o conceito de risco na modernidade reflexiva: uma nova forma de descaracterizaÇÃo do trÁgico?

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas O CONCEITO DE RISCO NA MODERNIDADE REFLEXIVA: UMA NOVA FORMA DE DESCARACTERIZAÇÃO DO TRÁGICO? Texto a ser apresentado para a obtenção de créditos na disciplina Teorias da Sociedade da Política e da Natureza – Prof. Hector Leis e Selvino Assmann – Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas Aluno: Cláudio Luis da Cunha Gastal 1

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Este trabalho procura sistematizar uma aproximação entre pares conceituais de origens diversas, buscando neles um elemento comum presente na articulação entre as noções de natureza humana e condição humana. Em termos lacanianos poderíamos dizer que trataremos da relação entre os registros do real e do simbólico. Por um lado procuraremos abordar o registro do real em suas relações com a contingência e, por conseguinte com a dimensão trágica, e por outro procuraremos vincular o registro do simbólico com a escotomização ou banimento da percepção do trágico.

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Page 1: O CONCEITO DE RISCO NA MODERNIDADE REFLEXIVA: UMA NOVA FORMA DE DESCARACTERIZAÇÃO DO TRÁGICO?

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAPrograma de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas

O CONCEITO DE RISCO NA MODERNIDADE REFLEXIVA:

UMA NOVA FORMA DE DESCARACTERIZAÇÃO DO

TRÁGICO?

Texto a ser apresentado para a obtenção de créditos na disciplina Teorias da Sociedade da Política e da Natureza – Prof. Hector Leis e Selvino Assmann – Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas

Aluno: Cláudio Luis da Cunha Gastal

Florianópolis

Julho de 2008

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Page 2: O CONCEITO DE RISCO NA MODERNIDADE REFLEXIVA: UMA NOVA FORMA DE DESCARACTERIZAÇÃO DO TRÁGICO?

1- INTRODUÇÃO

Neste trabalho procurarei sistematizar uma aproximação entre pares conceituais de

origens diversas, buscando neles um elemento comum presente na articulação entre as

noções de natureza humana e condição humana. Em termos lacanianos poderíamos dizer

que trataremos da relação entre os registros do real e do simbólico. Por um lado

procuraremos abordar o registro do real em suas relações com a contingência e, por

conseguinte com a dimensão trágica, e por outro procuraremos vincular o registro do

simbólico com a escotomização ou banimento da percepção do trágico. Acreditamos ser

possível observar-se desdobramentos destes registros em pares conceituais que surgem

em outras áreas não psicanalíticas, desdobramentos esses que podem concretizar-se em

pares como Natureza e humano, Eros e Tânatos, esfera pública e esfera privada, indivíduo

e sociedade, técnica e política, potência e impotência, controlar o mundo ou reconhecer a

exposição à contingência.

Após, através de autores que desenvolveram a idéia de modernidade reflexiva e de

sociedade de risco (Beck, Giddens e Lash), mas centrando a argumentação em conceitos

de Beck , dos quais um dos elementos fundamentais é o conceito de risco procurarei abrir

questões, de modo mais específico, sobre como esta modernidade estaria lidando com tais

questões, e se tais modos de lidar são uma possibilidade algo novo, ou uma

reapresentação do mesmo em um nível diferente de uma espiral, cujo elemento central

poderia ser a escotomização do trágico.

Longe de pretender chegar a uma síntese totalizadora, me proponho a deixar abertas

questões. Sei que esta última frase hoje em dia beira o lugar comum, mas não podemos

deixar de nela perceber, quem sabe, um elemento fundamental das dualidades da

modernidade: a síntese totalizadora é uma forma de racionalidade a qual tem intrínseca o

ideal iluminista de uma razão onipotente que introduz uma clivagem entre o que – a

princípio chamemos – de mundo natural e mundo humano. Deixar abertas questões

pressupõe uma cautela quanto a essa razão onipotente e, por conseguinte, reconhecer a

possibilidade de limitação do poder dessa razão. Portanto, deixa aberta uma brecha ao

Incompreensível e ao contingente. Pressupõe, pois, talvez, a impossibilidade de grandes

sínteses totalizadoras.

.

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Page 3: O CONCEITO DE RISCO NA MODERNIDADE REFLEXIVA: UMA NOVA FORMA DE DESCARACTERIZAÇÃO DO TRÁGICO?

