claus m germer - marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social

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Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social Claus M. Germer * Introdução 1 Os temas deste artigo são as concepções de Marx sobre os fundamentos do papel determinante das forças produtivas no desenvolvimento da sociedade, e os fundamentos e implicações do vínculo entre a revolução social e a relação existente entre o grau de desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção (FP/RP). Ambas constituem teses fundamentais da concepção materialista e dialética da história. A aceitação destes dois conceitos tem sido estigmatizada com a expressão tendenciosa de ‘determinismo tecnológico’, que não constitui, no entanto, uma caracterização adequada dos enunciados teóricos de Marx aos quais se refere. Com a expressão ‘determinismo tecnológico’ insinua-se que os conceitos complexos propostos por Marx reduzem-se a enunciados simples, mecânicos e unilaterais. Estes temas tornaram-se polêmicos e até certo ponto emocionais, no campo marxista, por pelo menos três motivos: primeiro, por serem associados, pelos seus críticos, ao stalinismo 2 ; em segundo lugar, porque a defesa enfática da primazia das forças produtivas foi tema de uma obra inaugural do chamado marxismo analítico 3 , corrente que, apesar do nome, desvia-se decisivamente dos fundamentos filosóficos do marxismo; finalmente, por ter sido desenvolvido polemicamente por Althusser e seus seguidores 4 . Estas circunstâncias somam-se à inegável complexidade dos temas e ao fato de que Marx não dedicou uma obra específica à análise das transições entre modos de produção até o capitalismo 5 . A fundamentação das duas concepções de Marx, exposta neste artigo, mostrará que os críticos das concepções de Marx não se atêm rigorosamente aos princípios metodológicos do materialismo dialético. Com efeito, em diversos casos as críticas a distorções reais ou supostas das concepções de Marx conduzem a outras distorções, porque os críticos, talvez inadvertidamente, abandonam os fundamentos metodológicos ** Professor do Depto. de Economia da UFPR. 1 As obras de Marx e Engels também foram consultadas nos originais em alemão. Por este motivo, em alguns casos as citações literais, retiradas das versões traduzidas, foram corrigidas pelo autor. 2 Ellen M. Wood, Democracy against capitalism: renewing historical materialism. Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 6-8. 3 Gerald A. Cohen, Karl Marx’s theory of history : a defence. Princeton, Princeton Univ. Press, 1978. 4 Louis Althusser et al, Ler O Capital. Vol. 2. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. 5 Todavia, Marx realizou uma análise bastante detalhada da transição do feudalismo ao capitalismo, e Engels forneceu uma aplicação do materialismo histórico à análise da transição do comunismo primitivo aos modos de produção baseados na propriedade privada (Friedrich Engels, 1980, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 6ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira).

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  • Marx e o papel determinante das foras produtivas na evoluo social

    Claus M. Germer*

    Introduo1

    Os temas deste artigo so as concepes de Marx sobre os fundamentos do papel determinante das foras produtivas no desenvolvimento da sociedade, e os fundamentos e implicaes do vnculo entre a revoluo social e a relao existente entre o grau de desenvolvimento das foras produtivas e as relaes sociais de produo (FP/RP). Ambas constituem teses fundamentais da concepo materialista e dialtica da histria. A aceitao destes dois conceitos tem sido estigmatizada com a expresso tendenciosa de determinismo tecnolgico, que no constitui, no entanto, uma caracterizao adequada dos enunciados tericos de Marx aos quais se refere. Com a expresso determinismo tecnolgico insinua-se que os conceitos complexos propostos por Marx reduzem-se a enunciados simples, mecnicos e unilaterais. Estes temas tornaram-se polmicos e at certo ponto emocionais, no campo marxista, por pelo menos trs motivos: primeiro, por serem associados, pelos

    seus crticos, ao stalinismo2; em segundo lugar, porque a defesa enftica da primazia das foras

    produtivas foi tema de uma obra inaugural do chamado marxismo analtico3, corrente que, apesar do nome, desvia-se decisivamente dos fundamentos filosficos do marxismo; finalmente, por ter

    sido desenvolvido polemicamente por Althusser e seus seguidores4. Estas circunstncias somam-se inegvel complexidade dos temas e ao fato de que Marx no dedicou uma obra especfica

    anlise das transies entre modos de produo at o capitalismo5. A fundamentao das duas concepes de Marx, exposta neste artigo, mostrar que os crticos das concepes de Marx no se atm rigorosamente aos princpios metodolgicos do materialismo dialtico. Com efeito, em diversos casos as crticas a distores reais ou supostas das concepes de Marx conduzem a outras distores, porque os crticos, talvez inadvertidamente, abandonam os fundamentos metodolgicos

    *Professor do Depto. de Economia da UFPR. 1 As obras de Marx e Engels tambm foram consultadas nos originais em alemo. Por este motivo, em

    alguns casos as citaes literais, retiradas das verses traduzidas, foram corrigidas pelo autor. 2 Ellen M. Wood, Democracy against capitalism: renewing historical materialism. Cambridge, Cambridge

    University Press, 1995, p. 6-8. 3

    Gerald A. Cohen, Karl Marxs theory of history : a defence. Princeton, Princeton Univ. Press, 1978. 4

    Louis Althusser et al, Ler O Capital. Vol. 2. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. 5

    Todavia, Marx realizou uma anlise bastante detalhada da transio do feudalismo ao capitalismo, e Engels forneceu uma aplicao do materialismo histrico anlise da transio do comunismo primitivo aos modos de produo baseados na propriedade privada (Friedrich Engels, 1980, A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado. 6 ed. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira).

  • da anlise de Marx6.

    So dois os objetivos deste artigo. O primeiro colocar em evidncia que a formulao das duas concepes aqui focalizadas coerente com o mtodo materialista e dialtico, que portanto elas no representam uma forma de determinismo fatalista ou mera figura de retrica, mas apiam-se no carter materialista de dois componentes da teoria de Marx: por um lado, nos seus conceitos fundamentais sobre a evoluo da sociedade e, por outro, na sua teoria do conhecimento. No possvel discutir o significado do conceito de determinismo e a ambiguidade com que a utilizam os crticos de Marx. O determinismo, como princpio metodolgico nas cincias, possui diferentes

    significados7, que os crticos geralmente no especificam, atribuindo-lhe subrepticiamente o significado de fatalismo quando aplicado ao vnculo enunciado por Marx entre as foras produtivas

    e as relaes sociais de produo8.

    Procura-se tambm mostrar como a contradio FP/RP se expressa como luta de classes. Isto oportuno porque a crtica ao suposto determinismo tecnolgico de Marx inclui a de que esta concepo anularia a relevncia da luta de classes, como se as foras produtivas e as relaes de produo de algum modo lutassem diretamente entre si, ao invs de a sua contradio constituir o fundamento material da luta de classes.

    Como segundo objetivo, procura-se apontar algumas implicaes da relao FP/RP para a avaliao dos experimentos de transio ao socialismo no sculo 20, tomando como referncia a URSS, por um lado, e para o desenvolvimento de uma viso prospectiva mais adequada sobre as caractersticas gerais, em termos tericos, do processo de transio ao socialismo, do ponto de vista das foras produtivas.

    A antiga Unio Sovitica foi frequentemente acusada de ter mantido integralmente a forma de produo industrial capitalista e a correspondente sujeio, alienante e embrutecedora, da fora de

    6 Wood um exemplo disto: sob o pretexto de criticar a distoro que afirma identificar no determinismo

    tecnolgico, ao invs de examinar o tema luz do mtodo de Marx, dedica-se a reconsiderar, repensar e redefinir os conceitos fundamentais envolvidos, sem considerao com os fundamentos do mtodo (Wood, Democracy against capitalism, cit., p. 11. Ver tambm Ellen M. Wood. The origin of capitalism. New York, Monthly Review Press, 1999). 7

    Roy Bhaskar, Determinismo. In: Tom Bottomore (Ed.), Dicionrio do pensamento marxista. 2a. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p. 99-101. Ver tambm Diccionario de Filosofa. Mosc, Progreso, 1984. 8

    Uma apreciao, sem esta tendenciosidade, dos principais aspectos da polmica sobre o vnculo FP/RP pode ser encontrada em Lawrence Harris, Foras produtivas e relaes de produo. In: Bottomore, op. cit., p. 157-59; e Andr Tosel (1982) Dterminisme. In: Georges Labica et Grard Bensussan (Eds.). Dictionnaire critique du marxisme. Paris, Quadrigne/PUF, 1999, p. 305-7. Esclarecimentos adicionais sobre o determinismo do ponto de vista materialista em S. Meliujin, El problema de lo finito y lo infinito. Mxico : Grijalbo, 1960, p. 264-275.

