras (principalmente no que se refere a distinção entre bancos comerciais e bancos de
investimento), bem como pela imposição de regras sobre a própria prestação dos serviços
financeiros (i.e., limitação das taxas de juros na captação de depósitos). Os objetivos da regulação
estrutural podem ser resumidos basicamente em três pontos: diminuir a concorrência predatória
entre as instituições bancárias, ao que foi atribuída parte da culpa pela crise bancária vivenciada
nos Estados Unidos no começo da década de 1930; acabar com os conflitos de interesses
existentes dentro das instituições financeiras; e limitar o potencial de propagação de choques tanto
entre diferentes mercados (mercado de ação versus mercado bancário), como do ponto de vista
geográfico.
Já o modelo prudencial de regulação bancária é aquele proposto pelo Comitê da
Basiléia, que visa preservar a higidez das instituições financeiras ao estabelecer quantidades
mínimas de capital ponderadas de acordo com os riscos assumidos por cada instituição, mas não
limitando as atividades possíveis de serem por elas exercidas. Essa mudança de enfoque na
regulação bancária permitiu o surgimento dos grandes conglomerados financeiros que, seguindo o
modelo do "banco universal alemão", atuam nos mais diversos segmentos dos mercados
financeiros por meio de sociedades distintas mas integrantes do mesmo grupo econômico.
Ainda como parte da liberalização do mercado bancário, verificou-se um movimento de
desintermediação da atividade financeira com a criação de outros mecanismos de captação da
poupança popular (ex., fundos mútuos), e o desenvolvimento do mercado de títulos de dívida e de
securitização de dívidas. Em razão da semelhança entre diversos produtos financeiros oferecidos
por diferentes agentes, os bancos passaram a sofrer concorrência de produtos quase substitutos
nas duas pontas de suas atividades: captação de depósitos e concessão de crédito.
Em decorrência dessas grandes transformações verificadas nos mercados financeiros
durante os últimos vinte anos, duas conseqüências podem ser ressaltadas: ganhos de eficiência na
intermediação financeira e o aumento da instabilidade financeira. Enquanto o ganho de eficiência
do mercado financeiro em razão da liberalização do setor parece ser objeto de certo consenso na
literatura sobre o tema, o mesmo não se pode afirmar em relação à existência de uma relação de
causalidade entre a crescente instabilidade financeira e a desregulação do mercado bancário.
Alguns autores afirmam de maneira enfática essa relação, mas outros autores, mesmo
reconhecendo o aumento da instabilidade financeira, encontram sua explicação em desajustes
macroeconômicos conjugados com a maior volatilidade da economia internacional.
O que nos parece claro, contudo, é que as transformações institucionais vivenciadas
pelos mercados financeiros, marcadas por ampla liberalização e o paulatino mas constante
abandono da regulação estrutural para adoção de um modelo prudencial, foram guiadas pela
perseguição de ganhos de eficiência em detrimento da estabilidade do sistema. Ao aposentar um
modelo onde a cartelização e a segmentação do mercado bancário era de certa forma até
incentivada como um antídoto contra a instabilidade financeira, para a construção de um modelo
no qual além de se incentivar a com- petição entre os bancos, permite-se a concorrência entre
empresas financeiras de naturezas diversas e a formação de grandes conglomerados financeiros,
de formal a tornar o mercado bancário e o mercado de capitais cada vez mais interdependentes,
aumentando o potencial de contágio entre eles, representa uma opção clara pela eficiência
econômica e no mínimo a flexibilização dos meios para obter a estabilidade financeira. Ressalte-se
que a intenção de se criar um mercado financeiro cada vez mais eficiente e flexível é evidente na
evolução dos mecanismos de regulação prudencial .desenvolvidos no âmbito do Comitê da
Basiléia. A possibilidade de adoção de mecanismos internos de controle de riscos de mercado,
baseados em modelos de Value at Risk (VaR), bem como as novas propostas para o controle de
riscos de crédito, nas quais OS- bancos poderão utilizar mecanismos internos de avaliação de
crédito para definir os riscos de crédito por eles assumidos, nas quais o papel do regulador será
apenas o de dar as diretrizes básicas para construção desses modelos e, posteriormente, validá-
los são grandes exemplos dessa tendência.
