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As tendências de longo prazo da economia capitalista e a transição para o socialismo
Claus M. Germer∗
1. Introdução
A análise deste tema é oportuna em um momento em que o capitalismo se considera triunfante e os
críticos do capitalismo, mesmo no campo do marxismo, vacilam na afirmação do caráter
historicamente passageiro do presente modo de produção ou jogam para um futuro remoto e incerto
a possibilidade da transição para o novo modo de produção, o comunismo.
Uma das principais críticas feitas por Marx à teoria econômica burguesa (a Economia Política
clássica, na sua época, cujo caráter científico reconhecia) foi o seu caráter a-histórico, isto é, o fato
de não reconhecer a natureza passageira do capitalismo. Atualmente, no campo do marxismo, isto é
geralmente reconhecido, mas, ao contrário de Marx, parece ser aplicado, na análise teórica,
praticamente apenas ao passado, principalmente como análise do processo de gênese do capitalismo
no interior do feudalismo. Raramente é aplicado à tentativa de identificar o processo corrente de
gestação dos elementos que emergem no interior do capitalismo e que apontam para a sua
superação, na forma de elementos constitutivos de um novo modo de produção. Um esforço neste
sentido não se confunde com a tentativa de prever o futuro ou elaborar receitas sobre a forma
concreta que deveria assumir o novo modo de produção. O de que se trata é de procurar identificar
os elementos emergentes deste no interior do capitalismo.
Uma tentativa deste tipo não é uma empresa fácil, uma vez que a evolução social está sendo tecida
cotidianamente, por intermédio da atividade de milhões de indivíduos e grupos de indivíduos
agindo sem coordenação consciente, portanto sem um objetivo comum conhecido. As mudanças
meramente incrementais podem ser previstas até certo ponto, mas apenas para o futuro próximo,
uma vez que são mera extrapolação da situação vigente, que é conhecida. Mas as mudanças que
implicam saltos qualitativos dificilmente podem sê-lo. O desenvolvimento da manufatura, a partir
de meados do século 16, é um exemplo deste tipo. No início daquele século, quando a produção
∗ Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná.
artesanal era a forma vigente da produção industrial, nada permitia prever o surgimento e a difusão
da produção manufatureira, algumas décadas depois, cujas condições de emergência estavam,
porém, sendo gestadas a partir de diferentes pontos da sociedade, mas cuja combinação em um
processo de convergência para o que viria a ser a manufatura era imperceptível a qualquer
observador. Do mesmo modo, durante o domínio da produção manufatureira, nada permitia antever
o desenvolvimento da indústria mecanizada a partir dela.
Sendo assim, como é possível antecipar uma mudança qualitativa tão significativa quanto a natureza
do modo de produção que tomará o lugar do capitalismo? Ou seja, como é possível identificar o
comunismo como o novo modo de produção? O objetivo desta exposição é retomar os fundamentos
teóricos que tornam isto possível.
Uma correlação de forças de classes extremamente desfavorável ao socialismo, principalmente nas
últimas três décadas, parece ter produzido uma forte desmotivação para o estudo do processo de
transição em curso e até mesmo uma certa descrença de que isto esteja ocorrendo. Como
consequência, são escassas as análises que sintetizam os abundantes dados e informações que
identificam o curso deste processo. O objetivo deste artigo não pode, portanto, ir além da retomada
dos fundamentos teóricos da existência deste processo e da indicação de algumas evidências mais
gritantes da sua realização.
2. A teoria dos modos de produção
Não há dúvida de que Marx e Engels consideravam possível antever pelo menos as características
fundamentais do modo de produção – o comunismo – que sucederia o capitalismo. Marx não só
referiu-se ao novo modo de produção em numerosas passagens da sua obra, como pretendia dedicar
um volume do O Capital a este tema, intenção que, lamentavelmente, não pode realizar. Rosdolsky,
citando os Grundisse, esclarece que, “segundo o plano original de Marx, o último volume da sua
obra deveria encerrar-se com o exame dos momentos que apontam ‘para além do que está
pressuposto’ e que ‘pressionam pela emergência de uma nova forma histórica’ da sociedade. Este
volume deveria ocupar-se, portanto, com a análise da ‘dissolução do modo de produção e da forma
de sociedade baseados no valor de troca’ e da sua transição para o socialismo” (Roskolsky, p. 486).
Prossegue o mesmo autor: como resultado da análise de Marx “o socialismo já não aparecia como
um mero ideal, mas como uma fase necessária do desenvolvimento da humanidade, para a qual
tende a história decorrida até hoje, de modo que só se poderia falar da futura forma socialista da
sociedade, na medida que embriões visíveis desta futura sociedade pudessem ser descobertos na
história decorrida e suas tendências de desenvolvimento” (Ibidem, p. 487).
Isto significa que a transição para um novo modo de produção inicia-se quando elementos do
mesmo começam a desenvolver-se no interior do modo de produção vigente. Um pouco de reflexão
é suficiente para indicar que esta é uma condição indispensável à possibilidade da passagem a um
novo modo de produção1. Sendo assim, os elementos emergentes e constitutivos do modo de
produção que se seguirá ao capitalismo devem poder ser observados no interior da sociedade
capitalista atual.
