comentÁrios de piaget sobre as observaÇÕes crÍticas de vygotsky

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  • 8/3/2019 COMENTRIOS DE PIAGET SOBRE AS OBSERVAES CRTICAS DE VYGOTSKY

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    EM ABERTO

    COMENTRIOS DE PIAGET SOBRE AS OBSERVAES CRTICAS DEVYGOTSKY CONCERNENTES A DUAS OBRAS: "A LINGUAGEM EO PENSAMENTO DA CRIANA" e "O RACIOCNIO DA CRIANA'"

    No sem tristeza que um autor descobre, 25 anos aps sua publicao, a obra de um colega, morto nesse nterim, quando ela contm,

    para ele, tantos pontos de interesse imediato, os quais teria podidodiscutir pessoalmente e detalhadamente. Embora o meu amigo A.Luria me tivesse informado sobre a posio simpatizante, ainda quecrtica, de Vygotsky a respeito do meu trabalho, no pude jamaisler os seus escritos ou encontrar-me com ele pessoalmente; ao lero seu livro hoje, isto me desagrada profundamente, porque poderamos ter-nos entendido sobre muitos pontos.

    E. Hanfmann, uma das mais fiis discpulas de Vygotsky, pediu-megentilmente para comentar as consideraes deste eminente psiclogo a propsito do meu primeiro trabalho. Desejaria agradecer-lhe,mas ao mesmo tempo confessar-lhe o meu embarao porque, enquanto o li vro de Vygotsky data de 1934, os meus, por ele discutidos,remontam a 1923 e 1924. Pensando como teria podido desenvolveresta discusso retrospectivamente, encontrei uma soluo ao mesmo tempo simples e instrutiva (pelo menos para mim): procurar verse as crticas de Vygotsky so ou no justificadas luz dos meusmais recentes trabalhos. A resposta , ao mesmo tempo, sim e no.Sobre alguns pontos concordo hoje com Vygotsky mais do que oteria feito em 1934, enquanto sobre outros pontos penso que poderiaencontrar, agora, melhores argumentos para responder-lhe.

    I

    Comearemos com duas questes distintas levantadas no livro de

    * Apndic e da edio italiana de: VYGOTSKY, L S. Pensiero e ling uaggi o Firenze: Giun-ti, 1966 Traduzido por Agnela da Silva Giusta.A edio portuguesa de Pensamento e Linguagem (Lisboa: Ant doto, 1979) e a ediobrasileira (So Paulo: Martins Fontes, 1987) no incluem o referido apndice.

    Vygotsky: o problema do egocen trismo em geral e aquele mais especfico da linguagem egocntrica. Se bem entendi, Vygotsky no concorda comigo no que respeita ao egocentrismo intelectual da criana,mas reconhece a existncia do que chamei linguagem egocntrica.Esta, para ele, o ponto de partida da linguagem interior que sedesenvolve sucessivamente e que ele considera poder servir, sejaa escopos autsticos, seja a escopos lgicos. Consideremos os doisproblemas separadamente.

    O egocentrismo Cognitivo

    0 problema principal levantado por Vygotsky fundamentalmenteaquele da natureza funcional e adaptativa das atividades da crianae, portanto, de cada ser humano. Sobre este ponto, no geral, encon

    tro-me de acordo com ele: tudo o que escrevi (depois dos meus primeiros cinco livros) sobre o "nascimento da inteligncia" em nvelsensrio-motor e sobre o desenvolvimento das operaes lgico-ma-temticas a partir das aes, facilita-me, hoje, pr o incio do pensamento no contexto da adaptao no sentido cada vez mais biolgico.

    Todavia, dizer que cada troca entre a criana e o seu ambiente tende adaptao no dizer que esta adaptao tenha sucesso desdeo incio; necessrio evitar o excessivo otimismo bio-social demonstrado s vezes por Vygotsky. De fa to, cada esforo de adaptao podeser sujeito a duas limitaes.

    Primeiro, o sujeito pode no ter ainda adquirido ou elaborado osmeios ou os rgos de adaptao necessrios execuo de algumastarefas (o seu desenvolvimento apresenta-se geralmente como umprocesso longo e difcil). Este o caso das operaes lgicas: os

    Em Aberto, Braslia, ano 9, n. 48, out./dez. 1990

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    primeiros sistemas estveis no so alcanados at a idade de seteou oito anos (ver A Noo do Nmero na Criana, A Representaodo Espao na Criana, etc).

