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2.ª edição 2009 Linguagem e Pensamento Claudia Rosa Riolfi

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2.ª edição2009

Linguagem e Pensamento

Claudia Rosa Riolfi

© 2006-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

R585L Riolfi, Claudia Rosa. / Linguagem e Pensamento. / Claudia Rosa Riolfi. 2. ed — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.

168 p.

ISBN: 978-85-387-0225-2

1. Linguagem escrita. 2. Alfabetização. 3. Formação de professores. 4. Escrita - Ensino. I. Título.

CDD 372.634

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

Psicanalista. Doutora em Linguística pela Unicamp. Mestre em Linguística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portu-guesa, Linguística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

Claudia Rosa Riolfi

Sumário

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento ................................... 11

Pensar não é tão simples como parece ............................................................................. 12

O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos ............. 16

O imprevisível animal humano ........................................... 25

Os animais não se organizam do mesmo modo ............................................................ 25

É conversando que a gente não se entende... ................................................................ 27

Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é .............................. 29

O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor ......................................... 31

Concepção do homem como ser de linguagem .......... 39

A linguagem é o que dá o nosso contorno ...................................................................... 40

Alguns traços da linguagem humana ................................................................................ 42

A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste .......................................................... 43

Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano .............................................. 53

A capacidade para a reflexão linguística se ganha na cultura .................................. 55

A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer ....................................... 57

A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano .........................................................67

Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais ............................... 67

Introduzindo o pensamento de Vygotsky ........................................................................ 69

A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano .............................. 71

Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem ........ 79

No início, era o corpo... ............................................................................................................ 79

O conceito de pensamento verbal em Vygotsky ............................................................. 81

A dupla função organizadora da palavra.......................................................................... 83

O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança .................................................... 93

A linguagem torna o homem mais complexo ................................................................ 94

O conceito de internalização e sua relevância para refletir o ato educativo ........ 96

A zona de desenvolvimento proximal e sua aplicabilidade para refletir sobre a educação ...................................................... 98

A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança ........................................109

O papel da escola no desenvolvimento intelectual ...................................................110

Construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano ................................................................112

Construindo uma relação pedagógica na qual seja possível explorar os conteúdos .................................................................116

O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje ..123

A invenção da escrita .............................................................................................................123

A mutação das funções sociais da escrita ......................................................................124

O papel do professor no processo de aprender a escrever......................................127

Auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético exige saber o que estamos fazendo ............................................................128

Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos ...................139

O pensamento sobre a alfabetização no Brasil ............................................................139

A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa ................................................141

A aula de escrita gerando desenvolvimento subjetivo para o professor e seu aluno ............................................................................144

Gabarito .....................................................................................153

Referências ................................................................................161

Apresentação

Prezado alunoO material que agora lhe chega em mãos é um desdobramento de quase

20 anos de meu trabalho de pesquisa sobre a escrita. Por meio dele, tenho ten-tado circunscrever uma questão que me intriga desde que sou muito pequena: por que em nossos dias não surge um pensador revolucionário que formule uma ideia que altere tudo o que hoje sabemos sobre o mundo?

Onde estão hoje os gênios de outrora, aqueles intrépidos pensadores que, ao longo da história da humanidade, “suaram sua camisa”, muitas vezes prejudi-caram sua saúde, foram perseguidos por aqueles que questionavam suas “ideias exóticas” e, no final, ofereceram o inestimável presente de um novo modo de pensar sobre o mundo?

Onde estão, agora, os novos pensadores que se tornarão conhecidos mun-dialmente, terão seus nomes registrados nas enciclopédias – enfim, alterarão o estado atual do conhecimento humano? Eu quero muito saber isso e, por esse motivo, aceitei o convite para preparar este curso para você. Quem sabe você não se encanta com essa linha de reflexão e, assim, eu terei uma companhia agradável para continuar o meu trabalho investigativo?