Deve-se notar que, para que embriões visíveis da sociedade futura possam ser encontrados no
interior do capitalismo atual, são necessários critérios capazes de indicar quais seriam os fenômenos
que constituem embriões da sociedade futura. Tais critérios só podem ser derivados das leis que
presidem a evolução do capitalismo. É preciso, portanto, identificar estas leis, função que cabe à
ciência. O que se necessita, por conseguinte, é que a sociedade capitalista seja analisada segundo o
método científico usual, isto é, procurando identificar as leis que presidem o seu funcionamento e
sua evolução, a partir dos fatores materiais que objetivamente a condicionam, e sem a intervenção
da intencionalidade humana. Como Marx esclareceu no prefácio ao primeiro volume do O Capital,
tratava-se nesta obra de identificar as “leis naturais da produção capitalista. (...) [as] tendências que
atuam e se impõem com necessidade férrea”, ou seja, “descobrir a lei econômica do movimento da
sociedade moderna”, que é a sociedade capitalista. (Marx, OCI, p. 12). O método desenvolvido por
Marx e Engels para investigar o processo de desenvolvimento da sociedade humana, é o
materialismo histórico, que consiste na aplicação do materialismo filosófico e da dialética à análise
da sociedade humana. Ao contrário do que se possa crer, o materialismo é a filosofia na qual se
baseia, consciente ou inconscientemente, a moderna pesquisa científica burguesa no campo das
1 Segundo Marx, “...relações de produção novas e superiores nunca se instalam antes que as condições de existência materiais das mesmas tenham sido geradas no próprio seio da velha sociedade” ( Marx, Contribuição, cit., p. 25).
ciências naturais2. Sendo assim, se a ciência é materialista em todos os campos, segue-se que a
análise científica da sociedade requer igualmente uma abordagem materialista.
Mas a possibilidade de analisar o movimento da sociedade capitalista depende crucialmente de se
ter identificado as leis que presidem a evolução da sociedade humana em geral, isto é, as leis que
movem a ação do ser humano como tal e, mais especificamente, aquelas que presidem a transição
de um modo de produção a outro. As tendências a serem observadas na evolução do capitalismo
nada mais são do que manifestações da operação destas leis gerais. Sem elas seria impossível saber
quais fenômenos deveriam ser observados como indicadores do processo de transição. O
estabelecimento destas leis foi realizado por Marx e Engels nas suas obras iniciais, de cunho
eminentemente metodológico, com destaque para a ‘A ideologia alemã’ e o prefácio da
‘Contribuição à crítica da economia política’. Marx e Engels pretenderam analisar a evolução da
humanidade cientificamente, isto é, sem atribuí-la a entes fantásticos ou a inspirações geniais de
grandes personagens. Nestas obras identifica-se o desenvolvimento das forças produtivas como o
fator material responsável pelo desenvolvimento da sociedade humana em geral, e a contradição
entre as forças produtivas e as relações sociais de produção como o fator responsável pelo
desenvolvimento das lutas de classes que conduzem à transição de um modo de produção a outro.
Deste modo, a identificação das tendências de evolução das forças produtivas e da contradição entre
estas e as relações de produção, em determinado modo de produção, permite antecipar as
características fundamentais do modo de produção seguinte. Deve-se ter em mente que as relações
de produção expressam-se na forma jurídica da propriedade ou da apropriação. Portanto, é
necessário observar a emergência de novas formas materiais de apropriação, conflitantes com a
forma vigente e sua expressão jurídica. Por outro lado, esta contradição desencadeia uma reação por
parte da classe proprietária vigente, na tentativa de controlar e/ou deter o desenvolvimento das
novas forças produtivas e da nova forma material de apropriação que lhe corresponde3. A existência
destas reações acrescenta-se ao observador como outro indicador da intensidade da contradição
mencionada.
2 Na filosofia não marxista das ciências naturais atuais isto é amplamente reconhecido: “Materialism is now the dominant systematic ontology among philosophers and scientists, and there are currently no established alternative ontological views competing with it” (Moser and Trout, p. ix). 3 Uma exposição detalhada da teoria da transição entre modos de produção, elaborada por Marx e Engels, encontra-se em Germer, 2009.
Não se pode de imediato dizer se as mudanças mais facilmente observáveis são as que se dão nas
relações de produção ou nas forças produtivas, embora estas sejam a causa daquelas. Os
desenvolvimentos técnicos dos meios de produção ocorrem no interior das unidades produtivas,
longe das vistas da maioria da população e mesmo de observadores atentos, enquanto as mudanças
nas relações de produção, que se dão entre indivíduos que circulam na sociedade como portadores
de uma nova relação social, tornam-se por este motivo mais facil e rapidamente percebidas. Por
outro lado, porém, importantes desenvolvimentos técnicos nos meios de transporte, que são também
elementos das forças produtivas, e que desempenharam papel importantíssimo no impulso ao
desenvolvimento das novas forças produtivas e relações de produção como um todo em diversas
fases da evolução da humanidade, principalmente nas mais recentes, são mais fácil e extensamente
percebidas. Finalmente, deve-se notar que não há leis que permitam antever as direções dos
desenvolvimentos técnicos e a natureza dos saltos qualitativos que caracterizam a emergência de
forças produtivas portadoras de mudanças cruciais. Sendo assim, parece que os melhores
indicadores da emergência do novo modo de produção no capitalismo são as mudanças nas relações
de produção e a explicitação do seu conflito com a forma jurídica vigente da propriedade. Se as
relações de produção mudam, é porque as forças produtivas estão mudando4.
