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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC
Compadrio e escravidão: o apadrinhamento de escravos
em Lages, 1778 – 1860
Renilda Vicenzi1
Resumo: A compreensão do padrão de escolhas de padrinhos e madrinhas pelos cativos,
tanto para os inocentes, quanto para os adultos no período de 1778 a 1860 é o enfoque do
presente texto. A análise centra-se em informações apresentadas nos registros eclesiásticos,
da paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, local onde tivemos a formação social
baseada na atividade econômica de criação de rebanhos de bovinos, muares e cavalares de
forma extensiva. Na ‘lida’ com os animais houve a utilização do trabalho cativo. A partir dos
registros de batismo acompanhamos a prática do apadrinhamento, através de variáveis que
possam ter interferido nas escolhas de padrinhos e madrinhas, e as intenções subjacentes às
mesmas. Caminhamos na perspectiva de descortinar as relações e os vínculos estabelecidos
entre cativos e destes com os libertos e livres. Pois, sem sobras de dúvidas, os laços de
sociabilidade entre senhores e escravos compuseram um dos elementos de constituição da
sociedade escravista no Brasil.
Palavras-chave: compadrio, escravidão, batismos, relações sociais.
O caminho aberto por Francisco de Souza Farias (1728-1730) conduziria as tropas da
província de São Pedro com destino à província de São Paulo pelo interior, evitando o
caminho marítimo por Laguna. Isto propiciou a fixação ocasional de locais para pouso e
descanso dos animais. A consolidação com o caminho dos conventos (São Borja – Cruz Alta
– Araranguá – Lages - Curitiba – Sorocaba) 2 propiciou o olhar português nestas paragens. A
ocupação e fixação paulista garantiria o domínio territorial através da transferência de homens
que passariam a desenvolver atividades econômicas ligadas ao tropeirismo.
O governador da província de São Paulo, Morgado Matheus, iniciou o processo de
distribuição de sesmarias e a determinação do povoamento. Em 1774, o Capitão Antonio
Correia Pinto oficializou a fundação da Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. Em
1820 a Vila de Lages foi oficialmente incorporada à província de Santa Catarina, e em 1860
foi elevada a categoria de cidade pelo presidente provincial. De acordo com Paulo Pinheiro
Machado:
1 Graduada, Mestre e Doutoranda em História pela Universidade Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS/RS. Professora
Assistente I de História do Brasil da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Chapecó. E-mail:
[email protected]. 2Ver mapa: SANTOS, 1995, p. 47.
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A partir de segunda metade do século XVIII, verifica-se o início de um processo
paulatino de povoamento do planalto, animado pela pecuária associada à pequena
lavoura de subsistência. [...], consistindo na formação de currais e fazendas de
criação de gado dirigidas por particulares e expedições oficiais, como a de Corrêa
Pinto, [...]. (MACHADO, 2004, p. 63).
A região dos campos de Lages compõe o planalto meridional, com uma vegetação
caracterizada pela mata de araucária e pela formação de campos naturais. O planalto
catarinense separa-se do litoral pela Serra Geral3. Até a chegada dos paulistas e seus
familiares a população era formada por nativos, denominados de índios e bugres. Formou-se
um núcleo populacional com paulistas, bugres gentios e escravizados e por escravos negros.
Em 1766 havia 170 habitantes, sendo 58 indígenas e alguns pardos livres; em 1777 eram 371
habitantes, sendo 347 livres e 182 escravos.4.
O comércio de mulas e gado bovino do sul para São Paulo aumentava
significativamente, com isso, ao longo do caminho das tropas foram ampliadas as atividades
de criação e invernagem associadas às sesmarias. O comércio muar se intensificou,
principalmente a partir de 1800. Os dados apontam que no período de 1750 a 1780 foram
cerca de 5.000 mulas por ano; entre 1780 e 1800 foi de 10.000; de 1800 a 1826 chegaram a
20.000; e de 1825 a 1889 chegaram a Sorocaba mais de dois milhões de animais, onde mais
da metade eram mulas5.