Você deve estar entendendo que meu interesse sobre o tema pensamento e linguagem não consiste em uma questão abstrata, muito pelo contrário. Se um dia desejei estudar esse assunto foi porque conclui que conhecê-lo me ajudaria a refletir sobre o advento de uma passagem que vem se tornando cada vez mais rara: o momento em que um sujeito abandona sua dificuldade para escrever e se autoriza a pensar com a sua própria cabeça e, posteriormente, a tornar públicos os resultados de sua reflexão.

Ao pensar sobre essa dificuldade, muito se fala que o jovem de hoje não tem muita coisa para dizer, mas pouco se diz que seu silenciamento foi causado por ruídos que ele não produziu... Diante dessa ironia, convoco você, meu colega professor, a assumir comigo a responsabilidade de se indagar a respeito de que respostas a nossa geração de adultos poderá deixar para as crianças que – muitas vezes tendo perdido a esperança de construir para si um futuro melhor – se inter-rogam sobre o sentido de ler e escrever na escola.

Tentei tornar o seu caminho o menos árduo possível e, para isso, tive que trabalhar muito. Espero que, honrando o meu esforço, você se engaje no percurso que ora se inicia e que goste do trabalho.

Claudia Rosa Riolfi

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

O objetivo deste capítulo é convidar o leitor a se interessar por um tema que, hoje em dia, tem mais relevância social do que nunca: as conse-quências éticas da compreensão da necessidade de nós, professores, in-sistirmos vigorosamente em nos mantermos no exercício do pensamento criativo e no desafio que é a mediação da linguagem nas trocas com nossos semelhantes.

É claro para todos que um ser humano não so-brevive muito tempo se for privado de água e de alimento. Recentemente, tem se tornado evidente que, para além dessas necessidades classicamente reconhecidas como sendo as básicas, dificilmente qualquer um de nós teria sobrevivido aos primei-ros anos da infância sem receber ao menos um pouquinho de amor da-queles que cuidaram de nós. Mesmo agora, quando somos adultos, você pode imaginar quanto tempo aguentaria, por exemplo, sem ouvir a voz de seus familiares, sem poder contar como você está se sentindo para alguém em quem confia – em suma, sem falar e sem ouvir palavras?

A observação de pessoas que passaram por longo período de isolamento, como por exemplo doentes graves ou prisioneiros, não deixa dúvidas: o pobre infeliz que está privado de trocas verbais com outros humanos logo perde o interesse em manter os cuidados de higiene e de aparência pessoal, “esque-ce” de comer nas horas costumeiras, desenvolve distúrbios do sono, perde a noção do tempo. Resumindo, tem toda sua vida mental desorganizada.

Por que isso acontece? Porque não poder falar é uma das maiores agres-sões que podem ser imputadas ao ser humano, uma vez que o leva a agir contra a sua natureza, a de ser um “ser de linguagem”. Compreender esse traço de nossa essência, ou seja, a extensão do poder que a linguagem tem sobre nós, é de suma importância para refletir sobre a construção e a manutenção de nossa cultura em geral e, muito particularmente, tem toda relevância para refletir sobre os sucessos e os impasses da educação dos alunos que nos foram confiados.

Você já imaginou como seria sua vida se fosse impedido de verbalizar seus gostos e opiniões?

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Linguagem e Pensamento

No que se segue, consequentemente, optamos por trazer alguns elementos que permitem introduzir a reflexão sobre o pensamento humano desde uma óptica que dá prioridade à linguagem, compreendida como sistema de articula-ção de signos verbais exclusivo do homem. Antes de começarmos, é importan-te esclarecer, entretanto, que as relações entre pensamento e linguagem vêm sendo, há muito tempo, alvo de polêmica entre os mais diversos estudiosos. São várias as áreas que se dedicam a elucidar essa questão, em especial, mas não exclusivamente, a medicina, a biologia, a psicologia e a linguística, sem que, en-tretanto, tenha sido possível alcançar um consenso total na forma de conceber como linguagem e pensamento se articulam para o humano. Por esse motivo, como em tudo na vida, senhor leitor, não existe apenas um lugar onde o sol brilha, sendo necessário “escolher a nossa praia!”. Vamos conhecer uma delas.

