compadrio mg xviii

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL PAULO CEZAR MIRANDA NACIF DIANTE DA PIA BATISMAL: AS ALIANÇAS DE COMPADRIO EM MINAS GERAIS DURANTE O PERÍODO COLONIAL Niterói RJ 2014

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Dissertação sobre o compadrio em Minas Gerais no século XVIII.

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL PAULO CEZAR MIRANDA NACIF DI ANTE DA PI A BATI SMAL:AS ALIANAS DE COMPADRIO EM MINAS GERAIS DURANTE O PERODO COLONIAL Niteri RJ 2014 PAULO CEZAR MIRANDA NACIF DI ANTE DA PI A BATI SMAL:AS ALIANAS DE COMPADRIO EM MINAS GERAIS DURANTE O PERODO COLONIAL Dissertao apresentada ao Programa de Ps-GraduaoemHistriada UniversidadeFederalFluminense, comorequisitoparcialparaaobteno do grau de Mestre em Histria. Orientadora: Prof. Dr. Sheila Siqueira de Castro Faria Niteri RJ 2014 Nacif, Paulo Cezar Miranda N124dDiante da pia batismal: as alianas de compadrio em Minas Gerais durante o perodo colonial / Paulo Cezar Miranda Nacif - Niteri, 2014. 192 f.: il. Orientadora: Prof. Dra. Sheila Siqueira de Castro Faria. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2014. 1. Histria Minas Gerais. 2. Batismo. 3. Escravido. 4. Fa- mlia. I. Faria, Sheila Siqueira de Castro. II. Universidade Federal Fluminense. III. Ttulo.CDU 981.03 PAULO CEZAR MIRANDA NACIF DI ANTE DA PI A BATI SMAL:AS ALIANAS DE COMPADRIO EM MINAS GERAIS DURANTE O PERODO COLONIAL Dissertao apresentada ao Programa de Ps-GraduaoemHistriada UniversidadeFederalFluminense, comorequisitoparcialparaaobteno do grau de Mestre em Histria. BANCA EXAMINADORA _________________________________ Prof. Dr. Sheila Siqueira de Castro Faria Universidade Federal Fluminense UFF (Orientadora) _________________________________ Prof. Dr. Renato Pinto Venncio Universidade Federal de Minas Gerais UFMG (Arguidor) _________________________________ Prof. Dr. Roberto Guedes Ferreira Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ (Arguidor) Niteri RJ 2014 memria de meu av, Jos Augusto, recordador de sua terra. vi Agradecimentos Estapesquisainiciou-seaindaduranteaminhagraduaoemHistrianaUFOP. Durantedoisanos,sobaorientaodaprofessoraMariadoCarmoPires,reunidocumentos paroquiais para a composio de um banco de dados do qual hoje me valho. A ela, agradeo imensamente a oportunidade que me ofereceu de ter o meu primeiro contato com a pesquisa em Histria e tambm por me haver disponibilizado outras fontes. SougratoaoprofessorlvarodeArajoAntunesporhaver-meorientadona monografia e, gentilmente, ter revisado o projeto de mestrado que resultou nesta dissertao. AoprofessorRenatoPintoVenncioque,comsuasaulas,despertouomeuinteresse pelasociedadecolonial.Aele,etambmaoprofessorRobertoGuedesFerreira,agradeo pelasvalorosascrticasesugestesquemefizeramduranteoexamedequalificaoepela renovada disponibilidade em participarem da defesa. Sheila, minha orientadora, presente sempre que necessrio e tambm interessada em medarliberdadeparadesenvolverminhasideiasporcontaprpria.Aolongodedoisanos, com pacincia e solicitude, esteve disponvel para sanar as dvidas que surgiram no decorrer do processo. Seu apoio foi fundamental para que este trabalho se concretizasse. Aos colegas que me acompanharam nas disciplinas cursadas na UFF e na UFRJ, pelas conversasacadmicasepelosmomentosdedescontrao.AoMarconni,Elizabeth,Danilo, Felipe, Adlia e Cristina, por todo o suporte moral e logstico. Em especial aos meus pais, Paulo Cezar e Maria Dia, pelo amor incondicional e por nuncahaveremmedidoesforosparaqueeuchegasseataqui,investindotudooque puderam em minha formao intelectual e moral. Aos meus irmos, Jos Augusto e Durandi, pela fora e amizade que desfrutamos juntos desde criana. Meus valores adquiridos passaram por todos vocs. Thas,pelaateno,amorecarinhoquesempremedispensouemtodosos momentos, mesmo quando distante. vii J naquele tempo (e dizem que defeito do nosso) o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social. Manuel Antnio de Almeida, Memrias de um Sargento de Milcias. viii Resumo Pormeiodoritualcatlicodobatismoeracontradoumvnculodeparentesco espiritualqueinterligavaospadrinhosaobatizadoeaosseuspais.Ospadrinhoseram convidados para exercerem uma funo de co-paternidade em relao formao religiosa de seuafilhado.Entretanto,essainstituio,porpartedecomunidadescatlicasemsituaes histricaseestruturaisdeterminadas,passouporumprocessodereelaboraoemtermosde prticasocialefetiva,queiaalmdesuafunoprimordialmentereligiosa,talcomoera consideradapelaIgreja.Naprtica,ocompadrioseprestavaafinssecularesdiversos.O propsitodestetrabalhoanalisarospapisesignificadosrelacionadosaoestabelecimento dessasalianasrituais,seusrespectivospadresetendnciasemlocalidadesespecficasde Minas Gerais durante o perodo colonial.So enfocadas trs freguesias rurais de Vila Rica Cachoeira do Campo, Casa Branca eSoBartolomeuqueseocupavamdaextraodeouroe,principalmente,do abastecimentoalimentarparasuprirademandageradapelorpidoeintensopovoamentoda regio.Orecortetemporaldapesquisaabrangetantooaugedaproduoaurferaquantoo seu processo de declnio. Nesse segundo momento, as localidades em foco passaram por um processo de reestruturao das unidades produtivas e reduziram drasticamente seus ndices de mercantilizao,dedicando-se,majoritariamente,aumaeconomiadesubsistnciamarcada pela pequena comercializao de excedentes.Tendocomopontodepartidaaspopulaesresidentesnessasparquias,esteestudo procura trazer alguma inteligibilidade s intrincadas redes de parentescoestabelecidas diante das pias batismais. Nessas localidades residiram e se aparentaram homens e mulheres, livres, libertos(as)ecativos(as),oriundosdevriasregiesdaMetrpole,daAmricaportuguesae do continente africano, assim como seus descendentes, nascidos e batizados nas Minas. Palavras-chave: batismo; compadrio; escravido; famlia; Minas Gerais. ix Abstract Catholic ritual of baptism contracted a bond of spiritual connexion that interconnected the christening and godparents to their parents. The godparents were invited to perform a co-parenthoodfunctionrelatedtothereligiousupbringingoftheirgodchildren.However,this institutionbyCatholiccommunitiesincertainhistoricalstructuresandsituations,went throughaprocessofreworkinginaccordancewithaneffectivesocialpracticethatwent beyonditsprimarilyreligiousfunctionasitwasconsideredbytheChurch.Inpractice, godparenthood was used for many secular purposes. The purpose of this Masters thesis is to analysetherolesandmeaningsrelatedtotheestablishmentofthesealliancerituals,their patternsandtendenciesinspecificlocationsofMinasGeraiscaptaincyduringthecolonial period. WefocusonthreeVilaRicaruralparishes:CachoeiradoCampo,CasaBrancaand So Bartolomeu. Their populations were engaged in gold mining, especially in supplying food tomeetthedemandgeneratedbytherapidandintenseregionsettlement.Theperiodofthis surveycoversboththeheightofgoldproduction,andtheprocessofdecline.Duringthis secondphase,thehighlightedlocationshaverestructuredtheproductiveunitsdrastically reducing their commodification indexes. In this phase, they dedicated mostly to a subsistence economy marked by small surplus trade. Basedontheresidentpopulationsintheseparishes,thisstudytriestoelucidatethe intricate kinship networks established by the baptismal fonts. The parishes of Minas captaincy werecomposedbyfree,freed,andcaptivemenandwomen,fromdifferentregionsofthe african continent, european and american portuguese territories, as well as their descendants, born and baptized in Minas. Keywords: baptism; godparenthood; kinship; family; slavery; Minas Gerais. x Sumrio INTRODUO ...................................................................................................................... 13 CAPTULO 1 - DINMICAS ECONMICAS, FLUXOS DEMOGRFICOS E TRABALHO NAS FREGUESIAS RURAIS DE VILA RICA ........................................... 26 1.1 - OS FLUXOS DE POVOAMENTO EM DIREO S MINAS E AS CONSEQUNCIAS DAMINERAO ............................................................................................................................... 26 1.2 - PARA ALM DA EXTRAO AURFERA: ASPECTOS DA PRODUO AGROPASTORIL MERCANTILIZADA NA REGIO MINERADORA............................................................................. 30 1.3 - AS PARQUIAS COLATIVAS DO ELDORADO ........................................................................ 34 1.4 - DEPOIS DO OURO ............................................................................................................... 44 1.5 - PROCESSOS DEMOGRFICOS E TRABALHO NAS FREGUESIAS RURAIS .................................. 47 1.6 - UM PERFIL DAS FREGUESIAS .............................................................................................. 54 CAPTULO 2 - O RITUAL CATLICO DO BATISMO NO UNIVERSO CULTURAL DO ANTIGO REGIME: REMISSO DOS PECADOS, AGREGAO COMUNITRIA E PROLONGAMENTO DAS RELAES FAMILIARES ............... 57 2.1 - O PAPEL ESTRUTURAL DA IGREJA NA VIDA DAS POPULAES PORTUGUESAS .................... 57 2.2 - TORNAR-SE CATLICO, INGRESSAR NA COMUNIDADE ........................................................ 59 2.3 - PENSAMENTOS E ATOS ANTE O SAGRADO: ENTRE CRENA E RITO ...................................... 60 2.4 - OS VNCULOS DE COMPADRIO ............................................................................................ 70 2.5 - SANTAS PROTETORAS, PADRINHOS E MADRINHAS AUSENTES ............................................. 78 2.6 - FAMILIARES, AMIGOS E COMPADRES .................................................................................. 88 2.7 - ALIANAS E PRESTAES .................................................................................................. 95 2.8 - COMPADRIO E RECIPROCIDADE: A INSTITUIO FORA DAS PIAS BATISMAIS ....................... 99 CAPTULO 3 - A FREGUESIA UMA FAMLIA: CATIVOS, LIBERTOS E LIVRES NA VIVNCIA DO COMPADRIO .................................................................... 110 3.1 - FAMLIAS ESCRAVAS E COMPADRESCO ............................................................................ 112 3.1.1 OS SENHORES E O BATISMO DOS ESCRAVINHOS .................................................... 114 3.1.2 - TORNAR-SE PARENTE RITUAL DE LIVRES, LIBERTOS OU ESCRAVOS? ..................... 127 A - COMPADRES ESCRAVOS ...................................................................................... 136 B - COMPADRES LIBERTOS E LIVRES ......................................................................... 141 3.1.3 - O ESTUDO DE ALGUMAS ESCRAVARIAS LOCAIS ..................................................... 148 xi 3.1.4 - AFRICANOS E SEUS PADRINHOS ............................................................................. 152 3.2 - OS ENJEITADOS E SEUS PAIS ESPIRITUAIS ......................................................................... 158 3.3 - AS ESCOLHAS DOS PAIS LIVRES E FORROS ........................................................................ 163 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 169 ANEXOS ............................................................................................................................... 172 CAPTULO 1 ............................................................................................................................. 172 CAPTULO 2 ............................................................................................................................. 176 CAPTULO 3 ............................................................................................................................. 177 REFERNCIAS ................................................................................................................... 182 FONTES MANUSCRITAS ............................................................................................................ 182 FONTES IMPRESSAS .................................................................................................................. 183 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................... 184 xii Abreviaturas ACP Arquivo Casa do Pilar AEAM Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana APM Arquivo Pblico Mineiro CMOPCmara Municipal de Ouro Preto Cx.CaixaDoc.Documento Leg. Filho legtimo Pd.Padrinho Prat.PrateleiraMd.Madrinha Nat. Filho natural RAPMRevista do Arquivo Pblico MineiroSC Secretaria de Governo da Capitania 13 Introduo JoodaSilvadeOliveiraviveudcadasnaparquiaruraldeSantoAntniodaCasa Branca,situadanotermodeVilaRica.Conformeosregistrosdosbatismosrealizadosnesta localidade apontam, tornou-se o padrinho mais solicitado pelos seus habitantes. Joo era natural da freguesia de So Miguel de Oliveira do Douro, situada no norte de Portugal, territrio de onde mais se emigrou para as reas coloniais. A primeira vez que teve seu nome mencionado nos assentos batismais de Casa Branca foi em 1767, quando o vigrio Manoel de Barros registrou o batismo de seu filho primognito Joo, que teve com sua esposa Joana Francisca de Paiva. quela altura, Joana contava com 21 anos de idade e havia nascido e sido batizada na presente freguesia. Era filha legtima do alferes Joo Alves Portela e Joana Monteiro de Paiva, os quais tambm foram os padrinhos de seu primeiro filho. Aaliana de JoodaSilvadeOliveiracomafamliadesuaesposa,fundadasobomatrimnio,acabou sendo reforada por meio do apadrinhamento do primeiro filho do casal. DoisanossepassarameJoodaSilvadeOliveirafoimencionadonovamentenos registrosparoquiaisdeCasaBranca,devidocerimniadobatismodeseusegundofilho, Antnio.Contudo,Joofoidesignadocomapatentedascompanhiasdeordenanasde alferes, a mesma de seu sogro. Como padrinho de Antnio, Joo escolheu o capito Mathias GonalvesMoreira,deumaoutrafreguesiaruraldotermodeVilaRica,AntnioDias.Nas companhiasdeordenanas,apatentedecapitoconsistenaimediatasuperiorde alferes.1EstandonumasituaomaisprivilegiadaqueadeJoo,seucompadreconstitua umaimportantealiananaquelemomento.JamadrinhaselecionadaparaAntniofoiAna MariadePaiva,dequemJoanaFranciscadePaiva,medobatizado,almdesobrinha, tambmeraafilhada.Desdeento,relaoespiritualmadrinha-afilhada,seacumulouade comadre-comadre. Nos anos seguintes, a presena do alferes Joo da Silva de Oliveira se tornou cada vez mais recorrente no livro de assentos batismais da freguesia. Entre 1773 e 1779, foi designado como padrinho em quatorze situaes. Sua primeira afilhada que consta no rol dos batismos Joana,filhadosapateiroManoelFernandesRibeiroedesuamulher,AnaMariadeJesus, nascidaemVilaRica.ManoeleraumreinolnaturaldafreguesiadeSoTomdeMelares, termodeBarcelos,masconstruiusuavidanaparquiadeCasaBranca.Tevedozefilhos