2- A NATUREZA E O HUMANO: TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA DO

TOTALMENTE OUTRO

Uma constatação é inegável. Constatação de que vivemos sob o signo do

absolutamente incognoscível. Por que o Ser e não o Não Ser? Nossa compreensão não

consegue transcender o entendimento de que o Não Ser seria mais compreensível que o

Ser. Ser é absoluta gratuidade, puro excesso, total contingência. Uma importante

contribuição de Lacan é designar esse Ser como o registro do Real, o qual em parte se

identifica com a Natureza. Como algo que prescinde do simbólico, que existe por si, sem

nome. Como algo absolutamente fora da esfera humana, constituída pelo simbólico: “ ...

aqui se pressupõe que a estrutura da linguagem vem revestir e possibilitar ao homem via

o plano do simbólico um acesso à natureza, que em si é inapreensível e inominável, lugar

de um silêncio ruidoso”1

Que esse ser seja designado como Deus, ou como uma natureza de ordem

absolutamente diversa da humana, é uma questão já do simbólico. O essencial é que ele é

sempre o totalmente Outro em relação ao humano. De alguma forma, o Mistério.

Brüseke2, analisando as concepções místicas sobre o Ser, recupera o conceito do

numinoso de Rudolf Otto para designar esse totalmente outro. O numinoso enseja

sentimentos de medo, de terror, de encanto, de plenitude. Força de desígnios

desconhecidos cujo reconhecimento seja talvez também o reconhecimento da dimensão

trágica e do desamparo fundamental do homem. A visão desse absolutamente Outro como

uma força divina transcendente talvez não seja tão inquietante quanto a sua percepção

como uma natureza imanente. Nietzsche ao prenunciar a Morte de Deus priva o homem

da redenção cristã do entregar-se e dissolver-se na transcendência e o joga aqui nesse

mundo, face a face com a natureza, portadora imanente desse totalmente Outro:

“O mais importante dos recentes acontecimentos – o fato de ‘que Deus está morto’, de que a fé no Deus cristão está enfraquecida, começa já a projetar na Europa suas primeiras sombras (...) – para que possa saber o que vai afundar, agora que está minada essa fé, tudo que se erigia, se apoiava, se vivificava: por exemplo, toda nossa moral européia. (...) Com efeito, nós, filósofos e “espíritos livres” frente à nova de que “o Deus antigo está morto” sentimo-nos iluminados por uma nova aurora, nosso coração

1 MAURANO, Denise. O Trágico Revisitado. Corpo Freudiano do Brasil. Disponível em: http://www.corpofreudiano.com.br/txt24.htm. Acesso em 08 jul. 2008.

2 BRÜSEKE, Franz. A Técnica e os Riscos da Modernidade.Florianópolis: Editora da UFSC. 2001.

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transborda de reconhecimento, de espanto, de apreensão, de expectativa... Enfim o horizonte nos parece livre, admitindo mesmo que não esteja claro – ... O mar abre-se novamente diante de nós e talvez nunca tenha havido um mar tão “pleno.”3

E isso nos coloca frente a duas opções: defrontar-se com angústia, primeira reação

inevitável, a qual é a dimensão do trágico, ou negar essa angústia e “naturalizar” de modo

neutralizador a Natureza dentro de um código simbólico possibilitador do conhecimento

científico sobre a mesma. A ciência, embora não dê conta do mistério, traz em si a

promessa de que é só uma questão de tempo a razão humana dissolver o mistério; o que é

uma forma de dizer que o mistério não é mistério, que não há mistério. De que o

totalmente outro já não é mais totalmente Outro. Que é uma natureza desprovida do

sagrado, do mistério, do numinoso, mas antes algo domesticado pelo simbólico e

transformado em objeto passível do controle humano

A modernidade seguiu na segunda direção, seja pela ciência, seja pelos rumos que

tomaram a maior parte das religiões, que cada vez mais se afastaram do místico e

estabeleceram formas simplificadas de lidar com o sempre permanente mistério do bem e

do mal – atributos de um mesmo totalmente Outro. , que é o que de alguma forma nos diz

Galimberti4,5 .

O desenvolvimento da ciência e da tecnologia que dessacralizou o mundo teria

nele implícito um projeto de domínio dessa natureza, de uma vivisseção do mistério.