    Em segundo lugar, a adaptao um estado de equilbrio entre aassimilao dos objetos s estruturas da ao e a acomodao destasestruturas aos objetos; as estruturas podem ser inatas, ou estar em

    via de formao, construindo-se atravs da progressiva organizaodas aes. Pode acontecer facilmente que o equilb rio entre a assimilao e a acomodao assuma formas no adequadas. Neste caso,o esforo de adaptao resulta em erros sistemticos.

    Tais erros sistemticos se encontram em todos os nveis da hierarquia do comportamento. Por exemplo, no campo da percepo, ondeexistem as formas mais bem sucedidas de adaptao, quase todapecepo contm algum elemento de iluso. Depois de haver estudado por 20 anos o desenvolvimento de tais erros sistemticos, daadolescncia idade adulta, escrevi um livro sobre os mecanismosperceptivos. Nele tentei reconduzir todos estes diversos efeitos ilusrios a certos mecanismos gerais baseados sobre a focalizao daviso, levantando assim problemas muito vizinhos queles do egocentrismo. Sobre o plano afetivo, precisaramos ser muito otimistaspara crer que os nossos sentimentos interpessoais elementares se

    jam sempre bem adaptados: reaes como a inveja, o cime, a vaidade, que so, sem dvida, universais, podem com certeza ser consideradas tipos diversos de erros sistemticos na perspectiva individual.

    No campo do pensamento, toda a histria da cincia, do egocentrismo revoluo coperniciana, do falso absoluto dos axiomas dafsica de Aristteles, ao relativismo do princpio da inrcia de Galileu

    e teoria da relatividade de Einstein, demonstra que foram necessrios sculos para libertarmo-nos dos erros sistemticos, das iluses causadas pelo ponto de vista imediato, oposto ao pensamentosistemtico "descentrado". Estamos bem longe de uma completaliberao. Criei o termo "egocentrismo cognitivo" (sem dvida uma

    mera escolha) para exprimir a idia de que o progresso do conhecimento no deriva nunca de uma simples adio de novos elementosou de novos nveis, como se um mais vasto saber fosse somenteum complemento daquele precedente mais pobre; ele requer tambm uma reformulao perptua dos pontos de vista precedentes,atravs de um proceso que se move para frente e para trs, corr igindocontinuamente seja os erros sistemticos iniciais seja aqueles que

    se apresentam em seguida. Este processo de correo parece obedecera uma lei de desenvol vimento bem definida , a lei da descentrao.Para a cincia, o deslocar-se de uma perspectiva geocntrica parauma heliocntrica exigiu uma gigantesca obra de descentrao: aminha descrio, comentada favoravelmente por Vygotsky, do desenvolvimento da noo "irmo", permite constatar o grande esfororequerido de uma criana que tem um irmo, para compreender quetambm seu irmo tem um irmo, que este conceito se refere a umparentesco recpocro e no a uma propriedade absoluta. De modoanlogo, recentes experimentos (no disponveis para Vygotsky) demonstraram que para conceber um trajeto como mais longo queum outro, que tambm termina no mesmo ponto do primeiro, separando assim o conceito (mtrico) de "longo" daquele (ordinal) de

    "longo", a criana deve descentrar o seu modo de pensar, em princpio concentrado somente sobre o ponto terminal dos dois trajetos,e encontrar a relao objetiva entre os pontos de partida e aquelesde chegada.

    Servi-me do termo egocentrismo para indicar a incapacidade inicialde descentrar, de deslocar uma dada perspectiva cognitiva (falta dedescentrao). Teria sido melhor dizermos simplesmente "centris-mo", mas j que a centrao inicial da perspectiva sempre relativa prpria ao e posio, disse "egocentrismo" e fiz notar que oegocentrismo inconsciente do pensamento, ao qual me referia, nadatinha a ver com o significado comum do termo, isto , aquele dehipertrofia da conscincia do Eu. O egocentrismo cognitivo, comoprocurei explicar/ resultante da falta de diferenciao entre o prprio ponto de vista e aquele dos outros, e no individualismo queprecede as relaes com os outros (como na teoria de Rousseau

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    que me foi s vezes atribuda, com surpreendente m compreenso,no partilhada por Vygotsky).