Pensar não é tão simples como pareceDesde que o mundo é mundo, os homens têm se interessado por esclare-

cer as obscuras origens de seus pensamentos. Sempre houve alguém interes-sado em dizer de onde tinha se originado uma ideia qualquer ocorrida a outro alguém, nem que fosse para lhe imputar uma origem mística, mais comumente demonológica. Embora há muito tempo tenhamos superado a chamada “época das trevas”, com certeza o leitor já teve oportunidade de testemunhar, frente a um pensamento mais estranho, a acusação de outro menos esclarecido que, piamente declara: “Isso deve ser coisa do capeta!”.

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Deixando de lado as crenças religiosas, essa modalidade de olhar o mundo é interessante porque exemplifica um tipo de raciocínio que acredita na corres-pondência direta e imediata entre uma causa e sua consequência – no caso, a

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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sugestão feita pelo diabinho como causa e o surgimento do “pensamento” na cabeça de um sujeito como consequência.

Ou seja, aquele que pensa desse modo acredita que nós temos um cérebro apenas para servir como uma espécie de quadro-negro onde escrevemos, como se fossem nossas, as ideias que recebemos dos outros, sem qualquer mediação de uma reflexão mais elaborada. Você acredita mesmo que somos assim tão idiotas? Com certeza não!

Esse modo de ver as coisas, além de depreciativo com relação às nossas quali-dades e potencialidades, tem consequências nefastas para a nossa vida em socie-dade. Se for legítimo crer que para todo efeito manifesto no mundo será possível encontrar uma causa lógica, acabaremos por funcionar na crença que foi aquela dos nossos antepassados macacos, segundo a qual uma reação “natural” de um sujeito que tivesse acabado de levar um empurrão seria, nada mais nada menos, do que uma bofetada... Não seria muito difícil imaginar até que ponto de destrui-ção a sociedade humana teria ido se todos nós tivéssemos mantido o modo de ver as coisas de nossos primitivos antepassados. Com certeza, sequer estaríamos aqui para estudar e contar a história de nossa vida de homens e de mulheres.

Por esse motivo, antes de avançarmos nesta reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem, é importante fazer a crítica de todos os resquícios desse modo de pensar que, para além do senso comum, ainda permanece em nossa cultura, disfarçado de ciência.

A ciência que ignorou a importância da linguagemVisando, portanto, construir uma noção de pensamento mais adequada para

ser mobilizada no interior da escola, vamos recuperar alguns dos traços de uma das escolas da psicologia que se inscreveu dentre aquelas que não davam a devida relevância ao papel da linguagem na manutenção da nossa organização social: o behaviorismo e as linhas que dele se originaram.

Quando nos referimos a essa corrente do pensamento, provavelmente o primeiro nome de autor que nos ocorre é o de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990).1 De fato, esse psi-cólogo americano se tornou o mais famoso representante do

1 Dentre inúmeros sites que contêm dados sobre a bibliografia de Skinner, pela concisão e objetividade, destaca-se o seguinte endereço, do qual retiramos alguns dados a respeito da vida do autor: <www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.html>.

Você conhece as principais

ideias do behaviorismo?

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Linguagem e Pensamento

behaviorismo, uma vez que, ao longo de sua vida, empenhou-se grandemente em fazer publicidade de suas próprias ideias, na sua maioria oriundas de suas pesquisas com os animais, realizadas, por sua vez, nos moldes daquelas desen-volvidas pelo fisiólogo russo que, em 1906, publicou achados experimentais sobre o reflexo condicionado: Ivan Petrovisch Pavlov (1849-1936).