1SILVA,VeraAliceCardoso.Aspectosdafunopolticadaselitesnasociedadecolonialbrasileira.O parentesco ritual como elemento de coeso social. In: Varia Histria, v.31. UFMG, 2004, p. 110. 14 mencionadosnosbatismosdalocalidade,noperodode1751-1773,esempreprocurou compadres na mesma regio. Na poca que selecionou Joo da Silva de Oliveira e sua mulher comopadrinhosdeJoana,jhaviasebeneficiadodessetipodeenvolvimento,poisno testamento de seu compadre Jos Gonalves Couto, que faleceu solteiro em 15/11/1765, havia o legado de duzentos mil reis s suas filhas, certamente para ajudar no dote do casamento das mesmas.2 interessantenotar que o benefcio no se destinavaapenas sua afilhada, mas a qualquer filha de Manoel, conforme consta no testamento. A relao de compadrio entre eles havia se estabelecido h dez anos, quando Jos Gonalves Couto apadrinhou Ana, cujo nome foiescolhidoemhomenagemSantaAna,quefoinomeadaameespiritualdanefita.Na escolhadonomedesuafilhaJoana,tambmoptouporprestaralgumtipodehomenagem, mas dessa vez madrinha, mulher do alferes, Joana Francisca de Paiva.Dosoutrostrezeapadrinhamentosrealizadosnoperodo,constavamtrsfilhos ilegtimosemcujosregistrosbatismaisnohaviamenoaonomedopaidenenhumdeles. Nessescasos,asolidariedadedocompadriopoderiaauxiliardealgumaformanacriao dessascrianasdepaternidadeincgnitae,quemsabe,futuramente,abrirnovas possibilidadesssuasvidas.Amedaprimeiracriana,batizadaem20/01/1773,eraJoana MariadoEspritoSanto,dequemnopudemosarrolarnenhumoutrodadoalmdesua condio social livre. A outra criana, batizada em 09/10/1774, era filha de Maria de Matos, parda forra, de quem tambm no tivemos acesso a outras informaes.Jsobreaterceirame,encontramosvrias.Tratava-sedersulacrioula,escravade JoanaMonteirodePaiva,sogradoalferesJoodaSilvadeOliveira.rsulacertamentese aproveitou do convvio entre Joo e sua sogra para poder convid-lo para apadrinhar seu filho Manoel, em 01/06/1777. Alm disso, a madrinha selecionada foi Ana Francisca da Conceio, agregada de Joo da Silva de Oliveira. Anteriormente, rsula havia batizado dois filhos: Eva, em1771eMaria,em1774.OpadrinhodeEvafoiJoocrioulo,damesmaescravaria,ea forra Luzia de Almeida Portela. Sobre Luzia, podemos aventar que tenha pertencido mesma escravaria,poispossuaumsobrenomeidnticoaodoentofalecidomaridodeJoana MonteirodePaivaaindicadacomoproprietriadersula,oalferesJooAlvesPortela. No batismo de sua outra filha, Maria, rsula ampliou sua rede de parentesco espiritual para o mundo dos livres. Selecionou como padrinhos de Maria, Manoel Joo Braga e Maria Teresa dos Santos, esta, filha do j mencionado sapateiro Manoel Fernandes Ribeiro.

2 AEAM, prat. L, livro 03 (bitos), testamento, p. 56. 15 Noqueconcerneaoparentescoritualcomcativos,almdeManoel,filhodersula, Joo foi padrinho de Ana mina. Classificada no assento batismal como adulta, em 27/05/1775, deixou o estado de paganismo e adquiriu um novo nome. Pode-se supor que, em muitos casos, peloscativosrecm-chegadosaindanoteremaprendidooportuguse/ounopossuir praticamentenenhumarededesociabilidade,seuspadrinhoseramescolhidosporseus senhores. Em determinadas ocasies, o batismo poderia consistir em mera formalidade.3 Ana era escrava de Manoel da Silva Cardoso, casado com Izidora Maria de Paiva, cunhada de Joo da Silva de Oliveira. O casal residia na mesma parquia e no teve nenhum filho batizado na localidade.Talvez,paraManoel,convidarJooparaserpadrinhodeAnatenhasidouma maneira de aproximarem-se ainda mais.AcondiosocialdosoutrosnoveafilhadosdeJoodaSilvadeOliveiraeralivre. Dessatotalidade,quatroeramfilhosdepaisforros.Doisdeles,chamavam-seManoel,o primeiro,filhodeTomGonalvesPinheiroedeJoaquinaAntniadeJesus,ambos classificados como crioulos e, o segundo, filho dos pardos Caetano Teixeira da Cunha e Maria RodriguesdeAbreu.JosPiresSarmenhoeJosefadaCosta,tambmpardos,tornaram-se compadres de Joo da Silva de Oliveira e de sua mulher, Joana Francisca de Paiva, a partir do batismodesuafilha,quetambmsechamouJoana.Contudo,aalianaentreosdoiscasais veioadurarpoucomaisquetrsmeses,poisarazodeserdovnculodeparentescohavia deixado de existir. A pequena Joana, batizada em 20/09/1778, veio a falecer em 07/01/1779. Apesar disso, o casal, no final do mesmo ano, batizou uma outra filha com o mesmo nome e, novamente,JoodaSilvadeOliveiraesuaesposaforamindicadoscomopaisespirituaisda recm-nascida.AreferidacerimniafoiadcimaquartavezqueJooapadrinhouuma criana e a ltima ocupando a posio de alferes. Duranteadcadade1770,JoanaFranciscadePaivafoimadrinhaquatrovezes,trs delasemapadrinhamentosqueoseumaridotambmseenvolveu.Nodecorrerdessesanos, nasceram e foram batizados outros trs filhos legtimos do casal: Jos, Joaquim e Manoel. Em 1771, Joo da Silva de Oliveira, por meio de seu terceiro filho, Jos, tornou-se compadre do capito-morJoslvaresMaciel,deNossaSenhoradoPilardeOuroPreto.Tratava-se, quelaaltura,daalianacomumsujeitoqueostentavaumapatenteindicativademaior prestgio local at o momento. Talvez por isso o prenome escolhido para seu filho tenha sido omesmodeseupadrinho,homenageando-oemcontrapartidaalianaqueaceitou estabelecer.

3 Cf. FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal: famlia e compadrio entre escravos na freguesia de So Jos do Rio de Janeiro (Primeira Metade do Sculo XIX). Dissertao de Mestrado. Niteri: UFF, 2000. 16 Cincoanosdepois,em1777,seuquartofilho,Joaquim,foiapadrinhadoporJoo Rodrigues de Macedo, morador em Vila Rica. Joo, era natural de Coimbra e teria chegado a MinasGeraisporvoltade1775,contandoentre30e35anosdeidade,quandopormeioda arrematao de contratos de cobrana de impostos, acumulou grande fortuna, chegando a ser definido como o homem mais rico da capitania. Durante processo da Inconfidncia, livrou-se da acusao de conspirar contra a Coroa portuguesa e conseguiu permanecer em Minas at o fim de sua vida.4 Apesar de no possuir nenhuma patente ou algum outro ttulo junto de seu nomequeindicasseprestgio,certamenteeraalguminfluente.JManoel,quintofilho legtimodeJoodaSilvadeOliveira,batizadonoanode1780,teveosargento-mor DomingosJosGomes,moradoremVilaRica,comopadrinho.Suapatentepertenciaao extrato superior das companhias de ordenanas e, para receb-la, era necessrio aval rgio.At o ano de 1780, o alferes Joo da Silva de Oliveira, por meio de seus cinco filhos, estabeleceuvnculosdecompadrioparacimacomindivduoscadavezmaispoderosos. Maistarde,emjaneirode1782,noregistrodeseusextofilho,Domingos,onomedeJoo veio precedido por umapatente militar superior,a de capito.O padrinho dacrianafoi o coronel Estevo Gonalves Fraga, que mandou uma procurao para isso, sendo representado na cerimnia pelo guarda-mor Antnio Jos Coelho.5 Em trinta e um de outubro de 1784, foi batizada Rita, a ltima filha do ento capito. Ela foi apadrinhada pelo doutor ouvidor de Vila Rica,TomsAntnioGonzaga,queanosdepoisrecebeuapenadedegredoporseu envolvimento com a Inconfidncia Mineira.Sabemosqueentre1782e1793,JoodaSilvadeOliveirafoieleitovereadorda CmaradeVilaRica.Nessapoca,jocupandoapatentedecapitoecomredesde solidariedade locais consolidadas, o reinol acumulou prestgio e notoriedade o suficiente para ser um dos homens bons da cmara.6 Desde quando Joo passou a ser descrito como capito das companhias de ordenanas, e tornou-se um representante da freguesia em Vila Rica,apadrinhou outras vinte crianas at o ano de 1798. Sua mulher, Joana, que paralelamente passou a ter seu nome mencionado nos registrosbatismaisprecedidopelaformadetratamentodona,comeouaterumapresena

4JARDIM,Mrcio.Ainconfidnciamineira:umasntesefactual.RiodeJaneiro:Ed.BibliotecadoExrcito, 1989, p.164. 5Aexistnciadessemecanismodeapadrinhamentoporprocuraoevidenciaaimportnciadolaocriado: escolhia-secriteriosamentedequemtornar-secompadre,oqual,emdiversoscasos,poderiaresidirnuma localidade distante dos pais biolgicos da criana. 6GOUVA,MariadeFtimaSilva.DosPoderesdeVilaRicadoOuroPreto:notaspreliminaressobrea organizao poltico-administrativa na primeira metade do sculo XVIII.Varia Histria, Belo Horizonte, v. 31, 2004, p. 133. 17 nosassentosdebatismodafreguesiadeCasaBranca,emfinsdossetecentos,torecorrente quantoadeseumarido,sendomadrinhaoutrasvinteeumavezes.Taldesignao correspondeaumimportanteindicativodereconhecimentodealgumestatutosocial;em outraspalavras,refere-senobrezanosentidoqueotermotinhanapoca.7Portanto,a ascensoalcanadaporseumaridoelevouoprestgiodeambos.Afinal,encontravam-se indissociveis em virtude do matrimnio. Dos vinte apadrinhamentos realizados at o finaldo sculo XVIII, cinco das crianas eram ilegtimas. Trs delas de mes livres e, duas delas, de forras. Outras onze crianas foram classificadascomolegtimas,sendoduasdelasdepaisforros.Dentreessesbatismos,um deles,realizadoem03/09/1795,foiodofilhodeseucunhado,napocaconhecidocomo guarda-morNicolauAlvesPortela,casadocomdonaMariaJosefaRodriguesdeOliveira. Outro apadrinhamento que destacaremos, efetuado dois meses depois, foi o da primeira filha de seu primognito, na poca conhecido como capito Joo Quintino de Oliveira, casado com donaRosaAnglicadeBarbosa.interessantenotarqueoseufilhohomnimo,nascidono ano de 1767, sua semelhana e, talvez em menos tempo, galgou os postos das companhias de ordenanas, sendo designado como capito num apadrinhamento realizado no ano de 1791, quandotornou-secompadredeAnaHilriadeJesuspormeiodesuafilhanatural,Ismria. Certamente, o capital social angariado por Joo da Silva de Oliveira ao longo de sua vida na regio de Vila Rica, desempenhou papel preponderante na trajetria de seu filho. Orestantedosapadrinhamentosqueaindanomencionamos,constituiodequatro crianas classificadas como expostas. Duas delas foram abandonadas na casa de Antnio da CostaChavese,dopardoforro,alferesJoaquimFerreiradaFonseca.Asdemaisforam deixadas porta da casa de Joo e sua mulher foi a madrinha de ambas. primeira, batizada em11/09/1784,foiatribudoonomedeLusae,segunda,em13/01/1796,odeFrancisca. Nessesparentescosrituaisondenoestavampresentesasfigurasdosprogenitoresdos nefitos, no se estabelecia uma relao de compadrio. Mas talvez o apadrinhamento indique que foram acolhidas pelos pais espirituais e, na casa dos mesmos, criadas. Francisca, contudo, no teve a provvel sorte de Lusa, pois veio a falecer trs meses depois.8 Apesar disso, cinco dias depois de seu batizado, Joo emitiu um requerimento para que o proco da freguesia lhe passasse uma certido constando o dia, ms e ano em que batizou a dita exposta, para com