Deste modo torna-se possível a identificação do processo em curso de constituição de uma realidade
social futura, antes que esta tenha se materializado. Esta possibilidade depende de se poder antever,
pelo menos em suas linhas gerais, o formato da realidade futura, que depende, por sua vez, de ser
possível extrair, da análise do processo evolutivo atualmente em curso, as tendências evolutivas
essenciais e a sua convergência em direção a uma transição determinada.
O resultado da análise de Marx está sintetizado na lei geral da acumulação capitalista (OCI, cap.
23), e pode ser assim enunciado: na sociedade capitalista os produtores são independentes e
concorrem uns com os outros pela sobrevivência como produtores. A concorrência conduz à
elevação contínua da composição orgânica do capital e à centralização crescente dos capitais, isto é,
à absorção dos capitais menores pelos maiores e à proletarização dos menores capitalistas e demais
produtores porventura existentes. Da centralização crescente decorrem duas tendências: a primeira é
a polarização crescente da população em duas classes: a classe capitalista, cujo número diminui
4 Segundo Marx, “...relações de produção novas e superiores nunca se instalam antes que as condições de existência materiais das mesmas tenham sido geradas no próprio seio da velha sociedade” ( Marx, Contribuição, cit., p. 25).
gradualmente, por um lado, e a classe dos trabalhadores assalariados, que tende a absorver o
restante da população, ou seja, a maioria, por outro. A segunda tendência é o crescimento contínuo
das escalas dos capitais individuais e a correspondente expansão do caráter social do trabalho, com
contingentes cada vez maiores de trabalhadores trabalhando combinadamente em regime de
cooperação técnica. Finalmente, com o advento e difusão da sociedade anônima, os capitalistas são
substituídos por trabalhadores assalariados nas funções de direção nas esferas da produção e da
distribuição dos produtos do trabalho. Todas estas tendências realizaram-se plenamente após a
publicação do O Capital, mesmo aquelas que, à época, ainda não haviam se manifestado
claramente, como é o caso da difusão da sistema de crédito, da sociedade anônima e da
centralização geral dos capitais.
Desta síntese decorrem as evidências a serem procuradas na evolução do capitalismo até este
momento: por um lado, as evidências sobre o processo de polarização social entre capitalistas e
assalariados; por outro lado, as evidências de uma tendência ainda inexistente quando da elaboração
do O Capital, mas implícita no processo de centralização, que é a progressiva substituição do
mercado pelo planejamento da atividade econômica, tanto ao nível dos capitais individuais quanto
do capital global.
3. Os elementos fundamentais do comunismo no interior do capitalismo
Entre as referências feitas por Marx ao comunismo, encontra-se frequentemente a expressão
‘sociedade de produtores associados’. O conceito de ‘produtores associados’, cuja base é a
propriedade comum dos meios de produção, opõe-se ao de ‘produtores independentes em
concorrência’, cuja base é a propriedade privada dos meios de produção. É clara nos textos de Marx
a indicação de que o comunismo baseia-se na propriedade comum ou coletiva dos meios de
produção. A propriedade comum implica, logicamente, que a gestão dos meios de produção é
também comum e unificada, significando que o conjunto deles é gerido como uma totalidade, ou
seja, há planejamento global unificado da produção e da distribuição. Pode-se dizer, por
conseguinte, que os dois componentes fundamentais do comunismo são a propriedade comum dos
meios de produção, por um lado, e o planejamento integrado ou global da produção e da
distribuição, por outro.
Ora, o novo modo de produção somente se torna possível na medida que os seus componentes
fundamentais estejam desenvolvidos a um ponto que se possa considerar suficiente, uma vez que
eles constituem o fundamento material do desenvolvimento da classe social portadora do projeto do
novo modo de produção, projeto este que nada mais é que a expressão das exigências objetivas dos
componentes já desenvolvidos do mesmo5. Ou seja, a transição para o comunismo requer que se
desenvolva previamente, no interior do capitalismo, uma classe cujo destino depende desta
transição, e uma tal classe só pode desenvolver-se caso a apropriação coletiva dos meios de
produção se desenvolva também previamente, em estado embrionário, no interior do capitalismo.
Isto lembra a máxima de Marx, segunda a qual a sociedade somente se propõe um problema quando
as condições materiais para a sua solução já estão presentes. Sendo assim, pode-se dizer que as duas
tendências de longo prazo fundamentais do capitalismo são a progressiva emergência da
propriedade comum dos meios de produção, por um lado, e do planejamento global da produção e
da distribuição, por outro. Consequentemente, estas duas tendências devem poder ser observadas no
processo objetivo de desenvolvimento do capitalismo.
4. A emergência da propriedade coletiva dos meios de produção
A afirmação de que os componentes do comunismo devem desenvolver-se até um ponto
significativo no interior do capitalismo não significa que se pretenda que estes se manifestem
abertamente como tais, de modo explícito. Assim, a emergência da propriedade comum no interior
do capitalismo não pode ser entendido como a difusão desta nova forma de propriedade
explicitamente como propriedade comum, de todo o povo. Isto nem poderia ocorrer, uma vez que a
forma jurídica geral da propriedade dos meios de produção é a propriedade privada. Sendo assim,
dada a dominância desta, é óbvio que a propriedade coletiva não pode desenvolver-se a não ser
como uma forma encoberta da propriedade privada. O mesmo deu-se na transição do feudalismo
para o capitalismo, na qual o capitalista desenvolveu-se na forma de arrendatário do nobre feudal,
ou seja, como uma espécie de vassalo de novo tipo, tanto da agricultura como na manufatura.
