poder e socialismo -...

122

Upload: vuongdat

Post on 10-Feb-2019

231 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados
Page 2: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados
Page 3: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

PPPPPODERODERODERODERODER LOCALLOCALLOCALLOCALLOCAL

EEEEE SOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMO

Page 4: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

1a edição: abril de 2002 – Tiragem: 4 mil exemplaresTodos os direitos reservados à

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 234 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil

Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: [email protected]

Copyright © 2002 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-69-6

Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional

do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

DiretoriaLuiz Dulci – presidente

Zilah Abramo – vice-presidenteHamilton Pereira – diretor

Ricardo de Azevedo – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação EditorialFlamarion Maués

Assistentes EditoriaisCandice Quinelato Baptista

Viviane Akemi Uemura

RevisãoMaurício Balthazar Leal

Márcio Guimarães de Araújo

Capa e Projeto GráficoGilberto Maringoni

Ilustração da CapaPaulo França Lopes

Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande

Impressão Gráfica OESP

Page 5: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

Celso Daniel

Marina Silva, Miguel Rossetto e Ladislau Dowbor

PPPPPODERODERODERODERODER LOCLOCLOCLOCLOCALALALALAL

EEEEE SOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMO

Socialismo em discussão

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

Page 6: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Desenvolvimento local e socialismo / Celso Daniel... [et al.]. — São Paulo : EditoraFundação Perseu Abramo, 2002. — (Coleção Socialismo em Discussão)

Outros autores: Marina Silva, Miguel Rossetto, Ladislau Dowbor

Bibliografia.ISBN 85-86469-69-6

1. Democracia 2. Desenvolvimento econômico 3. Governo local 4. Socialismo I. Daniel,Celso. II. Silva, Marina. III. Rossetto, Miguel. IV. Dowbor, Ladislau. V. Série

02-1513 CDD-320.531

Índices para catálogo sistemático:1. Socialismo e democracia : Ciência política 320.531

Page 7: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

ApresentaçãoFrancisco de Oliveira ..................................................................... 7Nota do editor ................................................................................. 9

Perspectivas que o desenvolvimento local e adistribuição de renda abrem à construção do socialismoCelso Daniel .................................................................................. 11

Perspectivas que o desenvolvimento local ... – RoteiroCelso Daniel .................................................................................. 37

Comentários

O caboclo, o pesquisador e a canoaMarina Silva ................................................................................. 47

Page 8: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

6 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Projeto local e projeto nacionalMiguel Rossetto ........................................................................ 55

Urbanização e gestão socialLadislau Dowbor ..................................................................... 69

Debate com o públicoMax Altmann ............................................................................................... 81Inácio Teixeira Neto ...................................................................................... 84Alencar ........................................................................................................ 85Valter Pomar ................................................................................................. 85Paul Singer ................................................................................................... 87Coordenador da mesa .................................................................................. 88Celso Daniel ................................................................................................ 89Marina Silva .............................................................................................100Miguel Rossetto .........................................................................................107Ladislau Dowbor ....................................................................................... 111

Sobre os autores ................................................................... 117

Page 9: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

7SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

ApresentaçãoFrancisco de Oliveira

O segundo ciclo do seminário Socialismo e Democracia – reproduzido nacoleção Socialismo em Discussão –, que o Instituto Cidadania, a FundaçãoPerseu Abramo e a Secretaria de Formação Política do Partido dos Traba-lhadores realizaram no primeiro semestre de 2001, dedicou-se, desta vez,ao exame de questões concretas que estão sendo postas para o movimentodas esquerdas no Brasil com urgência, particularmente a partir das expressi-vas vitórias nas eleições municipais de outubro de 2000. O Partido dos Tra-balhadores, para não usurparmos a fala das outras formações da esquerdabrasileira, foi chamado a dar soluções concretas aos já dramáticos proble-mas das cidades, herança de um longo ciclo histórico, agravados pelas polí-ticas ou antipolíticas neoliberais dos últimos dez anos.

Entendeu-se que a votação cidadã optou pelo PT não apenas pela ur-gência da conjuntura, mas como uma orientação de outra perspectiva dedesenvolvimento econômico, social, político e cultural, caucionada pelatrajetória do partido desde sua criação e pela exemplaridade das admi-nistrações petistas ali onde a cidadania lhe tem entregue a gestão doEstado, em municípios e estados.

A abordagem das questões concretas juntou as urgências de curto pra-zo com a perspectiva histórica mais ampla do futuro. Por isso os vários

Page 10: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

8 PODER LOCAL E SOCIALISMO

temas foram trabalhados, sempre, perguntando-se quais são suasinterações com o socialismo. De modo que as gestões da esquerda nãodevem ser apenas o breve ciclo de uma administração, mas precisamtambém realizar concretamente, na vida cotidiana das cidades, das cida-dãs e cidadãos, uma mudança cujo nome histórico é socialismo. Nãopara um dia qualquer posterior à revolução, mas diuturnamente. Dessemodo, a perspectiva histórica do socialismo ajuda, orienta e valoriza me-didas simples, ao alcance da cidadania, sem a grandiloqüência dos gran-des eventos, mas preparando-a para seu autogoverno.

Foram abordados o recado das urnas de 2000, a rica experiência, quea vários títulos representa uma enorme inovação política, do orçamentoparticipativo, o planejamento urbano, a reforma agrária e o movimentodos trabalhadores sem-terra, as formas contemporâneas da luta social, adecisiva revolução molecular-digital e a virada da informação, e, porúltimo, as complexas relações econômicas internacionais na era da cha-mada globalização. O exame travejou, sempre, a experiência das lutascom a reflexão que procurava projetá-las e entendê-las no quadro datransformação urgente e radical. Destacados militantes do Partido dosTrabalhadores, desde seu presidente de honra, novos dirigentes munici-pais, calejados quadros políticos, governadores e prefeitos, especialistas,reputados professores universitários, apoiados, discutidos e contestadospor um público sempre numeroso e participante, dedicaram o tempo ne-cessário para arejar o pensamento, desafiando o entendimento da novacomplexidade. Assim, o PT busca juntar ação e reflexão, não apenaspara preparar quadros, mas para assumir o mandato da transformação –como disse uma já clássica canção petista – “sem medo de ser feliz”.

Em nome da Comissão Organizadora,Francisco de Oliveira

Page 11: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

9SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Nota do editor

Pela primeira vez a coleção Socialismo em Discussão publica umtexto sem que ele tenha sido revisto e corrigido pelo autor. Em funçãodo brutal assassinato do prefeito Celso Daniel em janeiro de 2002, so-mos obrigados a isso.

Por esse motivo, optamos por publicar também, logo após o textotranscrito da palestra, o roteiro preparado pelo então prefeito deSanto André para esta exposição, tal e qual ele o entregou aosorganizadores do evento.

Agradecemos a Ivone de Santana e a Gilberto Carvalho por teremlido e feito correções e observações no texto transcrito da palestra,proferida no seminário Socialismo e Democracia, na sessão realizadaem abril de 2001. Tais sugestões foram incorporadas à versão final.

Ressalte-se que os demais textos, de Marina Silva, Miguel Rossetto eLadislau Dowbor, foram revistos e corrigidos pelos autores.

Ditas estas palavras necessárias sobre os textos de Celso Daniel publi-cados neste volume, resta-nos registrar nossa profunda indignação emrelação ao modo como fomos privados de sua convivência. Um ato deviolência e de covardia que nos deixa perplexos e é um retrato semretoques de nosso país nos dias de hoje.

Page 12: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

10 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Esperamos que esta publicação, assim como outras que venham aser feitas, ao nos colocar novamente em contato com o pensamento deCelso Daniel, seja uma forma, mesmo que insuficiente e incompleta,de tê-lo ainda conosco.

Page 13: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

11SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Celso Daniel

Antes de mais nada, quero agradecer o convite da Fundação PerseuAbramo, do Instituto Cidadania e da Secretaria de Formação Políticado PT para fazer essa exposição. Começo também dizendo que paramim é uma responsabilidade, até um pouco complicada, fazer uma apre-sentação vinculando as experiências de desenvolvimento local à pro-posta de socialismo. Mais complicado ainda, levando em consideraçãoas pessoas que têm participado destes seminários e as pessoas queestão hoje aqui presentes. E sei, desde logo, que a abordagem da qualvai partir minha exposição significa estabelecer certas referências queestão longe de ser consensuais, digamos assim, dentro do Partido dosTrabalhadores ou da esquerda.

Mas prefiro partir disso, mesmo correndo o risco de criar mais proble-mas e mais divergências, a fazer uma exposição que partisse já direta-mente da questão do desenvolvimento local.

Por isso dividirei minha exposição em quatro pontos. O primeiro deleschamo de duas dinâmicas contraditórias – sistema democrático e modode produção capitalista; no segundo ponto, abordarei rapidamente o que

Perspectivas que o desenvolvimentolocal e a distribuição de rendaabrem à construção do socialismo

Page 14: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

12 PODER LOCAL E SOCIALISMO

considero alguns importantes traços da herança da formação social bra-sileira e as transformações recentes pelas quais o Brasil tem passado.Um terceiro ponto, com algumas referências sobre socialismo, que jácomeçam a criar condições para realizar um contato mais direto com otema do desenvolvimento local; e uma conclusão sobre desenvolvimentolocal e sua vinculação com socialismo.

Sistema democrático e modo de produção capitalista – Sobre oprimeiro ponto, trabalho a partir da idéia de que, na verdade, particular-mente a partir do final do século XVIII, duas dinâmicas distintas, contradi-tórias, com muitos pontos de contato, se estabelecem no mundo ociden-tal. Elas são, por um lado, a constituição do modo de produção capitalistae, por outro, a constituição do Estado-nação moderno, que abre espaçopara a emergência do próprio sistema democrático, entendido aqui, evi-dentemente, não como regime político, mas como sistema social.

Já a constituição do modo de produção capitalista, como todos sabe-mos, se nutre do Estado-nação sob diferentes regimes políticos, seja di-tatorial, seja democrático.

Queria também lembrar que muito do que discutimos hoje a respeitode globalização e neoliberalismo creio que não é, ou pelo menos nãodeveria ser, tão novo assim, como muitas vezes imaginamos. Consideroque, a esse respeito, a obra de Karl Polanyi A grande transformação éuma referência muito interessante, pois, ao buscar entender as origensdos grandes problemas que a humanidade viveu na década de 1930 eque tiveram seu ápice na Segunda Guerra Mundial, o autor conclui queeles tinham a ver com a tentativa de implementação do que ele conside-rava uma utopia irrealizável: o mercado auto-regulador, a idéia de queseria possível pela primeira vez na história fazer com que as própriasrelações sociais ficassem submetidas às relações econômicas. Diz Polanyi

Page 15: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

13SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

que as relações econômicas, evidentemente, sempre existiram na histó-ria da humanidade, mas isso é muito diferente de uma etapa em que asrelações sociais têm de se ajustar ao figurino de uma economia de mer-cado auto-regulada, às relações econômicas assim constituídas. E afir-ma que essa é uma utopia irrealizável. Nem bem essa idéia evoluiu paraa prática – a partir da Grã-Bretanha, que foi a nação hegemônica noséculo XIX e no início do século XX –, com a criação do mercado detrabalho livre, automaticamente a sociedade começou a reagir a essatentativa de imposição, criando seus próprios mecanismos de autodefe-sa, sobretudo a criação de alternativas de organização social ao sistemacapitalista, que foram basicamente as alternativas soviética, por um lado,e fascista ou nazista, por outro.

Em poucas palavras, Polanyi afirma que o que criou condições históricaspara a emergência dessas outras alternativas de organização da sociedadefoi a tentativa fracassada de implantação de um mercado auto-regulador.

Faço essa referência porque busco meu contraponto à idéia de merca-do auto-regulador, em primeira instância, em alguns textos de Franciscode Oliveira, que falam do mercado socialmente regulado, do antivalor,como ele chama [ver bibliografia, p. 44]. Mas também porque, digamos,a reposição, principalmente a partir da década de 1980, dessa idéia deeconomia auto-regulada, mercado auto-regulador, não é uma coisa novana humanidade, como eventualmente pode parecer a partir das discus-sões que vemos estampadas nos jornais, ou mesmo por acadêmicos etc.

O que me preocupa nessas questões todas é que, considerando quemeu ponto de vista foi sempre elaborado ainda durante a década de1980, com minha militância no PT, comecei a ficar muito impactado coma maneira como determinados grupos no partido se moviam – isso emSanto André, sem generalizar –, e a partir daí comecei a desenvolver umconjunto de reflexões críticas a propósito do chamado socialismo real,

Page 16: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

14 PODER LOCAL E SOCIALISMO

antes da queda do muro de Berlim. Isso tem muito a ver com minhavivência prática no PT – insisto, não é apenas uma reflexão teórica – eme aponta uma questão, a meu ver fundamental, que diz respeito exata-mente ao fato de que essas dinâmicas são contraditórias.

Parto da noção de que a democracia não é efetivamente uma obraburguesa. Sei que o sistema democrático tem sido utilizado pelo capital,pelo movimento do capital, para sua reprodução ao longo de todos essesséculos. Mas não acho que isso nos autoriza a dizer que a democracia éuma obra burguesa. Creio que a luta de classes tem sido expressa sobre-tudo pela luta por direitos. Luta que é dotada de imprevisibilidade, algoque não pode ser domesticado por nenhum grupo social, nenhum gover-no, nenhum partido político.

E, nesse sentido, considero correta a idéia de que é necessário fazeruma reflexão crítica a respeito do socialismo real que vá até a raiz deseus problemas.

Ir até a raiz dos problemas do socialismo real significa, assim, a meujuízo, criticá-lo de maneira enfática, considerando que ele é uma versãode esquerda do sistema totalitário. Ir até a raiz dessas questões significatambém fazer uma reflexão crítica a respeito do próprio Marx, não, nocaso de Marx especificamente, no sentido de negar a obra marxista,mas no de, digamos assim, superar a ordem marxista a partir dela mes-ma, o que evidentemente não é uma coisa fácil de fazer.

Queria mencionar aqui que a crítica que Marx faz a propósito da ques-tão dos direitos e, por tabela, à questão da democracia é pertinente, semdúvida nenhuma, mas insuficiente. Porque ela na verdade esconde refe-rências ou questões que têm muito a ver exatamente com o papel positi-vo que o sistema democrático tem condição de desempenhar e tem con-cretamente desempenhado nas nossas sociedades. Ou pelo menos emalgumas das nossas sociedades.

Page 17: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

15SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Os direitos do homem aparecem para Marx como mera ilusão. Lembroque participei de um debate com João Machado – professor de economiada PUC-SP e dirigente do PT –, que está presente aqui, e ele me disse queisso não é bem verdade, que é um pouco complicado afirmar que os direi-tos do homem ou a democracia para Marx são mera ilusão. Ele argumen-tava que, se a igualdade ou a liberdade são formas de aparecer das coisas,elas encobrem um conteúdo, e para Marx forma e conteúdo estão ligados.A forma não é nunca apenas aparência, nunca apenas ilusão.

Pode ser que sim, mas ainda acredito no que eu havia dito inclusive emrelação àquela passagem no próprio O capital em que Marx se refereao fato de que a esfera da circulação era de fato o verdadeiro Éden dosdireitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente liberdade,igualdade, propriedade... Bom, depois ele vai explicar que as pessoassão livres porque podem ir ao mercado e estão livres dos seus meios deprodução, dos seus meios de subsistência e são livres também no sentidode que poderiam optar, no caso da força de trabalho, pelo emprego quemelhor lhes conviesse; que reina a igualdade no mercado porque asmercadorias se trocam pelos seus valores – na idéia do valor-trabalho.Ou seja, essas idéias de que liberdade e igualdade aparecem fundamen-talmente como ilusão não estão apenas numa obra anterior do jovemMarx, mas no próprio O capital.

Acredito que isso fez com que historicamente na tradição marxistadominante houvesse uma profunda falta de preocupação ou de cuidadocom a democracia, particularmente com a democracia como sistema.

Insisto: a democracia não pode ser considerada meramente uma obraburguesa. E, mais do que isso, essa afirmação [sobre a preocupaçãocom a democracia] é verdadeira para o totalitarismo fascista, mas tam-bém acho que é verdadeira para o totalitarismo soviético – ele se erguesobre a queda e a ruína da própria idéia dos direitos do homem.

Page 18: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

16 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Trotski, em seu livro sobre Stalin1, diz:

“L´Etat c’est moi! é quase uma forma liberal em comparaçãocom as realidades do regime totalitário de Stalin. Luís XIV identi-ficava-se apenas com o Estado. Os papas de Roma identifica-vam-se, ao mesmo tempo, com o Estado e com a Igreja, masunicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado to-talitário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda aeconomia do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizera justo título: La societé c’est moi! O que é evidentemente umaoutra coisa”.

Ou seja, no fundo, é o início de uma elaboração a respeito da idéia deque na verdade o socialismo real era na prática um sistema totalitário,entendido a partir dessa idéia de que “a sociedade sou eu”.

Enquanto isso, no âmbito do sistema democrático, o que na verdade seopera é uma divisão entre a sociedade civil e o Estado. Uma distinçãoentre o poder político – e isso tem uma eficácia simbólica importante –,que é limitado de direito, não existem governos que sejam donos do po-der, e o poder administrativo, que tem muito a ver com o crescimento dasburocracias estatais, com a tendência de o Estado, na época moderna,no sistema democrático, visar a um controle cada vez maior dos detalhesda vida social. E, na linha de um texto da Vera Silva Telles2, que vai fazeruma avaliação crítica do pensamento de Hannah Arendt, considero quenesse caso, ou nesse campo do sistema democrático, a esfera pública e,portanto, a relação público–privado têm um papel absolutamente crucial.

Aliás, diferentemente de algumas referências da teoria de HannahArendt, mas também de Jürgen Habermas sobre a esfera pública, afir-ma ela que ações coletivas são vinculadas a interesses em meio a confli-

1. TROTSKI, L. Stalin. São Paulo,Progresso Editorial, 1947.2. TELLES, V. S. “Espaçopúblico e espaço privado naconstituição do social, notassobre o pensamento deHannah Arendt”. RevistaTempo Social. São Paulo,Universidade de São Paulo,primeiro semestre de 1990.

Page 19: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

17SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

tos que atravessam o campo social. Se tais interesses aparecem comoalgo mais que a simples defesa corporativa, dependem da articulação deuma linguagem por meio da qual interesses privados podem serdesprivatizados e, portanto, reconhecidos publicamente na sua legitimi-dade. É na linguagem dos direitos que a defesa de interesses se fazaudível e reconhecível na dimensão pública da vida social. Creio queposta dessa maneira a questão do papel fundamental da esfera públicano sistema democrático, no âmbito dessa relação público–privado, masinsistindo no papel da esfera pública como uma referência para conquis-ta e disputa de novos direitos de cidadania, ela continua a ser uma refe-rência extremamente importante que, insisto mais uma vez, afirma nova-mente a distinção que é preciso que nós também afirmemos entre demo-cracia e sistema capitalista, democracia e economia de mercado, parti-cularmente a economia de mercado auto-regulada.

Herança brasileira – Dito isso, gostaria de fazer algumas rápidasconsiderações a respeito do Brasil, porque acho difícil falarmos de de-senvolvimento local de maneira abstrata, e se queremos começar a falarcom base em referências que temos construído a partir da nossa práticaconcreta, é preciso também que consideremos algumas característicasdo nosso país. E aqui eu queria apenas, muito sinteticamente, resgataralgumas dessas referências que me parecem importantes.

Em primeiro lugar, gostaria de abordar a herança brasileira; em segun-do lugar, telegraficamente, de falar duas palavras sobre o Brasil hoje,particularmente na década de 1990; e em terceiro lugar dar algumaspitadinhas a respeito do Brasil como uma Federação. Acho que isso éimportante não só para entender o Brasil, mas também para localizar demaneira adequada as possibilidades, os desafios e os limites que se colo-cam para o desenvolvimento local em nosso país.

Page 20: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

18 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Em termos de herança brasileira, realmente considero que uma carac-terística básica é a reposição quase permanente dessa simbiose entre otradicional e o moderno. Essa idéia de superar o arcaico ou o tradicional,apresentando uma proposta moderna, pode ser encontrada em váriosmomentos da história do Brasil com muita facilidade, mas na prática, seformos ler bem o que está acontecendo, o que está sendo produzido éuma nova simbiose entre o tradicional e o moderno, ou seja, a permanên-cia na continuidade.

Refiro-me a isso porque acho fundamental, porque aprendi sobre issomais diretamente na minha vida como prefeito, a partir da primeira ges-tão. Muitas vezes, no PT ou no âmbito da esquerda, nós travamos umadiscussão substantiva, extremamente importante, mas às vezes tão afas-tada de questões cruciais que determinam a maneira como as pessoastomam decisões no dia-a-dia, envolvendo às vezes um hiato tão grande,que me vi na necessidade de tentar entender um pouco melhor por queas coisas aconteciam dessa maneira.

Então, fundamentalmente, minha preocupação aqui, na linha de muitosdos chamados clássicos da historiografia brasileira, é fazer uma reflexãoa respeito das possibilidades de transformação, que exigem de nós, aquino Brasil também, ter sempre um extremo cuidado com a idéia de queestejamos transformando tudo ou quase tudo, quando na verdade, aorealizar essas transformações, podemos estar novamente reproduzindoa simbiose entre o tradicional e o moderno que estou comentando. Isso émuito verdadeiro no que diz respeito, por exemplo, à nossa cultura políti-ca clientelista. Nossas formas de agir e o sistema político, e até a própriasociedade, funcionam muito com base nessa cultura.

Então, não podemos subestimar a tendência à reprodução daquilo queherdamos quando pensamos em construir algo de novo. É que o Brasiltem uma convivência quase atávica de duas coisas muito contraditórias,

Page 21: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

19SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

que não é o caso de desenvolver aqui, essa combinação entre violência eintimidade. Creio que isso é realmente muito próprio do nosso país. Des-dobramentos disso são o patrimonialismo e uma – acredito eu – reco-nhecida atrofia da esfera pública, fundamental para o meu argumento,porque essa atrofia está vinculada justamente ao fato de que também asdecisões políticas passam principalmente por relações de natureza pes-soal. E quando as decisões fundamentais passam por relações de natu-reza pessoal o que acontece, na verdade, é que se está eludindo a possi-bilidade de que essas grandes discussões sejam feitas na esfera pública,no espaço público democrático. Esse é, a meu juízo, um problema bas-tante sério. Nós criamos aqui inúmeras e recorrentes avenidas de com-pensação social que servem para as pessoas garantirem muitas vezes asua sobrevivência, e também para reiterar a profunda desigualdade so-cial que temos no Brasil e inibir as possibilidades de que estas desigual-dades e o tema dos direitos sejam expostos da maneira como poderiamou deveriam ser debatidos na esfera pública, realmente a partir da açãocoletiva combinada com a linguagem dos direitos.

Então, isso gera uma série de problemas para o Brasil e para a demo-cracia no Brasil, por exemplo os reconhecidos erros recorrentes, os pro-blemas ligados à incompatibilidade entre a dominação burguesa e a de-mocracia no Brasil, já tematizados por Florestan Fernandes3. José LuísFiori, me parece, expressa muito bem no texto que prepara sua tese dedoutorado4 a recorrência das fugas para a frente, no período nacional-desenvolvimentista, que fazem com que, na verdade, empurremos osproblemas com a barriga, resolvendo problemas específicos sem resol-ver o essencial, que Fiori localiza basicamente na incapacidade das elitesbrasileiras de arbitrar perdas entre os interesses dominantes.

Então, a agregação de novos interesses, sejam eles arcaicos, sejammodernos, dentro desse arco de forças e alianças que abarca todo o

3. FERNANDES, Fernandes. Arevolução burguesa no Brasil.Rio de Janeiro, Zahar, 1981.4. FIORI, J. L. “O nó cego dodesenvolvimento brasileiro”.Novos Estudos Cebrap, no 40.São Paulo, 1994.

Page 22: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

20 PODER LOCAL E SOCIALISMO

conjunto de setores dominantes, por não conseguir impor perdas fazcom que haja, por um lado, problemas sérios para implantação de umsistema no qual os direitos possam realmente ser respeitados, e, poroutro, a válvula de escape, o aprofundamento recorrente da dependên-cia, tanto a tecnológica como, mais recentemente, a financeira em re-lação ao exterior.

Esses fatores, embora pareçam estar um pouco distantes do desenvol-vimento local, na realidade não estão. Não vou fazer todas as mediaçõesnecessárias, mas não é bem assim, eles estão muito presentes no dia-a-dia da nossa política e da nossa sociedade. Então, isso gera reposiçãorecorrente do binômio autoritarismo–dependência.