7Dona,in:SILVA,AntniodeMoraes.Diccionriodelnguaportuguesa.Lisboa:TypographiaLacrdina, 1813, vol. 1, p. 638. 8 AEAM, prat. L, livro 03 (bitos), p. 155v. 18 ela requerer o assento no senado da Cmara.9 Joo da Silva de Oliveira pretendia solicitar o auxlioqueaCmaradeVilaRicaconcediaquelesquesecandidatassemacriarosrecm-nascidos que eram enjeitados. Alguns anos depois, em vinte e sete de julho de 1800, Joo apadrinhou a filha legtima de Felcio Jacome Rocha e Mariana Gomes de Jesus. No registro do batismo referente a essa cerimnia, foi designado como sargento-mor, patente que necessitava de aval rgio para ser concedida, conforme j apontamos. A ltima vezem que Joo da Silva de Oliveira apareceu noslivrosdebatismodaparquiadeCasaBrancafoidoisanosmaistarde,quando apadrinhou,juntamentecomsuamulher,seuneto,filholegtimodeseugenro,ocapito JernimoFernandesdaSilvaMacedocomsuanicafilha,napocaconhecidacomodona Rita Euzbia da Assuno. AquelesqueconvidaramJoodaSilvadeOliveiraparaapadrinharseusfilhos, certamentetinhamalguminteressenarelao.Independentedequoinferiores hierarquicamentefossememrelaoaJoo,oumesmosituadosnumaposioequivalente, estavamprocurandoemsuafiguraalgumaformadeamparoeapoio.Outrossim,paraJoo, no foi muito diferente quando selecionou compadres para os batismos de seus filhos. A cada momento em que o reinol encontrou-se numa situao de mais elevado prestgio, evidenciada pelos ttulos dos postos nas ordenanas que chegou a ocupar, procurou estabelecer relaes de parentesco espiritual com indivduos de maior cabedal. Todas essas interaes provavelmente facilitaramasuaascensoetambmgarantiramamanutenoereproduodasposies alcanadas.OroldeparentesespirituaisdeJoodaSilvadeOliveiracontavacomcercadecem indivduos. Nela, estavam includas pessoas de todo tipo. Os fragmentos desta teia relacional queacabamosdeabordarchegamaconstituirumaespciedesntesedeboapartedas discusseselaboradasaolongodestetrabalho.Essasredesrelacionaisconstrudaspelo compadrio facilmente atravessavam as divises sociais e engendravam extensos laos entre a comunidade.10 *** A ideia que temos hoje sobre famlia muito diversa da maneira como as populaes coloniaisaconcebiam.Quandofalamosemfamlia,tendemosapensar,basicamente,num

9 APM, CMOP, cx. 68, doc. 09. 10RAMOS,Donald.Teiassagradaseprofanas:olugardobatismoecompadrionasociedadedeVilaRica durante o sculo do ouro. Varia Histria, v. 31, 2004, p. 59. 19 modelonucleardevnculossociais:paisefilhos.Trata-sedeumaconstruorelativamente recente. Para os homens e mulheres de alguns sculos atrs, a mesma palavra designava uma estruturamuitomaisampla.DeacordocomadefiniodeAntnioMoraeseSilva,defins dossetecentos,soaspessoas,dequesecompeacasa,emaispropriamenteas subordinadas aos chefes, ou pais de famlia. Os parentes, e aliados.11 Ocompadrioeraumimportanteelementoquecontribuaparaessaextensodas relaes familiares. Pelo rito de ingresso ao catolicismo, o batismo, era contrado um lao de parentesco espiritual que interligava os padrinhos ao batizado e seus pais. Sob a tica oficial daIgreja,ospadrinhosqueeramconvidadosparaarealizaodacerimnia,aocontrarem essaligaovitalcia,tornavam-seresponsveispelaformaoreligiosadeseuafilhado. Deveriam exercer, paralelamente aos pais biolgicos, uma funo de co-paternidade ligadaa questes espirituais. Apesardessaconcepooficialsobreocompadrio,talinstituio,porpartede comunidadescatlicasemsituaeshistricaseestruturaisdeterminadas,passouporum processodereelaboraoemtermosdeprticasocialquetranscendiaoaspectoreligiosoda vinculao.NaAmricaportuguesa,assimcomoemoutroslugares,ocompadrescoacabou tornando-seoprpriofundamentodavidaderelao.12Essaligao,portanto,foi amplamente instrumentalizada para fins prticos. Pelo rito batismal, o padrinho tornava-se um protetor do batizado e tambm um aliado dos pais. Na sociedade em questo, o princpio ou a lgicadomritopoucoounadavaliam;noseulugarimperavaofavorecimento.A possibilidade ou no de se ter acesso a ncleos de poder ou de se obter xito em tentativas de se alcanar certa mobilidade social decorria, em grande medida, da qualidade das relaes que os indivduos poderiam contar. Nesseperodo,astaxasdenatalidadeerambastanteelevadassecomparadassde hoje.Casaiscomumentepossuammuitoscompadresporintermdiodeseusfilhos.A longevidadedessaligao,pelomenosemtermosdeparentescoespiritual,eraamesmada vidadoafilhado.Ospaisespirituaisdobatizadopoderiamauxiliarseuspaisterrenos, oferecendocuidadoscotidianoscrianae,principalmente,oportunidades:ensinaralgum ofcio, ler e escrever, possibilitar o acesso a algum cargo, etc. Paraalmdarelaopadrinho-afilhado,oscompadresdolatimcum(junto)mais pater (pai) poderiam se assistirem mutuamente de diversas formas. Por terem se aparentado deformaopcionalseriam,nomnimo,amigosoquenoerapoucacoisa.Assimcomoo

11 Famlia, in: SILVA, Antnio de Moraes. Diccionrio de lngua portuguesa... vol. 2, p. 9. 12 MATTOSO, Ktia de Queirs. Ser escravo no Brasil. So Paulo: ed. Brasiliense, 1988, p. 132. 20 conceitodefamlia,odeamizade,quevigoravanoperodomoderno,tambmpossuaum significadobemdiverso.Asamizadeseramrelacionamentosmuitoformalizadoseque constrangiamfortementeavidacotidiana.Acabavamdemandandoumaconstante preocupaocomaestabilidadedarelao,eexigiamtodaumasriedeatosde reconhecimentoederituaisdesociabilizao.Visitaracasaumdooutro,participarde reunies e festas, passar o tempo em conversas, se entreajudarem...Os amigos deveriam ser leais, recprocos e benevolentes. Numasociedadecompoucasinstituiesequelegitimavaadesigualdade,as possibilidadesdecadaumestavamdadas,majoritariamente,pelacondiodenascimento. Essemecanismodeaparentamentopelaescolha,possibilitadopelocompadrio,consistia numadasrestritasoportunidadesemqueaspessoaspoderiamcontarcomsolidariedades vitalciascapazesdeviabilizarfluxosdebensmateriaisousimblicos.Porissomesmo,no era raro que alguns indivduos, por agregarem determinados atributos que os distinguiam dos demais,viessemaapadrinharmuitascrianas.Paraelesovnculotambminteressava.Os afilhados, por serem seus protegidos, lhes deveriam lealdade; assimcomo os compadres, por serem seus aliados. Portanto, o compadrio poderia contribuir em larga escala na consolidao de amplas redes de poder, capazes de engendrar, consolidar e sustentar esferas de influncia, sobretudo a nvel local. Normalmenteospadrinhosprocuradoseramaquelesquetinhammaisaoferecerdo queospais.DadoaonveldehierarquizaodassociedadesdeAntigoRegime,criavam-se pelocompadrioenvolvimentoshierrquicosqueretroalimentavamredesdeclientela.13Por mais assimtrica que fosse a relao, ningum era to pobre que nada poderia oferecer, assim como ningum era to rico que nada precisasse receber. Opropsitodestetrabalhoanalisarcomoseconfiguraramessasalianasrituaisem Minasduranteapocacolonial.Paraisso,soenfocadastrsfreguesiasruraisdotermode VilaRicacapitalpolticadacapitaniae,pormuitotempo,tambmeconmica.Nossa Senhora de Nazar da Cachoeira do Campo, Santo Antnio da Casa Branca e So Bartolomeu seocupavamdeumaproduoagropastorilquevisavasupriragrandedemandaalimentar geradapelorpidoeintensopovoamentodoeldorado.Almdoabastecimentodaurbe vilariquenha,CasaBrancaeSoBartolomeu,porseuslimitescompreenderemnascentesdo

13Afinal,nocompadriovicejavamrelaestendencialmentedesiguais(emdiversasgradaes),marcadaspor umaestabilidade(umvnculovitalcio)esoconstrudaspelareciprocidade(ddivasecontra-ddivas circulam, sendo a concesso do poder sobre o afilhado uma delas). 21 RiodasVelhas,ricasemouro,dedicavam-seaumaproduoagrcolaconcomitante explorao aurfera.Apesar da grande quantidade de estudos de Histria Social produzidos sobre Vila Rica (edeoutrosprincipaisncleosurbanosdacapitania),freguesiasruraiscomoasque selecionamos ainda foram muito pouco estudadas. Operodoanalisadocompreendeduasconjunturaseconmicas:oaugedaproduo aurferaeoseuprocessodedeclnio,apartirdemeadosdadcadade1770.Nessesegundo momento,aslocalidadesemquestopassaramporumprocessodereestruturaodesuas unidadesprodutivasereduziramdrasticamenteseusndicesdemercantilizao,poisa demandaregionaljnoeraamesmadaidadedoouro.Oeixoeconmicodacapitania deslocou-se para o sul, na Comarca do Rio das Mortes onde, quela altura, havia uma maior oferta de terras a serem cultivadas e um importante mercado consumidor na cidade do Rio de Janeiroqueseintensificouaindamaisem1808,comatransfernciadacorte.Asfreguesias emfocodedicaram-se,ento,aumaeconomiaagrcoladesubsistnciamarcadaporuma pequena comercializao de excedentes. Adescobertadoouromotivouamigraodeumenormecontingentepopulacional paraasMinas.CachoeiradoCampo,CasaBrancaeSoBartolomeuforampovoadaspor homensemulheresoriundosdediversasregiesdaMetrpole,daAmricaportuguesaedo continenteafricano.Unsdeslocaram-separaldeformaespontnea.Outros,porm,foram foradosafaz-lodadaascontingnciasdaescravido.Esteestudoprocuratrazeralguma inteligibilidadesintrincadasredesdecompadrioestabelecidasporessespovoadoreseseus descendentes ao longo do perodo colonial. Asprincipaisfontesqueembasamestetrabalhosoosregistrosreferentess cerimnias batismais ocorridas nas trs freguesias mencionadas e que encontram-se sediados noArquivoEclesisticodaArquidiocesedeMariana.Foiarroladoototalde7.462assentos debatismo.14Partimosdosmaisantigosdisponveis,referentesaoanode1725,enos estendemos at o ano de 1808.15