    Uma vez esclarecido este ponto, fica evidente que o egocentrismo,assim definido, vai alm do egocentrismo-social que trataremos maistarde, a propsito da linguagem egocntrica. A sua importncia aparece, sobretudo, na minha pesquisa sobre a concepo da realidade

    por parte da criana, que revelou um egocentrismo muito difuso,operante em nivel sensrio-motor. Por exemplo, o espao sensrio-motor consiste inicialmente de uma pluralidade de espaos (oral,ttil, cinestsico, etc), todos centrados sobre o prprio corpo. Porvolta dos 18 meses, atravs de um deslocamen to da perspectiva (des-centrao), comparvel revoluo coperniciana, o espao torna-seum nico continente homogneo no qual so situados todos os objetos, inclusive o prprio corpo. Examinemos isto, que o que maisincomoda a Vygotsky na minha concepo de egocentrismo: a suarelao com o conceito de autismo de Bleuler e com o "principiodo prazer" de Freud. Sobre o primeiro ponto, Vygotsky, que umespecialista no campo da esquizofrenia, no nega, como fizeram alguns crticos franceses do meu trabal ho, que uma certa dose de autis

    mo seja normal para todos, como tambm admitia o meu mestreBleuler. Ele acha apenas que eu dei relevo demasiado s semelhanasentre o egocentrismo e o autismo/sem colocar suficientemente emevidncia as diferenas; nisto ele tem certamente razo. Dei relevos semelhanas, cuja existncia no negada por Vygotsky, porquea mim parecia que elas iluminavam a gnese dos jogos simblicosdas crianas (ver A gnese do Smbolo na Criana). Nestas se podemesmo observar o "pensamento no dirigido e autista" de que falaBleuler e que eu procurei explicar com a predominncia da assimilao sobre a acomodao, nos primeiros jogos da criana.

    No que se refere ao "prin cpi o do prazer", que Freud v genetica-

    mente anterior ao princpio da realidade, Vygotsky tem de novo razoquando me censura por haver aceito acriticamente esta ordem desucesso, por demais simplist a. O fato de que todo o comporta mentoseja um processo de adaptao e que a adaptao seja sempre umacerta forma de equilbrio (estvel ou instvel) entre a assimilao

    e a acomodao, permite-nos: (1) explicar a primeira manifestaodo princpio do prazer como o aspecto afetivo da assimilao frequentemente predominante; e (2) concordar com o ponto de vista de Vy_-gotsky de que a adaptao realidade vai a par e passo com a necessidade e com o prazer, porque, mesmo quando predomina a assimilao, ela sempre acompanhada de uma certa acomodao.

    Por outro lado, no posso concordar com Vygotsky quando afirmaque eu, aps ter separado a necessidade e o prazer das suas funesde adaptao (coisa que penso jamais ter feito; ou, se o fiz, corri gi-mesubitamente (ver "A gnese da Inteligncia na Criana"), fui obrigadoa conceber o pensamento realstico ou objetivo como independentedas necessidades concretas, como uma espcie de pensamento puroque procura provas apenas para sua satisfao. Sobre este ponto,todo o meu trabalho sucessivo, acerca do desenvolvimento das operaes intelectuais a partir das aes e sobre o desenvolvimento dasestruturas lgicas atravs da coordenao das aes, demonstra queeu no separo o pensamento do comportamento. porm verdadeque foi necessrio um pouco de tempo, para ver que as razes das

    operaes lgicas so mais profundas que as das relaes lingsticas, e que o meu estudo sobre o pensamento era muito centradosobre os seus aspectos lingusticos. Isto nos conduz ao segundo ponto.

    A linguagem Egocntrica

    No h razo alguma para crer que o egocentrismo cognit ivo, caracterizado por uma focalizao inconsciente seletiva, ou por uma faltade diferenciao de pontos de vista, no possa ser aplicado ao campodas relaes interpessoais, em particular quelas que encontram expresso atravs da linguagem.Para tomar um exemplo da vida dos

    adultos, cada professor, mais cedo ou mais tarde, descobre que assuas primeiras lies eram incompreensveis, porque ele falava parasi mesmo, isto , tendo presente apenas o seu ponto de vista./Sgradualmente, e com dificuldade, ele se d conta de que no fcilpr-se no lugar dos alunos que ainda no conhecem o que ele sabe

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    sobre a matria-objeto do seu curso.Como segundo exemplo, podemos pegar a arte de discutir, que consiste principalmente em sabercolocar-se do ponto de vista do interlocutor, de modo a procurarconvenc-lo sobre seu prprio terreno./Sem esta capacidade, a discusso intil, como geralmente sucede at mesmo entre os psiclogos.