Nesse ponto, recorro também a um texto recente de GuillermoO’Donnell, em que ele fala a respeito da ineficácia da lei na AméricaLatina5 . Ele faz uma reflexão que me parece muito interessante, bus-cando distinguir entre o que se entende como poliarquia e o que pode-ria ser entendido de verdade como democracia, compreendendo quedemocracia tem que ser um sistema em que pelo menos os direitosestabelecidos devem ser respeitados. Ele afirma que é facilmente re-conhecível que em casos como o do Brasil os direitos não são respeita-dos. Então, há uma poliarquia, um conjunto de características – elei-ções periódicas, partidos políticos livres, imprensa relativamente livre,liberdade de pensamento –, uma série de coisas que são próprias doregime democrático mas na verdade não correspondem à implantaçãoefetiva de uma democracia propriamente dita, com respeito aos direi-tos e à lei, em países como o nosso. Creio que isso não é outra coisasenão uma maneira de expressar o fato de que no Brasil não temosuma democracia propriamente dita. Nos termos que coloquei aqui, apartir do ponto de vista de O’Donnell, temos uma poliarquia, mas nãouma democracia.

5. O’DONNEL, G. “Poliarquias ea (in)efetividade da lei naAmérica Latina”. Novos EstudosCebrap, São Paulo, no 51,1998, p. 37-62.

Page 23: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

21SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Apenas quero insistir no seguinte: não vivemos numa ditadura nessemomento. A meu ver, não vivemos numa sociedade totalitária, mas tam-bém não vivemos numa democracia propriamente dita, o que coloca di-ficuldades mais profundas à discussão do socialismo, particularmente sea nossa reflexão sobre socialismo passa também pela democracia. Senão chegamos nem sequer a condições básicas para afirmar direitos quepossam valer de fato na nossa sociedade, o problema é mais complexo,e as nossas dificuldades, portanto, mais profundas ainda.

O que vemos no Brasil recente não é nada alentador, muito pelocontrário, porque uma análise sóbria mostra que, durante a década de1990, os governos brasileiros buscaram fazer sua inserção no sistemaeconômico e político internacional de um modo que reproduziu essemisto de tendências ao autoritarismo, à falta de democracia e aoaprofundamento da dependência. Nós sabemos que, se tínhamos o pro-blema grave da dívida externa, que se expressou com muita clarezadurante a década de 1980, e se a partir de um certo momento esseproblema mudou de qualidade, durante a década de 1990, a linha polí-tica adotada particularmente pelos dois últimos governos federaisaprofundou nossa dependência financeira externa. Isso cria problemasmuito sérios em torno de um projeto nacional alternativo.

Do ponto de vista das próprias relações democráticas, outras referên-cias que pude obter vieram a partir de alguns textos de Francisco deOliveira e de Maria Célia Paoli6, que levantam alguns pontos importan-tes. Particularmente, me causou bastante impacto a afirmação de queaqui no Brasil, sobretudo durante a década de 1990, a exclusão é atémesmo semântica, porque quando, no campo da linguagem, é negadaaos setores dominados sua própria condição de afirmar os seus direitos,quando o que era entendido até então como direitos dos dominados, dostrabalhadores, dos setores dominados é condenado pela mídia, pelo go-

6. OLIVEIRA, Francisco.“Privatização do público,destituição da fala e anulaçãoda política”. In: OLIVEIRA,Francisco e PAOLI, Maria Célia.Os sentidos da democracia.Petrópolis, Vozes, 1999.

Page 24: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

22 PODER LOCAL E SOCIALISMO

verno federal, como interesses meramente corporativos, o que se estáquerendo é deslegitimar essas lutas por direitos que, com todas as difi-culdades, os dominados têm levado a efeito no Brasil, ao longo das últi-mas décadas.

Poder local – Gostaria de fazer algumas ponderações sobre o poderlocal e a Federação. A primeira delas é a seguinte: acho que, emboratodos tenhamos consciência disso, é preciso reafirmar que, no âmbitolocal, temos uma convivência de práticas, vivências e ações completa-mente contraditórias, que se expressam, talvez pela primeira vez, pormeio de iniciativas inovadoras que poderemos considerar até mesmorevolucionárias, em termos de auto-organização da população, mas nãosó disso. Estou me referindo particularmente a iniciativas de gestões deesquerda relativas à prioridade nos investimentos sociais, à participaçãoda população, ao orçamento participativo, por exemplo. São, acredito,ações importantes e que têm sido valorizadas cada vez mais no Brasil eem outros lugares. Mas, ao mesmo tempo que isso acontece, é evidenteque não faria o menor sentido fechar os olhos para o fato de que numagrande maioria dos espaços locais, desses núcleos de decisão descen-tralizados, em nível municipal e regional, o que impera, na verdade, é areprodução ou a reiteração daquilo que existe de mais arcaico do pontode vista da política brasileira, das relações estabelecidas no poder local,entre governo local, comunidade local e assim por diante. Em outraspalavras, o mandonismo local – não acho que seja possível falar aindaem coronelismo, no sentido empregado por Vítor Nunes Leal7; estamosvivendo um outro momento. Mas aqui, sem dúvida nenhuma, é muitofácil perceber como, apesar das mudanças ao longo de décadas e déca-das, o que vemos é a reprodução do arcaico com o moderno. Eventual-mente aqui, muito mais arcaico do que moderno.

7. Advogado, é autor do livroCoronelismo, enxada e voto(Rio de Janeiro, NovaFronteira, 3a edição, 1997),considerado um clássico daliteratura política brasileira.Foi também chefe doGabinete Civil no governode Juscelino Kubitschek eministro do SupremoTribunal Federal.

Page 25: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

23SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Então, essa convivência contraditória do que existe de mais inovador,até mesmo revolucionário, no campo da política, da esquerda, com práti-cas as mais atrasadas, as mais arcaicas, as mais tradicionais possíveis,faz parte da nossa Federação. Estou fazendo uma constatação para nãoesquecer que eventualmente as pessoas mais pessimistas vão sempreenxergar a esfera local como “o atraso do atraso”, e as pessoas maisotimistas vão enxergá-la como ponto de partida graças ao qual é possívelfazer todo um conjunto de outras transformações radicais e tudo mais.

Acho que a realidade é mais complexa que isso. Na realidade, convi-vemos com situações muito contraditórias; isso faz parte, portanto, donosso ponto de partida, para pensar as potencialidades, mas também oslimites do desenvolvimento local.

E acredito que o Brasil funciona como uma Federação mesmo, em-bora muito peculiar. A partir de um certo momento comecei a mesurpreender com a quantidade de pessoas que foram pegas de sur-presa com o fato de que o processo de redemocratização trouxe devolta, como uma avalanche, a multiplicação das relações clientelistasdo país. Eu poderia desenvolver essa idéia um pouco mais, porque,afinal de contas, isso acontece por causa das características própriasde funcionamento da sociedade brasileira, combinando o arcaico como moderno; quando se restauram relações formalmente democráti-cas, são restauradas, ao mesmo tempo, as condições para que oclientelismo volte a florescer de maneira muito mais intensa do queacontecia durante a ditadura militar. E a primeira grande manifesta-ção disso não se dá na esfera local. A primeira grande manifestaçãodo reaparecimento do clientelismo, dos grandes acordos que acabamem pizza etc., foi exatamente, como produto do Colégio Eleitoral, acomposição do governo Tancredo-Sarney, em 1985. Há expressãomais clara e acabada de um novo acordo daquilo que poderíamos

Page 26: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

24 PODER LOCAL E SOCIALISMO

chamar “oligarquias regionais” do que a forma como foi montado ogoverno Tancredo-Sarney?

Estou fazendo essa ponderação também para deixar claro que achomuito equivocadas as análises que consideram que o clientelismo émais forte ou está mais arraigado no espaço local. Nossa cultura, nos-sa herança, a respeito da qual falei rapidamente antes, que se expressanessa cultura que estou chamando de patrimonialista, clientelista, re-corta o Brasil de cima a baixo e está no topo, como mostra a própriacomposição do governo Tancredo-Sarney, que estou comentando ago-ra. Não é casual que a recomposição de forças hegemônicas aqui noBrasil, que se deu durante a década de 1990, particularmente em tornodo governo FHC, tenha reincorporado, a partir de uma nova tentativade busca de hegemonia, o conjunto desses setores em muitas relaçõesestabelecidas entre os poderes econômicos regional e local, entre ospoderes políticos local e regional.

O Brasil funciona como uma Federação. Se prestarmos atenção namaneira como os deputados federais se articulam com as suas baseslocais, teremos um bom exemplo dessa articulação que mencionei entrelocal e regional, e veremos como a própria reeleição desses políticosdepende dessa vinculação. O que estou dizendo é que não é possívelpensar que o Congresso Nacional é uma coisa e o que acontece noespaço local é outra. Nós vivemos no mesmo país. Claro que o queacontece no Congresso não é uma expressão mecânica do que aconteceno espaço local, mas é uma expressão mediada por uma série de outroselementos que não tenho tempo de desenvolver aqui.

E, ao lado disso, o Brasil é uma Federação, o que significa que parapensar um projeto nacional, a meu juízo, é preciso pensar também umareformulação da Federação como parte desse novo projeto, porque, casocontrário, estaremos pensando um projeto nacional que significa um con-

Page 27: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

25SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

junto de mudanças a partir de Brasília, sem levar em conta que o Brasilnão funciona desse jeito, que seu real funcionamento é o de uma Federa-ção. Isso é algo que, insisto, não pode ser esquecido.

Socialismo e radicalização da democracia – Gostaria de fazer al-gumas ponderações a respeito do socialismo, referências que já me per-mitem estabelecer alguns pontos de contato mais diretos com a questãodo desenvolvimento local.

Acredito, como Habermas, que ainda vivemos o tempo moderno, ouseja, que não se esgotaram as energias utópicas. Ele diz, “a consciênciado tempo inaugura um horizonte em que o pensamento utópico se fundeao pensamento histórico”. Na seqüência, afirma que “o que se esgotouna verdade foi uma utopia ligada à sociedade do trabalho”. Nesse ponto,não concordo com ele, acredito que é um equívoco seu e de vários ou-tros autores que pensam a crise no nosso tempo. Acredito, sim, quehouve mudanças, transformações profundas na nossa estrutura de clas-ses, de grupos sociais, nas estruturas econômicas que estamos vivenciandorecentemente, mas não acredito que tenha acontecido uma superaçãoou a impossibilidade de se pensar a utopia a partir de uma sociedade dotrabalho. A necessidade de repensar uma utopia baseada na sociedadedo trabalho é uma coisa absolutamente fundamental, seja em razão daqueda do muro de Berlim, seja em razão de transformações muito im-portantes que ocorreram no Brasil e no mundo.

Mas é verdade, por outro lado, que a derrocada do socialismo real noscolocou diante de sérios problemas. Certos ou errados, tínhamos algu-mas certezas, que de repente foram colocadas em xeque. Não tenhonenhuma condição de falar sobre novas certezas porque não as tenho.Mas acredito que seja possível ter alguns pontos de partida, nesse mo-mento. Ter algumas referências sobre socialismo, sem abrir mão da idéia

Page 28: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

26 PODER LOCAL E SOCIALISMO

de socialismo. Isso significa a constatação, ou o ponto de partida, de queprecisamos reconstruir essas referências e, portanto, formular uma novaidéia de sociedade a partir da nossa realidade, da crítica do passado e dopotencial que o presente abre para o nosso futuro.

Estou tomando aqui algumas referências de um autor chamado GrahameThompson, num texto pequeno chamado Flexible Specialization, in-dustrial districts, regional economies: strategies for socialists?. Eletrabalha compromissado com a propriedade comum e a organizaçãocooperativa, com a promoção de decisões democráticas em todas asdimensões da vida, com a supressão e/ou controle dos mecanismos demercado em alocação e distribuição. Compromisso com igualdade deoportunidades e, em certos casos, com igualdade de resultados. Genera-lização do emprego e competências culturais para viabilizar oautodesenvolvimento e a autonomia no trabalho e no lazer etc.

Acho que precisamos trabalhar com algumas referências. A referên-cia que tomo como ponto de partida é a da construção de uma sociedadesocialista a partir da idéia de radicalização da democracia, tentando res-taurar o elo com as observações iniciais que eu havia feito.

Quero integrar também algumas referências que partem da chamadaescola da regulação. Não que eu tenha integral concordância com ela,muito menos qualquer ilusão a respeito da idéia de que um modelo dedesenvolvimento fordista tivesse sido aplicado em países como o nosso,sei que isso não aconteceu. Considero apenas de passagem essa afirma-ção. O momento que vivemos me leva a pensar que é preciso considerarque, além das conjunturas, são forjados também modelos de desenvolvi-mento de largo prazo, que são longos períodos no capitalismo em que umdeterminado regime de acumulação é o resultado macroeconômico dofuncionamento de um modo de regulação com base no modelo de orga-nização do trabalho. Este, por sua vez, é alicerçado numa tecnologia.

Page 29: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

27SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Acho que são elementos importantes porque, na verdade, embutem aidéia de que por trás disso está uma visão de mundo a respeito do que ébom, do que é ruim, fundado num grande compromisso que pode e cos-tuma ser defendido por famílias políticas distintas, da esquerda à direita.

É possível extrair de alguns textos uma síntese sobre a escola daregulação – tomei como base particularmente um livro de Lipietz cha-mado Audácia: uma alternativa para o século XXI –, porque eles per-mitem que entendamos, por exemplo, qual foi o papel do governoMitterrand na França, como última tentativa de reafirmação de um mo-delo de desenvolvimento fordista, num momento em que já não haviamais condições objetivas para que isso acontecesse. Permitem tambémfazer uma análise a respeito da terceira via na Europa, nesse caso comoparte de uma tentativa de construção do modelo de desenvolvimentoneoliberal, do mercado auto-regulador no período atual, desse grandemodelo de desenvolvimento que, na verdade, não deixa de ser neoliberal.

Acho que essas são referências importantes, porque a idéia de ummodo de regulação nos permite reatar a noção de regulação dos merca-dos e a idéia de grande compromisso, de visão de mundo que torna pos-sível trazer referências também relativas à questão da hegemonia, dadisputa da hegemonia a partir do pensamento de Gramsci. Particular-mente, considero isso importante porque acredito que no Brasil nos fal-tam condições objetivas e reflexões nesse momento para a construçãoimediata de uma sociedade socialista, mas, mantendo referenciais socia-listas, tendo como ponto de partida princípios socialistas, devemos consi-derar um modelo de desenvolvimento que corresponda a um projeto denação orientado por referências socialistas.

Sobre uma visão mais crítica a respeito do socialismo real, eu me per-mitiria pensar a partir da reflexão de Francisco de Oliveira, em seustextos sobre o antivalor8, em que ele discorre rapidamente sobre o que

8. OLIVEIRA, F. de. Os direitos doantivalor: a economia política dahegemonia imperfeita.Petrópolis, Vozes, 1997.

Page 30: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

28 PODER LOCAL E SOCIALISMO

considera que seria o pós-Estado de bem-estar social, o alargamento ou aradicalização da democracia. Em primeiro lugar, essa própria referênciaao antivalor – não tenho condições de desenvolver as idéias dele –, a idéiade que teria estado em curso na gestação mesmo dos Estados de bem-estarsocial a partir da criação de um fundo público, com o antivalor, o alargamen-to das esferas públicas democráticas e as condições para o estabelecimentode uma economia de mercado socialmente regulado. Ou seja, uma econo-mia de mercado muito distinta daquela que foi a utopia analisada por Polanyi,a utopia do mercado auto-regulador. Esta última retorna aos nossos tem-pos, na cena pública, a partir principalmente da década de 1980, como aidéia da construção ou a utopia de direita da construção do mercado auto-regulador. O contraponto a essa utopia é justamente a construção de umaeconomia de mercado socialmente regulado, vinculada à construção, àcriação de um fundo público. Mas um fundo público, por sua vez, é levadoa efeito por intermédio da esfera pública, da interação de diferentes gru-pos, classes sociais, atores econômicos e políticos na esfera pública, maisparticularmente na esfera pública e democrática.

Diz Chico de Oliveira sobre essa forma de produção e distribuição deexcedente que não se trata de resgatar a idéia de Estado de bem-estar,mas sim de pensar num pós-Estado de bem-estar, e a partir daí as refe-rências relativas ao antivalor podem ser importantes, porque nesse cam-po, que não é meramente o da lógica da reprodução do valor, da lógicada reprodução do capital, a forma de produção e de distribuição de exce-dentes não tem o valor-trabalho como estruturante, mas os valores decada grupo social dialogando na esfera pública, na linguagem dos direi-tos. Creio que para pensar o socialismo hoje, as referências socialistasou um pós-Estado de bem-estar social é preciso também fazer uma ava-liação crítica a respeito do Estado de bem-estar social – mesmo sabendoque muitas vezes a direita tem se apropriado dessa avaliação.

Page 31: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

29SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Ocorre, porém, que eu acredito que isso seja um ponto obrigatóriotambém para o pensamento de esquerda, a necessidade de superar oformalismo burocrático castrador de iniciativas do próprio Estado de bem-estar social, que é um produto da expansão do poder administrativo, quevem em conjunto com o alargamento da própria democracia, oprodutivismo, a desconsideração das questões ligadas ao meio ambiente,dos direitos contra a discriminação e também o autoritarismo na esferada produção. A teoria da regulação é algo que faz parte do chamadocompromisso fordista.

Não vou resgatar aqui todas as idéias da Comuna de Paris, evidente-mente, porque isso não seria compatível com muito do que estou desen-volvendo aqui. Mas queria lembrar que Marx, ao fazer a análise daComuna de Paris em A guerra civil na França, entre várias outrascoisas diz se tratar de um governo flexível, um governo barato para aviabilização das condições para a democracia direta. No nosso caso, eudiria, na esfera local, trata-se das condições para viabilização do encon-tro entre democracia direta e democracia representativa. Ao falar que aComuna – muito além do debate que se travava sobre a necessidade defazer uma descentralização do Estado francês, muito além disso – era aexpressão da possibilidade de extinção dos fundamentos econômicos,das classes sociais (o que para nós, acredito, significaria a possibilidadeconcreta de emergência de novas formas de produção e mesmo de no-vas relações capital–trabalho), falava também no novo Estado, no socia-lismo ou comunismo, neste caso, como novo Estado. Ele consideravaorganizar a unidade nacional mediante um regime comunal. É claro queMarx está fazendo a análise da Comuna de Paris, que se deu numacidade específica. Estou querendo dizer apenas que ele, ao analisar aquiloque poderia ser a prefiguração do comunismo na França, o faz a partirdo regime comunal, ou seja, a partir das comunas, da realidade local.

Page 32: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

30 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Creio que isso tem passado despercebido por praticamente todo o deba-te que se travou a partir daí, particularmente porque quem se aproprioude todo o referencial da Comuna de Paris e de outras discussões anterio-res de Marx e de Engels foi principalmente a vertente leninista inspiradaem Estado e revolução, de Lenin. E em Estado e revolução isso desa-parece completamente.

Estou querendo meramente resgatar essa idéia, porque acho que elacria condições para pensar, nas características de hoje, na importânciade considerar o desenvolvimento local como parte da construção de umEstado nacional democrático, no novo modelo de desenvolvimento nacio-nal, num projeto nacional orientado pela idéia do alargamento da demo-cracia. Organizar, portanto, a unidade nacional de outra maneira. Achoque isso casa perfeitamente com o fato de o Brasil ser uma Federação.E é preciso pensá-lo dessa maneira e considerar a esfera local a partirdesse ponto de vista, dessas considerações.

Resgato aqui também algumas idéias de um livro – organizado porAlain Lipietz e Georges Benko – chamado As regiões ganhadoras,em que os autores, ao concluírem a reflexão crítica a partir de umasérie de textos sobre o tema do desenvolvimento regional, propõem acriação de blocos sociais territoriais. Eles mesmos ressaltam queesta é uma idéia com clara inspiração gramsciana, no quadro do mo-delo de desenvolvimento nacional. E aqui algumas referências quedão peso próprio à esfera local são apresentadas. Por exemplo, nocampo da produção, a proposta de estabelecimento de novas rela-ções entre o movimento sindical e a estrutura produtiva – na medidaem que não existe mais algo semelhante a um compromisso fordistamesmo nos países desenvolvidos, ou, pelo menos, as condições nãosão as mesmas – com vistas à democratização ainda dentro dos mar-cos do sistema capitalista.

Page 33: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

31SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Por outro lado, é clara a possibilidade que se tem também de experiên-cia de novas formas de organização a partir do que temos chamado deeconomia solidária, envolvendo estímulo a cooperativas; mas também háênfase no pequeno empreendimento de forma geral, no microcrédito eem outras iniciativas desse porte que podem perfeitamente fazer partede um modelo de desenvolvimento local sustentado num bloco socialterritorial, à maneira de Lipietz e Benko. Por outro lado, há também aidéia de Lipietz da superação do Estado-providência, com implementaçãono nível local do que ele denomina comunidade-providência, ou seja, algobaseado em recursos nacionais, uma distribuição de excedentes a partirda nação, mas com operação local a partir da reafirmação da sociedadedo trabalho. Sua proposta tem a ver com o terceiro setor, de utilidadesocial, mas não apenas isso; também por intermédio de outro conjunto deiniciativas que garantissem a prioridade do emprego, a geração de traba-lho e renda a partir de uma operação descentralizada.

Desenvolvimento local e socialismo – Para concluir, busco fortale-cer essa relação entre desenvolvimento local e socialismo no Brasil, consi-derando, a meu juízo, que ela deve se traduzir para nós em dois níveisdiferenciados. O primeiro diz respeito às próprias referências de gestãolocal, que podem ser entendidas como tradução concreta de princípiossocialistas. Não se trata, evidentemente, de fazer socialismo em nível lo-cal, independente de todo o resto. Estou falando de experiências práticasque expressam, que concretizam princípios socialistas e, portanto, prefiguramreferências de socialismo que prezamos e queremos ver implementadas.

Mas, por outro lado, acredito que a outra forma pela qual essa rela-ção entre desenvolvimento local e socialismo deve ser pensada aqui éa construção prática das bases para um novo federalismo como partede outro projeto nacional.

Page 34: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

32 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Do ponto de vista das referências da gestão local, parto da idéia de queo que está colocado diante da gestão local são diferentes alternativas,por exemplo do desenvolvimento local, da distribuição de renda, da par-ticipação da comunidade e assim por diante. E estou tomando comobase uma contraposição que acredito que devemos fazer, no nível local,com as idéias neoliberais e com toda a herança de autoritarismo e de-pendência que temos no Brasil – além de um poder administrativo com-binado com clientelismo que é muito sólido no Estado brasileiro.

Acho que essa nova agenda local, que para mim se traduz em váriasdimensões, conforme busquei desenvolver num texto que escrevi para aFundação Perseu Abramo9, precisa ter uma tradução própria a partir deuma alternativa que pense a questão da gestão local com base no princí-pio da radicalização da democracia, com os princípios socialistas.

Existem dois blocos importantes, a meu juízo: por um lado, a idéia deum Estado local forte e democrático, condição para se pensar um blo-co social territorial e, portanto, uma regulação social dos mercados emnível local, o que envolve pelo menos três pontos. Em primeiro lugar,uma vontade política, ou seja, um compromisso de superação dessascaracterísticas sempre recorrentes nas fugas para a frente que tam-bém se expressam num nível local, seja em relação ao poder econômi-co, seja nas práticas clientelistas. Em segundo lugar, um fundo públicocompatível com as condições para o alargamento da esfera pública nonível local. E aqui, evidentemente, vou contra a corrente da maior par-te do pensamento no Brasil, reafirmando a necessidade de uma cargatributária alta, porque sem uma carga que possa servir de suporte paraum fundo público voltado ao social não há como efetivamente alargaros direitos no país. E, se estou comentando que isso é necessário noquadro de uma nova Federação com ênfase no espaço local, estouautomaticamente dizendo que, na verdade, algo que tem sido deixado

9. DANIEL, Celso. “A gestãolocal no limiar do novomilênio”. In: BARRETO, L.,MAGALHÃES, I. e TREVAS, V.Governo e cidadania. SãoPaulo, Editora FundaçãoPerseu Abramo, 1999,p. 182-242.

Page 35: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

33SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

completamente de lado, por exemplo no debate sobre a reforma tribu-tária, teria de ser reposto aqui, que é justamente o fortalecimento dasesferas local e regional.

Por outro lado, precisamos de um outro Estado. Não podemos conti-nuar reafirmando o Estado herdado, porque não é o que queremos etemos a necessidade de reconstruí-lo por dentro, quebrando as caixas-pretas do que corresponde ao que é o Estado hoje no Brasil a partir daesfera local, com processos que garantam a prestação de serviços públi-cos de qualidade e a baixo custo. Isso não é outra coisa senão o governobarato de que fala Marx na Comuna, e isso não é apenas fazer o comba-te à corrupção, é muito mais complicado do que isso. Exige conhecimen-tos que muitas vezes não temos e não trabalhamos de maneira adequa-da, inclusive nas nossas experiências de gestão local.