Neste cenário, não tem mais sentido em falar-se de uma isenção antitruste do setor
bancário, como acontecia nos Estados Unidos até a década de 1940. Com um sistema regulatório
com grandes preocupações por ganhos de eficiência, a defesa da concorrência passa a ter um
papel primordial, ainda mais quando se tem em mente a formação dos grandes conglomerados
financeiros e o poder de mercado a eles inerentes. Não basta só incentivar a eficiência obtida com
a liberalização dos mercados, é preciso também assegurar-se de que tais ganhos sejam
"repartidos com os consumi- dores e não simplesmente apropriado pelos monopolistas".
Em que pese a diminuição das barreiras institucionais à entrada de novos concorrentes
nos diversos segmentos do sistema financeiro com o fim da regulação estrutural, são ainda
grandes as barreiras à entrada de caráter econômico. Lambelet e Mihailov, a partir da realidade
americana, apontam grandes economias de escala, altos custos para os depositantes mudarem de
banco, e o próprio comportamento estratégico dos bancos já estabelecidos para evitar a entrada
de novos concorrentes, como sendo indicativos da existência de grandes barreiras a entrada de
caráter econômico. Esses apontamentos são consistentes com as constatações feitas pelas
economistas Katerina Simons e Joanna Stavins, no sentido de que as fusões no setor bancário
norte americano têm efeitos. adversos para os consumidores, demonstrando a capacidade dos
bancos de exercerem poder de mercado na atual situação. Análises sobre o mercado de bancos
de varejo na Holanda chegam a conclusões semelhantes; mesmo reconhecendo o potencial das
reformas liberalizantes para incrementar a concorrência, Canoy et alli concluem que o mercado
bancário holandês é ainda bastante oligopolizado.
Portanto, com as grandes transformações verificadas nos mercados financeiros rios
últimos anos, deve ser uma constante preocupação das autoridades públicas garantir que os
ganhos de eficiência daí decorrentes sejam cada vez mais repassados em benefício dos
consumidores. Mesmo com toda a integração da economia internacional, o que se vê é que o
mercado bancário em particular, e principalmente o de varejo, é ainda bastante restrito aos limites
nacionais, onde se trava a concorrência e se limita as crises bancárias. Diante desse cenário, em
que parecem conviver eficiência, oligopolização e maior instabilidade financeira, a pergunta relativa
ao papel a ser desempenhado pelas autoridades antitruste torna-se ainda mais relevante, como
também o é a questão sobre qual o nível de preocupação que as autoridades bancárias devem ter
com a concorrência ao elaborar as normas prudenciais. E refletir sobre esses pontos o objetivo da
última parte deste artigo.
III. Conclusão -Regulação prudencial, regulação sistêmica e defesa da concorrência
Apesar da grande importância que foi dada a eficiência no debate sobre a regulação
bancária nos últimos anos, a defesa da estabilidade financeira continua sendo o grande objetivo
político da intervenção governa- mental. No entanto, não se pode fechar os olhos a essa nova
realidade e ficar preso a um modelo de regulação bancária que foi desenvolvido para enfrentar a
depressão dos anos 30. A defesa da concorrência deve, portanto, ter um papel ativo na regulação
bancária. Mas qual deverá ser esse papel? Até que ponto a regulação prudencial e a regulação
sistêmica são compatíveis com defesa da concorrência? Essas são algumas das questões que
devem ser respondidas para que se desenhe um modelo institucional apropriado para o bom
desempenho do sistema bancário.