14Grandepartedessasfontesforamreunidasapartirdeumasriedeprojetossucessivos,iniciadosnoanode 2007ecoordenadopelaprofessoraMariadoCarmoPires.Desdeento,vemsendoreunidaumavasta documentao dessas freguesias rurais do termo de Vila Rica, includo tambm Itabira do Campo. Contou com auxlio pesquisa do CNPq no edital de Cincias Humanas e Sociais e do Programa Pesquisador Mineiro (PPM) daFAPEMIG. PIRES,Mariado Carmo.As Parquias Rurais do Termo deVila Rica: umestudo da formao socialdasprimeirasfreguesiasdosculoXVIII.Projeto dePesquisa.ProgramaPesquisadorMineiro(PPMIII) FAPEMIG, 2009. 15Obancodedadoscompreende4.800registrosreferentesaCachoeiradoCampo,queabarcamoperodode 1725 a 1808; 2.011 de Casa Branca cujos anos vo de 1739 a 1808; e 651 de So Bartolomeu, elaborados entre 1744 e 1767. Cabe ressaltar que para as anlises quantitativas no utilizamos a totalidade das fontes presentes no 22 Adocumentaoparoquialtemsidoenfocadapelasrecentestendncias historiogrficas por permitir o tratamento serial dos dados. De acordo com Adalgisa Campos, a parquia destaca-se como uma categoria privilegiada para se recuperar as relaes humanas ao nvel horizontal e vertical. A freguesia[...]fechadaeabertaaoexterior,funcionandocomoumaestrutura intermedirianosdomniospoltico/administrativo,econmico, cultural/religioso.Aparquiafundamenta-seemterritriodemarcado,emum espao de relaes sociais e simblicas.16

Arealizaodapesquisasedaratravsdaaplicaodomtodoindicirio,proposto porGinzburg17,etambmdomtododaligaonominativa18.Seguindoestesmtodos,as fontesserocoligidasapartirdediretrizesquantitativasequalitativasparadaserem analisadas e cruzadas na inteno de lhes atribuir um carter de complementaridade. O nome ser o fio condutor desta pesquisa. Buscaremos indcios da vida cotidiana dos fregueses. A anlise dessas fontes paroquiais permitem estudos em diversas linhas de abordagem que vo desde a perspectiva demogrfica s prticas e representaes do sagrado. Os registros paroquiais que utilizaremos encontram-se arrolados em um banco de dados cuja organizao procurou extrair todas as informaes possveis. A partir de tal organizao serial, poderemos cruzar os dados tanto numa perspectiva quantitativa, quanto qualitativa. Apesar de nem todos osindivduosgozaremdeumadescriodeinformaestodetalhadasquantooutros,as fontesparoquiais,sobretudoasbatismais,nosseromuitorelevantesdadaasua universalidade.19

bancodedados,poisalgumasencontram-separcialmenteilegveis,oqueasinutilizaparaquecertosaspectos sejam tratados em srie. 16CAMPOS,AdalgisaArantes.Apresentao.Dossi:VilaRicadoPilar:ReflexessobreMinasGeraisea poca Moderna. In: Vria Histria. Belo Horizonte, n. 31, jan. 2004. 17GINZBURG,Carlo.Sinais:Razesdeumparadigmaindicirio.In:Mitos,EmblemaseSinais.SoPaulo: Companhia das Letras, 1989. 18 Chamado por Ginziburg de mtodo onomstico. GINZBURG, Carlo.O nome e o como. In: Micro-Histria eoutrosensaios.Lisboa:Difel.RiodeJaneiro:BertrandBrasil,1989.p.169-178.Omtododaligao nominativa consiste em captar o mesmo indivduo ou seus familiares em diversas fontes, atravs da ligao de nomes.ummtodoquepermitereconstituiratrajetriadossujeitosemdiversasetapasdavida,comopor exemplo, nascimento, casamento, ou mesmo a reconstituio de diversas geraes familiares. 19Amaioroumenorriquezadeinformaes,contidasnasvriascategoriasdeassentosparoquiais,mostra-se comoresultantededoiselementosbsicos.Primeiramente,observam-sediferenasdevidasaoarbtriodos eclesisticosresponsveispelafeituradosregistros;dessaforma,cadaprocooucoadjutorrevela-semaisou menos rico em pormenores ao descrever os eventos considerados. Dependendo da idiossincrasia de cada clrigo, reala-seesteouaqueleaspectoparticular(cor,condiosocial,idade...),assimcomoseuaparecimentoem certosregistrosenoemoutros,tambmquandoumamesmapessoamencionadaduasoumaisvezes.O segundofatordeterminantedaconcisoouprolixidadedosvriosregistradores(debatismos,casamentosou bitos)relaciona-seaoposicionamentosociale/oufaixaetriadaspessoasenvolvidasnosregistros.Dessa forma,escravos,forroseinocentescostumamreceberumtratamentomaissucinto.Emcontrapartida,os dignitriosdaIgrejaoudavidaadministrativacolonial,bemcomoaspessoascomalgumaposseaindaque alforriadastendem ater seus privilgios consubstanciados em assentosmaisminuciosos. No concernente aos escravos, as informaes eram pouco detalhadas porque o que lhes dizia respeito no era considerado relevante. 23 ObatismofoiosacramentomaispopularemtodaaAmricaPortuguesa.Tratava, antesdetudo,dainseroformalaocorpomsticodaCristandade.20Somentedepoisda realizaodobatismoquesetornavapossvelarealizaodosdemaisritosdavidacrist (Comunho,ConfirmaoouCrisma,Penitncia,MatrimnioouSacerdcioeUnodos Enfermos).Porconseguinte,dentrodeumapolticadeafirmaoencetadapelareforma tridentina,nohaveriaanegaodobatismoparaqualquercondiosocial,econmica,de corouetnia.21Emcasosderiscodemortepoderiaseraplicadomesmoporleigos,cujas cerimnias os procos elaboravam um registro posteriormente. Nosso principal objetivo compreender as configuraes e as estratgias implcitas s alianasrituaisestabelecidasnomomentodascerimniasbatismaisocorridasnasfreguesias deCachoeiradoCampo,CasaBrancaeSoBartolomeuduranteoperodocolonial.O compadrio uma instituio que passou a ter a ateno dos historiadores desde que a Histria veioseaproximandodaAntropologia.Dadacentralidadequeaquestodoparentesco assumenoestudodassociedadesditasprimitivas,osantroplogossempreestiverammais predispostos a estud-lo do que, no geral, os historiadores.Ocaptulo1fazumaanlisedasfreguesiasdeCachoeiradoCampo,CasaBrancae SoBartolomeusobumviseconmicoedemogrfico.Procuramossitu-lasemtrs dinmicas:aregional,internacapitania;acolonial;eametropolitana.Damosnfaseao singularprocessodepovoamentodacapitaniadeMinasquedeuorigemsagregaes populacionaisemfoco.Porseremparquiastambmmineradoraseprximasaoncleo urbano central de Vila Rica, essas localidades estiveram sujeitas s contingncias decorrentes da atividade aurfera. Ademais, por isso, serviram como pontos de passagem, abastecimento e descansoparaaquelesquesedeslocavamparaaregiodoTripu,ondeseconcentravama maiorpartedosachadosminerais.Outrossim,acompanhamosopapeleconmicodessas parquiasaolongodosculoXVIII,asprincipaisatividadesdesempenhadaseaspectos centraisdaformacomoseestruturavaotrabalho,dandoespecialatenoassuas permannciasetransformaesestruturais.Asfontesutilizadaseoamplorecortetemporal abremmargemparaqueacompanhemostransformaessofridaspelastrsfreguesiasem Aomesmotempoemquealgunsreligiosos,porexemplo,fazemconstaraprocednciadosescravosafricanos (naoAngola,gentiodaGuineetc.)outrosnoofazem;enquantoalgunsdistinguementreafricanose crioulos, outros anotam apenas escravo. DEMETRIO, D. V.. Assentos de batismo de escravos: crtica s fontes e metodologia. Primeiros Escritos, v. 1, p. n 13, 2008, p. 2. 20 CAMPOS, Adalgisa Arantes; FRANCO, Renato. Notas sobre os significados religiosos do Batismo. In:Varia Histria, v.31. UFMG, 2004, p. 23 e 40. 21 As ordenaes Filipinas (1603) determinaram a obrigatoriedade e os prazos dentro dos quais os proprietrios deveriamrealizarobatismodeseusescravosdetodasasidades.SCHWARTZ,Stuart.Escravos,Roceirose Rebeldes. SP: EDUSC, 2001. 24 especfico:daagriculturacomoatividadecomplementareauxiliaraoprocessodeproduo aurfera,paraaagriculturaenquantoeixocentral,sendoasubsistnciaeobaixondicede mercantilizao,suasprincipaiscaractersticas.Osregistrosparoquiaisnospossibilitaram pensardiversosdessesaspectos.Analisamosastaxasdeingressodecativosoriundosdo trfico atlntico nas parquias, a partir dos registros batismaisde adultos, e tambm as taxas de natalidade de escravos e livres. Ocaptulo2,partedeumaabordagemdossignificadosreligiososesociaisdoritual catlicodobatismops-Trentopara,emseguida,discutirmosumasriedecategoriase tipologiasimportantesparaummelhorentendimentodocompadrio.Assim,verticalizamos nossareflexoacercadoparentescoinstitudonesteritodepassagemesuasimplicaesno mbitodoAntigoRegime.Nossaabordagemencontra-seancoradaemautoresclssicosdas Cincias Sociais cujos estudos remetem, respectivamente, ao fenmeno religioso, aos rituais e tambmsalianas(ouguerras)mediadaspelastrocas.22Emsntese,ospontostratados consistemnumaanlisedoritualdobatismoapartirdeteoriasantropolgicasderitual,a reciprocidadedodom,osusossociaisdocompadrioesuasimplicaesnosconceitosde famlia, amor e amizade que eram tpicos do perodo. O poder sobre o batizado concedido aos padrinhos,quedeveriamrespondercomproteo,pensadoenquantoumaddiva(ou prestao)capazdevincul-loscrianaeseusprogenitores,criandoouintensificando relaes sociais sob a base de um parentesco espiritual vitalcio.O primeiro captulo, portanto, discute pontos essenciais para um melhor entendimento da singularidade das freguesias em questo, sobretudo no que se refere a aspectos econmicos edemogrficos.Essaparteimportanteparaapreendermosasconsequnciasdas transformaes por elas sofridas, a partir das mudanas conjunturais que estiveram sujeitas e, assim,termosumamelhorideiadeimportantesaspectoscotidianosesuastransformaes, como das ocupaes de seus moradores, suas estruturas familiares e produtivas. J o segundo captulo,noplanodasestruturas,encaminhaumadiscussoemquesoesclarecidospontos essenciaissobreoambientecultural-religiosonoqualsedesenvolveramoslaosde compadrio, principal objeto do captulo seguinte.Parececerto que, paraa sociedade descrita no segundo captulo, a criao do vnculo socialsedimentadopelocompadrioeraalgodesejadoe,porisso,passavaporumacriteriosa seleo pela parte dos progenitores das crianas. Os critrios levados em conta pelas pessoas

22Cf.DURKHEIM,mile.Asformaselementaresdavidareligiosa.SoPaulo:Paulinas,1989.GENNEP, ArnoldVan.Osritosdepassagem.Petrpolis:Ed.Vozes,1978.MAUSS,Marcel.Ensaiosobreaddiva.Lisboa: Edies 70, 2008. 25 queviveramnasreferidaslocalidadeseramfortementemoldadosporaspectosdeordem religiosaesocial,estruturaisaoAntigoRegime.Almdeles,tambmpesavamosfatores econmicos, relegados ao plano das conjunturas trabalhadas no primeiro captulo.Nocaptulo3feitooestudoprincipaldasrelaesdecompadrio.Apartirdouso conjuntodemetodologiasquantitativasequalitativas,abordacomocadasetordapopulao procuravaoperacionalizaraalianacombasenoquefoidiscutidonoscaptulosiniciais. Primeiramente,analisamososvnculosdecompadrioapartirdosescravoseescravasque foram batizados nessas parquias e tambm de seus filhos. Em seguida,as estratgias e usos destainstituioporpartedacomunidadelivreeliberta.Nodeixamosdetrabalharoutras subcategoriasimplcitassdescritas,comoprocedncia/naturalidade,cor,legitimidadee faixa-etria. 26 Captulo 1 Dinmicas econmicas, fluxos demogrficos e trabalho nas freguesias rurais de Vila Rica Concorreu em tanto concurso a natural necessidade de alimentos; e porque na altura da regio a penria delas subiu o preo, uns fizeram da agricultura sustento e interesse, outros agenciaram no ouro dos seios da terra juntamente o sustento e as riquezas: assim, com suavidade e facilidade, estas terras agrestes e nem ainda de feras habitadas ficaram dignas de habitao; abundantes de alimentos para a humana necessidade, copiosas de ouro para os desejos da cobia.23 1.1 - Os fluxos de povoamento em direo s Minas e as consequncias da minerao AmanifestaodosachadosaurferosemfinsdosculoXVIItrouxeconsigo consequncias de grandes propores. Uma das mais imediatas referiu-se ao deslocamento de indivduos de outrasregiesdaAmrica portuguesa e de alm-mar paraaquela que ento se apresentavapromissora.Comoeradeseesperar,anotciasobreosachadosespalhou-see sustentouintensosfluxosmigratriosemsuadireo.Rapidamente,ento,asociedade mineira se consolidou. A forma que tomou o processo de ocupao da capitania foi corolrio da atividade mineratria.24 OquadrodescritorepresentouumarupturamaneiracomoasregiesdaAmrica portuguesaeram,atento,ocupadas.Anteriormente,dependiamdeprocessosde povoamentorelativamenteautnomos.DeacordocomFernandaBorgesdeMoraes,esses processosrelacionavam-seconquista,proteodacostaeexpanso,concomitantes implementaoeaodesenvolvimentodeatividadeseconmicasdiferenciadassegundoo