O desenvolvimento local inclusivo não é um desenvolvimento localqualquer. Desenvolvimento local a qualquer custo não nos interessa, que-remos um desenvolvimento local com inclusão social, em que haja coo-peração, criação e alargamento de esferas públicas, em que diferentesatores políticos, econômicos, sociais dialoguem de maneira transparentea partir dos seus próprios interesses e conflitos, mas buscando construirum novo desenvolvimento local em conjunto. Nesse ponto, não possodeixar de mencionar nossa experiência de desenvolvimento regional doGrande ABC por meio da Câmara Regional, da Agência de Desenvolvi-mento Econômico, do Consórcio Intermunicipal etc.

Outra questão que nos interessa tremendamente como elemento fun-damental do desenvolvimento econômico local são as idéias básicas daeconomia solidária, sem perder de vista que o desenvolvimento localtambém tem de ser baseado numa vinculação com segmentos mais di-nâmicos da nossa economia. Essa vinculação me parece absolutamenteessencial, e aqui entra com todo peso o movimento sindical, não apenas

Page 36: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

34 PODER LOCAL E SOCIALISMO

como a CUT [Central Única dos Trabalhadores] vem fazendo, estimulan-do a economia solidária, mas na construção de novos referenciais domovimento sindical e da própria relação capital–trabalho. Temos quetrabalhar muito mais com referências voltadas à idéia de construir bene-fícios locais e regionais do que fazer cair custos, porque a idéia do custoregional não é apenas o Custo Brasil. Essa é uma idéia neoliberal. Aidéia de Custo Brasil é tipicamente vinculada ou herdada, ou um desdo-bramento, do pensamento neoliberal no Brasil.

Então, quando consideramos o desenvolvimento local, evidentementenão podemos pensar a partir desse referencial, temos que adotar outro.O outro referencial é criar benefícios de tal maneira que uma região nãoprecise ficar competindo com outras, porque competição entre regiõessignifica guerra. É daí que vem a guerra fiscal. Então, o combate à guer-ra fiscal e à competição com outras regiões tem de partir da idéia de queé possível, por meio de um desenvolvimento endógeno, construir o de-senvolvimento com a agregação de benefícios, de vantagens locais ba-seadas na qualidade de vida, na garantia dos direitos sociais e trabalhis-tas – que eles existam ou devam existir no nível local.

Creio que é perfeitamente possível pensar em outros modos, em ou-tras bases na questão do desenvolvimento local.

Para terminar, abordarei rapidamente a questão da inclusão social. Creioque houve, no Brasil, um aprofundamento dos processos de exclusãonão apenas pelo fato de termos aqui uma herança de exclusão socialprofunda, mas também pela forma como o processo de globalização secombinou e se perpetrou a partir de referenciais neoliberais. Aqui, pen-sar o desenvolvimento local significa, necessariamente, a meu ver, pensá-lo também a partir de iniciativas, de ações voltadas à inclusão social.Não fazer apenas políticas compensatórias, mas superá-las,implementando políticas de inclusão social. Pensar políticas de inclusão

Page 37: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

35SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

social significa, claro, fazer vinculações com o próprio desenvolvimentoeconômico, com a economia solidária, com o conjunto de programassociais que têm sido experimentados por governos de esquerda, e até irum pouco mais além disso. Significa pensar na idéia de garantir os cha-mados mínimos sociais de maneira universal no espaço local, com basena implementação de políticas multidimensionais, que rompam, portanto,a setorização característica das políticas públicas, ou seja, política desaúde, de um lado; política de educação, de outro; política de ação social,de outro, e assim por diante. A idéia de pensar um indivíduo como tota-lidade e sua condição de incluído socialmente, portanto com direito àcidade de maneira integral, envolve a implementação de propostas muitomais integradas, abrangentes, intersetoriais, para com isso criarmos con-dições para que as pessoas excluídas possam efetuar o trânsito dessasituação para uma situação de inclusão plena, que envolva aspectos, porexemplo, ligados à violência urbana, às questões sociais de educação,saúde, cultura, e também a criação de condições para que as pessoaspossam se inserir ou se reinserir na economia por meio de pequenosnegócios, de cooperativas de trabalhadores, de sua reinserção no mer-cado de trabalho, e assim por diante.

Creio que há aqui também uma reconceituação, na questão das políti-cas sociais, do que chamávamos de inversão de prioridades. Ela é fun-damental e está hoje colocada na ordem do dia pelo fato de que políticascompensatórias também são preconizadas pelos neoliberais, e quem pensaque a ação a partir da esfera local pode ser transformadora tem depensar não apenas em programas diferenciados, mas em programas queem última instância tenham realmente como referência idéiastransformadoras que, no meu entender, ainda continuam a ser, de verda-de, idéias socialistas.

Muito obrigado.

Page 38: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

36 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Page 39: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

37SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

1) DUAS DINÂMICAS CONTRADITÓRIAS: SISTEMA DEMO-CRÁTICO X MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

• fim do século XVIII: 2 acontecimentos simultâneos:• constituição do Estado-nação moderno sistema democráti-

co (muito mais que um regime político)• constituição do modo de produção capitalista (que se nutre do

Estado-nação, sob diferentes regimes políticos: democracia, ditadura).• a democracia não é obra burguesa; a luta de classes tem sido luta

pela conquista de direitos, instituída por vias selvagens, indomesticáveis necessidade de ir além de Marx (em particular, de sua crítica aos

Direitos do Homem; o problema não é o que ele lê nos direitos doHomem (seu uso pela burguesia), mas o que ele é impotente para nelesdescobrir (suas funções positivas) os direitos aparecem como merailusão (cf. O Capital, livro I, cap. IV, p. 145, Ed. Nova Cultural: “aesfera da circulação [...] era de fato um verdadeiro Éden dos direitosnaturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igual-dade, Propriedade e Bentham”. É ao sair da esfera da circulação,

Celso Daniel

Perspectivas que o desenvolvimentolocal e a distribuição de rendaabrem à construção do socialismo*

* Este texto foi apresentado porCelso Daniel aos organizadoresdo seminário Socialismo eDemocracia como texto-baseda sua exposição. Como sepode notar, trata-se de umroteiro para a sua exposição. Otexto está reproduzido seguindofielmente o original apresentadopor Celso Daniel, apenas comalgumas correções ortográficas.

Page 40: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

38 PODER LOCAL E SOCIALISMO

adentrando a da produção, que se descobre o segredo da troca desigual[da mais-valia]).

• O totalitarismo – fascista ou soviético – se ergue sobre as ruínas dosdireitos do homem. (cf. Stalin, de Trotski: “L’Etat c’est moi! é quaseuma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totali-tário de Stalin. Luís XIV identificava-se apenas com o Estado. Os papasde Roma identificavam-se ao mesmo tempo com o Estado e com a Igre-ja, mas unicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado tota-litário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda a economia dopaís. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer a justo título: La societéc’est moi!”).

• sistema democrático (cf. Lefort) divisão entre sociedade civil eEstado; distinção entre o poder político (limitado de direito) e o poderadministrativo (fundado na burocracia do Estado, que tende a submetercada vez mais o detalhe da vida social).

Papel da esfera pública (relação: público x privado) (cf. Vera S. Telles,ao criticar H. Arendt): ações coletivas são vinculadas a interesses, emmeio a conflitos que atravessam o campo social; se tais interesses apare-cem como algo mais que a simples defesa corporativa, depende da arti-culação de uma linguagem por meio da qual interesses privados podemser desprivatizados e, portanto, reconhecidos publicamente na sua legiti-midade; é na linguagem dos direitos que a defesa de interesses se fazaudível e reconhecível na dimensão pública da vida social.

• K. Polanyi (A grande transformação) a utopia irrealizável domercado auto-regulador (pelo qual as relações sociais se vêemencapsuladas no interior do sistema econômico), no século XIX e início doXX, levou a sociedade a adotar medidas para se autoproteger com-prometimento da auto-regulação do mercado desorganização da vidaindustrial origem dos totalitarismos e guerras mundiais; as origens do

Page 41: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

39SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

cataclismo cujo auge foi a Segunda Guerra residem no projeto do libera-lismo econômico, visando criar um sistema de mercado auto-regulador.

2) SOCIALISMO• Habermas vivemos ainda o tempo moderno (não se esgotaram as

energias utópicas): a consciência do tempo inaugura um horizonte emque o pensamento utópico se funde ao pensamento histórico (mas, con-tra Habermas: não vivemos também o fim das utopias vinculadas a umasociedade do trabalho).

• derrocada do socialismo real, ao lado de profundas transformaçõeseconômicas, sociais e políticas recentes perda de referências antes“seguras” sobre o socialismo.

• ponto de partida socialismo com a radicalização da democracia(nos vários âmbitos da vida humana). Em meio a conjunto de princípiosgerais, nem todos compatíveis entre si (cf. Grahame Thompson – FlexibleSpecialization, industrial districts, regional economies: strategies forsocialists? – compromisso com a propriedade comum e a organizaçãocooperativa, promoção de decisões democráticas em todas as dimensõesda vida, supressão e controle dos mecanismos de mercado em alocação edistribuição, compromisso com igualdade de oportunidades (e, em certoscasos, de resultados), generalização do emprego e competências culturaispara viabilizar o autodesenvolvimento e a autonomia no trabalho e no lazer).

• referências a partir da Escola da Regulação (cf. Lipietz – Audácia). modelo de desenvolvimento: longo período, no capitalismo, em que o

regime de acumulação é o resultado macroeconômico do funcionamentodo modo de regulação, com base num modelo de organização do traba-lho (alicerçado numa visão de mundo, fundando um grande compromis-so, que pode e costuma ser defendido por famílias políticas, da esquerdaà direita; exs.: fordismo, neoliberalismo).

Page 42: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

40 PODER LOCAL E SOCIALISMO

• na ordem do dia proposta de um modelo de desenvolvimento(projeto de nação) orientado por referências socialistas:

• (cf. Francisco de Oliveira: O antivalor) alargamento da esfera públi-ca (vinculada à instituição de um fundo público, como pressuposto docapital) economia de mercado socialmente regulado reconheci-mento da alteridade, do outro, do terreno indevassável de seus direitos(donde se estruturam as relações sociais); o pós-Estado de bem-estar:demarcar, de modo cada vez mais claro, os lugares de utilização e distri-buição da riqueza pública, tornada possível pelo próprio desenvolvimentodo capitalismo sob uma forma transformada de luta de classes. Quandotodas as formas de utilização do fundo público estiverem demarcadas esubmetidas a controles institucionais, então o Estado se transformará noEstado mínimo (forma de produção do excedente que não tem mais ovalor como estruturante, mas sim os valores de cada grupo social dialo-gando soberanamente).

• sistema produtivo: vinculação entre eixos dinâmicos da economia enoção de economia solidária (cooperativas de autogestão, microcrédito,ênfase na pequena produção); regulação social calcada nos valores dacooperação, da solidariedade, da participação nos temas de interessepúblico (a comunidade cívica de que fala R. Putnam); implicação domovimento sindical nas formas de organização do trabalho.

• novamente o pós-Estado de bem-estar; a necessidade de superar oautoritarismo na unidade de produção (fordismo), o produtivismo (não-respeito ao meio ambiente e às várias formas de discriminação social) eo formalismo burocrático, castrador de iniciativas, da repartição de be-nefícios do Estado de bem-estar (relacionado ao alargamento do poderadministrativo).

• o Estado: pistas a partir da Comuna de Paris (cf. Marx, Guerra Civilna França): alavanca para extinguir os fundamentos econômicos das

Page 43: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

41SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

classes sociais, com a emancipação do trabalho (fórmula aparentementeexcessiva, para hoje); governo barato; forma política flexível; modelopara a França: deputados demissíveis e com mandato imperativo para aspoucas mas importantes funções que restariam a um governo central, ouseja, organizar a unidade nacional mediante um regime comunal (isto é:modelo radicalmente “descentralizado”, referência para o controle dopoder político e do poder administrativo, abrindo espaço para o desenvol-vimento local com autonomia relativa).

• pontos de contato com Lipietz e Benko (As regiões que ganham) no quadro de um modelo nacional de desenvolvimento: formação de

blocos sociais territoriais (inspiração gramsciana) coordenando “modelosde desenvolvimento locais”, dotados de autonomia relativa (“endógenos”),inspirados nas noções de radicalização democrática.

3) O BRASIL E SUAS ESPECIFICIDADES• O Brasil como uma Federação (multiplicidade de núcleos de poder

institucionalizada).• convivência, no âmbito local, de inovações transformadoras, re-

volucionárias (ex.: co-gestão pública do OP [Orçamento Participativo]),ao lado do que existe de mais arcaico como prática e cultura política(mandonismo local);

• o Brasil “funciona” como uma Federação peculiar: as “oligarquiasregionais” no governo Tancredo/Sarney, a articulação estreita entre osparlamentares nacionais e suas bases locais (o poder municipal).

• Categorias sociológicas sempre repostas: a simbiose do arcaico e domoderno, a permanência na transformação; convivência (atávica) deviolência com intimidade o patrimonialismo estatal e a atrofia da es-fera pública; a tese da incompatibilidade entre dominação burguesa edemocracia no Brasil (recorrentes “fugas para a frente”, produto da

Page 44: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

42 PODER LOCAL E SOCIALISMO

incapacidade de arbitrar perdas aos vários grupos dominantes) areposição do binômio autoritarismo (em diferentes roupagens) e depen-dência (tecnológica e financeira) (cf. Caio Prado, Sérgio Buarque deHolanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Florestan Fernandes, RobertoDaMatta, José Luís Fiori etc.).

A partir das especificidades todo cuidado com as forças de con-tinuidade que, com freqüência, conduzem, ocultas, linhas de ruptura/transformação.

4) DESENVOLVIMENTO LOCAL E SOCIALISMO NO BRASIL• A relação entre desenvolvimento local e socialismo se traduz em dois

níveis:• referências de gestão local que significam tradução concreta de

princípios socialistas.• construção prática de bases para um projeto nacional (constituído

por um novo pacto federativo) blocos sociais territoriais buscando aconquista da hegemonia regional.

• A agenda local comporta, em cada caso, diferentes alternativasde gestão pública, inspiradas em distintos valores e visões de mun-do. Para a constituição de um modelo de desenvolvimento local pau-tado pelos valores socialistas da radicalização democrática, pode-se destacar:

• Estado local forte e democrático (condição para a regulação so-cial dos mercados locais), envolvendo:

• fundo público (suposto: carga tributária compatível) que susten-te o alargamento das esferas públicas democráticas – inclusive as denovo tipo, inspiradas na partilha de poder (democracia representativa –democracia direta): OP, planejamento participativo do futuro, gestão depolíticas e equipamentos.

Page 45: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

43SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

• outro Estado local (democracia e eficiência) prestaçãode serviços públicos com qualidade e baixo custo, criando condições(via indicadores e metas) para o controle público. (Isto é, combateem várias frentes ao poder administrativo: pela descentralização lo-cal, pela modernização administrativa e pelos canais de controle pú-blico sobre o Estado.)

• desenvolvimento local inclusivo (expresso em diferentes dimensões:econômica, social, urbana, ambiental, cultural).

• desenvolvimento econômico ação nas esferas da produção e da dis-tribuição; regulação pública dos mercados locais; ênfase na criação de be-nefícios regionais (que agregam qualidade de vida e convidam à participa-ção plural, em contraste com a alternativa de redução de custos regionais);prioridade para geração de trabalho e renda, para a cooperação entre osagentes, formas alternativas de produção (cooperativas), microcrédito, for-talecimento da pequena produção, defesa dos direitos trabalhistas.

• desenvolvimento urbano e ambiental regulação social do merca-do imobiliário, com a superação da dicotomia entre cidade legal/cidadeilegal e a apropriação pública de parcela da valorização imobiliária; cons-trução e apropriação de espaços públicos urbanos de qualidade (cidadespolicêntricas), preservação e conservação do meio ambiente.

• inclusão social para além de políticas compensatórias e da inversãode prioridades: política integrada e multidimensional de inclusão social (ga-rantia de mínimos sociais como direitos); afirmação dos direitos contradiscriminação (gênero, raça, portadores de deficiências, faixas etárias etc).

• identidade cultural regida pelo princípio da cidadania (pertencimentovinculado à afirmação de uma comunidade cívica).

• Em suma: Estado local forte, condutor de um modelo de desen-volvimento local inclusivo guiado pela referência do direito à cida-de, combinando:

Page 46: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

44 PODER LOCAL E SOCIALISMO

• democracia procedimental (alargamento das esferas públicas demo-cráticas pela via de co-gestão/partilha de poder/controle público do poderadministrativo/articulação entre democracia representativa e direta).

• democracia substantiva (desenvolvimento inclusivo nos vários níveis:econômico, social, urbano, ambiental, cultural).

Bibliografia(Elaborada por Ivone de Santana)

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense, 1981.BENKO, G. e LIPIETZ, A. As regiões ganhadoras. Distritos e redes

– os novos paradigmas da geografia econômica. Oeiras, CeltaEditora, 1994.

DA MATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morteno Brasil. Rio de Janeiro, Rocco, 1987.

DANIEL, C. A. “Internacionalização, integração e o papel das cida-des”. Cidade, cidadania e integração. Comissão ParlamentarConjunta do Mercosul e Instituto Friedrich Naumann, 1997, p. 75-85.

_________. Poder estatal local – um quadro teórico e uma análisedos governos locais com participação popular no Brasil recen-te. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Administraçãode Empresas de São Paulo/Fundação Getúlio Vargas. São Paulo,EAESP/FGV, 1992.

_________. “As administrações democráticas e populares em ques-tão”. Espaço e Debates, no 30 (Revista de Estudos Regionais eUrbanos), p. 11-27.

Page 47: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

45SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

_________. “A gestão local no limiar do novo milênio”. In: BARRETO,L., MAGALHÃES, I. e TREVAS, V. Governo e cidadania, balan-ço e reflexões. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.

FIORI, J. L. “O nó cego do desenvolvimento brasileiro”. Novos Estu-dos Cebrap, no 40. Cebrap, São Paulo, 1994, p. 125-144.

_________. Os moedeiros falsos. Petrópolis, Vozes, 1997._________. “Globalização, hegemonia e império”. In: Poder e dinhei-

ro. Uma economia política da globalização. Petrópolis, Vozes, 1997.HABERMAS, J. A crise da legitimação no capitalismo tardio. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980._________. “O Estado-Nação europeu frente aos desafios da

globalização”. Novos Estudos Cebrap, no 18. Cebrap, São Paulo.HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das

Letras, 1995.LEFORT, C. A invenção democrática – os limites do totalitarismo.

São Paulo, Brasiliense, 1983.LIPIETZ, A. Audácia: uma alternativa para o século XXI. São Pau-

lo, Nobel, 1991.MARX, K. O capital, vol. 1. São Paulo, Nova Cultural, 1982.MARX, K e ENGELS, F. “A Guerra Civil na França”. Textos, vol. 1.

São Paulo, Edições Sociais, 1977, p. 155-219.O’DONNELL, G. “Poliarquia e a (in)efetividade da lei na América Latina”.

Novos Estudos Cebrap, no 51. Cebrap, São Paulo, 1998, p. 37-62.OLIVEIRA, F. de. Os direitos do antivalor: a economia política da

hegemonia imperfeita. Petrópolis, Vozes, 1997._________. O elo perdido – Classe e identidade de classe. São Paulo,

Brasiliense, 1987._________. “Além da transição, aquém da imaginação”. Novos Estu-

dos Cebrap, no 12. Cebrap, São Paulo, 1985, p. 2-15.

Page 48: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

46 PODER LOCAL E SOCIALISMO

_________. “Privatização do público, destituição da fala e anulação dapolítica: o totalitarismo neoliberal”. In: OLIVEIRA, F. de e PAOLI,M. C. (orgs.) Os sentidos da democracia. Petrópolis, Vozes, 1999.

POLANYI, K. La Gran Transformación – Crítica del liberalismoeconómico. Madrid, Ediciones de La Piqueta, s/d.

REIS, J. C. As identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. SãoPaulo, FGV, 2000.

SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiên-cias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. São Paulo, Paz e Terra, 1988.

TELLES, V. S. “Espaço público e espaço privado na constituição dosocial: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt”. Revista Tem-po Social. São Paulo, Universidade de São Paulo, primeiro semestrede 1990.

_________. “No fio da navalha: entre carências e direitos – notas apropósito dos Programas de Renda Mínima no Brasil”. In: “Progra-ma de renda mínima no Brasil: impactos e potencialidades”. Pólis,no 30, São Paulo, 1998.

_________. Pobreza e cidadania. São Paulo, Editora 34/USP, 2001.THOMPSON, G. “Flexible specialization, industrial districts, regional

economies, strategies for socialists?”. Economy and Society, vol.18, no 4, 1989.

Page 49: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

47SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

O caboclo, o pesquisador e a canoa – Boa tarde a todos. Eu jásabia que o primeiro ciclo de debates10 havia sido bastante participativo,mas estou surpresa de ver o quanto estamos vivos para um debate dessanatureza. Gostaria de agradecer pelo convite e dizer que me sinto honra-da em integrar esta mesa. Não pretendo fazer aqui nenhuma reflexãoteórica. Acredito que posso contribuir mais como um “objeto de estudo”,pois o Acre é uma experiência bem localizada e eu sou fruto de umaexperiência local, especificamente com os seringueiros do estado do Acre.Lá estamos construindo uma alternativa fraterna, justa, solidária a partirde referenciais locais. Nesse sentido, o Acre tem uma grande contribui-ção a oferecer a partir desses referenciais.

Enquanto o prefeito Celso Daniel falava, eu pensava: por que o con-ceito de reserva extrativista surgiu da cabeça dos seringueiros do Acre,quando havia tantos estudiosos pensando saídas e alternativas para aAmazônia que compatibilizassem desenvolvimento econômico, justiçasocial e preservação dos valores culturais e ambientais daquela região?Por que algumas críticas, tão em voga atualmente, dirigidas ao modelode desenvolvimento baseado numa visão industrial e num processo bas-

ComentáriosMarina Silva

10. Este seminário faz parte dosegundo ciclo de debates“Socialismo e democracia”(ver página 119). Marina Silvafaz referência ao primeiro ciclo,que aconteceu entre 10 de abrile 19 de junho de 2000.

Page 50: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

48 PODER LOCAL E SOCIALISMO

tante atrasado de formação de riqueza, vão surgir justamente em comu-nidades aparentemente “primitivas” ou completamente apartadas do de-senvolvimento que se processa no mundo?

A crítica a esse modelo, partindo exatamente daqueles setores e deforma tão localizada, nos leva a pensar que qualquer iniciativa é sempreuma experiência localizada, na medida em que tem um ponto de partidaem algum lugar, a partir do qual ela é apropriada, generalizada e muitasvezes banalizada, até que surja uma outra alternativa para dar início aum novo processo.

Celso Daniel foi muito feliz quando disse que não gosta de falar emdesenvolvimento local de forma genérica, é preciso que isso seja trazidopara um espaço determinado. Só podemos entender as coisas em seucontexto, porque todas as alternativas são localizadas, ou seja, têm dedar uma resposta para o problema que se coloca naquele ponto.

Chico Mendes e as reservas – Nossa experiência, durante muitotempo, foi marginal também dentro do próprio PT. Lembro que, quandoChico Mendes começou a falar de reserva extrativista, de certa formase contrapunha ao modelo de reforma agrária que o PT construíra atéentão (muito baseado nas Ligas Camponesas). Chico propunha uma re-forma agrária diferenciada na Amazônia. Quando Chico Mendes foi aosEstados Unidos, questionando o Banco Interamericano de Desenvolvi-mento sobre a abertura de uma estrada que passaria por seringais, pordentro das comunidades indígenas, causando um prejuízo ambiental, cul-tural, social irreparável, muitos dos nossos companheiros do movimentosindical e do PT reagiram a esse ato com um certo estranhamento: porque reclamar lá fora daquilo que era um problema nosso, aqui dentro?

Mas foi exatamente a partir da capacidade de fazer essa interaçãoentre a tradição e a modernidade que conseguimos gestar talvez uma

Page 51: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

49SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

das experiências mais ricas que temos na Amazônia hoje. Nem sempreo que é moderno é o melhor. Como também nem sempre o tradicional éo melhor. Vivemos exatamente na busca dessa mediação entre a tradi-ção e a modernidade para que se chegue a um determinado ponto e, nummovimento espiral, possamos partir para experiências inovadoras.

