o caráter de mercadoria do dinheiro - claus germer

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O carter de mercadoria do dinheiro segundo Marx uma polmicaClaus M. Germer*ResumoUm ponto polmico na interpretao da teoria do dinheiro de Marx se o dinheiro deve ou no consistir em uma mercadoria. Dois artigos recentemente publicados na Revista da SEP discutem o assunto com referncias crticas especficas a artigos deste autor, publicados neste peridico e em outros. O presente artigo procura enfrentar as crticas dos artigos citados. Os objetivos do artigo so demonstrar que Marx, na sua teoria, explcita e inequivocamente define o dinheiro como uma mercadoria, no havendo possibilidade de interpretao diversa, e explicitar os fundamentos tericos, propostos por Marx, para demonstrar a necessidade lgica de que o dinheiro seja uma mercadoria. O que se pretende identificar a concepo de Marx sobre o carter do dinheiro e seus fundamentos tericos, e no se esta concepo verdadeira ou falsa. Palavras-chave: teoria marxista do dinheiro; teoria do dinheiro-mercadoria; natureza do dinheiro.

Introduo A teoria do dinheiro de Marx, apesar da sua consistncia e profundidade, permaneceu praticamente intocada pelos autores marxistas aps a publicao do O Capital. A partir do final dos anos 1980, porm, tornou-se objeto de um crescente debate, refletido em nmero considervel de textos. No Brasil isto tambm ocorreu, embora em escala muito menor. Um ponto especfico em discusso diz respeito natureza fsica do dinheiro na teoria de Marx, isto , se o dinheiro deve ou no consistir em uma mercadoria. Dois artigos recentemente publicados na Revista da SEP (CORAZZA, 1998; CARCANHOLO, 2001)

* Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento Econmico, UFPR, Curitiba.

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discutem o assunto com referncias crticas especficas a artigos de minha autoria, publicados neste peridico e em outros (GERMER, 1996, 1997a, 1997b, 1999). O presente artigo procura enfrentar as crticas dos autores citados, no para meramente rebat-las, mas para contribuir para aprofundar e tornar mais preciso o meu prprio entendimento do tema. Toma-se como base da crtica o artigo de Corazza, porque d expresso mais clara s concepes que rejeitam o carter de mercadoria do dinheiro, que Carcanholo segue no fundamental, com argumentos complementares, que sero apontados. O objetivo do artigo demonstrar, em primeiro lugar, que Marx, na sua teoria, define o dinheiro explcita e inequivocamente como uma mercadoria, no havendo qualquer possibilidade de interpretao diversa. Em segundo lugar, procura-se explicitar os fundamentos tericos, propostos por Marx, para demonstrar a necessidade lgica de que o dinheiro seja uma mercadoria. Em outras palavras, o que se pretende identificar com preciso a concepo de Marx sobre o carter do dinheiro e seus fundamentos tericos, e no se esta concepo verdadeira ou falsa. Sendo assim, a demonstrao no pode basear-se em referncias ambguas e opinies vagas, mas deve basear-se nos escritos do prprio Marx, apresentando a estrutura lgica da sua teoria e situando em sua obra as passagens essenciais demonstrao. Mas as citaes literais devem ser selecionadas criteriosamente, como ilustrao das conexes lgicas expostas, e no retiradas dos contextos em que se encontram para apoiar argumentos pontuais. Isto essencial no presente caso, pois Corazza apresenta citaes em apoio sua interpretao dos conceitos de Marx, que no coincidem com estes, o que no pode ser comprovado porque Corazza no apresenta os conceitos de Marx. O dinheiro como forma do valor Corazza defende duas teses bsicas, atribuindo-as indevidamente a Marx: a primeira, de que no necessrio que o dinheiro seja uma mercadoria, isto , que o seja como decorrncia lgica da estrutura da teoria; a segunda, de que a forma mercadoria do dinheiro apenas a primeira forma que assume no seu desenvolvimento, evoluindo depois para formas cada vez mais imateriais. Neste artigo procurarei demonstrar que ambas as teses so infundadas e conflitantes com a teoria de Marx. Corazza interpreta de modo equivocado os conceitos bsicos de valor, forma de valor e dinheiro, atribuindo indevidamente a Marx a sua interpretao, e omite por completo o conceito fundamental de valor de troca. O meu primeiro procedimento demonstrar, passo a passo, que

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estes conceitos so interpretados por Corazza de modo divergente das definies rigorosas e inequvocas de Marx. Este esclarecimento permitir melhor identificar a lgica da teoria do dinheiro de Marx, que Corazza e Carcanholo apreendem de modo distorcido. O ponto de partida deve ser o conceito de dinheiro, exposto por Corazza como se correspondesse ao de Marx, mas que difere nitidamente deste. O elemento fundamental da tese de Corazza, de que na teoria de Marx o dinheiro no deve ser necessariamente uma mercadoria, reside no fato de que, segundo Corazza, Marx distingue o dinheiro em si do material que o representa, ou seja, o dinheiro seria uma coisa, enquanto o material que chamamos dinheiro seria outra1 . Segundo Corazza, para Marx o dinheiro uma essncia imaterial2 que necessita de um suporte fsico, para nele encarnar-se, podendo este ser qualquer material, no apenas o ouro nem necessariamente uma mercadoria3. Estas definies so frontalmente divergentes das de Marx, como passo a demonstrar. Na conceituao de Marx o dinheiro e o material de que feito so a mesma coisa, uma vez que o dinheiro o nome que se d mercadoria que desempenha a funo de equivalente geral de valor. Isto pode ser facilmente demonstrado por uma leitura cuidadosa do primeiro captulo do O Capital, devendo-se prestar ateno tanto ao que Marx diz quanto ao que deixa de dizer. Em primeiro lugar, aps constatar que cada mercadoria possui tantos valores de troca quantas so as mercadorias com as quais trocada, Marx deduz que isto implica que estas mercadorias, embora diferentes umas das outras, possuem algo em comum que permite que sejam igualadas duas a duas: o que h de comum, que se revela na relao de troca ou valor de troca da mercadoria, , portanto, seu valor (OCI, p. 47)4. O valor , inicialmente, apenas o nome daquilo que comum s diferentes mercadorias. Mas o que esta coisa que as mercadorias possuem em comum, que se denomina valor? Nem sempre se percebe e Corazza parece tambm no t-lo percebido que, aps definir o valor como o que h de comum s diferentes mercadorias, Marx analisa trs aspectos que o caracterizam: a substncia, a quantidade e a forma. O que todas as mercadorias possuem em comum o fato de serem produtos do trabalho humano, mas apenas de um dos aspectos deste, o trabalho abstrato, pois diferem em relao aos trabalhos concretos de que resultam. Portanto, a substncia do valor o trabalho abstrato. O segundo aspecto do valor, analisado por Marx a sua quantidade a quantidade da substncia comum, o trabalho abstrato, medido pelo tempo da sua realizao. O terceiro aspecto, finalmente, aquele que interessa ao presente debate. a forma do valor, que o dinheiro. O prprio Corazza repete em outras