  • trabalho. Neste sentido, a URSS teria deixado de corresponder s expectativas da classe operria e dos militantes comunistas de todo o mundo, voltadas para uma reorganizao desalienadora do trabalho industrial. O presente artigo, inspirado por esta crtica, pretende recuperar, da obra de Marx, as bases tericas necessrias avaliao deste aspecto da experincia sovitica e, de modo mais geral, identificar as condies sob as quais se pode supor que se d a revoluo das foras produtivas no processo de transio do capitalismo ao socialismo.

    A evoluo da sociedade humana: um paradoxo

    A acusao de determinismo tecnolgico teoria de Marx sobre a transio entre modos de produo, embora constitua uma simplificao de um enunciado terico importante, no to simples quanto parece. Ela engloba uma crtica a trs implicaes da teoria de Marx: 1) coloca em dvida a concepo de que o desenvolvimento das foras produtivas o processo responsvel pelo desenvolvimento social e pela transio de um modo de produo a outro; 2) atribui a Marx a afirmao da existncia de uma relao mecnica e unilateral entre o nvel de desenvolvimento em que se encontram as foras produtivas (FP) e o carter das relaes de produo (RP) vigentes em um modo de produo determinado; 3) rejeita a concepo de que o desenvolvimento das foras produtivas seria um processo crescente e conduziria, consequentemente, a uma sucesso de modos de produo superiores uns aos outros.

    A relevncia dos conceitos de FP e RP decorre de integrarem uma formulao materialista de uma hiptese sobre a causa do desenvolvimento e mudana dos modos de produo, ou seja, das formas de organizao da sociedade humana. Isto requer um esclarecimento prvio. O materialismo significa que a realidade material a nica realidade existente, e a dialtica materialista implica que a matria est continuamente em movimento, por ser o movimento uma propriedade intrnseca a

    ela9. Movimento da matria significa transformao, de forma e de contedo. Se no h outra realidade fora da matria, e se esta se transforma continuamente, segue-se que o movimento auto-gerado, e, segundo a dialtica, provocado pelas contradies internas matria. Consequentemente, para conhecer as causas de cada movimento necessrio identificar as contradies que o impulsionam.

    No caso da sociedade, a contradio que a move, segundo Marx, a que ocorre entre as foras produtivas e as relaes de produo, e a sua causa reside no desenvolvimento das foras

    9 Friedrich Engels, Anti-Dhring. Rio de Janeiro, Paz e Terra., 1976, p. 51. Segundo Marx, tudo o que

    existe, tudo o que vive sobre a terra ou na gua, s existe, s vive por intermdio de algum movimento. Assim o movimento da histria gera as relaes sociais (Karl Marx, Misria da Filosofia. Lisboa, Estampa, 1978, p. 118).

  • produtivas. Mas, o que causa o desenvolvimento das foras produtivas? A resposta a esta questo requer cuidados especiais, do ponto de vista materialista, para que no se introduza na explicao elementos subjetivos, de intencionalidade do ser humano, que levariam o pesquisador a resvalar para interpretaes idealistas. Os elementos materialistas de explicao so puramente objetivos e no intencionais. Os pressupostos histricos e os fundamentos tericos desta explicao foram desenvolvidos por Marx e Engels a partir da Ideologia Alem.

    O esclarecimento deste problema torna-se mais fcil se apresentado como um paradoxo, expresso em dois enunciados opostos, quando se aplica os princpios materialistas, expostos acima, sociedade. No primeiro, Marx afirma que no a conscincia do ser humano que determina o seu

    ser, mas, ao inverso, o seu ser social que determina a sua conscincia10. Em uma verso simplificada, isto quer dizer que a sociedade que determina o indivduo e no o contrrio. Esta concepo ope-se frontalmente concepo idealista, expressa no chamado individualismo metodolgico, que domina a epistemologia burguesa no campo das cincias humanas, para o qual so as motivaes individuais, impressas desde sempre na natureza humana imutvel, que explicam a estrutura da sociedade. Segundo a concepo materialista, ao contrrio, a sociedade que determina o indivduo, so os fenmenos sociais objetivos que geram as teorias sociais e no o inverso. Nesta formulao o indivduo parece refletir passivamente a estrutura das relaes sociais nas quais est imerso.

    O segundo enunciado materialista afirma que a sociedade se transforma sob a ao dos prprios seres humanos, e no por interveno externa, talvez sobrenatural. Isto significa que o ser humano que produz a sociedade e no o inverso. Ou seja, o mesmo materialismo dialtico parece afirmar duas coisas contrrias: por um lado, que a sociedade que determina o indivduo e, por outro lado, que o indivduo que determina a sociedade. Como se resolve este paradoxo? disto, em parte, que trata a discusso sobre o chamado determinismo tecnolgico. A soluo do paradoxo depende das implicaes das concepes materialistas da teoria do conhecimento e do carter do trabalho social, sintetizadas a seguir.

    Como toda forma de movimento, o desenvolvimento da sociedade obedece a leis determinadas. Como a sociedade no constituda simplesmente pelos indivduos, mas pela teia de relaes

    recprocas que os conectam uns aos outros11, segue-se que o desenvolvimento da sociedade consiste no movimento e na mudana desta teia de relaes. Como estas so relaes entre seres

    10 Karl Marx, Contribuio crtica da economia poltica. So Paulo : Martins Fontes, 1977, p. 24.

    11 Karl Marx, Elementos Fundamentales para la Crtica de la Economia Politica (Borrador). v. 1, 9a. ed.

    Mxico, Siglo xxi, 1977, p. 204-5.

  • conscientes, parece, primeira vista, que estes poderiam mudar a sociedade alterando deliberadamente a natureza das suas relaes. Mas do ponto de vista materialista estas relaes no dependem da vontade arbitrria do ser humano, mas devem ajustar-se s condies objetivas que permitem assegurar a reproduo cotidiana da sociedade. Portanto, da mudana destas condies que depende a mudana das relaes sociais. Mas estas condies esto sujeitas a leis especficas.

    Consequentemente, o prprio ser humano s poderia alterar a sociedade deliberadamente se conhecesse as leis que presidem as mudanas nas condies de reproduo da sociedade. Segundo Marx, a humanidade no havia, at ento, descoberto estas leis, e ele pretendeu descobr-las e estava convencido de que o havia feito: o materialismo histrico seria a teoria do movimento histrico da sociedade e conteria as correspondentes leis de movimento.

    Mas o fato de o ser humano no ter tido conscincia das leis de movimento da sociedade, que ele mesmo gera atravs da sua ao, no impediu que a sociedade se transformasse continuamente. Com efeito, diversas formas diferentes de organizao social os modos de produo sucederam-se ao longo da histria, o que significa que o ser humano transformou a sociedade pela sua prpria ao direta, mas o fez no intencionalmente. O fato de que h leis de movimento das quais o ser humano no tem conscincia, apesar de ser ele prprio o agente destas leis, significa que a sua ao em sociedade est submetida, sem que ele o perceba, a leis que o subjugam imperiosamente, como se fossem leis naturais. Isto tambm implica que, se o ser humano puder identificar com preciso as leis de desenvolvimento da sociedade, poder promover o seu desenvolvimento deliberadamente, o que no significa arbitrariamente, pois est sujeito aos limites impostos por estas leis.

    Portanto, o paradoxo apresentado acima decorre da formulao incompleta dos dois enunciados opostos. Deve-se portanto complet-los: dizer que a sociedade determina o indivduo significa que o indivduo, na sua conscincia e na sua ao, est sujeito s leis desconhecidas, mas atuantes, de movimento da sociedade; por outro lado, dizer que o indivduo determina a sociedade implica que as leis que presidem a ao do indivduo conferem a este o potencial de transformar a sociedade. A explicao do potencial transformador das aes dos indivduos em sociedade exige, portanto, que se identifique as leis que presidem estas aes. Estas leis expressam-se, segundo a elaborao terica de Marx, nas teorias do conhecimento e do processo de trabalho.