23 MACHADO, Simo Ferreira. O Triunfo Eucarstico: exemplar da cristandade lusitana. Lisboa: Companhia de Jesus, 1734. 24PAULA,JooAntnio.AmineraodeouroemMinasGeraisnosculoXVIII.In:RESENDE,Maria IfigniaLage;VILLALTA,LuizCarlos.HistriadeMinasGerais.AsMinassetecentistas.BeloHorizonte: Autntica; Companhia do Tempo, 2007, p. 283. 27 potenciallocal.25Iminentementelitornea,talocupaoancorava-senaexploraodebase extrativista, agrcola oupecuria, o que resultouem assentamentos humanos pouco densose com menores taxas de crescimento. Tratavam-se de economias de carter essencialmente rural em que era possvel haver relativa autossuficincia, j que a lavoura e a pecuria demandavam grandes extenses de terras.De fato, a experincia mineradora gerou um forte impacto na organizao econmica e territorialdaAmricaportuguesa.Juntamentecomatransfernciadoeixoeconmico-administrativoparaoCentro-Sul,sedeuaarticulaodaCapitaniadeMinascomoutrase comaprpriaMetrpole.Consequentemente,integraram-semercados,ampliaram-se fronteiras e a unidade territorial colonial se viu fortalecida. Almdisso,duranteoprocessodeurbanizaonointeriordaCapitania,as populaesocuparamumterritriodevastaextenso,distribuindo-seemaglomeraesde diversas caractersticas. Os vrios arraiais e vilas da regio encontravam-se articulados a uma estruturainternahierrquica,dinmicaecomplexa.Assim,comodeslocamentodoeixo econmico colonial e, a partir de intensos fluxos populacionais, foi edificada uma vigorosa e complexa economia interna prpria capitania cuja razo de ser girava em torno da atividade aurfera, de sua manuteno, e expanso.26 Deformasintomticamaneiracomoseefetivavaopovoamentodaregio,o vocabulriodoshabitantesdeMinassetransformou.Otermoarraial,porexemplo,sofreu alteraes em seu significado luz das especificidades desse processo. Segundo o dicionrio doportugusD.RaphaelBluteau,apalavrasignificavaoalojamentodeumexrcitona campanha, sendo tambm sinnimo de real, relativo aos reis.27 J para os bandeirantes de fins do sculo XVII, a palavra designava os pousos e roas que criavam ao longo das trilhas paraassegurarasuasobrevivncia.Comadescobertadosricosdepsitosaurferos, principalmentenaregiodoTripu,taistrilhastransformaram-seemcaminhospelosquais transitava um grande contingente de viajantes e tropeiros. Alguns pousos existentes ao longo dasviasacabaramsetornandopontosdeencontrodeagricultoresecomerciantes,jquea minerao no eraatividade que se esgotava no cotidiano das lavras. Em torno desses locais

25MORAES,FernandaBorgesde.Dearraiais,vilasecaminhos:aredeurbanadasMinasColoniais.In: RESENDE,MariaIfigniaLage;VILLALTA,LuizCarlos.HistriadeMinasGerais.AsMinassetecentistas. Belo Horizonte: Autntica; Companhia do Tempo, 2007, p. 62. 26 MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas... p. 62. 27Arraial,in:BLUTEAU,Raphael.Vocabularioportuguez&latino:aulico,anatomico,architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. vol. 1, p. 544. 28 desenvolviam-sepovoadosquetambmeramchamadosdearraiais.28Desdeasprimeiras dcadasdosculoXVIII,jsetornavavisvelareversodasituaoinauguraldecoisa provisria,quandoosprimeirosassentamentoshumanosforamerigidosporaventureiros provenientes de todas as partes da colnia e do Reino. Amudanadesignificadoqueocorreunapalavraarraialnasreasinfluenciadas pela minerao esteve intimamente relacionada fluidez do seu processo de povoamento. No finaldoprimeiroquarteldosculoXIX,talcaractersticanopassoudespercebidapelo naturalista francs Auguste de Saint-Hilaire, que registrou nos seus relatos: Nota-sequenaprovnciadeSantaCatarinanoseusa,comoemMinas,o termo arraial para designar os povoados, mas freguesia. Arraial, propriamente dito,significaacampamento,eacampareraoquerealmentefaziamos primeirosmineiros.Agrandequantidadedeouro,porm,queeles encontravamemcertoslugares decidia-osaasefixarem,eapalavraarraial foi pouco a pouco perdendo a sua significao. Nada de parecido ocorrera em Santa Catarina, onde no existiam minas a explorar.29 No sculo XVIII, os ndios a serem escravizados j haviam deixado de ser o foco das bandeirasemdetrimentodabuscapelasriquezasminerais.NosemMinasGerais,mas tambm em Gois e Mato Grosso, o termo arraial esteve associado aos povoados das zonas mineradorasdacolnia.Nessaslocalidades,aexpressopoderiareferir-setantoa acampamentos precrios, quanto aos j consolidados.30 AmaiorpartedaquelesquesedirigiramsMinas,numprimeiromomento,nutria-se da expectativa de um fcil enriquecimento e breve retorno aos seus locais de origem.31 Uma vez frustrada esta expectativa, ou esgotado o ouro de aluvio, os indivduos se retiravam para novas fronteiras ou aproveitavam da localizao, qualidade e quantidade das novas terras para sededicaremaoutrasatividades,inicialmenteatendendodemandaproduzidapeloncleo mineratriooriginal.Numperodoposterioraosdescobrimentosiniciais,aprpria manutenodaatividadeaurferadeterminouqueosarraiaisdeixassemdeserprovisrios. Essesarraiais,rpidaesucessivamentepovoados,desenvolveramatividadesmercantis necessrias ao abastecimento das reas mineradoras. Conforme relatado pelo jesuta Antonil, em obra de 1711, Asedeinsaciveldoouroestimulouatantosadeixaremsuasterras,ea meterem-seporcaminhostosperos,comosoosdasminas,que

28FONSECA,CludiaDamasceno.ArraiaiseVilasDelRei.EspaoepodernasMinassetecentistas.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011, p. 64. 29SAINT-HILAIRE,Auguste.ViagemprovnciadeSantaCatarina(1820).SoPaulo:Companhiaeditora nacional, 1936, p. 30. 30 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 64. 31 MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas... p. 63. 29 dificultosamente se poder dar conta do nmero de pessoas que atualmente l esto. Contudo, os que assistiram nelas nesses ltimos anos por largo tempo, e ascorreramtodas,dizem,quemaisdetrintamilalmasseocupam,umaem catar,outrasemmandarcatarnosribeirosdoouro,eoutrasemnegociar, vendendo,ecomprandooquesehmisternosparaavida,masparao regalo, mais que nos portos do mar.32 OcontingentepopulacionalapresentadoporAntonil,maisoumenossetentaanos depois,em1776,decuplicou,chegandoacontar319.769habitantes,cifraquefaziaa Capitania de Minas Gerais ser a mais populosa da Amrica portuguesa.33 Ao final do perodo colonial,estimava-sequeasuapopulaochegavaateremtornode514milhabitantes, apesar da minerao claramente no ser mais a principal atividade desempenhada na regio.34 Obviamente, essa populao, que s cresceu ao longo das dcadas, no estava organizada da mesmaformadesdeaocupaodosterritrios.Conformejfoiassinaladopordiversos autores,opovoamentodeMinasGeraisfez-sedemodocentrfugo.Apartirdoscentros mineradoresprincipaisRibeirodoCarmo,OuroPreto,RiodasVelhas,RiodasMortese Serro. A populao espalhou-se pelas zonas circunvizinhas e criou centenas de arraiais, sendo quecadafundaofuncionoucomoumapontadelanaparanovasexploraese ocupaes.35 Fatores como a grande oferta de terras cultivveis em localidades a ainda serem povoadas,aliadademandamotivadapelosmaiorescentrosurbanosnumaprimeiraetapae tambm ao esgotamento dos veios aurferos, numa segunda fase, ditaram os ciclos migratrios internos. FernandaBorgesdeMoraes,analisandoalgunsmapasdaregiodasMinas,apontou que num documento cartogrfico de 1699-1702,Praticamenteshaviaregistrosdeesparsaocupaohumanafazendase currais ao longo de uns poucos caminhos, em 1734, e, sobretudo, em 1778, vilas,freguesias,arraiaiseregistrosjpontuavamnosostrajetosquese desenvolveramsmargensdoSoFranciscoeaquelesquepassampelo DistritoDiamantino,mastambmumarededeconexes,queseexpandiu pelos sertes do Norte da Capitania.36

32 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 167. 33 O referido nmero consta no Mapa dos habitantes da Capitania de Minas Gerais e dos nascidos e falecidos no anode1776.ROCHA,JosJoaquimda.GeografiahistricadaCapitaniadeMinasGerais:descrio geogrfica, topogrfica, histrica e poltica da Capitania de Minas Gerais. Memria Histrica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1995, p. 182 34 ESCHWEGE, Guilherme Baro de. Notcias e reflexes estatsticas da provncia de Minas Gerais. In:Revista do Arquivo Pblico Mineiro, IV, 1899, p. 737. 35AdocumentaoreferenteaosprimeirosanosdosculoXVIIIespecificamquatroregiesprincipaisque reuniam um elevado nmero de arraiais mineradores. So elas: as minas de Ouro Preto e, pouca distncia, as minasdoRibeirodeNossaSenhoradoCarmo;asminasdoRiodasMorteseasdoRiodasVelhas. FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 66. 36 MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas... p.70. 30 AdescobertadoouroemMinasGeraisnofinaldosculoXVIII,seguidados diamantesem1720,portanto,inseriramumnovotipodeatividaderesponsvelpor desencadear uma srie de mudanas que incidiram sobrea prpria forma dacolonizao e o prprio aspecto da sociedade colonial de ento. Se, at aquele momento, a colonizao havia sido,conformenosreferimos,marcadamentelitorneaerural,adescobertadoouro possibilitouainteriorizaopelasMinasdosCataguases.quelaaltura,acolniaeraum imensoterritriocompostoporcompartimentaesgeogrficasonde,igualmente compartimentadas, desenvolviam-se atividades produtivas e mercantis. Minas foi o elo capaz degerarumaarticulaodeesparsosterritrios.Poucoapouco,osertoganhoupequenos centrosurbanosepresenciouodesenvolvimentodeumaeconomiamaisdiversificada.37 Duranteesseperodo,acolniaportuguesanoNovoMundotornou-seaprincipalfontede rendimentoparaamonarquia.Graassconstantesremessasdemetaispreciososparaa Metrpole foi possvel o soerguimento do Estado portugus e de seu errio, muito combalido nasdcadasposterioresRestauraode1640.38Apesardetodoodescaminhoqueos achadossofreram,asremessasdeouroediamantesforneceramCoroanovosrecursos valiosos at a dcada de 1760. No ano de 1716, o imposto sobre o ouro tinha o peso de mais de10%nasreceitaspblicas.Poucoantesdacrisedaextraodoourodealuvio,nas dcadas de 60 e 70, os minerais proporcionavam um quinto das receitas do Estado.39 1.2 - Para alm da extrao aurfera: aspectos da produo agropastoril mercantilizada na regio mineradora Inicialmente,ointensoedesordenadofluxodepessoasdediferenteslugaresem direosMinastrouxe consigogravescrisesdeabastecimento,fatoocorridodevidoauma conjunodecircunstncias.Adistnciadosachadosaurferosemrelaosregies produtoras/exportadorasdesecosemolhadosaliou-seprecariedadedoscaminhosedos meios de transporte. A esses fatores, somaram-se a concentrao inicial da fora de trabalho naatividademineratria,afaltademoedacirculanteeostributossobreasmercadorias