As inovações que estamos gestando são o inverso de tudo o que vemacontecendo no país: nós tivemos uma organização sindical que foi dafloresta para a cidade, enquanto nas demais regiões do nosso país haviaum modelo que fazia o movimento inverso – da cidade para o campo.Por exemplo, o movimento com Lula organizando os trabalhadores nadécada de 1970 no ABC. No Acre, os seringueiros diziam para os bancá-rios, para os funcionários públicos que eles tinham de fazer sindicatos ese organizar também. Era surpreendente, porque os mais “primitivos” éque falavam para os mais “modernos” acreditarem no seu próprio po-tencial e que com organização se poderia gerar algum benefício.

Então, desde o início, essas peculiaridades já nos colocaram numa situa-ção de trabalho sempre em âmbito local. Nas demais regiões era possí-vel fazer um questionamento mais político-ideológico sobre as propostasde modelo econômico que estavam em disputa. No Acre isso era quaseimpossível. Se eu fosse disputar a eleição para o Senado dizendo queeram os neoliberais que faziam estradas de qualquer jeito, pecuária dequalquer jeito, exploração madeireira de qualquer jeito, eu não teria con-seguido nenhum voto. Eu tinha de falar exatamente numa linguagem queabordasse a especificidade local; a disputa nos últimos 20 anos tem-sedado de forma muito particularizada. Isso não significa que não existauma formulação teórica, uma reflexão acumulada sobre a prática, mas odiscurso teve de ser realista e original.

E aí começamos a questionar o modelo, dando nome, endereço e tele-fone: “Esse negócio de progresso e modernidade de que se fala por aí

Page 52: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

50 PODER LOCAL E SOCIALISMO

nada mais é do que derrubar florestas para plantar capim e criar boi. Umhectare de floresta vale mais do que um hectare de capim”. Buscamosmeios, técnicas e formuladores para provar que era possível ter maislucro num hectare de floresta do que num hectare de capim. Hoje todasas pessoas sabem que o capim que substitui um hectare de floresta ama-zônica não dá para engordar mais que uma vaca e meia. Parece loucura,mas esse modelo já chegou à Amazônia completamente falido, apesarde sua aparente modernidade.

Vendiam-nos a idéia de que a Amazônia era uma floresta homogênea,quando convivíamos com uma floresta altamente diversificada. Diziam-nos também que era um vazio demográfico, quando éramos 20 milhõesde pessoas habitando no interior da floresta e nas cidades. E só com osíndices demográficos que temos é possível a Amazônia ser uma florestaaltamente diversificada.

Aquelas idéias que nos foram impostas acompanhavam modelos dedesenvolvimento baseados nos grandes projetos para exploração de ga-rimpo, de madeira, de pecuária extensiva e muitos outros. Há até mesmoquem acredite ser possível espalhar a soja na Amazônia. Quando essadiscussão foi feita localmente, adquiriu uma outra dimensão, que era ada disputa local lá em Xapuri, em Sena Madureira – tudo tem local,nome, pessoas. Só que a isso hoje, sofisticadamente, nós chamamos de“modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia”. E leva tam-bém outro nome: “economia solidária” – uma economia socialista emque o desenvolvimento das comunidades apóia-se em cooperativas, emassociações, numa tessitura social admirável que começa com o índioainda nem sequer contatado.

Aliás, nós temos ainda, graças a Deus, mais de 500 pessoas que nuncativeram contato com a nossa cultura, e o Acre se orgulha muito disso. É umademonstração de que naquele cantinho ainda é possível saltar do modelo

Page 53: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

51SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

fordista diretamente para a era do conhecimento. E nós somos ousados parafazer isso. Não queremos as inúteis quinquilharias que a indústria esparramapelo mundo de hoje. O que queremos hoje é conhecimento e tecnologia paraque possamos apreender da nossa realidade e com a natureza que nos aco-lhe o necessário para crescermos social e economicamente de forma justa.É claro que tudo isso, como disse Celso Daniel, não pode ser desarticuladode uma perspectiva econômica, social e cultural mais ampla.

As seis sustentabilidades – Acredito que é possível generalizar parao país e para o planeta a sustentabilidade que defendemos para o nossodesenvolvimento. É um modelo baseado em seis pontos, sem hierarquiaentre eles: um modelo de desenvolvimento tem de ser sustentável eco-nomicamente, socialmente, ambientalmente, politicamente, culturalmen-te e eticamente.

Sem essas seis sustentabilidades, não estamos construindo uma econo-mia solidária ou socialista. O socialismo errou ao considerar que poderíamosnegligenciar a natureza. Como resultado, testemunhamos toda sorte de da-nos ambientais somarem-se aos desastres que ocorreram no Leste Euro-peu. Como a nossa utopia foi capaz de apartar o bem-estar da humanidadeda integridade da natureza? Não queremos mais reeditar esse erro, e nossanova forma de ver o mundo vai ter de incorporar todas essas sustentabilidades.

Quero concluir enfatizando a sustentabilidade cultural – reivindicando elegislando em causa própria. Muitas vezes a nossa forma de pensar o desen-volvimento é preconceituosa. Como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feioo que não é espelho”. Mas apenas diante do diferente é possível realizar atroca. E foi como Narciso que se tentou transformar a Amazônia em SãoPaulo, Minas, Rio de Janeiro. Sofremos inúmeras conseqüências do modelode desenvolvimento que foi implantado. Tínhamos até receio de falar emdesenvolvimento regional, chegamos a acreditar que tinha de ser um desen-

Page 54: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

52 PODER LOCAL E SOCIALISMO

volvimento nacional ou internacional. Hoje o desenvolvimento regional e odesenvolvimento local começam a dar as bases para o que estamos propon-do como modelo de desenvolvimento para o nosso país. Embora seja pon-tual, a experiência do orçamento participativo do Rio Grande do Sul ébelíssima. Em outros pontos do país devem existir outras tantas experiênciasque podem ser muito positivas sob uma visão sistêmica. E o Acre quercontribuir com um modelo que pense a sustentabilidade nas seis dimensõesque acabei de mencionar. Acredito que, se estivermos concatenados comtodas essas teorias e esses formuladores que Celso Daniel citou, podere-mos, sim, criar nova motivação para a nossa ação política dentro do nossopartido e das entidades com as quais nos relacionamos.

Ser o arco e a flecha – É necessário que tenhamos uma motivaçãoviva, que represente o sonho de cada um. O sonho de cada um não éalgo homogêneo, mas cada um há de se mobilizar, claro, a partir de prin-cípios universais. Estamos todos no mesmo barco, embora cada um te-nha uma motivação diferente.

Eu, por exemplo, tenho uma motivação muito grande com relação aotema de direitos humanos e meio ambiente. No entanto, não vou pegaras ferramentas para trabalhar temas em que já existem milhares de pes-soas que podem fazer mais do que eu. Aprendi com os índios que nóstemos de ser arco e ser flecha ao mesmo tempo. Se na questão ligada àdefesa da Amazônia sou o arco que impulsiona, na questão da mulher edo negro sou a flecha que é impulsionada. Temos de aprender a fazerisso de uma forma fraterna, respeitando as diferenças, brigando quandofor necessário mas estando juntos, agindo em rede de forma a diluir umpouco as nossas ânsias de autoria.

Acredito que o conjunto das belíssimas experiências locais que estamosgestando em todo o país poderá integrar as bases de um modelo capaz

Page 55: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

53SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

de transferir para a realidade o que temos ainda apenas em sonhos.Termino com uma história para os que não conhecem o meu estado.

Dizem que havia um pesquisador que queria conhecer um pouco odesenvolvimento local na Amazônia e subiu numa canoa com um cabo-clo. Cansado de tanto anotar e visitar as comunidades, já não agüentan-do mais picada de carapanã (pernilongo, como se diz no Sul), ele resol-veu puxar um papo com o caboclo:

– Caboclo, você sabe geografia? O caboclo disse:– Sei não, senhor doutor – e continuou calado.O pesquisador, mais à frente, resolveu tentar de novo:– Sabe história, caboclo?– Não, senhor.– Então você já perdeu metade da vida. Não sabe geografia, não sabe

história... História e geografia são fundamentais para fazermos as cone-xões com o mundo. Sabe matemática?

– Sei não, senhor doutor.– Então, caboclo, você está frito. Como você vai vender esse seu

peixe? Vai ser enganado pelo patrão...E foi perguntando e o caboclo só sabia dizer que não sabia. Lá pelas

tantas, bate a proa da canoa numa samaúma que vinha de bubuia. Acanoa afunda, e eis que o pesquisador começa a afundar e gritar:

– Caboclo, socorro! Caboclo, socorro! O caboclo, nadando, olha para trás e diz o seguinte:– O senhor sabe nadar, doutor?– Sei não, caboclo. Socorro!– Então, doutor, perdeu sua vida toda, porque aqui quem não sabe

nadar morre.A meu ver, desenvolvimento local é um pouco isso.

Page 56: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

54 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Page 57: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

55SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Projeto local e projeto nacional – Boa tarde a todos. Quero registrarum elogio à iniciativa do seminário. Creio ser importante – e isso não éprotocolar – registrar a qualidade da iniciativa. Penso que tantas vezesquantas nos colocamos o desafio de compartilhar e refletir nossas expe-riências, idéias e referências teóricas, de tal forma a compreender melhora nossa ação e iluminar o nosso comportamento, tanto mais conseguimosestabelecer relações entre tática e estratégia e cotejar as nossas experiên-cias com as nossas plataformas. E, quanto mais conseguimos realizar esseprocesso, mais crescemos.

Seminários como estes se realizam num momento muito importantepara o nosso partido. Acumulamos um enorme espaço político no país,no último período. Conquistamos espaços importantes em prefeituras eem estados. Acumulamos parcelas significativas de poder em várias di-mensões institucionais e, portanto, pensar ou articular essas experiên-cias a partir da visão estratégica que temos do mundo e da sociedadeque queremos construir guarda necessariamente um valor singular. To-das as vezes que de alguma forma recusamos esta relação entre práticae teoria e entre tática e estratégia, quando de alguma forma aderimos ao

ComentáriosMiguel Rossetto

Page 58: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

56 PODER LOCAL E SOCIALISMO

pragmatismo muitas vezes desqualificado – e a experiência da es-querda está recheada de situações como essas –, sofremos derrotaspolíticas enormes.

Portanto, diante da responsabilidade que o nosso partido acumu-lou no último período, e diante da agenda política colocada paratodos nós, é evidente que temas como esse guardam uma enormeatualidade. Fiz uma opção, diante de um tema dessa envergadura, evou procurar trabalhar com algumas idéias para colaborar com estedebate: vou procurar manter uma dupla fidelidade aqui, a fidelidadeao tema proposto pelos organizadores e a fidelidade à minha condi-ção de debatedor.

A idéia básica é compreender um pouco o período que estamos vi-vendo, os desafios em relação ao tema do poder local, das nossas ex-periências, e a relação desse processo com uma dinâmica política na-cional e internacional capaz de sustentar uma estratégia de transfor-mação revolucionária.

Enterrar o ciclo neoliberal – Estamos fazendo este debate emuma conjuntura política de crescimento importante, com a possibilida-de de acumulação das nossas experiências num espaço enorme e lar-go em escala nacional. Estamos diante de um cenário de grandes pos-sibilidades marcado pela disputa eleitoral de 2002. Este cenário queestamos vivendo encerra um ciclo de hegemonia neoliberal em nossopaís, marcado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que vai exi-gir da nossa parte não só uma política contundente do ponto de vista daradicalidade, da denúncia desse modelo, mas, evidentemente, uma enor-me capacidade de anunciarmos ao povo brasileiro um desenho estraté-gico do modelo de sociedade que nos propomos a construir junto com onosso povo. Um desenho estratégico, com as mediações necessárias,

Page 59: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

57SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

que se constitua em referência de construção dessa nova sociedadedemocrática e popular e que deverá guardar, na sua dinâmica política,uma relação com a visão do futuro que nós queremos, da sociedadesocialista que almejamos.

Celso Daniel já abordou rapidamente algumas características sobre operíodo que estamos enfrentando e sobre em que momento realizamosas nossas experiências locais, municipais e estaduais de construção deum projeto democrático e popular. Isso é fundamental porque de algumaforma organiza a noção de possibilidades e de limites. A noção de possi-bilidades e contradições.

É importante registrar a dimensão, a envergadura estrutural do projetoneoliberal que Fernando Henrique Cardoso construiu, ou destruiu, emescala nacional. Projeto que aparece anunciando a idéia de fim da histó-ria, anuncia a criação de um novo e potente ciclo de desenvolvimentocapaz de gerar riquezas e distribuí-las. Após dez anos da vitória desseprojeto em escala continental e mundial, agora nos cabe realizar um ba-lanço rigoroso do fracasso de suas promessas. O custo do processo devenda selvagem do patrimônio público, que não gerou um Estado equili-brado e apto a investir em políticas sociais, como se anunciava, e resul-tou num Estado ainda mais endividado, com menor capacidade de inci-dência nas políticas econômicas. A idéia de um processo de retirada dedireitos trabalhistas não ampliou a capacidade de geração de emprego,mas ampliou, sim, o próprio desemprego e a precarização das relaçõesde trabalho. A idéia de uma abertura comercial indiscriminada não gerouum círculo virtuoso de crescimento e de novos investimentos, mas umabrutal desnacionalização da economia, uma quebra de cadeias produti-vas importantes no nosso país.

Uma questão que considero desafiadora para todos nós, do ponto devista da política, é trabalharmos com a contundência, com a capacidade,

Page 60: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

58 PODER LOCAL E SOCIALISMO

com a energia necessária a idéia de que o neoliberalismo encerra umciclo e fracassou em todos os propósitos anunciados que buscavam lheaferir legitimidade política e social. Um fracasso econômico, um fracas-so social e um fracasso ético.

Temos a tarefa de enterrar – e esse me parece que é o sentido, enter-rar por inteiro – esse ciclo neoliberal no nosso país. Não se trata portantode derrotar Fernando Henrique e ACM [Antônio Carlos Magalhães] comosímbolos, mas de derrotar os valores constitutivos desse modelo, os valo-res culturais, ideológicos, que foram incorporados ao projeto.

É nossa tarefa constituir um grande marco de derrota política e ideoló-gica desse ciclo neoliberal.

Esse ciclo neoliberal traz elementos novos, de qualidades novas paraas políticas regionais. Vou ser telegráfico aqui, talvez possamosaprofundar mais tarde. Basicamente esse ciclo de desconstituição dasestruturas estatais oferece como elemento de política de desenvolvi-mento regional, desde o ponto de vista econômico, apenas a idéia darenúncia fiscal e tributária; o espaço de gestão particular de estados emunicípios para sustentar um ciclo de desenvolvimento econômico erareduzido. E o que acompanhamos, portanto, foi um crescimento brutalda chamada guerra fiscal e uma ampliação enorme de uma disputaintra-regional. O “desfinanciamento” dos estados já empobrecidos pelaausência de crescimento econômico e, ao mesmo tempo, um processode sustentação dessa atração de grandes investimentos econômicospor meio de uma transferência direta da renda pública a esses empreen-dimentos. Renda pública basicamente financiada por meio daprivatização do patrimônio público ou das empresas estatais.

Esse era o ciclo permitido de políticas regionais ou sub-regionais poresse modelo. Uma falência de políticas regionais, um abandono da idéiade política de desenvolvimento nacional; estados e municípios libera-

Page 61: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

59SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

dos para uma brutal, ampla e selvagem disputa entre regiões, entremunicípios e entre estados. Via de regra, uma ampliação de políticasfiscais e outras de transferências ampliadas da renda destinada aosmais pobres nas regiões mais desenvolvidas para os mais ricos nasregiões menos desenvolvidas. Quer dizer, esse é um ciclo que acompa-nhamos com conseqüências enormes no ambiente federalista, comconcentração ou reconcentração do poder de uma forma muito pesadaem escala nacional.

Políticas regionais e guerra fiscal – Ao fracasso dessas políticas –e penso que esse é um balanço ainda a ser realizado com profundidadeno âmbito partidário – corresponde também uma série de importantescontradições que vivenciamos por conta da política patrocinada por essemodelo. Não é menor a contradição de que espaços municipais e regio-nais, governados pelo PT, em vários momentos praticam ou articulampolíticas dessa natureza, de atração de capitais a partir de políticas forte-mente carregadas na renúncia fiscal. Renúncia fiscal como elemento detransferência de renda no sentido inverso, de uma reconcentração derenda. De alguma forma também é importante avaliarmos com profun-didade um conceito de desenvolvimento que foi brutalmente impregnadoem todos nós, a idéia de que uma grande fábrica – Marina Silva trazelementos importantes para o diálogo, para o debate –, de que uma gran-de empresa multinacional, via de regra, é sinônimo de desenvolvimento,ou pelo menos sinônimo de vitória eleitoral, na medida em que ela cons-titui uma capacidade de adesão política importante do modelo. Eu pensoque o caso Ford é exemplar. Eu sei que vários de vocês acompanharamo tema Ford/Rio Grande do Sul, Ford/FHC, Ford/Bahia11.

Esta mitologia que sustenta esse tipo de modelo precisa ser desmentidacom fatos e dados. Quando assumimos o governo do estado do Rio Grande

11. Em 1997 a Ford e ogovernador do Rio Grande doSul, Antônio Britto, anunciama instalação de uma novaunidade da fábrica no estado.O contrato incluía um repassede 210 milhões de reais paraa Ford a título de benefíciofiscal. Em março de 1998,42 milhões de reais foramantecipados pelo estado àmontadora. Quando OlívioDutra assumiu o governo doEstado, em 1999,começaram as negociaçõespara rever os termos docontrato, até entãodesconhecidos dos gaúchos.Depois de muitas reuniões, aFord anunciou em 28 de abrildaquele ano que estava seretirando da mesa denegociações. Ocorre que desdemarço a Ford vinhanegociando paralela esigilosamente com o entãosenador Antônio CarlosMagalhães, que numamanobra política junto aoCongresso Nacional destinouuma fabulosa soma derecursos públicos federaispara levar a montadorapara a Bahia, onde estáhoje instalada.

Page 62: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

60 PODER LOCAL E SOCIALISMO

do Sul, em 1999, e por conta da nossa denúncia do contrato com a Ford,que representava a transferência na época de 250 milhões de dólarespara esta empresa, a idéia que estava generalizada era que o processode desenvolvimento industrial do Rio Grande do Sul havia terminado eque a partir dali iríamos viver um longo e doloroso ciclo de declínio daprodução industrial. E, portanto, perderíamos, definitivamente, a possibi-lidade de preservar uma estrutura industrial capaz de produzir, geraremprego e, de alguma forma, se relacionar com o novo cenário interna-cional. Dois anos depois, esta economia gaúcha, sem a Ford, encerra oseu segundo ano, no nosso governo, sendo o setor industrial mais dinâmi-co ou com maior índice de crescimento entre todos os estados da Fede-ração. E, em geral, os estados que mais apostaram na política de renún-cia fiscal, como é o caso da Bahia e do Paraná, seguem, de uma formasólida, crescendo para baixo, em termos de desempenho industrial.

Portanto, é evidente que ao contrário dessa política quase mitológicaque entusiasma, que anima, que produz uma brutal pressão política, te-mos de construir referências de desenvolvimento de uma forma distinta.

É importante salientar o seguinte: há um fracasso nessas políticas.Temos de realizar um balanço sobre o que aconteceu na década de 1990,nos espaços subnacionais, de uma forma mais sólida, na medida em queé evidente que o programa do nosso partido, que um programa da es-querda, deve construir diálogos com o conjunto das experiências regio-nais existentes no país.

Há um balanço rigoroso a ser feito. Parto da idéia do evidente fracassotambém em escala municipal e regional do modelo anunciado e produzido.

Radicalização da democracia – Faço agora algumas referências rá-pidas à experiência do nosso estado e parto depois para apresentar o queconsidero possa ser uma colaboração para um referencial estratégico

Page 63: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

61SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

que possa melhor permitir uma articulação entre a idéia do poder local ea idéia de uma estratégia de transformação socialista.

A primeira delas é a possibilidade real que estamos vivenciando noestado do Rio Grande do Sul de pensar uma estratégia de desenvolvi-mento que obviamente não guarda só uma dimensão econômica, masdialoga diretamente com a qualidade de vida de um povo. Tem comobase a idéia de uma profunda radicalização da democracia. Essa idéiaparte da consideração de que, se é verdade que temos de recuperarum Estado forte, temos também de, no processo de reconstrução doespaço estatal, das estruturas estatais, ampliar desde já o processode controle social, o processo de democratização e a idéia fundanteda participação popular como elemento organizador de um projeto dedesenvolvimento. A idéia de que um programa como o nosso, ou aidéia de sustentar um programa de transformações como o nosso, sótem possibilidades políticas de sustentação na medida em que altera-mos as relações políticas ou as relações de poder na sociedade; eque a estrutura estabelecida em todos os níveis da institucionalidadeproduz tamanhas contradições nos nossos governos, invertendo pau-tas e agendas que só se sustentam e se desenvolvem com uma fortee permanente mobilização e participação popular. Participação popu-lar, portanto, como instrumento de incorporação na política real, nadefinição das políticas reais, das grandes maiorias excluídas. E, por-tanto, o conceito de democracia participativa, direta, associada a umconceito de democracia representativa, guarda não uma neutralidadeem si, mas uma relação de diálogo direto com uma estratégia de cons-trução de um novo padrão de poder, capaz de viabilizar e capaz desustentar um programa de transformações, especialmente diante deum quadro político que herdamos, de uma estrutura institucional, deuma estrutura estatal que herdamos.

Page 64: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

62 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Constituímos experiências importantes, portanto, a partir dessa refe-rência estratégica, a participação popular como instrumento de organi-zação, de controle de um projeto de desenvolvimento, rompendo comuma visão tecnocrática, burocrática de desenvolvimento. Mais do queisso, é evidente que este valor se traduz num valor real de democratiza-ção do poder político, e a democratização do poder político com a incor-poração das maiorias excluídas por essa mesma estrutura representa-tiva guarda, eu penso, uma relação estratégica fundamental com a cons-trução da nova sociedade. A idéia de construirmos de fato uma verda-deira democratização do poder político na nossa sociedade.

Recuperação do Estado – Associada a isso, a idéia da possibili-dade de recuperação do Estado na sua capacidade de financiamento,de uma rede de proteção social importante, que traduza e dêmaterialidade a uma carta de direitos sociais que compõe uma visãode cidadania nesse início de século e, portanto, combate ideologica-mente a idéia do mercado como provedor de saúde, educação, cultu-ra e tantos outros valores.

A idéia, portanto, de um Estado capaz de adquirir capacidade definanciamento e sustentar e financiar redes de proteção social, redespúblicas que tenham a capacidade de oferecer escola pública de qua-lidade, rede de saúde pública de qualidade e, em conseqüência, de criaras condições reais numa disputa política ideológica de continuar afir-mando que um modelo de sociedade como o nosso, se é um modeloque comporta o mercado, não é uma sociedade de mercado, e que nóstemos condições de oferecer aos filhos e filhas do povo trabalhadorescola pública de qualidade, posto de saúde etc. etc.

Este é um movimento importante que estamos produzindo apesar dabrutal crise fiscal que vivemos, mas penso que é uma tarefa central do

Page 65: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

63SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

ponto de vista programático, que guarda uma grande capacidade de alte-rar concretamente a vida das pessoas e, ao mesmo tempo, constituir umsentido estratégico importante.

A idéia de que o processo de modernização capitalista não é capaz de,por si só, absorver um contingente enorme de excluídos; a idéia de esta-belecer um conjunto de estratégias que tenham capacidade de geraçãode trabalho, de emprego, de renda para os setores excluídos dessa faseou desse processo de modernização.

Talvez aí entre um elemento importante do debate, que é mais ou me-nos o seguinte: se é uma verdade que o nosso programa não se articulaem torno do grande capital, temos de ter capacidade de nos relacionarcom o capital. E que relação é esta? Não é possível imaginar uma rela-ção de governo e de poder que recusa esta relação e se satisfaz comuma relação marginal, no sentido de periferia da economia. Nós, numaescala estadual, trabalhamos no sentido de construir uma referência dedesenvolvimento endógeno. O estado do Rio Grande do Sul é detentordo segundo parque industrial do país. Valorizar, estimular as estruturasde produção industrial, basicamente pequenas e médias empresas, cons-tituir redes de cooperação, proteger e dinamizar os nossos sistemas lo-cais de produção, tudo isso vem constituindo uma estratégia econômicaimportante que nos permite estabelecer um diálogo claro, aberto, trans-parente com esses setores e guardar maior eficiência naqueles que sãoos elementos organizadores de uma estratégia econômica. Gerar em-prego, gerar trabalho, democratizar renda. Esses são os valores que de-vem organizar uma estratégia de desenvolvimento econômico e, portan-to, guardados os limites que nós temos do poder ou de poder real, traba-lhamos nessa perspectiva, que ao fim e ao cabo é uma perspectiva dedemocratização da riqueza e da renda. É evidente que associamos isso auma política forte de qualificação do modelo de desenvolvimento agríco-

Page 66: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

64 PODER LOCAL E SOCIALISMO

la, procurando fugir de um padrão exportador agrícola, incorporando umconjunto de outros valores da agroecologia, que dialogam com os temasde preservação e ao mesmo tempo com sustentação e renda. E obvia-mente avançarmos no tema da reforma agrária numa perspectiva dedemocratização da propriedade.