    O trabalho, fonte do conhecimento e do desenvolvimento social

    Se a sociedade humana est em contnua transformao, sem que ela decorra da ao intencional do ser humano, isto s pode ocorrer se o ser humano for forado a realizar continuamente um tipo

  • de atividade prtica da qual resulta, involuntariamente, a criao das condies necessrias transformao social. Para que esta atividade seja obrigatria e ininterrupta, ela deve decorrer de uma necessidade que opera ininterruptamente e que independe da vontade do ser humano. Esta atividade prtica o trabalho, e imperiosa porque indispensvel reproduo material da vida humana.

    Atravs do trabalho para produzir os seus meios de sobrevivncia, o ser humano gerou em primeiro lugar o crescimento e a diferenciao da massa cerebral, do que resultou a gestao da

    conscincia12, e em seguida passou a aprender, isto , a gerar conhecimento por intermdio do trabalho. O trabalho, portanto, a fonte da conscincia e do conhecimento. Na teoria de Marx o

    conhecimento no fruto da contemplao, mas da atividade humana prtica13. O trabalho consiste na ao do ser humano sobre os materiais naturais que o circundam, a fim de obter deles as coisas de que necessita. Ao agir sobre tais materiais comea a conhec-los, familiariza-se com as suas propriedades, e medida que o trabalho se repete continuamente, o conhecimento adquirido

    amplia-se e re-age sobre o processo de trabalho, aperfeioando-o gradualmente14. Aos poucos passa a utilizar materiais naturais como instrumentos auxiliares das mos e a fabricar instrumentos de trabalho. O conjunto dos materiais naturais que transforma para seu uso, dos instrumentos e demais materiais e instalaes que o auxiliam no trabalho, e do prprio conhecimento acumulado e

    da aptido adquirida para o trabalho, constituem as foras produtivas do trabalho15. Consequentemente, o trabalho a origem do conhecimento, que se expressa nas foras produtivas, e da ampliao contnua do conhecimento, que se expressa no desenvolvimento das foras

    produtivas16.

    12 Friedrich Engels, Sobre o papel do trabalho na transformao do macaco em homem. In: Karl Marx e

    Friedrich Engels, Obras Escolhidas, v. 2. So Paulo, Alfa-Omega, SD, p. 267-80; Andr Leroi-Gourhan, O gesto e a palavra: 1. Tcnica e linguagem. Lisboa. Edies 70, 1990. 13

    Karl Marx e Friedrich Engels, Teses sobre Feuerbach. In: Karl Marx e Friedrich Engels, Obras Escolhidas, v. 3. So Paulo, Alfa-Omega, SD, p. 208-10 As idias constituem reflexos da realidade circundante na mente do ser humano, mas no de um ser humano passivo e contemplativo, como o reflexo de um objeto no espelho, mas resultam da ao prtica do ser humano sobre a realidade circundante. No h outra forma de conhecimento (Claus M. Germer, A relao abstrato/concreto no mtodo da economia poltica. In: Gentil Corazza (Org.). Mtodos da cincia econmica. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2003, p. 70-3; Theotonio dos Santos, Foras Produtivas e Relaes de Produo : Ensaio Introdutrio. Petrpolis, Vozes,1984). 14

    ... a humanidade iniciou a sua carreira no ponto mais baixo da escala, abrindo caminho, do estado selvagem at civilizao, atravs da lenta acumulao do saber emprico (Lewis H. Morgan, A sociedade primitiva. Lisboa, Presena, 1980, p. 13). 15

    Karl Marx, O Capital. v. 1. So Paulo, Abril Cultural, 1983, cap. 5. 16

    Cohen, Karl Marxs theory of history, cit. cuja obra constitui uma defesa vigorosa desta tese, afasta-se no entanto nitidamente do enfoque materialista de Marx ao atribuir o desenvolvimento das foras produtivas

  • Do exposto at aqui retira-se duas importantes concluses: primeiro, a concepo de Marx, de que o desenvolvimento das foras produtivas o elemento dinmico do desenvolvimento social, possui fundamentos materialistas consistentes, na medida que consistente a tese de que o trabalho a fonte material de novos conhecimentos, que retroagem sobre as foras produtivas, aperfeioando-as. H aqui uma sobreposio de termos, pois o verdadeiro elemento dinmico o trabalho, mas justifica-se porque este consiste na ativao do conjunto das foras produtivas por ele geradas e existentes em cada momento histrico. Com isto revela-se o carter ilusrio do paradoxo em discusso: cada gerao reproduz-se pelo seu prprio trabalho, impulsionada pela necessidade da sobrevivncia e com base nas foras produtivas herdadas das geraes anteriores (que determinam o modo de vida da gerao atual), mas, atravs do prprio ato de trabalhar, amplia e aprofunda, com maior ou menor rapidez, o conhecimento, e por intermdio disto faz avanar as

    foras produtivas17.

    A segunda concluso a mais polmica que o desenvolvimento das foras produtivas cumulativo ou progressivo, isto , que os modos de produo sucessivos so progressivamente mais avanados em termos do nvel de desenvolvimento das foras produtivas, que se reflete em nveis sucessivamente mais elevados da produtividade do trabalho, aos quais correspondem relaes de

    produo tambm progressivas18. Esta concluso contestada por diversos autores marxistas19, em

    a uma racionalidade intrnseca ao ser humano. Este enunciado de Cohen resulta da sua adeso ao individualismo metodolgico, prprio do chamado marxismo analtico, do qual a sua obra constituiu um dos marcos iniciais. 17

    ... em cada fase [da histria CMG] encontra-se um resultado material, uma soma de foras produtivas, uma relao com a natureza e entre os indivduos gerada historicamente, que cada gerao herda da que a precede, uma massa de foras produtivas, capitais e circunstncias, que, por um lado, efetivamente modificada pela nova gerao, mas que, por outro lado, lhe dita suas prprias condies de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, um carter especial que portanto as circunstncias fazem os seres humanos tanto quanto os seres humanos fazem as circunstncias (Marx e Engels, Feuerbach : a oposio entre as concepes materialista e idealista (Cap. I de A ideologia Alem). Lisboa : Estampa, 1975, p. 56). 18

    Tendo chegado a um certo grau de amadurecimento, a forma histrica determinada removida e d lugar a uma mais elevada (Karl Marx, O Capital, v. III. So Paulo, Abril, 1985, p. 814, itlicos acrescentados]. 19

    Segundo Wood esta interpretao implica que ...modos [de produo CMG] menos produtivos so inexoravelmente seguidos por [modos] mais produtivos, de acordo com alguma lei universal da natureza (Wood, 1995, cit., p. 4, itlicos acrescentados), ironia que constitui um triplo equvoco. Primeiro, a referncia a alguma lei indefinida uma insinuao de que a lei no foi formulada, o que um engano, uma vez que Marx a formulou claramente, segundo o exposto; segundo, a lei do desenvolvimento das foras produtivas como resultado do trabalho humano no uma lei universal da natureza, mas uma lei especfica da sociedade humana; por ltimo, com a atribuio de inexorvel sucesso progressiva dos modos de produo, a autora quer atribuir-lhe um carter mecnico e metafsico que no corresponde concepo de Marx. A lei do desenvolvimento das foras produtivas afirma que este, na sua essncia, possui um carter progressivo, expresso em crescente produtividade do trabalho, o que o exposto acima demonstra, de modo que, na medida que as FP se desenvolvem normalmente, o modo de produo resultante ser superior. Em

  • alguns casos sob a alegao de que Marx teria sido influenciado pelo modismo evolucionista

    presente na sua poca20. Se isto fosse verdade, implicaria que Marx no teria uma teoria do desenvolvimento dos modos de produo, o que no correto, pois elaborou uma explicao consistente, resumida acima. O exposto mostra que esta concluso emana com lgica rigorosa de pressupostos histricos e fundamentos tericos claros e consistentes, e segue um procedimento materialista e dialtico coerente. Isto sugere que as objees devem-se, pelo menos em parte, no inconsistncia da interpretao de Marx, mas adoo de pressupostos e de mtodos diferentes dos de Marx pelos seus crticos.