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partes do texto esta ltima proposio de Marx de que o dinheiro a forma do valor5 mas confere a esta afirmao um sentido bem diferente do que possui na teoria de Marx, especialmente quando define o dinheiro como pura forma imaterial do valor. Esta definio decorre do seu desejo de demonstrar que o dinheiro no uma mercadoria, o que exige pressupor que o material de que se faz o dinheiro difere deste e no lhe essencial. Eis o seu argumento: o dinheiro o nome da forma do valor, que no coincide com o material que lhe serve de suporte, pois a forma do valor uma essncia imaterial separada do material que a representa. Para que esta extravagante interpretao da teoria do dinheiro de Marx fosse convincente, Corazza deveria expor a sua demonstrao pelo prprio Marx. Como Marx no o fez, Corazza apia a sua interpretao em frases do autor extradas dos seus contextos e espalhadas em diversas das suas obras, quando seria mais fcil e direto apoiar-se no texto especfico em que Marx desenvolve o seu conceito do dinheiro, que o primeiro captulo do O Capital. Corazza no o faz porque no fornece fundamento sua interpretao equivocada desta teoria6 . O nico meio de esclarecer a divergncia de interpretaes sobre esta questo restabelecer a exposio feita por Marx do desenvolvimento do dinheiro, o que permite demonstrar que o entendimento de Corazza, seguido por Carcanholo, diverge do de Marx. Comecemos por identificar as definies precisas, tal como formuladas por este autor, dos conceitos aqui discutidos: i) o primeiro conceito a definir o de forma do valor, essencial na exposio de Marx e na interpretao de Corazza, mas cuja definio este omite. Segundo Marx a forma do valor de uma mercadoria seu valor de troca, como se pode comprovar facilmente, pois esta identificao consta do prprio ttulo do item 3 do cap. 1 de OCI, que A forma de valor ou o valor de troca (OCI, p. 53, grifo acrescentado), ou seja, a forma do valor o valor de troca. Marx enfatiza isto repetidamente, sendo talvez mais significativa a passagem que se encontra nas Glosas, onde se dedica a dar detalhes do seu mtodo: ... examino por extenso, em uma seo especial, a forma do valor, isto , o desenvolvimento do valor de troca... (MARX, 1966, p. 713, itlicos acrescentados). Em vista disto, de surpreender que Corazza sequer mencione a importncia do valor de troca como conceito, o que seria necessrio porque o valor de troca a forma necessria de manifestao do valor, e este fato destri a verso do conceito de dinheiro que Corazza atribui a Marx. A relevncia deste conceito na anlise de Marx est expressa na sua afirmao de que partimos (...) do valor de troca ou da relao de troca das mercadorias para chegar pista de seu valor a oculto (OCI, p. 54);

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ii) dizer que a forma de valor o valor de troca, porm, no uma definio7 . preciso pois definir o valor de troca, com o que se define ao mesmo tempo o conceito de forma de valor. Marx o define de modo inequvoco: o valor de troca aparece, de incio, como a relao quantitativa, a proporo na qual valores de uso de uma espcie se trocam contra valores de uso de outra espcie (OC, I, p. 46, itlicos acrescentados). O valor de troca, portanto, meramente a relao que se estabelece entre as quantidades de duas mercadorias na troca. Em seguida Marx exemplifica: determinada mercadoria, 1 quarter de trigo, por exemplo, troca-se por x de graxa de sapato, ou por y de seda..., etc., e conclui que, assim, o trigo possui mltiplos valores de troca..., ou seja, possui mltiplas formas de valor. Note-se que x graxa de sapato um valor de troca de 1 quarter de trigo, portanto uma forma de valor de 1 quarter de trigo. Nada h de puro, impuro ou imaterial na demonstrao, pois o fato claro e simples que, na relao de troca, uma mercadoria serve de valor de troca ou forma do valor da outra. Marx repete isto cansativamente, o que torna a omisso do conceito de valor de troca por Corazza ainda mais significativa. Para no haver dvida, registre-se o entendimento de Marx do valor de troca como maneira necessria de expresso ou forma [de manifestao] do valor (Ibidem, p. 47 chaves e itlicos acrescentados), afirmando de modo tambm inequvoco que as mercadorias possuem uma forma de valor comum (...) a forma dinheiro (Ibidem, p. 54/DKI, p. 29, itlicos acrescentados). Ao iniciar a anlise do desenvolvimento da forma do valor ou dinheiro, Marx fornece a frmula da forma simples do valor x mercadoria A = y mercadoria B, assinalando que o segredo de toda forma de valor encerra-se nessa forma simples de valor (Ibidem, p. 54, itlicos acrescentados). Isto significa que o segredo do dinheiro est nela contido, uma vez que toda forma de valor inclui a forma dinheiro, pois esta, segundo a definio de Marx transcrita acima, uma forma do valor, a sua forma comum ou geral. Note-se em primeiro lugar o que Marx diz atravs desta frmula que no h mais do que duas mercadorias sendo trocadas, e que neste pequeno universo se contm o segredo do dinheiro , e em segundo lugar o que ele no diz ele no distingue formas puras de formas impuras do valor, no menciona qualquer elemento imaterial nem sugere que tal elemento venha a introduzir-se. Se esta a definio de valor de troca, e se o dinheiro a mercadoria em confronto com a qual todas as demais fixam seu valor de troca (=preo), nenhum artifcio retrico pode transformar o dinheiro em algo diferente de mercadoria, enquanto se estiver no interior da teoria de Marx. Nas duas sees que concluem a anlise da forma do valor (Transio da forma geral para a forma dinheiro e Forma dinheiro) Marx esfora-se

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para destacar o principal resultado a que chegou, que precisamente que o dinheiro nada mais que uma mercadoria, e que a forma dinheiro do valor em nada difere, na essncia, da forma simples do valor, na qual todos os elementos que constituem o dinheiro j esto presentes, ressaltando que, com isto, toda a fantasmagoria com a qual se procura mistificar o dinheiro desaparece. Eis as passagens mais significativas: A forma equivalente geral (...) pode ser recebida, portanto, por qualquer mercadoria (OCI, p. 69). Note-se que Marx no faz qualquer referncia, por mais insignificante que seja, possibilidade de que o equivalente geral possa ser representado por algo que no seja uma mercadoria. Em seguida completa: o gnero especfico de mercadoria, com cuja forma natural a forma equivalente se funde socialmente, torna-se mercadoria dinheiro ou funciona como dinheiro, sendo que uma determinada mercadoria conquistou historicamente essa posio privilegiada, o ouro (Ibidem, p. cit., itlicos acrescentados). O significado inequvoco desta definio deve ser ressaltado: o dinheiro a mercadoria especfica que assume a funo de equivalente geral, tornando-se a mercadoria dinheiro. Note-se que Marx no faz qualquer meno hiptese de que o dinheiro-mercadoria seja a primeira forma histrica do dinheiro, a ser mais tarde substituda por formas mais imateriais, nem possibilidade de que coisas diferentes de mercadorias possam ser dinheiro. Uma tal possibilidade fica totalmente excluda com o esclarecimento seguinte: O ouro s se confronta com outras mercadorias como dinheiro por j antes ter-se contraposto a elas como mercadoria (Ibidem, p. cit.), o que significa que s pode ser dinheiro algo que j tenha, previamente, se convertido em mercadoria. Se o ouro no fosse uma mercadoria, no poderia ser dinheiro. Disto se segue, cristalinamente, que o ouro poderia ser substitudo por outra mercadoria na funo de dinheiro, mas no por algo que no fosse uma mercadoria. Para ser ainda mais explcito, Marx exemplifica: A expresso relativa simples de valor de uma mercadoria, por exemplo, do linho, na mercadoria que j funciona como mercadoria dinheiro, por exemplo, o ouro, a forma preo. A forma preo do linho pois: 20 varas de linho = 2 onas de ouro (Ibidem, p. cit., itlicos acrescentados). Note-se que, ao dizer que o preo a expresso do valor em uma mercadoria que j funciona como dinheiro, Marx no faz qualquer ressalva para indicar a possibilidade de que o preo seja representado por algo que no seja uma mercadoria. No ltimo pargrafo desta seo Marx encerra a discusso do modo mais inequvoco possvel, repetindo, como o fizera no incio, que a explicao do dinheiro j est contida na forma simples do valor:

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A dificuldade no conceito da forma dinheiro se limita compreenso da forma equivalente geral, portanto, da forma valor geral como tal, da forma III. A forma III se resolve, retroativamente, na forma II, a forma valor desdobrada, e seu elemento constitutivo a forma I: 20 varas de linho = 1 casaco, ou x mercadoria A = y mercadoria B. A forma mercadoria simples , por isso, o germe da forma dinheiro (Ibidem, p. 70).

