claudia rosa riolfi - linguagem e pens amen to

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2.ª edição 2009 Linguagem e  Pensamento Claudia Rosa Riolfi

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2.ª edição

2009

Linguagem e Pensamento

Claudia Rosa Riolfi

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© 2006-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

R585L Riol, Claudia Rosa. / Linguagem e Pensamento. / ClaudiaRosa Riol. 2. ed — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.

168 p.

ISBN: 978-85-387-0225-2

1. Linguagem escrita. 2. Alfabetização. 3. Formação de professores.

4. Escrita - Ensino. I. Título.

CDD 372.634

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200Batel – Curitiba – PR0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

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Psicanalista. Doutora em Linguística pela Unicamp. Mestre em LinguísticaAplicada pela Unicamp. Proessora das Metodologias de Ensino de Língua Portu-guesa, Linguística e Alabetização da Faculdade de Educação da USP.

Claudia Rosa Riol

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Sumário

A linguagem humanae seus eeitos sobre o pensamento ...................................11

Pensar não é tão simples como parece ....................... .......................... ......................... ... 12O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos ............. 16

O imprevisível animal humano ........................................... 25

Os animais não se organizam do mesmo modo ....................... .......................... ........... 25

É conversando que a gente não se entende... ....................... .......................... ............... 27

Modos dierentes para explicar como a gente se torna o que é ....................... ....... 29

O proessor-detetive ou, simplesmente, o bom proessor .......................... ............... 31

Concepção do homem como ser de linguagem ..........39

A linguagem é o que dá o nosso contorno ......................... ......................... .................... 40

Alguns traços da linguagem humana ...................... ......................... .......................... ....... 42

A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste ......................... .......................... ....... 43

Analisar os modos de alar e de pensar:exclusividade do ser humano .............................................. 53

A capacidade para a reexão linguística se ganha na cultura ....................... ........... 55

A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer ........................ ............... 57

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A perspectiva histórica do desenvolvimentodo pensamento humano .........................................................67

Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais ........................ ....... 67

Introduzindo o pensamento de Vygotsky ...................... .......................... ........................ 69

A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano ....................... ....... 71

Signicado da palavra:

lugar de junção do pensamento e da linguagem ........79No início, era o corpo... ........................ .......................... ......................... .......................... ....... 79

O conceito de pensamento verbal em Vygotsky ........................ .......................... ........... 81

A dupla unção organizadora da palavra................................. .......................... ............... 83

O papel da linguagem no desenvolvimentointelectual de uma criança ....................................................93

A linguagem torna o homem mais complexo ....................... .......................... ............... 94O conceito de internalização e sua relevância para reetir o ato educativo ........ 96

A zona de desenvolvimento proximal 

e sua aplicabilidade para reetir sobre a educação .......................... ......................... ... 98

A inuência do aprendizado escolarno desenvolvimento da criança ........................................109

O papel da escola no desenvolvimento intelectual ...................................................110

Construir uma educação desaadorapara promover o desenvolvimento humano ................................................................112

Construindo uma relação pedagógicana qual seja possível explorar os conteúdos .................................................................116

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje ..123

A invenção da escrita .............................................................................................................123

A mutação das unções sociais da escrita ......................................................................124

O papel do proessor no processo de aprender a escrever......................................127

Auxiliar a criança a se apropriar do códigoalabético exige saber o que estamos azendo ............................................................128

Perspectiva histórico-social: a aula de LínguaPortuguesa e seus textos nela produzidos ...................139

O pensamento sobre a alabetização no Brasil ............................................................139

A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa ................................................141

A aula de escrita gerando desenvolvimentosubjetivo para o proessor e seu aluno ............................................................................144

Gabarito .....................................................................................153

Reerências ................................................................................161

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Apresentação

Prezado alunoO material que agora lhe chega em mãos é um desdobramento de quase

20 anos de meu trabalho de pesquisa sobre a escrita. Por meio dele, tenho ten-tado circunscrever uma questão que me intriga desde que sou muito pequena:por que em nossos dias não surge um pensador revolucionário que ormule umaideia que altere tudo o que hoje sabemos sobre o mundo?

Onde estão hoje os gênios de outrora, aqueles intrépidos pensadores que,ao longo da história da humanidade, “suaram sua camisa”, muitas vezes prejudi-caram sua saúde, oram perseguidos por aqueles que questionavam suas “ideiasexóticas” e, no nal, oereceram o inestimável presente de um novo modo depensar sobre o mundo?

Onde estão, agora, os novos pensadores que se tornarão conhecidos mun-dialmente, terão seus nomes registrados nas enciclopédias – enm, alterarão oestado atual do conhecimento humano? Eu quero muito saber isso e, por essemotivo, aceitei o convite para preparar este curso para você. Quem sabe você nãose encanta com essa linha de reexão e, assim, eu terei uma companhia agradávelpara continuar o meu trabalho investigativo?

Você deve estar entendendo que meu interesse sobre o tema pensamento

e linguagem não consiste em uma questão abstrata, muito pelo contrário. Se umdia desejei estudar esse assunto oi porque conclui que conhecê-lo me ajudariaa reetir sobre o advento de uma passagem que vem se tornando cada vez maisrara: o momento em que um sujeito abandona sua diculdade para escrever e seautoriza a pensar com a sua própria cabeça e, posteriormente, a tornar públicosos resultados de sua reexão.

Ao pensar sobre essa diculdade, muito se ala que o jovem de hoje nãotem muita coisa para dizer, mas pouco se diz que seu silenciamento oi causadopor ruídos que ele não produziu... Diante dessa ironia, convoco você, meu colegaproessor, a assumir comigo a responsabilidade de se indagar a respeito de que

respostas a nossa geração de adultos poderá deixar para as crianças que – muitasvezes tendo perdido a esperança de construir para si um uturo melhor – se inter-rogam sobre o sentido de ler e escrever na escola.

Tentei tornar o seu caminho o menos árduo possível e, para isso, tive quetrabalhar muito. Espero que, honrando o meu esorço, você se engaje no percursoque ora se inicia e que goste do trabalho.

Claudia Rosa Riol

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A linguagem humanae seus eeitos sobre o pensamento

O objetivo deste capítulo é convidar o leitor a se interessar por umtema que, hoje em dia, tem mais relevância social do que nunca: as conse-

quências éticas da compreensão da necessidade de nós, proessores, in-

sistirmos vigorosamente em nos mantermos no exercício do pensamento

criativo e no desao que é a mediação da linguagem nas trocas com

nossos semelhantes.

É claro para todos que um ser humano não so-

brevive muito tempo se or privado de água e de

alimento. Recentemente, tem se tornado evidenteque, para além dessas necessidades classicamente

reconhecidas como sendo as básicas, dicilmente

qualquer um de nós teria sobrevivido aos primei-

ros anos da inância sem receber ao menos um pouquinho de amor da-

queles que cuidaram de nós. Mesmo agora, quando somos adultos, você

pode imaginar quanto tempo aguentaria, por exemplo, sem ouvir a voz de

seus amiliares, sem poder contar como você está se sentindo para alguém

em quem cona – em suma, sem alar e sem ouvir palavras?A observação de pessoas que passaram por longo período de isolamento,

como por exemplo doentes graves ou prisioneiros, não deixa dúvidas: o pobre

ineliz que está privado de trocas verbais com outros humanos logo perde o

interesse em manter os cuidados de higiene e de aparência pessoal, “esque-

ce” de comer nas horas costumeiras, desenvolve distúrbios do sono, perde a

noção do tempo. Resumindo, tem toda sua vida mental desorganizada.

Por que isso acontece? Porque não poder alar é uma das maiores agres-

sões que podem ser imputadas ao ser humano, uma vez que o leva a agircontra a sua natureza, a de ser um “ser de linguagem”. Compreender esse

traço de nossa essência, ou seja, a extensão do poder que a linguagem

tem sobre nós, é de suma importância para reetir sobre a construção e

a manutenção de nossa cultura em geral e, muito particularmente, tem

toda relevância para reetir sobre os sucessos e os impasses da educação

dos alunos que nos oram conados.

Você já imaginoucomo seria sua vidase osse impedidode verbalizar seusgostos e opiniões?

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Linguagem e Pensamento

No que se segue, consequentemente, optamos por trazer alguns elementos

que permitem introduzir a reexão sobre o pensamento humano desde uma

óptica que dá prioridade à linguagem, compreendida como sistema de articula-

ção de signos verbais exclusivo do homem. Antes de começarmos, é importan-

te esclarecer, entretanto, que as relações entre pensamento e linguagem vêm

sendo, há muito tempo, alvo de polêmica entre os mais diversos estudiosos. São

várias as áreas que se dedicam a elucidar essa questão, em especial, mas não

exclusivamente, a medicina, a biologia, a psicologia e a linguística, sem que, en-

tretanto, tenha sido possível alcançar um consenso total na orma de conceber

como linguagem e pensamento se articulam para o humano. Por esse motivo,

como em tudo na vida, senhor leitor, não existe apenas um lugar onde o sol

brilha, sendo necessário “escolher a nossa praia!”. Vamos conhecer uma delas.

Pensar não é tão simples como pareceDesde que o mundo é mundo, os homens têm se interessado por esclare-

cer as obscuras origens de seus pensamentos. Sempre houve alguém interes-

sado em dizer de onde tinha se originado uma ideia qualquer ocorrida a outro

alguém, nem que osse para lhe imputar uma origem mística, mais comumente

demonológica. Embora há muito tempo tenhamos superado a chamada “época

das trevas”, com certeza o leitor já teve oportunidade de testemunhar, rente

a um pensamento mais estranho, a acusação de outro menos esclarecido que,

piamente declara: “Isso deve ser coisa do capeta!”.

    I    E    S    D    E    B   r   a   s    i    l    S .

    A .

Deixando de lado as crenças religiosas, essa modalidade de olhar o mundo

é interessante porque exemplica um tipo de raciocínio que acredita na corres-

pondência direta e imediata entre uma causa e sua consequência – no caso, a

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A linguagem humana e seus eeitos sobre o pensamento

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sugestão eita pelo diabinho como causa e o surgimento do “pensamento” na

cabeça de um sujeito como consequência.

Ou seja, aquele que pensa desse modo acredita que nós temos um cérebro

apenas para servir como uma espécie de quadro-negro onde escrevemos, como

se ossem nossas, as ideias que recebemos dos outros, sem qualquer mediação

de uma reexão mais elaborada. Você acredita mesmo que somos assim tãoidiotas? Com certeza não!

Esse modo de ver as coisas, além de depreciativo com relação às nossas quali-

dades e potencialidades, tem consequências neastas para a nossa vida em socie-

dade. Se or legítimo crer que para todo eeito maniesto no mundo será possível

encontrar uma causa lógica, acabaremos por uncionar na crença que oi aquela

dos nossos antepassados macacos, segundo a qual uma reação “natural” de um

sujeito que tivesse acabado de levar um empurrão seria, nada mais nada menos,

do que uma boetada... Não seria muito diícil imaginar até que ponto de destrui-ção a sociedade humana teria ido se todos nós tivéssemos mantido o modo de

ver as coisas de nossos primitivos antepassados. Com certeza, sequer estaríamos

aqui para estudar e contar a história de nossa vida de homens e de mulheres.

Por esse motivo, antes de avançarmos nesta reexão sobre as relações entre

pensamento e linguagem, é importante azer a crítica de todos os resquícios

desse modo de pensar que, para além do senso comum, ainda permanece em

nossa cultura, disarçado de ciência.

A ciência que ignorou a importância da linguagemVisando, portanto, construir uma noção de pensamento mais adequada para

ser mobilizada no interior da escola, vamos recuperar alguns dos traços de uma

das escolas da psicologia que se inscreveu dentre aquelas que não davam a

devida relevância ao papel da linguagem na manutenção da nossa organização

social: o behaviorismo e as linhas que dele se originaram.

Quando nos reerimos a essa corrente do pensamento,

provavelmente o primeiro nome de autor que nos ocorre é

o de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990).1 De ato, esse psi-

cólogo americano se tornou o mais amoso representante do

1 Dentre inúmeros sites que contêm dados sobre a bibliograa de Skinner, pela concisão e objetividade, destaca-se o seguinte endereço, do qualretiramos alguns dados a respeito da vida do autor: <www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.html>.

Você conheceas principais

ideias dobehaviorismo?

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Linguagem e Pensamento

behaviorismo, uma vez que, ao longo de sua vida, empenhou-se grandemente

em azer publicidade de suas próprias ideias, na sua maioria oriundas de suas

pesquisas com os animais, realizadas, por sua vez, nos moldes daquelas desen-

volvidas pelo siólogo russo que, em 1906, publicou achados experimentais

sobre o reexo condicionado: Ivan Petrovisch Pavlov (1849-1936).

    I    E    S    D    E    B   r   a   s    i    l    S .    A .

A principal descoberta do russo cou conhecida como condicionamento pa-

vloviano, modalidade de maniestação comportamental que ele percebeu por

meio de estudos que realizava sobre a atividade digestiva de cães. Com experi-

mentação sistemática, ele acabou percebendo que apenas o som de seus passos

no laboratório, após sucessivos pareamentos com um bolo de carne que sempre

era apresentado aos seus animais, dava origem à resposta de salivação dos cães,

que associavam o som com o gosto da carne.

Dentro dessa tradição de pesquisa empirista e coerente com sua postura pes-

soal de materialista e ateu, Skinner acreditava que, a exemplo do que Pavlov havia

demonstrado acontecer com os animais, todos os comportamentos humanos são

moldados pela nossa experiência de punição e recompensa e não por instâncias

mais “subjetivas”, tais como a moral, a orça da vontade e assim por diante. Conse-

quentemente, Skinner costumava armar que o homem bom só az o bem porque

o bem é recompensado, e não porque, dados alguns traços de seu caráter, ele teria,

ao menos, um relativo livre-arbítrio para agir deste ou daquele modo.

A elaboração de Skinner, no que se reere à linguagem, é bastante coerente

com os demais aspectos de sua teoria (SKINNER, 1957), ou seja, ele reduz a lingua-

gem a mais um dos comportamentos que podem ser controlados. Ao longo de

sua realização, o autor elaborou o conceito de condicionamento operante, ligeira-

mente dierente da noção de condicionamento (uma junção simples de estímulo

e resposta) que vinha sendo desenvolvida nas ormas anteriores de behaviorismo.

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A linguagem humana e seus eeitos sobre o pensamento

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Nessa nova elaboração, acrescenta-se a consideração da possibilidade de o orga-

nismo emitir respostas, em vez de só obtê-las a partir de um estímulo externo.

Ressalte-se, portanto, que o autor tentou explicar o aprendizado e a lingua-

gem verbais dentro do paradigma do condicionamento operante, isto é, de novo

sem mobilizar a categoria do  pensamento como uma instância elaborada que

pode mediar, por meio da linguagem, as relações entre o homem e o mundo.

Como o behaviorismo é traduzido na educação?

Na educação, o behaviorismo deu origem a uma abordagem aplicada com o

intuito de se obter um determinado comportamento previamente escolhido. Para

tal m, costuma-se dar muita ênase à utilização de condicionantes e reorçadores

arbitrários, como elogios, graus, notas, prêmios, reconhecimento do mestre e dos

colegas etc. Para quem acredita nessa orientação teórica, que parte do princípiode uma aprendizagem mecânica, com repetições sistemáticas do tipo estímulo-

-resposta automáticas, o ensino consiste em um arranjo e um planejamento de

condições externas que levam os estudantes a aprender, sendo de responsabili-

dade do proessor unicamente assegurar a aquisição do comportamento.

Ressalte-se que essa maneira de conceber o ser humano como se osse total-

mente passível de ser controlado pelos estímulos recebidos do meio impeliu o

autor a chegar ao absurdo de conceber uma comunidade utópica – criada e de-

senvolvida de acordo com os princípios behavioristas – em que, se assim pode-mos dizer, o homem estaria livre do desconorto de ser possuidor da aculdade

do pensamento, uma vez que todos os seus atos seriam geridos por terceiros.

Um exemplo do que vem sendo chamado de “sociedade de controle” está descri-

to na obra de cção Walden II (SKINNER, 1977).

Nesses seus devaneios, Skinner imaginou uma

cultura que poderia ser inteiramente controlada por

meio de um dispositivo extremamente simples: a re-

compensa automática dos bons e a eliminação au-tomática dos maus. Uma olhada mais ingênua naquela sociedade poderia até

nos levar a concluir que a eliminação dos maus poderia ser uma boa ideia, mas,

dada a complexidade do ser humano, em ace dessa idealização tentadora, resta

saber como o governante do local aria para evitar os riscos inerentes à tentativa

de tornar o mundo à sua imagem e semelhança. Ou seja, o que o protegeria de

decretar, talvez mesmo sem o saber, que todos aqueles que são dierentes de si

É possível pensar numasociedade totalitária e

controladora?

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Linguagem e Pensamento

são “maus”? Como ele aria para ter certeza de uma certa neutralidade e isenção

para ormar os parâmetros adotados para dierenciar o bem do mal?

Uma olhada mais objetiva na história da humanidade logo nos mostra para

onde caminhamos todas as vezes que um poder totalitário oi implementado: para

uma pasteurização da linguagem em uso e para um embotamento do pensamen-

to. E antes que você, prezado leitor, pense que estamos nos desviando aqui denosso assunto principal para discutir política, é importante ressaltar que o assunto

que se segue só nos interessa à medida que nos oerece uma interessante abertu-

ra para reetir sobre a linguagem humana e suas relações com o pensamento.

O pesadelo dos pesadelos:uma sociedade humana sem pensamentos

É visando encontrar um caminho alternativo para introduzir as complexas e

estreitas relações entre linguagem e pensamento que vamos recorrer a uma bri-

lhante obra de cção, escrita por Eric Arthur Blair, publicada pela primeira vez

em 1949, sob o pseudônimo de George Orwell (2004): o livro 1984.

Sabe-se que essa novela oi inspirada na opressão dos regimes totalitários das

décadas de 1930 e 1940, mas não se resume a uma crítica contra o stalinismo e o

nazismo. Ao contrário, trata-se de uma metáora atualíssima que nos alerta contra os

perigos da pasteurização da sociedade pela redução do indivíduo em peça paraservir ao Estado ou ao mercado por meio do controle total, incluindo o pensamento.

Narrado em terceira pessoa, a obra-prima

conta a história de Winston Smith, um tipo

de jornalista ou historiador que, uncionário

do Ministério da Verdade, exerce a unção de

reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Por sua vez,

esse órgão onipotente e onipresente exercia eroz vigilância sobre os modos de

pensar de cada cidadão, já que seu controle total se dava, justamente, pelas di-versas técnicas utilizadas para abolir o livre pensar, nomeado como crimideia.

Antes de prosseguir com a recuperação de alguns ragmentos do texto de

Orwell, é importante risar que não é a narrativa em si aquilo que nos interessa,

mas a possibilidade de, a partir dessa impressionante metáora, compreender

que o pensamento humano não é um processo isolado e independente das

contingências histórico-culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa

medida, determinam-no.

O pensamento de umhomem é independente do

tempo no qual ele vive?

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A linguagem humana e seus eeitos sobre o pensamento

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Neste ponto, uma interessante questão se coloca para nós. Se, em certa

medida, é verdade que “cada cabeça é uma sentença”, dito popular que aponta

para uma relativa impossibilidade de mandar nos modos de pensar de alguém,

como seria possível controlar o pensamento humano?

Com relação a essa questão, a obra de Orwell nos oerece um importante

subsídio para reexão. No ctício ano de 1984, para além da vigia concreta dapopulação por meio das câmeras de vídeo e dos microones ocultos, do desen-

corajamento às atividades solitárias, da tortura ísica e da pura e simples elimi-

nação dos membros dissonantes, o ccionista nos mostra que, na sociedade de

controle que ele vinha denunciando, o principal instrumento de controle e de

manipulação do homem era a alteração artifcial de sua linguagem.

Para nos mostrar isso, o autor cria uma imagem de cientista de aluguel, uma

espécie de linguista contratado pelo onipotente Partido Ingsok para, juntamen-

te com outros colegas, inventar uma língua articial para substituir a natural: anovilíngua. No contexto da novela, trata-se de um idioma ctício desenvolvido

não pela criação de novas palavras, como aparenta ser o caso dos tempos con-

temporâneos nos quais, todos os dias, surgem palavras novas na mídia, mas pela

condensação e a remoção delas. A ideia que guiava os “intelectuais” do partido

era a de que, uma vez que as pessoas não pudessem concretamente se reerir

a algo, já que é bastante diícil remeter-se a um objeto cujo nome ignoramos,

aquele algo passaria a não existir.

Antes de prosseguir, saboreemos ao menos um ragmento entrecortado daala do linguista, criado por Orwell, em um diálogo com o personagem principal,

que se interessou por conhecer maiores detalhes sobre o seu trabalho:

Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventarpalavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias.Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples. A Décima Primeira Edição não conteráuma única palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2050. [...] É lindo destruir palavras.Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivosque podem pereitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também.Anal de contas, que justicativa existe para a existência de uma palavra que é apenas ocontrário da outra? Cada palavra contém em si o contrário. [...] Não percebes a beleza queé destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário sereduz de ano para ano? [...] Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gamado pensamento? No m, tornaremos a crimideia literalmente impossível, porque não haverápalavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por umapalavra, de sentido rigidamente denido, e cada signicado subsidiário eliminado, esquecido.Já na Décima Primeira Edição, não estaremos longe disso. Mas o processo continuará muitotempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama de consciênciasempre uma pausa menor. [...] Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem.Como será possível dizer “liberdade é escravidão”, se or abolido o conceito de liberdade? Todomecanismo do pensamento será dierente. Com eeito, não haverá pensamento, como hoje oentendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.(ORWELL, 2004, p. 54-55, grios do autor)

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Linguagem e Pensamento

Lendo o extrato, podemos claramente perceber

que a tese de Orwell é a de que, por meio do controle

sobre a linguagem, um governo totalitário seria capaz

de impedir que ideias indesejáveis viessem a ocorrer

aos cidadãos, uma vez que, completamente anestesiados pela ordem dominan-

te, restaria aos cidadãos apenas uma imitação de “pensamento”.

Para nós, são especialmente preciosas as três últimas linhas do extrato que

você acabou de ler, pois elas contêm uma ideia que nos é bastante cara: a de

que, em sua dimensão crítica e criativa, o pensamento humano é ruto dos eei-

tos da linguagem sobre um sujeito, eeitos esses que o criam. Por esse motivo,

se, nos dias de hoje, desejamos viver em um mundo dierente do horror retrata-

do por Orwell, compreendê-los adquire uma urgência ímpar.

Na atualidade, as teses behavioristas ganharam nova releitura: as terapias

cognitivo-comportamentais (TCC) que, nos últimos 15 anos, disseminaram-se econsolidaram-se, tanto na medicina quanto na educação. As TCC consistem em

técnicas que, sob a luz da psicologia cognitivista, revisitam os estudos compor-

tamentalistas emprestando-lhes uma roupagem atual e dando-lhes um caráter

de prática “cienticamente comprovada”.2

As TCC visam incidir sobre o modo como o homem se comporta alterando-

-lhe os aspectos cognitivos. Os praticantes das diversas modalidades dessa te-

rapia tomam um determinado homem e, em primeiro lugar, identicam o que

 julgam ser as ormas distorcidas e não realistas de pensar para, depois, ajudar oindivíduo a interromper comportamentos qualicados como alterados e a subs-

tituí-los por comportamentos que o terapeuta julga serem mais saudáveis.

Funcionando com a premissa da existência de um parâmetro “adequado”

para nortear o comportamento humano, as TCC se propõem a livrar os cidadãos

das diculdades inerentes ao ato de decidir de acordo com o seu próprio desejo.

Para tal m, ensinam àqueles que tratam “o modo correto” de pensar e de agir,

isto é, “livram” a população do livre-arbítrio.

Por acaso, esse modo de agir az você lembrar do Partido do livro de Orwell?

Se estivermos nos entendendo, provavelmente você notou que, reduzindo o

ser humano ao estatuto de um cérebro reprogramável, os idealizadores das TCC

acabam por incidir em uma tentativa de controle do pensamento, do que quere-

mos nos aastar completamente.

2Não deixa de ser curioso notar que, em sua origem, o cognitivo e o comportamental se inscreviam, quanto a sua undamentação, em concepções

teóricas opostas, tendo origens, tradições, precursores e problemáticas totalmente dierentes. Se para um comportamentalista “histórico” o queinteressa são os inputs (entradas) e os outputs (saídas), interesse esse que o leva a abstrair a “mente”, para um cognitivi sta “histórico” o que interessasão os processamentos, o modo de unci onar da “mente” em si. Ou seja: a aliança entre as duas correntes implicou, pelo menos quanto à psicologiacognitiva, um empobrecimento teórico brutal.

Estamos longe dacção na sociedade

contemporânea?

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A linguagem humana e seus eeitos sobre o pensamento

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Por esse motivo, é importante risar que, atualmente, a conduta prossional ins-

pirada nas TCC consiste em um enômeno mundial que se expressa, de maneira

maciça e extravagante, na ormação médica e psicológica, nas revistas cientícas,

nos hospitais, na terapia oerecida na rede pública e nos consultórios privados e, o

que mais nos interessa, nas universidades e, paulatinamente, na educação básica.3

Antes que o leitor se deixe contaminar por um certo tom cinzento presentenessa denúncia do que vem ocorrendo na sociedade contemporânea no que

se reere ao controle do pensamento, é importante salientar que não estamos

assistindo passivamente aos acontecimentos.

Com o advir do século XXI, no momento mesmo em que essa conduta ganha-

va hegemonia, iniciou-se na França um grande movimento de denúncia contra

as TCC (tendo adesão, inclusive, do ministro rancês Blazy e, posteriormente,

disseminando-se entre os clínicos ranceses) que, recentemente, recebeu adesão

de muitos intelectuais brasileiros.

Trata-se de um grupo de pessoas que,

embora adotando diversas perspectivas para

reetir sobre as relações entre linguagem e

pensamento, não concordam com a existência de quaisquer técnicas ou abor-

dagens que levem alguém a uma coerção mental. Esses pensadores têm em

comum a ideia de que, na tentativa de dominar o pensamento, há em jogo um

sério problema ético cujos resultados são dramáticos: a exclusão do sujeito da

sua cultura.

Não é de se estranhar que, quanto mais se tenta domesticar o real, padronizar

as condutas e cienticizar a avaliação dos resultados, não levando em conta as

intrincadas relações entre linguagem e pensamento, mais se acaba por causar

o aumento de enômenos “bizarros” na cultura, como a violência gratuita, os

crimes sem motivo, o racasso escolar generalizado etc.