O que quero enfatizar é que as experiências que estamos construindo– que muitas vezes têm representado derrotas importantes, mas tambémcom muitas experiências positivas – precisam ser cuidadosamente ana-lisadas e aprofundadas, porque todas elas, penso eu, guardam referên-cias muito importantes.

O local e o nacional – Eu encerro, portanto, com duas hipóteses dediscussão para o nosso seminário. A primeira delas – que nos tensionapermanentemente como companheiros que receberam um mandato dopartido para representar este programa numa experiência de gestão, comoé o meu caso como vice-governador, o caso do Celso Daniel como pre-feito etc. – é que temos que recusar peremptoriamente a idéia de que sóé possível implementar com consistência e efetividade uma política dedesenvolvimento no terreno nacional. Ou seja, rejeitar a idéia da recusados espaços municipais e regionais como produtores de um projeto alter-nativo. Via de regra essa é uma tese que embasa uma política ultra-esquerdista ou uma política de um pragmatismo enorme. As duas noslevam sistematicamente à derrota. Ou seja, esta idéia de que enquantonão conquistarmos o poder nacional – e me parece que muitas vezes aidéia de um poder nacional é uma eleição presidencial – não há nada oque fazer – e este “não há nada o que fazer”, via de regra, nos leva paraaqueles dois cenários, ou o ultra-esquerdismo ou o pragmatismo, e aconseqüência é a derrota. Nossa experiência – e quando digo nossaexperiência me refiro às várias experiências que temos produzido no

Page 67: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

65SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

país, pautadas por essa relação programática, orientadas pela relaçãoestratégica de transformação – mostra que temos um grande espaço deintervenção política, cultural, ideológica, de afirmação de valores queconstituem elementos de transição sólidos para uma sociedade distinta.Capaz mesmo de desconstituir a hegemonia dominante e de alicerçar osvalores da solidariedade, do espaço público; e, mais do que isso, espaçossignificativos de qualificação real da vida das pessoas.

A segunda idéia que quero apresentar é que tão nocivo quanto aidéia de que não é possível fazer nada sem uma grande ruptura emcaráter nacional é afirmar ou supervalorizar a possibilidade das expe-riências do poder local.

Essa idéia, muitas vezes alimentada e sustentada de uma forma incor-reta, assume um superdimensionamento das possibilidades locais ou re-gionais, de tal forma que acaba diluindo a capacidade de enxergar a idéiade um modelo nacional ou de uma agenda nacional. O Banco Mundial émestre em fazer isso. Ou seja, desse modo é possível sustentar o modeloatual a partir de políticas setoriais, a partir do apoio a programas munici-pais aqui ou acolá, de tal forma que criem um ambiente de sustentaçãodesse modelo, de possibilidades diante desse modelo.

Então, essa idéia de que é possível construir um novo padrão de desen-volvimento a partir tão-somente de projetos regionais, ou de projetoslocais, via de regra associados a essa dimensão hiperatrofiada do tercei-ro setor, precisa ser enfrentada.

Quero dizer que um projeto regional de desenvolvimento pode, sim,conter em potência, ou com potência, o modelo de uma nova sociedade.Mas só se realiza a partir de mudanças que se localizam no terrenonacional e se estendem no terreno internacional. A idéia básica é que noterreno nacional se encontram os grandes mecanismos de poder capa-zes de incidir de uma forma mais concreta e real sobre a vida real das

Page 68: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

66 PODER LOCAL E SOCIALISMO

regiões, dos locais e das pessoas. Câmbio, juros, legislação trabalhista,regulação de direito de propriedade etc. Ou seja, penso que a idéia fun-damental deva ser nossa capacidade de pensar uma relação entre umpoder local e as diversas experiências de gestão que estamos produzin-do; elas guardam potência real, dialogam com o sentido estratégico desociedade que queremos construir, tanto mais elas estiverem relaciona-das com a capacidade de compartilharmos, de uma forma paralela notempo, as diversas agendas. Agenda municipal, agenda estadual, agendanacional e agenda internacional constituem, em conjunto, uma estratégiapolítica, e tanto mais se conseguimos enxergar a relação do município noestado, a relação do estado para baixo e para cima, tanto mais se conse-guimos enxergar as nossas políticas nos espaços internacionais, tantomais se conseguimos dar potência às nossas experiências e uma refe-rência estratégica mais geral.

Este é o sentido maior da minha colaboração. Quanto mais formoscapazes de articular nossa estratégia política, de uma forma simultâ-nea, com o conjunto das agendas políticas, e de compreender o carátersimultâneo dessas agendas, mais transformaremos nossas experiên-cias reais de gestão em experiências potencializadoras da construçãode uma nova sociedade.

A idéia, portanto, é de que não estamos administrando uma cidade,construindo nessa cidade ou a partir dessa cidade um programa e umprojeto democrático popular; que não administramos um estado, mastemos a tarefa de construir a partir desse estado um projeto democráticoe popular que guarde relação direta com as transformações nacionais.

E, tanto mais a agenda internacional chega até nós, mais fácil é com-preender isso. Por exemplo, o tema da Área de Livre Comércio dasAméricas (ALCA). É evidente que um projeto dessa envergadura, quesignifica tarifa zero comercial, renúncia da capacidade de autonomia de

Page 69: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

67SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

construção de políticas econômicas, de política industrial, de políticatecnológica, retira literalmente a capacidade de produção de políticasnacionais, de políticas regionais e de políticas municipais.

Não é possível imaginarmos espaços de construção de políticas autô-nomas com um país aprisionado numa estrutura institucional internacio-nal, em que se delega a esse tratado internacional toda a capacidade deprodução de política industrial, tecnológica, comercial etc.

Encerro com esse exemplo, dando a dimensão de como as nossas agen-das são rigorosamente interligadas. Uma estratégia forte exige uma ca-pacidade de articularmos em conjunto essas agendas, ou então estare-mos despontencializando a nossa capacidade de produção de uma outrahegemonia política na sociedade.

Muito obrigado.

Page 70: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

68 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Page 71: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

69SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Urbanização e gestão social – Acho muito importante cruzarmos osconceitos de marxismo e socialismo e o de local. O conceito de espaçopraticamente não existe na obra de Marx. É interessante uma questão quediscutimos bastante com Milton Santos: as dinâmicas espaciais são pode-rosas na organização econômica. Nós nos referimos em particular ao es-paço local, que apesar de pequeno constitui um espaço político essencial.Na realidade, não estamos falando do local em abstrato, mas do espaço noqual a comunidade pode se articular. Aquele em que a educação, a saúde,a produção, as pequenas empresas podem se transformar em um espaçointegrado de construção social e econômica, porque, de outra forma, de-pendemos de setores, de ministros, de coisas que vêm de cima. Estamosarticulando gente, estamos administrando o espaço. Considero isso muitoimportante. É o primeiro debate de que participo que faz de fato umadiscussão teórica entre as dimensões políticas, no sentido amplo dos nos-sos grandes ideais, e o espaço local. Isso é extremamente poderoso.

Não temos nenhuma desculpa a pedir quanto aos nossos ideais. Osideais do socialismo, de uma sociedade mais humana, estão aí, e continua-mos a batalhar por eles.

ComentáriosLadislau Dowbor

Page 72: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

70 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Mas, numa sociedade que mudou radicalmente, temos de passar aconstruir esses ideais de uma maneira diferente. Como esquerda, fo-mos sempre acuados a um tipo de estatismo, e vestimos essa carapu-ça. O estatismo é problemático – acho que Celso Daniel fez muito bemao levantar essa questão –, e não é central ao marxismo. Ele é centralna medida em que, numa visão de estratégia de luta bem leninista, seconquista o Estado para se contrapor ao poder da burguesia, ao podereconômico. É uma alavanca para derrubar o poder do capital sobre asociedade, para numa segunda etapa evoluir para a redução e o fim doEstado. O objetivo é um espaço democrático – para Marx, é óbvio. Detanto querer construir o socialismo, acabamos por caminhar num sen-tido profundamente inverso, e é complicado e interessante como essascoisas se deram.

Trabalhei na Polônia, na Argélia, na Nicarágua, em uma série de paí-ses socialistas. Com esse tipo de experiência, acabamos por sentir opeso desses sistemas de organização, nos quais o poder formal capitalis-ta é extinto ou reduzido muito fortemente e não é substituído por umsistema democrático de gestão. O resultado é uma máquina burocrática,em que constatei, por exemplo, que o poder de um grande empresárioprivado e o de uma grande empresa estatal na Polônia podiam ser rigo-rosamente semelhantes. Tal como no caso do proprietário de meios deprodução, vemos uma pirâmide de poder que vai se construindo. Sãoaspectos que devemos repensar; felicito a organização desse trabalhopor cruzar os temas socialismo e poder local.

Venho há muitos anos brigando pelos espaços descentralizados. Cansei degente que me explicava: “Mas isso é pequenininho, isso não é política...”.

Imaginamos sempre que a política é algo que conquistamos. Está láem cima, em algum lugar há um bolo. Então, quando chegamos lá, pega-mos o bolo. É nosso.

Page 73: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

71SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Lembro-me de conversas do nosso grupo com Salvador Allende, noChile, e ele dizia: “Olha, eu estou aqui no Palácio. No meu Palácio.Ponto. Eu tenho dois oficiais do Exército que me apóiam”. Ocupar oPalácio resolve?

Tomo o exemplo inverso do Irã, sem fazer nenhum julgamento de valorou coisa semelhante sobre os aiatolás etc., mas o imenso poder do xá nãofoi derrubado com um grande exército, com um grande movimento ar-mado, com tiros e canhões. Vejam que o exército do xá do Irã não erabrincadeira, mas caiu com um peteleco, com as gravações, as fitas cas-setes que o aiatolá Khomeini distribuía com sua pregação. A culturaadquiriu pesos radicalmente diferentes, e conquistar a população podeser muito mais importante do que conquistar a máquina do Estado.

Isso representa deslocamentos profundos para nós. É curioso, temosdificuldade de deslocar a visão das coisas e, ao mesmo tempo, é bonitaa nossa caminhada para deslocar as coisas, porque quando falamoscom liberais ou neoliberais eles continuam a repetir rigorosamente omesmo discurso do século XIX, ou seja, “mão invisível”, laissez-faire,enquanto a esquerda está realmente construindo alternativas. Não, ameu ver, por inteligência própria, mas porque a cacetada que levamosfoi tão grande, com a queda do muro de Berlim e de todos esses sonhosde um macropoder, arbitrário, vindo de cima, que começamos a repen-sar tudo. Isso está surgindo com toda a força no Brasil, porque é oespaço que nos resta.

Quem manda neste país? Na década de 1950, era a UDN [União Demo-crática Nacional], depois a Arena [Aliança Renovadora Nacional], no tempodos militares, que depois virou PDS [Partido Democrático Social], e depoiso PFL [Partido da Frente Liberal]... É o mesmo bando, são as mesmasfamílias, inclusive. Um ACM [Antônio Carlos Magalhães] pertenceu a cadauma destas agremiações, sucessivamente, nunca saiu do poder.

Page 74: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

72 PODER LOCAL E SOCIALISMO

E curiosamente, pelo fato de que a construção de alternativas de ges-tão só tinha espaço, no Brasil, nas prefeituras, pois mais acima o controlecontinuava a ser das oligarquias tradicionais, passamos a administrar ocotidiano político das populações, a entender melhor o que é uma favela,o que é custo burocrático, o que é organizar uma licitação, o que é oenfrentamento com a mídia, o que são as práticas reais do convívio polí-tico; creio que é um capital acumulado absolutamente gigantesco.

O capitalismo produz, mas não distribui: é estruturalmente in-completo – Temos uma conjuntura particular hoje. Por haver trabalha-do muitos anos nas Nações Unidas, recebo as publicações do FundoMonetário Internacional [FMI], do Banco Mundial, essas coisas. Recebiuma publicação que me tocou muito, do FMI, que traz na capa uma foto-grafia de um menino negro com a camisa rasgada. E o que vem na caparealmente nos comove: “Como podemos ajudar os pobres?”. Trata-seda principal publicação do Fundo Monetário! Pensei em várias respostasde diversos níveis, enfim, de educação...

Mas o fato é que não é só cinismo o Fundo Monetário Internacionalcolocar isso na capa de sua publicação no mesmo ano em que a capa doRelatório do Banco Mundial é um outro menino negro, esse mais estilizado,uma pintura artística, com o título “Atacando a pobreza”. Também nomesmo ano, o relatório das Nações Unidas vem com o título “Enfrentan-do a pobreza”. A situação é simples: esse sistema capitalista é um bomprodutor, um bom organizador de produção.

É possível juntar 200 pessoas e determinar um objetivo, por exemplo:“Vamos produzir bem um tipo de sapato”. Concentrar de maneira orga-nizada um conjunto de esforços em torno de um objetivo funciona.

Mas isso não resolve o problema da distribuição. O sistema não é umbom distribuidor, porque, quanto mais poder econômico a empresa acu-

Page 75: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

73SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

mula, mais ela transforma isso em poder político, mais desequilibra asrelações sociais e gera as tragédias que conhecemos. Ou seja, é umsistema que vai além da questão de gostarmos ou não do neoliberalismo,essas coisas. Como sistema, essa é uma questão de bom senso, não émais discurso de esquerda ou direita, ele só funciona com metade daroda, porque o sistema econômico tem de produzir e distribuir, fazer cir-cular. Ele não distribui. Conclusão do Banco Mundial, deste ano: 2,8bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares por dia – não é umamédia, é de 2 dólares para baixo – e 1,2 bilhão vive com menos de 1dólar por dia. Essas pessoas não navegam na internet, não usam aquelesabonete... É um sistema que gerou uma fratura social como a humani-dade jamais conheceu, além de gerar destruição ambiental, tragédias.Ou seja, o liberalismo está à procura de caminhos, e quando considera-mos que nós os temos, porque aprendemos a trazer respostas na área dosocial, e aprendemos inclusive a articulá-las, como diz Marina Silva, coma dimensão ambiental, com a dimensão econômica, com as outras di-mensões da sociedade, temos um momento historicamente privilegiado,historicamente poderoso.

As grandes simplificações do século XIX, que foram tentadas no sécu-lo XX, a meu ver, se foram. De um lado, o proletariado administrando oEstado e utilizando o planejamento, e, de outro, a burguesia, a empresa eo mercado como mecanismo regulador. Tínhamos a nossa classe reden-tora, o proletariado; o capitalismo tinha a sua classe redentora, a burgue-sia. Esses dois modelos simplificadores não estão respondendo aos de-safios que precisamos enfrentar.

Urbanização – Eu trabalharia o poder local, Celso, com dois eixosque transformam o processo em profundidade. Primeiro, a urbaniza-ção. Nós ainda não pensamos o gigantesco impacto de termos passado

Page 76: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

74 PODER LOCAL E SOCIALISMO

de uma situação, na década de 1950, em que dois terços da populaçãoviviam no campo, para outra situação, hoje, em que 80% das pessoasvivem na cidade. O poder se gere hoje por meio das cidades. Só que omunicípio está na linha de frente dos problemas e é o último escalão daestrutura pública. Os problemas de saúde, segurança etc. se avolumamem torno da cidade, das periferias urbanas explosivas, mas as decisõescontinuam em Brasília.

Se compararmos o Brasil com países de urbanização mais antiga, dosquais um exemplo forte é a Suécia, veremos que lá 72% de todo o bolodos recursos públicos são gastos localmente, com os conselhos, com aspopulações participando etc. No Brasil, esse índice é apenas da ordemde 15%. Uma coisa é saber o tamanho do Estado, outra é saber ondeestá o Estado. Quanto mais se aproxima o Estado da população, mais segera capacidade de articular essa população em torno do uso dos recur-sos públicos, e isso é poder. Esse é um eixo extremamente importante.Avançamos um pouco com a Constituição de 1988, houve uma levedescentralização de recursos. Temos um imenso eixo de transformaçãopela frente nesse espaço.

Outro ponto fundamental é a importância da área social. Há um con-ceito chamado “serviços” que eu já parei de utilizar, por ser vago demaise confundir os problemas. Na definição atual, que é residual, quem nãotrabalha a terra (agricultura) e não trabalha na máquina (indústria) estána área de serviços, ou seja, faz parte de “outros”. Esse “outros” sechama serviços, e é um imenso saco de gatos. Por exemplo, na agricul-tura, nos Estados Unidos, diz-se que só se empregam 2,5% da popula-ção, o que é uma imensa bobagem. Realmente, lavrando a terra são só2,5%, mas nesse processo se usa também inseminação artificial, que éum serviço prestado por uma empresa, assim como análise de solo, ser-viços meteorológicos, serviços de comercialização primária e por aí vai.

Page 77: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

75SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Com todas essas coisas eleva-se o nível da agricultura, intensifica-se adimensão dos conhecimentos envolvidos, mas não é outro “setor”. Éuma forma moderna de fazer agricultura. Continua a ser produção.

Se pensamos o conjunto das modernizações ligadas diretamente aossegmentos da indústria e da agricultura, os dois grandes pilares produti-vos, o que fica na área não-produtiva diretamente, o grande eixo, é osocial. Consideremos os Estados Unidos: 14% do PIB [Produto InternoBruto] norte-americano é saúde, hoje o maior setor econômico do país.Acrescente-se educação, tanto a formal como a formação nas empre-sas (hoje só as corporate universities são mais de 2.000), e chegamosa outros 15%. Acrescente-se a cultura, que eles chamam indústria doentretenimento: seguimos tranqüilamente para a faixa dos 40% do PIB.

O ponto de interrogação é o seguinte: como se regula essa área?Porque a área industrial eu entendo, o capitalista é proprietário da fá-brica, o trabalhador trabalha e recebe um salário, há a portaria, o reló-gio de ponto etc.

E no social? Marx, há mais de um século, viu o surgimento da indústria,e disse que a indústria não é só o que as fábricas criam, ela muda asrelações de produção. Desenvolveu a teoria do capital, do assalariado,da mais-valia. E quais são as relações de produção implícitas na áreasocial? Isso é interessante. Quando olhamos para a saúde, por exemplo,vemos que ela não funciona bem com grandes máquinas estatais. Jáfuncionou. Costumamos dizer: “Como era boa a educação estadual noBrasil!”. Era para meia dúzia, gente! Como proporcionar saúde para 170milhões de habitantes, sendo que a saúde é capilar, tem de chegar a cadahabitante, a cada criança, por meio de uma gigantesca máquina centra-lizada em que há tantas hierarquias, patamares intermediários? Trabalhocom essas coisas de administração e costumamos brincar que a partir dequatro níveis hierárquicos quem está lá em cima vive na ilusão de que

Page 78: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

76 PODER LOCAL E SOCIALISMO

alguém lá embaixo obedece, e quem está lá embaixo vive na ilusão deque alguém lá em cima comanda. Não funciona.

E não é a questão de privatizar, porque se tem aí uma situação pior,absolutamente caótica. Fizemos um levantamento sobre vitamina C, dotipo efervescente. Um tubinho desse custa 6 reais. Vocês sabem quantotem de vitamina C, de ácido ascórbico, lá dentro? Três centavos. Claro,você paga a substância que faz borbulhas, a tampinha que faz “ploc”,aquela publicidade com a madame segurando aquela criança loirinha,com o marido – na publicidade o marido está ali... Vejam bem, com umprocesso desses, multiplicamos por 200 o custo de um produto simples, eexcluímos dois terços da população brasileira de um medicamento abso-lutamente essencial.

Diz-se na economia que se trata de uma demanda inelástica: você temum filho, precisa comprar um remédio. Se o remédio dobra de preço,você continua a comprar o remédio, porque é para o seu filho. Que outraopção você tem? Mercado nesta área simplesmente não funciona, a doen-ça da criança não é uma mercadoria.

Nos Estados Unidos, não entendiam por que numa cidade se hospita-lizava tanta gente. Verificaram o hospital e viram que ele dava 100dólares para o médico que encaminhasse alguém para lá. Claro, ummédico norte-americano não vai se vender por 100 dólares, mas enfim,o casamento da filha, 100 dólares daqui, 100 dólares dali... O fato é quese verificou uma taxa de hospitalização fenomenal, e os proprietáriosestão sendo processados. Um médico meu amigo diz que não há clien-te saudável, há diagnóstico incompleto. Não estou brincando! No esta-do de São Paulo temos 52% dos partos feitos por cesariana. Segundo oUnicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], esse procedimen-to multiplica por quatro os riscos para a mãe e para o filho. Uma carni-ficina. Por quê? Porque rende.

Page 79: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

77SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

O que estou tentando mostrar é que esse gigante econômico queconstitui a área social, que não aprendemos ainda a analisar do pontode vista das relações de produção que gera, não é bem administradopelo sistema estatal, centralizado, tradicional, e é muito mais mal admi-nistrado pelo sistema privado. É um eixo que está buscando os seusparadigmas de gestão.

Descentralização e participação – E aos trancos e barrancos,inventando, começamos a verificar que as atividades ligadas ao so-cial funcionam simplesmente de maneira descentralizada eparticipativa. Por quê? É muito simples. Se consideramos um con-selho de pais numa escola, o maior interesse é que não se brinquecom o futuro dos filhos. Os pais não precisam ter ações da escola,do sistema privatizado ou coisa do gênero... Cada um está interes-sado em seu filho. Então, ao organizar a participação comunitária,levamos a que as coisas se racionalizem.

Na saúde é a mesma coisa. E na cultura, outro setor que Celso Danielcitou. Na realidade, os setores citados por Celso são essencialmentesociais. E os setores sociais são o grande eixo. Para mim, a grandepreocupação com a tal da Lei de Responsabilidade Fiscal é que o queé limitado é a contratação de funcionários, e os setores sociais emer-gentes são justamente intensivos em mão-de-obra.

O que estou tentando trazer como idéia é que, com a urbanização,somos levados a um aumento brutal do consumo coletivo. Para a popu-lação dispersa no campo, o lixo é jogado na valeta ou pela janela, otransporte é o jegue ou o caminhãozinho; a água é do poço... As solu-ções são individuais, familiares. Quando se está na cidade, construir acasa é o de menos, é preciso se conectar com as redes de água, deesgoto e de eletricidade, com o transporte público, com as linhas tele-

Page 80: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

78 PODER LOCAL E SOCIALISMO

fônicas. É um sistema de redes interdependentes. Eu trabalhei na GuinéEquatorial e não havia sistema público de eletricidade decente. As pes-soas tinham aqueles geradores Honda, soluções individuais. Era umabarulheira tremenda, ninguém dormia na cidade. Com um custo quevocês imaginam... um gerador individual implica gigantescos desperdí-cios. Um sistema que deveria ser de consumo coletivo foi privatizado,individualizado, deixando a Honda muito contente, está lá vendendo asmaquininhas dela.

As pessoas aqui sorriem com um absurdo desses, dizem: isso é naÁfrica. No entanto, chegamos aqui e vemos que cada um é obrigado acomprar, por 20 mil reais, um carro, e estamos andando, em média, a 14quilômetros por hora, porque não há transporte público. Nesse planoestamos em plena África.

Se começarmos a pensar a gestão do social, o tipo de impacto quea urbanização tem, por um lado, e, por outro, o impacto social emtermos de relação de produção que tem a emergência desse imensosetor do social, acho que temos um eixo extremamente interessantede análise sobre como o poder local é um reconstrutor social delongo prazo.

Como o social exige que a população se articule, e exige a expan-são do consumo coletivo e público, torna-se um construtor naturalde uma rearticulação comunitária extremamente poderosa. E sabe-mos que talvez o impacto mais trágico do conjunto desse sistemacapitalista moderno seja a desarticulação social, a atomização. Quan-do se reconstrói o tecido social, não acho que seja suficiente parareconstruir a política, mas creio que é uma condição necessária noplano dos dilemas que estávamos levantando. Acho que pensarmosque só é possível resolver os problemas com o local é uma ilusão.Mas, se não há uma população organizada, articulada pela base,

Page 81: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

79SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

pode-se chegar a Brasília com a pasta, com a faixa e tudo, e se farámuito pouco.

Só mais uma informação: há um pequeno texto meu que apresentade forma mais organizada estas idéias, e que eu gostaria que vocêsconsultassem. Chama-se “Gestão social e transformação da socie-dade”. Está na internet, na página http://www.ppbr.com/ld. Vejamem “artigos online”.

Muito obrigado.