O incremento populacional ou movimento migratório para o planalto esteve associado
ao tropeirismo e simultaneamente à criação e invernagem. Neste espaço havia também a
produção destinada à subsistência (milho, feijão, mandioca), além da coleta do pinhão.
Ficando como principal atividade econômica desenvolvida nos campos de Lages a pecuária, e
a produção de gêneros para o abastecimento e consumo interno.
Assim, como nas demais regiões do império Português e após do império do Brasil,
utilizou-se como mão de obra o trabalho escravo. Aqui a população de escravos e de
agregados era menores se comparada a das regiões agroexportadoras6.
3Conforme: COSTA, Licurgo. O continente das Lagens. p. 729-32.
4 MARCON, Franklin. A escravidão em Lages. p. 737-738.
5Os dados foram extraídos de: KLEIN, Herbert. A oferta de muares no Brasil Central: o mercado de Sorocaba, 1825-1880.
Revista estudos econômicos. São Paulo, v.19, n.2, p.347-372, Maio-Agosto. 1989, p. 356. 6 Discutimos os números de homens livres e escravos apontados pelos censos ao longo do século XIX no trabalho Terra e
Trabalho: herança a libertos e escravos, publicado nos Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo,
julho 2011.
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A população cativa nos registros batismais
Na ausência de uma produção historiográfica específica sobre a escravidão nos
campos de Lages e também na impossibilidade da exatidão demográfica, utilizamos os
registros paróquias. Ao explorar essa fonte pretendemos traz mais elementos acerca da
abordagem da história dos cativos e incluir mais peças neste imenso quebra-cabeça chamado
sociedade escravista. Nos registros paroquiais – batismo, casamentos, óbitos – há assentos
sobre escravos.
As Constituições Primeiras7 definem o batismo obrigatório, sendo o primeiro de todos
os sacramentos, significava a porta de entrada para a Igreja Católica. As crianças deveriam ser
batizadas até oito dias depois do nascimento, o não cumprimento caberia dívida com a Igreja.
Aos adultos havia a necessidade de ensinar o creio, ave maria, pai nosso e os mandamentos da
lei de deus, era preciso que o adulto proferisse a vontade de receber o sacramento. Deveria ser
batizada qualquer pessoa que realizasse o pedido ou seu intérprete. Com relação aos escravos
brutos e boçais, especialmente os Mina e os Angola, depois de saberem palavras em
português, ou havendo intérprete realizava-se perguntas como: queres salvar tua alma? Queres
ser filho de deus?. Os filhos de escravos menores de sete anos deviam ser batizados, mesmo
sem consentimento dos pais. Os escravos fiéis deviam ser separados dos infiéis pelos seus
senhores. Era de responsabilidade a vigilância dos vigários sobre os senhores, para que os
mesmos ensinassem preces cristãs a seus escravos, antes do batismo. Era obrigação de o
senhor encaminhar o batismo os recém-nascidos e os escravos adquiridos. Havia preocupação
e cuidado da Igreja com os escravos de fora – África, daí a realização do batismo condicional.
Quando se trata de inocentes8 identificamos nos registros, a data do batismo, o nome
da criança, da mãe, sua condição jurídica e seu senhor, o mesmo para o pai quando nomeado e
a identidade dos padrinhos. Com relação aos escravos adultos, temos nome e do seu senhor e
na maioria das vezes sua procedência, apesar de generalizada. Portanto, o batismo era a porta
de entrada do ‘pagão’ ao mundo católico e nas estatísticas populacionais.
7 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (Impressas em Lisboa no ano de
1719, e em Coimbra em 1720. São Paulo): Tip. 2 de Dezembro, 1853. p. 14-20 8 Termo usado nos assentos pelos párocos para identificar recém-nascidos.