Concluindo, queremos risar agora que, antes de tudo, somos contrários a

qualquer abordagem que pregue a redução do homem a um autômato privadodaquilo que, por denição, é próprio do humano: sua singularidade, seu jeito

próprio de pensar e de relacionar-se com a linguagem. Por esse motivo, é impor-

tante ressaltar que nossa reexão sobre pensamento e linguagem se inscreve,

portanto, nesse movimento de resistência contra o ressurgimento desse antas-

ma que, há algum tempo, julgávamos esquecido: a sociedade de controle.

3Seguindo o padrão mundial, no Brasil, a presença das TCC é uma realidade incontestável. Uma pesquisa utilizando uma erramenta de busca na

internet – no caso, o Google, cujo acesso se az no endereço <www.google.com.br> – mostra que havia, no m de abril de 2005, 650 páginas queas veiculam no país. Uma breve leitura de seus conteúdos mostra que é vasto o menu de distúrbios que, segundo seus responsáveis, podem serecazes e comprovadamente superados por meio das TCC.

Estamos nos deixandocontrolar passivamente?

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Linguagem e Pensamento

Na contramão dessa tendência, queremos convidar você a somar esorços

para a construção de um modo de reetir sobre a linguagem e o pensamento

humano que, respeitando prounda e amorosamente os modos de pensar e de

aprender de cada um de nossos alunos, possa ajudá-los não só a se inserirem

na nossa cultura mas também a ousarem pensar criativamente e, ao inovarem,

responsabilizarem-se solidariamente pelos rumos da humanidade.

Texto complementar

A novilíngua

(GUERRANTE, 1999)

Há um novo linguajar na praça, talvez lho da globalização, que me

obriga a reetir cada vez que ouço como se estivessem alando comigo

numa língua estrangeira qualquer. Cada vez entendo menos teleonistas, re-

cepcionistas, economistas, aeromoças, jornalistas, enm, estou me isolando

no meio de um palavreado conuso, muitas vezes mal traduzido, um dialeto

incompreensível. É bem parecido com o português que aprendi, porque soa

como português, os onemas são da boa língua portuguesa, mas, não tenho

dúvida, um português que pede tradução a cada palavra.Dia desses liguei para um amigo meu. A secretária me disse o seguinte:

“Ele não se encontra.” Entendi o que ela alou. Ele estava se procurando, e

não conseguia se achar. Não era bem isso. Que seria? Ele não estava sendo

encontrado no seu posto de trabalho? Quem inventou essa órmula conusa

para substituir outra muito mais simples (“Ele não está”)?

Não az muito tempo, recebi um recado grosseiro para ligar para um ci-

dadão que desconheço. Liguei. A moça atendeu e tascou: “Quem gostaria?”

Tive um momento de indecisão, mas estava certo de que não me movia qual-quer prazer na chamada. “Ele, naturalmente”, respondi. Ela cou muda. Não

entendeu nada. Ora, se o cidadão pediu que eu ligasse, e eu não o conheço,

o possível prazer só pode ser dele. Desliguei. Ele, que pensei inicialmente

andasse à procura desse prazer em alar comigo, não voltou a ligar.

Onde é que estão padronizando esse linguajar? Por que substituíram o

“quem quer alar”, ou “da parte de quem devo anunciar”? Já omos mais bem

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A linguagem humana e seus eeitos sobre o pensamento

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educados e bem mais simples. Ultimamente, estamos nos transormando

em autômatos repetidores de chavões decorados.

Os economistas pegaram a palavra apoio e a substituíram por suporte,

que eu tenho lá em casa para não deixar a estante cair. Trouxeram direta-

mente do inglês, sem a menor preocupação com a existência de uma palavraapropriada na língua-mãe.

Eu já estava até suportando essa palavra quando li num texto que me envia-

ram para revisão: “as ações serão suportadas”. Não dá! De algum tempo para cá

venho notando uma substituição euemística de algumas palavras por outras

supostamente mais sosticadas. Morrer tornou-se alecer , ter virou possuir , pa-

rentes oi substituída por amiliares, aliás oi trocada por inclusive, vender  oi

vencida por comercializar , defnir ocupou o lugar de decidir ,  pôr virou colocar  

(exceto para o sol que se põe e para as galinhas poedeiras, elizmente). Todasoram mudanças impróprias. Mas estão aí, impulsionadas pela mídia.

Já havia me acostumado ao verbo deletar , palavra de boa origem latina,

mas importada pelos inormatas, quando ouvi um avião de tracante dizer

numa entrevista que seu chee mandara “deletar o cara”. Até bem pouco

tempo, o verbo deles era apagar .

Esses inormatas são de matar. Mexo no computador cheio de dedos –

melhor dizer “pisando em ovos”, já que o uso dos dedos é muito óbvio no

caso do computador – e ainda assim dia desses surgiu na tela uma enormeadvertência: “Você executou uma operação ilegal e o programa será desli-

gado.” Tremi nas bases. Logo eu, que nunca ui parar sequer no cadastro ne-

gativo do Clube de Diretores Lojistas. Operação ilegal? Me senti o próprio

tracante, mandando deletar pessoas. Ah, essa novilíngua, um arremedo do

admirável mundo novo, parece que veio para car.

Atividades1. Quais as vantagens de compreender a extensão do poder que a linguagem

tem sobre os seres humanos?

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Linguagem e Pensamento

2. Quando se trata de compreender o padrão do comportamento humano,

é necessário desistir de encontrar uma causa para todas as consequências.

Aponte o principal motivo para isso.

3. No processo educativo, é importante que o educador dedique boa parte do

seu tempo para organizar o ambiente no qual a aprendizagem se dá. Qual o

motivo para isso?

Dicas de estudoHUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981.

Romance inglês, publicado em 1932. Antes da obra 1984, já denunciava alguns

dos eeitos da utilização de técnicas de inspiração behaviorista na educação das

novas gerações, em especial, quando utilizadas como coadjuvantes da manuten-

ção do poder dos governos totalitários. De orma instigante e extremamente ca-tivante, Huxley conta uma história na qual, seguindo as aventuras e desventuras

do pobre Bernard Marx, tomamos conhecimento dos estragos do totalitarismo

sobre a cultura e, consequentemente, sobre os modos de pensar dos cidadãos.

BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo: novela pecuária. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1989.

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A linguagem humana e seus eeitos sobre o pensamento

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Por meio de uma alegoria, a criação de uma novela na qual os personagens

principais são bovinos alantes e pensantes, Chico Buarque busca nos levar a

uma séria reexão sobre a realidade brasileira, em especial no que tange ao tra-

tamento desumano que, ordinariamente, é reservado para as classes populares

e aos meios que, de vez em quando, tendem a ser usados para que estes sequer

tenham condições de perceber a seriedade de sua situação.

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O imprevisível animal humano

Se você é pai ou mãe de vários lhos, é proveniente de amília comvários irmãos ou teve a oportunidade de conviver de perto com dieren-

tes crianças por um tempo prolongado, com certeza concordará com a

seguinte armação: não é possível prever como um ser humano vai se de-

senvolver. A experiência nos mostra todos os dias que, mesmo se tratando

de lhos de um casal que, supostamente, oereceu a mesma criação para

todas as crianças, ao crescer, um irmão se torna dierente do outro com re-

lação aos hábitos, crenças, modos de levar a vida e assim por diante. Você

 já parou para pensar por que isso acontece?Ao longo do tempo, essa questão tem despertado o interesse de vários

estudiosos. Ao denir o padrão do desenvolvimento humano, deu-se para

essa questão dierentes tipos de resposta, ou, dizendo de outro modo,

conceberam-se modelos teóricos para explicar como nos tornamos adul-

tos. Neste capítulo, vamos conhecer resumidamente alguns desses mode-

los para que, em outro momento, a questão das relações entre pensamen-

to e linguagem possam ser mais bem colocadas.

Assim sendo, os objetivos do presente capítulo são azer uma compa-ração inicial entre os modos de organização social dos homens e dos ani-

mais; problematizar as pretensas relações “transparentes” entre linguagem

e pensamento; e expor alguns modelos dierentes que explicam como o

ser humano chega a tornar-se aquilo que ele é. Mãos à obra!

Os animais não se organizam do mesmo modoSe você tem um animal de estimação que passa muito tempo em com-

panhia dos humanos, deve estar, no mínimo, desconado do ato de que,

talvez, as dierenças entre nós e eles não sejam assim tão grandes como

pensamos que sejam. Particularmente quando os criamos, temos essa im-

pressão de que a coisa unciona quase como se pudéssemos entender o

que eles “pensam” e “desejam”.

Essa aparente “compreensão” dos modos de pensar de nossos animais se

dá porque sua gama de necessidades é bastante limitada se comparada às

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Linguagem e Pensamento

nossas. Qualquer um sabe dizer quando um cachorrinho precisa de água, por

exemplo; mas, venhamos e convenhamos, seria impossível descobrir se ele pre-

ere mineral, importada, com ou sem gás etc. Somos, portanto, obrigados a es-

perar sua reação rente ao que lhe oerecemos para, a posteriori , poder armar se

era aquilo que ele “queria” ou não.

Quem tem contato com lhos ou sobrinhos sabe que, com as crianças, acoisa é muito dierente. Quando uma delas decide nos pedir um presente, não

se trata de um presente qualquer, mas, pelo contrário, de uma demanda que

vem repleta de especicações. Não nos dizem simplesmente “Eu quero um brin-

quedo!” , mas “Eu quero uma boneca Polly, com o cabelo loiro, que venha com

cinco roupas para trocar e não pode ser igual àquela que você me deu no ano

passado!”. E ai de você se não achar o modelo exato!

Em suma, por meio desses exemplos iniciais, estamos tentando mostrar que,

enquanto um animal é bastante previsível, uma vez que se acha mergulhado no“mundo real” e premido por suas necessidades instintuais, nós, humanos, somos

imprevisíveis. Como somos seres de linguagem, aquilo que compreendemos

serem as nossas necessidades básicas não é plenamente dominado pelo bom

senso da sobrevivência da espécie, mas grandemente determinado pela discur-

sividade de nosso tempo.

Quadro 1 – Modos de organização social dos humanos e dos demais ani-

mais que conseguem viver em grupo

Os animais Os seres humanos

São regidos por seus instintos. Sorem ortíssima i nuência d a cultura naqual estão inseridos.

Têm uma organização grupal bastante rígidae limitada, não conseguindo inovar em sua“vida social”.

Podem encontrar seu “lugar social” dentro daorganização grupal na qual estão inseridos e,se assim o desejarem, alterá-lo.

Não conseguem transmitir a experiência pormeio das gerações: o que um animal “apren-de” morre consigo.

Acolhem e educam os novatos, introduzindo--os na cultura e no saber acumulado pelosseus antepassados.

Não podem planejar o uturo. Utilizam, muito requentemente, a linguagemcomo um campo no qual é possível planejar eprojetar o uturo.

Não podem “comunicar-se” para além do re-gistro limitado de suas necessidades básicas.

Podem utilizar a linguagem não apenas paracomunicar suas necessidades imediatas mastambém para criar, emocionar, alterar a pró-pria realidade etc.

São muitíssimo previsíveis no que se reereaos seus padrões de evolução.

Têm seus modos de evolução grandementevariáveis.

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O imprevisível animal humano

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Estudando o quadro 1, é importante compreender que reetir sobre o pen-

samento humano, sem levar em conta sua inserção cultural e sua relação com a

linguagem, é pensar que não passamos de animais que sabem se vestir de modo

um pouco mais eneitado.

Nós que nos preocupamos com a educação e com a ormação das novas ge-

rações precisamos ir um pouco além disso. Precisamos, para poder nos apro-ximar do padrão de pensamento de nossos alunos, compreender que, como

consequência do ato de alarmos, as relações entre nós não são nem tão homo-

gêneas nem tão estáveis como parecem. Onde quer que olhemos mais de perto,

há equívoco, e ele tem consequências. Passemos então a esse tópico.

É conversando que a gente não se entende...Um longo tempo se passa até que possamos declarar que o lhote do humano

está de posse de um sistema linguístico constituído à moda dos adultos. Embora

ele “ale” aproximadamente desde os 13 meses, essa ala, para ser analisada conve-

nientemente, tem de ser lida como sendo uma produção que está sendo eetuada

por um sujeito para quem o sistema linguístico ainda está em constituição.

    I    E    S    D    E    B   r   a   s    i    l    S .

    A .

Felizmente para os bebês, suas mães ignoram esse ato e tratam suas produções

rudimentares, rágeis e impereitas como se ossem análogas àquelas que saem de

nossas bocas. Isso signica que, na sua imensa sabedoria, essas mamães podem en-

trever no jovem humano uma inteligência igual à sua, embora ele ainda não tenha

tido tempo de vida para se traduzir por meio de palavras articuladas.

Supomos quais sejam essas palavras e nos dirigimos aos nossos lhos muito

 jovens como se eles pudessem entender o que estamos alando. A inormação

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Linguagem e Pensamento

que se segue ca entre nós para que não corramos o risco de levar uma mamãe

a parar de azer o que é tão importante que elas açam: eles não entendem nada!

Somos nós, os adultos, que, por meio de alguns indícios (pequenos ruídos, gestos e

olhares), interpretamos o que os nossos lhos “dizem” como se osse linguagem.

Mas não há qualquer problema nisso, como já adiantamos. O problema se coloca

quando nós, os educadores, esquecemo-nos desse processo inicial e sequer leva-mos em consideração que, em sua juventude, muitos de nossos alunos também

não entendem o que estamos alando, embora pareça o contrário, pois, assim

como o az o bebê pequeno, também reagem à nossa ala. A seguir, vamos narrar

uma pequena história verídica, ocorrida com uma amiga, que é onoaudióloga, e

seu lho único, na ocasião, prestes a comemorar o seu quinto aniversário.

Trabalhando nos preparativos para a esta de aniversário de seu lho, essa

amiga estava ao teleone, alando com ornecedores responsáveis pelo aluguel

do salão, pelos convites etc. Seu lho, muito eliz e animado com os cuidadosospreparativos, permanecia sentado muito quieto, atento e silencioso ao seu lado,

dando mostras de estar adorando a homenagem que estava recebendo.

De repente, o menino se levantou e disse: “Mãe, estou muito decepcionado

com você. Não sou mais seu amigo, eu não poderia imaginar que logo você ia

azer uma maldade dessa comigo!” Muito surpresa, a mãe permaneceu perplexa

por alguns momentos, sem saber o que dizer. Ela se interrogava: o que teria oen-

dido tanto o seu lho? Sua única hipótese era a de que, em seu último teleone-

ma, dirigido a sua própria mãe, ela tivesse se alongado um pouco demais, dessemodo entediando seu lho. Mas, mesmo assim, isso não seria uma maldade.

Mais calma, oi conversar com o lho,

perguntando que maldade ela havia eito

para perder sua amizade. Muito sério, ele

respondeu: “Mãe, nós combinamos que

só convidaríamos gente legal para a minha esta e você me trai e convida a Má

Licuia.” Não tendo qualquer pessoa na sua lista de convidados que se chamas-

se Licuia, a mamãe estava cada vez mais conusa, até que, conversa vai, con-versa vem, pudesse perceber, até pelo seu treinamento como onoaudióloga,

que esse exótico personagem havia nascido durante a conversa com a avó do

garoto. Combinando os detalhes da vinda de sua mãe para a esta, ela, que de-

sejava tê-la em casa durante todo o nal de semana, havia dito “Mamãe, venha

na sexta, já de mala e cuia.”

Como nossas palavras são escorregadias, nosso jovem amigo, ao ouvir uma ex-

pressão idiomática que ignorava – no caso, “trazer a mala e cuia” – interpretou-a

Você já imaginou quantas“Licuias” moram na cabeça de

nossos jovens alunos?

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O imprevisível animal humano

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como pôde, entendendo que sua mãe havia pedido a sua avó que, ao vir para a

sua esta, trouxesse também a Má Licuia! Prosseguindo com nossa reexão, en-

tretanto, você talvez não ache tão engraçado passar a imaginar que, dado que

a homoonia é um ato concreto, todos os dias centenas de  Licuias nasçam em

nossas salas de aula sem que sequer sejamos comunicadas ou comunicados de

seu aparecimento no mundo. Nós as desconhecemos, mas elas estão por aí, im-

pondo sua presença no curso dos pensamentos de nossos alunos e azendo com

que, ao contrário do que costumeiramente esperamos, eles pensem de modos

que sequer podemos imaginar.

Modos dierentes para explicarcomo a gente se torna o que é

É chegada a hora de esclarecer que a discussão que estamos desenvolvendo

ao longo deste capítulo só tem sentido a partir da óptica de um reerencial teóri-

co que leve em conta a imprevisibilidade do animal humano. É compreendendo

que não é possível azer uma correspondência imediata entre o homem e mode-

los preestabelecidos de desenvolvimento que podemos nos responsabilizar pelo

ato educativo e nos posicionar de modo mais ecaz em nossas salas de aula.

No quadro 2, o leitor encontrará, de modo muito sucinto, uma sinopse de três

grandes vertentes da análise do desenvolvimento humano.

Quadro 2 – Três possibilidades de modos de análise do desenvolvimento

humano

Grande modelo Comportamenta-lista

Teleológico Rizomático

Crença predomi-nante

Existe inuênciaonipotente dos estí-mulos do meio sobreo humano.

Existe um padrão dedesenvolvimentobiológico que segueseu próprio curso, em

alguma medida, inde-pendente do meio.

Não existe unicida-de, nem nos padrõesde comportamentonem na história de

vida de cada um denossos alunos.

Papel do adultoque deseja exerceruma inuência do

tipo educativo

Controlar rigida-mente os estímulosornecidos pelo meiopara a criança, demodo a proporcio-nar um aprendizadoeito de “modocorreto”.

Ficar atento às mani-estações da criança,de modo a perceberse ela está se desen-volvendo de “modocorreto”.

Respeitar a singulari-dade de cada sujeitoe, consequente-mente, ornecer-lheum amplo leque deexperiências culturaispara que ele possaazer seu própriopercurso.

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Linguagem e Pensamento

Embora de orma muito esquemática, e correndo o risco de algum reducio-

nismo simplicador, o quadro 2 nos mostra que, na contemporaneidade, cami-

nhamos cada vez mais para a compreensão de que um ser humano, ao con-

trário de outros animais, não tem o curso de seu pensamento completamente

determinado pelas leis que nos são impostas pela biologia de nossa espécie.

Não podemos ser reduzidos a esse nível da existência de um contato pleno, não

mediado, entre o corpo e o mundo. Pelo contrário, temos nosso encontro com a

realidade de maneira parcelar e ragmentada e, a partir disso, construímos nosso

padrão de pensamento.

Gilles Deleuze e Félix Guattari são os precursores de um modo de pensar

que, por levar em conta as diversas ramicações de uma dada realidade, cou

conhecido como “modelo rizomático”. Sua obra mais conhecida denomina-se

Mil Platôs, cuja edição brasileira iniciou-se em 1995, tendo sido concluída dois

anos depois. Trata-se de uma obra muito importante para o aproundamentodo assunto que estamos aqui tratando, uma vez que questiona a crença na exis-

tência, no pensamento humano, de uma tendência natural para uma verdade

única. Em particular, interessa-nos de perto a introdução do primeiro volume

(Introdução: rizoma), em que se postula um sujeito capaz de conectar-se com as

multiplicidades, de maneira não-linear. Do ponto de vista dos autores, a escrita

rizomática realiza um mapeamento e uma experimentação no real que contribui

para a abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência.

Para concluir esta parte de nosso estudo, convido o leitor para reetir sobre

um ragmento do importantíssimo trabalho em que Milton Santos versa sobre a

precariedade da percepção que podemos ter sobre as coisas.

As abordagens undamentadas na percepção individual têm seu ponto de partida no processodo conhecimento. Este é o resultado da apreensão da realidade contida em um objeto. Devidoao ato de que o principal interessado neste mecanismo, ou seja, o sujeito, é ao mesmotempo um ser objetivo e um microcosmo, o encontro entre objetividade da coisa (ou a coisaobjeticada) e a subjetividade de seu decirador permite uma variedade de percepções. A coisapermanece una, total, intacta, mas as modalidades de sua percepção são diversas, parcelares,requentemente deormantes. (SANTOS, 2002, p. 92-93)

É com essa lição de humildade sobre o quanto podemos compreender de

nossa realidade nos bolsos, se assim podemos dizer, que vamos concluir este

capítulo, tematizando o papel central que a pesquisa sobre os padrões de pen-

samento de cada um de nossos alunos tem para nossa prática docente.

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O imprevisível animal humano

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O proessor-detetive ou,simplesmente, o bom proessor

Se entendermos que o pensamento humano está longe de se desenvolver

de orma linear, compreendemos que, para sermos ecazes em nosso ato peda-

gógico, não devemos pensar que nossos alunos são completamente previsíveis.

Pelo contrário, será bastante saudável ter em mente a necessidade de “realizar

um trabalho de detetive” para elucidar o modo pelo qual cada um aprende.

Para ilustrar que tipo de trabalho estamos nomeando por meio da metáora

do detetive, vamos, desta vez, trazer como exemplo a literatura de mistério, cujo

precursor básico é Edgar Allan Poe.

Edgar Allan Poe (1809-1849), oi um genial escritor americano que se

tornou conhecido em todo o mundo, sobretudo por seus contos de mistérioe terror, que constituíram uma onte de inspiração direta para a renovação

literária europeia no nal do século XIX. Tendo escrito várias histórias que têm

como personagem principal o rancês Auguste Dupin, inteligentíssimo nobre

decaído que se dedica a desvendar crimes insolúveis como onte de diversão

e de estímulo intelectual, acabou por undar a moderna novela de detetive.

Poe escreveu uma obra tão extensa quanto amosa, sem dúvida, digna de

comentários. Nesse momento, interessa-nos, em especial, relembrar um de seus

personagens mais célebres: Auguste Dupin.

Mestre do raciocínio lógico, Dupin enatizava todos

os pormenores relativos ao caso de seu interesse, anali-

sando, com precaução, todas as estranhas possibilidades

de comportamento do gênero humano, do qual era exímio conhecedor. Materia-

lista congruente, não acreditava no misticismo e, por este motivo, direcionava as

investigações de maneira bastante objetiva, de acordo com métodos investigató-

rios, tarea que era acilitada por seu caráter extremamente observador.

Dupin não cava trancado em sua mansão antasiando como os crimes teriam

ocorrido: ele trabalhava em uma dupla vertente: levava em conta o caráter particu-

lar de cada um dos suspeitos, buscando sistematizar qual modo de agir era ou não

condizente com a linha de conduta em geral; e examinava atentamente os indícios

Você conhece oamoso Dupin?

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32

Linguagem e Pensamento

materiais que cercavam a cena do crime. No entrecruzamento dessas duas verten-

tes, o magníco rancês conseguia descobrir os padrões de pensamento daqueles

a quem se dedicava, podendo compreender melhor o curso de suas ações.

Alertando o leitor para não se esquecer do modus operandi  do detetive,

vamos terminar este texto convidando-o a encarnar um pouco o Dupin quando

entra em sala de aula. Se é verdade que os alunos, como todo ser humano, sãoimprevisíveis, não é menos verdade que investigar seus padrões de pensamento

pode se tornar um aliado importantíssimo na tarea pedagógica.

Texto complementar

Os crimes da rua Morgue(POE, 1974, p. 133-136)

Passeávamos, certa noite, por uma comprida e suja rua, nas vizinhanças

do Palais Royal. Estando, aparentemente ambos nós ocupados com os pró-

prios pensamentos, havia já uns 15 minutos que nenhum de nós dizia uma

só sílaba. Subitamente, Dupin pronunciou as seguintes palavras:

— A verdade é que ele é mesmo um sujeito muito pequeno e daria mais

para o teatro de variedades.

— Não pode haver dúvida alguma a respeito – respondi, inconsciente-

mente, e sem reparar a princípio (tão absorto que estivera em minha medi-

tação) a maneira extraordinária pela qual as palavras de meu companheiro

coincidiam com o objeto de minhas reexões. Um instante depois dei-me

conta do ato e meu espanto não teve limites.

— Dupin – disse eu com gravidade –, isto passa as raias da minha compre-

ensão. Não hesito em dizer que estou maravilhado e mal posso dar crédito a

meus sentidos. Como é possível que soubesse você que eu estava pensando

em...? – Aqui detive-me para certicar-me, sem sombra de dúvida, se ele re-

almente sabia em quem pensava eu.

— ...em Chantilly? – disse ele. – Por que parou? Não estava você, justa-

mente, a pensar que o tamanho diminuto dele não se adequava à represen-

tação de tragédias?

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O imprevisível animal humano

33

Era esse precisamente o assunto de minhas reexões. Chantilly era um

antigo sapateiro-remendão da rua de S. Dinis que, anático pelo teatro, se

atrevera a desempenhar o papel de Xerxes, na tragédia de Crébillon, do

mesmo nome, tendo por isso merecido críticas violentas.

— Diga-me, pelo amor de Deus – exclamei –, qual oi o processo – se éque há algum – que o capacitou a sondar o íntimo da minha alma.

Eu estava, na verdade, mais surpreso do que desejava parecer.

— Foi o ruteiro – respondeu meu amigo – quem levou você à conclusão

de que o remendador de solas não tinha bastante altura para o papel de

Xerxes et id genus omne.

— O ruteiro?! Você me assombra... Não conheço ruteiro de espécie

alguma.

— O homem que lhe deu um encontrão, quando entramos nesta rua há

talvez 15 minutos.

Lembrei-me então de que, de ato, um ruteiro, carregando na cabeça um

grande cesto de maçãs, quase me derrubara acidentalmente, quando haví-

amos passado na rua C... para a avenida em que nos achávamos. Mas o que

tivesse ido que ver com Chantilly é que eu não podia compreender.

Não havia em Dupin uma partícula sequer de charlatanice.

— Vou explicar – disse ele – e, para que você possa primeiro compreen-

der tudo claramente, vamos primeiro retroceder, seguindo o curso de suas

meditações, desde o momento em que lhe alei, até o do encontrão com o

tal ruteiro. Os elos mais importantes de cadeia são estes: Chantilly, Órion, Dr.

Nichols, Epicuro, a estereotomia, as pedras da rua, o ruteiro.

Há bem poucas pessoas que não tenham, em algum momento de sua

vida, procurado divertir-se remontando os degraus pelos quais atingiram

certas conclusões particulares de suas ideias. Esta ocupação é, não poucas

vezes, cheia de interesse e o que a experimenta pela primeira vez ca admi-

rado diante da aparente distância ilimitada e da incoerência que há entre o

ponto de partida e a chegada. Qual não oi pois o meu espanto quando ouvi

o rancês alar daquela maneira, e não pude deixar de reconhecer que ele

havia alado a verdade. Continuou:

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Linguagem e Pensamento

— Estávamos conversando a respeito de cavalos, se bem me lembro,

 justamente antes de deixar a rua C... Foi o último assunto que discutimos.