Page 82: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

80 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Page 83: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

81SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Max AltmannMinha intervenção está ligada à

discussão dominante neste ciclo dedebates, e também hoje, quando amídia bate insistentemente na teclade que o PT abandonou o socialis-mo em favor de outras bandeiras.

No entanto o PT nasceu negan-do alguns dos aspectos identifi-cadores do socialismo real: parti-do único e monolítico, ditadura doproletariado, falta de democraciainterna – o que eliminava a discus-são ampla dos problemas em to-dos os escalões –, burocratizaçãodo aparelho estatal e partidário, su-bordinação do aparelho de Estadoe da sociedade como um todo ao

Debate com o público

aparato partidário que levou à es-tagnação e à corrupção, ao defi-nhamento político e ideológico e,finalmente, à derrocada. O PT ne-gou esses aspectos, e sua práticae sua pregação são contrárias atudo isso, mas não negamos o quea Revolução de Outubro represen-tou para as conquistas da classetrabalhadora em todos os recan-tos do mundo, nem o papel históri-co do socialismo, ao derrotar nocampo de batalha o nazi-fascismo,nem as proezas do socialismo nocampo econômico – ao contráriodo que prega o atual pensamentoúnico –, que levou, em poucas dé-cadas, um país atrasado à condi-

Page 84: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

82 PODER LOCAL E SOCIALISMO

ção de superpotência, rivalizandocom os Estados Unidos. Nemmesmo a importância geoestraté-gica da bipolaridade que propi-ciou, por exemplo, o fim do colo-nialismo e cuja ausência, hoje,permite aos Estados Unidos po-rem e disporem ao seu talante.

Para um segmento de personali-dades nada insignificantes da es-querda brasileira, já não se tratade articular socialismo e democra-cia, mas simplesmente de afirmarque o socialismo se tornou peçade museu a ser enterrada juntocom o muro de Berlim, não res-tando assim à esquerda outra ta-refa além daquela de compa-tibilizar capitalismo e justiça social.O alvo polêmico dos textos deCarlos Nelson Coutinho – e essestextos dizem respeito exatamenteao PT – já não é constituído ape-nas pelos que negam ou subesti-mam o valor universal da demo-cracia, que ainda ocupa algum es-paço na nossa esquerda, mas tam-bém por aqueles que parecem ago-ra ignorar que sem democracia não

há socialismo, tampouco a demo-cracia plena e consolidada sem osocialismo, ou seja, a superação dasociedade de classes fundada naexploração e na alienação.

O socialismo não é um abstratoconjunto de valores que orientaráa utópica tarefa de melhorar o ca-pitalismo, compatibilizar o reino domercado com a justiça social. O so-cialismo é uma nova e inédita or-dem social, na qual, no lugar davelha sociedade burguesa, comsuas classes e seus antagonismosde classes, surge uma associaçãoem que o livre desenvolvimento decada um é pressuposto para o livredesenvolvimento de todos.

Sabemos que existem no PT cor-rentes que negam explicitamente osocialismo em nome de uma nebu-losa democracia republicana, quequando falam em socialismo é paraprestar homenagem, mas de modomeramente verbal; outras identifi-cam-se com a proposta de umasuposta terceira via; outras aindacom a social-democracia, mais àesquerda ou à direita. Esse emba-

Page 85: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

83SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

te é real e é natural dentro do PT.Mas, se o partido se define como

socialista, então as definições ideo-lógicas devem ser esclarecidas.Isto nada tem a ver com modelosanteriores ou atuais, com a veloci-dade ou a condução tática do pro-cesso; já há um consenso generali-zado e implícito de que o caminhobrasileiro para o socialismo obede-cerá à história, à índole do povobrasileiro, à sua cultura, ao seuacúmulo de lutas, à sua realidadesocial e econômica, e por aí afora.

Nessa marcha, a democracia nãoé um caminho para o socialismo esim o caminho do socialismo.

Volto a Carlos Nelson Coutinho:

“A plena realização socialis-ta do homem não requerapenas a supressão da apro-priação privada dos meios deprodução, que são frutos dotrabalho coletivo. Requertambém a eliminação daapropriação não-social,privatista das alavancas depoder. Superar a alienação

econômica é condição ne-cessária mas não suficientepara a realização integral daspotencialidades abertas pelacrescente socialização dohomem. Essa realização im-plica também o fim da alie-nação política”.

Gostaria de mencionar muito ra-pidamente uma questão que tam-bém vem sendo muito batida, a crí-tica que a social-democracia e o li-beralismo fazem ao socialismo, quepreserva os direitos humanos eco-nômicos, salienta os direitos huma-nos econômicos, sociais e culturaise despreza os direitos políticos ecivis. Nós consideramos que am-bos devem ter o mesmo peso. Masque ocorre nos países do TerceiroMundo? Os primeiros, os direitoseconômicos, sociais e culturais, sãoextremamente precários. Saláriosbaixos, desemprego, saúde precá-ria, educação de baixo nível, anal-fabetismo, analfabetismo funcional;e os segundos são meramente for-mais, comparecer de quatro em

Page 86: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

84 PODER LOCAL E SOCIALISMO

quatro anos ou de dois em dois anosao posto eleitoral, e participação naatividade política muito reduzida.

Quando os Estados Unidos seopõem ao protocolo de Kioto, elesse opõem ao primeiro dos direitoshumanos, a vida, sem a qual os de-mais simplesmente não existem.Essa é uma violação aos direitoshumanos fundamentais, e muitosdizem que não querem nenhum re-gime que, por exemplo, não preser-ve a liberdade de imprensa. Noentanto, nos países capitalistasexistem fortes limitações de ordemeconômica à liberdade de impren-sa. Se nós quisermos fundar nessepaís um jornal diário de circulaçãonacional, teremos de desembolsar,paulatinamente, 500 milhões dereais, sem o que não conseguire-mos levar às massas diariamentealgo que se oponha à mídia que de-fende a ideologia do neoliberalismo– não vamos poder nos contrapor.Essa é uma limitação muito severaa um direito humano fundamental,que é o da liberdade de imprensaou da liberdade de expressão.

Esses são alguns temas que euproponho para nossa apreciaçãoe discussão.

Inácio Teixeira NetoBoa tarde à mesa e aos senho-

res participantes. Meu nome éInácio Teixeira Neto e hoje tra-balho em uma assessoria da Se-cretaria de Negócios Jurídicos ede Cidadania, de Campinas, em-bora minha trajetória tenha sidotoda feita aqui em São Paulo. Arazão da minha pergunta foram asopiniões de alguém que aprendia admirar muito, o professor La-dislau Dawbor.

Meu único objetivo em intervir éretomar a questão da figura da cri-ança negra usada pelo FMI em seurelatório, e também sabemos que oBanco Mundial usou figura seme-lhante. Em Campinas temos a Se-cretaria de Cidadania, que acaboude criar uma Coordenadoria da Co-munidade Negra. Temos uma preo-cupação fundamental que é a desaber, dirigindo-me à mesa, quaisas iniciativas que a esquerda, so-

Page 87: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

85SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

bretudo o PT, está tomando nessesentido. E para o professor LadislauDowbor: qual a alternativa de ba-talha que nós, negros, temos deencetar aqui no Brasil?

AlencarBoa tarde a todos os presentes,

meu nome é Alencar, sou do PT deGuarulhos. Gostaria de fazer umapergunta ao prefeito Celso Daniele, se possível, gostaria de ouvir tam-bém um comentário do vice-gover-nador do Rio Grande do Sul. O se-nhor propõe que se rediscuta a Fe-deração, dando maior ênfase aopoder local. Não seria necessáriatambém a criação de mais um entefederado de nível regional, ou seja,não só município, estado e União,mas um ente que representasse asnossas regiões, como Sul, Centro-Oeste e as demais?

Valter PomarMinha primeira pergunta é para

Celso Daniel. Gostaria que ele ex-plicasse por que adota e como en-tende essa idéia de que as alternati-

vas surgidas ao capitalismo naqueleperíodo dos anos 30 seriam ambasde natureza totalitária. Você falouem totalitarismo soviético e totalita-rismo fascista. Só para efeito polê-mico, quero registrar que consideroisso uma agressão, não pessoal, cla-ro, mas a toda uma história que deveser levada em conta; também deveser considerado o comportamentoefetivo dos capitalistas alemães eitalianos em relação ao partido na-zista e ao partido fascista.

Creio que mesmo a referência aTrotski está deslocada, porqueTrotski, que usa o termo “totalitá-rio” no texto que você leu, faziauma defesa da União Soviética, di-zia que era preciso uma revoluçãopolítica. Ou seja, “totalitário”, paraele, se referia a um regime político,e não a um sistema social e, comosistema social, ele afirma que o na-zismo e o fascismo são um prolon-gamento do capitalismo num deter-minado momento.

Apesar de o tema não ser esse,queria entender melhor se vocêusou totalitário só no sentido polê-

Page 88: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

86 PODER LOCAL E SOCIALISMO

mico ou se é essa mesma a visãoque você tem sobre a experiênciasocialista do século XX.

Ainda para Celso Daniel: acheibastante interessantes algumas ad-vertências que você fez em rela-ção a tomarmos cuidado com a idéiade que podemos estar mudandotudo e, na verdade, podemos estardando, sob nova forma, continuida-de ao velho. E, ao mesmo tempo,tanto Rossetto como Celso chama-ram a atenção para a necessidade,em escala local, que pode ser mu-nicipal ou estadual, de manter a li-gação com os setores dinâmicos daeconomia. Falando em portuguêsmais claro, com o grande capital,ou pelo menos com setores do gran-de capital. Não estou entrando nomérito, isso é inevitável. Mas a mi-nha pergunta a partir desses doispontos é: qual a possibilidade deuma gestão de esquerda, petista, serfuncional, ser útil para o grandecapital? Ou seja, para os partidosde direita, uma gestão de esquerdaé ruim, isso nós sabemos. Mas epara o grande capital?

Marx ironiza, em A guerra civilna França, quando diz que a Co-muna de Paris realizou o sonho deum setor da burguesia que clamavapor um governo barato. Os nossosgovernos são eficientes, são hones-tos, são preocupados com o desen-volvimento econômico, em certo sen-tido não se preocupam em servir aum setor da classe burguesa ou auma fração, mas pensam o desen-volvimento econômico como um todo.

Gostaria de ouvir de vocês umpouco sobre esse outro lado do pro-blema. Em que medida os gover-nos de esquerda podem ser absor-vidos pela dinâmica real do capita-lismo existente no Brasil? Podeacontecer, não pode?

Por último, nessa mesma linha,eu perguntaria a Ladislau e aMarina, respectivamente, como asinstituições financeiras, multilate-rais, o Banco Mundial, o FundoMonetário Internacional, vêem asquestões do poder local e do de-senvolvimento sustentável?

Tive, nos últimos dois anos, con-tato com diversas ONGs e com vá-

Page 89: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

87SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

rios representantes desses organis-mos multilaterais, e a minha impres-são é a de que eles incorporaramesses dois conceitos, trabalham emanipulam esses conceitos. Então,minha pergunta não é sobre comoeles vêem essas questões, mas so-bre que diferença existe entre o queeles dizem e o que nós defende-mos? Quando o Banco Mundial fazloas ao poder local e uma outra ins-tituição fala de desenvolvimentosustentável, qual a diferença que hánisso conceitualmente, não na prá-tica. Que diferença existe?

Paul SingerCoincidentemente, minhas preo-

cupações são muito semelhantes àsdo Valter, acho que minhas pergun-tas vão coincidir em grande medi-da com algumas que ele fez.

Quero voltar ao dilema que ocompanheiro Rossetto apresentouno fim de sua exposição entre di-zer “recuso a hipótese de que nadapode ser feito a não ser quando ti-vermos o governo federal” e “re-cuso também a hipótese contrária,

ou seja, fazer as coisas em nívellocal”. Essa simetria, ao menospara mim, não parece convincen-te. Sou entusiasticamente a favorda primeira hipótese e tenho gran-des dúvidas sobre a segunda.

Ou seja, qual é o limite do que sepode fazer em plano local? O queimpede de fato: o câmbio, a políticade juros ou a legislação do traba-lho? Claro, a grande limitação dopoder local é o limite de localidade.As possibilidades em São Paulo,uma área superdesenvolvida e comproblemas próprios das suas con-tradições, e no Acre – e em outrasáreas do Brasil – são diametral-mente diferentes, mas não têmnada a ver com o governo federal.Acho importante aprofundar essaquestão, que está ligada umbilical-mente a outra questão que o Valterpropôs, mas que eu quero levantarnos meus termos, que podem atéser idênticos, não sei se são. É pos-sível desenvolver uma economia,em qualquer dimensão geográfica,num bairro, numa grande cidade,num estado, num país, sem contar

Page 90: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

88 PODER LOCAL E SOCIALISMO

com o grande capital? Não a ex-pulsar ou provocar uma fuga decapitais, isso seria meio suicida, massimplesmente sem estar nos preo-cupando em atraí-lo, em ganhar oumanter a sua confiança? É possí-vel criar uma alternativa, que podeser chamada popular, socialista,solidária, pouco importa, sem limi-tações? Eu estou expondo essaquestão com toda a ênfase possí-vel. Há um consenso, que não com-partilho, de que isso é coisa peque-na, complementar, uma forma po-pular de ajudar os pobres a seremum pouco menos pobres. Mas exis-te também uma possibilidade de di-zer que essa é uma forma rival dedesenvolvimento alternativo, e quedepende basicamente daquilo queLadislau Dowbor sublinhou, e nadamais. Não depende de ter a prefei-tura ou o governo regional, mas deorganizar a sociedade. Essas di-mensões, integrando um poucoaquilo que foi, de uma forma muitointeressante, exposto por vocês, da-riam uma linda discussão.

Obrigado.

Coordenador da mesaHá algumas perguntas dirigidas

diretamente aos debatedores e háoutras mais gerais. Vou lê-las:

José Carlos pergunta, especial-mente para Ladislau Dowbor,sobre a ALCA, que foi elaboradana gestão George Bush pai eagora está proposta novamentepor George Bush filho, que com-promete a soberania da Améri-ca Latina. Que significa, de fato,esse projeto?

Joaquim, do Núcleo de Base doPT do Centro [São Paulo, Capi-tal], pergunta para Marina Silvacomo o mandato de senadorapode contribuir para a geraçãode renda e empregos no estadodo Acre.

O vereador Geraldo Gouveia, domunicípio de Rio Grande da Serra,pergunta para Celso Daniel sobreuma questão tão maléfica para umacidade como Rio Grande da Serra,o caso do “corredor polonês”.

Page 91: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

89SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Antônio da Silva pergunta sobrea atrofia da esfera pública. Na opi-nião dos debatedores, levando emconta o desenvolvimento local e osocialismo, que impacto e efeito aLei de Responsabilidade Fiscal es-taria causando nos caminhos da de-mocracia e do socialismo pelo fatode controlar os gastos?

Pergunta de Alípio da Silva: adistribuição de renda ou do lucro,diretamente da fonte geradora,se já não é, será um dos maioresagentes da concentração de ren-da no Brasil. Exemplo, a indús-tria automobilística produzia aquihá apenas 15 anos cerca de 12carros por homem e hoje produzcerca de 42, gerando um grandelucro, beneficiando e privilegian-do um grupo cada vez menor depessoas. Quem deve, portanto,participar da renda ou do lucro éo governo, para depois distribuí-lo de diversas formas.

O que devemos pretender paraa construção do socialismo e dacidadania é a distribuição da rique-

za no momento de sua geração,sob a forma de Fundo de Garantiaindividual de 20%, que beneficia-rá do presidente da República aomais humilde dos brasileiros, inclu-sive os aposentados.

Para todos os debatedores, per-gunta de Roberto. No socialismosomos todos iguais? Como encarara diferença de vários níveis que te-mos no Brasil?

Cesário, do Movimento Evangé-lico Progressista (MEP), para CelsoDaniel: para onde estamos cami-nhando se vivemos com as contra-dições do arcaico com o moderno?Qual o meio-termo, se é que exis-te, desse processo?

Celso DanielEu tenho um conjunto bastante

diversificado de questões. Francis-co da Costa Silva, da Capela do So-corro, pergunta “quais as dificulda-des de governar com os desmandosdo governo federal impostos aosgovernos do PT”.

Page 92: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

90 PODER LOCAL E SOCIALISMO

As dificuldades são inúmeras. Porexemplo, no governo federal, tive-mos um processo de fragilização daFederação, não só em relação àreconcentração de receitas e à dis-tribuição de atribuições novas, mastambém às questões relativas à guer-ra fiscal, a respeito das quais MiguelRossetto falou bastante aqui. Pro-blemas ligados, por exemplo, à es-tagnação econômica e ao desem-prego. Não há apenas queda dos re-cursos fiscais em nível local, mastambém aumento das demandassociais. A questão é a seguinte: ape-sar dessas dificuldades de gover-nar impostas em função da políticado governo federal, temos conse-guido governar de maneira positi-va e apresentar resultados positi-vos. Creio que nós nos movemosexatamente nessas contradições.

Antônio Nobre da Silva pergun-ta: em função da questão da atrofiada esfera pública, qual o impactoda Lei de Responsabilidade Fiscalsobre ela?

É um impacto concreto. Concre-to em que sentido? Na verdade,

jogar contra a atrofia da esferapública significa valorizar tambémo fundo público, voltado justamen-te aos direitos das pessoas e, por-tanto, à área social. E o que a Leide Responsabilidade Fiscal faz é,por um lado, levar a efeito um con-trole sobre os gastos públicos, deuma maneira que em grande me-dida é positiva, mas, por outro, res-tringe dramaticamente a possibili-dade de elevação dos gastos per-manentes e, portanto, dos gastossociais, enquanto libera completa-mente, e até obriga, os gastos re-lativos à dívida, ao endividamento.É algo que tem muito a ver com aprópria orientação do FMI e, portabela, prejudica, sim, a possibili-dade de que tenhamos de garantirum fundo público de qualidade e,portanto, o combate à atrofia daesfera pública.

Pergunta de Alencar, do PT deGuarulhos a respeito da Federa-ção brasileira. Alencar, você temtoda razão, além da maior ênfaseao poder local, é fundamental quena rediscussão a respeito da Fe-

Page 93: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

91SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

deração levemos em consideraçãopelo menos dois outros níveis ab-solutamente fundamentais para avida cotidiana das pessoas, embo-ra sejam intermediários. Um dosníveis é o que você citou, das ma-crorregiões aqui no Brasil. Podemser outras regiões diferentes des-sas que temos instituídas, mas Nor-deste, Centro-Oeste, Norte, Su-deste, Sul têm problemáticas es-pecíficas. Isso está completamen-te largado às traças. Já existiu aSudene [Superintendência de De-senvolvimento do Nordeste] comouma referência. Temos de repen-sar uma outra maneira de organi-zar essas macrorregiões, partindofundamentalmente dos estados enão tanto ou não apenas do gover-no federal, como foi a nossa ex-periência anterior do nacional-desenvolvimentismo.

Imagino que até agora pouca coi-sa tenha sido feita a esse respeito,e acho que estamos muito atrasa-dos nesse aspecto. Porque sabemosmuito bem, por exemplo, que o con-traste riqueza–pobreza, aqui no

Brasil, é muito menos um contras-te entre o urbano e o rural, e muitomais o contraste entre regiões, Sule Sudeste por um lado e Norte eNordeste e, eventualmente, Centro-Oeste, por outro.

Há um outro nível, ao qual vocênão se referiu, mas que eu gosta-ria de mencionar aqui, que é umnível supramunicipal ou subesta-dual, tanto no nível das regiões nointerior de um determinado esta-do, sejam elas rurais ou urbanas,como no nível da gestão metropo-litana. Isso está completamentesem equacionamento, de tal ma-neira que para repensar a questãofederativa é necessário considerar,a meu juízo, pelo menos cinco ní-veis diferentes: união, estados, mu-nicípios; no meio da união e dosestados, as grandes regiões; nomeio dos estados e municípios, asregiões que aí se colocam. Masnão considerar esses dois outrosníveis como níveis que tenham deexigir, por exemplo, eleições, cons-tituir um governo. Isso não fazparte da nossa história da Federa-

Page 94: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

92 PODER LOCAL E SOCIALISMO

ção e não seria razoável propor-mos nesse momento. Acho que fazsentido, sim, repensarmos a ques-tão da gestão metropolitana a par-tir de baixo, não a partir de cima,como na época da ditadura mili-tar, e como ainda ela está propos-ta em função da Constituição de1988. A mesma coisa é verdadei-ra em relação às macrorregiões.

Deixei para o fim as questõesmais espinhosas. Em primeirolugar, sobre as questões maiscomplicadas, de Valter Pomar edo professor Paul Singer, queriadizer que eu sabia que, ao fazeruma exposição que começou domais global, do mais abstrato emtermos do socialismo, para o maisespecífico, estava por um ladoperdendo a oportunidade de falarmais concretamente sobre desen-volvimento local – provavelmen-te não aproveitei a oportunidadepara falar mais sobre experiên-cias concretas de desenvolvimen-to local –, e por outro lado estavaabrindo um flanco para ser dura-mente criticado.

Quero dizer o seguinte, Valter:você tem razão em relação à mi-nha citação de Trotski, é uma cita-ção deslocada do conjunto do pen-samento de Trotski sobre a UniãoSoviética, que vai no caminho a quevocê mesmo se referiu, a históriada revolução política etc.

Você tem razão em relação àmaneira como me coloquei aqui,dá a entender que eu estava fa-zendo uma identificação entre o to-talitarismo soviético e o totalitaris-mo fascista ou nazista, e mepenitencio porque não tive tempopara poder discriminar um poucomelhor esses conceitos. Efetiva-mente, acho que seria uma violên-cia da minha parte fazer uma afir-mação que coloque tudo isso nomesmo saco, porque relações his-tóricas, que foram inclusive co-mentadas aqui por Max Altman,são completamente diferentes emum caso e no outro; relações con-cretas construídas na sociedadesão completamente diferentes emcada caso. Seria realmente umaagressão, uma violência fazer uma

Page 95: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

93SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

pura identificação entre totalitaris-mos, como se eles fossem absolu-tamente indiferenciados.

Só que nesse ponto queria res-guardar algo para mim, o que sig-nifica, portanto, que eu precisomanter o que havia comentado ini-cialmente porque essa é a minhaconvicção. A despeito dessas dis-tinções todas e das razões quevocê tenha sobre o que ponderou,continuo a manter minha conside-ração a respeito do socialismoreal essencialmente como umaforma de sistema totalitário, em-bora bastante distinta das formasfascista e nazista. Continuo a sus-tentar essa idéia aqui porque, em-bora isso possa parecer para mui-tos que se afirmam da tradição so-cialista um tipo de agressão, o queacontece, na verdade, é que fiz amenção a propósito do fato de queessa reflexão está muito ligada àminha prática concreta, não no PT

no nível mais geral, mas no PT deSanto André. E quero dizer paraos companheiros e companheirasque a minha consideração a esse

respeito provém exatamente dofato de que me senti extremamen-te agredido por práticas ditas deesquerda dentro do PT que car-regavam com todas as suas con-figurações esse gérmen de totali-tarismo de esquerda, que estevepresente nas experiências do so-cialismo real, e me sinto mais doque tranqüilo, mais do que segu-ro, em fazer as minhas pondera-ções a respeito do fato de que,como eu havia comentado, a de-mocracia, os direitos, a cidadaniatêm de ser valorizados acima detudo. E só é possível pensar numsistema socialista, numa socieda-de socialista a partir dos referen-ciais de alargamento da radicali-zação da democracia. O sistematotalitário, inclusive o sistema so-viético, se erige, insisto, a partir dasruínas da idéia de direitos do ho-mem, da idéia de democracia.

Por isso, pessoalmente, acreditoque buscar uma alternativa socia-lista significa, sim, resgatar toda atradição socialista, todo o pensa-mento socialista, particularmente

Page 96: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

94 PODER LOCAL E SOCIALISMO

dos séculos XIX e XX, tendo emconta também os males e proble-mas que foram causados por umcerto tipo de socialismo, em espe-cial aquele que foi implementado demaneira concreta.

Sei que isso me põe diante de umproblema seriíssimo: o que colocarno lugar? Estava tentando desen-volver alguns argumentos e algu-mas referências para poder colo-car algo no lugar que, resgatandoideais e referências socialistas, nãotenha que cair, se espelhar e bus-car práticas e elementos que eucreio que podem, na verdade, noscolocar numa situação muito com-plicada, que é reproduzir erros que,a meu ver, a história já demonstrouque foram importantes do ponto devista da esquerda.