3- A TÉCNICA E A POLÍTICA ENQUANTO VISÕES DIFERENTES DO

TOTALMENTE OUTRO.

Se a técnica e a ciência tem um projeto de domínio da natureza, de compreensão e

controle de suas supostas leis, de ordenamento sem angústia do mundo, de resposta ao

desamparo humano, de tranquilização pela previsibilidade e controle, a política, enquanto

dimensão da ação humana, recoloca o imponderável, o imprevisível, o não controle. A

insinuação de vivemos em um mundo cuja previsibilidade da conseqüência de nossos atos

nos foge6. E aqui reintroduz, embora sob véus, o totalmente Outro. Aquilo que acaba

3 NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981. p.3434 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: O ser Humano na Idade da Técnica. Tradução realizada por Selvino Assmann das paginas 33-48 do original Psiche e techne. L’uomo nell’età della técnica. Roma; Feltrinelli. 1999.5 GALIMBERTI, Umberto. Os rastros do Sagrado. O Cristianismo e a Dessacralização do Mundo.São Paulo: Paulus. 2003.6 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária. 2007.

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sempre por nos escapar, que desafia o sentimento de que o mistério é de nosso alcance. A

imprevisibilidade da dimensão política contrapõe-se em outro nível, também, com a

esfera da ciência e da técnica. A razão instrumental, que visa alcançar objetivos práticos, é

obstaculizada pela ação política. E disto decorre uma hegemonia da ciência e tecnologia

na gestão do mundo, em detrimento da política. Novamente nos vemos frente a uma

desvalorização e banalização do totalmente Outro, da dimensão trágica.

4- A ESFERA PÚBLICA E A ESFERA PRIVADA

No entendimento de Hannah Arendt7, a esfera pública, antes dimensão privilegiada da

ação humana, foi transformada, por sua invasão pela esfera privada, num espaço não mais

do político, mas sim do social. A sociedade passaria a ter a função de prover aos seus

membros aquilo que antes a esfera privada provia. Dessa forma, a dimensão imprevisível

do político tornou-se um espaço proporcionador do provimento de necessidades. De

segurança, de minimização da imprevisibilidade e da possibilidade de desamparo.

Conjuntamente a constituição subjetiva do sujeito transformou-se também, deixando de

ser um membro da polis, um sujeito da ação, da possibilidade do heróico, exposto à

contingência, e tornando-se um membro frágil da sociedade.

Aqui é inevitável que aproximemos o político do trágico e tomemos o sujeito

político como um sujeito potente, que sabe do imprevisível, mas que encontra em si a

potencia de viver esse imprevisível corajosamente.

Agamben8 toca nesse ponto de modo especial, embora dentro de outra perspectiva,

ao nos falar que o homem reduzido à vida nua, a situações limites, ao perder totalmente a

proteção do estado, ao estar radicalmente nessa condição é que a potência de ser ou a

potencia de ser não exposto ao totalmente Outro, na fronteira entre o maldito e o sagrado.

Talvez seja aí é que podemos entender sua frase “... ter uma faculdade significa ter uma

privação”.9 O entendimento dessa frase passa pela assimilação de duas afirmações

posteriores de Agamben no mesmo texto: “ A grandeza – mas também a miséria- da

potência humana reside no fato de ela ser, também e sobretudo, potência de não passar

7 ARENDT. Hannah. Op. Cit.8 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer- O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 20079 AGAMBEM, Giorgio. A Potência do Pensamento. p.2. Tradução de Selvino Assman do original La Potenza Del Pensiero. In: La potenza del pensiero. Saggi e conference. Macerata. Neri Pozza Edit. 2005, pp 23-287.