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Os registros de batismos realizados no período de 1778 – 1860, na paróquia de Nossa
Senhora dos Prazeres de Lages9, são de 474
10. Conforme tabela a seguir, temos os dados
quantitativos referentes a inocentes e adultos.
Tabela1: Condição dos Batizados (1778-1860)
Condição dos Batizados Quantidade
relativa
Quantidade
absoluta
Inocentes 364 97,33%
Adultos 10 2,67%
TOTAL 474 100%
Fonte: Livros de batismo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, 1778-1860. Livros de nºs 01 a 13.
A tabela revela a diferença significativa entre os recém-nascidos e os adultos,
indicando a incidência de crianças nascidas escravas nesta região. Este número de batizados
nos leva a compreensão da reprodução das próprias escravas, deixando claro uma das formas
para suprir a falta ou necessidade de escravos.
No que diz respeito ao sexo dos inocentes batizados, ocorreu certa simetria.
Tabela 2: Sexo dos inocentes batizados (1778-1860)
Sexo Quantidade
relativa
Quantidade
absoluta
Masculino 243 51,27%
Feminino 231 48,73%
TOTAL 474 100%
Fonte: Livros de batismo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, 1778-1860. Livros de nºs 01 a 13.
Os batizados do sexo masculino superaram os do sexo feminino em apenas 2,54%. Aqui
temos um equilíbrio considerável. São nascimentos de reprodução natural de escravos que viviam
nos campos de Lages. Não menos importante e ressaltar o índice de nascimentos de inocentes
filhos de mulheres escravas.
9 A cerca do trabalho com fontes paroquiais interioranas ver Sheila de Castro Faria em seu artigo História da Família e
Demografia História publicado na obra Domínios da História: ensaios de Teoria e Metodologia, 1997, p. 241-258. O viajante
Auguste de Saint-Hilaire quando em visita a Desterro identificou as paróquias depois de 1822 na província de Santa Catarina,
sendo somente uma em Lages, localizada na cidade. (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 129-130). 10
Este número poderá sofrer alterações, uma vez que, os livros de registros encontram-se danificados, impossibilitando a
leitura e a transcrição dos mesmos. Sobre esses registros paroquiais é necessário frisar que, doravante, as tabelas e gráficos
concernentes a paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages dizem respeito a um total de 474 registros, por nós
compilados.
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De acordo com Maria de Fátima Neves o interesse dos senhores em batizar o inocente era
de garantir a sua mercadoria e propriedade.
[...] o inocente nascido de uma escrava não era matriculado, já que não tinha
ocorrido uma transação comercial. Dessa maneira o registro de batismo era a única
forma de que dispunha o proprietário para comprovar que alguns, dos escravos,
nascidos em seus plantéis, eram efetivamente seus. (NEVES In NADALIN;
MARCÍLIO, 1990, p. 238).
Aliava-se a pressão da Igreja na conversão dos pagãos, a responsabilidade dos
senhores para com seus cativos, com o registro de propriedade. Já que, no ato do batismo
informam-se os pais, padrinhos e o senhor (a). A iniciação na doutrina cristã formava laços de
espiritualidade, de parentesco e de materialidade.
Os párocos tinham cuidado em identificar as mães, se escravas, libertas, forras, livres,
casadas, solteiras, viúvas. Quanto às mães11
contabilizamos, entre os 474 registros, 410 mães
escravas, correspondendo a 86,92%. Sem identificação12
da mãe foram 40 (8,44%), as demais
são forras (3,59%) e libertas (1,05%). Com base nestes números é possível constatar ao longo
dos anos 1778-1860 a predominância das genitoras escravas frente às forras e libertas.
No decorrer da pesquisa percebemos que o nome do pai não constava na maior parte
dos registros de batismo. A não nomeação do pai pode ter sido obra do pároco, ao desprezar
um pai presente (e nada incógnito) simplesmente por tratar-se de uma das numerosas relações
consensuais entretidas pelas escravas.