Deve-se ressaltar que, em todas estas formas progressivas do valor os elementos da explicao so nica e exclusivamente as mercadorias sendo trocadas8 , e que a forma dinheiro tem seu elemento constitutivo na forma simples: a forma mercadoria simples o germe da forma dinheiro. Como na forma simples do valor no h nada alm de duas mercadorias, nenhuma das quais apresentada por Marx como suporte fsico de uma essncia imaterial do valor, verifica-se novamente que a mercadoria que est na forma equivalente, e que na forma geral vem a ser o dinheiro, ela prpria a forma do valor, e apenas e nada mais que uma simples mercadoria. Corazza incorre em um equvoco idealista, ao conceber o valor como uma essncia imaterial flutuando sobre as mercadorias, quando ele , ao contrrio, a expresso de uma caracterstica muito material e objetiva, comum a todas as mercadorias o trabalho abstrato , que se explicita e se objetiva em uma delas medida que o carter mercantil da economia se expande e os produtos do trabalho vo convertendose em mercadorias e trocando-se por nmeros crescentes de outras mercadorias. O exposto at aqui suficiente como demonstrao formal de que o dinheiro, na concepo de Marx, uma mercadoria, pois se o dinheiro a forma do valor, se a forma do valor coincide com o valor de troca, e se o valor de troca uma mera relao quantitativa entre dois valores de uso, segue-se que o dinheiro um destes valores de uso, isto , uma mercadoria. Em nenhum momento Marx sugere ou insinua que a mercadoria B, que constitui a forma do valor, seja o suporte fsico de algo imaterial que, segundo Corazza, opondo-se a Marx, que constitui a forma do valor. O problema, como se v, bastante simples em comparao com as fantasiosas representaes s quais a forma dinheiro d origem, e precisamente a simplicidade do problema, quando analisado adequadamente, que Marx quis demonstrar. Segundo ele, ao se acompanhar o desenvolvimento da expresso do valor contida na relao de valor das mercadorias, de sua forma mais simples e sem brilho at a ofuscante forma dinheiro (...) desaparece o enigma do dinheiro (OCI, p. 54). Se o segredo de toda forma valor est contido na sua forma simples, que nada mais do que uma relao quantitativa entre dois valores de uso, e se o dinheiro uma forma do valor, segue-se que a definio do dinheiro no requer mais elementos do que as mercadorias sendo trocadas.

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Conseqentemente, todos os elementos adicionais, sugeridos por Corazza e Carcanholo, so acrscimos indevidos aos conceitos do prprio Marx e apenas demonstram que a definio do dinheiro, que propem, diferente da de Marx. A demonstrao aqui feita chama a ateno para o fato curioso de que autores marxistas esforcem-se em tornar novamente obscuro e enigmtico um tema cujo mistrio Marx procurou desfazer, acompanhando o desenvolvimento do dinheiro desde a sua forma mais simples de manifestao, para mostrar que no se necessita elementos misteriosos ou sobrenaturais para compreend-lo. Por este motivo a interpretao destes autores constitui um retrocesso em relao elaborao terica de Marx. A definio do dinheiro de Marx, exposta acima, coloca em evidncia, em primeiro lugar, a gravidade da omisso, por Corazza e Carcanholo, da definio da forma do valor como simplesmente o valor de troca, que demonstra o fato de que o dinheiro nada mais que o nome da mercadoria que constitui a forma do valor das demais, e em segundo lugar, mostra que esta omisso que torna possvel pretender, como Corazza, que o dinheiro seja uma essncia imaterial, para a qual a natureza do suporte fsico irrelevante. Para concluir esta seo deve-se apontar trs contradies lgicas s quais Corazza foi conduzido pelas distores conceituais que fez. Primeira: j vimos que Corazza define o dinheiro como forma do valor, mas concebe esta, contrariamente a Marx, como uma essncia imaterial transportada por um suporte fsico qualquer. O dinheiro no portanto o suporte fsico, mas a forma imaterial do valor por ele carregada. Em aberta contradio com isto, no entanto, Corazza afirma em seguida que o dinheiro, para Marx, entendido do modo exposto, no necessita possuir valor9. Esta afirmao causa espanto, no s por ser aberrantemente contrria s concepes de Marx, mas porque Corazza contraria abertamente o seu prprio e principal argumento: primeiro negou que o dinheiro seja uma mercadoria e o elevou condio de pura forma imaterial do valor, ou seja, separando a forma do valor de qualquer substrato possuidor de valor; agora, nega que a prpria pura forma imaterial do valor (o dinheiro em si) possua valor! O que Corazza prope uma forma sem contedo, ou seja, que o valor possui uma forma que no entanto no dotada de valor. Como pode ento ser uma forma do valor? Segunda contradio: aps postular ser irrelevante a matria que serve de suporte material ao dinheiro, afirma, surpreendentemente, que a funo medida dos valores no desempenhada pelo valor intrnseco do dinheiro, mas pelo seu suporte material (...) (CORAZZA, p. 50). Se o suporte material que mede os valores das mercadorias, como possvel afirmar que a natu-

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reza deste material irrelevante10 ? E se ele mede os valores, para que serve a pura forma imaterial do valor o dinheiro , que tambm no possui valor, segundo Corazza? Ou seja, o dinheiro, forma imaterial do valor, uma forma do valor que no possui valor e que no serve de medida de valor! E para concluir, o autor insiste que para ser medida dos valores, o dinheiro no precisa ter valor intrnseco como mercadoria, e mesmo assim, continua sendo a encarnao do trabalho humano (Ibidem, p. cit.). difcil entender e o autor no explicou como o trabalho humano pode encarnar em algo sem t-lo produzido? A fantasiosa hiptese da libertao da materialidade do dinheiro Corazza vai mais longe e atribui a Marx a concepo de que o dinheiro evolui em uma sucesso de formas, a partir da forma-mercadoria, que seria a primeira, em direo a formas cada vez mais imateriais11, assegurando que Marx afirma isto em muitas passagens da sua obra (Ibidem, p. 46), mas em nenhuma das passagens que transcreve Marx o afirma. Neste caso o prprio Corazza que esboa um rudimento de explicao para a suposta imaterialidade atual do dinheiro e a atribui a Marx. Isto necessrio sua interpretao, pois a nica demonstrao da natureza do dinheiro, que encontra em Marx, claramente lhe atribui a materialidade de uma mercadoria. Segundo Corazza, porm, isto deve-se apenas ao fato de que a gnese da forma dinheiro feita por Marx provm do confronto de duas mercadorias (Ibidem, p. 47), o que incorreto, pois a demonstrao de Marx apenas se inicia com o confronto de duas mercadorias. Aps a fase inicial da forma simples do valor, um nmero crescente de mercadorias entra na circulao medida que as trocas se intensificam, resultando que a forma do valor evolui da forma simples, sucessivamente, para as formas total ou desdobrada, geral e dinheiro12 (OCI, pp. 54-70); e quando chega forma dinheiro, que j se refere ao capitalismo desenvolvido e pressupe que todos os produtos do trabalho converteram-se em mercadorias, continua a haver apenas e unicamente mercadorias sendo trocadas, sem que Marx tenha acrescentado demonstrao qualquer outro elemento13 . Em nenhuma passagem Marx se refere ao dinheiro mercadoria como primeira forma histrica, nem faz a mais longnqua referncia possibilidade de que, na evoluo do capitalismo, o dinheiro transite para formas cada vez mais imateriais. incompreensvel que, caso Marx tivesse tal entendimento, no o acrescentasse ao final da sua exposio da gnese do dinheiro. O motivo disto