Ao cruzarmos na direção da avenida, um ruteiro, com grande cesto sobre a

cabeça, passando a toda pressa à nossa rente, lançou você de encontro a um

monte de pedras soltas, escorregou, torceu levemente o tornozelo, pareceu

aborrecido ou contrariado, resmungou umas palavras, voltou-se para olharo monte de pedras e depois continuou a caminhar em silêncio. Não estava

particularmente atento ao que você azia, mas é que a observação se tornou

para mim, ultimamente, uma espécie de necessidade. Você manteve os olhos

xos no chão, olhando, com expressão mal-humorada, os buracos e sulcos

do pavimento (de modo que vi que você continuava pensando ainda nas

pedras), até que alcançamos a pequena travessa Lamartine, que oi calçada, a

título de experiência, com tacos de madeira, solidamente reajustados e xos.

Ali, sua sionomia se iluminou e percebendo que seus lábios se moviam, não

tive dúvida que você murmurava a palavra esterotomia, sem vir a pensar em

átomos e portanto nas teorias de Epicuro. Como não az muito tempo que

discutimos este assunto, lembro-me de lhe haver mencionado quão singu-

larmente, embora muito pouco notado, as vagas conjecturas daquele nobre

grego tinham tido conrmação, com a recente cosmogonia nebular, e vi que

você não se conteve e erguesse os olhos para a grande nebulosa de Órion,

coisa que eu esperava que você não deixaria de azer. Você olhou, pois, para

cima e tinha então a certeza de haver acompanhado estritamente o o de suas

ideias. Naquela crítica erina que apareceu a respeito de Chantilly, ontem, noMuseu, o satirista, azendo algumas maldosas alusões à mudança de nome

do remendão ao calçar coturnos, citou um verso latino, a respeito do qual

temos tantas vezes conversado. Rero-me ao verso Perditit antiquum litera

 prima sonum, que, segundo expliquei a você aludia a Órion, que antigamente

se escrevia Urion, e, por causa de certa mordacidade, ligada a esta explicação,

estava eu certo de que você não poderia tê-la esquecido. Era, portanto, bem

claro que você não deixaria de combinar as duas ideias de Órion e Chantilly.

Que você as havia combinado vi pela espécie de sorriso que lhe pairou nos

lábios. Pensou na imolação do pobre remendão. Até então estivera você a

caminhar meio curvado, mas naquele momento você se endireitou, cando

bem espigado, a toda altura. Certiquei-me então que você estivera pensan-

do na pequena estatura de Chantilly. Neste ponto interrompi suas medita-

ções para observar que, como, de ato, era ele um sujeito muito baixo, o tal

Chantilly daria melhor para representar no teatro de variedades.

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O imprevisível animal humano

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Atividades1. Qual o principal motivo para que o proessor precise estar constantemente

atento para o quanto os seus alunos estão compreendendo de suas palavras?

2. Por que diversicar as oertas de conteúdos e de tipos de atividades em umasala de aula é importante?

3. Por que não é lícito que um proessor se sinta o dono da verdade?

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Linguagem e Pensamento

Dicas de estudoRIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na ala de uma

criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura:  múltiplos

olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 219-233.

Analisando exemplos concretos de diálogos entre adultos e uma mesma

criança em dois dierentes momentos de sua vida (aos dois e aos sete anos),

nesse trabalho procuramos mostrar como a propriedade de a linguagem causar

o equívoco nas trocas verbais não é, ao contrário do que parece, uma coisa ne-

gativa. Se bem utilizada, pode, inclusive, acabar sendo solidária com o exercício

da expressão verbal criativa e espirituosa, podendo prestar-se como importante

auxiliar na construção de uma relação menos autoritária entre adulto e criança.

POSSENTI, Sírio. Os Humores da Língua: análises linguísticas de piadas. Campi-nas: Mercado de Letras, 1998.

Aprender muito sobre a linguagem e seu uncionamento e, ainda por cima,

dar boas gargalhadas é o que o leitor conseguirá como lucro ao estudar o livro

de Possenti. Com um estilo claro e bastante didático, o autor parte de exemplos

de peças linguísticas concretas – no caso, textos de piadas – para mostrar os

dispositivos linguísticos utilizados comumente para azer rir. Aqui vai uma das

piadas analisadas por Sírio para animá-lo para a leitura:

— Sabe o que o passarinho disse pra passarinha? 

— Não.

— Qué danoninho? 

Gostou? Então leia o livro para entender por que a onologia é um importan-

te recurso na concepção dessa piada, bem como no desvelamento dos modos

pelos quais ela nos az rir.

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O imprevisível animal humano

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Você já parou para pensar em quantas pequenas mentiras inocentesestamos prontos a contar ao longo do dia em nome da manutenção de

nossa boa convivência social? Estamos tão acostumados com esse tipo de

procedimento que sequer chamamos essas pequenas omissões de menti-

ra. Por exemplo, se o seu superior hierárquico chega bravo, perguntando

“Por que você não começou a tarea que eu lhe pedi ainda?”, parece-nos

pereitamente normal responder algo como “Hoje o dia oi muito corrido!”

quando a resposta verdadeira seria: “Estou morta de preguiça!”.

Não pense você que nascemos sabendo nosutilizar desses dispositivos retóricos em nome da

diplomacia. Quando somos muito pequenos, ainda

inocentes, costumamos responder tudo o que nos

vem à cabeça, mesmo quando uma pergunta em-

baraçosa é eita. Todo mundo já deve ter presencia-

do uma resposta do tipo “Porque não ui com sua cara!” quando um adulto

imprudente perguntou a um molequinho “Por que você não me deu um

beijo?”.Ou seja: quando somos crianças, utilizamos a linguagem primordial-

mente para nos comunicar, para dizer, com clareza, a parcela de nossos

pensamentos que conseguimos atingir. Isso porque, na nossa inocência,

conamos em todo mundo e não calculamos que, às vezes, um prejuízo

a nossa imagem pode ter resultados catastrócos para o andamento da

nossa vida.

Como éramos ingênuos! Desconhecíamos a ironia, a denegação, a

ocultação deliberada de nossas ideias, as convenções sociais – enm, tudoaquilo que az com que, em grande parte da vida da sociedade, usemos

uma língua justamente para ocultar o que estamos pensando. Quem tem

dúvida sobre isso se lembre do que respondeu a última vez que sua chee,

com quem você tem mantido relações delicadas, acabou de cometer um

desastre total no cabelo e perguntou entusiasmada: “Não cou lindo?”.

Numa situação dessas, pensar rápido nos leva, justamente, a encontrar

Que eeito temsobre você um

adulto que alatudo o que pensa,doa a quem doer?

Concepção do homemcomo ser de linguagem

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Linguagem e Pensamento

uma orma polida de não contrariar a dama, se ormos escrupulosos, sem exata-

mente mentir, dizendo algo como “De ato, você mudou bastante!”.

Ou seja, mais tarde, aprendemos que a vida social tem muito mais detalhes

do que podíamos alcançar em nossa inexperiência. Quando adultos, usamos as

palavras para lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situação a nosso

avor, acalmar-nos e muitas outras unções que, legitimamente, não podem serchamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar as pa-

lavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse manter as

inormações que possuímos no mais absoluto sigilo.

Por um motivo ou por outro, que uma coisa que clara: é o exercício da lin-

guagem, ou na argumentação ou na tentativa de manter nossa privacidade in-

tocada, que nos ajuda a perceber nossa identidade, nosso direito a um espaço

próprio, cuja conquista deve se renovar todos os dias, na luta intransigente

contra os ooqueiros, os intrometidos, as pessoas que gostam de se aproveitardos outros e assim por diante.

Por esse motivo, o objetivo deste capítulo é convidá-lo para se aproximar do con-

ceito de linguagem tal como é visto no interior dos estudos linguísticos. Trata-se da

ideia de que a linguagem é um sistema articulado que, consistindo em uma aculda-

de especíca do ser humano, ornece-lhe sua essência de ser de linguagem.

A linguagem é o que dá o nosso contornoDa perspectiva que ora adotamos, a linguagem é aquilo que transorma cada

ser humano que vem ao mundo em humano. Trata-se de uma atividade exclusi-

va do homem, que, ao constituí-la, organiza seu mundo e suas relações sociais

e, a partir dessa organização, dá um estilo peculiar aos seus modos de expressão

em diversas instâncias. Se não tivéssemos a linguagem, dicilmente ormaría-

mos amílias que se mantêm por um longo tempo ou realizaríamos sonhos de

inância ou enterraríamos nossos mortos.

De onde partiu esse modo de ver as coisas? A ormalização de um modo de

ver a linguagem como sendo parte da natureza especíca do homem encontra-

-se nas ideias que o linguista rancês Émile Benveniste (1902-1976) pôde criar e

registrar na passagem da década de 1960 para a de 1970. Na impossibilidade de

expor aqui toda a extensa obra desse autor, vamos nos limitar a dois de seus tra-

balhos, que tematizam o ato de que o uso de uma linguagem é uma capacidade

meramente humana e oram publicados originalmente em 1952 e em 1958.

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Concepção do homem como ser de linguagem

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É, portanto, “na linguagem e pela lingua-

gem que o homem se constitui como sujeito”

(BENVENISTE, 1988, p. 286). Lendo esse rag-

mento que acabamos de citar, esperamos

que o leitor perceba que, para esse autor, homem e linguagem ormam uma

unidade indecomponível, uma vez que, tirando-se a linguagem de um sujeito,pouco mais lhe resta de dierente dos animais. Consequentemente, não é aqui o

caso de pensar o homem como alguém que tem a linguagem, mas, ao contrário,

de concebê-lo como alguém que é eito por ela.

Admitir a ideia de que somos “seres de linguagem” exige abandonar a con-

cepção de que a linguagem verbal é um instrumento de comunicação como

outro qualquer, como, por exemplo, a utilização dos sinais de umaça entre os

indígenas. Benveniste trabalhou duramente para convencer seus pares de que

esse modo de ver as coisas consistia em um erro. Para ele, humano e linguagemsão eitos da mesma matéria, não podendo ser separados um do outro.

O corajoso rancês se aastou, portanto, da concepção de linguagem que

estava em alta naquela época armando que, ao se reetir sobre a linguagem,

não se pode criar uma ilusão segundo a qual ela estaria ora da natureza humana.

Assim discorre o estudioso:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a.Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência dooutro. É um homem alando que encontramos no mundo, um homem alando com outro

homem, e a linguagem ensina a própria denição do homem. (BENVENISTE, 1988, p. 285)

De acordo com Benveniste, ao inserirmos um jovem humano no sistema lin-

guístico e na produção linguageira, que nossa cultura vem acumulando ao longo

do tempo, estamos azendo com que esse pequeno animal se torne um homem.

A linguagem tem nessa missão a dupla tarea de azer de um humano aquilo que

ele é e, para além disso, de ornecer-lhe os dispositivos para se reconhecer como

um eu, para ter uma identidade.

Compreendendo que uma pessoa só pode se anun-

ciar como sujeito quando se reere a si próprio por meio

da utilização da primeira pessoa do singular (eu), o autor

az uma importante armação sobre o undamento da subjetividade:

“É portanto verdade ao pé da letra que o undamento da subjetividade está no exercício dalíngua. Se quisermos reetir bem sobre isso, veremos que não há outro testemunho objetivoda identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele sobre si mesmo.” (BENVENISTE,1988, p. 288)

A linguagem humana é muitomais do que um instrumento

de comunicação.

Se bicho não ala, oque é que ele az?

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Linguagem e Pensamento

Ou seja: poder reerir-se a si próprio, compreendendo-se como dierente de

todos os demais de sua espécie, é prerrogativa do homem, uma vez que, sendo

eeito de linguagem, não é compartilhada com nenhum outro ser vivo.

Neste ponto da reexão, é comum que ocorra ao leitor a seguinte dúvida: se

não podemos chamar de linguagem aquilo que um animal az, como podemos

compreender os enômenos de comunicação que, com certeza, estão lá presen-tes? Neste momento, as ideias de Benveniste (1952) também são importantes o

suciente para que nela nos detenhamos com mais detalhes.

Alguns traços da linguagem humanaBenveniste sempre oi muito claro ao armar que, aplicada ao mundo animal,

a noção de linguagem só tem crédito por um abuso de termos. Mesmo quando

emitem ruídos, como é o caso do papagaio, eles não conguram um modo deexpressão que tenha os caracteres e as unções da linguagem humana. Ao entrar

em contato com alguns estudos que biólogos vinham azendo para elucidar o

comportamento das abelhas, viu aquela sua certeza vacilar e teve necessidade

de se aproundar mais nessa comparação.

Por um momento, teve sua certeza abalada ao considerar que, como tudo

parecia indicar, as abelhas tinham um modo muito ecaz de se comunicarem

entre si, a saber:

Uma abelha operária colhedora, encontrando, por exemplo, durante o voo uma soluçãoaçucarada por meio da qual cai numa armadilha, imediatamente se alimenta. Enquanto sealimenta, o experimentador cuida em marcá-la. A abelha volta depois à sua colmeia. Algunsinstantes mais tarde, vê-se chegar ao mesmo lugar um grupo de abelhas entre as quais nãose encontra a abelha marcada e que vêm todas da mesma colmeia. Esta deve haver prevenidoas companheiras. É realmente necessário que estas hajam sido inormadas com precisão, poischegam sem guia ao local que se encontra, requentemente, a grande distância da colmeiae sempre ora de sua vista. Não há erro nem excitação na localização: se a primeira escolheuuma or entre outras que poderiam igualmente atraí-la, as abelhas que vêm após a sua voltase atirarão a essa e abandonarão as outras. Aparentemente, a abelha exploradora indicou àscompanheiras o lugar de onde veio. (BENVENISTE, 1988, p. 61)

Retomando os estudos de Karl von Frisch, o autor descobriu, então, que asabelhas conseguem ser muito precisas no repasse de dados, tais como distância

da or encontrada, sua posição exata e a natureza do achado por meio da dança.

Ou seja: as abelhas conseguem comunicar-se com seus pares transmitindo inor-

mações úteis para a sobrevivência da espécie, mas não o azem com o auxílio de

qualquer tipo de interação verbal.

Descobrir isso sanou a dúvida de Benveniste. Conclusivamente, para ele, a

comunicação animal e a linguagem humana são bastante diversas em relação

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Concepção do homem como ser de linguagem

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a sua essência. O caráter especíco da primeira é “o de propiciar um substituto

da experiência que seja adequado para ser transmitido sem m no tempo e no

espaço, o que é típico do nosso simbolismo e o undamento da tradição linguís-

tica” (BENVENISTE, 1988, p. 56). Verique, no quadro 1, uma sinopse da compa-

ração eita pelo autor.

Quadro 1– Comunicação das abelhas versus linguagem humana

Comunicação da abelha Linguagem humana

Comunicação gestual: a mensagem é restrita àdança, sem intervenção de um aparelho vocal.

Comunicação vocal: a mensagem restrita tema voz como seu principal suporte.

Só ocorre em condições que permitem a per-cepção visual.

Não sore os limites da percepção visual.

Sua mensagem não provoca qualquer tipo deresposta no ambiente, não há diálogo.

Falamos com aqueles que nos alam, ou seja,sempre provocamos algum tipo de resposta

no ambiente.

Não há possibilidade de reprodução da men-sagem desvinculada do testemunho empíri-co, da experiência objetiva.

No diálogo, a reerência à experiência objetivae a reação à maniestação linguística se mistu-ram ao innito, livremente.

Não é possível analisar a mensagem das abe-lhas: podemos ver apenas seu conteúdo global.

Caracteriza-se pela capacidade de ser poten-cialmente innita, uma vez que, cada enun-ciado permite análise e rearranjo de suas par-tes com as de outros enunciados.

Trata-se de um código de sinais. Vai muito além de um código de sinais, umavez que é onte de criatividade.

A linguagem antes dos trabalhos de BenvenisteAté o século XIX, antes que os estudos de gramática comparada estivessem

se solidicado, pensava-se que uma língua é uma coletânea de palavras que, ao

darem nome aos objetos do mundo, serviam para a expressão do pensamento.

Essa visão da linguagem, como uma espécie de coleção de palavras, oi su-

perada quando, de 1907 a 1911, Ferdinand de Saussure oereceu na Universida-de de Genebra três cursos nos quais transmitiu oralmente os undamentos da

linguística moderna. Combatendo a visão do leigo, ele substituiu o conceito de

palavra pelo de signo linguístico, ou seja, a menor unidade completa que tem um

signicado.

No quadro 2, o leitor encontrará de orma esquemática o modo pelo qual

Saussure concebeu o signo linguístico.

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Linguagem e Pensamento

Quadro 2 – Composição do signo linguístico

Signo Linguístico:Signicante

Signicado

Analisando a composição do signo linguístico registrada no quadro 2, pode-

mos perceber que Saussure, pela primeira vez, pôde perceber que a palavra não é

monolítica. Ao contrário, trata-se de uma unidade de duas aces, conorme segue:

O signifcante – trata-se da “imagem acústica” de uma palavra, isto é, aqui-

lo que nossos ouvidos captam e o cérebro registra, mesmo que não en-

tendamos a língua em questão. Apenas por amor à clareza, propomos a

seguinte situação para exemplicar: se você, leitor, não ala nem entende

nenhuma palavra de japonês e acaba de chegar em Tóquio, você vai ou-

vir muitas “palavras”, mas não vai entender nenhuma, ou seja, não vai ter

acesso ao signo como um todo. Os sons articulados que saem da boca dos

 japoneses e chegam aos seus ouvidos são os seus signicantes.

O signifcado – trata-se do conceito ao qual a palavra remete. Quando temos

conhecimento de mundo, podemos muito bem discutir o conceito veicula-

do por um dado signicante, mesmo que não conheçamos a língua na qual

ele oi originariamente cunhado, uma vez que os signicados relacionam-se

ao campo das ideias, e não de uma ou outra língua em particular. Desse

modo, voltando para nosso exemplo de sua chegada em Tóquio, você pode

muito bem, digamos, discutir o signicado do haraquiri na cultura tradicio-

nal japonesa com o primeiro japonês que ale português que você encon-

trar, mesmo que não aprenda a pronunciar a palavra corretamente.

Por meio dessa dissociação, Saussure pôde

dar um segundo passo bastante importante

para a linguística moderna: postular que não

há correspondência exata entre signicantes e

signicados. Esse deslocamento é muito importante para que reitamos sobre as

complexas relações entre pensamento e linguagem, uma vez que, a partir dele,

Saussure nos mostra que não há qualquer possibilidade de recobrimento dos ob-

 jetos do mundo e de nossos pensamentos utilizando nossas palavras. Vale dizer:

a partir das elaborações da linguística, sabemos que nossos pensamentos são

sempre ugidios e apenas parcialmente compartilháveis como nossos pares.

A esta altura, o leitor deve estar se perguntando como os humanos chegam

a se entender. Trata-se de uma excelente questão, uma vez que ela nos remete a

Se a relação signicante esignicado é rágil, como

chegamos a nos entender?

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Concepção do homem como ser de linguagem

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uma ordem maior que organiza as palavras e az com que, mesmo não alando a

mesma língua, possamos azer algum tipo de troca de ideias: a linguagem como

um sistema.

Saussure nos mostrou que os signicados podem ser compartilhados entre

nós não por remeterem a objetos do mundo, mas por uncionarem dentro de

uma lógica de ordenamento de signicantes. Para o autor, ao se oporem uns aosoutros em uma rede de relações, os signicantes acabam por adquirir um valor  

linguístico, isto é, acabam por azer sentido para nós.

Saussure explica essa noção por meio de uma bela metáora: a do jogo de

xadrez. Comparando uma palavra a uma peça do jogo (no caso, o cavalo), o

autor nos explica que, para que o jogo uncione, pouco importa a peça em si,

mas o ato de que os dois jogadores tenham pactuado de que se trata de uma

peça legítima. Em beneício da clareza, transcrevemos um trecho do autor:

Tomemos um cavalo; será por si só um elemento do jogo? Certamente que não, pois, na suamaterialidade pura, ora de sua casa e das outras condições do jogo, não representa nada parao jogador e não se toma elemento real e concreto senão quando revestido de seu valor eazendo corpo com ele. Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa peça venha a serdestruída ou extraviada: pode-se substituí-la por outra equivalente? Decerto: não somente umcavalo, mas uma gura desprovida de qualquer parecença com ele será declarada idêntica,contanto que se lhe atribua o mesmo valor. Vê-se, pois, que nos sistemas semiológicos, comoa língua, nos quais os elementos se mantêm reciprocamente em equilíbrio de acordo comregras determinadas, a noção de identidade se conunde com a de valor, e reciprocamente.Eis porque, em denitivo, a noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e derealidade. (SAUSSURE, 1962, p. 128)

Lendo o extrato acima, é importante o leitor perceber que o principal deslo-camento causado pela ciência linguística oi mostrar que as palavras em si não

signicam absolutamente nada: se podemos usá-las para suporte de nosso pen-

samento, é justamente na medida em que elas se encontram organizadas em

um sistema (a linguagem, a cultura) que lhes dá consistência.

Concluindo, por meio de um percurso de mais de 100 anos dessa ciência,

omos paulatinamente compreendendo que a linguagem é, ao mesmo tempo,

o que nos une e o que nos separa das coisas e das pessoas. Liga-nos ao mundo

porque ornece um aparelho por meio do qual podemos manter o contato coma realidade: a possibilidade de nomear os objetos. Por outro lado, a linguagem

nos separa dos objetos justamente porque nos torna dependentes de um con-

ceito para apreendê-lo. Traduzindo: se é verdade que “o que os olhos não veem

o coração não sente”, não é menos verdade que “o que a linguagem não nomeia

a percepção não registra”.

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Linguagem e Pensamento

    I    E    S    D    E    B   r   a   s    i    l    S .

    A .

Texto complementar

Teoria do medalhão(ASSIS, 1994)

— Estás com sono?

— Não, senhor.

— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

— Onze.

— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peral-

ta, chegaste aos teus 21 anos. [...] Não te ponhas com denguices, e alemos

como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importan-

tes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma,

podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na

indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há innitas carreiras diante de

ti. [...]. Mas qualquer que seja a prossão da tua escolha, o meu desejo é que

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Concepção do homem como ser de linguagem

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te aças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da

obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são

poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que

se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida [...].

— Sim, senhor.— Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a ve-

lhice, assim também é de boa prática social acautelar um oício para a hipó-

tese de que os outros alhem, ou não indenizem sucientemente o esorço

da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

— Creia que lhe agradeço; mas que oício, não me dirá?

— Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão

oi o sonho da minha mocidade; altaram-me, porém, as instruções de um pai,e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças

que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido lho, ouve-me e entende. [...]

— Entendo.

— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo

o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O

melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginan-

do, por exemplo, um ator deraudado do uso de um braço. Ele pode, por um

milagre de artiício, dissimular o deeito aos olhos da plateia; mas era muito

melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violên-

cia, abaá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum,

nem tão constante esorço conviria ao exercício da vida.

— Mas quem lhe diz que eu...

— Tu, meu lho, se me não engano, pareces dotado da pereita inópia

mental, conveniente ao uso deste nobre oício. Não me rero tanto à deli-

dade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice--versa, porque esse ato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim

pode não passar de uma traição da memória. Não; rero-me ao gesto correto

e perlado com que usas expender rancamente as tuas simpatias ou antipa-

tias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger

ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança.

No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser aigido de

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Linguagem e Pensamento

algumas ideias próprias, urge aparelhar ortemente o espírito. As ideias são

de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as soremos, elas irrom-

pem e precipitam-se. [...]

— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.

— Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler com-pêndios de retórica, ouvir certos discursos etc. [...] O bilhar é excelente. [...] Se

te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escru-

pulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham

as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio

e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado,

porque a solidão é ocina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora

no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?

— Não az mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em

que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmos-

era do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias

ao nosso m; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de

quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver

a diculdade de um modo simples: vai ali alar do boato do dia, da anedota

da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer

coisa. [...] Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamosdois anos –, reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à

disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está

subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apou-

cado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...

— Podes; podes empregar umas quantas guras expressivas. [...] Senten-

ças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, éde bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de elicitação,

ou de agradecimento. [...] Alguns costumam renovar o sabor de uma citação

intercalando-a numa rase nova, original e bela, mas não te aconselho esse

artiício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso,

porém, que anal não passa de mero adorno, são as rases eitas, as locuções

convencionais, as órmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória

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Concepção do homem como ser de linguagem

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individual e pública. Essas órmulas têm a vantagem de não obrigar os outros

a um esorço inútil. Não as relaciono agora, mas á-lo-ei por escrito. [...]

— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de pro-

cessos modernos.

— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmodirei de toda a recente terminologia cientíca; deves decorá-la. Conquanto o

rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ci-

ências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais

tarde, convém tomar as armas do teu tempo. [...]

— Upa! que a prossão é diícil!

— E ainda não chegamos ao cabo.

— Vamos a ele.

— Não te alei ainda dos beneícios da publicidade. A publicidade é uma

dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à orça de pequenos mimos,

coneitos, almoadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância

do aeto do que o atrevimento e a ambição. Que Dom Quixote solicite os

avores dela mediante, ações heroicas ou custosas, é um sestro próprio desse

ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inven-

tar um Tratado científco da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o

aos amigos sob a orma de um jantar, cuja notícia não pode ser indierente

aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o

teu nome ante os olhos do mundo. [...] Percebeste?

— Percebi. [...] Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada ácil.

— Nem eu te digo outra coisa. É diícil, come tempo, muito tempo, leva anos,

paciência, trabalho, e elizes os que chegam a entrar na terra prometida! [...]

— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

— Nenhuma; antes aze correr o boato de que um tal dom é ínmo.

— Nenhuma losoa?

— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Fi-

losoa da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com

requência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam

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Linguagem e Pensamento

as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reexão, originali-

dade etc. etc.

— Também ao riso?

— Como ao riso?

— Ficar sério, muito sério...

— Conorme. Tens um gênio olgazão, prazenteiro, não hás de soreá-lo

nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer me-

lancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente

– e este ponto é melindroso...

— Diga...

— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto daboca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraí-

do por Luciano, transmitido a Swit e Voltaire, eição própria dos céticos e de-

sabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha,

redonda, ranca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros,

estala como uma palmada, az pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso

os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?

— Meia-noite.

— Meia-noite? Entras nos teus 22 anos, meu peralta; estás denitivamen-

te maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu lho.

Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale O príncipe de Maquia-

vel. Vamos dormir.

Atividades

1. Por que, quando se trata do humano, a linguagem não pode ser reduzida aoseu aspecto comunicativo?

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Concepção do homem como ser de linguagem

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2. Por que motivo é equivocada a perspectiva segundo a qual um proessor

precisa sempre se apoiar no concreto e trabalhar apenas com as coisas co-

nhecidas por seus alunos?