Parece legítimo sugerir que a propriedade comum pode desenvolver-se de duas maneiras no
capitalismo, por um lado de maneira positiva, isto é, como propriedade efetivamente existente, mas
5 “A existência de idéias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária” (Marx e Engels, Feuerbach, cit., p. 68). Ver também Germer (2009).
em forma encoberta pela propriedade privada; por outro lado de maneira negativa, isto é, como
processo de progressiva redução do âmbito de existência da propriedade privada.
4.1. A propriedade comum dos meios de produção como forma encoberta pela propriedade
privada
Segundo Marx, a propriedade comum dos meios de produção desenvolve-se, no capitalismo, sob as
formas da sociedade por ações ou sociedade anônima, e das fábricas-cooperativas6 (Marx, O
Capital, III/1, p. 332-5). É significativo que estas últimas, em contraste com a sociedade anônima,
nunca se tenham expandido, o que se explica pelo fato de constituírem uma forma explicitamente
comum de propriedade dos meios de produção, por parte de não-proprietários convertidos
diretamente em proprietários comuns, e não como forma socializada da propriedade privada, em
âmbito limitado, como é caso da sociedade anônima. Segundo Marx,
“As empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricas-cooperativas devem ser consideradas
formas de transição do modo de produção capitalista ao modo associado, só que, num caso a antítese
é abolida negativamente e, no outro, positivamente” (OC, III/1, p. 335).
A sociedade anônima representa, para Marx, a forma extrema da produção capitalista como forma
embrionária da propriedade comum. Ou seja, é a propriedade comum sob a aparência da
propriedade privada. Em carta a Engels, de 2 de abril de 1858, Marx define a sociedade anônima de
modo radical, como “a forma mais perfeita (que desemboca no comunismo), com, ao mesmo
tempo, todas as suas contradições” (Marx e Engels, 1974, p. 77). Coerentemente, quase dez anos
depois, ao redigir o livro III do O Capital, a define como “a abolição do capital como propriedade
privada, dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista” (OC, III/1, p. 332).
Assim, a sociedade anônima constitui uma socialização dos meios de produção, embora no âmbito
limitado da própria classe capitalista. Deste modo, a propriedade comum desenvolve-se
amplamente como derivação da propriedade privada, assim como a propriedade privada capitalista
desenvolveu-se amplamente no interior do feudalismo, como forma derivada da propriedade feudal.
Com efeito, atualmente a sociedade anônima apresenta-se como a forma típica e mais geral da
6 Sobre o papel das fábricas-cooperativas na teoria de Marx, consultar Germer, 2006.
empresa capitalista (Scott, 1986). Como consequência disto, como regra geral estas empresas
deixam de ser geridas, em qualquer proporção, por capitalistas, para serem geridas por gerentes
especializados assalariados. Na medida que a sociedade anônima se converte na forma geral da
empresa capitalista, a classe capitalista está afastada da gestão direta da produção e da distribuição,
sendo portanto dispensável do ponto de vista da reprodução social, apresentando-se crescentemente
como uma classe parasitária, tal como se apresentava a nobreza feudal na fase terminal do
feudalismo. Ao mesmo tempo, a gestão efetiva dos meios de produção passa às mãos de uma
hierarquia de gerentes e especialistas assalariados. Embora agentes diretos de capitalistas, são
integrantes da classe dos não-proprietários de meios de produção, o que significa que, na medida
que a sociedade anônima torna-se dominante, a gestão real dos meios de produção do capitalismo
transfere-se das mãos da classe capitalista às mãos da classe oposta. O desenvolvimento da
sociedade anônima constitui, portanto, um momento do processo histórico de transferência da
gestão dos meios de produção para uma nova classe de proprietários coletivos dos meios de
produção sociais.
Ao longo do século 20 a emergência da propriedade comum deu mais alguns passos significativos.
Por um lado, nos países capitalistas, ingressaram na cena econômica a propriedade e a gestão
estatais diretas de meios de produção, principalmente a partir da grande depressão dos anos 30 e
aprofundando-se após a II Guerra Mundial, de modo que o Estado assumiu importantes funções
diretas no processo global de reprodução do capital. Embora o Estado represente a classe capitalista,
a sua intervenção direta na economia amplia consideravelmente o processo de socialização em
relação ao representado pela sociedade anônima, uma vez que o vínculo direto do Estado ao capital
está oculto pela sua representação como poder acima das classes. Deve-se também ressaltar o fato
de que a direção das sociedades anônimas é eleita pela sociedade dos acionistas, enquanto a direção
do Estado é eleita pela sociedade dos eleitores.
Por outro lado, o socialismo como forma de organização da sociedade fez sua aparição histórica,
embora apenas na periferia do capitalismo, mas em dimensões geográfica e populacional
significativas. A abolição da propriedade privada e sua substituição pela propriedade comum
converteram-se em realidade, embora ainda caracterizando uma fase de transição e sendo
interrompida como consequência de contradições internas e externas.