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, simplesmente, que o dinheiro, na teoria de Marx, a forma desenvolvida do valor no capitalismo, e o na figura de uma das mercadorias que compem o universo mercantil do capitalismo, como demonstrei acima. Por outro lado, caso Marx houvesse concebido uma evoluo da forma dinheiro para formas imateriais, ele teria sido obrigado a apresentar as fases de tal evoluo e as condies que motivariam a transio de uma fase a outra, e Corazza teria que expor esta demonstrao de Marx. Corazza no o fez porque tal demonstrao no existe na obra de Marx, e limita-se a falar vagamente em formas cada vez mais livres da materialidade (CORAZZA, p. 47), que uma frase sem sentido, pois ele no nos fornece, como deveria fazer, uma escala de graus decrescentes de materialidade por exemplo, de 100% de materialidade, para apenas 50% de materialidade e 50% de imaterialidade e, finalmente, para 100% de imaterialidade , nem expe as circunstncias que causariam cada transio. Sem tais especificaes impossvel saber o que Corazza entende por formas cada vez mais livres da materialidade, ou o que seria o dinheiro composto de uma parte material e outra imaterial. O motivo da omisso de Corazza evidente, e consiste no fato de que Marx no faz qualquer referncia, por menor que seja, suposta transio gradual do dinheiro da forma material para a imaterial, que Corazza lhe atribui. No entanto, uma vez que atribuiu a Marx to extravagante proposio, deveria apresentar a sua fundamentao14. Um aspecto notvel desta suposio de Corazza a sua incoerncia lgica. Ele afirma que para Marx o dinheiro uma essncia imaterial que apenas necessita de um suporte fsico, qualquer que ele seja. Se o dinheiro imaterial por definio, como afirma, logicamente incoerente admitir a existncia de uma evoluo do dinheiro na direo de uma libertao da materialidade, pois a natureza do suporte fsico irrelevante, por decorrncia da definio. Se o dinheiro uma essncia imaterial, segue-se que algo material no pode ser dinheiro, motivo pelo qual tambm incoerente admitir a existncia de uma fase de dinheiro-mercadoria, como Corazza faz. Mas, uma vez que afirma que o dinheiro passou a ser algo que no era, seria de esperar que fundamentasse os seus enunciados e esclarecesse as contradies entre estes. A isto deve-se acrescentar alguns esclarecimentos relevantes. Em primeiro lugar, Marx efetivamente menciona fases histricas da evoluo do equivalente de valor, mas referindo-se aos tipos de mercadorias que desempenham esta funo na evoluo da economia mercantil, desde a sua fase inicial at o capitalismo. O que Marx mostra que no incio esta funo recai em uma determinada mercadoria de modo mais ou menos aleatrio, mas medida que o

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carter mercantil da economia se expande, a funo de equivalente de valor migra gradualmente, em primeiro lugar de mercadorias de amplo consumo para mercadorias de menor utilidade imediata, e em segundo lugar, para mercadorias cujas caractersticas fsico-qumicas so cada vez mais compatveis com o desempenho desta funo, acabando por fixar-se nos metais e, entre estes, no que apresenta tais caractersticas no maior grau, que o ouro (OCI, pp. 82-83). Em segundo lugar, Marx mantm o conceito do dinheiro como uma mercadoria at o final da sua obra, o que pode ser ilustrado com afirmaes inequvocas constantes dos ltimos captulos da seo V do OCIII, aps toda a anlise do sistema de crdito, do qual fazem parte o sistema bancrio, o banco central, o dinheiro de crdito, etc., que demonstram que Marx no fez qualquer alterao no conceito do dinheiro como uma mercadoria. Se as formas de dinheiro de crdito notas bancrias e depsitos so, segundo Corazza, formas mais imateriais e mais desenvolvidas do dinheiro, por que Marx no fez qualquer referncia a isto nesta longa seo, que trata precisamente dos instrumentos de circulao baseados no crdito, que substituem o dinheiro (=ouro) nas suas funes na esfera da circulao (mas no o substituem como equivalente geral de valor)? Por outro lado, se Marx realmente concebesse o dinheiro como pura forma imaterial do valor, como supe Corazza, surpreendente que no tenha feito qualquer referncia a este aspecto absolutamente central do problema, ao fazer um balano da sua teoria do valor e do dinheiro em seus ltimos escritos. Com efeito, eis o que Marx escreveu sobre isto, nas Glosas, escritas menos de dois anos antes da sua morte:no desenvolvimento da forma de valor da mercadoria e na ltima instncia da sua forma-dinheiro, e portanto do dinheiro, o valor de uma mercadoria manifesta-se no valor de uso de outra, isto , na forma material da outra mercadoria (MARX, 1966, p. 719, itlicos no original).

Note-se que nesta simples passagem Marx destri dois argumentos fundamentais de Corazza. Por um lado, repete o que escreveu em toda a sua obra: que o valor de uma mercadoria manifesta-se no valor de uso da outra, isto , na forma material da outra mercadoria, o que revela o absurdo de atribuir a Marx o conceito do dinheiro como pura forma imaterial de valor; por outro lado, Marx afirma que isto ocorre na ltima instncia atingida no desenvolvimento da forma de valor, que a forma-dinheiro. Se esta a ltima instncia do dinheiro, e nesta o valor de uma mercadoria ainda insiste em expressar-se na forma material da outra mercadoria, qual a credibilidade da suposio de Corazza e Carcanholo, de que o dinheiro, segundo Marx, vai sempre na direo de uma libertao da materialidade?

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Em terceiro lugar, o fato de que o dinheiro necessariamente uma mercadoria, ou seja, o fato de que o trabalho social ou valor deva representarse em uma mercadoria constitui, para Marx, uma das contradies constituintes do capitalismo, da qual os capitalistas no conseguem libertar-se, apesar de continuamente se proporem a faz-lo. Estes dois aspectos da teoria de Marx podem ser ilustrados pelas seguintes passagens da seo V de OCIII:com o desenvolvimento do sistema de crdito, a produo capitalista procura constantemente superar essa barreira metlica [o dinheiro CMG] esse limite ao mesmo tempo material e fantstico da riqueza e de seu movimento, mas acaba sempre quebrando a cabea contra esse obstculo (OCIII/2, p. 93). Mas nunca se deve esquecer (...) que o dinheiro na forma dos metais preciosos [ouro ou prata, conforme o pas, na poca de Marx CMG] constitui a base da qual o sistema de crdito, pela sua prpria natureza, nunca se pode desprender (Ibidem, p. 116). O sistema bancrio mostra, (...) mediante a substituio do dinheiro por diversas formas de crdito circulante, que o dinheiro (...) nada mais que uma expresso particular do carter social do trabalho e de seus produtos, mas que, em anttese base da produo privada, sempre tem de apresentar-se, em ltima instncia, como uma coisa, uma mercadoria particular ao lado de outras mercadorias (Ibidem, p. 117, itlicos acrescentados em todas as citaes).