    Por esta razo, procurando estudar as relaes entre linguagem epensamento do ponto de vista dos deslocamentos da centrao (cen-traes e descentraes), procurei ver se existe ou no uma linguagem egocntrica especial que possa ser distinta da linguagem cooperativa. No meu primeiro livro, sobre a linguagem e o pensamentona criana, dediquei a este problema trs captulos (mais tarde lamentei ter publicado primeiro este livro, porque teria sido melhor compreendido se tivesse comeado com "A representao do Mundona Criana", que ento estava preparando) . No segundo desses captulos, estudava as conversaes e, sobretudo, as discusses entrecrianas, para trazer luz as dificuldades que elas experimentavampara sair do prprio ponto de vista. O terceiro captulo dizia respeitoaos resultados de um pequeno experimento sobre a compreenso

    mtua entre crianas em uma situao na qual uma criana devedar a uma outra uma explicao causai, experimento por mim executado, para ver ificar as minhas observaes. Para explicar esses fatos,que me pareciam muito importantes, apresentei depois, no primeirocaptulo, um inventrio da linguagem espontnea das crianas, procurando distinguir os monlogos e os "monlogos coletivos", dalinguagem socializada, na esperana de encontrar, deste modo, umaespcie de medida do egocentrismo verbal.

    Mas o resultado surpreendente, que eu no podia prever, foi quetodos os adversrios da noo de egocentrismo (so legies!) escolheriam para os seus ataques somente o primeiro captulo, sem dar

    importncia alguma aos outros dois e sem assim entender, comofui cada vez mais levado a crer, o significado real do conceito. Umcrtico chegou ao ponto de tomar como medida de linguagem egocntrica o nmero de frases nas quais a criana falou de si mesma,como se algum no pudesse falar de si de um modo no egocn

    trico! Em um outro excelente ensaio sobre a linguagem (divulgadono manual de Psicologia da Criana, de H. Carmichael), D. McCarthyconclui que os longos debates sobre este assunto foram inteis, semporm dar alguma explicao do significado real e da importnciado conceito de egocentrismo verbal.

    Antes de retornar a Vygotsky, desejaria dizer, eu mesmo, o que me

    parece ser ainda vlido nas provas negativas e positivas recolhidaspelos meus poucos partidrios e pelos meus muitos opositores:

    1. A mensurao da linguagem egocntrica demonstrou que existemgrandes variaes devidas ao ambiente e s situaes. Assim que,contrariamente s minhas esperanas iniciais, no possumos, paraesta mensurao, um instrumento vlido de avaliao do egocentrismo intelectual e nem do egocentrismo verbal.

    2. O fenmeno mesmo, do qual quisemos controlar a freqncia relativa em nveis de desenvolvimento diversos, como tambm o seudeclnio com a idade, nunca foi discutido, porque raramente foi entendido. Quando foi examinado como centrao deformante sobre a

    prpria ao e descentrao sucessiva, este fenmeno se mostroubem mais significativo no estudo das aes mesmas e da sua interiorizao sob formas de operaes mentais, que no campo da linguagem. Todavia, ainda possvel que um estudo mais sistemtico dasdiscusses das crianas, sobretudo do comportamento voltado paraa verificao e prova (e acompanhado pela linguagem), possa fornecer ndices mtricos vlidos.

    Este longo prembulo foi necessrio para fazer notar o quanto respeito a posio de Vygotsky sobre o problema da linguagem egocntrica, embora no concorde inteiramente com ela. Antes de tudo,Vyfotsky se deu conta de que se tratava de um problema real, e no

    de uma simples questo de estatstica. Em segundo lugar, ele mesmoverificou os fatos em discusso, ao invs de elimin-los atravs deartifcios da mensurao; as suas observaes sobre a freqnciada linguagem egocntrica nas crianas, quando a sua atividade bloqueada, e sobre a diminuio de tal linguagem, no perodo no

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    lectual. Este ponto de vista o nico aspecto do problema que meinteressou, mas que no parece ter interessado a Vygotsky.