A tabela a seguir nos mostra que entre os anos de 1778 e 1860 a existência de
inocentes sem referência oficial paterna e maior.
Tabela 3: Identificação paterna nos registros batismais de crianças
Possuem pai Quantidade
relativa
Quantidade
absoluta
Não 317 66,88%
Sim 157 33,12%
TOTAL 474 100%
Fonte: Livros de batismo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, 1778-1860. Livros de nºs 01 a 13.
Quando os párocos informavam a condição natural e os nomes do pai seguiam as
Constituições Primeiras, pois se tratava de norma canônica para registros de batismo. Porém,
11
Não realizamos porcentagens comparativas com as mães livres. Neste momento não calculamos o número de filho por
mãe, isto significa, que algumas ou várias mães tiveram mais de um filho. 12
Este número é o cômputo total, não excluímos os 10 batismos de adultos. Inocentes sem a identificação da mãe somam 30.
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se o batizado não for filho legítimo de matrimônio (casamento religioso) é facultativo
informar o nome do pai e da mãe, e não havendo problemas (escândalo) poderá se declarar o
nome do pai e da mãe. Os enjeitados que não há conhecimento sobre o pai ou a mãe, devem
ser batizados e registra-se o dia e hora e por quem foram encontrados13
.
Situamos quantitativamente os batizados – inocentes e adultos, bem como seus pais,
para iniciarmos com estes mesmos sujeitos um diálogo sobre as relações de apadrinhamento e
os vínculos estabelecidos a partir dos mesmos.
O compadrio no ato do batismo
O compadrio foi um elemento de constituição dos laços de sociabilidade no seio da
sociedade escravista. A escolha de padrinhos e de madrinhas pelos e para os cativos será
observada enquanto possibilidade – ou não – de análise dos vínculos estabelecidos.
De acordo com Kátia Mattoso: “E os laços não prendem apenas padrinho e afilhado, ligam o
padrinho, sua família e os pais da criança batizada, cujo grupo, em seu conjunto, ganha uma promoção
excepcional”. (MATTOSO, 1982, p. 132).
O compadrio ao vincular pais, filhos e padrinhos, atrelava também suas respectivas
famílias. Posto que, os casos de apadrinhamento entre senhores para com seus cativos não
representam a única possibilidade da presença de homens livres neste papel. O
apadrinhamento por livres, por exemplo, ocorreu com a menina Paulina batizada em 10 de
setembro de 1779, na paróquia de Lages. Ela e sua mãe eram escravas do Capitão Corrêia
Pinto (fundador de Lages). Os padrinhos foram Amador Rodrigues da Silva e sua esposa Ana
Maria de Oliveira, ambos eram moradores de Lages desde 177114
. Outro caso, em 30 de maio
de 1831, foi de Silvana, filha legítima de Joaquina, ambas escravas de José Antonio da Silva
Monteiro. Seus padrinhos foram João da Silva Ribeiro e Maria Benta de Souza15
. Nos
registros de Paulina e de Silvana o pai é registrado como incógnito, isto não significa sua
inexistência, pois as mães não são descritas como solteiras, poderia haver uma união não
reconhecida pela instituição religiosa. Nos assentos o padre não menciona o parentesco entre
o senhor e os padrinhos.