3. Por que é necessário transcender o nível da experimentação prática – por

exemplo, quando propomos exercícios de completar lacunas com os tem-

pos de verbo corretos – e levar os nossos alunos a, a partir dela, a construir

conceitos?

Dicas de estudoDUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico das Ciênciasda Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.

Obra undamental para o leitor iniciante que se interessou por aproundar

seu estudo sobre a linguagem, esse dicionário discorre sobre as principais esco-

las, expõe os domínios da pesquisa sobre a linguagem e, nalmente, explica de

modo claro e compreensível os principais conceitos metodológicos e descritivos

com os quais a linguística trabalha.

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Geralmente, se uma pessoa ala sem pensar, logo aparece algum conhe-cido pronto para diagnosticá-la: “Fulano parece uma criança!”. Maldade à

parte, essa pessoa que ez a crítica tem certa razão naquilo que diz, uma vez

que demora muito para conquistarmos a capacidade de nos distanciar de

nossa própria ala e analisar nossos modos de expressão e de pensamento.

Mesmo respeitando as variações indivi-

duais de ritmo do desenvolvimento humano,

a capacidade de tomar a linguagem como

objeto especíco de análise é uma conquis-ta que raramente ocorre antes do término da

chamada “primeira inância”, uma vez que depende de um longo processo

de inserção do jovem na cultura em que vive.

Quando muito pequeno, o ser humano pode alar, mas não pode escu-

tar de orma crítica e distanciada o que ele mesmo diz. É justamente por

essa razão que, em toda parte, circulam piadinhas sobre o caráter extrava-

gante do raciocínio das crianças. Essas piadas podem ser muito divertidas,

mas em si não nos ajudam muito a transcender a denúncia da ingenuida-de dos pequenos em nossas conversas em diversos âmbitos.

Entretanto, é preciso azê-lo. Se quisermos entender melhor como a

mente humana unciona, nós, prossionais da educação, necessitamos

nos interrogar sobre as causas dessa diculdade.

Como o objetivo aqui é elucidar algumas das dierenças entre o pen-

samento dos pequenos e dos adultos, vamos iniciar o trabalho ao qual

nos propomos neste capítulo nos deleitando com alguns exemplos quemostram o modo dierente da criança pensar sobre a língua.

Eles oram recortados da comunidade virtual Criança Diz cada Uma, que

consiste em um ponto de encontro virtual baseado “na coluna que o aleci-

do jornalista e dramaturgo Pedro Bloch escrevia na extinta revista Manche-

te, contando histórias engraçadas e inusitadas acontecidas com crianças”.

A página de abertura convida os seus participantes a darem depoimento

Por que,requentemente, o quea criança pequena diz

nos parece exótico?

Analisar os modos de alar e de pensar:exclusividade do ser humano

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Linguagem e Pensamento

sobre o que merece ser registrado do que seus lhos andam alando. Está hospe-

dada no site de relacionamentos pessoais Orkut.1

Para ilustrar nosso trabalho, selecionamos alguns ragmentos de textos que

podem ser encontrados em um dos tópicos do órum da comunidade virtual, ini-

ciado em 18 de setembro de 2005. Trata-se do seguinte: uma das participantes

instigou os participantes a completarem a seguinte rase “Quando eu era criançaeu pensava que...” Esse órum destacou-se porque, ao ler seu conteúdo, torna-se

evidente que aqueles que aceitaram o convite da proponente oram orçados a

se lembrar do período de sua vida no qual ele teve predominantemente pensa-

mentos exóticos e inconsistentes.

Vejamos alguns ragmentos desses depoimentos, transcritos no quadro 1, do

modo como oram escritos pelos participantes da comunidade.

Quadro 1 – Fragmentos de depoimentos dos participantes da comunidadevirtual “Criança Diz cada Uma”

AndréaCara, quando eu era criança eu pensava que cheque sem undo era algumtipo de cheque sem nada no undo, com um buraco...

Ana Selene

Uma amiga da minha mãe disse braba, enquanto esperávamos para atra-vessar a rua: “tem que morrer um para eles colocarem uma sinaleira”. Todavez que eu via um sinal de trânsito, eu cava com pena da pessoa que tinhamorrido naquele lugar.

Camila

Eu achava que “Grande Elenco” era um ator muito amoso, como o GrandeOtelo. Só que eu nunca o tinha visto ainda porque ele era um ator de teatro,sempre citado junto com os melhores atores: Fernanda Montenegro, PauloAutran, e Grande Elenco!

Zé RobertoMirocecê, eu achava que isso era o lugar de origem da dona Francisca!

“atirei o pau no gato-to/ mas o gato-to/ nao morreu-rreu-rreu/ dona Chica-ca/ dimiro-se-se/ do berro/ do berro/ que o gato deu... miau!”

Esperamos que os exemplos acima, muito saborosos, tenham lhe causado riso!

Agora, perceba que, em todos eles, nosso riso oi causado por um mesmo motivo:

trata-se de um equívoco por parte da criança, que toma algumas expressões, se assim

podemos dizer, ao pé da letra, ou seja, do modo como chegam aos seus ouvidos.Os signicados “errados” atribuídos pela criança às expressões “cheque sem

undo” e “grande elenco” oram, muito provavelmente, causados por uma igno-

rância vocabular e cultural. Ou seja: sem conhecer o signicado culturalmen-

te partilhado dessas expressões, a criança criou, do jeito que pôde, algum jeito

para se virar com seu desconortável desconhecimento.

1Ressalvando que só podem entrar neste site as pessoas que orem convidadas por um amigo, inormamos que os excertos que se seguem estão

disponíveis no seguinte endereço: <http://ww w.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=68850&tid=2970165>. Acesso em: 18 set. 2005.

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Analisar os modos de alar e de pensar: exclusividade do ser humano

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Por sua vez, embora semelhante, o nascimento

da cidade “Mirocecê” é um pouco mais complexo.

Em primeiro lugar, é evidente que a criança des-

conhece o signicado do verbo “admirar”. Em segundo lugar, não oi capaz de

delimitar onde começava e onde terminava uma palavra, ato esse que nos in-

dicia que essa criança também não era capaz, naquela ocasião, de reconhecer a

unção do pronome reexivo se, o que acabou azendo com que ela ignorasse o

padrão da canção, que é o da repetição da última sílaba das palavras.

O que esses exemplos nos mostram? Esses exemplos nos mostram que, como

a linguagem humana é, por assim dizer, escorregadia quando ainda não temos a

vivência cultural de um adulto, não conseguimos analisar convenientemente os

segmentos que compõem os enunciados e, por esse motivo, não nos é possível

nem delimitar convenientemente seus segmentos nem articulá-los de modo

adequado com os demais segmentos que compõem o enunciado.

É importante ressaltar que, por esse motivo, enquanto não nos é possível

manter um certo distanciamento das palavras que alamos, nosso pensamento

tende a ser, ao mesmo tempo, limitado e limitante, uma vez que, para poder

criar, é necessário, antes de tudo, interrogar a realidade que nos circunda.

A capacidade para a refexão

linguística se ganha na culturaA capacidade de interrogar os modos de dizer que são habituais na comuni-

dade em que vivemos é uma tarea bastante complexa. É, mais ou menos, como

tentar se lembrar, depois de uns 30 minutos, por qual mecha você começou a

desembaraçar seus cabelos no meio do banho. Isto é, quando estamos imersos

em uma prática, nós a automatizamos e, consequentemente, ela praticamente

se torna invisível para nós.

Para aproundar um pouco mais essa ideia, vamos agora explorar o trabalho deBlikstein (1990, p. 86), que escreveu um livro visando cutucar um pouco a nossa

inércia e levar-nos a uma interrogação sobre nossa “conortável ilusão reerencial”.

Para azê-lo, o autor partiu das seguintes perguntas que vêm sendo repetidas

há muitos séculos: “Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com

a realidade extralinguística: como é possível conhecer a realidade por meio de

signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?”

O que esses exemplosnos mostram?

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Linguagem e Pensamento

(BLIKSTEIN, 1990, p. 71). Retomar aqui essas questões antigas se justica porque

elas vêm nos mostrando que, no processo da cognição, há uma insuciência da

relação entre signo e coisas.

Essa insuciência vem sendo insistentemente assinalada na linguística,

na psicologia, na antropologia, na teoria do conhecimento etc., tendo gerado

inúmeras tentativas de construção de modelos teóricos que possam servir demodos pelos quais possamos nos aproximar da intrincada relação entre a lin-

guagem e as coisas.

Um dos modelos mais clássicos para explicar como pensamento e lingua-

gem estão entrelaçados é o triângulo de Odgen e Richards, criado em 1956 (ver

gura 1 ). Segundo Blikstein, oi esse triângulo que deu origem a uma tendência

dominante na linguística moderna: considerar a língua como “organizadora da

estrutura conceitual do universo, e já se tornou lugar comum armar que ela é

o ‘molde do pensamento’ ou ‘o instrumento de análise ou recorte da realidade’”(BLIKSTEIN, 1990, p. 40).

Reerência oupensamento

Símbolo(signicante)

Reerente (coisa ouobjeto extralinguístico)

Figura 1 – O triângulo de Odgen e Richards.

Quando surgiu, esse modelo despertou bastante interesse, uma vez que mos-trava claramente a existência de uma separação entre três instâncias:

o mundo real;

as palavras que usamos para nomear os objetos que lá se encontram; e

os pensamentos/percepções que podemos ter tanto de uma coisa quanto de

outra.

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Analisar os modos de alar e de pensar: exclusividade do ser humano

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Mesmo reconhecendo a pertinência dessa tripartição, Blikstein cou incomo-

dado com a ausência de uma reexão sobre a inuência da prática cultural em

nosso modo de ver as coisas. Por esse motivo, deendeu a necessidade de recupe-

rar o trabalho de Schaf (1974), articulando-o ao modelo já descrito, uma vez que

ele poderia nos ajudar a reormular a lição clássica a respeito das relações entre

linguagem, percepção e pensamento, tornando claro que tanto a percepção

quanto a linguagem estão indissoluvelmente ligadas à práxis social. Nas palavras

de Blikstein, a língua amarra a percepção, a cognição, e impede o indivíduo de ver

qualquer realidade que já não esteja previamente marcada em sua língua.

Você já ouviu alar do trabalho de Schaf? Trata-se de um pensador que

cou bastante amoso por suas tentativas de ligar a linguagem à práxis social.

Em especial, é bastante conhecido o seu exemplo que trata a percepção que

os esquimós têm da cor branca. Segundo o autor, essa população não vê a

neve em geral, do mesmo modo como aríamos nós que habitamos regiõestemperadas. Como, para eles, conhecer a neve muitíssimo bem consiste em

uma questão de vida ou de morte, os esquimós têm palavras para nomear

30 tipos de neve, pois distinguem-na de acordo com as diversas tonalidades

de branco que seus olhos conseguem distinguir. Bem dierente de nós, que,

basicamente, trabalhamos com as categorias “branco bem lavado” e “branco

encardido”, não é mesmo?

Mesmo concordando parcialmente com a conclusão do autor, não podemos

deixar de ressaltar que, com algum treino, muito trabalho e dedicação, somoscapazes de atravessar, em certa medida, os eeitos homogeneizadores da cul-

tura e tornar nossa vida mais reetida e nossos modos de pensar, mais criativos.

Mas isso não é coisa ácil! É preciso “suar a camisa” e investir na direção de tomar

a própria língua como objeto de análise.

A língua como objeto

de análise pode gerar muito prazerQuando cresce, o homem torna-se o único animal que tem o privilégio de

contar com esta grande onte de prazer: tomar sua língua materna como objeto

de reexão e nela eetuar transormações para criar “eeitos especiais”. Por exem-

plo, os humoristas que azem o chamado “humor inteligente” costumeiramente

utilizam-se desse recurso para nos azer rir. Leia, por exemplo, um ragmento de

uma das colunas do amosíssimo José Simão (2005).

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Linguagem e Pensamento

1 Brasil Urgente! Habeas corpus pra macaca. Um promotor baiano

pediu habeas corpus para uma macaca não car enjaulada no zoológico

de Salvador. HABEAS MACACUS! E quer devolver a macaca para seu

habitat em Sorocaba. O quê? Ela é de Sorocaba? E o que ela oi azer na

Bahia? Foi passar o Carnaval na Bahia e cou! Essa macaca vai acabar

entrando para o É o Tchan! e substituir a Scheila Carvalho!E depois do habeas corpus pra macaca, o Malu vai se sentir injusti-

çado! Depois do habeas macacus, o Malu vai pedir um HABEAS BRIMUS!

Rarará! E olha a notícia: “Malu chora e ameaça deixar a política”. Então

não é ameaça. Ameaça: “Malu chora e ameaça continuar na política”.

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Para pontuar apenas uma das muitas brinca-

deiras eitas por Simão nesse extrato, observe as

seguintes transormações eitas pelo humorista a

partir da expressão latina, que de ato existe e é usada na linguagem jurídica:habeas corpus (linha 1). Ao ironizar sobre um advogado que tomou uma macaca

como cliente, Simão inventou a expressão “habeas macacus” (linha 3) para nal-

mente, aludindo à etnia de Paulo Malu, que, na ocasião da escrita de sua coluna

havia sido recentemente preso, inventou ainda o habeas brimus (linha 8).

Brincar com a linguagem pressupõe a construção prévia de uma capacidade

que, como já vínhamos apontando, é exclusiva do humano: a possibilidade de

reetir também sobre a orma de expressão e não meramente sobre o conteúdo.

Para car mais clara qual a dierença entre uma ação e outra, propomos, nestemomento, a comparação entre os seguintes enunciados ctícios:

Locutor 1: Eu só bebo água mineral.

Locutor 2: A composição química da água é H2O, porém, quando ela recebe

esgotos, encontram-se também coliormes ecais, como é o caso desta amos-

tra que acabo de examinar.

Se, no primeiro dos casos, o locutor tem como tema especíco de sua enun-

ciação o seu gosto particular no que tange à água, no segundo, ao contrário,

nada sabemos sobre suas preerências. No segundo caso, sabemos que, após ter

realizado exames apropriados em uma amostra de água qualquer, um investiga-

dor pôde reerir-se à sua composição estrutural.

Trazer esse exemplo para o contexto especíco de nossa discussão deve aju-

dar-nos a sermos mais claros. Comparem, agora, os próximos enunciados.

Como alguémconsegue azer isso?

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Analisar os modos de alar e de pensar: exclusividade do ser humano

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Locutor 1: Eu só namoro homem bonito.

Locutor 2: Bonito é um adjetivo vago, uma vez que a determinação de seu

sentido depende do gosto pessoal do alante.

Do mesmo modo como aconteceu no primeiro par de exemplos, enquanto olocutor 1 ala uma rase que tem como objeto principal os seus gostos pessoais,

nada sabemos da pessoalidade do locutor 2. Mas, por outro lado, sabemos que

ele é maduro o suciente para conseguir reetir sobre a linguagem.

Ao se concretizar em uma língua que pode ser

alada ou escrita, a linguagem se torna passível de ser

observada, analisada e descrita com relação a sua es-

trutura e seus modos de uncionamento em dierentes tempos e espaços, mas

isso não é nada ácil. Exige uma experiência de vida na cultura que proporcioneao sujeito um repertório que lhe permita analisar devidamente os enunciados

que nela circulam.

Feitas todas as considerações precedentes, optamos por concluir esta ree-

xão sobre a capacidade de reetir sobre a língua de um modo um pouco die-

rente. Em vez de explicitar aqui a “moral da história”, que, esperamos, já cou

transparente para o leitor ao longo de sua leitura, deixaremos registrado um

exemplo que nos parece mostrar, de modo especialmente claro, a potência de

deslocamento que tem a reexão sobre a linguagem.Terminamos, então, com uma pequena história verídica, vivenciada por uma

garota de quase oito anos e alguns de seus amiliares. Ao lê-la, esperamos que

o leitor se sinta convocado a, em seu dia-a-dia, azer o mesmo tipo de trabalho

linguístico que oi eito pela menina e, desse modo, criar novas realidades.

É ácil refetirsobre a linguagem?

Um pequeno apólogo amiliar2

Aos sete anos e seis meses, já pronta para um passeio amiliar, L. brinca en-

tusiasmadamente com seu irmão menor. Pouco antes de sair, sua maria-chiqui-

nha despenca declaradamente. Aeita a pentear o cabelo em inversa proporção

a que é à pilhéria espirituosa, L. não chama sua mãe para reazer o penteado.

Ao notar o desastre, impaciente e já com pressa, seu pai lhe dirige abrupta-

mente a palavra:

2Conra trabalho anterior deste autor (Riol, 2005) para uma exploração mais aproundada desta historieta.

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Linguagem e Pensamento

— L., você vai sair com este cabelo mexido? Desmanchou tudo!

Impassível, a garota dirige-se para a porta com os cabelos no mesmo

estado e responde, sorridente:

— Ó, pai, “cabelo mexido”?!! “Cabelo mexido” deve ser o prato predileto

de canibal pobre...

Texto complementar

O enigma de Kaspar Hauser (1812[?]-1833):uma abordagem psicossocial

(SABOYA, 2001)

Trabalhando com a perspectiva histórico-cultural em psicologia, que en-

atiza que cada ser humano se constitui como uma pessoa totalmente única

(por suas experiências e sua história de vida) e que ressalta a importância das

práticas culturais na denição do desenvolvimento psicológico do sujeito,

buscou-se selecionar um personagem humano (Kaspar Hauser) que não cor-

respondia, na época em que viveu (séc. XIX), aos padrões de comportamentotidos ou esperados como “normais” dentro da cultura da época. Pretende-se

analisar neste trabalho o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser,

buscando a compreensão de atores que concorreram para a construção de

seu psiquismo. [...]

Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe

diziam; sabia alar apenas uma rase: “quero ser cavaleiro” e não sabia andar

direito. Parecia um menino dentro de um corpo adolescente. Seu comporta-

mento, estranho para os padrões socioculturais estabelecidos, causava ummisto de espanto e interesse. Era visto como um “garoto selvagem”, apesar

de demonstrar ser dócil, simples e gentil. Possuía algumas habilidades pe-

culiares interessantes, descritas tanto no lme de Herzog quanto na obra de

Masson: conseguia enxergar muito longe, no escuro, e sabia tratar os ani-

mais, principalmente os pássaros. Ao mesmo tempo tinha medo de galinhas

e ugia delas aterrorizado. Numa das cenas, atraído pela chama de uma vela,

colocava seu dedo no ogo e, ao sentir dor, aprende que a chama queima.

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Analisar os modos de alar e de pensar: exclusividade do ser humano

61

Graças à sua curiosidade inantil e memória notável, aprendeu várias coisas

muito depressa. [...]

Criado no isolamento e privado de educação, condicionamento e repres-

são, é este processo de integração que Kaspar Hauser sorerá em Nuremberg,

e seu instrumento principal será a linguagem, pela qual a sociedade tentaráazê-lo conceber aquilo que sua natureza não concebe: a representação. O

século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, oi um período marcado pela

perspectiva positivista, evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que

havia um modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto

pelos homens como pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles

que não correspondiam ao protótipo do homem “civilizado” eram classica-

dos como primitivos, atrasados e deveriam ser “ajudados” a alcançar graus

mais avançados na escala de desenvolvimento e evolução. É dentro dessa

visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado. [...]

Com o tempo aprende a alar. Mas mesmo a linguagem não lhe permite

capturar esse estranho mundo em que vivem as pessoas. [...] A paisagem em

que Kaspar Hauser oi colocado, apesar de explicada pela linguagem, pelas

palavras, por signos linguísticos, permanece, para ele, indecirável. Muitas

vezes, pedia para contar histórias que imaginava, mas não conseguia ver-

balizar o conteúdo pensado. Conhecer o mundo pela linguagem, por signos

linguísticos, parece não ser suciente para Kaspar Hauser [...]. Nesse senti-

do, também Vygotsky insiste que o pensamento e a linguagem se originamindependentemente, undindo-se mais tarde no tipo de linguagem interna

que constitui a maior parte do pensamento maduro.

Kaspar Hauser parece não entender as explicações que lhe dão. As pessoas

impõem todos os tipos de signos a ele, na certeza de que compreenderá o

insólito ambiente que o cerca. Como Kaspar Hauser poderia compreender o

signicado das palavras e que elas representam coisas se não passou por um

processo de aprendizado e socialização necessários para que compreendes-

se a representatividade dos signos? Blikstein diz que a educação não passade uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade; ou seja, a

educação vai estimulando na criança um processo de abstração. É justamen-

te esse processo que Kaspar Hauser não vivenciou. [...]

Os objetos não eram percebidos por Kaspar Hauser da orma como a prá-

tica social denia previamente, ou seja, Kaspar Hauser estava despido dos “l-

tros” e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento.

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Linguagem e Pensamento

Tais “ltros” ou estereótipos, por sua vez, são garantidos e reorçados pela

linguagem. Assim, o processo de conhecimento da realidade é regulado por

uma contínua interação de práticas culturais, percepção e linguagem.

A orma como Kaspar Hauser compreende o mundo e se relaciona com

ele indica que a percepção depende sobretudo da prática social. Sabemosque, do nascimento à adolescência, Kaspar Hauser esteve isolado de qual-

quer contexto ou prática social. O que podemos vericar no seu percurso de

desenvolvimento psicológico é que, a despeito da ação da linguagem (ad-

quirida na ase adulta) ou de um eventual “potencial” inato, Kaspar Hauser

não consegue captar o mundo como o az a sociedade que o cerca, ou seja,

decodica à sua maneira, com uma lógica dierente da estabelecida, a signi-

cação do mundo. Fica evidente, então, que o seu sistema perceptual está

desaparelhado de uma prática social necessária para gestar o reerencial cul-

tural de interpretação da realidade.

Podemos concluir que, como Kaspar Hauser não passou por um proces-

so de socialização, onde exercitaria a compreensão através da prática social,

não consegue atribuir signicado às coisas, mesmo tendo adquirido a lin-

guagem. Assim, analisando o caso de Kaspar Hauser, somos levados a pensar

que não apenas o sistema perceptual, mas as estruturas mentais e a própria

linguagem são resultantes da prática social, ou seja, as práticas culturais “mo-

delam” a percepção da realidade e o conhecimento por parte do sujeito.

Em virtude de não ter sido exposto a essa “modelagem” cultural, Kaspar

Hauser era visto como um ser “incompleto”, como se estivesse sempre em dé-

cit em relação aos outros; teria Kaspar instrumental de reexão internalizado

para construir a compreensão da dierença? Aqui parece ser possível detectar

uma inverossimilhança no lme de Werner Herzog: numa das cenas, Kaspar

Hauser diz a uma das pessoas que o acolheu: “Ninguém aceita Kaspar.”

Segundo o lme, ele tem consciência de sua situação. Porém, na realida-

de, parece não ser possível esse grau de consciência em alguém que não teminstrumental de reexão internalizado. Kaspar Hauser se sente perturbado

pelo mundo: “o mundo é todo mau”, comenta com seu tutor após perceber

que alguém pisou as ores que plantara no jardim. [...]

Vygotsky, citado por Oliveira, diz que a relação do homem com o mundo

não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo que os siste-

mas simbólicos são os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo;

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Analisar os modos de alar e de pensar: exclusividade do ser humano

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porém, tendo vivido no isolamento, Kaspar Hauser não aprendeu nem in-

ternalizou este sistema simbólico que, para ele, não azia sentido. Somen-

te depois de muito tempo convivendo com a comunidade de Nuremberg

é que Kaspar Hauser começa a entender a relação simbólica e a relação de

representatividade entre os signos e as coisas concretas. [...]

Kaspar Hauser não é reconhecido como parte da sociedade e ele próprio

não se reconhece como parte dela. Em uma reunião para a qual ora convida-

do a participar, em que estavam vários membros da alta sociedade, oi apre-

sentado à esposa do preeito de Nuremberg, que lhe perguntou como era

sua prisão e ele respondeu: “melhor do que aqui ora”. Vai sorendo, assim,

um processo de estigmatização que o marca, não apenas como “dierente”

ou “anormal,” mas também como alguém que não possui identidade. [...]

O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organi-zação social undada sobre os princípios do racionalismo positivista. Mostra-

-nos que a “humanização” do homem, entendida como socialização, não é

uma decorrência biológica da espécie, mas consequência de um longo pro-

cesso de aprendizado com o grupo social.

Através desse processo, o indivíduo se integra ao grupo em que nasceu,

assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo.

Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, valores e

costumes, o indivíduo está se socializando, reprimindo suas característicasinstintivas e animais e desenvolvendo as sociais e culturais, azendo, assim,

a “passagem da natureza para a cultura,” aprendendo a ver com os “óculos

sociais,” tornando-se, como nos disse Charles Dickens, “um animal de cos-

tumes”. Kaspar Hauser nunca se transormou nesse animal de costumes; no

máximo, poderia ser visto como “domesticado” pela sociedade da época.

Atividades1. Por que motivo é necessário levar o jovem humano a reetir a respeito da

linguagem para incidir sobre o seu desenvolvimento intelectual?

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Linguagem e Pensamento

2. Por que motivo pessoas de comunidades linguísticas dierentes tendem a

interpretar atos análogos de modos dierentes?

3. Por que é diícil para as crianças aprender a analisar os modos de unciona-

mento da linguagem?

Dicas de estudoVocê gosta de cinema? Se você respondeu armativamente, está com sorte,

pois, dessa vez, sugerimos que você assista ao lme que está pressuposto ao

longo deste capítulo!

O ENIGMA de Kaspar Hauser (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle). Direção de

Werner Herzog. Alemanha, 1974. 1 lme (109 min).

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Analisar os modos de alar e de pensar: exclusividade do ser humano

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Para animar você, já adiantamos que esse belíssimo lme se baseia na história

verídica e obscura de Kaspar Hauser, um homem doce, generoso e, ao mesmo

tempo, melancólico. Ele oi encontrado numa praça de Nuremberg, em 1829,

com, presumivelmente, 18 anos. Ao que tudo indica, cresceu num calabouço,

acorrentado até o dia em que oi levado por um guarda a uma praça e aí aban-

donado. Um cidadão o encontrou e o levou para a casa do capitão de cavalaria

que o entregou às autoridades. Kaspar passou, então, um tempo de pesadelo,

durante o qual oi exposto em uma eira de curiosidades.

Um dia, ele conseguiu ugir com alguns companheiros, tendo sido acolhido

por um protetor mais humano. Dois anos depois, Kaspar tinha aprendido a alar

e a escrever, mas, surpreendentemente, até o dia em que oi enigmaticamente

assassinado, o pobre rapaz ainda pensava de modo completamente dierente

do modo como aziam os outros seres humanos de sua época.