Dificilmente se poderia exigir que Marx fosse mais explcito na definio do dinheiro como uma mercadoria, mesmo aps passar pela anlise de toda a complexa estrutura do capitalismo, sem atribuir ao dinheiro qualquer caracterstica imaterial. Isto significa que, caso a teoria do dinheiro de Marx retrate adequadamente a realidade monetria do capitalismo, a postura de Corazza implica ignorar a contradio inerente ao fato de que o trabalho social deve ser representado necessariamente por uma mercadoria, e que esta contradio representa uma barreira que na prtica s pode ser superada pela extino do capitalismo. Neste sentido, negar este fato bsico constitui um obstculo compreenso da natureza das contradies presentes no capitalismo contemporneo, em especial no sistema de crdito desenvolvido. Fundamentos tericos do carter de mercadoria do dinheiro O exposto at aqui demonstra que, na sua definio rigorosa, o dinheiro, na teoria de Marx, a mercadoria e nada mais que uma mercadoria que, na funo de equivalente geral de valor, fornece o material no qual as mercadorias comuns representam os seus valores em uma forma material geral e separada dos seus valores de uso particulares, os quais constituem as formas naturais e especficas do valor. Deve-se agora expor sinteticamente a fundamentao terica disto, isto , o motivo pelo qual o dinheiro deve ser uma

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mercadoria, tal como proposto por Marx15. Para isto deve-se demonstrar que o dinheiro s pode expressar os valores das mercadorias com base no tempo de trabalho caso seja uma mercadoria. H duas formas de demonstr-lo, uma meramente tcnica, baseada no conceito de medida, a outra terica, baseada no conceito do trabalho social. O problema da medida no to simples quanto parece16, mas aqui apenas se mencionar o argumento tecnicamente correto de Marx, ilustrado pela analogia da medida do peso dos corpos com a do valor das mercadorias17. Do mesmo modo que os pesos dos corpos s podem ser medidos colocando-os em relao com um dado peso de um determinado corpo tomado como padro18, a medida dos valores requer que o padro de medida tambm possua valor, isto , seja uma mercadoria19 . Denominando p o peso padro, o peso de um corpo contendo x vezes p ser xp/p=x. Como relao, um nmero que expressa a quantidade de padres que cabem no objeto medido, sendo desnecessrio conhecer a natureza intrnseca da caracterstica medida, como o peso, no exemplo. Se um objeto pesa 5 quilos, significa apenas que, como peso, corresponde a cinco vezes o objeto-padro, cujo nome meramente convencional o quilograma, sem ser necessrio definir a natureza intrnseca do peso. O mesmo princpio aplica-se medida do valor de uma mercadoria: preciso que ela seja comparada com um objeto que tambm possua valor, caracterstica apenas possuda por mercadorias20. Assim como ocorre com o quilo, a quantidade da mercadoria tomada como padro de valor pode receber um nome convencional, por exemplo 1 libra esterlina21. Se o esterlino correspondesse a 10 g de ouro, dizer que uma mercadoria vale 5 esterlinos significa apenas que ela contm 5 vezes a quantidade de valor contida na mercadoriapadro de 10 g de ouro22, sendo desnecessrio conhecer a natureza intrnseca do valor, que s pode ser determinada pela investigao23. A mercadoria utilizada como padro de valor chama-se dinheiro, e a quantidade-padro do dinheiro, como o esterlino, chama-se padro de preos ou padro monetrio. A demonstrao terica da necessidade de que o dinheiro seja uma mercadoria deve ser feita em dois passos. O primeiro passo consiste na exposio do conceito geral do trabalho social como fundamento da vida social, proposto inicialmente por Marx em A ideologia alem e desenvolvido posteriormente nos Grundrisse (GERMER, 2001). Este conceito geral pode ser sintetizado do seguinte modo. O fundamento da vida social o trabalho social, entendido como organismo complexo de trabalhos especializados diferentes que se combinam em uma estrutura de diviso social do trabalho, de tal modo que cada produtor fornece um ou poucos valores de uso ao coletivo social, dele receben-

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do, em troca, o que necessita. Nestas condies, a reproduo de cada sociedade depende crucialmente da existncia de um mecanismo determinado atravs do qual o trabalho social e os produtos do trabalho so distribudos entre os seus membros. Nas sociedades no mercantis tal mecanismo representado por um plano elaborado com esta finalidade24. Nas sociedades mercantis existe um mecanismo idntico mas imperceptvel aos seus membros25, pois resulta do entrechoque catico das iniciativas independentes e no planejadas dos seus integrantes26. Este mecanismo expressa-se na lei do valor, que determina que as mercadorias so trocadas com base na equivalncia dos seus valores, o que implica a equivalncia dos tempos de trabalho social nelas contidos. Esta a tese de Marx, cujo fundamento sucintamente exposto a seguir. Suponhamos que, dado o grau de desenvolvimento das foras produtivas sociais do trabalho em uma sociedade mercantil, em determinado momento histrico, a subsistncia de cada um dos seus membros requeira, em mdia, mercadorias resultantes de 10 horas de trabalho social27. Isto implica, por um lado, que cada produtor deve trabalhar, em mdia, 10 horas diariamente e fornecer o produto correspondente sociedade atravs do mercado28 e, por outro lado, que deve receber da sociedade, em contrapartida, o conjunto dos meios necessrios sua subsistncia, que resultam de um total de 10 horas de trabalho social. Como este processo se d por intermdio das trocas, imediatamente evidente que cada produtor deve realizar uma troca entre duas somas de mercadorias correspondentes, em mdia, a 10 horas de trabalho social de cada lado, isto , a troca deve basear-se na equivalncia dos tempos de trabalho. Como, porm, a troca no se d com base na contabilizao dos tempos de trabalho, nem pela troca dos dois conjuntos de mercadorias em bloco, a troca do produto total de cada produtor se pulveriza em certo nmero de pequenas trocas, cuja soma no chegaria equivalncia global caso as trocas se realizassem sempre por pares de mercadorias, pois seria impossvel relacionar os termos de cada troca especfica com a equivalncia global de 10 horas. Esta dificuldade s pode ser resolvida se o produto dirio de 10 horas de cada trabalho individual puder ser convertido no produto dirio de 10 horas de um determinado trabalho individual a mercadoria-dinheiro , tomado como representativo de 10 horas dirias de trabalho social. O fato de que representa 10 horas de trabalho assegurado pelo fato de que a mercadoria-dinheiro produzida em 10 horas de trabalho deve permitir, pela troca, a subsistncia do seu produtor nas condies sociais mdias. O valor ou tempo de trabalho social que deve ser aplicado produo de cada mercadoria que compe o padro mdio de consumo de um indivduo nesta sociedade conseqentemente tam-