37 PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 55. 38Minerao,in:VAINFAS,Ronaldo(dir.)DicionriodoBrasilcolonial(1500-1808).RiodeJaneiro: Objetiva, 2000, p. 397. 39PEREIRA,JorgeM..Asconsequnciaseconmicasdoimprio:Portugal(1415-1822).RevistadeHistria Econmica, Madrid, vol. XVI, 1998, p. 442. 31 importadas,queelevaramseuspreosnomercado.Aspoucasroasexistentesnapocano foram capazes de sustentar a grande demanda inicial ocorrida no interior do continente. Em1697-1698ocorreuaprimeiragrandecrisedeabastecimento,quelevou dispersodapopulaoinicialconcentradanocentrodaregiomineratria.Afortecrise desencadeouaemigraoparaSoPauloeparaosmatosecampinasnosarredoresdo Ribeiro do Carmo. Poucos anos depois, ascomitivas voltaram, porm ainda sem uma fonte deabastecimentoorganizada.Essascrises,queconjugavam-seaepidemiasdebexigaes cheiasnosrios,acabaramporprovocarrelativadispersodemineradores.40Novamente,em 1700-01,numafaseposterioraodescobrimentodoouronoTripuenosregatosdoseu entorno, houve uma segunda crise de abastecimento nas Minas, o que dispersou novamente a populaopelointerior.Emrazodesteevento,muitasregiesforamocupadas,comoo antigoarraial de Camargos, arraial doBonfim doMato Dentro, de Antnio Pereira e muitos outros,dentreeles,osdeCachoeiradoCampo,SoBartolomeueSantoAntniodaCasa Branca, localidades enfocadas em nosso estudo.41 O interesse central da Coroa era, evidentemente, a minerao. Para que ela pudesse ser implantadacommenosdificuldades,oincentivoaoutrasatividadesnecessriasasua continuidade e manuteno fizeram-se presentes. Com a finalidade de que o abastecimento da regiodasMinasfuncionassesemproblemas,foicriadaumaretaguardadeproduo alimentar atravs da concesso de cartas de sesmarias. O governador Antnio de Albuquerque CoelhoeCarvalho,entre1710e1713,concedeuototalde120sesmariasnoentornodos principais centros mineradores.42 De acordo com Russel-Wood, o objetivo do governador foi odedisponibilizargnerosalimentcios,emmaiorquantidadeeapreosmaisbaixos,para quearegionoenfrentassenovamenteosproblemaslogsticosquemarcaramosprimeiros

40Abastecimento,in:BOTELHO,ngelaVianna;ROMEIRO,Adriana.DicionriohistricodasMinas Gerais; perodo colonial. Belo Horizonte: Autntica, 2003, p.11-13.41 VASCONCELOS, Diogo de. Histria antiga das Minas Gerais.Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974, vol. 1, p. 177. 42 A carta de sesmaria consistia num estmulo produo, pois legitimava a posse da terra. O suplicante tornava-se proprietrio de um stio ou fazenda com limites definidos, podendo posteriormente vender sua propriedade no mercado.Comafinalidadedelegitimarapossedeterras jocupadasoudeconseguirnovasparacontinuaras atividadesdeproduo,osmoradoresremetiampetiessautoridadesadministrativasjustificandoseus pedidos.Comaconcessodascartasdesesmariapelosgovernadores,almdelegalizaremapossedasterras, tambmpossibilitavamaexpansodasfronteirasefortaleciamasatividadesprodutivasdirecionadasao abastecimentointerno.Ademais,obenefcioimpunhaaosesmeiroaobrigatoriedadedeocuparcomgadoe cultivar a terra dentro de pelo menos trs anos, caso contrrio, perderia a posse dela. SILVA, Flvio Marcus da. Subsistnciaepoder.ApolticadoabastecimentoalimentarnasMinassetecentistas.BeloHorizonte:Ed. UFMG,2008,p.142.BARBOSA,WaldemardeAlmeida.HistriadeMinas.BeloHorizonte:Editora Comunicao, v. 1, 1979, p. 234. GUIMARES, Carlos Magno; REIS, Flvia da Mata. Agricultura e minerao no sculo XVIII. In: RESENDE, Maria IfigniaLage; VILLALTA, LuizCarlos.Histria de Minas Gerais. As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autntica; Companhia do Tempo, 2007, p. 323. 32 tempos da minerao; refrear a atividade de contrabandistas; ocupar as zonas limtrofes, assim como as que os caminhos cortavam.43

Orpidocrescimentopopulacionalexperimentadonaregiodemandouqueas autoridadesempregassemapolticadeconcessodesesmarias.Comisso,incentivou-seo povoamentodointerioreafixaodaspopulaesqueerravampeloterritriomineiro, muitasvezesameaandoaordemsocial.44Finalmentepdeserrealizadoopovoamentodos caminhosparaasMinas.Dessemodo,ospassageirospoderiamencontraremsuatrajetria, roaseranchosempontosestratgicos,facilitandoacirculaodepessoasemercadorias.45 Osfazendeirosinstaladosnessespontos,muitasvezes,seconvertiamtambmemvendeiros ouestalajadeiros,criandolocaisdepousoeabastecimentoparaosviajantesetropeirosque traziamalimentos,comotambmoutrasmercadoriasparaasMinas.46Outrossim,comos caminhos habitados, reduziam-se os riscos de ataques de quilombolas, ndios e salteadores, o quetambmcontribuaparaumamaiorgarantiadeprevisibilidadedoabastecimento.47Os viajantes,condutoreseanimaisdetropasquecirculavamnasviasdeacessoregio mineradora podiam adquirir mantimentos bsicos graas a uma aquecida atividade rural.48 Em Minas,desdeosprimeirosanosdosculoXVIII,jhaviaseconsolidadoumaeconomia diversificada que configurou um amplo mercado interno.A poltica de concesso de terras contribuiu sobremaneira para a constituio de zonas especializadasnaproduodegnerosdeprimeiranecessidadenoentornodeVilaRica, como as freguesias de Casa Branca, So Bartolomeu e, principalmente, Cachoeira do Campo. Diogo de Mendona chegou a ressaltar nos pareceres ao projeto da Capitao de 1733, que aagriculturanacapitaniamineirapodiaser,atmesmo,umnegciomaisvantajosoquea prpria extrao aurfera: pois certo que acham [os roceiros] na lavoura o mesmo ou maior interesse do que tirariam da bateia, que se assim no fosse minerariam todos, ou quase todos, eviriamosmantimentosdefora.49Vemos,portanto,comoaprprianaturezadeuma

43RUSSELL-WOOD,A.J..OgovernolocalnaAmricaportuguesa:umestudodedivergnciacultural. In: Revista de Histria, So Paulo, v. LV, n. 109, ano XXVIII, 1977, p. 34. 44 SILVA, Flvio Marcus da. Subsistncia e poder... p. 141. Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro. A pobreza mineira no sculo XVIII. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1985. 45 No ano de 1749, o Ouvidor portugus Caetano da Costa Matoso, em sua viagem para VilaRica, vindo do Rio deJaneiro,descreveuoslocaisondepousavamcompunham-sedeumespaocobertoparaabrigaras mercadoriasdosviajantes,deumacapelarsticaedeumpunhadodehabitaesmodestas(palhoas, choupanas), feitas de madeira e de barros, e quase sempre cobertas de folhas e ramagens; algumas vezes, notava-seaindaapresenadeumengenhodecanaoudeummoinhoparamilhooumandioca.FONSECA,Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 70. 46 Id. Ibid.. 47 SILVA, Flvio Marcus da. Subsistncia e poder... p. 144. 48 GUIMARES, Carlos Magno; REIS, Flvia da Mata. Agricultura e minerao... p.325. 49 SILVA, Flvio Marcus da. Subsistncia e poder... p. 143-4. 33 comunidademineradoraproporcionavaoportunidadesdeenriquecimento,queiamalmdas atividades mineratrias e tambm relacionavam-se ao abastecimento de produtos alimentares e mercadorias.50 Aproduodealimentosparaomercadointernofoiumaalternativaexecutadapor aquelesquenosededicaramextraoaurferaouaindaparaoscomercianteseat mineradoresqueinteressavam-seemdiversificarsuasatividades,elevando,assim,suas possibilidadesdearrecadao.51Outrossim,asatividadesmanufatureirascontriburampara uma maior diversificao do mercado interno. Tais atividades encontravam-se estruturalmente ligadasaosetoragropecurio,comaproduodegneros,comootabaco,doces,queijos, tecidosdealgodo,produtosdecouro...Cabeaindadestacaraagromanufaturaaucareira, sobretudo no que se refere aos engenhos de aguardente, produto muito consumido nas Minas setecentistas. A atividade enfrentou, desde o incio, contnuas proibies metropolitanas, mas acabou sendo insistentemente praticada durante todo o perodo colonial.52

Ademais,asnegrasdetabuleirocontriburamparaumamaiordinamicidadeda economialocal.Apesardeteremsidoalvodalegislaorepressiva,durantetodoosculo XVIII,issonoasimpediadeteremsuasvendasequitandasnosncleosurbanos,oude comercializarem suas mercadorias nos espaos autorizados pelas autoridades.53 DuranteaprimeirametadedosculoXVIII,somadapolticadeconcessode sesmarias,outrasmedidasdasautoridadestambmvisavamestimularopequenocomrcio local. Procurava-se incentivar a venda direta dos gneros produzidos pelas roas situadas nas imediaes dos ncleos urbanos mais densos. Os lavradores que encaminhavam seus produtos paraseremvendidosnasvilasearraiaispossuamumamaiorliberdadenomercadoe gozavam de um tratamento diferenciado quando comparados aos comissrios de mantimentos, dequemasautoridadessempresuspeitavamdeestarematravessandoasmercadorias.Alm disso,desdequeobedecessemsdeterminaescamarrias,erampermitidasatividades comerciaisnoslugaresproibidossomenteaoslavradoresdemantimentos.Comessas

50 RUSSELL-WOOD, A. J.. O governo local... p. 41. 51 SILVA, Flvio Marcus da. Subsistncia e poder... p. 143. 52GUIMARES,CarlosMagno;REIS,FlviadaMata.Agriculturaeminerao...p.324.Cf.SILVA,Flvio Marcus da. Captulo 7: A poltica dos engenhos. Subsistncia e poder... p. 198-222. 53Asnegras detabuleiro, quedirigiam-ses reas deminerao paravender comestveis ebebidas aosnegros quelmineravam,foramalvodapolticadosagentesdaCoroa,queproibiramessetipodeatividadenessas localidades.Elaseramacusadasdeseremacausaprincipaldosdesviosdeouroediamantes,deprovocarem conflitos e desordens, e de causarem danos fsicos escravaria, pois alm de gastarem os jornais que deviam aos seussenhores,osescravoscostumavamaseembebedar,oqueosdeixavamaissuscetveisasofreremalgum acidente de trabalho. Id. Ibid., p. 156. 34 medidas,asautoridadessabiamqueestariamcontribuindoparaconsolidaodeumsetor agropecurio mais dinmico nas imediaes dos ncleos urbanos.54

Graasaosestmulosproduolocalporpartedasautoridades,nasegundametade dosculoXVIII,ospreosdamaioriadosgnerosalimentciosbsicosestabilizaram-sea pontodenohaverpraticamentenenhumavariaoaolongodoperodo.Dessaforma,o aumentonaofertadeprodutosalimentaresbsicosnomercadointerno,condicionadopelo desenvolvimento de um setor produtivo nos arredores dos centros urbanos, impediu qualquer faltaprolongadademantimentosouoaumentoabusivodospreostalcomoocorrido principalmente nos anos iniciais de ocupao do territrio.55 Aseguir,discutiremososfatoresquecondicionaramainstituioformaldas freguesias mineiras setecentistas e suas respectivas sedes. Vrios elementos competiram para queumaslocalidadesfossemeleitasemdetrimentodeoutrasevindomesmoaenglob-las. Esteseronossopontodepartidaparainiciarmosdiscussesmaisespecficasstrs parquias compulsadas no presente estudo. 1.3 - As parquias colativas do eldorado OsfatoresresponsveispelopovoamentodasMinasforamtodiversosquantoas motivaes individuais que levaram tantos a se dirigirem para a regio. Conforme j apontado naprpriaepgrafedopresentecaptuloemelhordesenvolvidonotpicoanterior,os movimentospopulacionaisrelacionadosbuscaeexploraoaurferanoforamosnicos responsveis pelo povoamento da capitania. Por isso mesmo, uma variada gama de atividades edensidadesdeocupaocondicionaramosestabelecimentosdecentrosdepoder civil/eclesistico na organizao territorial mineira setecentista.56 Osarraiaissurgiamespontaneamenteduranteoprocessodepovoamentodaregio. Mas para que fossem promovidos categoria de sedes paroquiais muitas vezes abrangendo tambm outras povoaes competiam uma srie de fatores. Segundo Cludia Damasceno, a instituio de freguesias dependia[...]dacomodidadeedasalubridadedolugar,donmerodehabitantes,da densidade do povoamento (concentrado ou disperso), da riqueza dos fiis e das