A propriedade estatal, tanto nos países capitalistas quanto nos socialistas, vista em perspectiva
histórica, constitui um passo decisivo no processo de desenvolvimento dos elementos do
comunismo no interior do capitalismo como sistema mundial, e no processo histórico de transição
do capitalismo ao comunismo. Nos países capitalistas, a propriedade comum, que até então se
apresentava apenas na forma da sociedade anônima, encoberta sob a aparência da propriedade
privada, e representando uma socialização limitada à classe capitalista, converte-se explicitamente,
embora apenas formalmente, em propriedade comum de todo o povo. Na empresa estatal a forma de
sociedade anônima é inicialmente apenas uma ficção jurídica, uma vez que o Estado detém a quase
totalidade das ações. Posteriormente, como reação burguesa à atuação do Estado como produtor
direto, a venda pública de ações e o controle de empresas estatais por acionistas privados procuram
encobrir o caráter público das empresas estatais que escaparam da onda de privatizações do período
iniciado nos anos 1980. A diluição da participação acionária do Estado nas empresas estatais toma
ainda a forma de uma associação de capitalistas, que, no entanto, mal encobre a realidade da
socialização capitalista de parte dos meios de produção nos países capitalistas mais avançados.
Independentemente das vicissitudes das experiências socialistas ao longo do século 20, constituem
elas momentos do processo histórico de gestação do comunismo, experiências de gestão unificada
da produção e da distribuição, baseada na propriedade comum dos meios de produção por toda a
sociedade, abolidas a propriedade e a gestão privadas7. Pode-se dizer ‘independentemente das
vicissitudes’, porque os processos objetivos, materiais, movem-se com a força irresistível das leis
da natureza, como dizia Marx, mesmo que os indivíduos e as classes, que colocam tais processos
em movimento, não compreendam o sentido histórico do que fazem, oculto sob o manto muitas
vezes espesso das suas contradições.
4.2. A polarização crescente entre proprietários e não-proprietários de meios de produção: a
extinção da propriedade privada
A propriedade comum dos meios de produção também se desenvolve pelo seu negativo, isto é, pela
expropriação de uma proporção crescente da população de qualquer propriedade. A expropriação de
7 É interessante notar que os críticos de esquerda das experiências socialistas do século 20 concentram-se na acusação de que a socialização dos meios de produção teria se reduzido à mera estatização, em contraste com a esperada e verdadeira socialização. Concentram-se em um aspecto, mesmo que relevante, mas, na medida que esquecem a contradição presente em todos os processos sociais, vulgarizam a sua crítica ao ignorarem o significado histórico destas experiências.
um proprietário implica a sua conversão em não-proprietário e, de modo geral, em trabalhador
assalariado. Deste modo, a progressiva extinção da propriedade privada pode ser avaliada pelo
crescimento da proporção dos não-proprietários, isto é, dos assalariados na população8.
Este processo tem se realizado consistentemente, indiferente às contestações tendenciosas dos
críticos do marxismo. Com efeito, a proporção da classe dos trabalhadores assalariados na
população total tem crescido sistematicamente nos países capitalistas. Nos mais adiantados, como
por exemplo os EUA, os assalariados já ultrapassam os 90% da população (Schneider, 1976, p. 317;
OIT, para dados atuais). No Brasil, segundo o censo demográfico de 2000, os assalariados somam
cerca de 75% da população total, e entre eles o proletariado propriamente dito (industrial e
comercial/bancário) constitui cerca de 52% da população total (IBGE). Em todo o mundo, segundo
estimativa de Bensaïd, a proporção da classe de trabalhadores assalariados aumentou de cerca de
5% no início do século 20, a cerca de 33% no início do século 21 (Bensaïd, 2001).
A classe capitalista, em contrapartida, nunca representou uma proporção significativa da população,
o que é comum a todos os modos de produção baseados na propriedade privada. No Brasil, ainda
segundo o censo demográfico de 2000, a classe capitalista (empregadores, segundo o Censo) conta
menos de 3% da população. Segundo estimativa de Labini, nos anos 1970, referente a alguns dos
países capitalistas mais desenvolvidos, em nenhum deles a classe capitalista contava mais de 5% da
população (Labini, 1983). É curioso constatar que mesmo autores que se dizem marxistas dispõem-
se a admitir que a luta pelo socialismo perde a sua legitimidade porque o ‘proletariado’, definido
tendenciosa e restritamente como proletariado fabril, representa supostamente uma proporção
‘decrescente’ da população, mesmo assim em torno dos 20%, com o que admite, impliciticamente,
que uma classe – a burguesia –, que nunca ultrapassa os 5% da população, mantenha seu domínio
absoluto em um sistema baseado no monopólio dos meios de produção sociais e na exploração
desenfreada da força de trabalho da imensa maioria da população.
8 “Horrorizais-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade
privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusais-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade” (Marx e Engels, s/d, p. 33). O número parece exagerado, talvez por terem os autores incluído os pequenos camponeses, maioria da população à epoca, entre os excluídos da propriedade, entendida provavelmente como a propriedade especificamente capitalista, utilizando trabalhadores assalariados. Em importante obra posterior, Marx afirma que “o ‘povo trabalhador’ compõe-se, na Alemanha, na sua maioria de camponeses e não de proletários” (Marx, 1875).