Ao nosso ver, o ponto fundamental para que se defina o papel a ser desempenhado pela
defesa da concorrência no setor bancário são as distinções entre regulação prudencial e regulação
sistêmica e, conseqüentemente, entre situações normais e situações anormais de mercado. A
partir dessas distinções é possível distinguir momentos em que as preocupações clássicas da
regulação bancária devem prevalecer sobre a defesa da concorrência, de momentos em que há
convergência entre esses dois objetivos.
A regulação prudencial, como já foi dito, tem como objetivo direto a proteção dos
depositantes contra a eventual quebra de instituições financeiras. Ela visa, pelo menos
diretamente, limitar os efeitos que os riscos assumidos pelos bancos nas suas atividades diárias
possam vir a ter sobre a solvência dos mesmos, impondo quantidades mínimas de capital. Assim,
pode-se dizer que a regulação prudencial objetiva garantir a manutenção das condições normais
em que opera o mercado bancário, ao controlar os riscos ordinários que envolvem a atividade
bancária.
Dentro dessa lógica, há um grande papel a ser desempenhado pela defesa da
concorrência, tanto no controle de condutas, como de estruturas. Os objetivos da regulação
prudencial de proteger os interesses dos depositantes-consumidores, mantendo, ao mesmo tempo,
um arcabouço regulatório que seja eficiente do ponto de vista econômico, se coadunam com os
objetivos da defesa da concorrência. Nesse sentido, um mercado que seja competitivo, mas
também transparente, pode ser bastante útil como instrumento disciplinador da atividade bancária.
Isto não significa dizer que se deve bus- car, a qualquer custo, a criação de um ambiente
altamente concorrencial no mercado bancário. No entanto, .dentro de um certo nível de segurança,
a concorrência deve ser incentivada. Pode-se dizer que o papel atual da atual regulação prudencial
é exatamente impor este nível mínimo, mas também incentivar a concorrência.
Já em relação à regulação sistêmica a situação é bastante diferente. A tarefa da
regulação sistêmica é proteger a estabilidade do sistema bancário em momentos de grande e
generalizada incerteza, em que a sombra do risco sistêmico surge sobre o sistema. Aqui, portanto,
não se fala mais na simples manutenção das condições normais de mercado, mas evitar, diante de
um choque, que um equilíbrio anormal se estabeleça, colocando em risco todo o sistema. Nesse
caso, que é uma situação limite e bastante excepcional, pode-se dizer que a manutenção da
estabilidade financeira é o objetivo a ser alcançado pelas autoridades públicas, mesmo que com
isso se restrinja o nível de concorrência no setor bancário. Nesta situação, pode-se falar em
isenção antitruste, pois o objetivo da regulação sistêmica é, em última instância, a própria
preservação do mercado.
Em suma, se no caso da regulação prudencial há amplo espaço para a aplicação efetiva
do direito concorrencial, o mesmo não ocorre em situações anormais de mercado, quando a
intervenção governamental, por meio da regulação sistêmica, é necessária para que se garanta a
estabilidade do próprio sistema bancário.
Não se pode, contudo, deixar-se enganar com a aparente simplicidade dessa conclusão.
Nem sempre é fácil distinguir uma situação normal de uma situação anormal de mercado. Tal
dificuldade decorre não só da própria natureza da atividade bancária, caracterizada pelo alto grau
de incerteza e riscos nela envolvidos, mas também em razão da amplitude que as conseqüências
sociais de uma crise bancária podem vir a ter. É em cima desta corda, marcada por incertezas,
pressões políticas por estabilidade financeira e por ganhos de eficiência, que devem se equilibrar
os responsáveis pela elaboração e condução da regulação do setor bancário. Se a tendência é
sempre se apoiar na manutenção da estabilidade financeira, não se pode deixar de considerar a
evolução das novas técnicas regulatórias e os ganhos de eficiência dela decorrentes. E neste
momento em que deve atuar o direito da concorrência.