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A principal descoberta do russo ficou conhecida como condicionamento pa-vloviano, modalidade de manifestação comportamental que ele percebeu por meio de estudos que realizava sobre a atividade digestiva de cães. Com experi-mentação sistemática, ele acabou percebendo que apenas o som de seus passos no laboratório, após sucessivos pareamentos com um bolo de carne que sempre era apresentado aos seus animais, dava origem à resposta de salivação dos cães, que associavam o som com o gosto da carne.

Dentro dessa tradição de pesquisa empirista e coerente com sua postura pes-soal de materialista e ateu, Skinner acreditava que, a exemplo do que Pavlov havia demonstrado acontecer com os animais, todos os comportamentos humanos são moldados pela nossa experiência de punição e recompensa e não por instâncias mais “subjetivas”, tais como a moral, a força da vontade e assim por diante. Conse-quentemente, Skinner costumava afirmar que o homem bom só faz o bem porque o bem é recompensado, e não porque, dados alguns traços de seu caráter, ele teria, ao menos, um relativo livre-arbítrio para agir deste ou daquele modo.

A elaboração de Skinner, no que se refere à linguagem, é bastante coerente com os demais aspectos de sua teoria (SKINNER, 1957), ou seja, ele reduz a lingua-gem a mais um dos comportamentos que podem ser controlados. Ao longo de sua realização, o autor elaborou o conceito de condicionamento operante, ligeira-mente diferente da noção de condicionamento (uma junção simples de estímulo e resposta) que vinha sendo desenvolvida nas formas anteriores de behaviorismo.

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Nessa nova elaboração, acrescenta-se a consideração da possibilidade de o orga-nismo emitir respostas, em vez de só obtê-las a partir de um estímulo externo.

Ressalte-se, portanto, que o autor tentou explicar o aprendizado e a lingua-gem verbais dentro do paradigma do condicionamento operante, isto é, de novo sem mobilizar a categoria do pensamento como uma instância elaborada que pode mediar, por meio da linguagem, as relações entre o homem e o mundo.

Como o behaviorismo é traduzido na educação?Na educação, o behaviorismo deu origem a uma abordagem aplicada com o

intuito de se obter um determinado comportamento previamente escolhido. Para tal fim, costuma-se dar muita ênfase à utilização de condicionantes e reforçadores arbitrários, como elogios, graus, notas, prêmios, reconhecimento do mestre e dos colegas etc. Para quem acredita nessa orientação teórica, que parte do princípio de uma aprendizagem mecânica, com repetições sistemáticas do tipo estímulo--resposta automáticas, o ensino consiste em um arranjo e um planejamento de condições externas que levam os estudantes a aprender, sendo de responsabili-dade do professor unicamente assegurar a aquisição do comportamento.

Ressalte-se que essa maneira de conceber o ser humano como se fosse total-mente passível de ser controlado pelos estímulos recebidos do meio impeliu o autor a chegar ao absurdo de conceber uma comunidade utópica – criada e de-senvolvida de acordo com os princípios behavioristas – em que, se assim pode-mos dizer, o homem estaria livre do desconforto de ser possuidor da faculdade do pensamento, uma vez que todos os seus atos seriam geridos por terceiros. Um exemplo do que vem sendo chamado de “sociedade de controle” está descri-to na obra de ficção Walden II (SKINNER, 1977).

Nesses seus devaneios, Skinner imaginou uma cultura que poderia ser inteiramente controlada por meio de um dispositivo extremamente simples: a re-compensa automática dos bons e a eliminação au-tomática dos maus. Uma olhada mais ingênua naquela sociedade poderia até nos levar a concluir que a eliminação dos maus poderia ser uma boa ideia, mas, dada a complexidade do ser humano, em face dessa idealização tentadora, resta saber como o governante do local faria para evitar os riscos inerentes à tentativa de tornar o mundo à sua imagem e semelhança. Ou seja, o que o protegeria de decretar, talvez mesmo sem o saber, que todos aqueles que são diferentes de si

É possível pensar numa sociedade totalitária e

controladora?