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ao ato, potência para as trevas.”10 E “ O homem é senhor da privação, porque, mais do

qualquer outro ser vivo, no seu ser, ele é entregue à potência.”11 A exposição à vida nua,

uma forma da experiência trágica, creio, permite o encontro dessa potência. Embora me

pareça existirem diferenças entre o conceito de potência em Agamben e a “vontade de

potência” de Nietzsche, é impossível não pensar em similaridades. Em “Para Além do

Bem e do Mal”, Nietzsche, ao falar da “felicidade de rebanho em pasto verde”nos diz:

“ Nós, os seus inversos, que abrimos um olho e uma consciência para a pergunta: onde e como até agora a planta ‘homem’ cresceu mais vigorosamente em altura, pensamos que isso aconteceu, toda vez, sob condições inversas, que, para isso, a periculosidade de sua situação tinha antes de crescer até o descomunal, sua força de invenção e de disfarce (seu ‘espírito’...) desenvolver-se sob longa pressão e coação até o refinado e o temerário, sua vontade de vida ser intensificada até a incondicionada vontade de potência: -nós pensamos que dureza, violência, escravidão, perigo na rua e no coração, ocultamento, estoicismo, artimanha e diabolismo de toda a espécie, que tudo o que há de mau, terrível, tirânico, tudo o que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem á elevação da espécie “homem” quanto o seu oposto...”12

Creio que podemos entender em dois sentidos tal frase de Nietzsche: por um lado

a raiz ambígua do homem, partícipe da natureza, deste outro não simbólico, do qual

somos parte, que se faz através de nós e ao mesmo tempo somos nós; mas um nós

diferente deste nós-rebanho da civilização ocidental. Um nós exposto ao trágico pela

imanência do transcendente em nossa própria natureza. Por outro lado podemos entendê-

la mais próxima ao conceito de vida nua de Agamben, onde o trágico se expressa pelo

desamparo. Mas, em ambas, o trágico está presente. Poderíamos, pois, seja em Agamben,

seja em Nietzsche, ver a origem da potencia na vivência trágica.

Em contraposição, o sujeito social, o membro do rebanho, ao abdicar de sua

potencia em favor do estado, ao tornar-se um ser dependente, afasta-se do trágico em prol

da segurança, ficando exposto ao domínio e à manipulação pelos aparatos de estado e

técnico científicos (cada vez mais próximos).

Dessa forma, a esfera pública moderna, uma esfera fundamentalmente social,

escotomiza novamente o totalmente outro e arroga a si o poder de satisfazer as

necessidades de uma humanidade pacificada como rebanho.

Os mecanismos biopoliticos de controle encontram aqui o espaço para seu

surgimento, pois na arregimentação dos corpos enquanto estruturas naturais passiveis de 10 AGAMBEM, Giorgio. Op. Cit. p. 411 AGAMBEM, Giorgio. Op. Cit. p. 412 NIETZSCHE, Friedrich. Para Além do Bem e do Mal. São Paulo.:Abril Cultural. Col. OS Pensadores. pp 275-276.

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controle, anulam esse Outro da natureza que é constituinte desses próprios corpos. A

biopolitica de certa forma pode ser interpretada como uma forma de constante

reinterpretação simbólica dentro de parâmetros científicos ou técnicos do totalmente

Outro. O corpo é decifrado em seu mistério pela medicina, e o asseguramento da defesa

contra a imprevisibilidade é do âmbito do totalmente humano. A regulamentação desse

pulsar do totalmente outro é anulada e codificada, canalizada. A doença, a loucura, a

sexualidade, os comportamentos considerados disrruptivos. A ciência que possibilita o

discurso biopolítico se constitui como defesas em relação a esse totalmente outro.

Foucault, em sua Historia da Loucura13, assinala claramente essa concepção, ao nos

mostrar que as primeiras concepções da doença mental na era pineliana consideravam a

loucura justamente como a irrupção de uma natureza selvagem dentro do espírito

humano; e mais, o quanto isso se constituiu em importante aspecto do projeto iluminista

de constituição do sujeito enquanto sujeito da razão. O louco, não enquadrável dentro do

sujeito da razão, era esse Outro, Outro a ser excluído para os limites entre o urbano e o

rural, entre a civilização e a natureza, eterno navegador da nau dos insensatos, morador do

mundo extra-humano, embora encravado no social, dos manicômios.

A esfera publica moderna, constituída enquanto social, constrói constante e

incessantes muros em relação ao totalmente outro, esse outro plenamente imanente numa

natureza a-humana, vizinha, muito próxima, perigosa, necessitando de constante

vigilância e codificação. Talvez um dos grandes méritos de Freud tenha sido a provocar

uma fissura no sujeito racional, talvez nas próprias bases e propósitos da ciência – mesmo

que se considerasse membro dessa ciência.