Note-se que, no caso das transições anteriores, entre modos de produção baseados na propriedade
privada, o desenvolvimento das forças produtivas dava origem a uma nova forma privada de
apropriação dos meios de produção, base de uma nova classe proprietária privada, que se tornaria
dominante no novo modo de produção. Na transição do capitalismo ao comunismo, ao contrário, o
desenvolvimento das forças produtivas não dá origem a uma nova forma de apropriação privada. O
que cresce persistentemente, ao contrário, é a não-propriedade, ou seja, a privação da propriedade
privada, forma negativa da propriedade comum em desenvolvimento. Como resultado das leis de
movimento do próprio capitalismo, como se indicará adiante, expande-se o caráter social da
produção, isto é, o seu caráter cooperativo geral; expande-se a interconexão técnica entre as
unidades independentes de produção e distribuição; cresce a contradição entre este caráter social da
produção e a manutenção da apropriação privada por uma minoria, de modo que o caráter privado
da apropriação entra crescentemente em conflito com a destinação social da produção.
5. A emergência do planejamento da economia
À propriedade comum ou coletiva dos meios de produção corresponde a sua gestão comum ou
coletiva, isto é, o planejamento integrado e global da produção e da distribuição dos produtos do
trabalho social, substituindo o mercado. Sendo esta uma característica fundamental do comunismo,
deve-se esperar que o planejamento da atividade econômica também se desenvolva, de modo
perceptível e em escala crescente, no interior do próprio capitalismo. Quando se fala em
planejamento econômico, isto geralmente se refere ao planejamento realizado pelo Estado. De fato,
o desenvolvimento do planejamento da economia pelo Estado, em graus variáveis de abrangência,
em todos os países capitalistas, é evidente ao longo do século 20. No entanto, o planejamento
econômico não se restringe ao Estado. Embora o Estado seja uma instituição política da classe
proprietária, e embora o planejamento estatal tenha sido e continue sendo relevante, do ponto de
vista da transição para o comunismo, é essencial que o planejamento se desenvolva, principalmente,
como elemento do funcionamento corrente da economia, isto é, como elemento da dinâmica do
capital, individual e coletivamente. No momento da revolução política, é necessário que a estrutura
básica do planejamento já esteja constituída no próprio coração do movimento do capital.
Juntamente com a abolição, na prática, da propriedade privada dos meios de produção para a
maioria da população, à medida que o capitalismo se desenvolve, o planejamento da produção e da
distribuição deve também desenvolver-se espontaneamente e deve estar constituído no momento da
transição política.
Com efeito, a observação mais rigorosa permite constatar que o planejamento da economia surge e
se desenvolve sob duas formas e não apenas uma: por um lado o planejamento ao nível da
economia como um todo, realizado pelo Estado e, por outro lado, e mais importante, o
planejamento ao nível dos capitais individuais. Ambos emergem como emanação direta do
crescente caráter monopolista do capitalismo, isto é, constituem uma característica do imperialismo,
entendido como fase estrutural do capitalismo. Não é casualidade que a gradual substituição do
mercado pelo planejamento, ao nível das empresas, tenha começado a desenvolver-se no último
quarto do século 19, e que o planejamento estatal da economia tenha começado a desenvolver-se no
século 20, a partir da grande depressão iniciada em 1929.
Sendo assim, deve-se distinguir duas modalidades de planejamento econômico: o planejamento na
esfera do capital privado, que se pode denominar planejamento econômico privado, e o
planejamento econômico na esfera do Estado, que se pode denominar planejamento econômico
estatal.
5.1. O planejamento global da produção e da distribuição
O planejamento econômico pelo Estado desenvolveu-se, no século 20, em dois aspectos: por um
lado nos países capitalistas, como evolução das contradições do próprio capitalismo e, por outro
lado, nos países socialistas, como momento da transição ao socialismo. Ambos os processos estão
mergulhados em contradições específicas, mas o que sobressai é o seu significado no processo
histórico do desenvolvimento social
A força irresistível dos processos sociais objetivos pode ser ilustrada pelo fato de que, durante o
século 20, a própria burguesia foi autora de audaciosos experimentos de planejamento global sob
condições capitalistas. A superação da assustadora crise econômica desencadeada pelo colapso da
bolsa de Nova Iorque, em 1929, foi em grande parte obra da intervenção direta do Estado capitalista
na gestão da economia. A ação planejada do Estado aprofundou-se durante a II Guerra Mundial: nos
EUA, país hegemônico do capitalismo, a economia foi colocada sob o controle direto do Estado
durante toda a guerra. A produção industrial foi convertida em produção militar. Como exemplo
paradigmático pode-se citar a proibição da fabricação de automóveis de passeio pela indústria
automobilística e a destinação total da sua atividade à produção de veículos militares de todos os
tipos. O mesmo ocorreu na indústria da aviação e em todas as demais. Os investimentos, os preços,
o crédito, etc., passaram a ser administrados diretamente pelo Estado. O mercado entrou
temporariamente em recesso. A própria classe capitalista aboliu temporariamente as sagradas leis
do mercado, não porque lhe agradasse, mas porque agia sob a compulsão de uma realidade objetiva
irresistível.
No processo de descolonização, que se seguiu ao fim da II GM, o planejamento do
desenvolvimento, pelo Estado, e não o mercado, tornou-se o mecanismo central da promoção do
crescimento econômico das ex-colônias. Mesmo nos países capitalistas mais atingidos pela guerra o
planejamento econômico explícito tornou-se regra: a França e o Japão, por exemplo, elaboraram
planos quinquenais de desenvolvimento até os anos 60 e 70, respectivamente.