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bm do produtor de ouro determinado pela frao do tempo dirio que lhe cabe na distribuio das 10 horas entre o conjunto das mercadorias que compem o padro mdio habitual de consumo individual. Isto implica que cada unidade da mercadoria, produzida por um produtor em uma frao determinada das 10 h, deve ser trocada por outra(s) mercadoria(s) que contm o mesmo tempo. Mas como se trata do tempo de trabalho social e no particular, a troca direta de duas mercadorias no assegura esta equiparao. As duas mercadorias devem antes ser convertidas em expresses de trabalho social, isto , em algo que represente o tempo mdio de trabalho que a sociedade atribui produo destas mercadorias, que pode ser maior ou menor que o tempo de trabalho gasto pelos produtores especficos das unidades especficas que esto sendo trocadas. Deste modo, quando a primeira mercadoria trocada por certa quantidade da mercadoria-dinheiro e esta, em seguida, por uma quantidade determinada da segunda mercadoria, isto significa que ambas as mercadorias igualaram-se mesma quantidade de uma terceira, e ao faz-lo converteram-se em expresses do mesmo tempo de trabalho social, que aquele contido na quantidade da mercadoria-dinheiro qual se igualaram. No necessrio, nem possvel, que os minutos ou horas de trabalho sejam contados para que a equivalncia dos tempos de trabalho se verifique. Isto feito indiretamente pela reao de cada produtor s oscilaes das suas condies de sobrevivncia, isto , da sua capacidade de reproduzir-se integralmente como produtor, com base na troca do produto do seu trabalho, ajustando continuamente a sua produo s condies sociais mdias de produo. Cada produtor o constata pela flutuao do poder de compra da sua receita de vendas. Se esta for insuficiente para a sua reproduo normal, ele interpreta isto como resultado de um preo muito baixo da mercadoria que produz, o que traduz por sua vez sem ser necessrio que ele tenha conscincia disto , a existncia de superproduo, isto , de que h um excesso de produtores neste ramo, de modo que a soma dos trabalhos individuais nele aplicados excede o tempo de trabalho social a ele destinado. Isto induzir a transferncia de alguns deles para outros ramos de produo, o que promove o ajustamento da soma de tempos individuais aplicados produo desta mercadoria ao tempo social a ela destinado, o que corrigir a relao de trocas destes produtores, restabelecendo suas condies de reproduo segundo a mdia social. Trabalho particular e trabalho social O segundo passo da demonstrao terica consiste em demonstrar a forma pela qual o conceito geral exposto acima se manifesta na economia mer-

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cantil. O ponto essencial que a necessidade do equivalente geral de valor decorre do fato de que as mercadorias so produzidas por trabalhos particulares, que no representam, diretamente, trabalho social, isto , os seus produtos no integram automaticamente o produto social. Entende-se por produto social aquele que atende necessidades sociais. Na economia mercantil um trabalho particular no equivale a trabalho social pelo mero fato de ter sido realizado e objetivado em um produto, pois cada trabalho particular decorre da iniciativa particular do produtor, no sendo determinado por um plano social que assegure, antecipadamente, que o seu produto necessrio para atender a uma necessidade social. Como j foi dito, nem a necessidade social nem a produo social so articuladas em um plano, na economia mercantil. No havendo um plano social de produo que distribua previamente os trabalhos socialmente necessrios entre os produtores particulares, o que conferiria antecipadamente a estes trabalhos particulares o carter social, dispensando-os de reconhecimento posterior, segue-se que na economia mercantil o reconhecimento do carter social do trabalho s pode ocorrer aps este ter sido realizado. No entanto, no h a possibilidade de que um organismo burocrtico reconhea o carter social de um produto de um trabalho particular, antes que seja consumido, pregando-lhe um carimbo que o reconhea como social, pois no h um plano prvio que permita relacionar cada produto com a necessidade previamente identificada e dimensionada. Nestas circunstncias, o nico meio atravs do qual o trabalho particular pode ser reconhecido como trabalho social que o seu produto seja utilizado para satisfazer uma necessidade social atravs do consumo, e para isto ele deve chegar s mos do seu consumidor, o que na economia mercantil s pode ser feito por intermdio da troca pelo produto de outro trabalho. Conseqentemente, o reconhecimento do carter social do trabalho particular contido em um produto particular s pode dar-se atravs da troca deste ltimo pelo produto do trabalho particular de outro produtor. Mas isto no pode realizar-se pela troca direta dos dois produtos de trabalhos particulares, pois esta troca no converte estes trabalhos particulares em trabalhos sociais. A troca entre dois produtores particulares caracteriza uma diviso do trabalho restrita aos dois, no caracteriza a diviso social do trabalho, que o fundamento da economia mercantil. Para que um trabalho particular seja reconhecido como trabalho social ele deve poder ser permutado por qualquer outra forma de trabalho particular, no por apenas uma, pois a troca do produto de um trabalho particular pelo produto de outro trabalho particular no converte o primeiro em produto de trabalho social, converte-o apenas no produto de outro trabalho particular.

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No entanto, todas as mercadorias so produtos de trabalhos particulares, portanto toda troca direta de mercadorias troca de trabalhos particulares e no fornece o fundamento para a converso dos trabalhos particulares em trabalho social. Por outro lado, na economia mercantil a troca o nico meio atravs do qual um produto de um trabalho particular pode converter-se em outra coisa. Mas a nica coisa em que um produto de um trabalho particular pode converter-se no produto de outro trabalho particular, pois o trabalho de cada produtor destina-se a obter, pela troca, os meios de consumo e de produo de que necessita para viver. Chegamos, deste modo, a um aparente impasse: por um lado, para ser reconhecido como social, o produto de um trabalho particular no pode ser trocado diretamente pelo produto de outro trabalho particular; por outro lado, cada produto de um trabalho particular s pode ser trocado pelo produto de outro trabalho particular. O impasse se resolveria apenas se existisse um produto de um trabalho particular que ingressasse na circulao na condio de produto direto do trabalho social, a fim de que os produtos de trabalhos particulares pudessem ser trocados por ele, de modo que os seus produtores, ao faz-lo, tivessem transformado os produtos dos seus trabalhos particulares em um produto que representa o trabalho social e que, por esta razo, por sua vez permutvel pelo produto de qualquer outro trabalho particular29. Um tal tipo de mercadoria no existe, porm, porque todos os trabalhos so trabalhos particulares, no entanto a viabilidade da economia mercantil depende da soluo do impasse, e ela o gera espontaneamente na figura do produto de um trabalho particular ou seja, uma mercadoria erigida em representao direta do trabalho social. Conseqentemente, cada produto de um trabalho particular, para ser reconhecido como elemento do trabalho social, deve converter-se no produto de outro trabalho particular, mas de um trabalho particular especfico, erigido em representante do trabalho social. Este produto de um trabalho que simultaneamente particular e social a mercadoria dinheiro. O que o dinheiro possui de especfico que uma mercadoria aceita por todos em troca de qualquer outra. Assim, o que os agentes individuais da troca vem nela no o seu valor de uso especfico, mas o seu valor de uso social como forma da permutabilidade geral de todas as mercadorias. Em uma interpretao materialista esta duplicidade no pode ser atribuda inventividade humana, mas deve expressar elementos presentes na realidade material. Com efeito, ela possvel porque o trabalho em sociedade possui, pela sua natureza intrnseca, uma dupla caracterstica, simultaneamente particular e social, isto , cada produto destina-se a atender uma necessidade