    Sinteticamente, eis a linha lgica do enunciado de Marx: primeiro, o conhecimento nasce com a atividade prtica do ser humano e continuamente aumentado como resultado dela. Em segundo lugar, a atividade prtica fundamental e primordial a produo dos meios necessrios vida cotidiana. Esta atividade repete-se interminavelmente, dia a dia, ano aps ano, gerao aps gerao, sendo portanto a fonte inesgotvel e irreprimvel do novo conhecimento e da renovao contnua dos mtodos e materiais utilizados na produo. Assim, abstraindo catstrofes naturais ou sociais, o conhecimento no pode deixar de expandir-se, e os meios de produo no podem deixar de desenvolver-se, porque a produo, que a sua fonte, no pode ser interrompida. Portanto, o ato obrigatrio e ininterruptamente repetido de trabalhar a origem das mudanas sofridas pela sociedade. Terceiro, medida que o trabalho se repete interminavelmente, o conhecimento dos materiais naturais estende-se e aprofunda-se, novos instrumentos so concebidos e continuamente desenvolvidos, os materiais de que so feitos diversificam-se, e a aptido do trabalho aperfeioa-se correspondentemente. Como resultado, o processo social de trabalhar, materializado nas foras produtivas, transforma-se aos poucos, at fazer emergirem os elementos que apontam para uma nova estrutura social. O desenvolvimento do conhecimento, por um lado, e da organizao e dos processos de produo correspontendes, por outro, do origem a novas formas de trabalhos e a trabalhadores de novo tipo, e a novas formas materiais de apropriao dos meios de produo, que entram em conflito crescente com as formas de trabalho e de apropriao, existentes at ento.

    Algumas objees a esta tese baseiam-se em interpretaes da mesma que no so justificadas

    condies ceteris paribus, prprias de todas as leis cientficas, isto deve sempre realizar-se. Mas isto no significa que a essncia progressiva do processo de trabalho sempre se realize inexoravelmente, em todas as condies histricas concretas, pois isto depende de grande quantidade de circunstncias histricas. O prprio Marx apontou episdios histricos da antiguidade em que catstrofes naturais ou sociais conduziram regresso social. Por outro lado, seria difcil imaginar um processo de trabalho social que, por sua prpria natureza, conduzisse regresso ao invs do avano das foras produtivas. 20

    tienne Balibar, Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histrico. In: Louis Althusser et al., Ler O Capital. Vol. 2. Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 202, 242.

  • pela formulao de Marx nem esto implcitas nela. Uma delas apia-se em evidncias empricas da ocorrncia histrica de retrocessos ao invs de avanos nas foras produtivas e, consequentemente, nas relaes de produo. Esta crtica incua, pois a formulao de Marx no implica que o desenvolvimento das foras produtivas insuscetvel de retrocessos. Ele mesmo aponta o carter ziguezagueante deste desenvolvimento, mas isto ocorre principalmente nos estgios iniciais da

    sociedade, dispersa em comunidades isoladas21. A cumulatividade e a progressividade do desenvolvimento das foras produtivas so condicionadas, positiva ou negativamente, por diferentes fatores, entre os quais encontra-se o prprio nvel j alcanado pelas foras produtivas. A possibilidade de retrocessos, porm, no anula a lei, como alguns autores pretendem, a ponto de deixar a linha de desenvolvimento da sociedade indeterminada. Dada a consistncia da lei, os retrocessos devem ser encarados como excees e no como regra.

    Tambm se faz objees consistncia da lei com base nas diferenas de ritmos de desenvolvimento de diferentes sociedades, como por exemplo entre as orientais e ocidentais, e at mesmo na aparente estagnao de outras. Valem os mesmos comentrios anteriores: a formulao de Marx no implica que os ritmos de desenvolvimento das foras produtivas sejam iguais em todas as sociedades, ou que no ocorram estagnaes prolongadas22. A este propsito, curioso que os crticos ignorem o fato de que, sendo as foras produtivas compostas por elementos fornecidos pela natureza, bvio que a composio dos elementos naturais disponveis, em cada regio geogrfica, um dos fatores a condicionar de modo mais favorvel ou mais desfavorvel o

    desenvolvimento das foras produtivas23. No possvel, por exemplo, conceber meios de aproveitamento da fora do vento em regies onde no h ventos suficientemente fortes, ou da gua onde no h quedas d'gua e estas no podem ser construdas, e assim por diante.

    Wood alega que a lei do primado das foras produtivas de Marx resulta de projetar, sobre o passado histrico da humanidade, uma caracterstica inerente apenas ao capitalismo, que seu

    21 Depende unicamente da expanso das trocas se as foras produtivas alcanadas em uma localidade,

    principalmente invenes, se percam ou no para o desenvolvimento posterior. Enquanto no existir comrcio que ultrapasse os arredores imediatos, cada inveno tem que ser feita em cada localidade, e simples acasos (...) so suficientes para obrigar um pas com foras produtivas e necessidades desenvolvidas a recomear do incio. No incio da histria era necessrio recriar todos os dias cada inveno e faz-la em cada localidade de maneira independente. (...) O carter duradouro das foras produtivas alcanadas s ser garantido quanto o comrcio tiver se convertido em comrcio mundial, tendo por base a grande indstria, e todas as naes tiverem sido arrastadas para a luta da concorrncia (Marx e Engels, Feuerbach, cit. p. 84). 22

    Marx, O Capital, v. III, cit., p. 254. 23

    Morgan menciona, entre os fatores responsveis pelas diferenas de nveis de desenvolvimento no Oriente e no Ocidente, o fato de os povos orientais contarem com maior nmero de animais domesticveis (Morgan, op. cit., p. 37-9).

  • dinamismo tecnolgico24. Isto uma clara distoro da conceituao de Marx. Pelo que se pode comprovar do exposto at aqui, a teoria do desenvolvimento das foras produtivas, formulada por Marx, baseia-se em pressupostos histricos e tericos que no foram derivados do carter do capitalismo e independem deste. Wood parece no ter entendido os fundamentos da teoria do desenvolvimento social de Marx. Isto explicaria a inverso que faz da relao entre a teoria de Marx e os fatos histricos. Wood pensa que Marx projetou sobre o passado uma caracterstica prpria do capitalismo, e no percebe que, ao contrrio, a teoria geral dos modos de produo de Marx que torna possvel compreender a acelerao indita do desenvolvimento das foras produtivas no capitalismo. Isto decorre de ser o capitalismo o primeiro modo de produo cujo funcionamento corrente se baseia na procura intencional de inovaes tcnicas25, porque estas so o instrumento

    bsico da concorrncia intercapitalista26. Nos modos de produo anteriores o desenvolvimento das foras produtivas foi sempre um subproduto no intencional do processo repetido de trabalho, porque o trabalho social no era organizado caoticamente pelo mercado, como no capitalismo, mas

    por um plano social, portanto exclua a concorrncia entre os produtores27. Finalmente, a autora ignora outro elemento da concepo materialista, segundo o qual a velocidade da transformao da matria aumenta com a complexidade desta, o que tambm explica a maior velocidade das

    mudanas no capitalismo, em relao aos modos de produo anteriores28.