No entanto, o planejamento econômico estatal, no capitalismo, como não poderia deixar de ser,
substituiu o mercado apenas parcial e temporariamente, e não substituiu a propriedade privada dos
meios de produção. Mas constitui um sintoma da emergência da propriedade social no interior do
sistema da propriedade privada capitalista. Constitui ainda um sintoma de que o mercado é incapaz
de continuar assegurando a reprodução normal da economia, exigindo a intervenção de um poder
regulador não mercantil, que é o Estado, que deve ser entendido como embrião de uma autoridade
social como gestora global na economia no socialismo. Dado o seu caráter não mercantil, o
planejamento econômico estatal reflete o crescimento da propriedade social e entra em choque com
a propriedade privada. Segundo a tese de Marx, de que a classe proprietária dominante reaje aos
desenvolvimentos das relações de produção que refletem uma nova forma objetiva de apropriação e
se opõem, portanto, à propriedade privada, era de esperar que o planejamento econômico estatal,
nos países capitalistas, entrasse em choque com os interesses da classe proprietária, a burguesia, e
que esta tudo fizesse para bloquear e mesmo abolir o planejamento estatal. Efetivamente, o
chamado neoliberalismo pode ser reduzido a uma grande ofensiva da burguesia mundial contra o
planejamento econômico estatal, imposto pelas circunstâncias dramáticas da crise geral dos anos
1930 e pelos imperativos do pós-II Guerra Mundial.
É oportuno notar que já é impossível impedir a interferência direta e ampla do Estado se não no
planejamento, pelo menos no direcionamento da economia, por diversas vias. A receita pública
absorve atualmente, nos países capitalistas avançados, em torno de 40% do PIB. Por um lado esta
receita converte-se em despesas, que movem uma proporção importante da economia; por outro
lado, a forma da arrecadação e os canais bancários e financeiros que esta volumosa receita percorre
convertem-se em outros tantos meios através dos quais o Estado influencia o destino de empresas,
ramos de atividade, regiões, etc. Adicionalmente, a centralização do sistema bancário sob a
coordenação do banco central fornece ao Estado um poderoso meio de influenciar a economia por
intermédio da regulação do crédito e do câmbio. Todas estas formas de intervenção do Estado não
devem, porém, ser encaradas como se estivesse ao alcance do Estado determinar características
essenciais da economia, sujeita que está esta, e o Estado por seu intermédio, às leis de movimento
do capital. Mas a proporção da renda que passa pelo Estado, assim como os fluxos de dinheiro, de
crédito e de transações internacionais, que se centralizam no banco central, fornecem ao Estado
meios de intervir na relização destas leis dentro de certos limites.
As iniciativas estatais no sentido de conter o processo de centralização do capital, por intermédio
das chamadas leis anti-truste e outras, podem ser interpretadas como uma reação da classe
capitalista representada pelo Estado ao desenvolvimento das forças produtivas, na medida que a
centralização acelera o aumento das escalas de produção e da produtividade do trabalho e reduz o
âmbito da concorrência, ameaçando a supremacia do mercado. A relativa ineficácia destas leis
apenas reflete a impossibilidade de bloquear definitivamente o avanço inexorável do
desenvolvimento das forças produtivas. As leis sobre direitos autorais atuam no mesmo sentido, na
medida que procuram conter a velocidade de difusão do progresso técnico e a erosão da
concorrência. O mesmo se pode dizer das leis que, nos países capitalistas mais avançados,
bloqueiam o avanço do processo de centralização do capital na agricultura9.
5.2. O planejamento ao nível das empresas
9 Em diversos países europeus ocidentais e em diversos Estados dos EUA, há leis que limitam o tamanho da propriedade da terra agrícola. Nos EUA há também uma proibição legal ao estabelecimento de sociedades anônimas na agricultura. Estas e outras leis de mesmo sentido constituem sem dúvida obstáculos opostos pelo Estado burguês ao desenvolvimento das forças produtivas. É interessante notar que a motivação, neste caso, é a manutenção de uma pequena-burguesia conservadora no meio rural, como uma barreira ao avanço da luta pelo socialismo na agricultura (Germer, 2006, p. 53-55).
Nas últimas décadas do século 19 o capitalismo experimenta um conjunto de transformações que o
elevam a uma nova fase, o imperialismo (Lênin, 1979, p. 594). O imperialismo, segundo Lênin,
não é uma política, mas uma fase estrutural do capitalismo, caracterizada pelo domínio do processo
de centralização do capital e do monopólio gerado por este processo, motivo pelo qual Lênin
também a denominou fase do capital monopolista. Nos três primeiros capítulos desta importante
obra, Lênin expõe o processo de formação das grandes empresas que caracterizam a nova fase, e a
elevação generalizada do grau de concentração em todos os setores da economia. Esta fase é,
segundo Lênin, uma fase de transição “entre a absoluta liberdade de concorrência e a socialização
completa”, e a caracteriza como um “novo regime social” (594), em que o âmbito do mercado se
contrai, substituído pelo controle dos mercados pelas empresas monopolistas. Há uma certa
complementaridade entre a ampla análise da evolução histórica da ‘grande empresa industrial
moderna’ (big business), realizada por Alfred Chandler Jr, e a análise de Lênin, com exceção,
obviamente, da base teórica totalmente divergente.