    No seu excelente trabalho sobre os gmeos, R. Zazzo formula claramente o problema. Segundo ele, a dificuldade na noo de linguagemegocntrica surge de uma confuso de dois significados que, paraele, eu deveria ter separado: 1) linguagem incapaz de reciprocidade

    racional, e 2) linguagem "no destinada a outros". O fato que, doponto de vista da cooperao intelectual, que era a nica coisa queme interessava, estes dois significados so a mesma coisa. Por tudoquanto eu saiba, nunca falei de linguagem "no destinada a outros";isto teria distorcido as coisas, porque sempre reconheci que a crianapensa que ela est falando para outros e que os outros a escutam.O meu ponto de vista simplesmente o de que a criana, na lingua-gem egocntrica, fala para si mesma (no sentido de que um oradorpode falar somente "para si mesmo", embora entendendo naturalmente voltar o prprio discurso ao auditrio). Zazzo, citando umapassagem minha, na realidade muito clara, contesta-me seriamente,dizendo que a criana no fala "para si mesma" mas "segundo oprprio modo de ver". Concor do! Substituamos ento "para si mesmo " por "segundo p prprio modo de ver " em todas as minhas obras.Continuo , todavia, a acreditar que isto no mudaria em nada o significado essencial do egocentrismo: a falta de descentrao, a incapacidade de deslocar a perspectiva mental, seja nas relaes sociais, .seja nas outras. Alm disso, penso que mesmo a cooperao comos outros (sobre o plano cognitivo) nos ensina a falar "segundo"os outros e no somente do nosso ponto de vista.

    As minhas observaes sobre a segunda parte das consideraes

    de Vygotsky sobre minha obra , no seu capitulo 6, sero mais simples,porque creio encontrar-me mais de acordo com ele sobre estes pontos; e sobretudo porque os meus ltimos livros, que ele no conheceu, respondem eles mesmos aos problemas por ele levantados, oupelo menos, maior parte deles.

    qual a linguagem interior comea a formar-se, so de notvel interesse. Em terceiro lugar, ele avanou uma hiptese: a linguagemegocntrica o ponto de partida para o desenvolvimento da linguagem interior, que se encontra em um estgio superior de desenvolvimento; esta linguagem interiorizada pode servir seja a fins autsticos,seja ao pensamento lgico. Estou completamente de acordo comesta hiptese.

    De outra parte, penso que Vygotsky no tenha avaliado plenamenteo fato de que o egocentrismo pode constituir o principal obstculo coordenao dos pontos de vista e cooperao. Vygotsky mecriticara justamente por no haver dado, desde o incio, relevo suficiente ao aspecto funcional destes problemas. Admi to no haver feitoisto ento, porm devo dizer que, em seguida, o fiz. Na obra "O julga-mento Moral na Criana", estudei os jogos de grupo das crianas(bolinha, etc) e notei que antes dos sete anos elas no sabiam comocoordenar as regras durante um jogo, j que cada uma jogava porsi mesma e todas venciam, sem entender que a coisa essencial a competio . R.F. Nielsen, que estudou as atividades colaboradoras

    (construir conjuntos, etc), encontrou no campo da ao mesma todasas caractersticas que eu pus em evidncia quanto lin guagem. Existe, pois, um fenmeno geral que me parece ter sido negligenciadopor Vygotsky.

    Em linhas gerais, estou de acordo com Vygotsky quando conclui quea funo inicial da linguagem aquela da comunicao global e quemais tarde a linguagem se torna diferenciada em linguagem egocntrica e linguagem comunicativa propriamente dita. Mas no possoconcordar com ele quando afirma que estas duas formas lingsticasso igualmente socializadas, porque a palavra socializao se torna

    ambgua neste contexto: se um indivduo A cr erroneamente queum indivduo B pensa como ele, e se ele no procura compreendera diferena entre os dois pontos de vista, este , por certo, comportamento social no sentido de contato entre os dois; mas eu chamotal comportamento inadaptado do ponto de vista da cooperao inte-

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    Conceitos Espontneos, Aprendizagem Escolar e Conceitos Cient-ficos