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Neste capítulo, temos como objetivo primordial tematizar o surgimen-to do pensamento na espécie humana. Convém ressaltar que, como nin-

guém entre nós tem máquina do tempo, trata-se de um empreendimento

bastante ousado e exploratório, demandando a utilização de nossa capa-

cidade de abstração.

Por esse motivo, vamos utilizar o que costumamos chamar de muletas

 para o pensamento, ou seja, aqueles recursos por meio dos quais torna-se

mais ácil imaginar como é algo que não podemos ver para que nosso

caminho se torne menos árduo. Então, para começarmos nossa reexãosobre como o antepassado do homem teria vivido quando ainda era um

animal sem pensamento e sem linguagem, vamos recuperar aqui o lme

 A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud.

Você já assistiu a ele? Se não o ez, não perca esta oportunidade de

azê-lo por nada neste mundo! Trata-se de um primoroso trabalho que,

tendo como centro a descoberta do processo para acender o ogo, consis-

te em uma representação ccional do momento em que o Homo erectus 

tornou-se Homo sapiens, o “homem cultural” como o conhecemos.

Os sustos que a gente levaquando encontra quem sabe mais

Na hipótese que o lme trabalha, o contato ou, se assim podemos dizer,

a ricção entre culturas em dierentes estágios de evolução tem papel cen-

tral na gênese da linguagem e do pensamento humano.

Sendo assim, para seu realizador, a passagem do homem animal para

o homem cultural coincidiu com o momento no qual, motivado pela ne-

cessidade de sobrevivência, nosso antepassado remoto procurou estreitar

laços com seus semelhantes mais evoluídos para aprender como utilizar

instrumentos imprescindíveis para a sobrevivência da tribo.

A perspectiva histórica dodesenvolvimento do pensamento humano

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Linguagem e Pensamento

Que tal conhecer um poucoo enredo de A Guerra do Fogo?

Annaud partiu da hipótese de que, em um determinado estágio de sua evo-

lução biológica, o ancestral do homem sentiu necessidade de preservação de

um importante conhecimento que tinha acabado de adquirir: a manipulação deinstrumentos. Por sua vez, esse desejo de não deixar perecer uma conquista tão

importante o levou a sosticar a sua organização social e, consequentemente,

aproveitar-se dos recursos sonoros que seu corpo oerecia para criar um rudi-

mento de linguagem.

Para nos mostrar esse “ancestral da linguagem”, que estava a meio caminho

entre a comunicação animal e a linguagem humana tal qual a conhecemos hoje,

o realizador da obra, em vez de azer somente uma sonoplastia sem sentido sair

da boca dos personagens, contou com o trabalho especializado de Anthony Bur-gess1, que assinou o roteiro e – a partir de um detalhadíssimo estudo das línguas

antigas – escreveu as “alas” dos personagens (na verdade, gritos, gemidos, gru-

nhidos, rudimentos de palavras articuladas).

Por meio de imagens muito impressionantes, Annaud retrata as venturas e

as desventuras de dois grupos pré-históricos que teriam vivido há 80 mil anos e

mostra os eeitos que um encontro entre eles gerou. Para alar desses eeitos, é

importante marcar que um dos grupos estava bem mais próximo dos primatas

e o segundo já era um pouco mais evoluído: já dominava a tecnologia de azer oogo e havia construído alguns elementos culturais, como habitações xas.

O drama narrado no lme é iniciado pelo apagamento acidental do ogo da

tribo menos evoluída, que não têm a mínima ideia do que azer para acendê-lo

novamente. Como todo mundo naquela época gelada dependia do ogo para

proteção e aquecimento, eles passaram a correr seríssimo perigo de vida e, por

conseguinte, decidiram enviar três membros da tribo numa perigosa aventura

para procurar uma nova chama.

Evidentemente, os três heróis passaram pelos

mais variados problemas em seu caminho e, neste

ponto, chegamos à parte que mais nos interessa.

Annaud é muito cuidadoso para mostrar que, como os primitivos oram orça-

dos a encontrar soluções muito rapidamente para não morrerem, acabaram por

1Anthony Burgess (1916-1993), oneticista e escritor britânico, célebre por seu romance A Laranja Mecânica (1962), levado ao cinema por Stanley

Kubrick em 1971. Burgess também escreveu O Homem de Nazaré (1979) e Poderes Terrenos (1980).

Que lição podemos tirardessa história de cção?

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

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desenvolver uma habilidade reexiva que sequer podiam imaginar que tinham.

Na visão do lme, a cada novo esorço conjunto para superar um obstáculo, eles

acabam ganhando ao menos um rudimento de linguagem e de pensamento.

Esse processo torna-se ainda mais acentuado quando os “três mosqueteiros”

encontram a tribo mais evoluída e, evidentemente, muito se surpreendem com

seu modo de organização cultural. Para eles, é particularmente surpreendente oato de saberem acender o ogo, possibilidade sequer entrevista anteriormente.

Ou seja: por meio dos contatos com os mais evoluídos, sorem grande inuência

e desenvolvem um germe de ideia.

Embora possamos desconar que, por se tratar de um lme, as coisas não

se passaram bem assim, podemos tirar desse trabalho uma importante lição: a

gênese do pensamento na espécie humana não ocorreu quando um primeiro

homem se trancou solitariamente em sua caverna e colocou do lado de ora uma

placa com o aviso “gênio pensando”! Apesar de muito divertida, essa hipóteseé completamente inverossímil, pois, como já sabemos, a gênese do pensamento

humano ocorreu em situação de ranco conito entre homem-animal-natureza e,

em especial, entre os dierentes modos de azer dos membros dos grupos huma-

noides. Ao encontrar quem “zesse dierente”, o menos evoluído “descobriu”, como

diria Shakespeare, que talvez houvesse mais coisas entre o céu e terra do que so-

nhava sua vã losoa...

Assim, teve vontade de que sua grama osse tão verde como a de seu vizinho,

para continuar nossa linha de metáoras... Hipótese curiosa esta: o pensamen-to adveio da inveja saudável dos seus semelhantes! Curiosa, sem dúvida, mas

será tão inverossímil assim? Não sabemos. Mas sabemos que, ao descobrir usos

cada vez mais sosticados para os instrumentos, os homens logo trataram de

compartilhá-los com seus semelhantes e preservá-los para seus descendentes.

Pronto: estava undada a amília e a vida em sociedade.

Introduzindo o pensamento de VygotskyNão oram apenas os cineastas os interessados em reetir sobre os modos

pelos quais o advento do pensamento ocorreu na humanidade. Essa questão

interessou proundamente toda uma linhagem de pesquisadores, em especial o

russo Lev Semenovich Vygotsky.

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Linguagem e Pensamento

Você sabe quem oi Lev Semenovich Vygotsky? Ex-estudante da Universida-

de de Moscou, esse brilhante pesquisador viveu apenas 38 anos. Nasceu, traba-

lhou e morreu na passagem do século XIX para o XX (1896-1934), tendo enren-

tado as restrições que o isolamento de um sistema político echado coloca para

todo aquele que tem vocação para a vida intelectual. Especicamente, reeri-

mo-nos às diculdades de circulação de ideias que, naquele contexto, azia comque tanto osse diícil expor sua produção para além de Moscou quanto tomar

contato com trabalhos de colegas de outros países. Apesar da vida curta e do

isolamento, Vygotsky teve tempo suciente para ormalizar algumas ideias que,

embora passíveis de alguma crítica, causaram proundas impressões entre os

educadores e demais interessados na ormação do ser humano.

Por causa de sua pertinência e clareza, optaremos, aqui, por iniciar esta intro-

dução à obra de Vygotsky utilizando-nos de um parágrao escrito pelo proessor

James V. Wertsch para apresentar um de seus livros.

A perspectiva teórica delineada por Lev Semenovich Vygosky pode ser compreendida emtermos de três temas gerais que estão presentes em todas as suas obras: a) o uso de ummétodo genético, ou de desenvolvimento; b) a armação de que o uncionamento mentalsuperior no indivíduo provém de processos sociais; e c) a armação de que os processos sociaise psicológicos humanos são moldados undamentalmente por erramentas sociais, ou ormasde mediação. (WERTSCH apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 9)

Perseguindo os temas citados acima ao longo do seu trabalho, o psicólogo

russo tentou superar a crise que grassava no campo da psicologia praticada

em sua época, apresentando uma proposta teórica inovadora: a ideia segundoa qual a consciência humana é determinada historicamente. Dizendo de outro

modo, segundo Jerome S. Bruner – que assina a introdução do livro Pensamento

e Linguagem (VYGOTSKY, 1998) –, um dos principais avanços do psicólogo russo

oi o conceito de atividade mediada, ou seja, compreender que as erramentas

sociais moldam nossos modos de lidar com o mundo.

Ao azer essa armação, Vygostky se opôs às concepções clássicas das an-

tigas escolas de psicologia que ainda não haviam percebido a conexão entre

pensamento e linguagem como sendo originária do desenvolvimento humanoe, inovando ao longo de seu trabalho, procurou construir uma teoria geral das

raízes genéticas dessa conexão. Por esse motivo, para Oliveira (1992), por sua

vez, reerir-se a Vygotsky é algo análogo a reerir-se à dimensão social do desen-

volvimento humano, uma vez que um dos pressupostos básicos do autor é o de

que o “ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro social”

(OLIVEIRA, 1992, p. 24). Nessa visão, a cultura torna-se parte da natureza humana

em um processo histórico.

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

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Deixemos, neste momento, o próprio psicólogo russo nos apresentar qual

conclusão, alcançada por ele após a realização de suas pesquisas, ele julga ser a

mais importante.

O ato mais importante revelado pelo estudo genético do pensamento e da ala é que a relaçãoentre ambos passa por várias mudanças. O progresso da ala não é paralelo ao progresso dopensamento. As curvas de crescimento de ambos cruzam-se muitas vezes, podem atingir o

mesmo ponto e correr lado a lado, e até mesmo undir-se por algum tempo, mas acabam seseparando novamente. (VYGOTSKY, 1998, p. 41)

Ainda voltaremos a tirar maiores consequên-

cias do parágrao acima, mas agora cumpre res-

saltar que, por meio dele, o autor nos dá uma im-

portante pista para reetir sobre a nossa prática

de sala de aula: pressupor que o aluno vai ser capaz de alar sobre um determinado

assunto tão logo o tenha aprendido é, no mínimo, alacioso, uma vez que tanto po-

demos alar muito sobre algo de que não entendemos nada (talvez até em uma ten-tativa de entender), como podemos precisar do silêncio por algum tempo mesmo

depois de a explicação estar bastante clara.

Portanto, senhores proessores, ao pedir que o aluno reproduza uma explica-

ção que você acabou de dar, lembre: muita calma nessa hora!

A perspectiva histórico-cultural

do desenvolvimento humanoPara entender as relações entre a história e a cultura no desenvolvimento

humano, vamos recorrer a um outro exemplo, o trabalho de um dos maiores his-

toriadores contemporâneos: Carlo Ginzburg. Em especial, interessa-nos seu tra-

balho que reconstituiu, a partir de um exame minucioso de documentos da Igreja

Católica, os modos de pensar dos praticantes de um culto da ertilidade que vive-

ram entre o nal do século XVI e a primeira metade do século XVII, na Itália.

Para nós, o mais importante do trabalho de Ginzburg é que, por meio doexame rigoroso de atos da história (e não mais da cção, como no caso do lme

que estudamos), o italiano nos mostra que, na história da humanidade, os modos

de pensar estiveram sempre em ricção, ou dizendo de outro modo, eram ruto

de pertencer a um determinado grupo histórico-social.

Sem compreender muita coisa das crenças bizarras dos camponeses (que sim-

plesmente buscavam, com meios “mágicos” – muito parecidos com as simpatias

Você já percebeu que agente não consegue alar

sobre tudo que sabe?

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Linguagem e Pensamento

que ainda hoje persistem entre nós – azer com

que suas colheitas ossem bem sucedidas), a Igreja

da época tomou-os como sendo participantes

de um culto demoníaco, coisa que estavam bem

longe de ser. Por meio da tortura, essa mesma

Igreja buscou azer com que conessassem seu “pacto com o diabo”, conssão essa

que os pobres coitados aziam sem sequer entender as consequências.

O exame dos documentos, na maioria transcrição dos depoimentos dos

pobres camponeses torturados, mostrou que os inquisidores se viam constante-

mente em maus lençóis, pois, embora neles aparecessem palavras como inerno 

e diabo, não apareciam do modo como era esperado pelos torturadores.

Para maior clareza, tomemos aqui, dentre os muitos depoimentos analisados

pelo pesquisador, um exemplo qualquer no qual dá para ver uma grande “con-

usão” em andamento:

O acusado, Thiess, um velho com mais de 80 anos, conessa abertamente aos juízes que ointerrogam ser um lobisomem. [...] O velho diz que o seu nariz ora quebrado, no passado, porum camponês de Lemburg, Skeistan, morto já há bastante tempo. Skeistan era um eiticeiro;

 juntamente com os seus companheiros, tinha levado as sementes de trigo ao inerno paraque as messes não crescessem. Acompanhado por outros lobisomens, Thiess ora ao inerno elutara contra Skeistan. Este, armado de um cabo de vassoura (o atributo tradicional das bruxas)enrolado num rabo de cavalo, havia golpeado o nariz do velho naquela ocasião. Não se tratavade um conronto ocasional. Três vezes por ano, nas noites de Santa Lúcia, antes do Natal, dePentecostes e de São João, os lobisomens vão a pé, como uma alcateia, até um lugar situado“onde termina o mar”: o inerno. (GINSBURG, 1988, p. 50)

Você já imaginou em que embrulhada caram os pobres que escutaram esse

depoimento? “Thiess conessa ser um lobisomem, logo ele é do mal” , pensam

os inquisidores, porém sua conclusão não pode se manter intacta por muito

tempo, pois, se ele conessa que vai ao inerno, justica que o az para combater

o eiticeiro do mal que estava prejudicando as colheitas (Skeistan) – logo, ele é

um tipo de “herói do bem”.

Todo mundo que conhece a história da Idade Média sabe que, na prática,

esse conito terminou muito mal. Incapazes de compreender uma lógica outra,

que, por ser tão dierente, escapava-lhes completamente, os inquisidores não

duvidavam: ogueira para eles! Por sua vez, incapazes de entender a lógica dos

inquisidores, esses pobres camponeses (em especial as mulheres, mais requen-

temente acusadas de serem bruxas) eram completamente incapazes de deesa

própria, pois não conheciam o que poderia ser utilizado como um argumento

plausível do raciocínio do outro grupo. Tudo o que diziam, para se deender, era

logo transormado em mais um argumento de acusação.

Você já parou para pensarpor que os padres da IdadeMédia localizavam tantas

bruxas no mundo?

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

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O que oi que eles aprenderam, então? Aprenderam que, para se manterem

vivos, havia um “discurso certo” a azer, que poderia ser proerido aberta e publi-

camente, e algumas práticas nas quais acreditavam para esconder, para serem

eitas na calada da noite e negadas a todo e qualquer preço. O que começou a

ser praticado de orma “inocente” passou então a ser eito de orma “maliciosa” e

“pecaminosa”, pois, devido ao contato com os inquisidores, os camponeses agre-

garam às suas práticas uma carga “maléca” que anteriormente não estava lá.

Pensando mais detidamente sobre os dois exemplos contidos neste capítulo e

concluindo nossa reexão, podemos compreender melhor a tese de Vygotsky se-

gundo a qual o ser humano constitui-se na sua relação com o outro social. É a so-

ciedade que lhe ensina o que pode e deve ser dito e, nas últimas consequências,

dita-lhe os modos de pensar. Nessa visão, então, a cultura não é algo separado do

humano, mas uma instância que, a partir de um processo histórico, torna-se parte

da natureza humana.

Texto complementar

Erótica e hermenêutica, ou a arte

de amar o corpo das palavras1

(LARROSA2, 2000)

Nietzsche sabia que ensinar a alar, a escrever e a ler é ensinar a alar, a

escrever e a ler como está ordenado, quer dizer, a experimentar a realidade,

a do mundo e a de si próprio, como está ordenado ou, o que é o mesmo,

a portar-se como está ordenado. Para perverter a ordem e o conormismo,

para aprender a alar, a escrever e a ler de outro modo, para interpretar o

mundo e a nós mesmos de outro modo, para ser de outro modo, Nietzsche

nos convidava a sermos lólogos rigorosos. É com o nome de Nietzsche queeu também apelo aqui, leitor amigo, para a tua cumplicidade de lólogo [...]

no amor às palavras. [...]

Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonados das pala-

vras com uma orma de amizade e de amor que não passe pelo conhecimento,

1Fragmento da tradução realizada por Claudia Rosa Riol para o texto “Erótica y hermenéutica, o el ar te de amar el cuerpo de las palabras”.

2Docente da Universidade de Barcelona, Espanha.

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Linguagem e Pensamento

nem pelo uso, nem pela vontade de apropriação. Também, talvez essencial-

mente, Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonado do

corpo das palavras. [...] O corpo das palavras opera como simples portador de

seu sentido, como representante ou vicário, ou lugar-tenente de seu sentido,

como o lugar que tem e contém o sentido. Desse ponto de vista, a compreen-

são consiste em obter esse sentido arrancando-o do corpo e abandonandodepois o cadáver como letra morta, inanimada. Uma palavra sem sentido é só

um corpo, uma palavra que não expressa nada, que não diz nada. [...]

Se as palavras não são outra coisa além do lugar da materialização, da

encarnação ou da transmissão de algo que é, por sua essência incorpórea,

colocar o acento na compreensão ou na interpretação é conceber a rela-

ção com as palavras como acesso ao espírito que está encarnado na letra

ou como apropriação do sentido que está materializado e transportado no

signo. Compreender é aceder à proundidade espiritual e invisível encarnadana linguagem ultrapassando nela a superície material de sua corporeidade

visível. Para a hermenêutica tradicional e, especialmente, para os modelos

de interpretação simbólica, o objeto da compreensão é o espírito do texto:

por isso a interpretação apenas pode realizar-se por meio da marginalização

de sua dimensão corporal. Mas, como poderia ser possível amar sem corpo?

[...]

Escutemos a conssão de um amante-apaixonado do corpo das palavras,de um homem (ou de um nome) que, na esteira de Nietzsche, está nos en-

sinando a ler e a escrever de outro modo e que, como Garcia Calvo, está nos

convidando para amar aquilo que nas palavras pode uncionar para destecer

o uncionamento servil do sentido, sua relação constitutiva com a ordem e

com a esperança:

É verdade que só as palavras me interessam... amo as palavras... Para mim, a palavraincorpora o desejo e o corpo... eu só gosto das palavras.... O que eu aço com as palavras éazê-las explodir para que o não-verbal não apareça no verbal. Quer dizer, aço uncionaras palavras de tal maneira que, em um dado momento, deixam de pertencer ao discurso...E, se amo as palavras, é também por sua capacidade de escapar de sua própria orma, ouainda, por interessar-me como coisas visíveis, como letras representando a visibilidadeespacial da palavra ou como algo musical ou audível. Quer dizer, também me interessamas palavras, ainda que paradoxalmente, pelo que tem de não discursivas, naquilo quepodem ser usadas para explodir o discurso... na maioria de meus textos existe um pontono qual a palavra unciona de maneira não-discursiva. De repente, desorganiza a ordeme as regras, mas, não graças a mim. Presto atenção ao poder que as palavras, e às vezes,as possibilidades sintáticas também, têm para transormar o uso normal do discurso, oléxico e a sintaxe.... me explico a mim mesmo através do corpo das palavras – e creio queapenas se pode alar verdadeiramente do “corpo da palavra” levando em conta as reservas

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

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oriundas do ato de que alamos de um corpo que não está presente em si mesmo – e éo corpo de uma palavra o que me interessa no sentido de que não pertence ao discurso.Assim que estou realmente apaixonado pelas palavras, as trato sempre como corpos quecontêm sua própria perversidade – sua própria desordem regulada. Enquanto isto ocorre,a linguagem se abre às artes não-verbais... Quando as palavras começam a enlouquecerdesta maneira e deixam de comportar-se com respeito ao discurso é quando têm maisrelação com as demais artes.3

[...]

Amar o corpo das palavras não é, então, nem conhecê-las nem usá-las,

mas senti-las: senti-las no que têm de perverso, em seu poder para subver-

ter a normalidade própria do discursivo, e senti-las também no que têm de

inapreensíveis, de incompreensíveis, de ilegíveis, de ininteligíveis. Assim, o

corpo das palavras, como o corpo da amante, se nos oerece plenamente e

sem reservas e, ao mesmo tempo, retira-se de nós escapando de qualquer

apropriação, de qualquer captura apropriadora. O que o corpo das palavras

revela é, justamente, a alteridade constitutiva da linguagem, sua distância e

sua ausência de respeito para consigo própria. Por isso, no corpo das pala-

vras, o que amamos é, precisamente, aquilo de que nós não podemos nos

apropriar, aquilo que nós nunca poderemos tornar nosso, aquilo que, inevi-

tavelmente, escorre e se extravia de nós.

O corpo das palavras é a revelação do que nelas não pertence ao discurso,

a irrupção da não-linguagem no âmago da linguagem. Mas de uma não-

-linguagem que subverte a linguagem, de um não-discurso que, contudo,

é capaz de azer explodir o discurso, de desestabilizá-lo, de subverter sua

normalidade e de transtornar suas regras. O corpo das palavras é sua insigni-

cância, porém não uma insignicância neutra, mas uma insignicância que

az a signicação enlouquecer. O corpo das palavras não ca absorvido na

signicação, não ca dissolvido na pura unção da representação, mas tam-

pouco se mantém exterior a ela. Não há nem correspondência, nem harmo-

nia, nem integração entre a letra e o espírito, mas tampouco há ausência de

relação, pura exterioridade. [...] Por isso, amar o corpo das palavras é azê-las

explodir, azê-las uncionar pervertendo ou enlouquecendo qualquer ten-tativa de mediação encaminhada para a abricação de sentido. O corpo das

palavras é o lugar do desalecimento da compreensão, o lugar do colapso do

sentido, a ameaça permanente da interrupção da positividade ordenada de

nossos discursos produtores de sentido.

3BRUNETTE, Peter; WILLS, David. Las artes espaciales. Una entrevista con Jacques Derrida. Disponível em: <http ://aleph-arts.org/accpar/

numero1/derrida1/htm>.

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Linguagem e Pensamento

Como se o corpo das palavras osse lugar de sua liberdade, dado que revela

que as palavras são sempre outra coisa além de servidoras do desejo de sentido

que determina o bom uncionamento da ordem do discursivo. Amar o corpo

das palavras, portanto, signica nem iludir nem recalcar, mas sim assumir e pre-

servar o perigo de não haver sentido, porque o corpo das palavras é o que, em

todo discurso, pode abrir-se à perda do sentido, ao não-sentido.

Atividades1. Levando-se em conta os estudos de Vygotsky, por que motivo não é correto

pensar que quem ala mal pensa mal?

2. Por que motivo não é correto pensar que quem ala sempre transmite seus

pensamentos?

3. Levando-se em conta os estudos de Vygotsky, por que motivo a convivência

com os pares um pouco mais experientes é undamental para haver apren-

dizado?

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

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Dicas de estudoCHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do

Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

Com escolha criteriosa de verbetes e apresentação cuidadosa das diversasacepções nas quais pode ser tomado, esse dicionário constitui-se em um instru-

mento de trabalho imprescindível para todos aqueles que desejam vir a cons-

truir um trabalho com as produções verbais de uma perspectiva da análise do

discurso, área que, aastando-se de uma concepção de linguagem como expres-

são do pensamento, ajuda-nos a decirar o não-dito presente nos enunciados e

nos silêncios de um dado sujeito.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas: Editora da Unicamp; Londrina:

Eduel, 2003.Esse grande livro, de 683 páginas, é um atual e completo panorama de um dos

ramos da linguística que mais se relaciona com a especicidade do ser humano: a

semântica, área de estudo que pretende responder ao que az com que as palavras

e as sentenças signiquem. Sem perda de qualidade ou de conteúdo, Chierchia

aborda a matéria de modo inormal e simples, recorrendo, além disso, a outros

expedientes para nos ajudar a adentrar nessa área tão complexa: exercícios, exem-

plos, indicações bibliográcas para leituras suplementares, entre outros.

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Para introduzir este capítulo, que tem como tema especíco os modosde enganchamento entre pensamento e linguagem, vamos propor a você

um exercício pequeno, mas nada simples. Ele vai exigir muita imagina-

ção e capacidade de desprendimento, pois seu objetivo é levá-lo para

um tempo anterior ao advento de seu pensamento e de sua inscrição na

linguagem. Tempo de susto e de perplexidade, quando todas as palavras

estavam do lado do outro.

No início, era o corpo...Trata-se do seguinte: transporte-se agora para os minutos que prece-

deram seu nascimento. Provavelmente, sua mãe está nervosa. Por esse

motivo, buscou ajuda prossional para ajudá-la a cumprir essa missão que

todas as outras mamíeras azem sozinhas: dar à luz um bebê. Acompa-

nhe-a durante o trabalho de parto, tentando projetar como esse processo

se deu para você. Vamos lá?

Até há pouco tempo, era você quem deci-

dia como e quando mexia seu corpo. Virava,

torcia, encaixava-se. De repente, não mais

que de repente, está sorendo ortes empurrões para todos os lados e sente

que, inevitavelmente, querendo ou não, vai escorregar. Lá vai você rumo ao

desconhecido. Agora, seu corpo deixou o meio líquido e o ar az ricção em

sua pele. Como está rio! Os ruídos tornaram-se muito altos e invadem seus

ouvidos. Há luz. Alguém lhe pendurou e começou a esregar um pano no

seu corpo. Aposto que você está com medo.

Com sorte, alguém mais apostou nessa hipótese e lhe colocou sobre um

ventre macio – do lado de ora, evidentemente. Há um cheiro lá. Seu instinto

alou mais orte e você achou um mamilo que, curiosamente, encaixava-se

pereitamente em sua boca. Sua língua se mexeu e você sugou e, então, eis

que, pela primeira vez, o gosto do leite inundou o céu de sua boca. Como é

bom, Santo Deus, até que valeu a pena todo aquele empurra-empurra.

Como o cérebro dobebê reagiu a tanta

excitação?

Signicado da palavra: lugar de junçãodo pensamento e da linguagem

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Linguagem e Pensamento

Se você conseguiu azer o exercício proposto, pôde perceber que, ainda na pri-

meira hora de vida de uma criança nascida em condições normais, os órgãos dos

sentidos entram em ação: audição, visão, olato, tato e paladar são convocados e, de

algum modo, começam a ligar o bebê ao mundo, dando-lhe motivos para viver.