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Linguagem e Pensamento

são “maus”? Como ele faria para ter certeza de uma certa neutralidade e isenção para formar os parâmetros adotados para diferenciar o bem do mal?

Uma olhada mais objetiva na história da humanidade logo nos mostra para onde caminhamos todas as vezes que um poder totalitário foi implementado: para uma pasteurização da linguagem em uso e para um embotamento do pensamen-to. E antes que você, prezado leitor, pense que estamos nos desviando aqui de nosso assunto principal para discutir política, é importante ressaltar que o assunto que se segue só nos interessa à medida que nos oferece uma interessante abertu-ra para refletir sobre a linguagem humana e suas relações com o pensamento.

O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos

É visando encontrar um caminho alternativo para introduzir as complexas e estreitas relações entre linguagem e pensamento que vamos recorrer a uma bri-lhante obra de ficção, escrita por Eric Arthur Blair, publicada pela primeira vez em 1949, sob o pseudônimo de George Orwell (2004): o livro 1984.

Sabe-se que essa novela foi inspirada na opressão dos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, mas não se resume a uma crítica contra o stalinismo e o nazismo. Ao contrário, trata-se de uma metáfora atualíssima que nos alerta contra os perigos da pasteurização da sociedade pela redução do indivíduo em peça para servir ao Estado ou ao mercado por meio do controle total, incluindo o pensamento.

Narrado em terceira pessoa, a obra-prima conta a história de Winston Smith, um tipo de jornalista ou historiador que, funcionário do Ministério da Verdade, exerce a função de reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Por sua vez, esse órgão onipotente e onipresente exercia feroz vigilância sobre os modos de pensar de cada cidadão, já que seu controle total se dava, justamente, pelas di-versas técnicas utilizadas para abolir o livre pensar, nomeado como crimideia.

Antes de prosseguir com a recuperação de alguns fragmentos do texto de Orwell, é importante frisar que não é a narrativa em si aquilo que nos interessa, mas a possibilidade de, a partir dessa impressionante metáfora, compreender que o pensamento humano não é um processo isolado e independente das contingências histórico-culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa medida, determinam-no.

O pensamento de um homem é independente do

tempo no qual ele vive?

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Neste ponto, uma interessante questão se coloca para nós. Se, em certa medida, é verdade que “cada cabeça é uma sentença”, dito popular que aponta para uma relativa impossibilidade de mandar nos modos de pensar de alguém, como seria possível controlar o pensamento humano?

Com relação a essa questão, a obra de Orwell nos oferece um importante subsídio para reflexão. No fictício ano de 1984, para além da vigia concreta da população por meio das câmeras de vídeo e dos microfones ocultos, do desen-corajamento às atividades solitárias, da tortura física e da pura e simples elimi-nação dos membros dissonantes, o ficcionista nos mostra que, na sociedade de controle que ele vinha denunciando, o principal instrumento de controle e de manipulação do homem era a alteração artificial de sua linguagem.

Para nos mostrar isso, o autor cria uma imagem de cientista de aluguel, uma espécie de linguista contratado pelo onipotente Partido Ingsok para, juntamen-te com outros colegas, inventar uma língua artificial para substituir a natural: a novilíngua. No contexto da novela, trata-se de um idioma fictício desenvolvido não pela criação de novas palavras, como aparenta ser o caso dos tempos con-temporâneos nos quais, todos os dias, surgem palavras novas na mídia, mas pela condensação e a remoção delas. A ideia que guiava os “intelectuais” do partido era a de que, uma vez que as pessoas não pudessem concretamente se referir a algo, já que é bastante difícil remeter-se a um objeto cujo nome ignoramos, aquele algo passaria a não existir.