    Com alegria descobri no livro de Vygotsky que ele aprova o fatode eu ter distinguido, para fins de estudo, os conceitos espontneosdaqueles no-espontneos: poder-se-ia temer que um psiclogo dedicado aos problemas da aprendizagem escolar, muito mais do quens, pudesse ser propenso a subestimar a parte dos processos cont

    nuos de reestruturao da atividade mental no desenvolvimento dacriana. verdade que, quando mais adiante Vygotsky me reprovapor haver sublinhado demais esta distino, dei-me conta de queele estava tolhendo- me o que apenas me havia concedido. Mas quando ele expe a sua crtica mais explicitamente, dizendo que tambm'os conceitos no-espontneos recebem "uma marca" da mentalidade da criana no processo de aquisio e que se pode, por isto,admitir uma "interao" dos conceitos espontneos e adquiridos,encontro-me mais uma vez de acordo com ele. Vygotsky, de fato,interpreta-me mal ao pensar que, do meu ponto de vista, o pensamento espontneo deva ser conhecido pelos prprios educadorescomo se deve conhecer um inimigo para poder combat-lo com su

    cesso. Em todos os meus escritos pedaggicos, velhos ou recentes,ao contr rio, insisti em dizer que a educao formal poderia ser beneficiada, mais do que o agora com os mtodos ordinrios, por umautilizao sistemtica do desenvolvimento mental espontneo dacriana.

    Ao invs de discutir abstratamente acerca destes poucos (se bemque essenciais) pontos de dissenso, iniciamos com aqueles que meparecem revelar o nosso acordo fundamental. Quando Vygotsky conclui, de suas reflexes sobre os meus primeiros livros, que a tarefaessencial da psicologia da criana era a de estudar a formao dosconceitos cientficos, seguindo passo a passo o processo que se de

    senvolve sob os nossos olhos, ele no suspeitou que este era exatamente o meu programa./Antes que fossem publicados os meus primeiros livros, tinha j o texto manuscrito, redigido em 1920, de ummeu estudo sobre a construo da correspondncia numrica nacriana. Este, ento, era o meu programa. Os meus trabalhos sobre

    linguagem e sobre pensamento, sobre o juzo e o raciocnio, sobreo modo de conceber o mundo da criana, etc, deviam ser somenteuma introduo. Em colaborao com A. Szeminska e especialmentecom B. Inhelder, publiquei, mais tarde, uma srie de estudos quetratavam o desenvolvimento dos conceitos de nmero, da quantidade fsica, do movimento, da velocidade, do tempo, do espao, doacaso, da capacidade de descobrir indutivamente leis fsicas e daestrutura lgica das classes, relaes e proposies em resumo,da maior parte dos conceitos cientficos fundamentais.

    Examinemos o que revelaram estas descobertas acerca da relaoentre aprendizagem e desenvolvimento, j que exatamente sobreeste problema Vygotsky cr no concordar comigo, embora efetivamente ele difira do meu ponto de vista apenas parcialmente. Almdisso, difere no no sentido que ele imagina, mas, ao contrrio, nosentido oposto.

    Como exemplo especfico, tomemos o ensino da Geometria. Em Genebra, na Frana, e em toda parte, ele apresenta trs caractersticas:

    1) comea tarde, geralmen te na idade de 11 anos, o que no acontececom a Aritmtica, que se ensina aos sete anos; 2) desde o incio, especificamente geomtrico, ou mesmo mtrico, sem antes passarpor uma fase qualitativa , na qual as operaes espaciais seriam reduzidas a operaes lgicas, aplicadas a um continuum; 3) segue aordem histrica das descobertas primeiro se ensina a geometriaeuclidiana, muito mais tarde a geometria projetiva, e somente aofim, na universidade, a topologia. Todavia, notrio que a geometriateortica moderna se assenta nas estruturas topolgicas, das quaispodem ser derivadas, com mtodos paralelos, sejam estruturas pro-

    jetivas, sejam estruturas euclidianas. Alm disso, notrio que ageometria teortica baseada sobre a lgica, enfim, que existe uma

    ligao cada vez mais estreita entre as consideraes geomtricase aquelas algbricas e numricas. Se, como p rope Vygotsky, examinamos o desenvolvimento das operaes geomtricas nas crianas,descobrimos que elas tomam uma direo muito mais prxima aoesprito da geometria teortica que aquele da instruo escolar tradi-

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    cional: 1) a criana constri as suas operaes espaciais ao mesmotempo que constri as numricas, com uma estreita interao entreelas (existe, em particular, um notvel paralelismo entre a formaodo conceito de nmero e aquela do conceito de medida, das quantidades contnuas); 2) as primeiras operaes geomtricas da crianaso essencialmente qualitativas e completamente paralelas s suasoperaes lgicas (ordenamento, incluso de classes, etc); 3) as primeiras estruturas geomtricas que a criana descobre so fundamen

    talmente de natureza topolgica; a partir destas ela constri, masde modo paralelo, as estruturas elementares projetivas e euclidianas.