    O que se observa que alguns autores, em objees como as citadas, parecem no perceber que

    24 Wood, Democracy against capitalism, cit., p. 4, 12; The origin of capitalism, cit., p. 11, 34.

    25 O que intencional a procura, no os resultados, uma vez que estes fazem parte do desconhecido e so

    portanto imprevisveis. Nas sociedades no capitalistas no h procura intencional, como regra, porque nenhuma necessidade sistemtica a impe. Do ponto de vista materialista, a intencionalidade da procura por inovaes no capitalismo no se deve a fatores subjetivos, como a racionalidade, mas imposta pela concorrncia como condio de sobrevivncia dos capitalistas individuais. 26

    Marx, O Capital, v. I, cit., cap. 10. Wood argumenta em contrrio, com base em uma citao de Marx, alegando que na Antiguidade houve fenmenos de desenvolvimento das foras produtivas baseados na concorrncia entre naes comerciais (Idem, ibidem, p. 190-1). Na referida citao, porm, o que Marx mostra que a produo para fins comerciais, baseada na escravido, na Antiguidade, resultou em superexplorao da fora de trabalho, no em desenvolvimento das foras produtivas. 27

    Claus Germer, The commodity nature of money in Marxs theory. In: MOSELEY, F. (Ed.). Marx's theory of Money : modern appraisals. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2005, p. 21-3. 28

    ... cuanto ms compleja es y mejor organizada est la forma de la materia y del movimiento, tanto ms rpidos son su desarrollo y su tranformacin qualitativa. (...). La materia viva se desarrolla com mucha mayor rapidez. (...). En esta [la sociedad CMG] tambin se observa la aceleracin del desarrollo al pasar de una formacin a otra de tipo superior. Para convencernos basta comparar los perodos de existencia de las sociedades de la comunidad primitiva, esclavista, feudal, capitalista y socialista, as como el volumen de su progreso material y cultural (Meliujin, op. cit., p. 220-1). Algumas evidncias histricas so fornecidas por Charles Parain, Evoluo do sistema feudal europeu. In: Theo Araujo Santiago (Org.), Capitalismo transio. Rio de Janeiro, Livraria Eldorado, 1974, p. 29; e Pierre Vilar, A transio do feudalismo ao capitalismo. In: Santiago, op. cit., p. 35.

  • os mtodos subjacentes, respectivamente, anlise de Marx e s suas objees, so frequentemente bastante diferentes e at opostos. Exemplo ilustrativo disto a crtica desencadeada contra as concepes de Morgan. O contraste entre os enfoques crticos pode ser ilustrado pelas avaliaes

    divergentes da obra de Morgan elaboradas por Godelier e Terray29. Enquanto Godelier se dedicou a catalogar as evidncias empricas que contrariavam as utilizadas por Morgan, sem se referir ao carter e consistncia do seu mtodo, Terray procurou demonstrar a consistncia cientfica do mtodo de Morgan e o carter relativo das objees baseadas em resultados de pesquisas empricas posteriores, que no invalidam a sua concepo geral.

    As relaes sociais de produo

    O ser humano, desde o incio, vive em sociedade, o que implica que o seu trabalho trabalho social, isto , uma combinao de trabalhos individuais diferenciados e interligados visando a sobrevivncia do coletivo social. Isto significa que os indivduos relacionam-se uns com os outros, de modos definidos, ao trabalhar. Estas relaes recprocas so as relaes de produo. Do ponto de vista materialista estas relaes no so encaradas como intencionais, mas impostas por uma necessidade objetiva irresistvel, que neste caso emana das caractersticas materiais do processo de trabalho. Isto se expressa, segundo Marx, na existncia de uma relao definida entre as foras produtivas e as relaes de produo. Eis a passagem clssica em que a enuncia:

    Na produo social da sua vida os seres humanos estabelecem relaes determinadas, necessrias, independentes da sua vontade, relaes de produo, que correspondem a determinado grau de desenvolvimento das suas foras produtivas materiais.30

    Note-se a nfase no enunciado de que as relaes de produo que se estabelecem entre os seres humanos na produo social da sua vida, so relaes determinadas, necessrias e independentes da sua vontade. Isto crucial, pois significa, em primeiro lugar, que a forma das relaes de produo independe da intencionalidade dos seres humanos e desenvolve-se espontneamente, embora eles prprios as produzam ao interagirem sistematicamente no trabalho; em segundo lugar, o fato de o seu desenvolvimento ser espontneo no quer dizer que seja aleatrio ou arbitrrio, mas que se impe a eles de modo irresistvel, embora desconheam a lei do seu desenvolvimento.

    A dependncia das relaes de produo em relao s foras produtivas significa, por um lado, que a forma assumida, em cada momento histrico, pelas relaes entre os indivduos, depende das

    29 Maurice Godelier, (1978). Partes mortas, idias vivas do pensamento de Marx sobre sociedades

    primitivas. Marxismo e evolucionismo. In: E.A. Carvalho (Org.), Antropologia econmica. So Paulo, Cincias Humanas, 1978, p. 101-136; Emmanuel Terray, O marxismo diante das sociedades primitivas : dois estudos. Rio de Janeiro, Graal, 1979. 30

    Marx, Contribuio , cit. p. 24, itlicos acrescentados.

  • formas especficas das foras produtivas (tipos e localizao das matrias-primas, dos instrumentos de trabalho e dos ambientes de trabalho construes, instalaes, meios de transporte, etc.); por outro lado, como as foras produtivas esto em contnuo desenvolvimento mais lento ou mais rpido, segundo a poca histrica , segue-se que as relaes entre os indivduos, na produo,

    esto tambm em contnuo desenvolvimento31.

    Como se manifestam socialmente as relaes de produo? Segundo Marx, as relaes de

    produo expressam-se na forma jurdica da propriedade32, ou seja, a forma das relaes entre os indivduos reflete a forma das relaes entre eles e os meios de produo, isto , a forma material da apropriao dos meios de produo, que determinada pelo nvel de desenvolvimento das foras produtivas. A relao entre os indivduos onde a propriedade dos meios de produo coletiva difere significativamente da relao entre eles onde privada. Por outro lado, a propriedade privada apresenta-se, ao longo da histria, sob diferentes formas - escravista, feudal, capitalista -, e a cada uma delas correspondem relaes especficas entre os indivduos.

    A revoluo social e as lutas de classes

    Com o surgimento da propriedade privada dos meios de produo ocorre uma mudana crucial: as relaes de produo passam a manifestar-se de modo duplo, por um lado na forma material ou objetiva segundo a qual os indivduos se relacionam no processo de produo, e por outro lado na forma jurdica, isto , nas leis33 nas quais so codificados os direitos dos proprietrios e os deveres dos no proprietrios. Isto introduz um fator de rigidez no cenrio dinmico em que as foras produtivas e as relaes de produo se transformam coordenadamente, com as ltimas seguindo as primeiras. que as leis que definem os direitos de propriedade baseados nas relaes de produo vigentes no sofrem um processo de evoluo espontneo e progressivo, como ocorre com as foras produtivas, mas s podem ser alteradas por mudanas da ordem jurdica, que afetam os direitos estabelecidos e dependem, por esta razo, da correlao de foras entre os diferentes pleiteantes de direitos, ou seja, dependem da luta de classes. Consequentemente, a forma jurdica da propriedade permanece inalterada, no essencial, durante o perodo histrico coberto por um modo de produo. Mas a forma material da apropriao, que a forma jurdica da propriedade expressa, continua evoluindo, uma vez que ela representa a forma real das relaes entre os indivduos, e estas

    31 Vivemos em meio a um movimento contnuo de crescimento das foras produtivas, de destruio de

    relaes sociais, de produo de idias; imvel s a abstrao do movimento (...) (Marx, Misria da filosofia, cit., p. 122). 32

    Karl Marx und Friedrich Engels, Die Deutsche Ideologie. Berlin, Dietz, 1978, p. 311, 346-7. 33

    Balibar, op. cit., p. 183; Charles Bettelheim, A Transio para a Economia Socialista. Rio de Janeiro, Zahar, 1969, p. 27, 175-7.

  • alteram-se com o desenvolvimento das foras produtivas, cujo nvel no est fixado em lei e depende do desenvolvimento cientfico e tecnolgico progressivo34. Estabelece-se portanto uma contradio entre as relaes materiais de produo e sua expresso jurdica na forma da propriedade.

    H, portanto, trs elementos operando em conjunto: i) o desenvolvimento das foras produtivas, que determina a forma material da apropriao; (ii) as relaes materiais de produo, que refletem a anterior; (iii) os direitos de propriedade dos meios de produo, que representam, no plano jurdico, as relaes materiais de produo vigentes. E h uma linha de causao na direo i) ii) iii).