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social, embora seja produto de um trabalho particular. Em economias no mercantis no h contradio entre ambos, uma vez que o trabalho particular de cada membro da sociedade previamente determinado por um plano, sendo portanto intrinsecamente social (MARX, 1980, p. 112-3). Na economia mercantil, como se indicou, a inexistncia de um plano prvio de produo e distribuio resulta da independncia recproca dos produtores, e implica uma aberta contradio entre os trabalhos particular e social, que constitui a contradio fundamental da economia mercantil e da sua forma desenvolvida, a economia capitalista. Esta contradio est instalada no interior de cada mercadoria, uma vez que o fato de ser produto de um trabalho particular no faz dela, automaticamente, produto do trabalho social, isto , valor, de modo que o seu valor entra em contradio com o seu valor de uso. Para que a sociedade mercantil subsista, esta contradio deve ser resolvida, isto , os trabalhos particular e social devem coincidir, ou seja, os trabalhos particulares devem contribuir para a reproduo do coletivo social. Mas a soluo real da contradio s pode dar-se por intermdio de um plano prvio de produo e distribuio. No entanto, um tal plano conflita abertamente com a propriedade privada independente que o fundamento da economia mercantil, de modo que a contradio no pode ser resolvida enquanto o carter mercantil da economia for mantido. Mas como a reproduo desta economia requer que haja uma coincidncia entre os aspectos particular e social do trabalho, isto , os trabalhos particulares devem ser expresses ou partes do trabalho social, segue-se que a contradio, no podendo ser resolvida, deve ser de algum modo contornada. Isto requer, como se indicou no pargrafo anterior, que haja uma separao entre os aspectos particular e social do trabalho, de tal modo que o trabalho social adquira uma forma de existncia independente dos trabalhos particulares em cujos produtos ambos esto intrinsecamente fundidos. isto que obtido pela emergncia do dinheiro30. Mas o dinheiro s pode superar a contradio porque os elementos para isto esto presentes na prpria troca, caso contrrio, o sistema seria invivel31. Isto o que Marx demonstrou na sua exposio do desenvolvimento da forma do valor, mostrando que na forma simples da relao de trocas x mercadoria A = y mercadoria B j se contm a base da soluo do problema, na medida que nesta relao os valores de uso e de troca ou os trabalhos particular e social j esto separados, pois a mercadoria B fornece a forma material de expresso do valor da mercadoria A. Mas isto no suficiente, pois necessrio que a mercadoria B deixe de ser a forma equivalente particular e ocasional de uma ou outra mercadoria e se converta na forma equivalente

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do valor de todas as mercadorias, isto , se converta em equivalente geral de valor. Deve-se recordar que o trabalho social o trabalho abstrato, que a substncia do valor, isto , o trabalho entendido como mero dispndio de energia fsica e mental, independente da sua forma concreta. Mas como na prtica o trabalho abstrato s se apresenta na forma de produtos de trabalhos concretos o trabalho do pedreiro, do metalrgico, do agricultor, etc. o trabalho abstrato como tal s pode ser expresso pelo produto de um trabalho concreto erigido em seu representante. Mentalmente, atravs da abstrao, pode-se separar o trabalho, entendido como mero dispndio de energia fsica e mental, das formas concretas nas quais ele despendido em cada produo particular, e entende-se que a energia fsica e mental indiferenciada o fundamento comum a todas as formas concretas em que despendida (MARX, 1980, p. 110, 122-3). Mas na prtica ambos os aspectos do trabalho produtivo esto fundidos em cada uma das diferentes mercadorias, ou seja, o trabalho abstrato sempre se apresenta sob a forma do produto de um trabalho concreto. Disto se segue que a nica forma pela qual o trabalho social ou abstrato pode ter uma existncia independente das formas concretas dos diferentes trabalhos, atravs do produto de um trabalho concreto erigido em representante do trabalho abstrato. Disto decorre que o equivalente geral de valor deve ser, por necessidade lgica, uma mercadoria. AbstractWhether money does or does not consist of a commodity is a point of disagreement in the debate about Marxs theory of money. Two papers recently poublished by Revista da SEP assess the subject with critical comments to papers of mine, published by this journal as well as by other ones. The present paper attempts to respond to these critics. The paper aims first to demonstrate that Marx defined money explicitly as a commodity, there being no possibility of a different interpretation, and secondly to present the theoretical groundings, proposed by Marx in order to demonstrate the logical necessity for money to be a commodity. What is intended in this paper is to identify Marxs understanding about the nature of money and its theoretical foundations, and not if this understanding is true or false.

Key words: Marxs theory of money; theory of commodity money; the character of money. Referncias bibliogrficasCORAZZA, G. Marx e Keynes sobre dinheiro e economia monetria. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Poltica. Rio de Janeiro: Sette Letras, n. 3, p. 45-58, dezembro 1998.

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Notas1

Marx fala dos metais ouro e prata, como a matria do dinheiro (GII, 397) e no como o dinheiro em si, pois este valor (CORAZZA, p. 57). ... o ouro, enquanto dinheiro-mercado-

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ria, esconde duas coisas: a forma dinheiro do valor e a mercadoria ouro (Ibidem, p. 47). Nestas passagens Corazza afirma estar expressando o ponto de vista de Marx, fazendo-as acompanhar de citaes literais deste, que no entanto no corroboram a sua interpretao. (...) para Marx, o aspecto mais importante do dinheiro (...) consiste em ser (...) pura forma imaterial do valor (CORAZZA, p. 45); ...na sua essncia, o dinheiro no tem nada de material... (Ibidem, p. 48). Corazza afirma ainda que nos Grundrisse podemos encontrar muitas passagens em que este carter imaterial do dinheiro acentuado (Ibidem,p. 49), indicando diversas destas passagens, mas em nenhuma delas Marx afirma que o dinheiro algo imaterial, conforme se pode constatar pela leitura dos textos indicados. Percebe-se que Corazza parte de uma interpretao pessoal distorcida das afirmaes de Marx e, ao invs de procurar entender o que este expe, procura frases isoladas que parecem justificar a sua interpretao da teoria do dinheiro de Marx.3 2

O que define o dinheiro no a materialidade do casaco [refere-se ao equivalente na ilustrao da forma simples do valor, de Marx CMG], mas o fato de esta materialidade transportar a imaterialidade do valor (CORAZZA, p. 46, itlicos acrescentados). (...) a forma dinheiro do valor (...) deve ser carregada por um corpo material, no importa qual dos seus exemplos histricos, como o sal, o gado, tabaco, ouro, ou um dos seus signos modernos, bilhete de papel, lanamento contbil ou um simples impulso eletrnico (Ibidem, p. 47, itlicos acrescentados). Corazza apia-se em conceituao de Paulani, em sentido idntico (PAULANI, p. 144, cit. por CORAZZA, p. 48).4

Para simplificar, as citaes do O Capital so identificadas pelas iniciais seguidas do volume em questo, em algarismos romanos.

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Segundo Corazza, para Marx o dinheiro , antes de tudo, um conceito, ou uma categoria, cuja essncia ser forma do valor (CORAZZA, p. 46); O dinheiro, sendo uma pura forma de valor... (Ibidem, p. 49). As definies de Corazza so ambguas. Os termos essncia e pura so acrscimos de Corazza, que distorcem o conceito do dinheiro de Marx. Corazza utiliza o termo essncia porque distingue esta do material do dinheiro como duas coisas diferentes e separveis, e no esclarece o sentido da expresso pura forma do valor, que Marx no utiliza e que sugere a existncia de formas impuras.6

Corazza cita algumas passagens isoladas deste captulo, mas no se detm em analisar a seqncia lgica da demonstrao de Marx, que o que deveria ter feito.7

Ambos designam a mesma categoria, sendo valor de troca o seu nome vulgar e forma do valor o nome cientfico.