13
VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (Impressas em Lisboa no ano de
1719, e em Coimbra em 1720. São Paulo): Tip. 2 de Dezembro, 1853. p. 30. 14
“era morador nos campos das Lagens, quando, aos 22 de maio de 1771, neles "Se escolheo a melhor Cituacaó e terreno
para Só levantar pelorinho em cinal de jurisdição e logo este Se levantou". (PEREIRA, 2006, p. 181) 15
João da Silva Ribeiro, batizado no primeiro dia do mês de julho de 1787 em Lages, onde casou aos 5 de fevereiro de 1812
com Maria Benta de Souza, filha de Matheus José de Souza e de Clara Maria de Athayde, os proprietários da FAZENDA DO
SOCORRO. (PEREIRA, 2006, p. 171)
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Há também a presença de padrinhos cativos, em 25 de junho de 1797 Feliciana,
escrava do Capitão Joaquim José Pereira16
, batizava sua filha escrava Florinda, cujos
padrinhos foram Mathias e Antonia, ambos os escravos do mesmo Capitão Joaquim Jose
Pereira. Pode ser indício de que o senhor tinha preocupações em controlar sua escravaria, já
que a preferência está na mesma escravaria.
Tabela 4: Condição jurídica dos padrinhos/madrinhas (1778-1860)
Livre Forro/a Cativo/a Santo/a Sem pd
Abs % Abs % Abs % Abs % Abs %
Pd 149 49,83% 5 45,45% 52 38,52% 243 51,92
%
Md 150 50,17% 6 54,55% 83 61,48% 10 100% 225 48,08
%
Ttal 299 100% 11 100% 135 100% 10 100% 468 100% Pd: padrinho
Md: madrinha
Fonte: Livros de batismo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, 1778-1860. Livros de nºs 01 a 13.
Observa-se que, dos 923 padrinhos/madrinhas17
, 135 eram cativos, representando
14,62%. Deste percentual destacamos a predominância de madrinhas cativas. Os padrinhos
livres representam 32,39 %, a escolha de cativos não supera a de livres, no entanto, o número
é bastante significativo. Segundo Sheila de Castro “[...] praticamente nenhum homem livre ou
liberto tinha como padrinho de seus filhos algum escravo, enquanto constantemente estes
últimos tinham como padrinhos pessoas livres e libertas” (FARIA, 1998, p. 292). Para os
escravos a presença de homens livres como padrinhos representava uma aliança para cima,
certamente os cativos objetivavam ganhos para seus filhos ou para si mesmos.
A escolha de padrinhos livres pode sugerir a esperança18
que os cativos depositavam
nestes homens. Esperança de auxílio na alforria, na não separação dos filhos de suas mães, de
16
Era português do Arcebispado de Lisboa, possuía três fazendas em Lages, dedicando- se a criação de cavalares e muares.
(PEREIRA, 2006, p. 115). 17
De acordo com as Constituições Primeiras, os padrinhos madrinhas devem ser: Conformando-nos com a disposição do
Santo Concilio Tridentino, mandamos, que no Baptismo não haja mais que um só padrinho, e uma só madrinha, e que se não
admittão juntamente dous padrinhos, e duas madrinhas; os quaes padrinhos serão nomeados pelo pai, ou mãi, ou pessoa, e
cujo cargo estiver a criança; e sendo adulto, os que elle escolher. E mandamos aos Parachos não tomem outros padrinhos
senào aquelles, que os sobreditos nomearem, e escolherem sendo pessoas já bapt.izadas, e o padrinho não será menor de
quatorze anos, e a madrinha de doze, salvo de especial liceuça nossa. E não poderão ser padrinhos o pai, ou mãi do baptizado,
nem tamhem os infieis, hereges, ou publicos excommungados, os interdictos, os surdos, ou mudos, e os que ignorão os
principios de nossa Santa Fé: nem Frade, Freira, Conego Regrante, ou outro Religioso professo de Religião approvada,
(excepto o das Ordens Militares) por si, nem por procurador. (VIDE, 1853, p. 60) 18
Ver Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia da
Letras, 1990. Cap. 2.
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não ficar a mercê da vontade do senhor. Mas, acima de tudo, esperança de melhoria na vida
cativa de pais e principalmente do afilhado.
Escravos ao escolheram outros escravos para padrinhos possibilitavam a ampliação de
confiança entre ambos. Os escravos viam vantagens na escolha de outros cativos da mesma
fazenda como padrinhos, entre elas podem citar, serem mais acessíveis e confiáveis.