No início, portanto, há o predomínio da pura percepção, seguida da sensação

que essa percepção provoca no corpo. O mundo é mudo, não nos diz seu nome.O bebê passou por uma experiência riquíssima, mas nem sabe quem é e nem

conseguiria explicar o que de ato viveu. Ele se reduz a seu corpo e às sensações

agradáveis ou desagradáveis que este possa lhe proporcionar. A palavra existe,

mas, como ele ainda não transita por ela, está sujeito a um uncionamento muito

parecido aos demais mamíeros, a alternância entre prazer e desprazer.

É interessante notar que, em 1895, ao descrever a experiência de satisação

do bebê humano no texto “Projeto para uma psicologia cientíca”, o psicanalista

austríaco Sigmund Freud aproximava-se muito da perspectiva aqui descrita. Atítulo de curiosidade, leia agora um ragmento desse trabalho que ala sobre o

que acontece quando o bebê precisa lidar com sua sensação de ome.

Uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo externo [...],

que, como ação especíca, só pode ser promovida de determinadas manei-

ras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação es-

pecíca. Ela se eetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa

experiente é voltada para um estado inantil por descarga através da via dealteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima

unção secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres huma-

nos é a onte primordial de todos os motivos morais. [...] Quando a pessoa

que ajuda executa o trabalho da ação especíca no mundo externo para o

desamparado, este último ca em posição, por meio de dispositivos reexos,

de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária

para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então

a experiência de satisação, que tem as consequências mais radicais no de-

senvolvimento das unções do indivíduo. Isso porque três coisas ocorrem nosistema: (1) eetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a ur-

gência que causou desprazer em; (2) produz-se no  pallium a catexização de

um (ou de vários) neurônio(s) que corresponde(m) à percepção do objeto;

e (3) em outros pontos do  pallium chegam as inormações sobre a descarga

do movimento reexo liberado que se segue à ação especíca. Estabelece-se

então uma acilitação entre as catexias e os neurônios nucleares.

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Signicado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

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Você já se deu conta de quanto tempo demora para que a educação (amiliar

ou institucional) tire o bebê desse uncionamento mínimo e o aça interagir com

o mundo de maneira reetida? No melhor dos casos, não menos de um ano, pois

é apenas quando pode dispor de rudimentos de palavras que o humano começa

a organizar um pensamento elaborado que o diere daquilo que um chimpanzé,

animal bastante inteligente, também consegue construir.

Ou seja, estamos aqui armando mais uma vez que a linguagem tem uma

unção primordial na organização de nossas complexas ormas de pensar e,

dada a reiteração dessa tese principal, é chegada a hora de, com Vygotsky, inter-

rogarmos mais aproundadamente as relações entre pensamento e linguagem.

O conceito de pensamento verbal em VygotskySe você tem mais de 15 anos, com certeza absoluta já ouviu a seguinte inter-

rogação: “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?” Também deve saber que

nos lembramos de reproduzir essa rase toda vez que nos parece muito diícil

determinar onde alguma coisa começou, não é mesmo?

Quando nos interrogamos sobre as relações entre pensamento e linguagem,

logo aparecem acaloradas discussões de igual teor: para alguns, o pensamen-

to aparece primeiro e nos dá condições de aprender as palavras, e para outros

ocorre o contrário. Vygotsky encontra-se dentre os partidários do último grupo.

De ato, pode-se armar que, para o autor, a palavra é o material do pensamento

ou, melhor dizendo, ela é o meio pelo qual o pensamento se estrutura. Para ele,

“o pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que

ele passa a existir” (VYGOTSKY, 1998, p. 156-157).

Nesse momento, é importante ressaltar dois aspectos cruciais na teoria do

signicado da palavra adotada por Vygotsky.

O autor não comete o mesmo erro comum entre os não-especialistas

em linguagem, que é o de pensar que uma palavra reere-se a um obje-to isolado do mundo. Aastando-se desse ponto de vista inadequado, ele

concebe cada palavra como uma generalização que consiste em “um ato

verbal do pensamento e reete a realidade de modo bem diverso daquele

da sensação e da percepção” (VYGOTSKY, 1998, p. 6).

Embora oque na análise dos signicados das palavras, o autor não ignora

que elas só uncionam na presença de um sistema de signos que lhes dá

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Linguagem e Pensamento

consistência. Somente dentro do sistema, utilizando os termos do autor,

pode haver entendimento entre as mentes por meio da linguagem como

expressão mediadora.

É importante ressaltar que o psicólogo

russo não explica o papel de ligação entre pen-

samento e linguagem exercido pela palavraconsiderando sua materialidade sonora (signicante). Muito pelo contrário. Para

Vygostsky, a parte da palavra que interessa é o signicado.

Vejamos, nas palavras do próprio autor, essa centralidade do signicado: “Uma

palavra sem signicado é um som vazio; o signicado, portanto, é um critério da

‘palavra’, seu componente indispensável. [...] do ponto de vista da psicologia, o

signicado de cada palavra é uma generalização ou um conceito.” (VYGOTSKY,

1998, p. 151). Lendo essa citação, podemos concluir, portanto, que, para o autor,

são os signicados que associam o pensamento à representação da realidadeeita pelos sujeitos.

Não temos contato direto com o mundo, mas incidimos parcialmente sobre

ele na orma de nossos juízos (Ex.: “Que mulher eia!”), de nossos conceitos (Ex.:

“Uma mulher eia é aquela em que as partes do corpo não combinam entre si”),

ou de nossas deduções (Ex.: “Fulana, que dá muita importância à aparência ísica,

está muito reticente sobre a nova namorada do lho: ela deve ser eia”).

É importante notar que, embora os três exemplos do parágrao preceden-te sejam pereitamente compreensíveis para todos nós, eles não nos ornecem

qualquer descrição mais concreta de como seria uma mulher considerada eia

pelo seu locutor. Inclusive, pode ser que, ao nos encontrarmos com a pessoa, a

 julguemos bastante apresentável.

O que isso signica? Que ninguém tem acesso direto aos objetos que são

alvo do pensamento do outro. No máximo, temos acesso às palavras escolhidas

por ele para descrevê-los para nós. Dada essa compreensão, é importante notar

que, para construir sua teoria sobre as relações entre pensamento e linguagem,Vygotsky (1998) aastou-se de duas tradições de pesquisa que circulavam em

sua época, quais sejam:

a identicação – perspectiva que consiste na usão entre o pensamento e a

ala, isto é, na compreensão de que se tratava de enômenos indissociáveis; e

Como a palavra poderiadar origem ao pensamento?

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Signicado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

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a disjunção – perspectiva que consiste na segregação entre o pensamento

e a ala, isto é, na compreensão de que são enômenos que nada têm em

comum.

Ao azê-lo, construiu uma terceira vertente aproximativa, a intersecção (termo

a ser entendido do modo como é eito na teoria dos conjuntos, ou seja, reerin-

do-se àquele subgrupo de elementos que é comum a dois conjuntos maiores).Observe a gura 1, para uma melhor visualização da teoria de Vygotsky sobre a

relação entre pensamento e linguagem.

Linguagem PensamentoSignicadoda palavra

Figura 1 – O pensamento verbal como locus da união entre pensamento e linguagem.

Observando a gura 1 mais atentamente, o leitor notará que, para o psicó-

logo russo, no cérebro humano, pensamento e linguagem estão ligados numa

zona que consiste no pensamento já recortado e ormatado por meio da pala-

vra. Vygotsky chama essa entidade híbrida de pensamento verbal .

A dupla unção organizadora da palavraPara Vygotsky, a palavra tem importantes unções de organização interna e ex-

terna do ser humano. Ao recortar uma massa indistinguível de pensamento em

 pensamento verbal , permite que um sujeito compreenda as coisas que vê e vive e,

também, que possa partilhar essa compreensão com seus pares e descendentes.

Conra a gura 2, para uma primeira tomada de conhecimento dessa dupla unção.

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Linguagem e Pensamento

Ser uma unidade interna do

pensamento generalizante.

Ser uma unidade do intercâmbio social.

    I    E    S    D    E    B   r   a   s    i    l    S .

    A .

Figura 2 – A dupla ace da palavra.

De acordo com a gura 2, podemos pensar que, uncionando tanto em uma

vertente interna quanto em uma externa, o signicado da palavra dá aos homens

uma coerência em sua reexão e mantém aos olhos de seus pares uma consis-

tência de seu lugar no mundo. Retomando um pouco mais esquematicamente:

Função interna da palavra – organizar o pensamento do homem, por meio

de operações como, por exemplo, a classicação e a seriação.

Função externa da palavra – permitir aos homens que possam a) compar-

tilhar as conclusões a que chegaram a partir da organização prévia de suas

idéias; b) inserir-se nas relações sócio-históricas por meio de um lento pro-

cesso de apropriação dos conceitos; c) transmitir esses conceitos aos des-

cendentes de uma cultura.

Em suma: nessa visada, a palavra tem uma importante unção no desenvolvi-

mento intelectual do humano. Não se pode esquecer que, em grande parte, esse

processo se deve ao ato de que as palavras evoluem, não são estáticas. Isso éverdade tanto se considerarmos a história da humanidade quanto se isolarmos

a história de uma criança em particular.

Para ilustrar a riqueza em que consiste o acompanhamento da evolução dos

modos de pensar sobre o mundo e expressar os pensamentos de uma criança,

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Signicado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

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trago aqui um testemunho escrito por um pai de uma menina brasileira que, na

ocasião em que os atos relatados ocorreram, estava com 18 meses.1

Observe que o narrador, que na ocasião estava azendo parte de seu doutora-

do em linguística em Paris, mostra-se encantado com as inegáveis mostras de re-

namento conceitual de sua pequena lha e, por esse motivo, gasta algum espaço

de uma longa carta escrita para seu orientador no Brasil visando partilhar a experi-ência que vivia naquele momento narrando uma parte de sua vida amiliar.

Não se trata, entretanto, de uma narrativa vã. Se o leitor prestar bastante

atenção, vai perceber que, para além do pai, lá está o linguista. Ele não se limita

a narrar acontecimentos, mas o az estabelecendo as relações existentes entre a

ampliação vocabular e a compreensão de mundo testemunhado por sua garoti-

nha. Acompanhemos sua saborosa narrativa.

Quem produz conhecimento a todo vapor é mademoiselle Lorrá (Laurapara os poucos íntimos que ela tem por aqui). Na área de zoologia, é diícil

acompanhá-la. Primeiro, ela descobriu o cachorro e o chamou de vau. Depois,

resolveu incluir toda a auna nessa categoria. Com um pouco mais de obser-

vação e de reexão, ela criou a categoria  pato, na qual incluiu todas as aves

e as tartarugas. Passou um pouco mais e ela dividiu ainda mais a auna, in-

ventando a categoria pexe, que logo oi apereiçoada para peixo, e as tartaru-

gas, jacarés e cobras oram reclassicadas, cando neste último grupo. Veio

então o tempo de redenir o grupo vau: ganharam autonomia dois grupos, o

mó (englobando geralmente os vaus que têm chires) e o cavao (os vaus que

pareçam meio grandes). Como grupo isolado, guram em sua classicação

o  popote (hipopótamo) e o giiaa. Aproveitando essa ase produtiva, ontem

omos com ela ao Zoológico. Penso que a partir de agora sua análise vai car

ainda mais renada. Para mim, ela resolveu de uma vez por todas o proble-

ma de classicação das ocas: quando está nadando é  peixo, quando põe a

cabeça ora d’água é vau.

Laura adora museus. Quando a gente entra, ela já sabe onde está e vibra.

Ela já desenvolveu até um balanço de corpo especíco para azer quem es-

tiver com ela no colo ir para o quadro seguinte. Depois, ela az voltar várias

vezes naquele que ela mais gostou. A cada vez, ela vai descobrindo coisas

menores nos quadros. Nas igrejas, é a mesma coisa. Em geral, ela vê primeiro

os bida (umbigo), os nalijo (nariz) e os pé dos anjos!

1Agradeço a Valdir Heitor Barzotto a gentileza de autorizar a divulgação deste encantador parágrao de uma carta escrita por ele para João Wan-

derley Geraldi, em 20 de janeiro de 1997.

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Linguagem e Pensamento

Sua língua é, sem dúvida, o português. No começo, ela ria quando a gente

alava rancês com ela, achava que era brincadeira. Agora, ela já sabe que muita

gente ala rancês e até ala alguma coisa como boju (bon jour ), ovoá (au revoir ),

maintnant , vavá (ça va? ), tô (manteau). E canta uma musiquinha que tem um

longínquo parentesco com a nossa A barquinha virou, é: batô, batô, batô.

Morando na França, descobrindo o mundo em duas línguas, a menininha ala

como pode, sempre meio estranho, mas, segundo seu pai, sempre de modo mais

pertinente. Ao azê-lo, ela se inscreve no mundo e, dando testemunho dessa deli-

cada operação, contamina os adultos que a cercam com a agudeza de seu olhar.

Ainda bastante necessitada de usar a mímica e os movimentos de corpo, ela

 já está em uma situação que é bastante dierente daquela do bebê pequeno

com a qual iniciamos esta investigação. Suas percepções e sensações já não são

mais corpóreas: estão sujeitas aos dispositivos culturais e, na orma de suas pala-vras, neles deixam sua marca.

Se no início da aventura do homem

sobre a Terra há o predomínio da pura

percepção, seguida da sensação que essa

percepção provoca no corpo e, como não

estamos sozinhos sobre a ace da Terra,

nossos semelhantes logo passam a dizer os nomes das “coisas do mundo”, às quais

nos apresentam. A palavra tem uma importante unção no desenvolvimento inte-lectual do humano. Essa operação não é vã: ela nos leva a construir categorias cada

vez mais elaboradas para conduzir nossa reexão. Esse é um outro modo de dizer

que somos seres de linguagem.

Texto complementar

O que podemos concluir dessaleitura de parte do percurso de

construção do pensamento de umacriança?

Dialogismo:a linguagem verbal como exercício do social

(LUKIANCHUKI, 2005)

O pensamento de Bakhtin revelado em suas obras, apesar de plural, tem

uma unidade garantida pela centralidade da linguagem, cujo método de aná-

lise é a dialética. Dialogismo é o conceito que permeia toda a sua obra. É o

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Signicado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

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princípio constitutivo da linguagem, o que quer dizer que toda a vida da lin-

guagem, em qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas. A con-

cepção dialógica contém a ideia de relatividade da autoria individual e conse-

quentemente o destaque do caráter coletivo, social da produção de ideias e

textos. O próprio humano é um intertexto, não existe isolado, sua experiência

de vida se tece, entrecruza-se e interpenetra com o outro. Pensar em relaçãodialógica é remeter a um outro princípio – a não-autonomia do discurso. As

palavras de um alante estão sempre e inevitavelmente atravessadas pelas

palavras do outro: o discurso elaborado pelo alante se constitui também do

discurso do outro que o atravessa, condicionando o discurso do eu. Em lingua-

gem bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social. Nos seus escri-

tos, Bakhtin aborda os processos de ormação do eu através de três categorias:

o eu-para-mim, o eu-para-os-outros, o outro-para-mim. Da ormulação dessa

tríade, pode-se entrever sua inquietude rente a algumas questões: Como o eu

estabelece sua relação com o mundo? Existe uma oposição entre o sujeito e o

objeto? De acordo com Maria Teresa de Assunção Freitas, “Para ele, não há um

mundo dado ao qual o sujeito possa se opor. É o próprio mundo externo que

se torna determinado e concreto para o sujeito que com ele se relaciona.”

[...] A consciência individual é, portanto, um ato social e ideológico. Dito de

outra maneira, a realidade da consciência é a linguagem e são os atores so-

ciais que determinam o conteúdo da consciência – do conjunto dos discursos

que atravessam o indivíduo ao longo de sua vida, é que se orma a consciência.

O mundo que se revela ao ser humano se dá pelos discursos que ele assimila,

ormando seu repertório de vida. Pelo ato de a consciência ser determinada

socialmente, não se pode inerir que o ser humano seja meramente reprodu-

tivo, o que se ressalta é, portanto, a criatividade do sujeito humano: é inuen-

ciado pelo meio, mas se volta sobre ele para transormá-lo. Duas vezes nasce o

homem: sicamente (o que não o az inserir na história) e socialmente deter-

minado pelas condições sociais e econômicas. Posto isso, não se pode susten-

tar a ideia – tão propalada pelo idealismo e pelo positivismo psicologista – de

que a ideologia deriva da consciência. Sob a orma de signos é que a atividademental é expressa exterior e internamente para o próprio indivíduo. Sem os

signos a atividade interior não existe. A palavra não é só meio de comunicação,

mas também conteúdo da própria atividade psíquica.

[...] Retomando a questão do dialogismo, e, ainda com relação à palavra

diálogo, além do seu sentido estrito – o ato de ala entre duas ou mais pes-

soas –, pode-se tomá-la também em seu sentido amplo, a saber, qualquer

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Linguagem e Pensamento

tipo de comunicação verbal, oral ou escrita, exterior ou interior, maniestada

ou não. O livro, por exemplo, é um ato de ala impresso. Segundo Bakhtin, “O

discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideoló-

gica em grande escala: ele responde a alguma coisa, reuta, conrma, antecipa

as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc.”. Tudo está em constante

comunicação. À ideia de diálogo agrega-se um outro elemento que não sereere apenas à ala em voz alta de duas pessoas, mas a um discurso interior, do

qual se emanam as várias e inesgotáveis enunciações, que são determinadas

pela situação de sua enunciação e pelo seu auditório. Conorme Bakhtin,

A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exteriordenida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele seamplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situaçãode enunciação.

A toda essa questão está relacionada a ormação de repertórios, que, no

dizer de Bakhtin, são ormas de vida em comum relativamente regularizadas,

reorçadas pelo uso e pela circunstância.

Dessa maneira, as ormas estereotipadas no discurso da vida cotidiana res-

pondem por um discurso social que as consolida, ou seja, possuem um audi-

tório organizado que mantém a sua permanência, reetindo, assim, ideologi-

camente a composição social do grupo, evidência da armação de Bakhtin ao

dizer que “a palavra é o enômeno ideológico por excelência” ou “todo signo é

ideológico”. Por essa razão é que, mesmo em uma aparente simples anedota

que se conta sobre o negro, o judeu, o nordestino, a mulher etc., os preconcei-

tos que aoram nada mais são do que exercício constante dos elementos cul-

turais desse grupo social. O enunciatário, no entanto, pode oerecer obstáculos

à sua realização/manutenção provocando rupturas que vão inltrando sensí-

veis mudanças iniciais, mas que podem ganhar corpo. Daí o entendimento de

que todos são sujeitos da enunciação – enunciador e enunciatário – porque o

caráter interativo nada mais é do que a possibilidade de transormação, seja

pelo enunciador, seja pelo enunciatário, passando a reetir e reratar a reali-

dade dada. É a ideia da palavra em movimento, o poder da palavra. Por meiodela, os sujeitos são postos em ação para reproduzir ou mudar o social.

[...] Por todas essas considerações, pode-se perceber por que o dialogismo

é vital para a compreensão dos estudos de Bakhtin e das questões reeren-

tes à linguagem como constitutiva da experiência humana e seu papel ativo

no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional, a

importância desse conceito reside, inclusive, no ato de raticar o conceito

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Signicado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

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de comunicação como interação verbal e não-verbal e não apenas como

transmissão de inormação. A contribuição à complexidade desse conceito

também se verica por implicar outros: interação verbal, intertextualidade e

polionia. Esses termos parecem designar um mesmo enômeno com peque-

nas variações entre si. São estas especicidades que vão estabelecer as die-

renças entre eles, aproximando-os ou distanciando-os em graus dierencia-dos. O mais importante é perceber que todos eles, independentemente de

suas particularidades, rompem com a arrogância e a onipotência do discurso

monológico. O ser social nasce com o exercício de sua linguagem.

Atividades

1. Em que medida alar com o bebê pequeno é importante para a estruturaçãodo pensamento do humano?

2. Em que medida Vygotsky se interessava por pesquisar o pensamento em si?

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Linguagem e Pensamento

3. Qual a unção do signicado da palavra na estruturação do pensamento hu-

mano de acordo com a teoria de Vygotsky?

Dicas de estudoLURIA, Alexander Romanovich. Pensamento e Linguagem: as últimas conerên-

cias de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

Essa obra trata de diversos temas articulados entre si: a relação entre a lin-

guagem e a consciência; a palavra e a estrutura semântica; o desenvolvimento

das palavras; campos semânticos; a linguagem interior; a linguagem oral e a or-

ganização cerebral. Dentre essas tantas contribuições, destaca-se o conceito de

comunicação verbal desdobrada, que, por sua vez, reere-se ao processo psíquico

interno (para o autor,  projeto de alocução) que precede um determinado ato de

ala. Estudar o projeto de alocução é, portanto, uma tentativa de estudar o pen-

samento propriamente dito ou, melhor dizendo, a parte deste que é possível

conhecer, uma vez que ele não se deixa apreender totalmente pela linguagem.

Ressalte-se que essa é uma publicação de undamental importância para os

proessores que trabalham com a expressão oral, leitura e escrita, uma vez que

deixa claro que uma enunciação verbal não é um simples ato de materialização

de uma ideia previamente ormada, mas precedida por um complexo mecanis-

mo interior, que tem por nalidade a expressão verbal.

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Você já parou para pensar que, em nossa cultura, não existe consenso sobreas possibilidades e limitações da educação na ormação de uma criança?

De um lado, está um grande número de adultos descompromissados

que justicam sua alta de habilidade para exercer uma ação ormativa por

meio de uma posição determinista. Ela pode ser expressa pelo ditado po-

pular “Pau que nasce torto, morre torto”. Segundo sua lógica, já há no bebê,

em estado latente, tudo aquilo que um homem virá a ser um dia, não exis-

tindo, consequentemente, qualquer possibilidade de sucesso para alguém

que, em determinado momento de sua vida, tendo se dado conta, porexemplo, de um erro cometido na educação de um lho, deseja corrigi-lo.

Do outro lado, estão os corajosos que assumem o desao de sustentar

o ato educativo desde a mais tenra idade daqueles pelos quais se sentem

responsáveis. Segundo sua lógica, embora seja verdadeiro que, desde o

nascimento (e talvez até antes) seja possível detectar dierenças de com-

portamento, gostos, caráter etc. em nossos bebês, não é menos verdadei-

ro que essas tendências – em certa medida, constitucionais – possam ser

rereadas ou encorajadas de acordo com as normas da cultura na qual acriança está sendo inserida. Ainda recorrendo ao campo dos ditados po-

pulares, sua posição pode ser descrita do seguinte modo: “É de pequenino

que se torce o pepino”.

O primeiro grupo, portanto, acredita em uma espécie de petricação do

homem: ao longo de sua vida, cada um permanece do jeito que sempre oi

e sempre será. Como uma espécie de múmia viva, ele vem e vai no mundo

sem nunca ter deixado sobre ele qualquer tipo de marca. O segundo grupo,

ao contrário, é partidário da possibilidade do movimento, da alteraçãoqualitativa da situação de um sujeito. Muito comumente, reconhecem que

a possibilidade de alterações não é innita, uma vez que encontra limites

no real do corpo e em todo tipo de contingência social (condições socio-

-econômicas muito precárias, ausência de adultos comprometidos com a

criança, inserção em uma comunidade de criminalidade etc.).

Vamos propor, agora, então, uma brincadeira que, ao mesmo tempo é

uma pergunta séria. Se Vygotsky osse vivo e estivesse azendo ooca sobre

O papel da linguagem no desenvolvimentointelectual de uma criança

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Linguagem e Pensamento

os lhos dos vizinhos aí pertinho da sua casa, em que grupo ele estaria? Você disse

que estaria no grupo dos que acreditam na necessidade de “torcer o pepino”?

Muito bem! Essa resposta indica que você está pronto para compreender o papel

que a linguagem exerce no desenvolvimento intelectual de uma criança.

A linguagem torna o homem mais complexoAs teses que devem sua origem ao pensamento vygotskyano deendem uma

concepção de homem segundo a qual o adulto humano é um ser que nasce

portando várias de suas uturas qualidades em estado latente. Entretanto, ele se

aasta da visada que deende a existência de uma espécie de “programação de

computador genética” responsável por azê-lo amadurecer e tornar-se adulto

por meio da passagem do tempo e da absorção das inormações que um orga-

nismo poderia conseguir interagindo diretamente com o meio.

Ao contrário, como resultado de suas inú-

meras pesquisas, o autor deendia a tese de

que toda e qualquer aquisição de conheci-

mento por parte de um humano é sempre

intermediada (explícita ou implicitamente)

pelas pessoas que rodeiam a criança. Dentro dessa visada, portanto, o adulto

tem um papel absolutamente primordial no desenvolvimento intelectual de

uma criança. Isto é: ninguém nasce “inteligente”, mas torna-se um ser capaz deconstruir e usar um complexo sistema de “processamento de dados” que corres-

ponde aos complexos mentais superiores.

Neste ponto, é importante ressaltar que Vygotsky não imaginava que o pai e

a mãe de um bebê deveriam se portar como uma espécie de proessores anteci-

pados na educação de seus lhos. Quando ele deendia a importância do papel

dos adultos no desenvolvimento dos pequenos, não se tratava de uma posição

de douto conerencista, mas simplesmente do ato de poder portar condigna-

mente os signicados sociais e históricos das coisas e palavras com as quais obebê toma contato.

Mesmo correndo o risco de tratar a questão de modo um pouco supercial,

vamos trazer aqui um exemplo muito simples. Tomemos o caso de uma criança

assustada com o barulho de ogos de artiício. Aquela que vamos chamar de

mãe 1, diz “Cala a boca, seu tonto, que besta!” Enquanto isso, aquela que vamos

chamar de mãe 2 diz “Não se assuste. São ogos de artiício. As pessoas sempre

usam para comemorar quando estão contentes.”

Como se porta o adulto queexerce a importante unçãode introduzir os novatos na

cultura elaborada?

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Analisando os dois enunciados ctícios aqui reproduzidos, veremos que a

primeira mãe limita-se a insultar seu próprio lho e opta por mantê-lo na igno-

rância no que diz respeito às causas de seu medo. A segunda, por sua vez, realiza

as seguintes operações por meio de sua ala: 1) acalma a criança; 2) nomeia o

objeto que está produzindo o ruído; 3) esclarece a criança sobre os usos sociais

do objeto; 4) usando a palavra sempre, previne a criança de que aquela situa-

ção tende a se repetir. Por último, de maneira mais indireta, testemunha de que,

também ela, não tem medo de ogos de artiício, uma vez que pode alar tran-

quilamente sobre o assunto.