    De tais exemplos, que poderiam ser multiplicados, fcil extrair umaresposta s observaes de Vygotsky. Antes de tudo, ele desaprova-me por haver considerado a aprendizagem escolar como no essencialmente relacionada ao desenvolvimento espontneo da criana. Contudo, deveria ficar claro que, para mim, a criana no deveriaser responsabilizada pelos conflitos eventuais e sim a escola, que culpada por ignorar o uso que poderia fazer do desenvolvimentoespontneo da criana, reforando-o com mtodos adequados, aoinvs de inibi-lo como geralmente faz. Em segundo lugar e este

    o principal erro de Vygotsky ao interpretar minha obra ele crque, segundo a minha teoria, o pensamento do adulto, depois dediversos compromissos, "s uplan ta" gradualmente o pensamento dacriana, por meio de uma espcie de "abolio mecnica" deste ltimo. Na realidade, hoje sou mais frequentemente acusado de interpretar o desenvolvimento espontneo tanto como tendente direodas estruturas lgico-matemticas dos adultos, quanto na direode um ideal predeterminado!

    Tudo isso levanta pelo menos dois problemas que Vygotsky formula,sobre cujas solues, porm, temos opinies um tanto divergentes.O primeiro diz respeito " interao dos conceitos espontneos e

    no-espontneos". Esta interao mais complexa do que cr Vygotsky. Em alguns casos, o que transmitido pela instruo bemassimilado pela prpria criana, porque representa uma extensode algumas de suas construes espontneas. Em tais casos, o seudesenvolvimento acelerado. Mas em outros casos, as ddivas da

    instruo so apresentadas ou muito cedo ou tarde demais, ou deuma maneira que torna impossvel a assimilao porque no soadequadas s construes espontneas da criana. Ento o desenvolvimento impedido, ou at desviado para a aridez, como sucedegeralmente no ensino das cincias exatas. Por isto no creio, comoparece fazer Vygotsky, que novos conceitos , mesmo em nvel escolar,possam ser adquiridos sempre por meio da interveno didtica dosadultos. Isto pode acontecer, mas existe uma forma de instruo mu i

    to mais produtiva: as escolas chamadas "ativa s" procuram criar situaes que, no sendo em si mesmas "espontneas", provocamuma elaborao espontnea por parte da criana, quando se consegue despertar o seu interesse e fazer com que o problema que selhe apresenta assuma uma estrutura similar quelas que ela prpria

    j formou.

    O segundo problema, que na realidade uma extenso do primeiro, posto mais genericamente e diz respeito relao entre conceitosespontneos e noes cientficas como tais. No sistema de Vygotsky,a "chave" para este problema que "os conceitos cientficos e aqueles espontneos partem de pontos diferentes, mas no final se encon

    tram". Quanto a isto estamos completamente de acordo, se ele entende que um verdadeiro encontro acontece entre a sociognese dasnoes cientficas (na histria da cincia e na transmisso do saberde uma gerao a outra) e a psicognese das estruturas "espontneas" (influenciadas sem dvidas pela interao com o ambientesocial, familiar, escolar, etc), e no simplesmente que a psicogneseseja inteiramente determinada pela cultura histrica e por aquela doambiente. Parece-me que, tratando assim as coisas, nada mais fcildo que dizer a Vygotsky o que ele prprio disse, dado que ele admitea parte da espontaneidade do desenvolvimento. Resta determinarem que consiste esta parte.

    Operaes e Generalizaes

    Restam talvez algumas divergncias entre Vygotsky e eu sobre oproblema da natureza das atividades espontneas, mas esta dife-

    Em Aberto, Braslia, ano 9, n. 48, out. dez. 1990

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    rena no mais que uma extenso do problema concernente aoegocentrismo e ao papel da descentrao no progresso do desenvolvimento mental.