Antes de prosseguir, saboreemos ao menos um fragmento entrecortado da fala do linguista, criado por Orwell, em um diálogo com o personagem principal, que se interessou por conhecer maiores detalhes sobre o seu trabalho:

Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2050. [...] É lindo destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificativa existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário da outra? Cada palavra contém em si o contrário. [...] Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano? [...] Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já na Décima Primeira Edição, não estaremos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama de consciência sempre uma pausa menor. [...] Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão”, se for abolido o conceito de liberdade? Todo mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência. (ORWELL, 2004, p. 54-55, grifos do autor)

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Linguagem e Pensamento

Lendo o extrato, podemos claramente perceber que a tese de Orwell é a de que, por meio do controle sobre a linguagem, um governo totalitário seria capaz de impedir que ideias indesejáveis viessem a ocorrer

aos cidadãos, uma vez que, completamente anestesiados pela ordem dominan-te, restaria aos cidadãos apenas uma imitação de “pensamento”.

Para nós, são especialmente preciosas as três últimas linhas do extrato que você acabou de ler, pois elas contêm uma ideia que nos é bastante cara: a de que, em sua dimensão crítica e criativa, o pensamento humano é fruto dos efei-tos da linguagem sobre um sujeito, efeitos esses que o criam. Por esse motivo, se, nos dias de hoje, desejamos viver em um mundo diferente do horror retrata-do por Orwell, compreendê-los adquire uma urgência ímpar.

Na atualidade, as teses behavioristas ganharam nova releitura: as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) que, nos últimos 15 anos, disseminaram-se e consolidaram-se, tanto na medicina quanto na educação. As TCC consistem em técnicas que, sob a luz da psicologia cognitivista, revisitam os estudos compor-tamentalistas emprestando-lhes uma roupagem atual e dando-lhes um caráter de prática “cientificamente comprovada”.2

As TCC visam incidir sobre o modo como o homem se comporta alterando--lhe os aspectos cognitivos. Os praticantes das diversas modalidades dessa te-rapia tomam um determinado homem e, em primeiro lugar, identificam o que julgam ser as formas distorcidas e não realistas de pensar para, depois, ajudar o indivíduo a interromper comportamentos qualificados como alterados e a subs-tituí-los por comportamentos que o terapeuta julga serem mais saudáveis.

Funcionando com a premissa da existência de um parâmetro “adequado” para nortear o comportamento humano, as TCC se propõem a livrar os cidadãos das dificuldades inerentes ao ato de decidir de acordo com o seu próprio desejo. Para tal fim, ensinam àqueles que tratam “o modo correto” de pensar e de agir, isto é, “livram” a população do livre-arbítrio.

Por acaso, esse modo de agir faz você lembrar do Partido do livro de Orwell? Se estivermos nos entendendo, provavelmente você notou que, reduzindo o ser humano ao estatuto de um cérebro reprogramável, os idealizadores das TCC acabam por incidir em uma tentativa de controle do pensamento, do que quere-mos nos afastar completamente.

2 Não deixa de ser curioso notar que, em sua origem, o cognitivo e o comportamental se inscreviam, quanto a sua fundamentação, em concepções teóricas opostas, tendo origens, tradições, precursores e problemáticas totalmente diferentes. Se para um comportamentalista “histórico” o que interessa são os inputs (entradas) e os outputs (saídas), interesse esse que o leva a abstrair a “mente”, para um cognitivista “histórico” o que interessa são os processamentos, o modo de funcionar da “mente” em si. Ou seja: a aliança entre as duas correntes implicou, pelo menos quanto à psicologia cognitiva, um empobrecimento teórico brutal.

Estamos longe da ficção na sociedade

contemporânea?

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Por esse motivo, é importante frisar que, atualmente, a conduta profissional ins-pirada nas TCC consiste em um fenômeno mundial que se expressa, de maneira maciça e extravagante, na formação médica e psicológica, nas revistas científicas, nos hospitais, na terapia oferecida na rede pública e nos consultórios privados e, o que mais nos interessa, nas universidades e, paulatinamente, na educação básica.3

Antes que o leitor se deixe contaminar por um certo tom cinzento presente nessa denúncia do que vem ocorrendo na sociedade contemporânea no que se refere ao controle do pensamento, é importante salientar que não estamos assistindo passivamente aos acontecimentos.