Ou seja, a mãe 2 é capaz de portar os signicados sociais e históricos das

coisas e transmiti-los ao seu lho. Teorizando um pouco mais esse processo que

acabamos de tratar de maneira intuitiva, vamos recorrer ao trabalho de Luria e

Yudovich (1985). Após um extenso e rigoroso processo de pesquisa envolven-

do crianças de variadas idades, esses seguidores de Vygotsky chegaram a uma

conclusão que muito interessa a todos que se responsabilizam pela educação

de crianças: a descoberta de que as mudanças qualitativas no uso na linguagem

não se echam em si, mas, ao contrário, introduzem dierenças na ormação dos

complexos processos mentais superiores do homem. Nas palavras dos autores:

As primeiríssimas palavras da mãe, quando mostra a seu lho objetos e os nomeia, atribuindo--lhes uma palavra determinada, têm uma importante inuência, não avaliável, porém decisiva,na ormação dos processos mentais da criança. A palavra, relacionada à percepção direta doobjeto, isola seus traços essenciais. O ato de nomear o objeto percebido “copo”, acrescentandoo seu papel uncional “para beber”, isola as propriedades essenciais do objeto e inibe as menos

essenciais (como seu peso ou orma exterior). (LURIA; YUDOVICH, 1985, p. 12)

Concluindo: os autores armam que a palavra,

ao transmitir a experiência de gerações tal como oi

incorporada à linguagem, liga um complexo siste-

ma de conexões no córtex cerebral da criança. Por

ser portadora do saber acumulado na cultura e na

história, a palavra “toma corpo”, inscreve-se num organismo e, ao azê-lo, alte-

ra-o. De posse da palavra contextualizada, a criança ganha uma poderosíssima

erramenta que sostica a percepção inantil, dotando-a de ormas de análise ede síntese que a criança seria incapaz de desenvolver sem o auxílio de um adulto

parecido com aquele que chamamos de mãe 2.

Dizendo de outro modo, as abordagens educativas que tiveram sua origem

na teoria vygotskyana concebem a aprendizagem como um enômeno que se

realiza somente quando há oportunidade de interação de um sujeito com o

outro. Essa posição é coerente com a premissa do psicólogo segundo a qual o

desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento geral de

O que a criança az comas inormações que lhe

são disponibilizadaspelos adultos?

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Linguagem e Pensamento

nossa espécie, ou seja, ruto de nossa organização social. Até o presente mo-

mento, entretanto, estivemos discorrendo sobre o papel do adulto no desen-

volvimento intelectual inantil, mas nada alamos sobre o que ocorre do lado do

bebê. É chegada a hora, portanto, de discorrer sobre o que ocorre com a criança

a partir da disponibilização desse cabedal de inormações.

O conceito de internalização e suarelevância para refetir o ato educativo

O bebê humano pressuposto na teoria de Vygotsky não é um ser passivo.

Ao contrário, ele só caminha na direção da complexicação de seus padrões

de pensamento caso se engaje em um processo de reelaboração daquilo que

“aprendeu” para transormar as palavras que escutou em outras que sejam mais

adequadas à sua “linguagem interna”.

Compreendendo que a aculdade da linguagem dierencia o homem dos demais

animais inteligentes, o autor destaca que, para nós humanos, o uso de signos az

com que se crie um elo intermediário entre o estímulo e a resposta. Consequente-

mente, ele classica os signos como estímulos de segunda ordem, cuja lógica, ao se

impor para o bebê, substitui o processo simples de estímulo e resposta por um ato

complexo, isto é, mediado pela linguagem (VYGOTSKY, 1988, p. 45).

Pode-se dizer, portanto, que o signo unciona como elo entre nós e o mundo.Ele cumpre a importante unção de azer com que os elementos que nossa per-

cepção capta açam sentido para nós. Esse processo tem extrema importância

para o processo do desenvolvimento humano, pois dicilmente, ao escutar uma

palavra cujo signicado nos escapa ou ao encontrar um objeto cujo uso desco-

nhecemos, vamos tentar utilizar uma coisa ou outra, o que limita nosso campo

de experiência. Isso ocorre porque o homem é um animal que precisa que as

coisas “açam sentido” para que ele se autorize a incidir sobre elas.

Ressalte-se, neste ponto, portanto, que ossignos têm a importante propriedade de exer-

cer uma ação, não só sobre o ambiente externo

mas também, em primeiro lugar, sobre o indi-

víduo, oerecendo-lhe não só um campo maior de objetos nos quais ele se autoriza

a incidir como igualmente ormas de operações psicológicas novas e superiores.

Você já notou que nós temosmedo de pegar objetos cujaorma não “entendemos”?

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Por meio de experiências clínicas com crianças de várias idades, o psicólogo

e seus seguidores perceberam que a conquista dos processos psicológicos supe-

riores demora a ser construída no pequeno humano, dando-se da maneira como

sistematizada no quadro 1.

Quadro 1 – A conquista dos processos psicológicos superiores

Idade pré-escolar Idade escolar Adulto

A criança ainda não é capazde controlar previamente seucomportamento quando de-seja realizar tareas concretas,estando sujeita às contingên-cias.

A criança já pode controlarseu comportamento com oauxílio de signos externos e,desse modo, é mais ecien-te na realização de tareas àsquais se propõe.

O signo linguístico age comoum instrumento da atividadepsicológica, organizando-a.Consequentemente, seu com-portamento pode permanecermediado, ou seja, planejado ereetido com antecedência.

Idade pré-escolar Idade escolar AdultoExemplo: não verica se pe-gou todos os bonecos quevai precisar para montar a en-cenação de uma guerra, ten-do que voltar ao seu armáriomuitas vezes.

Exemplo: para não esquecerde pegar um livro na bibliote-ca, amarra uma ta em tornodo braço.

Exemplo: antes de começarazer um bolo, a dona-de--casa experiente verica sedispõe, em seu armário, detodos os ingredientes de queprecisa.

Dada essa sinopse, é necessário nos interrogar como uma ase dá lugar à outra.

Para responder a essa interrogação, o autor parte da premissa de que a troca de

palavras em meio social possibilita ao sujeito a apropriação de conhecimentos

que circulam no lugar onde vive por meio de uma internalização das atividades

socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas. Nas suas palavras, “a in-

ternalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvi-

das constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qua-

litativo da psicologia animal para a psicologia humana” (VYGOTSKY, 1988, p. 65).

Para ele, todo processo de aprendizagem se inicia por uma atividade externa.

Na vida cotidiana, percebemos, por exemplo, que a criança não ca indierente

às atividades dos adultos. Quando vê os outros azendo algo que ela não conhe-

ce, a criança não só costuma observar atentamente como interroga o praticante

sobre diversos aspectos de seu interesse. A partir de sua curiosidade, portanto,

num primeiro tempo se estabelece um processo que é interpessoal.

Num segundo momento, esse processo torna-se intrapessoal . A criança, por assim

dizer, ala consigo como o adulto ez durante o primeiro momento. Observando-a

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Linguagem e Pensamento

mais detidamente, podemos escutar, inclusive, que ela censura: “Você não está a-

zendo isso direito”, dá recomendações para si mesma: “Faça isso com mais calma”,

relembra-se do próximo passo a ser seguido: “Agora tem que echar a perna do o...”

Ela incorpora, portanto, a voz do outro que previamente lhe ensinou.

Vygostsky conclui dessa constatação empírica que o processo de internaliza-

ção consiste no resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo dodesenvolvimento humano. Curiosamente, todas as unções no desenvolvimento

do homem aparecem duas vezes: uma primeira no nível social e, posteriormente,

no nível individual.

A zona de desenvolvimento proximal e sua

aplicabilidade para refetir sobre a educaçãoProsseguindo o raciocínio sobre os processos de internalização que acaba-

mos de mencionar, Vygotsky (1988) busca estabelecer dois níveis de desenvol-

vimento para compreender como se dão as relações entre o processo de desen-

volvimento e a capacidade de aprendizagem.

Nível de desenvolvimento real : reere-se à capacidade que a criança

apresenta para solucionar atividades ou unções sem o auxílio de outra

pessoa. Caracteriza-se, portanto, pelo desenvolvimento já consolidado.

Nível de desenvolvimento potencial: reere-se àquelas ações que a

criança tem diculdade para realizar, necessitando da ajuda de um adulto

ou de uma criança mais experiente que ela para ser bem-sucedida. Nível

que denota desenvolvimento, uma vez que não somos capazes de azer

determinadas coisas sem auxílio.

Examinando os dois níveis que acabam de ser descritos, o leitor poderá con-

cluir que entre um e outro existe uma zona a ser preenchida. Ela é chamada por

Vygotsky de zona de desenvolvimento proximal e compreende, portanto, a distânciaentre o conhecimento real e o potencial, uma vez que comporta as unções psico-

lógicas ainda não consolidadas, mas que já estão presentes na criança em estado

embrionário. Ela caracteriza prospectivamente o desenvolvimento mental.

O mais importante para a reexão sobre nossa prática pedagógica é, entretan-

to, entender que, nessa linha de raciocínio, o processo de desenvolvimento cog-

nitivo depende da possibilidade de o sujeito ser sempre colocado em situações-

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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-problema que, a partir de sua zona de desenvolvimento proximal, provoquem a

construção de conhecimentos e conceitos.

A possibilidade concreta de construção e consolidação de um conhecimen-

to novo não está no eterno repetir daqueles que já oram consolidados, mas

em sua desestabilização por novas inormações que, ao serem processadas, irão

gerar a mobilização de outros conhecimentos e de outros sujeitos.

O que o conceito de  zona de desenvolvimento proximal nos ensina sobre o

proessor? Para estudar esse conceito e sua utilidade para a reexão sobre a prá-

tica do proessor,  julgamos relevante retomar algumas das considerações desen-

volvidas em estudo anterior (RIOLFI, 1999). Concluímos aquele texto deenden-

do a necessidade de apresentar aos alunos um conteúdo que, ao contrário da

“papinha industrial que costuma ser o conteúdo dos nossos livros didáticos”,

consistisse em “um osso duro de roer”.

Evidentemente, tratava-se de uma metá-

ora orjada para a compreensão da neces-

sidade de apresentar os conteúdos sempre

na orma de um enigma e não previamente

mastigados pelo proessor. Já naquela ocasião, armávamos que ninguém ensina

a ninguém, cada um aprende por si próprio. Só que isso não quer dizer que alguém

aprenda seja lá o que or sozinho. Ninguém aprende nada sozinho e, para que se

aprenda, o proessor tem um papel absolutamente undamental. Seu papel é o de

transmitir um desejo bastante especíco: o desejo de saber, o desejo de sustentarum trabalho que o leve a saber sobre algo que diz respeito ao sujeito que aprende,

qualquer que seja a matéria curricular em jogo naquele momento.

Para argumentar a avor dessa tese, recorremos ao exemplo do desenho ani-

mado O Rei Leão, da Disney – grande sucesso de venda entre as crianças e os

adultos desde o seu lançamento, em 1995. Acho que todo mundo se lembra da

história: após uma inância eliz, vivida lado a lado com seu pai, um adulto côns-

cio de seu lugar na comunidade e exercendo com sucesso sua unção de pai –

que é basicamente a de transmitir ao jovem os valores da cultura, preparando-o,por sua vez, para encontrar o seu lugar na linhagem –, o jovem leão é orçado a

se separar de sua amília.

Exilado, junta-se a uma turma de outros jovens, mais interessados em “curtir

a vida” do que em azer valer sua saída da inância. Nessa turma, entrega-se aos

prazeres de uma vida irresponsável, o avesso daquilo que seu pai lhe ensina-

ra. Isso somado aos arrotos sonoros, à juba mal penteada, à maneira dançante

O que o conceito de zona dedesenvolvimento proximal nos

ensina sobre ser proessor?

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Linguagem e Pensamento

de andar, às conversas disparatadas – em suma, a uma exibição de desrespeito

pelos conteúdos construídos historicamente por sua comunidade de origem.

Eetivamente, o leão apaixona-se por sua ex-companheira de inância, desde

sempre prometida como sua noiva, reencontrada por acidente no meio da selva,

mas, já que não estava disposto a arcar com suas responsabilidades, ele não en-

tabula qualquer relacionamento de compromisso com ela.

A saída desse período irresponsável se dá por uma

ação decidida de um adulto, pela ação incisiva de alguém

que encarna o papel do sábio, portador de um saber cons-

truído e transmitido por gerações: o velho macaco, que assume seu papel sem

vacilação. Por uma ação decidida (uma pancada com um pedaço de pau para lhe

por “algumas ideias na cabeça”), essa “explicação” sobre qual era o seu lugar social

az com que o leão se insira novamente na comunidade, orme amília e cumpra

seu papel de bom rei, há muito previsto na cadeia das gerações.

O que essa história nos ensina? Antes de tudo, a ábula do desenho animado

nos mostra que é por meio da intervenção da geração precedente que a nova

geração assume suas responsabilidades sociais. Mostra-nos que, no caso especí-

co do proessor, cabe a ele mostrar ao aluno que este vai à escola para aprender

os valores acumulados durante séculos pela cultura. Cabe ao proessor auxiliar o

 jovem a encontrar uma direção na vida, que, no mundo moderno, o da crise e o

do desemprego, parece tão incerta. É pena quando os proessores são levados a

abrir mão também da sua unção de adultos...

Em um texto muito curto, escrito em 1910 para criticar um diretor de escola

que tentava eximir-se da responsabilidade pelo suicídio de alguns de seus alunos,

Freud é preciso com relação a esse ponto, armando que a escola

[...] deve lhes dar [a seus alunos] o desejo de viver e devia oerecer-lhes apoio e amparo numaépoca da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a arouxar seusvínculos com a casa dos pais e com a amília. Parece-me indiscutível que as escolas alhamnisso, e a muitos respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para aamília e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior. Esta não é a ocasião oportuna

para uma crítica às escolas secundárias em sua orma presente; mas talvez eu possa acentuarum simples ponto. A escola nunca deve esquecer que ela tem de lidar com indivíduos imaturosa quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento emesmo em alguns um pouco desagradáveis. (FREUD, 1969, p. 243-244 , grio nosso)

Concluindo aqui nossa reexão sobre o papel da linguagem no desenvolvi-

mento intelectual de uma criança, é necessário risar que o educador que pro-

cura inspiração na teoria de Vygotsky, para conduzir a sua prática, encontra-se

convocado a conduzir seu cotidiano educacional de modo a ormar um aluno

que interaja com seu meio, com seus colegas e com o próprio proessor.

O que essa histórianos ensina?

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Faz também parte do papel do proessor compreender que os erros devem

ser vistos como sendo um indício do que a criança não consegue realizar sozinha

ainda. Apostando em seu papel para o desenvolvimento intelectual da criança, o

educador passa a encarar o erro como aquilo que revela o espaço no qual o pro-

essor deve oerecer auxílio. Não se trata, portanto, de julgar a criança, mas de azer

seu papel de educador, ou seja, transormar a alha em mais uma das conquistas

de uma criança em ormação. Vejamos o que Esteban arma a esse respeito:

Nesta perspectiva, o processo ensino-aprendizagem é ortalecido e, ao mesmo tempo,redimensionado. A preocupação não se reduz apenas a alcançar a resposta certa e a aceitar os“erros” que porventura a precedam. Trata-se de priorizar a possibilidade de alunos e proessores,num processo interativo, construírem novos conhecimentos que realimentem o processo. Ocoletivo é recuperado como espaço de construção e apropriação do conhecimento. (ESTEBAN,1992, p. 83)

Finalmente, cumpre ainda dizer que aqueles que aderem à teoria sócio-histó-

rico-cultural de Vygotsky assumem, portanto, um importante desao: conhecer

cada um dos seus alunos ao iniciarem suas atividades em sala, respeitando ecompreendendo que o conhecimento adquirido no seu meio e as especicida-

des dos modos de pensar de seu grupo cultural intererem na aprendizagem

e no desenvolvimento do estudante e são instrumentos importantíssimos para

serem utilizados a seu avor.

Texto complementar

Aula particular(NUNES, 1988, p. 51-60)

O canário na gaiola cantou; Maria olhou. A gaiola estava pendurada na

 janela, batia sol no canário, ele parou de cantar e começou a pular de um

lado pra outro, será que ele queria sair? Mas a porta estava echada, uma

gaiola de nada, como é que prendiam ele assim apertado com tanto lugarpra voar? Escutou a voz de Dona Eunice:

— Mas antes você me diz se esses números são divisíveis por três, por dez

e por mil.

Antes? Antes por quê? O que é que ela tinha alado primeiro? Será que

tinha explicado muita coisa?

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Linguagem e Pensamento

Dona Eunice tirou um apo que estava preso na saia e botou ele dentro

de um pratinho.

— É pra escrever, dona Eunice?

— É.

Maria ez orça pra pensar. Dona Eunice levantou a mão, sacudiu o braço,

e tudo quanto é pulseira oi pro cotovelo, uma esbarrando na outra. Quando

Dona Eunice sacudia o braço daquele jeito é porque estava meio sem paci-

ência, era melhor escrever logo uma coisa, mas o quê?

Uma coisa qualquer, depressa, correndo. Escreveu. Vai ver estava tudo

errado. Dona Eunice oi dizendo:

— Certo. Certo. Certo. Este aqui tá errado!

Maria pegou o lápis.

— Não, não, não!

Que tanto não-não era aquele?

— Não risca, Maria! Eu já disse que não se risca caderno. Fica uma coisa

eia, suja. E não tem nada pior do que a sujeira. Usa a borracha.

Maria pegou a borracha. Dona Eunice viu um apo no tapete e se levan-tou pra pegar. A borracha escapou da mão de Maria, rolou pro chão, caiu tão

perto do ocinho do cachorro que ele nem precisou se mexer pra começar

a cheirar a borracha vendo se era coisa de comer. Maria olhou de rabo de

olho e viu Dona Eunice descobrindo outro apinho no tapete; aproveitou

e pegou disarçado a borracha de Dona Eunice, que estava dentro de uma

caixinha azul; começou a apagar com cuidado, pro papel nem enrugar nem

rasgar. Dona Eunice sentou de novo.

— Isso. Agora escreve certo – Puxou tudo quanto é arelinho de borracha

pra palma da mão, puxou o pratinho pra botar o arelo dentro, largou tudo de

repente, prato, arelo, apo, a vontade de espirrar vinha vindo, vinha vindo, [...].

O espirro não veio e Dona Eunice alou:

— E então, Maria?

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Maria olhou pra Dona Eunice mas continuou pensando no cachorro: e se

ele cismava de engolir a borracha? Era uma borracha grandona, boa mesmo

pra car entalada em garganta de cachorro. Imagina se ele cava todo en-

gasgado e...

— Acorda, Maria!— Hmm?

— Você não ez errado? Não apagou? Então? Faz direito! Mas vamos de

uma vez, você tá mole demais.

Maria começou a escrever. [...] O que é mesmo que ela tinha que escrever?

Ah! Antes ela tinha eito errado, bom, se antes tava errado, o jeito era azer ao

contrário. Mas será que ele tinha engolido mesmo a borracha? Firmou o olho

no caderno e acabou de escrever.

— Tá certo, dona Eunice?

Dona Eunice suspirou “até que enm” e começou a explicar matéria nova.

Maria cou olhando pra ela. Só quando Dona Eunice olhava pro livro é que Maria

olhava pro chão. O cachorro não se mexia [...] vai ver engasgo de borracha não

azia barulho! E se o cachorro tinha se engasgado baixinho? E morrido bem

baixinho? Dona Eunice alava, escrevia, a dormência do pé oi subindo, subin-

do, Maria já não sentia a perna direito, por que que a Dona Eunice tinha virado

o caderno pra ela?

— Você vai eetuar essas adições e subtrações de rações com denomina-

dores iguais e desiguais.

Fração? Mas elas não estavam em número divisível?

— Mas, olha, Maria, eu quero que você use o MMC.

— MMC? (Ai, como a perna tava esquisita! Como ia ser bom sacudir ela bem.)

— Menor múltiplo comum. Ou será que você já esqueceu?

— Não esqueci, não. (Mas de que jeito? Se sacudia a perna, batia no

cachorro.)

— E o MDC?

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Linguagem e Pensamento

— MDC? (e se a perna batia... e o cachorro, não mexia?)

— É.

— Que que tem? (Bom, se ele não mexia...)

— Você está lembrada do MDC?

— Tô, sim senhora. (...é porque tinha mesmo morrido baixinho.)

— Então, vamos ver: aça aí as operações.

Maria se debruçou no caderno. [...]

Maria começou a somar as rações. Resolvendo que só ia pensar no múl-

tiplo e mais nada. [...]

A aula continuou.

Mas Maria não conseguia mais se lembrar do que ela tinha que azer com

o menor múltiplo. Desatou a morder o lápis. A unha de Dona Eunice come-

çou a puxar de novo a pelezinha do polegar. Maria olhou pro relógio em

cima da cristaleira (era relógio-despertador, tocava na hora da aula acabar).

— Temos tempo, Maria, temos tempo. Endireita as costas. Atenção com a

coluna. Não morde o lápis desse jeito, estraga ele todo. E olha só sua boca, o

lábio tá preto! Tudo sujo de casca de lápis.[...] Dona Eunice suspirou. O cachorro voltou para baixo da mesa e o canário

cantou. Maria sentou na mesma posição que estava antes. A aula continuou.

— Você sabe o que é um segmento?

— Um o quê?

— Segmento.

— Não.

— Você sabe o que é uma semirreta?

— Só reta.

— Alguma vez você já ouviu alar em paralelismo e perpendicularismo?

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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— Bom ... – lembrou-se do circo: às vezes eles alavam em botar os cabos

de aço paralelos. O pensamento cou no circo; só voltou quando a dona

Eunice parou de alar pra pegar o lencinho de bolso. [...]

Maria sentou em câmara lenta; endireitou as costas em câmara lenta; enco-

lheu as pernas em — hmm! — quanto tempo ia aguentar naquela posição? Eoi só o cachorro deitar que a Dona Eunice botou o pé em cima dele e alou:

— Agora vou explicar contorno, gura aberta e gura echada. — Olhou

pra Maria; ranziu a testa, mal podendo acreditar: — Mas o que é isso?!

— O quê?...

— Você tá com a boca toda preta outra vez!

Ai: ia começar tudo de novo?

Mas o despertador tocou bem comprido e a aula particular acabou.

Atividades1. Qual a unção das palavras da mãe na estruturação do pensamento do bebê

de acordo com a teoria de Vygotsky?

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Linguagem e Pensamento

2. Em que medida a teoria de Vygotsky se aasta da perspectiva comportamen-

talista, segundo a qual, para o humano, é possível associar o estímulo e a

resposta?

3. Como Vygotsky e seus seguidores descreveram a conquista dos processos

psicológicos superiores no ser humano?

Dicas de estudoRODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

Nesse livro, que traz numerosas sugestões práticas de atividades que podemser reproduzidas ou adaptadas pelos proessores das séries iniciais, Gianni Rodari

propõe uma série de expedientes para que os educadores consigam manter um

contato prazeroso e aetivo com seus alunos; para que, por meio de atividades muito

ricas e divertidas, consigam trabalhar o desenvolvimento da linguagem, da lógica,

da estética; e que, por meio do exercício pleno da sua antasia, consigam o ortaleci-

mento da imaginação e a construção da criatividade, compreendida não como um

dom concedido a poucos, mas como sendo parte da essência do humano.

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa? Será que essa “horacerta” chega ao mesmo tempo para todos? Ela chega como ruto de um

trabalho ou é consequência do desenvolvimento natural de uma crian-

ça? Enm, são muitas as perguntas que um proessor se coloca quando

o assunto em questão é a introdução, aproundamento e progressão de

conteúdos. Essas interrogações costumam ser desconortáveis, já que, na

maioria das vezes, geram insegurança quanto ao melhor ritmo para o de-

senvolvimento de seu trabalho.

Para os proessores que se inspiram na perspectiva vygotskyana para or-ganizar o seu modo de trabalhar, talvez a angústia para tentar respondê-las

seja um pouco menor, uma vez que, nessa orientação, a educação não ca à

espera do desenvolvimento intelectual da criança, mas, ao contrário, enten-

de que sua principal unção é dar origem ao desenvolvimento. Não se trata,

portanto, de esperar a criança se desenvolver primeiro para azê-la aprender

depois, mas, ao contrário, de azê-la aprender para que possa se desenvolver.

Para você, essa perspectiva parece muito pouco amiliar? Provavel-

mente, sim, uma vez que essas ideias demoraram um bom tempo parachegar ao nosso país. Lembremos que, embora Vygotsky tenha sido autor

de vasta obra – iniciada quando ele contava apenas 21 anos –, ela perma-

neceu censurada na Rússia (seu país de origem) durante muitos anos. Por

esse motivo, ela tornou-se pública em diversos países apenas a partir do

nal dos anos 1950 e início da década de 1960, quando algumas de suas

obras chegaram às universidades americanas e europeias e, assim sendo,

oram traduzidas para várias línguas.

A infuência do aprendizado escolarno desenvolvimento da criança

Quem oi Vygotsky?

Vygotsky ormou-se em Literatura e Direito pela Universidade de

Moscou. Mais tarde, iniciou estudos de História e Filosoa na Universida-

de Popular de Shanyavskii e de Medicina de Kharkov e Moscou. Não

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Linguagem e Pensamento

concluiu estas últimas ormações, mas nelas encontrou os subsídios que pre-

cisava para desenvolver os estudos na área de psicologia. A partir de 1917,

iniciou uma carreira extremamente rica em produções. Ainda na cidade de

Gomel, onde esteve até 1923, undou uma editora, criou uma revista lite-

rária, estruturou um laboratório de psicologia, dirigiu a seção de teatro do

departamento de educação e ainda proeriu várias palestras cujas temáticascentrais eram a ciência, a literatura e a psicologia. Morreu de tuberculose em

1934, mas sua obra não terminou junto com ele. Teve continuidade a partir

do trabalho de dois pesquisadores que colaboravam e participavam de seus

projetos: Alexei Leontiev e Alexander Luria.

(Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=431, 2005>.)

Lembremos ainda que, em suas pesquisas para identicar as mudanças qualita-tivas dos undamentos do pensamento, encontram-se as inuências marxistas do

materialismo histórico. Essas teses levaram-no a conceber uma teoria que explica

o desenvolvimento do comportamento humano em sua relação com o contexto

social e, por este motivo, dar muita importância aos lugares em que o aprendizado

se az de modo sistemático e socialmente organizado, como veremos a seguir.

O papel da escola nodesenvolvimento intelectualDesde o início do capítulo, risamos a importância de ensinar uma criança

para que ela possa se desenvolver na plena potencialidade como os demais

membros de sua espécie.

Isso signica que, segundo essa perspectiva, a unção

da escola é a de soterrar as crianças com o maior número

de conteúdos possíveis? De orma alguma! Aprender,nessa visada, não é sinônimo de tomar contato com uma

lista de pontos registrada no currículo escolar, mas orçar uma passagem: trans-

ormar os conceitos espontâneos (aqueles que desenvolvemos na convivência

social) em conceitos científcos (aqueles que são ormalizados de acordo com as

regras da cultura elaborada). Vejamos na citação a seguir o argumento utilizado

pelos autores para deender a necessidade da intervenção do adulto no desen-

volvimento intelectual da criança:

Você já ouviu alarque “uma andorinha

não az verão”?