É possível destacar nesta paróquia o predomínio de homens livres no apadrinhamento
de filhos de cativas. Conforme tabelas 5 e 6 a seguir, percebesse a maior incidência de padrinhos e
madrinhas livres com relação aos cativos.
Tabela 5: Condições de padrinhos de filhos de mães cativas, por décadas (1778-1860).
Pd Livre Pd Forro Pd Cativo Pd Ausente Total
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1778
1788 6 14,29% 2 4,76% 11 26,19% 23 54,76% 42
1789
1799 6 33,33% 2 11,11% 10 55,56% 18
1800
1810 1 7,69% 1 7,69% 11 84,62% 13
1811
1820 15 100% 15
1821
1830 21 48,84% 6 13,95% 16 37,21% 43
1831
1840 2 50,00% 1 25,00% 1 25,00% 4
1841
1850 36 41,38% 2 2,30% 4 4,60% 45 51,72% 87
1851
1860 56 32,56% 34 19,77% 82 47,67% 172
Pd: Padrinho
Fonte: Livros de batismo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, 1778-1860. Livros de nºs 01 a 13.
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Tabela 6: Condições de madrinhas de filhos de mães cativas, por décadas (1778-1860)
Md Livre Md Forra Md cativa Md Ausente Total
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1778
1788 18 38,30% 2
4,26
% 9 19,15% 18 38,30% 47
1789
1799 9 50,00% 2 11,11% 7 38,89% 18
1800
1810 0,00% 2 15,38% 11 84,62% 13
1811
1820
5 33,33% 1 6,67% 9 60,00% 15
1821
1830 24 55,81% 4 9,30% 15 34,88% 43
1831
1840 2 50,00% 1 25,00% 1 25,00% 4
1841
1850 30 30,61% 1
1,02
% 15 15,31% 52 53,06% 98
1851
1860 47 27,33% 1
0,58
% 38 22,09% 86 50,00% 172
Md: madrina
Fonte: Livros de batismo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages, 1778-1860. Livros de nºs 01 a 13.
É interessante perceber, que os padrinhos livres a partir da década de 1820 foram
crescendo, talvez pelo aumento no número de batismos. Enquanto os padrinhos cativos
oscilaram mais durante todo o período. Por outro lado, a década de 1778-1788, início da
fixação de fazendeiros na região, apresenta quase o dobro de padrinhos cativos em relação aos
livres. A porcentagem de madrinhas livres em todas as décadas foi superior a de cativas. O
apadrinhamento por forros é praticamente inexpressivo. Apontando para preferência primeira
por livres e após por cativos.
Em Lages, todo período, que vai de 1778 a 1860, totalizando 82 anos, em relação à
escolha de padrinhos e de madrinhas, os cativos preferiram pessoas de condição jurídica
diferenciada. Ao menos durante o ritual de batismo as diferenças se igualavam. Pois
padrinhos e madrinhas tocavam a criança e passavam a ser seus pais espirituais. Assumindo
um compromisso diante da Igreja de cuidar do afilhado.
Os padrinhos poderiam ser chamados a substituir os pais verdadeiros, logo sua
escolha não era ocasional ou desinteressada, talvez este fosse o motivo da escolha dos
padrinhos.
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10
Para Sandra L. Graham:
A escolha de um padrinho e de uma madrinha para batizar uma criança ligava as
famílias a redes mais amplas de clientelismo, com trocas constantes de favores ou
deferências. Os padrinhos tinham o dever sério e sancionado pela Igreja de guiar o
bem- estar espiritual de uma criança; (GRAHAM, 2005, p. 69).