    Marx definiu o modo de produo, no maior nvel de abstrao, como uma combinao entre um determinado nvel de desenvolvimento das foras produtivas e a correspondente forma material das relaes de produo, cristalizadas nas leis. No apogeu de um modo de produo h consonncia entre o nvel de desenvolvimento das foras produtivas, as relaes de produo que lhe correspondem, e a sua expresso nas leis, que sancionam juridicamente o poder de classe ou de Estado da classe proprietria.

    Pelos motivos j expostos, as foras produtivas continuam desenvolvendo-se espontaneamente, como decorrncia do fluxo contnuo do processo de produo. A partir de determinado momento o seu desenvolvimento comea a gerar novas relaes materiais de produo, divergentes das dominantes, no representadas pela forma jurdica da propriedade vigente, motivo pelo qual entram em contradio com esta. Eis a clssica passagem em que Marx expe, sucintamente, o processo:

    Em certo estgio do seu desenvolvimento, as foras produtivas materiais entram em contradio com as relaes de produo existentes ou, o que apenas sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade, no interior das quais se tinham movido at ento. De formas de desenvolvimento das foras produtivas, estas relaes transformam-se em entraves das mesmas. Inaugura-se ento uma poca de revoluo social. Com a alterao da base econmica, altera-se mais lentamente ou mais rapidamente toda a imensa superestrutura.35

    necessrio traduzir a sucinta descrio de Marx em um processo poltico mais concreto, caso contrrio pareceria que, ao invs da luta entre classes definindo a revoluo social, teramos uma luta entre foras produtivas e relaes de produo, impossvel de encontrar atuando no processo

    34 Observa-se historicamente que fatores superestruturais (pertencentes cultura, ideologia, religio,

    etc.) podem atuar retroativamente e afetar negativamente o desenvolvimento das foras produtivas. Isto no implica, porm, que, contrariamente lei formulada por Marx, as relaes de produo determinam a natureza das foras produtivas, como pretende Wood (The origin of capitalism, cit., p. 25). Para sustentar esta hiptese, mantendo-se no materialismo, seria necessrio apontar outra origem, no intencional, das relaes de produo, o que a autora no faz. 35

    Marx, Contribuio, cit. p. 24-5.

  • poltico e com a qual, talvez devido a uma leitura desatenta, se iludem os crticos da teoria da transio de Marx.

    indispensvel, em primeiro lugar, fazer distino entre a revoluo social como processo e a revoluo poltica como momento decisivo. A revoluo social, que ocupa todo um perodo histrico, o processo de transio de um modo de produo a outro, caracterizado, por um lado, pela elevao das foras produtivas do nvel anterior a um novo nvel, e, por outro lado, pela alterao correspondente das relaes materiais de produo. A revoluo poltica, ao contrrio, o momento limitado de auge revolucionrio em que se altera o poder de Estado e se realiza a mudana da forma jurdica da propriedade: a forma vigente abolida e substituda pela nova forma, representando as novas relaes materiais de produo, correspondentes ao nvel de desenvolvimento atingido pelas foras produtivas ainda sob o modo de produo anterior, vigente no momento da revoluo poltica. Consequentemente, a revoluo poltica divide o processo da revoluo social em duas fases, qualitativamente diferentes, uma anterior e outra posterior a ela. necessrio, inicialmente, detalhar as caractersticas do processo na fase anterior e no momento crucial da revoluo poltica.

    A revoluo social o processo histrico de substituio da classe proprietria dominante por uma nova classe proprietria. Segundo a citada passagem de Marx, ela se inicia quando o desenvolvimento das foras produtivas entra em choque com as relaes de produo vigentes, o que se manifesta no desencadeamento da luta entre a classe emergente e a dominante. Para que isto ocorra, porm, necessrio que uma nova classe surja e se desenvolva no interior do modo de produo vigente e sob o domnio da respectiva classe proprietria, e com a qual entra em

    conflito36. Sem isto no se poderia explicar, do ponto de vista materialista, o surgimento, na cena da luta de classes, de um projeto econmico, social e poltico vivel, oposto ao modo de produo vigente. Este novo projeto, quando surge, representa os interesses objetivos da nova classe em ascenso e constitui o esboo de um novo modo de produo, antagnico ao vigente37. necessrio, portanto, que o processo objetivo e no intencional de desenvolvimento das foras produtivas d origem ao embrio desta nova classe, e que esta atinja uma dimenso e uma expresso econmica e poltica compatvel com a fora necessria para disputar e conquistar o

    36 A existncia de idias revolucionrias numa poca determinada pressupe j a existncia de uma classe

    revolucionria (Marx e Engels, Feuerbach, cit., p. 68). 37

    Segundo Marx, ...relaes de produo novas e superiores nunca se instalam antes que as condies de existncia materiais das mesmas tenham sido geradas no prprio seio da velha sociedade ( Marx, Contribuio, cit., p. 25, itlicos acrescentados).

  • poder de Estado38.

    Consequentemente, deve-se admitir a ocorrncia de um descolamento progressivo, no explicitada na exposio de Marx, antecedendo a revoluo poltica, entre a forma material das relaes de produo objetivamente existentes e a forma jurdica da propriedade, no sentido de que novas relaes materiais de produo se desenvolvem progressivamente, dando origem nova classe aspirante ao poder, enquanto a forma jurdica da propriedade, em vigor, sustentculo da classe proprietria vigente, permanece inalterada39. A tenso, que se instala no mago da sociedade, expressa-se como luta entre a classe proprietria vigente e a nova classe em processo de constituio, expressando o antagonismo entre a forma jurdica vigente da propriedade e a nova forma material, gerada pelo desenvolvimento das foras produtivas. Abre-se um perodo de intensidade crescente da luta de classes, que finalmente desemboca na revoluo poltica. A nova classe social assume a propriedade dos meios de produo e o poder de Estado no lugar da classe at ento dominante.

    Seguindo-se o raciocnio de Marx, no momento da revoluo poltica os meios de produo j se transferiram, em proporo significativa, nova classe em processo de constituio. Mas esta transferncia de propriedade ainda no obteve expresso jurdica, ou seja, os meios de produo foram apropriados apenas operacionalmente ou formalmente, pela nova classe, pois

    as antigas leis da propriedade continuam em vigor e no contemplam a nova forma material de apropriao. No caso da transio do feudalismo ao capitalismo, a apropriao operacional dos feudos j tinha sido transferida, em proporo significativa, burguesia (os arrendatrios capitalistas), enquanto a antiga forma jurdica da propriedade continuava em vigor, e os arrendatrios capitalistas mantinham-se subordinados nobreza feudal, tanto econmica quanto politicamente. Os meios de produo dos servos, por sua vez, haviam sido expropriados, em certa proporo, incorporando-se juridicamente posse dos nobres mas operacionalmente aos arrendatrios, enquanto os servos se convertiam gradualmente em proletrios40.

    Tambm nas cidades o surgimento das manufaturas significou uma gradual transferncia

    38 Marx estabelece um princpio crucial: antes que a revoluo poltica seja possvel, as foras produtivas

    devem desenvolver-se plenamente at o limite do modo de produo. Uma formao social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as foras produtivas que ela capaz de conter (...) (Marx, Contribuio, cit., p. 25). 39

    Balibar, op. cit. Isto pode ser ilustrado pelo processo de surgimento de embries da burguesia e do proletariado no interior do modo de produo feudal, bem antes que a revoluo burguesa lhe puzesse fim. A magistral descrio, por Marx, do processo ocorrido na Inglaterra, a base das referncias seguintes. 40

    Marx, O Capital, v. I, cit., cap. 24).

  • de meios de produo dos artesos empobrecidos aos novos capitalistas manufatureiros. Ademais, as manufaturas instalam-se fora dos muros das cidades e consequentemente fora do alcance das regulamentaes das corporaes de ofcio mas em conflito com estas, que permanecem dominantes embora ameaadas. Esta dinmica das foras produtivas foi o fundamento das lutas de classes entre a burguesia manufatureira e as corporaes artesanais.

    Os constrangimentos expanso das novas foras produtivas e correspondentes relaes de produo resultam da vigncia da antiga forma jurdica de propriedade e da sua expresso como poder de Estado, e ilustram o fato de que, para abol-la, preciso desalojar a classe proprietria dominante da estrutura do poder de Estado. Isto no fcil, pois a forma vigente da propriedade encontra-se protegida por diversos cordes de defesa constituintes desta

    estrutura: instituies jurdicas, polticas, ideolgicas e, por ltimo, instituies armadas, que constituem o cimento de toda a estrutura e, segundo a evidncia histrica, no se desagregam espontaneamente.