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Cada mercadoria deve, atravs da alienao do seu valor de uso, isto , da sua existncia original, receber a sua correspondente existncia como valor de troca. (...) A sua segunda existncia como valor de troca, por outro lado, s pode ser uma outra mercadoria, pois no processo de troca s h mercadorias em confronto (MARX, 1980, p. 123, itlicos acrescentados).9

O dinheiro, sendo pura forma de valor, no necessita ter valor prprio (CORAZZA, p. 49 e passim).10

Como esta opinio de Corazza conflita com sua prpria opinio anterior, que dizia ser irrelevante a natureza do suporte fsico do dinheiro imaterial, o autor teria que explicar como e em que tipo de suporte deve o dinheiro encarnar, mas no o fez.

O suceder de formas de manifestao do valor das mercadorias vai sempre na direo de uma libertao da materialidade, na direo de formas cada vez mais independentes, autnomas e livres da materialidade (CORAZZA, 1998, p. 47); O dinheiro mercadoria no encarna a forma dinheiro enquanto tal, mas representa apenas uma de suas formas histricas ou civilizadas do dinheiro (...) (p. 46, 49); lgico e natural que a primeira forma dinheiro do valor tenha sido

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uma mercadoria (p. 47); A essncia do dinheiro sempre o valor enquanto tal, o qual pode ser carregado tanto por uma mercadoria-dinheiro, quanto por um papel-dinheiro ou por qualquer outra forma real ou imaginria, como acontece no capitalismo atual (MARX, p. 48). Corazza equivoca-se ao dizer que, para Marx, o processo de gnese do dinheiro um processo de gnese de formas do valor, a forma simples, a relativa, a equivalente e a forma geral, at a forma dinheiro (CORAZZA, p. 47). As formas relativa e equivalente no so fases sucessivas, mas componentes de todas as formas do valor, da simples at ao dinheiro.13 Carcanholo tambm atribui a Marx a concepo de que o equivalente perde materialidade no trnsito da forma simples ao dinheiro, mas tambm no o demonstra, apoiando-se apenas em duas citaes pontuais de Marx e uma afirmao de Corazza, esta tambm no demonstrada (CARCANHOLO, 2001, p. 38 e nota 25). 14 12

Carcanholo coincide com Corazza, mas sugere a existncia de um processo geral de desmaterializao da riqueza, porm tampouco fornece uma demonstrao convincente da sua natureza e no especifica nem caracteriza as fases que deveria ter e as condies da transio de uma a outra (CARCANHOLO, 2001, p. 38-9).15 16

A exposio de Marx pode ser encontrada em Marx, 1980, cap. 1, principalmente pp. 119-128.

A fonte talvez mais importante dos conceitos de quantidade, grandeza, medida, etc. utilizados por Marx a Cincia da Lgica (HEGEL, 1990, p. 209-445).17 Carcanholo refere-se medida da temperatura como se contradissesse a ilustrao de Marx baseada na medida do peso. No entanto, segundo a conceituao de Hegel, o peso e a temperatura so quantidades da mesma espcie, que denomina intensiva, que apenas se expressam diferentemente, exigindo por isto diferentes formas de medida (INWOOD, p. 269; HEGEL, pp. 250-260).

Caso ambas as coisas no fossem pesadas, no poderiam entrar nessa relao, e um no poderia servir, portanto, de expresso do peso do outro (OCI, p. 60). Deve-se notar que pesar consiste precisamente em relacionar dois corpos dotados de peso, um dos quais funciona como padro ou equivalente de peso, e de modo anlogo medir o valor consiste em relacionar dois objetos dotados de valor, isto , mercadorias, uma das quais funciona como equivalente de valor.19 Carcanholo equivoca-se ao rejeitar a validade desta analogia (CARCANHOLO, p. 36-7) invocando Marx, pois foi o prprio Marx quem a utilizou (OCI, p. 60), e diz o bvio ao insistir que posso medir a magnitude do valor de uma mercadoria (...) por sua manifestao; no preciso calcular a quantidade de trabalho abstrato (CARCANHOLO, p. 37). A discordncia no sobre isto, mas sobre a natureza fsica da sua manifestao, que a forma do valor. 20

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Como qualquer outra mercadoria, o dinheiro s pode expressar sua prpria grandeza de valor em termos relativos em outras mercadorias. Seu prprio valor determinado pelo tempo de trabalho necessrio sua produo e se expressa naquele quantum de qualquer outra mercadoria em que est cristalizado o mesmo tempo de trabalho (OCI, p. 84; DKI, p. 69, itlicos acrescentados).

Originalmente os padres metlicos de valor receberam os nomes dos padres de peso, como a libra.22 Aplica-se mercadoria-dinheiro o que Marx diz sobre uma mercadoria qualquer: o produto (...) apenas uma escala graduada que mede o trabalho absorvido pelos meios de produo. Se uma unidade representa 2 horas, duas representam 4 horas e assim por diante. Quantidades de produto determinadas, verificadas pela experincia, representam... nada mais que determinadas quantidades de trabalho, determinada massa de tempo de trabalho solidificado (OCI, p. 157).

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Os agentes da troca, ao equiparar seus produtos de diferentes espcies na troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. No o sabem, mas o fazem (OCI, p. 72, itlicos acrescentados). H grande diferena prtica entre as medidas do peso e do valor, pois o primeiro um processo natural e palpvel, ao passo que o segundo social e imperceptvel vista desarmada. A existncia de um plano no significa que se trata de sociedades socialistas, pois o plano no implica que no haja propriedade privada e explorao do trabalho alheio, como nos modos de produo escravista e feudal. Na economia mercantil o mecanismo mencionado no pode ser um plano prvio, que incompatvel com a propriedade privada e a independncia dos produtores. Neste caso a diviso do trabalho um organismo de produo que se desenvolveu naturalmente e cujos fios se teceram e continuam a tecer-se s costas dos produtores de mercadorias (OCI, p. 95). Um tratamento didtico desta questo encontra-se em Luxemburgo (s/d, cap. 4 A produo mercantil). Subentende-se que os dependentes improdutivos esto includos, como mdia, nas necessidades mdias de cada produtor. Isto necessrio porque, caso um produtor qualquer trabalhe menos de 10 horas dirias em mdia, a mdia social ser menor que 10 horas e a reproduo social se dar em nvel inferior ao normal. Segundo Marx, as mercadorias s podem ser trocadas pelo que so, isto , produtos de trabalhos particulares. Esta proposio constitui outra prova de que o dinheiro deve ser uma mercadoria por necessidade lgica. Como, porm, a emergncia do dinheiro no elimina a contradio, a sua superao consiste em ser projetada para esferas superiores da reproduo social, onde se manifesta posteriormente com maior intensidade. A contradio entre os trabalhos particular e social instala-se quando os valores de uso passam a ser trocados e deste modo se convertem em mercadorias. Assim, a emergncia da troca ao mesmo tempo instala a contradio e fornece os elementos necessrios sua superao que, atravs da generalizao das trocas, desenvolve-se na forma da mercadoria-dinheiro.

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