Com o advir do século XXI, no momento mesmo em que essa conduta ganha-va hegemonia, iniciou-se na França um grande movimento de denúncia contra as TCC (tendo adesão, inclusive, do ministro francês Blazy e, posteriormente, disseminando-se entre os clínicos franceses) que, recentemente, recebeu adesão de muitos intelectuais brasileiros.

Trata-se de um grupo de pessoas que, embora adotando diversas perspectivas para refletir sobre as relações entre linguagem e pensamento, não concordam com a existência de quaisquer técnicas ou abor-dagens que levem alguém a uma coerção mental. Esses pensadores têm em comum a ideia de que, na tentativa de dominar o pensamento, há em jogo um sério problema ético cujos resultados são dramáticos: a exclusão do sujeito da sua cultura.

Não é de se estranhar que, quanto mais se tenta domesticar o real, padronizar as condutas e cientificizar a avaliação dos resultados, não levando em conta as intrincadas relações entre linguagem e pensamento, mais se acaba por causar o aumento de fenômenos “bizarros” na cultura, como a violência gratuita, os crimes sem motivo, o fracasso escolar generalizado etc.

Concluindo, queremos frisar agora que, antes de tudo, somos contrários a qualquer abordagem que pregue a redução do homem a um autômato privado daquilo que, por definição, é próprio do humano: sua singularidade, seu jeito próprio de pensar e de relacionar-se com a linguagem. Por esse motivo, é impor-tante ressaltar que nossa reflexão sobre pensamento e linguagem se inscreve, portanto, nesse movimento de resistência contra o ressurgimento desse fantas-ma que, há algum tempo, julgávamos esquecido: a sociedade de controle.

3 Seguindo o padrão mundial, no Brasil, a presença das TCC é uma realidade incontestável. Uma pesquisa utilizando uma ferramenta de busca na internet – no caso, o Google, cujo acesso se faz no endereço <www.google.com.br> – mostra que havia, no fim de abril de 2005, 650 páginas que as veiculam no país. Uma breve leitura de seus conteúdos mostra que é vasto o menu de distúrbios que, segundo seus responsáveis, podem ser eficazes e comprovadamente superados por meio das TCC.

Estamos nos deixando controlar passivamente?

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Linguagem e Pensamento

Na contramão dessa tendência, queremos convidar você a somar esforços para a construção de um modo de refletir sobre a linguagem e o pensamento humano que, respeitando profunda e amorosamente os modos de pensar e de aprender de cada um de nossos alunos, possa ajudá-los não só a se inserirem na nossa cultura mas também a ousarem pensar criativamente e, ao inovarem, responsabilizarem-se solidariamente pelos rumos da humanidade.

Texto complementar

A novilíngua(GUERRANTE, 1999)

Há um novo linguajar na praça, talvez filho da globalização, que me obriga a refletir cada vez que ouço como se estivessem falando comigo numa língua estrangeira qualquer. Cada vez entendo menos telefonistas, re-cepcionistas, economistas, aeromoças, jornalistas, enfim, estou me isolando no meio de um palavreado confuso, muitas vezes mal traduzido, um dialeto incompreensível. É bem parecido com o português que aprendi, porque soa como português, os fonemas são da boa língua portuguesa, mas, não tenho dúvida, um português que pede tradução a cada palavra.

Dia desses liguei para um amigo meu. A secretária me disse o seguinte: “Ele não se encontra.” Entendi o que ela falou. Ele estava se procurando, e não conseguia se achar. Não era bem isso. Que seria? Ele não estava sendo encontrado no seu posto de trabalho? Quem inventou essa fórmula confusa para substituir outra muito mais simples (“Ele não está”)?