54 SILVA, Flvio Marcus da. Subsistncia e poder... p. 108. 55 Id. Ibid., p. 240.56 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 74. 35 capelas,dadistnciaentreospovoadoseasigrejasmatrizesjexistentes,e tambm de conjunturas polticas.57 Ainstituiodasparquiaseraumaformadeorganizarnosreligiosamenteo territrioeaspessoasquenelesresidiam.Consistiamnamenorfraodeenquadramento espacialdaspopulaesdosreinoscatlicos.NodicionriodeD.RaphaeldeBluteau, freguesia definida como a igreja paroquial ou a parquia e o lugar da cidade, ou campo emquevivemosfregueses.Consistenumlocalondeocorreummistodeorganizao eclesisticaeunidadeterritorial.58Arazodeserdeumafreguesiaeraooferecimentode assistnciasacramentalaosseusfreguesespois,afinal,tratava-sedeumasociedade essencialmentereligiosa.59Mascaberessaltarqueessastambmprestavam-seafins administrativos puramente seculares, os quais nos sero caros presente discusso. EmPortugal,oEstadoatrelava-seIgrejapeloregimedepadroado.Essarelao remontaaoperodomedieval,quandoaIgrejainstituaumindivduoouinstituiocomo padroeirodecertoterritriocomafinalidadedequealisepromovesseamanutenoe propagaodafcrist.Emcontrapartida,opadroeirorecebiaprivilgios,comoacoleta dosdzimoseaprerrogativadeindicarreligiososparaoexercciodasfunes eclesisticas.60Talsituaodesenvolveu-seemPortugaldesdealutacontraosmouros. Apesardesuasintenesiniciais,opadroadotendeuaservir,principalmente,comoum mecanismo capaz de subordinar os interesses da Igreja aos dos monarcas portugueses.61 OPadroadoRgioasseguravaoplenodomniopolticoereligiosodosreislusitanos sobre as possesses do ultramar. Por isso, no s Igreja caberia o direito de criar freguesias, mastambmCoroa.Aquelasinstitudaspelosbisposchamavam-separquias encomendadas, ao passo que as criadas mediante determinao rgia, intitulavam-se coladas. Apartirdesuacolaopelobispo,osprocosouvigrioscoladostornavam-sevitalciose intransferveis de seus postos. Ademais, eram auxiliados por um coadjutor.62

NacapitaniadeMinas,oreidePortugaltransformouemcoladas75%dasparquias institudaspelosbisposnaprimeirametadedosculoXVIII.Jexistiampelomenos31

57 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 118. 58 Freguezia, in: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino... vol. 4, p. 206. 59 Parte do captulo seguinte aborda essas questes religiosas e culturais com maior profundidade. 60 Padroado, in: VAINFAS, Ronaldo (dir.) Dicionrio do Brasil colonial... p. 466. 61 Id. Ibid.. 62 Parquia, in: BOTELHO, ngela Vianna; ROMEIRO, Adriana. Dicionrio histrico das Minas Gerais... p. 229-230. 36 freguesiasencomendadasquando,em1724,omonarcainstituiuoficialmenteasvinte primeiras parquias coladas na regio.63 sparquiascoladas,caberiaaoreiarcarcomtodasasdespesaseclesisticas,oque sempredesestimulouainstauraodessascircunscries.Assim,essasmedidastomadasem Minasdiferiramdasposturasanteriores,poisaCoroabuscoureduzirsempreaomnimo indispensvelosinvestimentosemterritrioscoloniais,demodoatiraromaiorproveito possvel das riquezas dali extradas.64 Evidentemente, do ponto de vista financeiro, no seria umaopomaisvantajosaconcederessesbenefcioseclesisticosatodasasfreguesias institudaspelosbispos.Aoquetudoindica,aCoroaselevavaasparquiascategoriade colativasquandoisso,dealgummodo,lheconviria.Portanto,aescolhadaslocalidades, obviamente,noerafeitaaoacaso.Deincio,podemossuporqueacriaodareferida proporo de parquias coladas, nos principais ncleos mineradores, foram parte das medidas empreendidascomoobjetivodeprfiminstabilidadesocialepolticadasMinasque levarameclosodediversasrevoltas.Emmeioatalcontexto,seriasensatoqueorei pudesse contar com eclesisticos de sua confiana na gesto espiritual dos arraiais mineiros. Alm disso, o perodo foi marcado pelo crescimento e apogeu da produo aurfera.65 Apesardisso,acartargiade12defevereirode1724,descreviaqueaslocalidades foram escolhidas tendo como base uma lista elaborada pelo bispo do Rio de Janeiro e tambm porDomLourenodeAlmeida,oentogovernadordacapitaniadeMinasGeraisquela alturarecentementeseparadadeSoPaulo.Odocumentopossuaonomede12freguesias encomendadascujasautoridadesconsideravamboascandidatasparatornarem-secoladas. DomJooV,ento,decidiuacrescentaroutrasoitoigrejaslista.Pelasinformaesdeque dispunha,essasfreguesiastambmmereciamreceberobenefcioeclesisticoemvirtudedo lugarondehaviamsidoedificadas,dosemolumentosqueosprocosalirecebiamepela expressivaquantidadedefreguesesquecongregavam.Asdemaisparquiasqueno constavamnodocumentonoseriam,aprincpio,dignasdenotaedeveriampermanecerno estado de encomendadas.66 Asrazesapresentadaspelomonarcaparaainstituiodasparquiascoladas,abre margemparaseconcluirquetratavam-sedosvintemaisimportantesestabelecimentosdas Minas em 1724, levando-se em conta aspectos demogrficos e econmicos. So eles: Antnio Dias, Pilar do Ouro Preto, So Bartolomeu, Cachoeira do Campo, Nossa Senhora do Carmo,

63 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 99-100. 64 Id. Ibid., p. 100. 65 Id. Ibid., p. 101-110. 66 Id. Ibid., p. 102. 37 Furquim, Ouro Branco, So Sebastio, Guarapiranga, So Jos, Rio das Mortes (So Joo del Rei),Sabar,Raposos,Caet,SantaBrbara,CatasAltas,Pitangui,RoaGrande,Riodas Pedras e Vila do Prncipe. Alm disso, no devemos nos esquecer da importncia poltica de muitos dos arraiais que tornaram-se sedes de freguesias coladas, pois oito deles, entre 1711 e 1718, haviam sido elevados categoria de vila.67

Dentre,asprimeirasparquiascolativasdeMinasfiguravam,portanto,Cachoeirado Campo e So Bartolomeu. DeacordocomDonaldRamos,CachoeiradoCampofoiumdosarraiaismais envolvidoscomVilaRicaporcausadeseupapelcomofornecedordealimentos.68 Denominado,aprincpio,dearraialdeNossaSenhoradeNazardosCamposdeMinas,foi um dos cenrios das primeiras revoltas das Minas como a Guerra dos Emboabas e a morte deFelipedosSantos.OarraialdeCachoeiradoCamposituava-senoaltodeumacolinae funcionavacomo a porta de entrada paraa regio do Ouro Preto e a do Rio das Mortes.Por situar-se num local estratgico, o conde de Assumar chegou a propor que se elevasse l uma fortalezaparadominarastrscomarcasdasMinas,equeasededogovernodacapitaniase estabelecesse l.69 Alm disso, foi a freguesia escolhida para edificao da casa de campo dos governadoresdacapitaniaeondeseconstruiu,em1738,umquartelparasoldadosda cavalariadenominadosdrages.70Noanode1779,ogovernadorDomAntniodeNoronha mandou construir um novo quartel, erguido num ponto estratgico e afastado a meia lgua da freguesia.71 A importncia econmica e demogrfica de So Bartolomeu tambm ressaltada por DonaldRamos.L,entre1715-1717,foiconstatadaapresenadeumelevadonmerode roas.Outrossim,segundooautor,nolongovaleentreTripueCachoeiradoCampo, estabeleceram-se unidades produtivas especializadas na criao de gado; e que em Cachoeira, tambm havia uma importante produo de milho, mandioca e feijo.72

67 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 102. 68 RAMOS, Donald. A Social History of Ouro Preto: stresses of dynamic urbanization in Colonial Brazil (1695-1726). The University of Florida, 1972. 69ROMEIRO,Adriana.PaulistaseEmboabasnocoraodasMinas. Idias,prticaseimaginriopolticono sculo XVIII.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 209-10. TRINDADE, Raimundo.Instituio deIgrejas no Bispado de Mariana. Rio de Janeiro: M. E. S., 1945. 70Cf. COTTA, Francis.No Rastrodos Drages: Polticas daordem euniversomilitar nas Minas setecentistas. 2004. Tese (Doutorado em Histria)FaculdadedeFilosofiaeCincias Humanas daUniversidadeFederal de Minas Gerais, Belo Horizonte. (mimeo.) 71 LEMOS,Afonso de. Monografia dafreguesia de Cachoeira do Campo. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, v. XIII, 1908. 72SILVA,FlvioMarcusda.Subsistnciaepoder...p.128-143.RAMOS,Donald.ASocialHistoryofOuro Preto... p. 324-325. 38 Poucosanosapsainstituiodessasprimeirasparquiascoladas,DomJooV cogitouacriaodenovas.Em1727,parareunirasinformaesnecessriasparaaescolha dos estabelecimentos, pediu ao governador para lhe remeter [...]ummapadas VilaselugaresdodistritodessasMinas,comadeclarao dosfogosdequeconstam,freguesiasquehequantasmaislhesero necessriaspresentementeequantosequaissoosvigriosqueaseucargo tmtocopiosorebanho,queemolumentospercebemedequecngruas necessitaroparaviveremcomabundanciaesemtrataremdemais negociaes que da salvao de seus fregueses.73

No entanto, somente 25 anos mais tarde, poucos anos aps a instituio do bispado de MinasGerais,queaCoroaefetuariataispromoes.Em1752,existiam28parquias encomendadasnacapitania,sendoque24delastornaram-secoladaspordecretoreal. Diferentementedoocorridonodecretode1724,amaioriadasparquiasnosesituavana regio central da capitania, mas sim na zona meridional, para onde se expandiu o povoamento na segunda metade do setecentos.74 Dentreaspoucasfreguesiasdazonacentralquetornaram-secoladas,estavaonovo curatodeSantoAntniodaCasaBranca.Tratava-sedoantigoarraialdeSantoAntniodo Monte,queaglutinou-seemtornodacapeladeBaltazarGodoiepertenceujurisdiode Cachoeira do Campo at o ano de 1748. A abrangncia de Casa Branca tambm compreendia o povoado do Rio das Velhas.75 Segundo a ordem real de 1724, havia entre as vinte freguesias eleitas, algumas com os limitestoalargadosquetornava-seinvivelqueapenasumpadrepudesseoferecera assistncia sacramental necessria. Nessas situaes, os bispos deveriam instituir capeles ou coadjutores,comafinalidadedecuidaremdascapelasfiliaisfrequentadaspeloshabitantes dosarraiaisepropriedadesmaisdistantesdasedeparoquial.Asfreguesiasreferidasna decisorgiaeramaquelasqueencontravam-sesediadasnasoitovilasmineiras, acrescentando Catas Altas e Cachoeira do Campo. Esta, possua sob sua jurisdio, os arraiais de So Gonalo do Monte (tambm chamado de Amarante), Nossa Senhora da Conceio do RodeioeSantoAntniodoMontefuturasedeparoquialdeCasaBranca.Ademais,cabe ressaltarquenoapenasconsistiamnosterritriosparoquiaismaisextensos,mas,segundo CludiaDamascenodaFonseca,tambmdosquereuniamumapopulaocomrecursos suficientesparaarcarcomaremuneraodospadresdesignadosparaascapelasfiliais.76