A história da grande empresa de Chandler e do novo sistema social ao qual dá origem inicia-se
também no final do século 19 e estabelece-se definitivamente no início do século 20. A grande
empresa surge e cresce com base no salto tecnológico da segunda revolução industrial, ocorrido
neste período, e alimenta-se da absorção contínua de empresas concorrentes e da integração
vertical, que Lênin também destaca sob o nome de ‘combinação’. Ou seja, a grande empresa
moderna, de Chandler, que coincide com o grande capital monopolista, de Lênin, é a empresa típica
da fase imperialista do capitalismo. Com a integração vertical, ou combinação, o comércio entre
empresas independentes de uma cadeia produtiva é substituído pela conexão planejada, no interior
da empresa integrada, entre as etapas sucessivas da cadeia de produção/distribuição, que vai da
produção das matérias-primas até a distribuição do produto final. Segundo Chandler,
“a moderna empresa tomou o lugar dos mecanismos de mercado na coordenação das atividades da
economia e na alocação dos seus recursos. Em muitos setores, a mão visível da gerência substituiu o
que Adam Smith denominou de mão invisível das forças de mercado. (...) Antes do advento da
moderna empresa, as atividades da pequena firma pessoal eram coordenadas pelos mecanismos de
mercado e de preço. A moderna empresa, ao assumir o controle de muitas unidades, começou a
operar em diferentes lugares, geralmente exercendo diferentes tipos de atividades econômicas e
lidando com diferentes linhas de bens e serviços. As atividades dessas unidades e as transações entre
elas foram portanto interiorizadas, passando a ser monitoradas e coordenadas por empregados
assalariados e não pelos mecanismos de mercado” (Chandler, 1998, p. 248-9).
A necessidade de planejamento cada vez mais detalhado cresce nas empresas, como resultado da
centralização sempre maior do capital, que resulta em empresas de dimensões cada vez maiores,
cuja produção atende uma proporção cada vez maior de cada mercado, não só no interior dos países,
mas também no âmbito mundial. Como consequência, as empresas produtoras de cada produto, ao
planejarem a sua produção, planejam concomitantemente o abastecimento de proporções crescentes
das populações (Schneider, pp. 125ss). Ao combinarem, forçosamente, o planejamento da produção
e da distribuição, tais empresas traçam, na realidade, planos sociais parciais de produção e
distribuição.
O surgimento da ‘grande empresa moderna’ tornou-se possível como resultado de um conjunto de
transformações na base material da sociedade. Na base de todas está o desenvolvimento das forças
produtivas ou, mais restritamente, o desenvolvimento tecnológico. Nas palavras de Chandler, a
grande empresa moderna
“surgiu pela primeira vez na história quando o volume das atividades econômicas atingiu um nível
que tornou a coordenação administrativa mais eficiente e mais vantajosa do que a coordenação pelo
mercado. Este maior volume de atividades foi possível graças à nova tecnologia e à expansão dos
mercados. (...) Assim, a moderna empresa comercial [big business – CMG] surgiu, cresceu e
continuou a prosperar justamente nos setores e indústrias que tinham tecnologia avançada e
mercados em expansão (Ibidem, p. 255)
Lênin traduz o mesmo fenômeno como um processo no qual “a concorrência transforma-se em
monopólio”. A redução do âmbito de atuação do mercado e sua substituição pelo planejamento
interno e externo das grandes empresas, que se caracteriza como uma situação de transição entre o
mercado e o plano como reguladores da economia, representa, ao mesmo tempo, “um gigantesco
progresso na socialização da produção. Socializa-se também, em particular, o processo dos inventos
e aperfeiçoamentos técnicos” (Lênin, p. 593).
6. Considerações finais
O objetivo desta exposição foi mostrar que a expectativa de que o capitalismo será sucedido pelo
comunismo não é arbitrária, mas baseia-se em uma análise científica, repreentada pelo materialismo
histórico, da evolução da sociedade humana. A pretensão de que o materialismo histórico constitui
o método científico de análise da sociedade baseia-se na utilização, de que ele lança mão, do
método de toda ciência, que é o materialismo, não necessariamente aos resultados da análise nele
baseada. Assim, os resultados da análise de Marx e Engels podem ser contestados, mas só podem
sê-lo consistentemente, com base, igualmente, no uso do método científico geral, que é, repita-se, o
materialismo. Marx e Engels denominaram socialismo científico a nova forma de sociedade para a
qual o capitalismo converge, como resultado da sua análise, porque esta foi baseada no método
geral da ciência e não em preferências ou motivações subjetivas.
Procurou-se demonstrar que, na medida que seja possível identificar, metodicamente, as leis de
movimento da sociedade humana em geral, e com base nestas as da sociedade capitalista
especificamente, partindo exclusivamente dos fatores materiais ou objetivos que as condicionam e
determinam, como Marx e Engels pretenderam ter feito, deve ser possível identificar, por uma lado,
as tendências gerais de longo prazo que conduzem a sociedade capitalista à passagem para um novo
modo de produção e, por outro lado, a natureza do novo modo de produção. Esta foi, em essência, a
pretensão de Marx e Engels.
Finalmente, procurou-se também apontar algumas evidências históricas sobre a realização das
tendências fundamentais de longo prazo do capitalismo, a partir da elaboração do O Capital. Esta
exposição tem um caráter exploratório inicial, devido à escassez de pesquisas extensas e
aprofundadas sobre este tema.
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