Outro dado é a ausência, tanto de madrinhas, quanto de padrinhos. Isto é, a proporção
de batizados realizados sem a presença destas figuras. Foram 203 batismos, aqui não estamos
computando separadamente crianças de adultos, sem a identificação do padrinho e 199 de
madrinha. Temos um índice de ausência de padrinhos de 21,99% e de madrinhas 21,56%.
Ao compararmos as décadas, temos na década de 1800-1810 a maior ausência de
madrinhas e padrinhos (84,62%). O rigor da Igreja, a falta de pessoas nos rituais, as
condições para ser madrinha ou padrinho, podem ter contribuído para estes números.
Pensar apadrinhamentos na Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages requer,
enfatizar que na maioria dos registros pesquisados há somente a identificação materna,
novamente chamamos a atenção ao fato de que não podemos afirmar se no momento do ritual
a figura paterna estava presente e o pároco a ignorou, ou não existia enquanto tal. A
identificação materna nos transporta a mais fundamental das relações sociais, ou seja, o
parentesco consanguíneo entre mães e filhos.
Também, nos registros de batismos de escravos em Lages aparecem crianças fruto de
matrimônios19
escravos. Em 26 de abril de 1770, Bento mulato natural de São Paulo casou-se
com Romana natural de Mogi das Cruzes na Igreja da vila de Lages20
. Desta união nasceram
05 filhos: Escolastica (14/11/1783), Joaquim (21/01/1785), Bento (25/01/1786), Salvador
(08/02/1787) e Matheus (27/10/1789), pais e filhos escravos do Alferes José Raposo Pires. Os
padrinhos e madrinhas dos filhos de Bento e Romana eram livres.
Seguimos os registros de filhos da cativa Maria21
, para demonstrar as omissões de
informações do pároco. São quatro filhos: Ignácio (14/04/1784), Angelo (14/09/1787),
Marianna (25/07/1788) e Antonia (26/11/1788). Somente Antonia possui pai identificado, era
Martinho, e identificado como escravo de Bento do Amaral. Nos registros não há
19
Neste momento não realizaremos abordagem a cerca da família escrava. Ver: SLENES, Robert. Na senzala uma flor:
esperanças e recordações na formação da família escrava. 2ª ed. Campina: Unicamp, 2001. 20
Conforme Livro de Registros de casamento v. 2. Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. 21
Maria era escrava do Capitão Bento do Amaral. Bento do Amaral nasceu em 1731 em São Paulo, esteve presente na
instalação da Vila de Lages (1771). Em janeiro de 1786 foi promovido ao posto de Capitão Mor Regente da Vila de Lages.
Casou-se duas vezes, tendo 10 filhos e faleceu em 1812. (PEREIRA, 2006, p. 125-130).
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identificação se a cativa Maria era casada ou solteira, mas no cruzamento de informações
encontramos o registro de casamento de Maria e Martinho22
. Neste registro (25/04/1775)
Martinho é identificado como pardo forro, natural de Mogi das Cruzes e Maria de Nação
Guiné – África escrava do Capitão Bento do Amaral. Portanto, Martinho era o pai de todos os
filhos de Maria, uma vez que o registro de casamento é anterior aos de batismos. Somente
Marianna não possui padrinho e madrinha, no entanto, fora liberta no ato do batismo, os
demais foram apadrinhados por livres de status superiores. Eram crianças escravas com pai
forro e padrinhos livres.
Os afilhados compõem, em outro sentido, estratégias de poder a seus padrinhos. Os
vínculos estabelecidos entre as famílias através dos laços de compadrio fortificavam teias de
dependência e mesmo de solidariedade. Ocorrendo também ampliação nas redes de poder de
homens livres para com cativos e quiçá entre os próprios cativos.
Portanto, os batismos simbolizam momentos onde podiam ser acionadas estratégias para
conseguir e ampliar as relações/laços parentais.
Parece óbvio que a criação de laços parentais fosse desejo de todos os escravos.