5- EROS E TÂNATOS

Freud certamente causou escândalo ao colocar na superfície da sociedade vitoriana

a questão da sexualidade. Contudo algo mais profundo talvez tenha causado tanto rechaço

à psicanálise. Algo mais profundo mesmo que outro conceito inquietante: o do

inconsciente. Alguns autores abordam que o descentramento da razão iluminista; do

homem racional, não mais, a partir da psicanálise, visto como portador de livre arbítrio,

mas sim em muito determinado por desejos inconscientes, enquadra-se dentro de outros

13 FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva. Col. Estudos. 1978.

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grandes descentramentos, como os provocados pela teoria evolucionista de Darwin, ou da

determinação da história humana por forças econômicas, evidenciada por Marx. Mesmo

reconhecendo que todos tem em comum uma quebra da onipotência da razão iluminista e

da proeminência desse sujeito iluminista dentro da Criação, o que implica uma alusão a

algo Outro, mesmo que vaga, há de se pensar se Freud não foi de uma radicalidade maior

que Darwin ou Marx.

Freud opôs Cultura e Natureza de modo irreconciliável14, no sentido de que, onde

há uma, não há a outra. O mundo cultural só é possível pela repressão ou sublimação dos

instintos humanos de conservação do ego. O instinto de conservação da espécie, que

levaria a formação do mundo cultural, embora com a mesma base em Eros que os

instintos de conservação do ego, acabariam por se opor. E o resultante dessa oposição

seria o que denominou de “O mal estar na cultura”. Contudo não conseguia compreender

essa oposição sem um outro elemento interferente. E, para tal, postulou que o homem

porta em si, além do Eros, instinto de Vida, tânatos, instinto de morte, o qual seria o

energizador agressivo dos instintos do ego. Mas, creio que a repercussão dessa

conceitualização de uma dualidade instintiva fundamental no homem, de instinto de vida

e instinto de morte, coloca de modo imanente, não na sociedade, mas no interior do

próprio homem, esse totalmente Outro. O homem porta dentro de si, a partir de Freud, e

principalmente após a postulação do instinto de morte, o mistério, o incognoscível, a

imanência desse totalmente Outro. Como falamos acima ao nos referirmos a Lacan, o

homem porta em si um significante sem significado. Isso implica que em um nível

profundo estamos irrevogavelmente expostos ao desamparo e ao contingente, por mais

que a civilização possa ter se organizado em formas sociais e estruturado mecanismos

biopoliticos escotomizadores e neutralizadores desse totalmente outro. Talvez aqui resida

uma das grandes contribuições freudianas. É significativo que grande parte do

desenvolvimento da psicanálise tenha se dirigido no sentido da construção de uma

psicologia do ego e abandonado em muito as questões referentes às pulsões. É como se

isso representasse uma neutralização desse potencial disrruptivo da psicanálise.

6- O SENTIDO DO TRÁGICO

14 FREUD, Sigmund. El Malestar em la cultura. Obras completas. Vol. III. 4ª ed. Madri: Biblioteca Nueva. 1981.

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Pergunto-me o quanto o sentido do trágico não é outra coisa que não esse

defrontar-se do homem com a absoluta contingência do existir, esse defrontar-se com um

abismo niilista e nessa experiência radical descobrir sua potência. Potência trágica porque

uma solidão sem deuses, porque o pulsar parte de si próprio, porque o fluxo da vida nele,

particularmente nele, jorra. Jorra, queira ou não. Fluxo de força, que contém medo, terror,

encanto e plenitude, qual o numinoso. Defrontar-se com o absolutamente outro em

completa solidão, sem técnica, sem ciência, sem religião, sem apaziguadores, e mesmo

assim ter coragem de afirmar a própria existência. De alguma forma é assim que entendo

Nietzsche. O trágico não pode fugir à experiência do medo e do perigo. Da consciência da

vulnerabilidade. Contudo ele nos trás, através da imanência imediata do Mistério, o

contato com o próprio mistério, e a possibilidade de reconhecê-lo em nós, agindo por

si,mas ainda assim , por meio de nós, ou mesmo como nós. O trágico abre possibilidade,

creio, para o retorno de uma visão monista do mundo, contraposta ao dualismo cartesiano.