Por isso é que, por exemplo, aofalar em algumas referências de so-cialismo e buscar vinculá-las àquestão do desenvolvimento local,fiz menção a algumas idéias traba-lhadas por Francisco de Oliveira emseu livro Os direitos do antivalor.A preocupação dele, com a qual

concordo, porque acho que ela estásintonizada com essa questão davalorização e do alargamento da de-mocracia, era exatamente a de su-perarmos uma análise que faz par-te da tradição da análise marxista:se estamos dentro do sistema ca-pitalista, então tudo o que se fizerno interior do sistema capitalista éfuncional ao capital. A menos quesejam ações políticas que visam or-ganizar a população para golpearesse sistema no seu centro, e por-tanto colocar um outro Estado, oEstado socialista no seu lugar.

O que Francisco de Oliveira ten-ta fazer – e acho isso muito produ-tivo, muito positivo – é demonstrarque no interior do sistema capita-lista existem linhas de força, inicia-tivas que têm sido tomadas ao lon-go de várias décadas e não apenaspor meio das nossas experiênciasde governo local, que implicam umacontradição não excludente, masdialética, como movimento do ca-pital. Não que elas não possam serapropriadas pelo movimento do ca-pital, isso aconteceu no período de

Page 97: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

95SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

auge da social-democracia, eviden-temente. Mas reduzir o que acon-teceu apenas à mera apropriaçãopelo capital do que foi inaugurado,nos termos de Francisco de Olivei-ra, a partir da criação desse fundopúblico e desse alargamento da es-fera pública, creio que é uma for-ma de teorizar que não cabe a nós,a menos que sejamos obrigados aresgatar, em termos bastante tradi-cionais, a tradição socialista.

Digo isso também porque tem aver com a outra questão que ValterPomar apresenta. Não acho queseja exatamente a mesma questãoapresentada pelo professor PaulSinger, pelo menos não de acordocom o meu entendimento. Então,tento responder à questão do Valter:qual a possibilidade de uma gestãopetista ser funcional ao grande ca-pital? Isso pode acontecer ou não?

Respondo a você o seguinte: de-pende. Se o referencial for o de quequalquer coisa que se faça do pon-to de vista econômico, no sistemaem que nós vivemos – por estar-mos imersos num sistema em que

é o mercado que dita as regras –,se qualquer ação nesse campo forconsiderada funcional ao movimen-to do capital, então toda e qualqueradministração petista ou não petistaserá funcional de alguma maneira.

Funcional ao capital de que ma-neira? Não precisa dar dinheiropara o capital privado, por meio daguerra fiscal, da renúncia fiscal etc.Pode ser funcional ao capital namedida em que essa administraçãogarantir, nos termos marxistas, con-dições mais adequadas de reprodu-ção da força de trabalho. Se ficar-mos presos a essa forma de teori-zar, qualquer gestão nossa semprevai ser funcional ao capital. Nãovou responder à questão partindodesse ponto de vista, porque senãoficamos num círculo fechado, emque não há saída a não ser a revo-lução por excelência. Mas acho queuma gestão petista, uma gestãopretensamente de esquerda podeser funcional ao grande capital, dei-xando de lado essa outra formula-ção teórica, digamos assim. Elapode ser funcional ao grande capi-

Page 98: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

96 PODER LOCAL E SOCIALISMO

tal, sim, se for capturada. MiguelRossetto estava falando, se enten-di bem, sobre experiências nossasque têm sido sensíveis, por exem-plo, à questão da guerra fiscal, ou àda renúncia fiscal, ou a outros pro-gramas, no final das contas, quepodem ser entendidos, na linha doBanco Mundial etc., como tipica-mente compensatórios, de comba-te à pobreza. Acho que pode, e nósprecisamos estar atentos para exa-tamente esse risco.

O que fazer para nos afastar des-se risco? Não estaremos expostosa ele se tivermos um modelo de ges-tão e desenvolvimento local basea-do em outros princípios, diferentesdaqueles que movem pura e sim-plesmente o mercado, particular-mente o auto-regulador; e aquiloque estimula o funcionamento domercado auto-regulador, na práti-ca, por exemplo, é o que tem acon-tecido aqui no Brasil com a guerrafiscal, a renúncia fiscal, coisas dogênero. Isso joga mais água nomoinho da idéia do mercado auto-regulador, do paradigma neoliberal.

Creio que é possível, se trabalha-mos com referências que já foramdiscutidas aqui. Eu falei bem rapi-damente sobre isso, mas MarinaSilva citou uma série de exemplosconcretos, Rossetto também faloua respeito, e a mesma coisa fezLadislau Dowbor. Quando fazemoso que eles expuseram aqui, nãoacho que corremos qualquer tipo derisco de ter uma gestão local fun-cional ao grande capital, nesse sen-tido que estamos colocando agora,ou seja, toda ela voltada, indepen-dentemente da nossa visão ou in-tenção a respeito, para a valoriza-ção, o movimento, a acumulação docapital. Acho que estamos cons-truindo exatamente o oposto: as ba-ses para criar condições para com-bater a economia de mercadocomo tal; um outro sistema, um sis-tema socialista com outros refe-renciais a partir de baixo, de expe-riências concretas.

Valter Pomar não fez a perguntapara mim, mas para Ladislau eMarina, mas gostaria de falar so-bre essa questão do Banco Mun-

Page 99: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

97SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

dial, do FMI etc., o que diferencia anossa prática da deles e o que dife-rencia nossos discursos.

Não sou especialista nesses re-latórios, Ladislau os conhece muitomais. Não me debruço para ficarlendo esses relatórios, mas há mui-ta diferença entre o nosso discursoe o deles. Eles tecem loas, porexemplo, à questão da participação.Agora, a maneira como colocam otema da participação é extrema-mente genérico. Cabe tudo. E cabeparticularmente, por exemplo, en-tender participação comunitáriacomo participação de ONGs, muitasvezes financiadas pelo próprio Ban-co Mundial ou pelos organismos in-ternacionais que eles travestem departicipação comunitária. Cabe, porexemplo, também um conceito como qual eles trabalham, muito caro aeles: o de governança. É uma idéia– não exatamente um conceito.Haja possibilidades de diferentes in-terpretações a respeito desse con-ceito de governança... Não tenhodúvida de que uma boa parte delastrabalha com esse conceito pensan-

do à maneira liberal, ou seja, go-vernança entendida como o gover-no não sendo o governo eleito etudo mais, mas o conjunto de ou-tros setores da sociedade; no casode boa parte delas, e em textos con-cretos, com certeza isso significaprivatização. E significa também asempresas privatizadas, afinal decontas, serem também importantestomadoras de decisão, assim comoo governo local. Descentralizaçãoentendida como privatização.

Isso é algo concreto, que está emtextos desses organismos mundiais.Inclusive a forma como eles abor-dam a questão da pobreza. Tudobem que a pobreza está colocadanos textos deles, eu tenho dúvidade que eles consigam sair dos tex-tos para uma coisa um pouco maisconcreta, para além dos textos, maseles trabalham com a pobreza...

Creio que é fundamental traba-lharmos com outro registro con-ceitual, que na verdade é político,porque é outro registro ideológico,o da inclusão social, e não o da po-breza. O necessário não é comba-

Page 100: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

98 PODER LOCAL E SOCIALISMO

ter a pobreza com políticas com-pensatórias, mas garantir a inclu-são social.

Então, acho que mesmo no níveldo discurso nós temos diferençasque são importantes, que podem edevem ser trabalhadas por nós. Oque não significa que não haja es-paços, como foi exposto muito bempela senadora Marina, espaços decontradições que podem perfeita-mente ser apropriados por nós,mesmo que respondam, neste ounaquele caso, a interesses das gran-des multinacionais ou desses orga-nismos internacionais.

Pegando por um lado um pou-quinho diferente, para terminaressa questão, é possível desenvol-ver uma economia, na cidade, noestado, no país, sem contar com ogrande capital, ou seja, sem nospreocupar em atraí-lo? Eu acho queé possível, mas não acho que sejaviável em todos os casos, porquequando administramos localidadeso fazemos com uma certa história,uma estrutura já adquirida, umaconfiguração de seu próprio mer-

cado e uma determinada socieda-de. Possível é, particularmente senós, em vez de trabalharmos coma idéia de pura e simplesmente ri-far o grande capital, tivermos con-dições de estabelecer uma relaçãocom o grande capital que interesseao território – muito na linha da preo-cupação que Rossetto levantou nofinal da sua exposição –, se conse-guirmos apropriar aquilo que é pos-sível na relação com o grande ca-pital para benefício da preservação,da recuperação do nosso territórioe das relações sociais do nosso ter-ritório. Mas é possível, particular-mente, se trabalharmos com umaoutra orientação que, sem abrir mãodo que existe ou pode existir de di-nâmico em termos da economia, dêênfase e prioridade ao pequeno em-preendimento e a formas alternati-vas de produção.

Isso é muito genérico, mas que-ria dizer, pelo menos até o pontoem que tenho experiência, conhe-cimento, que há experiências con-cretas de desenvolvimento localbaseado na pequena produção em

Page 101: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

99SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

alguns outros lugares do mundo,particularmente no Norte da Itália,e que são experiências extrema-mente dinâmicas. Quando falamosem dinamismo, não estamos falan-do em ter de estabelecer em cadalocalidade um pólo de indústria deinformática ou algo do gênero. Éoutra coisa. Indústrias tidas comotradicionais podem e costumamser extremamente dinâmicas. Porexemplo, a indústria do vestuário,ou outras indústrias, na região italia-na da Emilia Romagna, baseadastodas elas efetivamente em peque-na produção, por meio de uma con-figuração de desenvolvimento localmuito baseada em cooperativas,mas também na cooperação entreos pequenos empreendimentos, nacriação de agências de desenvolvi-mento que passam a prestar servi-ços aos pequenos empreendimen-tos, que são equivalentes àquilo quesó uma grande empresa tem con-dição de prestar. Se as coisas fo-rem deixadas apenas à livre forçado mercado auto-regulador, é per-feitamente possível.

Exponho ao senhor, professorPaul Singer, minha avaliação a res-peito da questão da região do Gran-de ABC nesse momento. Essa re-gião sempre foi, principalmente apartir das últimas quatro, cinco dé-cadas, extremamente dependenteda grande empresa multinacional,particularmente do setor automoti-vo. Continua a ser; tanto isso é ver-dade que, em função de uma ligei-ra retomada do crescimento eco-nômico, a região assiste a uma re-dução do desemprego e a uma li-geira retomada do emprego indus-trial e também nos outros setores.Não dá para rifar o grande capitale a relação com o grande capital.Não dá. Mas se eu pensar em pers-pectiva o que está na minha preo-cupação como prefeito de SantoAndré e como pessoa que está aquidiscutindo com vocês essas ques-tões sobre a relação entre desen-volvimento local e socialismo, nãodá meramente para repetirmos amesma relação que foi estabeleci-da no passado, de grande depen-dência da região em relação ao

Page 102: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

100 PODER LOCAL E SOCIALISMO

grande capital. O que precisamosé trabalhar ao mesmo tempo a cria-ção de um outro tecido econômico,baseado sobretudo no pequeno em-preendimento, na criação de redeshorizontais de relação entre peque-nos empreendimentos que possamfazer com que, em perspectiva, te-nhamos condição de ter no futurouma outra região do grande ABC,não mais tão dependente do gran-de capital, e eventualmente até, nofuturo, sem nenhuma dependência,em função de iniciativas que par-tam exatamente da esfera local.Acho que isso será perfeitamentepossível – mais do que possível,acho necessário –, sem abrirmosmão dos nossos valores, dos nos-sos princípios. Se trabalharmos ima-ginando que não estamos fazendogestões locais apenas para melho-rar a qualidade de vida da popula-ção ou apenas para pragmaticamen-te ter governos bem avaliados doponto de vista da população e daopinião pública.

Se trabalharmos pensando tam-bém nessas coisas, mas, sobretu-

do, pensando que a cada ação queestamos levando a termo estamosou aproveitando uma oportunidade,ou deixando de aproveitar umaoportunidade, para concretizar deverdade princípios transformado-res, de radicalização da democra-cia, princípios socialistas. Dessa for-ma, acho que estamos dando umapequena contribuição dentro desseconjunto de coisas que foram ex-postas aqui pela mesa.

Marina SilvaVou começar pela pergunta do

Valter Pomar, sobre a diferençaentre nossa percepção e a do Ban-co Mundial quanto ao desenvol-vimento sustentável e às questõessociais. Considero que essa é umaquestão de fundo. Primeiro, nóstemos um ideal, um propósito devida associado a todos esses va-lores mencionados aqui. Não que-ro emitir um juízo de valor comrelação aos técnicos do BancoMundial, que são pessoas comonós, que têm um emprego e quevão para a África, para o Brasil,

Page 103: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

101SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

para a Amazônia, se sensibilizame até lutam para que o Banco te-nha políticas sociais. Refiro-meaqui, então, ao Banco como insti-tuição. E a instituição Banco Mun-dial entrou nessa discussão poroutros motivos. Seu objetivo é asustentação, a manutenção do sis-tema. Ela tem medo da ruptura,dessa exclusão global, de mais de2 bilhões de seres humanos viven-do com menos de 2 dólares pordia. No Brasil, essa é a realidadede 78 milhões de pessoas. Vivercom menos de 1 dólar é a reali-dade de 43 milhões de brasileiros.O analfabetismo, no Brasil, atin-ge 15 milhões de jovens.

Quando pensamos nessa situa-ção, o fazemos pelo viés da in-clusão social, pensando no futu-ro. Sebastião Salgado, entrevista-do pela TV Cultura, dizia que en-tre 15% e 20% da humanidadecriou uma fuga para o futuro dei-xando para trás 80%. Esses 20%dos seres humanos sobre o pla-neta, social, cultural, emocional eespiritualmente, construíram a

Era do Saber, que é a que estamosvivenciando. No entanto, os quedetêm a informação, a técnica,não produziram a devida éticapara alavancar os 80% que estãoficando para trás. Se alguma uto-pia há, é lutar por essa inclusão,para que não aconteça aquilo queCristóvam Buarque chama de bi-furcação da raça humana, quan-do teremos seres humanos de pri-meira e de segunda classe – tal-vez isso já esteja acontecendo.

Então, o Banco Mundial, quan-do examina o processo com rela-ção aos problemas sociais e aopróprio desenvolvimento sustentá-vel, ele tem uma visão centraliza-dora, voltada para as empresas. Enós temos uma visão descentra-lizadora, uma visão política queconsidera o processo uma cons-trução coletiva. Nesse ponto, te-mos de ter em mente que nada étão hermeticamente fechado quenão admita contradição. Entendoque, na dialética que Marx nosensinou, não há como criar um sis-tema que não contenha a sua pró-

Page 104: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

102 PODER LOCAL E SOCIALISMO

pria destruição como vetor inter-no. Creio que o Banco Mundialvive essa contradição. Nós tam-bém vivemos. Quando pensamosa inclusão, dentro do sistema a queestamos submetidos, com certezaexiste todo esse processo do sis-tema maior, capitalista, que se mis-tura com os nossos ideais e as nos-sas utopias. Mas estamos em umabriga que, a meu ver, é muito me-nos de estrutura e mais de consciên-cia. Refiro-me a uma afirmaçãode Ladislau Dowbor de que talvezmais importante do que ganhar asestruturas e chegar em Brasíliacom a faixa seja ganhar o cora-ção e as mentes das pessoas paraum projeto que não é só econômi-co, mas também cultural, social, desatisfação, de valores, de propósi-tos – de novos propósitos.

Então, a motivação do BancoMundial é o medo. Participei deum seminário em Washington noqual eles diziam clara e textual-mente que era necessário fazeralguma coisa em relação aos po-bres e à classe média, porque os

pobres não são formadores deopinião, mas a classe média é, eela também está empobrecendo,e isso é um perigo muito grande.Por quê? Se os formadores de opi-nião se juntarem com os que “nãosão, não sabem, não têm”, comodiz dom Mauro Morelli, pode-secriar um problema grave para osistema. O Banco Mundial segueessa perspectiva.

A nossa perspectiva é a de umasociedade sustentável, de acordocom aquela sustentabilidade quemencionei – enfatizo que é umasustentabilidade cultural.

Vivemos hoje a idéia do global,da diluição generalizada, enfim,de tudo que é possível imaginarcom a comunicação em temporeal, graças à qual as índias domeu estado podem ver a garotade Ipanema. Mas a garota deIpanema não vê as índias. Então,uma cultura é diluída e dissemina-da, mas outras culturas não sãorepassadas para que sejam pen-sadas por outros segmentos. É issoque está faltando nessa relação,

Page 105: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

103SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

que não é mais interdisciplinar, mastransdisciplinar, porque “trans”passa todos os sentidos da reali-dade. Enquanto tivermos uma vi-são fragmentária da realidade, tudoirá continuar como está. E creioque as agências multilaterais têmessa perspectiva.

No Acre, há a possibilidade determos disponível um empréstimo,que vai ser discutido pelo Senado,de 250 milhões de dólares. Não seicomo o Banco Interamericano, nes-se caso, está pensando isso essen-cialmente, mas nós pensamos emrealizar o sonho de Chico Mendes:as estradas com estudo de impactoambiental e a demarcação das áreasindígenas – e isso já está aconte-cendo. É uma proposta de desen-volvimento local. É ridículo imagi-nar que podemos destinar milhõesde reais para uma multinacional al-tamente lucrativa e não somos ca-pazes de colocar esse dinheiro nasmãos das comunidades, para refor-ma agrária, agricultura etc.

Ao companheiro que perguntoucomo o mandato de senadora pode

contribuir para a geração de ren-da e empregos no estado do Acre,gostaria de dizer o seguinte: creioque não o mandato diretamente,mas ele juntamente com o gover-no do estado pode fazer algo peladistribuição de renda e pela gera-ção de emprego no Acre. Quandocheguei a Brasília, um quilo deborracha custava 30 centavos, oque gerava uma renda anual de 600reais para uma família de serin-gueiros. O que salva esse serin-gueiro é que ele tem como criargalinhas, porcos, caçar e pescarpara viver. De outro modo ele nãoteria como sobreviver com 600reais por ano, porque os artigosque ele não tem condições de pro-duzir (óleo, sal etc.) custam umafortuna no seringal.

Hoje o seringueiro do Acre rece-be 1 real e 30 centavos por um qui-lo de borracha. Isso significa muitona vida daquelas pessoas. Quandoeu assumi o mandato de senadoraem 1995, havia 1.500 famílias vi-vendo do extrativismo no Acre.Este ano, a projeção é de 6.500 fa-

Page 106: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

104 PODER LOCAL E SOCIALISMO

mílias. Uma lata de castanha, quecustava 1 real e 50 centavos, esteano custa 4 reais. Isso altera signi-ficativamente a renda para essaspessoas. Nos outros governos, elasnão tinham barco para escoar aprodução, escolas, postos de saú-de. Hoje nosso governo, junto comsindicatos, ONGs, associações e co-operativas, está trabalhando comtudo isso.

Animados com esses resultados,ousamos, inclusive, um neologismo:quando pessoas que moram emuma cidade têm acesso a bens,serviços e condições para desen-volver suas potencialidades, nós asconsideramos cidadãos no felizexercício da cidadania. No Acre,chamamos essa cidadania deflorestania, porque, na verdade,somos um povo que mora dentrode uma floresta.

Queremos criar um novo concei-to em relação ao que é qualidadede vida, de seres humanos que vi-vem numa certa harmonia com oseu hábitat. O trabalho como se-nadora representa ter um pouqui-

nho de poder, que permite algumasconquistas. Certo dia fomos aoBanco de Desenvolvimento daAmazônia, o Basa, que financiagrandes projetos para o desenvol-vimento da Amazônia. Ora, os se-ringueiros movimentaram aquelaeconomia durante cem anos, che-gando a representar 40% das ex-portações do país; eram os maispobres, nunca haviam entrado emum banco para conseguir crédito.Entramos no banco – o governa-dor do Acre, Jorge Viana, o re-presentante do governador doAmapá, João Capiberibe, e eu – eficamos das 9 horas até às 16 ho-ras e 30 minutos discutindo umaproposta chamada Prodex, a pri-meira linha de crédito para osextrativistas da Amazônia. Hoje,são milhares e milhares de pes-soas que podem comprar umatarrafa, uma canoa, um motor depopa, qualquer coisa para melho-rar o seu sistema de produção ea sua vida.

Quando estive na Itália, em 1986,me perguntaram que agenda eu

Page 107: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

105SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

queria que preparassem. Respon-di: “Quero falar com a direção daPirelli, porque tenho algumas idéiaspara apresentar a eles”. O padreque estava me ajudando achou umtanto esquisito: “Esse pessoal domato é meio doido”. Fizemos areunião, apresentamos a idéia do“pneu verde”: a Pirelli, multinacio-nal européia, italiana, criaria umalinha de pneus com 100% de bor-racha natural, comprando a maté-ria-prima dos seringueiros da Ama-zônia. Tínhamos por justificativa ofato de que eles nos cobravam pre-servar a Amazônia, mas não fixa-vam um preço para a borracha e acompravam da Malásia. Fiz umaexposição sobre essa idéia, os di-retores da Pirelli me recomendaramconversar com o presidente daPirelli no Brasil. Eu o convidei a irao Acre, ele conversou com os se-ringueiros e há mais de três anos aPirelli compra nossa borracha. Jáestá no mercado o pneu Xapuri, o“pneu verde” feito de borracha100% nacional, e a Pirelli ainda tra-balha no projeto de qualificação e

treinamento para os seringueiros –por enquanto do Acre, embora aidéia seja ampliar esse processo.

Naquela mesma viagem à Itália,fomos a uma reunião com os fa-bricantes de móveis da cidade deComo, que são os melhores domundo – uma peça feita por elescusta não sei quantos mil dólares.Eles montaram um auditório comvários empresários e operários dasfábricas. Foi muito interessante,eles fizeram uma obra de artebelíssima. Era um tronco enorme,todo sapecado, escrito “Salvem aAmazônia”. Eu me senti a própriaqueimadora de floresta. Entrei jáde cabeça baixa, humilhada. Aípensei: “Engraçado, ‘salvem aAmazônia’ para cima de nós, ja-caré? Deixa eu conversar um pou-co com esse povo”. Propus o se-guinte raciocínio: se eles queriamnos ajudar a salvar a Amazônia,então deviam parar de comprar anossa madeira em toras, porqueuma árvore de mogno, lá no serin-gal, custa 20 reais. Uma árvore demogno rende de seis a oito metros

Page 108: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

106 PODER LOCAL E SOCIALISMO

cúbicos de madeira. Cada metrocúbico de madeira chega ao portode Paranaguá a 800 reais e, naEuropa, é transformado em camasbelíssimas; cada metro cúbico dápelo menos oito a dez camas demogno, cada uma a 3 mil dólares.Se essa cama fosse produzida noBrasil, o seringueiro não teria ne-cessidade de derrubar não seiquantas árvores para comprar umquilo de sal, uma lata de leite e al-gumas espoletas para caçar. Elesse sensibilizaram e nos doaramuma fábrica em Xapuri, levarampessoas para serem treinadas nacidade de Como, ainda estão man-dando aposentados para treinarmais pessoas, e nós criamos umpólo moveleiro que está sendoinaugurado não apenas com essafábrica, mas com outras pessoase investidores, inclusive aqui deSão Paulo.

Acho que existem elementosdesse desenvolvimento local quepodemos explorar. Porque o ve-lho modelo se rompe quando aspessoas percebem que é melhor

processar sua própria matéria-pri-ma do que vendê-la a preço debanana para depois comprá-la apreço de ouro. Quando nós com-preendermos o valor de nossabiodiversidade... se o suor do nos-so sapo está rendendo 30 milhõesde dólares para uma empresamultinacional, imaginem quantopode render o nosso próprio suor!

Precisamos aprender a identifi-car os espaços que nos cabem ecriar meios de ocupá-los. Achoque é isso que a nossa experiên-cia local está fazendo, e qualquerprojeto nacional que não conside-re essas experiências locais seráincompleto. Isso não significamitificar tais experiências em de-trimento do conhecimento, da sis-tematização, da contribuição queos pesquisadores e os cientistastêm a oferecer a esse processo.Trata-se apenas de tentar demons-trar que de situações muito sim-ples, às vezes, podem sair respos-tas muito complexas, até porque,com certeza, a simplicidade e aobviedade são o disfarce da sabe-

Page 109: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

107SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

doria. Isso aprendi com os índiose com os seringueiros, que não pa-ram de nos ensinar, inclusive nogoverno do estado do Acre.

Tiro o chapéu para o Rio Gran-de do Sul, nossa referência em or-çamento participativo. Propus aonosso governador, Jorge Viana,fazer o orçamento social. Ele con-cordou. Temos um núcleo duro depobreza com 30 mil famílias quevivem com menos de 1 dólar pordia. Com nosso programa social,nosso orçamento social, pretende-mos atender 18 mil famílias esteano. E queremos chegar até o fi-nal do governo, em 2002, com as30 mil famílias sendo atendidascom bolsa-escola, bolsa-primeiroemprego, bolsa-trabalho, rendamínima, bolsa-primeira infância. Éum programa estrutural, que nãoé assistencialismo, mas transferên-cia de renda associada à educa-ção e a um projeto de desenvolvi-mento que possa realizar, mesmoque de forma apressada, um pe-dacinho dessa utopia que nós con-tinuamos a projetar no futuro.