Nossa convicção acerca do seu valor para a vida no cativeiro levou-nos a aventar a
hipótese de que os escravos buscavam procriar, ao contrário do que afirmam alguns,
e, aparentemente, recomendavam os rigores da escravidão. [...]. Se os escravos
almejavam aumentar a procriação, isso, por si, não indica uma existência menos
árdua, nem um caráter mais ameno da escravidão. (FLORENTINO; GOES,
1997, p. 174)
O ritual de batismo entendido como desejo de pertencimento, ou seja, para os cativos a
possibilidade de novos laços e para os livres a manutenção da sociedade escravista. Não
rompem com a escravidão, mas permitem construir experiências diferenciadas e alternativas,
significando pequenas e grandes conquistas em seu cotidiano. As bênçãos batismais indicam
as relações de parentesco, conforme Engemann:
A pia batismal é dos espaços mais loquazes que se possa citar. Trata-se, de fato, de
um outro meio de se conquistar aparentados, instituindo um rito que sanciona
formalmente uma aliança forjada anteriormente. O compadrio na sociedade luso-
brasileira funcionou como um desses mecanismos de aparentar, constituindo
alianças desejadas por ambas as partes, pais e padrinhos, estendida a uma terceira
parte, o batizado. (ENGEMANN in FLORENTINO, 2005, p. 189).
No interior da comunidade escrava, através do batismo, era possível a ampliação dos
laços parentais e quiçá, entre outros, laços sociais e financeiros. Lembrando que o
22
Conforme Livro de Registro de Casamentos, v. 1. Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages.
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apadrinhamento é uma relação de compadrio, onde interesses estão subjacentes, para o
proprietário, os padrinhos e o escravo.
Conclusão
Nos campos de Lages onde pousavam e passavam homens, nas atividades de lida com o
gado, cativos receberam o batismo. Adultos e inocentes ingressaram na religião cristã, isso
não significava praticá-la. Cativas foram responsáveis pelo aumento populacional, porém,
poucas foram às vezes que houve a identificação de seus companheiros ou do pai de seus
filhos. Os ingênuos acompanhavam suas mães ou seus pais e gradativamente eram
transformados em escravos da casa, do campo ou da lavoura.
Homens e mulheres livres foram os que mais apadrinharam os filhos da negra escrava e
dos demais de escravos. A preferência por padrinhos livres pode ter sido uma estratégia para
estabelecer laços verticais em uma sociedade hierarquizada.
A maioria dos batismos foi celebrada na igreja matriz de Nossa Senhora dos Prazeres de
Lages, localizada na principal vila do município. O município era extenso, seu território era
de aproximadamente 72.000km2 (2.000 léguas quadradas)
23, a viagem até a matriz implicava
esforços dos envolvidos no batismo, daí talvez a preferência pelos batismos nos períodos mais
quentes (primavera e verão), em virtude das baixas temperaturas em outros períodos, o que
dificultava a locomoção nos lombos de mulas, cavalos e éguas24
.
Seguimos o caminho das mulas que propiciou a configuração e consolidação agrária do
planalto catarinense a partir do final do século XVIII e em todo XIX. Por meio das fontes
eclesiásticas evidenciamos as relações entre indivíduos de condições jurídicas diferentes e
ampliamos aspectos da vida cotidiana dos cativos. A proposta é avançar nas pesquisas para
tornar menos obscura à história do cativeiro.
23
COSTA, Licurgo. O continente das Lagens. p. 730. 24
“Sem dúvida tem-se de empregar a expressão – inverno de Lages. Chega a congelar-se a geada e já houve ocasião em que
a neve permaneceu no solo por três dias”. (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 68).
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Fontes
Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. Livro de Registros. Batismo 1-13.
Lages / SC.
Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. Livro de Registros de
Casamentos, v. 1 e 2. Lages / SC.
Referências
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Paulo (1858). Belo Horizonte; São Paulo: Ed da Universidade de São Paulo, 1980.
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