Mas o trágico, assim visto, é uma experiência exclusivamente individual. Leva-me

a pensar que a atualização dessa potência, opositora por excelência do espírito de rebanho

e do domínio técnico-cientifico intrínseco à modernidade , só é possível através desse

âmbito do individual, da experiência singular, já que o verdadeiramente político sucumbiu

frente ao social. E isso também faz parte do trágico.

Contudo o trágico e sua vinculação com a possibilidade de potência, de escolha,

entre potência-de-sim e potência-de-não, de liberdade, talvez seja a única possibilidade de

uma ética nos dias atuais15 , e de uma reabertura para a política.

Contudo, parece que tudo conspira para uma cegueira coletiva em relação ao

trágico e para uma entrega passiva da própria vida para os mecanismos de poder, para

uma procura de falsos refrigérios e para uma mera busca de segurança. Contudo essa

entrega também é para a ciência e para tecnologia, fontes supremas da busca de controle

do totalmente Outro, base do trágico. Mas, quando esse mundo científico-tecnológico

começa a dar mostras dos seus limites e não mais poder proporcionar a prometida

onipotência, mas, muito mais, causando situações onde o sentimento de impotência volta

a rondar, observamos a introdução do conceito de Sociedade do Risco.

15 ASSMANN, Selvino. O ser humano como problema – Por um humanismo trágico e cristão. In: ROCHA, Maria Inês. Humanismo e Direitos. Passo Fundo: Berthier. 2007

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6- A SOCIEDADE GLOBAL DE RISCO E ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS.

Opondo-se ao conceito de pós modernidade, alguns autores, como Beck16,

Giddens17 e Lash18 afirmam estarmos ainda na modernidade, embora em uma

modernidade tardia, chamada por eles de modernidade reflexiva, a qual tem por

característica central o risco, pelo quê também é denominada de Sociedade do Risco.

Algumas colocações elucidativas de Beck19 são as seguintes:

“Risco é um conceito moderno. Pressupõe decisões que tentam fazer das

conseqüências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e

controláveis”.

“ ‘Sociedade de risco’ significa que vivemos em um mundo fora de controle. Não há

nada certo além da incerteza”.

“Esta palavra (risco) é também utilizada para referir-se à incertezas não

quantificáveis, a riscos que não podem ser mensurados. Quando falo de ‘sociedade de

risco’, é nesse último sentido de incertezas fabricadas. Essas verdadeiras incertezas,

reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas estão

criando uma nova paisagem de risco global”.

“Não sabemos se vivemos num mundo algo mais arriscado que aquele das gerações

passadas. Não é a quantidade de risco, mas a qualidade do controle ou- para ser mais

preciso – a sabida impossibilidade de controle das decisões civilizacionais que faz a

diferença histórica”.

16 BECK, Ulrich. “A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva”. Em: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva (Política, tradição e estética na ordem social moderna). São Paulo, Editora da Universidade estadual Paulista, 1997.

17 GIDDENS, Anthony. “ Risco, confiança, reflexividade”. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva (Política, tradição e estética na ordem social moderna.) São Paulo, Editora da Universidade estadual Paulista, 1997.

18 LASH, Scott. A reflexividade e seus duplos: estrutura, estética e comunidade. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva (Política, tradição e estética na ordem social moderna). São Paulo, Editora da Universidade estadual Paulista, 1997.

19 BECK, Ulrich. Incertezas fabricadas - Entrevista com o sociólogo alemão Ulrich Beck. Amai-vos. Disponível em: http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7063&cod_canal=41 . Acesso em 08 jul. 2008.

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Podemos observar claramente que o conceito de risco desenvolve-se como uma

tentativa de resposta à crescente impossibilidade da ciência e da técnica de exercer sua

função preconizado na aurora da modernidade, de controle da sociedade e da natureza.

Mais do que isso, das conseqüências da própria ciência e tecnologia no sentido de

incrementar o descontrole. A sociedade reflexiva é aquela que percebe esse descontrole e

procura dar respostas a ele, ao contrário da modernidade clássica, a qual ainda se faz

presente, onde tal preocupação inexiste. A reflexividade “Trata-se de um processo no

qual são postas em questão, tornando-se objeto de ‘reflexão’, as assunções fundamentais,

as insuficiências e antinomias da primeira modernidade”20. Com a crescente falência das

instituições tradicionais (ciência, governo) em controlar o risco, os indivíduos passam a

arcar com a necessidade de avaliar e orientar-se entre os riscos sociais. E de organizarem-

se politicamente fora o sistemas políticos tradicionais, naquilo que Beck denomina

subpolítica. Contudo não fica claro em Beck o quanto isso transcenderia a capacidade

leiga e qual seria ainda o papel dos “sistemas especialistas”, ou peritos. Mas Beck indica

mais claramente a direção política com a consequente necessidade, também, de novas

instituições, de novas formas de relações internacionais solidárias e cooperativas.