    No que se refere ao retardo no aparecimento da conscincia, nsestamos bastante de acordo, salvo o fato de Vygotsky no acreditarque a falta de conscincia seja um resduo do egocentrismo. Exami

    nemos a soluo que ele prope: 1) o desenvolvimento tardio daconscincia deve ser simplesmente o resultado da bem conhecida"lei" segundo a qual a conscincia e o controle emparelham-se somente no ponto final do desenvolvimento de uma funo; 2) a conscincia, no incio , limita-se aos resultados das aes e somente maistarde se estende ao "como", isto , operao mesma. Ambas asafirmaes so corretas, mas elas afirmam simplesmente os fatossem explic-los. Comea a haver uma explicao somente quandose consegue entender que um sujeito no pode se tornar conscientede alguma coisa, seno atravs dos resultados das prprias aes;por outro lado, a descentrao, isto , o deslocar o prprio centrode interesse e o comparar uma ao BM outras aes possveis,em particular as aes dos outros, conduz a uma conscincia do "c omo" e s vrias operaes.

    Esta diferena entre um simples esquema linear, como aquele deVygotsky, e um esquema de descentrao tambm mais evidenteno problema do agente principal do desenvolvimento intelectual. Pareceria, segundo Vygotsky (embora eu no conhea o resto de suaobra), que o fator principal deva ser procurado na "generalizaodas percepes", sendo o processo de generalizao suficiente, porsi mesmo, para levar as operaes mentais conscincia. Ns, poroutro lado, estudando o desenvolvimento espontneo das noescientficas, fomos levados a considerar como fator central o processo

    mesmo da construo das operaes, que consiste em aes interiorizadas que se tornam reversveis e se coordenam em modelos deestruturas, sujeitos a leis bem definidas. O processo de generalizao apenas o resultado desta elaborao de estruturas, que derivamno das percepes, mas das aes totais.

    O prprio Vygotsky avizinhava-se de tais solues, quando pensavaque o sincretismo, a justaposio, a insensibilidade contradioe outras caractersticas do nvel de desenvolvi mento que hoje chamamos pr-operatrio (preferindo-o a pr-lgico) eram todas devidas falta de um sistema, porque a organizao de sistemas , de fato,a conquista essencial que assinala a passagem da criana ao nveldo raciocnio lgico. Mas estes sistemas no so simplesmente oproduto das generalizaes; eles so estruturas operatrias diferen

    ciadas e mltiplas, cuja elaborao gradual, por parte da criana,apreendemos seguindo-a passo a passo.

    Um pequeno exemplo desta diferena em nossos pontos de vistanos fornecido pelas observaes de Vygotsky sobre a incluso emclasses. Lendo aquela passagem do seu trabalho, tem-se a impressode que a criana descobre a incluso por meio de uma combinaode generalizao e aprendizagem: aprendendo a usar a palavra rosae depois a palavra flor, ela primeiro as justape, e depois no apenasleva a termo a generalizao "todas as rosas so flores" e descobreque o contrrio no verdadeiro, mas tambm se d conta de quea classe das rosas est includa na classe das flores. Tendo estudadoestes problemas em primeira mo, sabemos o quanto so mais complexos. Mesmo que ela afirme que todas as rosas so flores e quenem todas as flores so rosas, a criana antes no capaz de concluirque existem mais flores que rosas. Para chegar concluso, ela deveorganizar um sistema de operaes como: A (rosa) + A' (flores queno so rosas) = B (flores); compreender que A = B - A', e que,portanto, A/B; a reversibilidade deste sistema um pressuposto paraa incluso.

    Neste comentrio, no discuti o problema da socializao como condio do desenvolvimento intelectual, embora Vygotsky o levante

    muitas vezes. Do meu atual ponto de vista, as minhas primeiras formulaes tm menos importncia, porque o exame das operaese da descentrao implcita na organizao das estruturas operatriasfez aparecer o argumento sob uma nova luz. Todo o pensamentolgico socializado porque implica a possibilidade de comunicao

  • 8/3/2019 COMENTRIOS DE PIAGET SOBRE AS OBSERVAES CRTICAS DE VYGOTSKY

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    entre os indivduos. Mas tal troca interpessoal ocorre atravs de cor- no sentido prprio e quase etimolg ico da palavra. As aes, querrespondncias, reunies, intersees e reciprocidade, isto , atravs individuai s quer interpessoais, so, na sua essncia, coordenadasdas operaes. Assim , existe identidade entre as operaes intra indi- e organizadas pelas estruturas operatrias, que so construdas es-viduais e as operaes interi ndividuais que constituem cooperao pontaneamente durante o desenvolvimento mental.

    Em Aberto, Braslia, ano 9, n. 48, out. dez. 1990