Não faz muito tempo, recebi um recado grosseiro para ligar para um ci-dadão que desconheço. Liguei. A moça atendeu e tascou: “Quem gostaria?” Tive um momento de indecisão, mas estava certo de que não me movia qual-quer prazer na chamada. “Ele, naturalmente”, respondi. Ela ficou muda. Não entendeu nada. Ora, se o cidadão pediu que eu ligasse, e eu não o conheço, o possível prazer só pode ser dele. Desliguei. Ele, que pensei inicialmente andasse à procura desse prazer em falar comigo, não voltou a ligar.

Onde é que estão padronizando esse linguajar? Por que substituíram o “quem quer falar”, ou “da parte de quem devo anunciar”? Já fomos mais bem

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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educados e bem mais simples. Ultimamente, estamos nos transformando em autômatos repetidores de chavões decorados.

Os economistas pegaram a palavra apoio e a substituíram por suporte, que eu tenho lá em casa para não deixar a estante cair. Trouxeram direta-mente do inglês, sem a menor preocupação com a existência de uma palavra apropriada na língua-mãe.

Eu já estava até suportando essa palavra quando li num texto que me envia-ram para revisão: “as ações serão suportadas”. Não dá! De algum tempo para cá venho notando uma substituição eufemística de algumas palavras por outras supostamente mais sofisticadas. Morrer tornou-se falecer, ter virou possuir, pa-rentes foi substituída por familiares, aliás foi trocada por inclusive, vender foi vencida por comercializar, definir ocupou o lugar de decidir, pôr virou colocar (exceto para o sol que se põe e para as galinhas poedeiras, felizmente). Todas foram mudanças impróprias. Mas estão aí, impulsionadas pela mídia.

Já havia me acostumado ao verbo deletar, palavra de boa origem latina, mas importada pelos informatas, quando ouvi um avião de traficante dizer numa entrevista que seu chefe mandara “deletar o cara”. Até bem pouco tempo, o verbo deles era apagar.

Esses informatas são de matar. Mexo no computador cheio de dedos – melhor dizer “pisando em ovos”, já que o uso dos dedos é muito óbvio no caso do computador – e ainda assim dia desses surgiu na tela uma enorme advertência: “Você executou uma operação ilegal e o programa será desli-gado.” Tremi nas bases. Logo eu, que nunca fui parar sequer no cadastro ne-gativo do Clube de Diretores Lojistas. Operação ilegal? Me senti o próprio traficante, mandando deletar pessoas. Ah, essa novilíngua, um arremedo do admirável mundo novo, parece que veio para ficar.

Atividades1. Quais as vantagens de compreender a extensão do poder que a linguagem

tem sobre os seres humanos?

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Linguagem e Pensamento

2. Quando se trata de compreender o padrão do comportamento humano, é necessário desistir de encontrar uma causa para todas as consequências. Aponte o principal motivo para isso.

3. No processo educativo, é importante que o educador dedique boa parte do seu tempo para organizar o ambiente no qual a aprendizagem se dá. Qual o motivo para isso?

Dicas de estudoHUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981.

Romance inglês, publicado em 1932. Antes da obra 1984, já denunciava alguns dos efeitos da utilização de técnicas de inspiração behaviorista na educação das novas gerações, em especial, quando utilizadas como coadjuvantes da manuten-ção do poder dos governos totalitários. De forma instigante e extremamente ca-tivante, Huxley conta uma história na qual, seguindo as aventuras e desventuras do pobre Bernard Marx, tomamos conhecimento dos estragos do totalitarismo sobre a cultura e, consequentemente, sobre os modos de pensar dos cidadãos.

BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo: novela pecuária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Por meio de uma alegoria, a criação de uma novela na qual os personagens principais são bovinos falantes e pensantes, Chico Buarque busca nos levar a uma séria reflexão sobre a realidade brasileira, em especial no que tange ao tra-tamento desumano que, ordinariamente, é reservado para as classes populares e aos meios que, de vez em quando, tendem a ser usados para que estes sequer tenham condições de perceber a seriedade de sua situação.