Bastante lúcido nos parece o comentário de Guivant21 de que o diagnóstico de Beck

acerca da modernidade tardia é claro e preciso, contudo suas propostas são vagas e

inconsistentes.

Mitjavila22 nos adverte da expansão rápida co conceito de risco, que cada vez mais

vem codificando as incertezas e perigos da contemporaneidade, e do quanto vem se

tornando um dos mais importantes dispositivos biopolíticos da atualidade. A autora

analisa que não somente as grandes ameaças globais enquanto tais são abrangidas pelo

conceito de risco. A crescente fragmentação dos mecanismos tradicionais de coesão da

modernidade, na medida em que fortalecem um sentimento de orfandade dos indivíduos

levam a individualização solitária (não a uma individuação), e a uma conseqüente maior

responsabilização individual pelas conseqüências dos atos, conseqüências essas que

ultrapassariam em muito, em termos causais, o nível do indivíduo. Ao transpormos isso 20 - BECK, Ulrich. A sociedade global do risco- Um diálogo entre Danilo Zolo e Ulrich Beck. João Pessoa: Prim@ Facie.. ano 1, n. 1, jul./dez. 2002. p.121 GUIVANT, Júlia. A Teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia. Estudos Sociedade e Agricultura, 16, abril 2001: 95-11222 MITJAVILA, Myriam. El Riesgo como instrumento de individualización social. Cap. IV, p.91-108. In: BURKÚN, Mario e KRMPOTIC, Cláudia. El Conflicto Social y Político. Buenos Aires: Prometeo.. 2006.

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para mecanismos e instituições sociais observar-se-ia que ao invés de âmbitos solidários

de decisão reflexiva, o que se tem é uma formação de uma rede de agentes mediadores e

controladores desses riscos, seja em termos individuais, seja em termos sociais mais

amplos. Nos termos de Mitjavila, o risco tornou-se um meio de arbitragem social através

da avaliação do grau de risco.

Creio que a crise da modernidade, ao evidenciar a impossibilidade das instituições

que criou de controlarem a sociedade e a natureza, trouxe de novo à baila o conceito do

trágico. Mas de modo mais grave, pois não na periferia ou dentro de muros, mas no

próprio seio da modernidade.

Seria o conceito de risco uma nova forma de escotomizar e neutralizar o trágico?

De tentar refletir e propor soluções para a brecha moderna por onde se insinua o trágico,

reforçando, ao invés de questionar os próprios mecanismos da modernidade que a

levaram à crise que ensejou o conceito de modernidade reflexiva?

6- UM ADENDO: NATUREZA HUMANA E CONDIÇÃO HUMANA

Pelo visto acima interrogo-me se não é possível se pensar que a natureza humana

não seria da dimensão do trágico, e se a condição humana não decorre dos modos pelos

quais os homens lidam com esse trágico. Escotomizar o trágico teria assim uma

característica de fugir da natureza humana e construir no registro exclusivamente

simbólico um mundo “artificial”, o qual artificializaria o homem e a própria natureza,

sendo pois, um elemento central da técnica e da ciência. Criar-se-ia uma potencia

tecnológica artificial, canalização talvez pífia, da potencia humana individual, a qual é do

registro do Real, pertencente à dimensão trágica.

REFERÊNCIAS

ASSMANN, Selvino. O ser humano como problema – Por um humanismo trágico e cristão. In: ROCHA, Maria Inês. Humanismo e Direitos. Passo Fundo: Berthier. 2007.

AGAMBEM, Giorgio. A Potência do Pensamento. p.2. Tradução de Selvino Assman do original La Potenza Del Pensiero. In: La potenza del pensiero. Saggi e conference. Macerata. Neri Pozza Edit. 2005, pp 23-287.

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