Miguel RossettoPrimeiro, o tema da Federação.

Nossa experiência tem mostradoque há uma exigência muito gran-de de aprofundar esse debate so-bre a Federação. Penso hoje queesse tema deve ser identificadocomo elemento democratizador doEstado brasileiro, diante da dimen-são e da natureza do Brasil. Vive-mos um processo brutal dedesconstituição da Federação as-sociado a um processo de centra-lização nacional, do ponto de vistafinanceiro e, obviamente, político.Há uma reversão no último perío-do em relação ao movimento daConstituição de 1988, que descen-tralizou recursos e, portanto, foi ummovimento democrático que des-centralizou as estruturas de poder,repartindo ou compartilhando essepoder de uma forma mais equili-brada nas suas obrigações e com-petências. E há um movimento pe-sado de retirada desses poderes,por exemplo, no que se refere àcompetência dos estados quanto àtributação. Tirar, hoje, competên-

Page 110: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

108 PODER LOCAL E SOCIALISMO

cia de tributação, ou o espaço deautonomia de tributação dos esta-dos e transferir para a esfera daUnião, não há dúvida, representauma diminuição brutal de poder po-lítico real dos estados. E, conse-qüentemente, um processo enor-me de centralização de poder po-lítico, com gravíssimas conse-qüências para um país com as di-mensões do nosso.

Então, pensar o tema da Fede-ração como elemento de democra-tização do país, pensar melhoresrelações entre o que chamamos deentes federados – municípios, es-tados, União –, nos abrir para pen-sar como aquilo que tu propões,que alguns espaços já fazem par-te de uma dinâmica política real.Por exemplo a região Sul e a re-gião Nordeste.

Mas é óbvio que há uma grandedistorção institucional na represen-tação nacional. Por exemplo, sóexiste uma razão de ser do Sena-do, que é a competência para li-dar com os temas específicos daFederação, e não como uma câ-

mara revisional do que deveria seruma Assembléia do Povo, que é aCâmara Federal. E nós tambémtemos brutais distorções no quedeveria ser a nossa AssembléiaPopular Nacional, por conta dasdiversas distorções na represen-tação parlamentar.

Penso que cada vez mais deve-mos aprofundar o tema da Federa-ção, compartilhar, constituir opiniõessobre ele. Um tema que o nossopartido tem pautado de uma formapositiva. Creio que a idéia da Fe-deração como fragmentação depoder – fragmentação no sentidode repartição de poder – é um ele-mento democrático importante aser perseguido. Evidentemente, nãose trata aqui de recompor as ve-lhas políticas regionais.

Quanto à questão do grande ca-pital, Valter, já que o próprio Lenindizia em vida que tínhamos de nosrelacionar com o grande capital, ecom o grande capital internacio-nal, falo um pouco inclusive de umarelação não só estratégica ou teó-rica, mas bem concreta, da vida.

Page 111: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

109SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

É evidente que não temos um pro-grama que se organiza para aten-der a interesses do grande capital.Nosso programa estratégico nãose organiza a partir dessa referên-cia, e sim a partir da democratiza-ção de um processo de constitui-ção de riqueza e, portanto, guardarelação com a visão antimonopo-lista da economia. E procuramospotencializar, estimular na relaçãoconcreta, relações privilegiadascom esses setores.

A relação que nós temos, e pen-so que é uma relação estratégicaque dá algum conforto, embora nãoresolva todas as questões, é de na-tureza muito pragmática. Caso acaso, uma equação econômica,tecnológica, ambiental, social.

Quando, por exemplo, não con-cordamos com o padrão Ford,essa discordância não foi media-da pelo elemento ideológico. Emnenhum momento recusamos apresença da empresa Ford no es-tado do Rio Grande do Sul. Rom-pemos com aquilo que entendía-mos ser uma relação rigorosa-

mente prejudicial aos interessesdo Estado.

Mas não há quase preconceitoideológico. Dou alguns exemplosque muitas vezes nos surpreendem,como a questão tecnológica.Estamos, no Rio Grande do Sul, numprocesso de negociação com umaempresa que não é pequena, cha-mada Motorola. E a negociação queestamos produzindo com essa em-presa é um processo de transferên-cia de tecnologia. Estamos consti-tuindo um centro de microeletrônica,de prototipagem de chips etc. coma Motorola. Estamos num proces-so intenso de discussão e negocia-ção. É uma discusão ampla, queenvolve as esferas estadual, muni-cipal e as universidades públicas.Ou seja, é um centro da Motorola,mas um centro em que a empresaassume compromissos e tem seusobjetivos. A Motorola quer formarmão-de-obra porque ela pensa, emalgum momento, em produzir noBrasil e na América do Sul, em ins-talar uma fábrica, e não dispõe demão-de-obra qualificada.

Page 112: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

110 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Então, temos uma equação deconstrução. Obviamente recusa-mos toda relação de transferên-cia de recursos públicos. Quere-mos interromper essa orgia escan-dalosa de transferência de recur-sos públicos para o grande capi-tal, esse processo de transferên-cia direta e indireta, via benefíciofiscal, e buscar uma relação mui-to pragmática, uma equação eco-nômica, fiscal, ambiental e social.

Algo curioso que aconteceu emnosso estado, e vem acontecendo,é que a primeira empresa que sedispôs a submeter o seu planeja-mento estratégico ao povo gaúchofoi uma empresa de telefonia. Essaempresa, a Italian Telecom, com-prou a CRT [Companhia Riogran-dense de Telecomunicações]. Oque eles estão fazendo? Eles sub-metem o seu planejamento estra-tégico, no estado do Rio Grande doSul, às deliberações do orçamentoparticipativo municipal e regional,uma vez que eles têm o compro-misso de atender os municípios comtelefones públicos etc. É um mar-

co de relações interessante do pon-to de vista do controle social e doaprendizado, do lado social datecnologia, dos processos de con-trole tecnológico etc., que me pa-rece o elemento mais importante.

Por fim, acho importante traba-lhar com o conceito que MarinaSilva e Celso Daniel trazem paranós: a meu ver, o tema da preser-vação do território, para nós, deveser compreendido cada vez maiscomo tarefa popular. Essa noçãoserve para o Acre, serve para omunicípio, serve para a região, ser-ve para um estado, serve para umpaís. Ou seja, a tarefa interessa aum povo, a preservação – não sóambiental – do seu território. Aselites cada vez mais enxergam oterritório como um elemento rigo-rosamente de contingência, querdizer, vão embora a qualquer mo-mento etc., e eu acho que é um con-ceito forte que ajuda inclusive acompreender as nossas políticas.

Como trabalhar com essa estra-tégia e recusar a idéia de que háum ambiente econômico rigorosa-

Page 113: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

111SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

mente determinado na sua quali-dade pelo câmbio, pela taxa de ju-ros? Como desprezar – daí a mi-nha idéia de equilíbrio – uma polí-tica econômica nacional e seu im-pacto direto sobre todos, especial-mente as pequenas e microempre-sas, as cooperativas etc.? Comooperar um sistema bancário, nósque dispomos de uma estruturaestatal e governamos dois bancos?Os dois bancos estatais que, naverdade, são governados por umsistema privado determinado peloBanco Central, e que tenta nosimpedir de emprestar, democrati-zar o crédito no volume que que-remos, devido a um rígido enqua-dramento do Banco Central.

Então a idéia é combinar ou com-preender o que são as possibilida-des nas quais devemos apostar ri-gorosamente, extrair a maior qua-lidade possível dos espaços de po-der que conquistamos, sem recu-sar uma grande agenda nacional einternacional que é determinantedessas experiências. Quando men-cionei a experiência da ALCA, a po-

tência de um tratado internacionalcomo vem sendo pretendido, pen-so que adotá-la significa rigorosa-mente abrir de mão de espaços desoberania para um país, para umaregião que é um continente.

Ladislau DowborEm relação ao problema do ne-

gro, na administração da prefeitaLuiza Erundina eu coordenava oConselho Municipal encarregadodessa questão, cuidando de suasrelações com a Prefeitura de SãoPaulo, e tínhamos imensos proble-mas por causa das divisões inter-nas do movimento. Era realmentetrágico, só conseguimos unificá-loporque tivemos um programa bom,que era trazer o Nelson Mandela.Conseguimos trazê-lo aqui e foialgo apoteótico.

Acho que esse tema é de imensaimportância. É fantástico que umpaís que tem 44% da população di-retamente ligada a uma origem afri-cana não conheça nada de África.É trágico que o brasileiro tenha umavisão “tarzânica” da África. Ou

Page 114: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

112 PODER LOCAL E SOCIALISMO

seja, é uma população que não co-nhece suas raízes. Não temos umlivro decente de história das relaçõesBrasil–África. Já propus a várioshistoriadores a criação de pelo me-nos um bom manual para introduziresse tema nas escolas e coisas dogênero. Isso é uma batalha...

E vai ser assim enquanto os pró-prios grupos do movimento não sejuntarem para empurrar essasações. Meu convite continua de pépara montarmos um estudo dessetipo, como tem acontecido nos Es-tados Unidos e em outras partes.Conversei com a Fundação Ford eela está interessada em financiarum projeto desse tipo, mas o es-sencial é conhecer. Vivi sete anosna África, o que me deu uma visãoda riqueza cultural dessas origens...isso é fantástico.

Temos uma grande batalha pelafrente, que é a da comunicação lo-cal. É curioso que o monopólio damídia não figure na linha de frentedas nossas agendas políticas.Achamos que se o governo nãocorta não há censura. É uma imen-

sa bobagem, qualquer jornalistasabe que se fizer uma matéria umpouco delicada politicamente aresposta vem lá de cima: “Caiu apauta”. “Caiu a pauta” é o nomemoderno da tesoura. É censuraprivada, sim. Oito famílias contro-lam a mídia neste país. Não temosestudos sobre estruturas de poderda mídia.

Por que isso se relaciona direta-mente com o negro? Porque o de-senvolvimento das televisões comu-nitárias, das rádios comunitárias,que exigem investimentos extrema-mente pequenos, permite que as di-ferentes comunidades, os diversosmovimentos, tenham voz, possamse articular. Se o movimento negroesperar para “se ver na Globo” vaificar esperando o Carnaval. De-vemos criar a capacidade de co-municação correspondente aos nos-sos objetivos políticos. Acho isso su-mamente importante.

Valter Pomar tem toda razão emenfatizar que o Banco Mundial, asNações Unidas e diversas organi-zações multilaterais compraram

Page 115: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

113SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

radicalmente o discurso da parti-cipação. Olha, tenho tirado trechosde publicações do Banco Mundialque todo mundo pensa que é cita-ção de um documento do PT. Éradical. Outra coisa é dizer queisso é mau.

No Banco Mundial há uma dire-ção política, óbvio, predominante-mente norte-americana. Mas ostécnicos que produzem esses re-latórios vêem com imensa preocu-pação o tipo de ruptura social, queeles chamam de fratura social, queestá se gerando no planeta, por-que simplesmente olham para afrente. São dezenas de milhõesque estão morrendo com Aids, sãoguerras que estão pipocando portodos os lados, a situação é abso-lutamente dramática. Ninguémcontrola a venda de armas no mun-do (48% das exportações de ar-mas são feitas pelos Estados Uni-dos)... Temos de ser realistas esaber utilizar as contradições queexistem nesses sistemas.

Então, ao retomar o ciclo políti-co, não dá para ver tudo como um

tipo de perversidade maligna, diga-mos, do símbolo do mal. Realmen-te há uma preocupação em fazeras coisas funcionarem, eles estãoconstatando que as coisas funcio-nam com sistemas descentralizadosparticipativos, e não só no Canadá,país rico, por exemplo. Veja a pro-víncia de Kerala, na Índia. É im-pressionante, eles têm uma morta-lidade infantil de 17 por 1.000, ametade da mortalidade infantil doBrasil, com uma renda per capitade 300 dólares por ano. Se o Ban-co Mundial acha bom, ótimo.

Quanto ao comentário de PaulSinger, acho que deveríamos pro-por à mesa claramente o seguintetema: vamos pensar a cidade nãocomo segmento, mas como unida-de de acumulação na qual temosde construir a relação cidade–cam-po, e não só fazer a reforma agrá-ria, porque a dominância das deci-sões está nas cidades. Temos depensar as pequenas e médias em-presas articuladas com políticas deemprego, políticas sociais etc. Bastaconsiderar, por exemplo, Belo Ho-

Page 116: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

114 PODER LOCAL E SOCIALISMO

rizonte, onde o programa de com-pra da merenda escolar foi articu-lado com a pequena produção deagricultores no cinturão verde.

Acho que temos a missão de pen-sar um planejamento integrado, lo-cal, e vejo a cidade como uma uni-dade equilibrada de acumulação aser construída a partir da própriapopulação. Essa linha, na qual já de-veríamos estar trabalhando, tem umpotencial gigantesco. Foi feita umapesquisa tempos atrás em Bertioga(SP), e descobriu-se que de cada100 reais que o cidadão de Bertiogadeposita nos bancos locais 92 reaissão aplicados fora da cidade. Emvez de a poupança da populaçãoservir para financiar investimentoslocais, geração de empregos e deriqueza, é investida na ciranda fi-nanceira pelos bancos.

O que se está fazendo commicrocrédito, com crédito solidá-rio etc.? O controle sobre a pró-pria poupança está sendo recupe-rado pela população. Este é umgrande eixo de batalha. Estou can-sado de ter minha conta num gran-

de banco privado, pagando taxasinimagináveis, que eu não enten-do. É claro que se amanhã houvera possibilidade de eu colocar essapoupança num sistema alternativovou fazê-lo, e há espaço para isso.E essa situação não é específicade países pobres, Bangladesh etc.Também acontece na França, aspessoas estão cansadas. Isso meleva a outra dimensão: há umaimensa diferença qualitativa entrea pequena e a média empresas ea grande empresa. Para nós, sãotodas capitalistas. Não são. A gran-de empresa é uma estrutura políti-co-cultural de dominação mundial.Afinal, quem sustenta a mídia nomundo? Os gastos anuais são de435 bilhões de dólares.

Há o exemplo da revista Esquire,que publicou uma pesquisa sobresexualidade americana que não foimuito generosa para com o poten-cial norte-americano – dos homens,pelo menos. Foram questionadospelas empresas de publicidade eresponderam: “Vocês fazem publi-cidade, linha editorial é conosco...”.

Page 117: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

115SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Visão americana, liberdade de im-prensa. Chegaram a um acordo, arevista tem a liberdade de publicaro que quer e as empresas de publi-cidade têm a liberdade de anunciaronde querem. Essa é a liberdadede imprensa.

Creio que as grandes multina-cionais, o grupo de 500 ou 600transnacionais que são as gran-des galáxias de poder, merecemum estudo particular de nossaparte, porque elas estão se arti-culando como poder político. Umpresidente da Coca-Cola declarouque elas constituem os novosarticuladores mundiais e ponto.Elas, as empresas transnacionais.E é completamente diferente aforma como são socializados ounão os meios de produção da ofi-cina da esquina, da padaria, dapequena e média empresa emgeral. Houve uma ruptura, a meuver, em dois universos nesse pro-cesso, e temos de trabalhar demaneira diferenciada.

Vou falar rapidamente sobre aALCA. Considero que a ALCA, para

nós, é perniciosa. A União Euro-péia criou sua moeda, houve váriastentativas para desestabilizá-la, masexiste hoje o euro, pela primeira vezum contrapeso ao dólar. Existe tam-bém uma fortíssima progressão daChina, uma rearticulação asiática.Os Estados Unidos diante dissoquerem assegurar um quintal.

Para nós, é óbvio que o que inte-ressa, quando há economias ou blo-cos muito mais fortes do que nós, ésorrir um pouco para um, um pou-co para outro e manter nessaeqüidistância um mínimo de equilí-brio, porque é o único meio de ne-gociação que temos. Entrar naALCA e virar um quintal norte-ame-ricano é perder toda capacidade denegociação do nosso espaço.

Foi mencionada aqui a atrofia daesfera pública. Gostaria de lem-brar o seguinte: o último relatóriodo Banco Mundial traz bons da-dos. Segundo o relatório de 1997,nos países desenvolvidos o Esta-do gera em média 50% do PIB, enos países subdesenvolvidos, 25%.Além de termos um PIB proporcio-

Page 118: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

116 PODER LOCAL E SOCIALISMO

nalmente menor, nossos Estadosadministram partes menores do PIB

do que os Estados de países de-senvolvidos. Nós temos Estadosmuito pequenos.

Além disso, em nenhum lugar oEstado está diminuindo, não dimi-nuiu durante as administrações deMargaret Thatcher, na Inglater-ra, e nem de Ronald Reagan, nosEstados Unidos. O Estado norte-americano não diminuiu com o pri-meiro Bush e não vai diminuircom o segundo simplesmente por-que na sociedade o consumo pú-blico está aumentando. O anti-Es-tado vende bem. A revista TheEconomist fez recentemente umcomentário simpático, dizendo queas críticas ao governo vão muitobem, e o Estado também vai mui-to bem, obrigado.

Essa idéia de que no socialismoseremos todos iguais é um equí-voco. Eu espero que sejamos me-nos desiguais. Para sermos com-pletamente iguais, teríamos de ter

tais níveis de controle que é me-lhor evitar.

Mas há um ponto interessante:nenhuma pessoa precisa, individual-mente, de uma fortuna de mais de50 milhões de dólares. Se cortásse-mos esse tipo de fortuna, cortaría-mos a base do poder político, por-que aí já não se trata mais de capa-cidade de consumo, mas de capaci-dade de manipulação política da so-ciedade. Quer dizer, tanto a extre-ma riqueza como a extrema pobre-za são patológicas para qualquer so-ciedade. E é perfeitamente viávelsugerirmos propostas para uma epara a outra, tanto uma renda míni-ma como uma renda máxima. Afortuna pessoal do Bill Gates estáatingindo o nível do PIB da Inglater-ra. Isso é patológico. Uma publica-ção das Nações Unidas, comentan-do a situação de cerca de 400 pes-soas que têm uma riqueza pessoalmaior do que a renda da metademais pobre da população mundial,diz que esta situação é obscena.

Page 119: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

117SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Sobre os autores

CELSO DANIEL nasceu em Santo André em 1951. Era engenheiro civil, mestreem administração e doutorando em ciência política e cumpria seu terceiro manda-to como prefeito de Santo André (1989–1992, 1997–2000, 2001–2004). Durante operíodo de 1994 a 1996 exerceu mandato de deputado federal, atuando na Comis-são de Reforma Tributária e Fiscal. Era o coordenador-geral do Programa de Go-verno do Partido dos Trabalhadores para a Presidência da República.

Foi professor de administração pública na Fundação Getulio Vargas, e de eco-nomia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Teve papel ativo nafundação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Billings(1990), da Câmara Regional do Grande ABC (1997) e da Agência de Desenvolvi-mento Econômico do ABC (1998), no qual cumpria a função de diretor-geral.

Recebeu, como prefeito de Santo André, as seguintes premiações: “PrefeitoCriança” da Fundação Abrinq pelo trabalho Andrezinho Cidadão em 1999(finalista); pela Fundação Getulio Vargas/Fundação Ford os prêmios Gestão Pú-blica e Cidadania, em 1999, pelo Programa de Modernização Administrativa, e em2000 pelo Programa Integrado de Inclusão Social (destaque) e pelo trabalho deColeta Seletiva (finalista).

Foi assassinado em janeiro de 2002, em São Paulo.

MARINA SILVA nasceu em Seringal Bagaço em 1958. É historiadora e senadorado Acre pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Foi secretária nacional de Meio

Page 120: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

118 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Ambiente e Desenvolvimento do PT (1995-1997), membro titular da Comissão deAssuntos Sociais e da Comissão de Educação do Senado Federal, membro doCentro de Trabalhadores da Amazônia (CTA) e vice-coordenadora da Central Únicados Trabalhadores (CUT) no Acre (1984-1986), a qual fundou juntamente comChico Mendes. É co-autora e co-organizadora do livro O desafio dasustentabilidade – Um debate socioambiental no Brasil, publicado pela EditoraFundação Perseu Abramo em 2001.

MIGUEL ROSSETTO nasceu em São Leopoldo (RS) em 1960. É técnico emmecânica e cientista social. Iniciou sua militância política no final da década de1970 na organização da oposição ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Leopoldo,concorrendo como primeiro candidato a presidente numa chapa de oposição.Participou do movimento de fundação do Partido dos Trabalhadores desde 1979 eintegrou a primeira executiva nacional do partido. Foi presidente do Sindicato dosTrabalhadores nas Indústrias do Pólo Petroquímico por duas gestões, entre 1986e 1992. Foi secretário de Formação Política e secretário de Política Sindical daCentral Única dos Trabalhadores (CUT) de 1992 a 1994. Elegeu-se deputado federalem 1996 e vice-governador do Rio Grande do Sul em 1998.

LADISLAU DOWBOR nasceu na França em 1941 e vive no Brasil desde 1951. Éformado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suíça e doutor emciências econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia,Polônia (1976). Foi consultor do Secretário Geral da ONU na área de Assuntos Políti-cos Especiais (1980-81). Dirigiu vários projetos de organização de sistemas de ges-tão econômica, na qualidade de assessor técnico principal das Nações Unidas. Noperíodo 1989-92 foi secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de SãoPaulo, respondendo em particular pelas áreas de meio ambiente e de relações inter-nacionais. Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação daPontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Metodista de SãoPaulo. É autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais A Reprodução Social,estudo de sistemas de gestão descentralizada; O Mosaico Partido: a economiaalém das equações; Tecnologias do conhecimento: os desafios daeducação, pela editora Vozes. Textos disponíveis na home-page http://ppbr.com/ld.

Page 121: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

119SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

26 de março – Perspectivas que a vitória das es-querdas nas eleições municipais de 2000 abre à cons-trução do socialismo.

Expositor: Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente deHonra do PT)

Comentadores: Marta Suplicy (prefeita de São Pau-lo), Raul Pont (ex-prefeito de Porto Alegre) e LuizDulci (presidente da Fundação Perseu Abramo)

9 de abril – Perspectivas que o desenvolvimentolocal e a distribuição de renda abrem à construção dosocialismo.

Expositor: Celso Daniel – prefeito de Santo AndréComentadores: Ladislau Dowbor (professor da PUC-

SP), Marina da Silva (senadora pelo Acre) e MiguelRossetto (vice-governador do Rio Grande do Sul)

23 de abril – O orçamento participativo como um dospressupostos políticos da construção do socialismo.

Expositor: Olívio Dutra – governador do Rio Gran-de do Sul

Comentadora: Maria Victoria Benevides (professorada USP e da Escola de Governo)

7 de maio – Papel dos sindicatos e cooperativasante as mudanças nas classes sociais e suas lutas, naperspectiva do socialismo.

Expositor: Fernando Haddad – professor da USPComentadores: Gilmar Mauro (dirigente nacional do

MST), João Felício (presidente nacional da CUT) eRicardo Antunes (professor da Unicamp)

21 de maio – A luta pela terra e a organização dosassentamentos como contribuição para a construçãodo socialismo.

Expositor: Plínio de Arruda Sampaio – ex-deputadofederal e consultor da ONU

Comentador: José Graziano da Silva (professor daUnicamp)

4 de junho – Perspectivas que a revolução microele-trônica e a internet abrem à luta pelo socialismo.

Expositor: Laymert Garcia – professor da UnicampComentadores: Bernardo Kucinski (professor da

USP), Maria Rita Kehl (psicanalista) e Walter Pinheiro(líder do PT na Câmara dos Deputados)

18 de junho – Alternativa socialista ante a globali-zação financeira.

Expositor: Reinaldo Gonçalves – professor da UFRJComentadores: João Sayad (secretário de Finan-

ças de São Paulo), Ronald Rocha (dirigente nacionaldo PT) e Tânia Bacelar (secretária de Planejamentode Recife)

Programa do segundo ciclo de semináriosSocialismo e Democracia realizado no primeiro semestre de 2001

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

Page 122: PODER E SOCIALISMO - csbh.fpabramo.org.brcsbh.fpabramo.org.br/uploads/Poder_local_e_socialismo.pdf · E SOCIALISMO Socialismo em discussão EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Dados

120 PODER LOCAL E SOCIALISMO

Leia também da coleção

Orçamento participativo e socialismoOlívio Dutra e Maria Victoria Benevides

Globalização e socialismoMaria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoFrancisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino

Economia socialistaPaul Singer e João Machado

O indivíduo no socialismoLeandro Konder e Frei Betto

Instituições políticas no socialismoTarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu

Socialismo em discussão