73 Carta rgia de 14 de maro de 1727. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, v. XXX, 1979, p. 254. 74 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 103-104. 75 LEMOS, Afonso de. Monografia da freguesia de Cachoeira... p. 83. 76 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 103. 39 Outroindicativodeopulnciadessesncleosresidenofatodeque,dentrodealgunsanos, muitasdestascapelastornar-se-iammatrizesdefreguesiasencomendas,sendoquealgumas delasseriam,ainda,transformadasemparquiascoladas,comofoiocasodeSantoAntnio da Casa Branca. OslimitesdasparquiasdeSoBartolomeuedeCasaBrancaenglobavamdiversas nascentesdoRiodasVelhas,deondeseretiravaouro.Paralelamenteextraodessas riquezasminerais,quecomopassardotempoforamseesgotando,essasfreguesiase, principalmenteadeCachoeiradoCampo,transformaram-seemimportanteszonasde atividadesagrcolasepastoris.Devidossuaslocalizaes,evoluramdemaneira semelhante. A produo das freguesias era de grande relevncia e respondia demanda criada naurbecompreendidanospovoadosdeOuroPreto,AntnioDiasePadreFaria,centros urbanos onde realizava-se intenso comrcio e eram marcados por uma grande transitoriedade e concentrao de pessoas.77 Tais parquias configuraram os principais ncleos que entraram paraajurisdiodacmaradeVilaRicanosculoXVIIIeserelacionaram,emgraus variados, com seu centro urbano. Eram locais de passagem. Alm de atenderem demanda regional de alimentos, esses arraiaisfuncionavamcomolocaisdepousoeabastecimentoparaaquelesqueviajavam regiodoTripu(VilaRicaeMariana)vindosdaViladeSabar(vermapaanexo).O crescente fluxo de passageiros, que se movimentavam pelos caminhos que ligavam o Rio de JaneiroeSoPaulosMinas,fezcomqueelessetornassemimportantesviasdecomrcio. Oscaminhosforammaciamenteutilizadosporcomerciantesquetransportavamevendiam suasmercadoriasnasvilas,arraiaisenasfeirassemlocalizaofixa.Eramtropeiros, comboieiros,boiadeiros,atravessadoresemascatesqueseabasteciamdosmercadosdoRio de Janeiro, So Paulo, assim como dos produtores rurais e artesos de Minas.78 A comarca de Vila Rica, apesar de ter sido a menos extensa da capitania, foi o centro das atenes da Coroa durante toda a primeira metade do sculo XVIII. Por isso,somado ao intensofluxodecomerciantes,paraltambmsedirigiamcomissriosrgios,tropasde soldadoseviajantes.Paraquetudoissosetornassevivel,foiessencialoestabelecimento, nosprincipaiscaminhos,depontosdeapoio,conhecidoscomoparagens,quepossuama finalidade de viabilizar os deslocamentos de passageiros.MuitosdosviajanteseuropeusquepercorreramaregioduranteosculoXIX, dirigindo-seaOuroPreto,percorreramosmesmoscaminhosdosculoXVIIIemuito

77 RAMOS, Donald. A Social History of Ouro Preto p. 23. 78 GUIMARES, Carlos Magno; REIS, Flvia da Mata. Agricultura e minerao... p. 326. 40 provavelmente, da mesma forma. Alguns deles acabaram pernoitando nas freguesias de nosso estudo.EssaslocalidadesforamvisitadasporSpixeMartius,quedescreveramasformas fsicas dos locais por onde passaram, mostrando como era a formao do solo entre os arraiais e o principal ncleo urbano. Alm disso, registravam descries do que se via ao redor, como asformasdasmontanhasaolongodocaminho.79BurtoncaminhouportodaVilaRicae passouporCachoeiradoCampo.80JohannEmanuelPohl,fezumaviagemdequatroanos pelointeriordoBrasile,durantesuaestadaemMinasGerais,visitouVilaRicaeseus arredores, acompanhado pelo governador geral e por Eschwege.81 John Mawe e Saint-Hilaire tambm estiveram nos arraiais.82

OpovoamentodoscaminhosemdireosMinas,incentivadopelapolticade concessodesesmarias,proporcionouviabilidadeaotrajeto.Apartirdeento,foipossvel oferecercondiesdeestalagem,descanso,abastecimentoealimentaodeanimais. Tambm,conformejapontado,proporcionava-seabrigoaosconstantesataquesde quilombolas,83ndiosebandidos.Paraossesmeirosqueocupavamasterrasaolongodos caminhos,erafundamentalgarantiracirculao,disponibilizandocondiesaosviajantes. Almdisso,constituaumapossibilidadederendaatravsdoescoamentodasuaproduo agropastoriledaprestaodeservios(ferreiros,alugueldeescravos,vendadeanimais, hospedagem,consertodoscaminhos,etc.).84Certamenteossesmeirosqueexploravamas terrascontguassfreguesiasdeSoBartolomeu,CasaBrancaeCachoeiradoCampo, beneficiaram-se do fato de situarem-se nas vias de acesso a Vila Rica. Como sabemos, devido ao grande mercado consumidor que surgiu com o povoamento de Minas, outras capitanias procuraram se adaptar nova conjuntura econmica e produziram gnerosnecessriosaomercadointernomineiro.Oscaminhos,portanto,comportavamum fluxo que era alimentado pelos produtos importados de outras regies vizinhas mineradora, ou ainda externas colnia, que chegavam por meio de comerciantes com ligaes nas casas

79 SPIX E MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte/ So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978. 80 BURTON, Sir Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro velho [por] Richard Burton; apresentao e notas de Mrio Guimares Feri; traduo de David Jardim Jnior. So Paulo: Ed. Itatiaia, 1976. 81 POHL, Joahann Emmanuel. Viagem no interior do Brasil. Traduo Milton Amado e Eugnio Amado. So Paulo: EDUSP, 1976. 82MAWE,John.ViagensaointeriordoBrasil.BeloHorizonte/SoPaulo:Itatiaia/Edusp,1978.SAINT-HILAIRE.ViagenspelasProvnciasdoRiodeJaneiroeMinasGerais.BeloHorizonte/SoPaulo: Itatiaia/Edusp, 1978. SAINT-HILAIRE. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Editora Itatiaia: Belo Horizonte, 1974. 83 Cf. RAMOS, Donald. O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do sculo XVIII. In: Joo Jos Reis andFlviodosSantosGomes(eds.). Liberdadeporumfio:histriadosquilombosnoBrasil. SoPaulo: Companhia das Letras, 1996, p. 164-192. 84 GUIMARES, Carlos Magno; REIS, Flvia da Mata. Agricultura e minerao... p. 326. 41 comerciais do Rio de Janeiro e da Bahia. Estes, ofereciam todos os tipos de gneros: fazendas, secos e molhados, sobretudo artigos de luxo para a populao abastada.85 Pelo caminho da Bahia, conduziam-se muitas boiadas. Era o trajeto preferido pelo tipo de travessia, pois era menos dificultoso, por ser mais aberto para as boiadas, mais abundantes para o sustento e mais acomodado para as cavalgaduras e para as cargas.86 Os que tomavam esse caminho, antes de alcanarem Vila Rica, chegavam Vila de Sabar. Deacordo como relatodeumcontemporneo,aestavila[Sabar]vmparartodasascarregaesquesaem da Bahiae Pernambucopelas estradas dos currais e Rio So Francisco, e nela, antes que em outraparte,entramosgados,comumsustentodasminasequasereputadocomoomesmo po.Devidolongajornada,muitosanimaischegavamfracosemagros,sendonecessrio, ento,cuidardesuarecuperao.Paratanto,eramutilizadasasterrasdovaledoRiodas Velhas e os campos de Cachoeira, onde existiam fazendas destinadas engorda dos animais.87 Desdequeasfreguesiasemfocoforampovoadas,funcionaramcomoverdadeiros celeirosparaodensoncleopopulacionalconstitudoemVilaRica.Asinformaes referentessatividadesocupacionaisdosmoradoresdeCasaBranca,SoBartolomeue CachoeiradoCampoquetestemunharamnumadevassaeclesisticaem1738,evidenciam certaespecializaoeconmicadessaslocalidadesnaproduodealimentosdestinadosao mercadointerno.Dentreos91indivduosqueresidiamnessesncleosetestemunharam,45 (49,5%) foram classificados como roceiros.88 evidente,maisumavez,quenemtodosaquelesquetomaramoscaminhosparaas Minas tiveram condies ou interesse direto na minerao. Muitos dos que nela se instalaram oupassaram,dedicaram-seaoutrasatividadeseconmicastooumaislucrativaseque,ao mesmo tempo, eram essenciais para a manuteno da atividade nuclear. A minerao definiu aformadeocupao,caracterizadaporumamaiorconcentraopopulacionalnoscentros urbanos.Engendrou-se,ento,ummercadoconsumidornessescentrospopulacionais,que demandava os mais variados produtos, desde os bsicos aos mais luxuosos vindos do Reino. Aeconomiamineirafuncionouapartirdedoisfluxoscomerciais:umexternocapitania, juntamentecomosseusdiversosprodutosvindosdeforadacolnia;outroregional,quese ocupavabasicamentedofornecimentoalimentar.Aessesegundo,direcionava-seboaparte das unidades produtivas das parquias de nosso estudo.

85 GUIMARES, Carlos Magno; REIS, Flvia da Mata. Agricultura e minerao... p. 325. 86 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia... p. 187. 87 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas... p. 140. 88 OLIVEIRA, MiguelArchanjo de.O papel e o surgimento do entorno de Vila Rica(1700-1750). Monografia (Bacharelado em Histria) FAFICH-UFMG, Belo Horizonte, 1999, p. 19-20. 42 Diferentemente de Cachoeira do Campo, Casa Branca e So Bartolomeu destacaram-se pela produo de alimentos concomitante explorao aurfera caracterstica comum nas zonasdeminerao,cujafinalidadeeraumamaximizaodoslucros.89Comoj mencionamos,oterritriodessesarraiaisdominavavastaregioemtornodasnascentesdo Rio das Velhas, rio de especial interesse na histria da minerao na capitania.Osarraiaisdotadosderecursosmineraistiveramumprocessodegnesemais complexo do que os situados em zonas exclusivamente agrrias. Nestes, as capelas e arraiais eramerigidossobreterrasdesesmarias,cedidaspelosfazendeiros.Naqueles,oprocessoera heterogneo, pois no eram compostos apenas por datas minerais. Na verdade, consistiam em estruturas fundirias hbridas.90 Amaioriadasunidadesprodutivasmineiraseramista,coexistindoasatividades mineratriaeagrcola.Senemtodososfazendeirospossuamdatasminerais,amaioriados proprietriosdelavrasaurferastinhatambmterrasdesesmaria,contguasounosdatas minerais.EssaconjugaodeatividadeseconmicasfoiconstatadaemMinasdesdeo alvorecerdosculoXVIII.91DeacordocomDiogodeVasconcelos,apsascrisesde abastecimentodosanosiniciaisdaszonasaurferasqueprovocaramoabandonodemuitas minas, o governador do Rio de Janeiro, Artur de S e Menezes, percorreu a regio e ordenou aos exploradores plantarem cereais e legumes, ao p dos seus lavradios de ouro, afianando com esta medida a estabilidade dos arraiais.92 Cludia Damasceno Fonseca, ao analisar as plantas dos arraiais de So Sebastio e de So Caetano, datadas de 1732, constatou que estas povoaes, alm da matriz,[...]compunham-sedeumpequenonmerodecasasinseridasemparcelasou lotesque,ajulgarpelasconvenesgrficasutilizadas,continhampomarese hortas.Seestesdocumentosnonospermitemafirmarcomcerteza,quetais lotes correspondem s datasminerais, elessugerem, pelo menos, umasituao de contiguidade entre moradias, culturas de subsistncia e lavras de ouro.93 AsfreguesiasdeSantoAntniodaCasaBrancaedeSoBartolomeu,quetambm possuam lavras aurferas, certamente no diferiam desse padro. Caberessaltar, conforme CludiaDamascenoafirmou,quealgunsmineradoresconseguiamobterterrenosmaioresdo queasestipuladasdatasdetrintabraasemquadra(4.356m).Almdisso,asconcesses eramproporcionaisquantidadedeescravosqueoconcessionriopossua.Embora

89ALMEIDA,CarlaMariaCarvalho.RicosepobresemMinasGerais.Produoehierarquizaosocialno mundo colonial, 1750-1822. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. 90 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 446. 91 Id. Ibid.. 92 VASCONCELOS, Diogo de. Histria antiga das minas gerais... p. 182. 93 FONSECA, Cludia Damasceno. Arraiais e Vilas Del Rei... p. 448. 43 minoritrios,todasasfreguesiasdotadasderiquezasaurferaspossuamsenhoresdeminas com escravarias superiores a 12 escravos.94

De acordo com os dados disponibilizados por Francisco Vidal Luna, a parquia de So Bartolomeu,noanode1718,possuaototalde1376escravosdistribudosentre225 proprietrios. Desses proprietrios, 18 possuam de 11 a 20 cativos; 10 senhores com 21 a 40; e3comumnmerosuperiora40escravos.Emconjunto,correspondiama13,8%dos proprietrios e estes detinham 50,7% do contingente mancpio.95

Mineradoresmaisricoseinfluentes,almdepossuremdatasaurferasmaiores, tambmacabavamconseguindoacumularmuitasdessasconcessesemdetrimentodos proprietriosdemenorcabedal.Assim,podemossupor,seguindooraciocniodeCludia DamascenodaFonseca,quealgunsterrenosconcedidosnosprimeiroscentrosmineradores podiam muito bem conter roas, moradias e at mesmo as primeiras capelas rsticas erigidas pelospioneiros.96Almdisso,seriaingnuopensarmosqueemumterritriotoextensoe topoucocontroladocomoodasMinas,oscolonosteriamselimitadoaocuparapenasas terras cujas quais possuiriam ttulos legais. Como sabido, o contrrio sempre aconteceu.97 Em sntese, podemos concluir que arraiais como os de Casa Branca e So Bartolomeu, queforamunsdosmaisricoscentrosdemineraodoinciodosculoXVIII, desenvolveram-se em terras onde havia uma separao bastante tnue entre as datas mine