    Em que situao encontram-se as foras produtivas no momento da revoluo poltica? Segundo a lgica do processo exposto, neste momento as foras produtivas encontram-se em transio: no so mais as foras produtivas puras do modo de produo que est chegando ao fim, pois j so parcialmente foras produtivas do novo modo de produo. Por outro lado, estas novas foras produtivas no podem encontrar-se j na forma definitiva correspondente s novas relaes materiais de produo, uma vez que a vigncia, at este momento, da forma jurdica antiga da propriedade constituiu um obstculo ao seu desenvolvimento. De fato, no momento da revoluo burguesa inglesa, por exemplo, na segunda metade do sculo 17, a produo capitalista j era dominante na agricultura e nas cidades, sob a forma manufatureira41, mas a forma capitalista definitiva a indstria mecanizada ainda teria que esperar cerca de um sculo para comear a surgir.

    As novas relaes de produo, convertidas pela revoluo poltica na nova forma jurdica da propriedade, convertem-se em fator de desenvolvimento das novas foras produtivas que

    as engendraram. Como vimos, no momento da revoluo poltica estas encontram-se em fase avanada de transio. J no so as antigas, mas ainda no so plenamente as novas. O que a revoluo poltica faz , em primeiro lugar, eliminar o obstculo ao desenvolvimento das foras produtivas, representado pela forma jurdica de propriedade anterior e, em segundo lugar, instituir a nova forma jurdica da propriedade, como expresso das novas relaes de

    41 A forma manufatureira dominava nos dois setores: nas cidades as manufaturas propriamente ditas, na

  • produo em desenvolvimento.

    A revoluo social no se encerra com a revoluo poltica, mas ingressa em fase de consolidao e amadurecimento. Com a revoluo poltica a nova classe proprietria apenas assume plenamente a responsabilidade pela gesto global social e poltica das foras produtivas existentes. O termo apenas para enfatizar que a nova classe assume a propriedade dos meios de produo tais quais so neste momento, ainda no totalmente transformados segundo as possibilidades do novo modo de produo e sem poder transform-los instantaneamente em algo novo. A fase posterior revoluo poltica uma fase conturbada e instvel, em que o poder da nova classe ainda est ameaado pelos elementos de poder residuais da classe apeada da

    propriedade dos meios de produo e do poder de Estado. Como as foras produtivas ainda so, em parte, as antigas, tambm as formas materiais de apropriao e as correspondentes classes sociais ainda so em parte as antigas. A prioridade da nova classe elevada ao poder assumir plenamente a capacidade de exercer o poder poltico e social e assegurar a consolidao do novo poder de Estado. Em termos econmicos, a prioridade restabelecer a normalidade da produco e da distribuio dos meios de produo e de consumo necessitados correntemente pela sociedade.

    Em suma, as foras produtivas, tais como se encontram, devem ser dominadas pela nova classe proprietria, o que no pouco. A forma plenamente desenvolvida das novas foras produtivas, no nvel correspondente s novas relaes de produo, no pode ser instituda por lei, pois depende de fatores tcnicos e cientficos que s podem resultar da continuidade do desenvolvimento espontneo das foras produtivas existentes. A extino da forma antiga de propriedade, no entanto, desbloqueia o processo de desenvolvimento que estava em curso e

    proporciona um amplo horizonte de expanso dos elementos inovadores em processo de gestao.

    A concepo materialista implica que a forma definitiva das foras produtivas prprias do novo modo de produo inteiramente desconhecida e no pode ser prevista no momento da

    revoluo poltica42. Esta apenas desobstrui o desenvolvimento das foras produtivas, o qual

    agricultura a produo de l de ovelha utilizando grandes contingentes de assalariados. 42

    Para ilustrar a importncia deste fator, sugere- se que o leitor se coloque, mentalmente, no momento da revoluo poltica burguesa inglesa, na segunda metade do sculo 17. Neste momento o auge das foras produtivas era representado pela manufatura, umbilicalmente ligada ao artesanato, no existindo ainda os elementos essenciais para se imaginar o que seriam a revoluo industrial e suas consequncias, um sculo frente. A revoluo poltica representou os interesses da burguesia manufatureira, apoiada numa forma de produo que seria derrotada e superada pela indstria mecanizada, o que ilusta o surgimento de novas contradies aps a revoluo poltica.

  • consiste na agregao de novas tcnicas resultantes da aquisio de novos conhecimentos, ou seja, consiste na converso do desconhecido em conhecido. A partir deste momento, preciso esperar que o desenrolar deste processo, nas novas condies sociais, polticas e jurdicas, engrende aos poucos os contornos definitivos das novas foras produtivas, no seu grau de

    pleno desenvolvimento, que tambm explicitaro, paralelamente, os contornos maduros das relaes materiais de produo e distribuio, cuja configurao definitiva tambm neste momento desconhecida.

    Em sntese, a transio a um novo modo de produo um processo que se compe de alguns momentos essenciais: 1) o desenvolvimento de embries de novas foras produtivas e de correspondentes novas relaes materiais de produo, permanecendo inalterada a forma

    jurdica da propriedade dos meios de produo, imobilizada na forma correspondente natureza das foras produtivas originais deste modo de produo; 2) as novas relaes reais entre os indivduos na produo representam as novas formas materiais de apropriao dos meios de produo, e consequentemente, expressam-se nos embries de novas classes

    proprietria e trabalhadora, ambas no contempladas pela forma jurdica de propriedade vigente, o que condiciona o surgimento e crescimento da oposio entre as novas e as antigas

    classes, dando incio a um perodo histrico de lutas de classes que constitui o processo da revoluo social; 3) a crescente contradio de interesses entre as classes novas e antigas, derivada da progresso das foras produtivas, abre um perodo de intensificao das lutas de classes que desemboca na revoluo poltica, que consiste na passagem do poder de Estado e da propriedade dos meios de produo nova classe proprietria, abolindo-se a forma jurdica vigente da propriedade e instituindo-se os fundamentos da nova forma; 4) segue-se um perodo no qual a nova classe proprietria luta para consolidar o seu poder e a nova estrutura jurdica, com a progressiva criao das instituies correspondentes s necessidades do novo modo de produo. Este processo essencialmente criativo e original, mas instvel, pois o novo se anuncia com fisionomia nem sempre clara, por vezes enganadora, brotando literalmente das mos dos trabalhadores manuais e intelectuais na atividade cotidiana da

    produo, e devendo ser convertida em laos permanentes atravs de tentativas nem sempre bem sucedidas e consequentes retrocessos por vezes dramticos; 5) na medida que o novo poder vai se consolidando e as novas instituies se fortalecem, as inovaes cientficas e tcnicas vo tambm gradualmente encontrando linhas mais seguras de evoluo, acabando por desembocar, em um momento indeterminvel, no que ser conhecido como o grau de desenvolvimento maduro das foras produtivas prprias do novo modo de produo, s quais

  • corresponder o regime jurdico adequado. Implicaes da teoria aplicadas ao socialismo do sculo 20

    Sugere-se aqui a interpretao de alguns fatos histricos referentes transio do capitalismo ao socialismo, em geral, e aos experimentos socialistas do sculo 20 em particular, com base estritamente nos elementos da teoria de Marx expostos neste artigo.

    1) Sendo teoricamente consistente situar o incio de um processo de revoluo social no momento em que se desencadeiam as lutas de classes, como manifestao do surgimento de contradies entre as FP e as RP vigentes, refletindo a constituio de novas classes sociais,

    deve-se situar o incio da transio do capitalismo ao socialismo nas revolues burguesas de 1848, nas quais pela primeira vez o proletariado se apresentou na cena poltica com

    autonomia43. Com efeito, este episdio foi seguido pela constituio e ampliao de um movimento socialista revolucionrio de mbito mundial, que deu origem aos primeiros experimentos socialistas concretos no sculo 20 e teve seu apogeu na dcada de 1950, ingressando aps isto em refluxo cclico.

    2) A concepo de Marx, exposta neste artigo, altamente abstrata, isto , refere-se transio entre modos de produo como blocos homogneos e em estado de pureza, e no a mudanas parciais em segmentos localizados do modo de produo em transio. No sculo 20, porm, s fenmenos deste ltimo tipo ocorreram, e apenas na periferia do capitalismo, iniciando-se com a Revoluo Socialista de 1917 na Rssia, que serviu de referncia para os demais. Neste pas as FP capitalistas e as correspondentes RP encontravam-se debilmente desenvolvidas. Consequentemente, no podia haver uma contradio autctone tpica da transio do capitalismo ao socialismo, que requereria que as FP j estivessem ultrapassando os marcos das RP capitalistas. Ou seja, a Revoluo de 1917 no se explica com base nas contradies FP/RP internas da Rssia, mas como expresso contundente, na Rssia, das

    contradies do capitalismo como sistema mundial44.

    O partido bolchevique, ao tomar o poder, no pensava estar protagonizando uma

    43 Karl Marx, As lutas de classes na Frana de 1848 a 1850. In: Karl Marx e Friedrich Engels, Obras

    Escolhidas, vol. 1. So Paulo, Alfa-Omega, SD, p. 93-198. 44

    Segundo a nossa concepo, portanto, todas as colises da histria tm a sua origem na contradio entre as foras produtivas e a forma de intercmbio. No necessrio, alis, que esta contradio, para provocar colises em um pas, seja levada ao ponto mximo de intensidade no prprio pas. A concorrncia, provocada por um comrcio internacional ampliado com pases industrialmente mais desenvolvidos, suficiente para produzir uma contradio idntica tambm nos pases com indstria menos desenvolvida (Marx und Engels, Die Deutsche Ideologie, cit., p. 73, itlicos acrescentados).

  • revoluo socialista isolada, mas a concebia como parte de um movimento inernacional e incio de um processo que se tornaria imediatamente mundial. Como isto no se deu e a revoluo no se estendeu ao centro mundial do capitalismo, a URSS permaneceu inicialmente isolada. Portanto, o que l ocorreu a partir da Revoluo no pode ser analisado como um processo de transio global, no nvel de abstrao implcito na relao FP/RP, seguindo as fases expostas neste artigo. No entanto, trata-se efetivamente de um episdio concreto do processo histrico da revoluo social que conduz do capitalismo ao socialismo. Nesta medida, o processo de desenvolvimento das FP e das RP, ocorrido neste pas, pode e deve ser analisado com base nos conceitos da teoria da transio de Marx. o que se procurar fazer, a seguir, em carter experimental.

    3) Ocorreu efetivamente, na Rssia, uma revoluo poltica do tipo previsto na teoria de Marx, pois aboliu-se a forma jurdica capitalista da propriedade e instituiu-se a forma jurdica da propriedade coletiva, com a importante exceo do cooperativismo agrcola45. No entanto, como a revoluo poltica ficou restrita Rssia, onde no se havia desenvolvido diretamente a contradio FP/RP, cujo amadurecimento deveria estar na base daquela, a abolio da forma capitalista da propriedade no poderia ter o efeito previsto, de abrir

    caminho ao desenvolvimento livre das FP, uma vez que estas no haviam alcanado os limites impostos pela forma jurdica burguesa da propriedade, devido ao dbil desenvolvimento das FP capitalistas no pas. Alis, a prpria forma burguesa da propriedade ainda no havia sido implantada plenamente na Rssia. As FP desenvolvem-se espontaneamente quando a sociedade desconhece as leis do seu desenvolvimento, mas, quando as conhece, o desenvolvimento pode ser intencional, segundo um plano. Na Rssia, as condies objetivas da relao FP/RP no poderiam induzir um processo acelerado espontneo de desenvolvimento das FP, mas a revoluo poltica abriu caminho para a sua promoo planejada.

    4) Por esta razo, uma vez que a nova classe detentora do poder de Estado, ao abolir a propriedade privada, aboliu o mercado como regulador do trabalho social e criou as

    condies para instituir o planejamento integrado da produo e da distribuio, e por extenso o desenvolvimento planejado das FP e das RP. Ou seja, o desenvolvimento social espontneo foi substitudo pelo intencional. Todavia, como j foi notado, intencional no significa arbitrrio, pois continua submetido s leis de movimento da sociedade, com as quais

    45 Este exemplo prtico setorial da coerncia da relao FP/RP: a instituio imediata da forma coletiva da

    propriedade, isto , de relaes de produo socialistas, foi impossvel devido ao baixo nvel de desenvolvimento das foras produtivas na agricultura russa.

  • os seus objetivos devem ser compatveis. Isto implica que, em uma sociedade como a russa, com fraco desenvolvimento das FP, a possibilidade da instituio efetiva de RP socialistas

    depende de que as FP sejam desenvolvidas at o nvel j alcanado pelas FP capitalistas mais avanadas existentes nos pases do centro capitalista, uma vez que estas j se encontravam em transio, isto , em contradio com a forma jurdica capitalista da propriedade, o que significa que j continham formas materiais socialistas de apropriao. O surgimento desta contradio estaria refletida no carter das lutas de classes em curso a partir de 1848. Sendo assim, seria necessrio elevar as FP da Rssia ao nvel mais avanado atingido no capitalismo, para que, a partir da, se desenvolvessem as novas FP socialistas e as correspondentes relaes materiais de produo. Da o processo acelerado de industrializao e de mecanizao e coletivizao da agricultura.

    5) O desenvolvimento intencional das foras produtivas, no entanto, teria que depender da importao de meios de produo dos pases capitalistas avanados, uma vez que no havia outra fonte. Isto implicou uma contradio. O fato de serem foras produtivas em transio, no interior do modo de produo capitalista, implica que no haviam ultrapassado os limites impostos pela forma jurdica da propriedade privada capitalista. Por isto parece lcito dizer que, juntamente com os meios de produo, importava-se RP capitalistas, refletidas na diviso do trabalho manual/intelectual e de direo/execuo embutida na arquitetura destes meios de produo, porque condicionada pela primazia dos interesses privados. Isto decorre da lgica exposta, uma vez que as RP so derivadas do grau de desenvolvimento das FP.

    6) Uma crtica frequente a estas polticas da URSS acusa a industrializao l promovida de simplesmente copiar os padres produtivos capitalistas, com o que introduziu todos os

    males causados aos trabalhadores pelo prprio capitalismo. Se esta crtica implica que as FP capitalistas no deveriam ter sido importadas, isto no parece procedente, uma vez que no havia outras FP disponveis, e FP socialistas s poderiam ser geradas com base no nvel mais avanado atingido pelas FP nos pases centrais do capitalismo, pois estas encontravam-se em transio, fato que constitura a base objetiva da emergncia da luta pelo socialismo.

    7) Destas consideraes decorrem duas implicaes relevantes, referentes ao carter das relaes sociais. Em primeiro lugar, a relao FP/RP proposta pela teoria sugere que o rpido desenvolvimento de FP capitalistas traria consigo relaes materiais de produo capitalistas mesmo que j em transio , a despeito da vigncia da forma jurdica socialista da propriedade. Segundo o princpio materialista de que o ser social produz a conscincia social, o efeito do desenvolvimento de FP capitalistas seria a gerao de elementos da conscincia capitalista, o que requereria uma poltica

  • especfica de neutralizao. Em segundo lugar, se o desenvolvimento social podia deixar de ser espontneo e passar a ser intencional, graas teoria agora disponvel, teria que esr assumido por toda a sociedade e no apenas pelos dirigentes do processo, o que tambm requereria uma poltica especfica.

    8) Por ltimo, o fato de que, aps a revoluo poltica, o desenvolvimento das FP ter que ser intencional, no significa que se poder planejar a natureza e a configurao que tero as foras produtivas especificamente socialistas, uma vez que estas resultaro, aps um lapso de tempo que no pode ser previsto, das linhas de evoluo imprevisveis gradualmente indicadas pelo prosseguimento do processo de aprendizado paralelo ao processo produtivo. Este

    aprendizado continuar constituindo uma contnua incurso no desconhecido.