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A inuência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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[...] a criança não consegue pensar de maneira sucientemente lógica e consistente para perceberque conceitos associados ao mundo exterior podem ser colocados em vários níveis e que um objetopode pertencer ao mesmo tempo a uma classe mais estreita e outra mais ampla [...] pode-se dizerque o pensamento da criança é sempre concreto e absoluto. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149)

As crianças, quando são espontâneas, divertem-nos muito, não é verdade?

Você, com certeza, já ouviu a seguinte anedota circular entre as mães que são

suas conhecidas, nas mais diversas variações.

Criança:

— Me compra aquela boneca?

Mãe:

— Não posso, não tenho dinheiro.

Criança:

— Então compra com cheque, ué!

Por que elas azem isso? De acordo com a perspectiva aqui exposta, elas o

azem porque têm indierença pelas contradições e, por esse motivo, não con-

seguem, por exemplo, alcançar soluções para problemas lógicos cujas soluções

não podem ser ineridas por meio da observação direta do mundo real. Para tal

m, elas precisam ser inseridas na lógica da cultura.

Nesse ponto, uma importante constatação se apresenta: a necessidade da

organização coletiva do grupo da escola, capaz de, às vezes, pelo simples teste-

munho do modo como se organiza, dar a ver para um pequeno ser humano quecertas soluções não são passíveis de serem alcançadas pela observação direta,

necessitando de um cálculo. Para o proessor, trabalhar no sentido de organizar

o grupo é mais importante que imitar um super-herói, um cavaleiro da luz que

trabalha sozinho e anônimo para o bem comum, tendo pouco “poder de ogo”.

Para dar um exemplo sobre o tipo de organização ao qual nos reerimos,

vamos trazer aqui o trabalho de Pacheco (2004), amoso mundialmente pelos

bons resultados que vem conseguindo com “crianças diíceis” na Escola da Ponte,

em Portugal. Interrogado sobre as razões de seu sucesso, Pacheco arma que osegredo de seu trabalho é o estabelecimento de uma cultura de escola, compos-

ta por normas, todas levadas muito a sério, estabelecidas há cerca de 30 anos.

Deixemos Pacheco comentar a primeira de suas regras:

A primeira delas é: “Quem não é solidário não permanece aqui”. Esse valor de solidariedadeé um valor que é avaliado permanentemente. Ninguém se disarça de solidário. Não se podedisarçar uma coisa dessas para jovens de 10, 11, 12, 14, 16 anos ou mais. Eles percebem amentira nos gestos das pessoas. Se o proessor não é solidário com o outro proessor, tambémnão vale a pena pensar que eles vão agir solidariamente. (PACHECO, 2004, p. 199)

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Linguagem e Pensamento

Lendo o trabalho de Pacheco, podemos ganhar em nossa compreensão sobre

a tese, deendida por Vygotsky e Luria (1996, p. 148), pela qual os atores mais

importantes para o desenvolvimento psicológico são “[...] o desenvolvimento da

tecnologia e, em correspondência a isso, o desenvolvimento de uma estrutu-

ra social”. No nosso caso especíco, podemos salientar a importância de uma

cultura de escola que, como um todo, desae o aluno e lhe orneça, não só um

ambiente seguro para suas explorações intelectuais como, também, a presença

inquestionável do saber acumulado pela geração anterior.

Tendo aqui concluído nossa exploração sobre o que Vygotsky e Luria chamam

de desenvolvimento de uma estrutura social , é hora de nos interrogarmos sobre o

que os autores chamam de tecnologia. Para tal m, daremos privilégio à ormu-

lação que oi eita em suas próprias palavras:

A tecnologia avançada resulta na separação entre as leis da natureza e as leis do pensamento[...] paralelamente a um nível superior de controle sobre a natureza, a vida social do homeme sua atividade de trabalho começam a exigir requisitos ainda mais elevados para o controledo próprio comportamento. Desenvolve-se a linguagem, o cálculo, a escrita e outros recursostécnicos da cultura. Com a ajuda desses meios, o comportamento do homem ascende a umnível superior. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149, grio nosso)

Se você entendeu a citação que acaba de ler, entendeu também um assunto

que nos interessa muito de perto: a importância do ensino deliberado e sistemá-

tico das unções sociais da escrita, seus modos de apropriação pela comunidade

do aluno e as maneiras como ela circula no grupo escolar do qual você e o seu

aluno azem parte.

Que se rise, portanto, neste momento: não se pode esperar o aluno escrever

por si só – é preciso instigá-lo e desaá-lo para que tenha vontade de azê-lo. Se

você nos permite uma expressão muito popular que bem qualica este ponto da

reexão, devo dizer que “é aí que a porca torce o rabo”!

Construir uma educação desaadora

para promover o desenvolvimento humanoNeste momento de nossa reexão, aposto que você já deve estar se pergun-

tando sobre quais aspectos são os mais importantes se quisermos construir uma

educação desaadora para promover o desenvolvimento humano. Para respon-

der a essa pergunta, é necessário dizer que, em primeiro lugar, devemos levar

em conta que nossas salas de aula estão longe de serem homogêneas com rela-

ção à sua procedência cultural.

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A inuência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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Essa heterogeneidade de nosso público-alvo, por sua vez, leva-nos à neces-

sidade de pensar sobre as escolas que adotam o chamado multiculturalismo

crítico. Vejamos, no que se segue, o que Cortesão (2004) tem a nos acrescentar

sobre os eeitos positivos e potencialmente negativos daquilo que chama de

 práticas educativas e interculturais .

Nós devemos valorizar as características socioculturais, mas se não estivermos atentos enão analisarmos as coisas proundas, nós podemos estar somente olclorizando as dieren-ças, não vendo as armadilhas postas ali.

Nós podemos contribuir para maior armação social de grupos minoritários, mas ao mes-

mo tempo podemos, quando eles se assumem com uma identidade e têm consciênciadela, acentuar o exotismo das dierenças, tornando a questão bizarra.

Podemos ainda contribuir para a melhoria da autoimagem pessoal e grupal, entretanto,

essa melhoria pode ser acompanhada da inculcação da ideologia da incompetência, é aquestão do “que coitadinhos”.

Podemos também contribuir com algo que para mim é muito claro, que é o caráter lúdico,

a alegria do processo da aprendizagem. É preciso que as escolas deixem de ser chatas, deser soturnas, que haja alegria na aprendizagem, mas é preciso que isso não seja pago como preço de as pessoas aprenderem menos. Pode-se aprender bem e contente, bem e eliz,isso acontece quando as pessoas percebem por que estão aprendendo, qual o signicadoe para que serve o aprendizado.

Finalmente, podemos produzir um processo de aquisição de poder, de consciência dos di-

reitos de cidadania, mas pode ser uma situação em que, com a olclorização das dierençase a acentuação do exotismo, haja o isolamento, o enraquecimento e até mesmo a gue-tização dos grupos, azendo-os se isolarem da sociedade. Esse ponto eu tenho trabalha-do com os ciganos, o isolamento desse grupo diante da sociedade moderna. (CORTESÃO,2004, p. 262-263)

A proessora Cortesão, que mora e leciona em Portugal, mostra-nos, na listade oposições encontradas acima, que, embora o discurso sobre o “respeito às

dierenças” esteja muito disseminado, muitas vezes, por não ser sucientemente

digerido, ele acaba sendo uma armadilha para seus deensores, que, sem per-

ceber, acabam criando na escola um ambiente de segregação para as crianças

cujos padrões de pensamento não são os da maioria. Para transpor essa discussão

para o contexto brasileiro, vamos recorrer a um exemplo e a algumas das consi-

derações analíticas desenvolvidas por Barzotto (2005). Como ponto de partida,

em uma palestra sobre os discursos que circulam no interior da escola brasileira,

o autor utilizou-se de uma gravação em áudio eita por uma de suas alunas, háalguns anos, numa primeira visita a uma escola. Trata-se de um diálogo do qual

participam um aluno, de aproximadamente oito anos, e um supervisor escolar.

Tomemos contato com esse diálogo.

Aluno:

— A tia Rose taí?

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Linguagem e Pensamento

Supervisor:

— Que cê qué c’a Rose? Ahn?

Aluno:

— Falá um negócio pr’ela.

Supervisor:

— Que negócio cê qué alá c’a Rose?

Aluno:

— Um negócio.

Supervisor:

— Ué, negócio é negócio, meu o. Vem cá. Vem cá. Que conteceu?

Aluno:

— (incompreensível) e eu ui lá vê na sala e lá tem outro proessor.

Supervisor:

— Quem é a outra proessora? Que sala que cê oi?

Aluno:

— Ahn?

Supervisor:

— Qual sala que cê oi. Qual a proessora sua?

Aluno:

— Estudo c’a Marta.

Supervisor:

— E tá, qual a proessora que tá lá agora?Aluno acena com a cabeça indicando que não sabe.

Supervisor:

— Uma Leda, uma de óculos?

Aluno:

— É.

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A inuência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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Supervisor:

— É naquela sala qué pu cê entrá mesmo, é lá mesmo qué pra entrá...

Na análise desse extrato, Barzotto mostrou que um primeiro nível de abor-

dagem ao diálogo que oi transcrito seria o de ocalizar o seu conteúdo, atendo,

portanto, apenas aos atos narrados. Nesse caso, a pergunta “De que ala o extrato

acima?” nos levaria a uma resposta do seguinte tipo: trata-se do relato envolven-

do um aluno, que oi até a sala em que estuda e encontrou outra proessora. Sem

entender direito o que estava acontecendo, procurou por uma pessoa a quem

chamava de “tia Rose” e não a encontrou. Então, um supervisor da escola, um

tanto impaciente, esclareceu que era para o aluno entrar na sala assim mesmo.

Armando que esse nível de exploração é bastante supercial e não nos leva

a compreender de ato o impasse que está em jogo na relação desse adulto com

a criança, Barzotto também aponta para a possibilidade de abordar o excerto

a partir da pergunta “as alas dos personagens estão em conormidade com as

regras da gramática normativa da língua portuguesa?”. No entanto, para ele, essa

pergunta teria utilidade apenas na medida em que a variedade de língua utiliza-

da pelos dois alantes servisse de indício para se especular sobre a classe social a

que podem pertencer os envolvidos no diálogo, dado que, em si, não nos ajuda

a aproundar a reexão sobre o cotidiano escolar.

Por esse motivo, o autor nos propõe um terceiro nível de exploração: reetir

sobre a escolha dos enunciados realizada por cada um dos alantes. Deende que

a pergunta proposta por Foucault (1987) como undamental para a análise do dis-curso – “Por que apareceu o enunciado X e não outro possível?” – tornaria a análise

mais produtiva. Para explorar essa vertente da análise, o autor salienta que é inte-

ressante notar, por exemplo, que na primeira vez que o supervisor ala, ao invés de

responder à pergunta que lhe oi eita, ele interpela o aluno com uma outra per-

gunta, quebrando, ao mesmo tempo, as regras do diálogo e da etiqueta social.

Perseguindo a escolha de enunciados eita pelo supervisor, é possível ormu-

lar uma hipótese segundo a qual ela parece estar menos interessada em auxiliar

o aluno e a lhe ornecer um espaço para pensar do que começar uma luta pelopoder. De ato, segundo a análise de Barzotto, a pergunta eita pelo supervisor

demonstra que o poder de quem está num determinado lugar de prestígio lhe

conere o direito de azer perguntas que aquele que está em posição despresti-

giada não tem. Dentro dessa lógica, a pergunta da criança ameaça o poder do

adulto, que, de pronto, recupera-o.

Na continuidade de sua análise, mostra que a criança não cou indierente à

posição do supervisor: ao contrário, ela entendeu muito bem que uma disputa

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Linguagem e Pensamento

estava instalada. Assim sendo, a criança também se deu o direito de não respon-

der, embora tenha eito semblante de quem dá uma resposta. Ela é evasiva, escon-

de o jogo, dizendo simplesmente “Falá um negócio pr’ela”, mantendo sua posição

de esquiva quando nova pergunta é eita de novo, ela diz apenas “Um negócio”.

Ou seja, Barzotto nos mostra que a criança disputa o poder com o supervisor.

Já que este tomou de volta o direito de perguntar (e o poder que tal ato conere),a criança lhe nega o direito de obter resposta e resiste o quanto pode. É como

se ela zesse questão de deixar claro o seguinte: “não é com você que eu quero

alar, não é a você que eu cono minhas diculdades”.

Tendo acompanhado a exposição eita por Barzotto, agora pensemos juntos:

o que é possível ensinar para uma criança que, em consequência de nossos atos,

está nos dizendo “eu não quero alar com você”? Muito pouco, sem dúvida!

Construindo uma relação pedagógicana qual seja possível explorar os conteúdos

Inere-se do exemplo explorado anteriormente, bem como de todo trabalho

de Vygotsky, que não são tanto os conteúdos em si que contam, mas, em primei-

ro lugar, o que az dierença é a instalação de uma relação de conança na qual a

criança, a partir do que pôde concluir por suas investigações solitárias, tenha von-

tade de azer as perguntas corretas aos adultos responsáveis por sua ormação.

Na concepção vygotskyana, portanto, o sujeito não é apenas ativo, mas in-

terativo, uma vez que se constitui a partir das relações interpessoais. Por esse

motivo, é importante compreender que, nessa visada, o aluno é visto como

alguém que aprende junto com o seu grupo social. De ato, ele está, antes de

tudo, amarrado por tudo o que o seu grupo social produz: os valores, as práticas

sociais, os modos de circulação do conhecimento e assim por diante.

Por esse motivo, julgamos imprescindível que a escola recupere a identidadede ser o lugar onde a intervenção pedagógica intencional visa desencadear o

processo de aprendizagem. Assim, o proessor não deve se omitir. Ao contrário,

como mediador entre a criança e a cultura elaborada, ele tem o papel explícito

de intererir no processo da criança.

Faz parte do trabalho do proessor, portanto, organizar sua prática pedagó-

gica levando em conta que a aula não é um ambiente inormal no qual a criança

aprende por imersão em um ambiente cultural, mas sim um espaço em que, na

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A inuência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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troca com outros sujeitos, os conhecimentos, seus papéis e suas unções sociais

sejam internalizados.

Para concluir, gostaríamos agora de retomar a questão com a qual esta nossa

discussão oi aberta “Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa e tentar subs-

tituí-la por outra que nos parece mais produtiva?”, “Será que nossa relação com

nossos alunos e a relação deles entre si está organizada de modo que seja possívelaprender alguma coisa?”. Em caso armativo, a boa hora chega, com certeza!

Texto complementar

A avor dos videogames(KANITZ, 2005, p. 22)

O cérebro humano é um órgão que absorve quase 25% da glicose que

consumimos e 20% do oxigênio que respiramos. Carregar neurônios ou si-

napses que interligam os neurônios em demasia é uma desvantagem evolu-

tiva e não uma vantagem, como se costuma armar.

Todos nós nascemos com muito mais sinapses do que precisamos. Aque-

les que crescem em ambientes seguros e tranquilos vão perdendo essas

sinapses, que acabam não se conectando entre si, enômeno chamado deregressão sináptica.

Portanto, toda criança nasce com inteligência, mas aquelas que não a

usam vão perdendo-a com o tempo. Por isso, o menino de rua é mais esperto

do que lho de classe média que ca tranquilamente assistindo às aulas de

um proessor. Estimular o cérebro da criança desde cedo é uma das tareas

mais importantes de toda mãe e todo pai modernos.

Sempre ui a avor de videogames, considerados uma praga pela maioria dos

educadores e pedagogos. Só que bons videogames impedem a regressão si-

náptica, porque enganam o cérebro azendo-o achar que seus lhos nasceram

num ambiente hostil e perigoso, sinal de que vão precisar de todas as sinapses

disponíveis. O truque é encontrar bons jogos, mas não é tarea impossível.

O primeiro videogame que comprei para meus lhos oi o amoso SimCi-

ty, um jogo em que você é o preeito de uma pequena vila e, dependendo

de suas decisões, ela pode se tornar uma megalópole ou não. Se você or

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Linguagem e Pensamento

um péssimo preeito, a população se mudará para a cidade vizinha, e m de

 jogo. Em vez de eleger preeitos, seria muito melhor se empossássemos o

vencedor do campeonato de SimCity em cada cidade.

Um dia, eu estava brincando de preeito quando meus lhos de 11 e 13

anos de idade, analisando meu planejamento urbano inicial, balançaram acabeça em desaprovação: “Tsk, tsk, tks. Pai, daqui a 50 anos você vai dar com

os burros n’água.” Eu, literalmente, caí da cadeira. Quantos de nós, aos 11

anos, tínhamos consciência de que os eitos na época poderiam ter conse-

quências neastas 50 anos depois? Quantos de nós pensaríamos em prever

um uturo dali a 50 anos?

A lição que me deram com o amoso videogame Mario Brothers oi ainda

melhor. Não tendo a paciência de meus lhos, eu vivia cortando caminho pelos

vários atalhos existentes no jogo, quando novamente me deram o seguinteconselho: “Não se podem queimar etapas, senão você não adquire a experiên-

cia e a competência necessárias para as situações diíceis que ainda estão por

vir.” A rase não oi exatamente essa, mas oi o suciente para me deixar com

os cabelos em pé. Dois garotos estavam me ensinando que cada etapa da sua

vida tem seu tempo e aprendizado, e nela não se pode sair apressado.

No jogo Médico, as crianças aprendem a azer um diagnóstico dieren-

cial, a pior das alternativas sendo uma apendicite. Nesses casos, elas têm de

operar “virtualmente” o paciente seguindo condutas médicas corretas. Umdos procedimentos é a assepsia da pele, e ai de quem não escovar o peito do

paciente, com o mouse nesse caso, por três minutos, o que é uma eternidade

num videogame e para uma criança. Quem gasta menos do que isso é su-

mariamente expulso do hospital por erro médico. Que matéria ou proessor

ensinam esse tipo de autodisciplina?

Em A-Train, o jogador é um administrador de empresa erroviária. A crian-

ça tem de investir enormes somas colocando trilhos e locomotivas sem

contar com muitos passageiros no início das operações. Aprende-se logocedo que uma empresa começa com prejuízo social e tem de ter recursos

para suportar os vários anos decitários.

Aos 12 anos, meus lhos já tinham noção de que os primeiros anos de um

negócio são os mais diíceis, e controlar o capital de giro é essencial. Avaliar

riscos e administrar o capital de giro, nem grandes empresários sabem azer

isso até hoje.

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A inuência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

119

Como em tudo na vida, é necessário ter moderação nas horas devotadas

ao videogame. Mas ele é uma ótima orma de estimular o cérebro da criança

e impedir sua regressão sináptica, além de ensinar planejamento, paciência,

disciplina e raciocínio, algo que nem sempre se aprende numa sala de aula.

Atividades1. Por que o proessor que segue a perspectiva vygotskyana não se preocupa

tanto com aspectos como prontidão ou maturação?

2. Por que os vygotskyanos tendem a dar grande importância à escola e à sua

organização?

3. Em que medida ensinar um grande número de conteúdos às crianças é im-

portante para os vygotskyanos?

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Linguagem e Pensamento

Dicas de estudoCERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: _____. A Invenção do Coti-

diano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 221-246.

Partindo de uma perspectiva teórica conhecida como antropologia cultural , Cer-teau deende a tese de que o termo escritura é o nome que oi dado a uma triunal

conquista da economia que se consolidou nos séculos XVII e XVIII. O autor nos ex-

plica que, sob o domínio de uma sociedade na qual a escritura serve como princípio

organizacional, o ato de escrever não pode mais ser compreendido como uma ação

mecânica. Ao contrário disso, segundo o autor, construir um texto sobre a página

em branco pode ter um poder sobre a exterioridade. Ou seja, esse interessante

texto de Certeau nos mostra como, a partir de um certo período histórico, a escrita

não mais se limita a ser um registro do mundo, mas pode mudar a realidade.

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A inuência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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Você já parou para se perguntar por que o ato de escrever é uma dicul-dade bastante acentuada para tanta gente? Se não o ez ainda, com certe-

za pelo menos assistiu a algum lme ou novela que representa a seguinte

cena clássica: a pilha de papéis amassados na cesta de lixo ao lado do escri-

tor vai crescendo assustadoramente e o pobre ineliz vai cando cada vez

mais entristecido, pois, apesar de tanto trabalho, ele nada produz...

Pensando sobre essa inibição rente ao ato de escrever armamos, em

(RIOLFI, 2005b), que o trabalho com a escrita é, ao mesmo tempo, asci-

nante e dilacerante. Ressaltamos que a escrita pode ter a magia de perpe-tuar uma ideia, um pensamento, sentimentos e emoções à condição de

que seu autor se autorize a sustentar um exercício constante de reexão,

paciência e perseverança. Reexão sobre a questão mobilizada antes de

escrever; paciência para a busca das palavras mais adequadas; perseve-

rança para reescrever quantas vezes orem necessárias para alcançar a pa-

lavra justa. Naquela ocasião, dizíamos ainda que escrever é um exercício

constante de transormação. Se aquele que escreve está disposto a pagar

o preço de se perder para se reencontrar em seu próprio texto, a escritapode transormar tudo, inclusive o ser humano.

Será que sempre oi assim?

A invenção da escritaSabemos que a potência transormadora da escrita demorou a se ins-

talar na humanidade. A escrita surgiu em lugares dierentes, com un-

ções dierentes. Para alguns povos, tinha unção predominantemente

religiosa. Para outros, de acordo com Manguel (1998), a escrita oi desen-

volvida por uma necessidade econômica: a de registrar quantidades de

terras e de animais, bem como a de delimitar regiões geográcas. Para

tais ns pragmáticos, os sumérios desenvolveram uma tecnologia apro-

priada para suas necessidades especícas – a escrita cuneiorme. Manguel

mostra que, ao se apropriar dessa escrita rudimentar para ns dierentes

O desao de ensinara escrever bem nos dias de hoje

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124

Linguagem e Pensamento

daqueles originariamente imaginados, nossos antepassados remotos oram,

paulatinamente, construindo um instrumento ainda mais potente e que causou

uma grande revolução da humanidade: o alabeto onético.

Por possibilitar innitas combinações, po-

dendo ser utilizado para atingir um grande

número de pessoas com uma única emissão(como é o caso, por exemplo, dos outdoors) e

oerecendo uma xidez maior que a da ala,

essa tecnologia oi, pouco a pouco, tornan-

do-se central na organização e na manuten-

ção de nossa cultura. Registrando normas

e procedimentos, compartilhando ideias e

checando a aprendizagem, a escrita é o ins-

trumento que pode proporcionar uma coerência de princípios losócos e ope-

racionais nas várias instâncias, pois, para além da ala, que pode ser negada ou

omitida, a escrita tem orça de lei.

A mutação das unções sociais da escrita1

Nos mais variados lugares de nosso país aonde vou para ministrar cursos de

ormação de proessores, uma mesma pergunta é repetida por aqueles que se

dedicam ao ensino da escrita: “É ainda possível transmitir o amor pela escrita àsnovas gerações?”. De uns tempos para cá, mais do que nunca, penso como res-

ponder a isso de orma sincera o dia inteiro. Ao azê-lo, uma vozinha interna me

diz: “Claudia, não esquece que você oi ormada em outro tempo, é ruto de outras

regras e, portanto, tem que explicar direito seu amor pela escrita.” Para contextu-

alizar meu conesso amor pela escrita, devo dizer que nasci em 1965, mas como

sou lha de pai velho, cresci em cidade do interior, e ui aluna de proessores que,

na data de minha graduação, tinham bem mais do que 50 anos, a tradição cultu-

ral que em mim deixou sua marca é, sem dúvida, aquela anterior aos anos 1950.

Com certeza há, entre os meus leitores, pessoas que compartilham dessa he-

rança cultural, mas isso não é verdade para um grande número de pessoas que

estão na ativa como proessores hoje, e ainda menos verdade para os alunos

que, atualmente, povoam as carteiras das escolas básicas. Hoje em dia, o laço

cultural que organiza nossas trocas sociais é outro. Cada um vale mais ou por

1Nesta parte do texto, em decorrência da natureza bastante singular da argumentação que z no texto que lhe serve de base (RIOLFI, 2004), aqui

apresentado de maneira adaptada, peço licença ao leitor para usar a primeira pessoa do singular.

Escrita cuneiorme.

    D   o   m    í   n    i   o   p    ú    b    l    i   c   o .

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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sua (boa) aparência ou pelo que tem do que pelo que é. Ou seja: nos últimos

40 anos, o discurso capitalista se impôs como uma realidade indiscutível, sendo

poucos os redutos nos quais não é ele quem dá as cartas e dita as regras do jogo.

Seu centro é o objeto, ou seja, aquilo que pode ser comprado por via do dinheiro,

usuruído para um prazer ou resultado imediato e, de preerência, rapidamen-

te trocado por um objeto mais novo, mais moderno. Corremos como baratas

tontas atrás das novidades, alimentando um mercado que demanda sempre

mais dinheiro, enriquece sempre alguém.

A maioria de nossos alunos unciona nessa lógica. Conrontados com os con-

teúdos escolares, os alunos querem saber que tipo de prazer imediato os conte-

údos podem lhes dar ou a sua serventia direta para ganhar dinheiro. Tive opor-

tunidade de escutar diversos relatos de proessoras magoadas por alunos que as

interpelavam em sala de aula dizendo a seguinte rase ou suas variações: “Não

vou azer nada do que a senhora está propondo, ganho mais em um dia ajudan-

do os tracantes do meu bairro do que a senhora em um mês dando aulas aqui.”

Eles não estão mentindo, é bom deixar claro. Estão apenas verbalizando em alto

e em bom som um processo que, em maior ou menor medida, é comum a todos:

a diluição dos valores morais e dos ideais ormadores de conduta.

Os psicanalistas têm explicado essa diluição nos seguintes termos: eles dizem

que rompemos com a lógica de uma cultura centrada no pai, caracterizada por

um certo pensamento monotemático, por uma unidade de pensamento e de

orientação. É isso que tenho em mente quando me lembro dos meus quase 40

anos. Quando ui educada, os pais tinham poucas dúvidas sobre a direção na

qual deveriam encaminhar seus lhos e lhas. Na cabeça do meu pai, ã dos

ditos populares, o que valia no exercício de uma prossão era a seguinte rase:

“Você pode até ser um coveiro, mas seja um bom coveiro.”

Resumindo: o que estou querendo mostrar é que, para essas pessoas “anti-

gas”, a letra tinha muito peso na tradição cultural, tendo quase um valor de eti-

che. Aprendíamos a cultuar o bem escrever e a admirar os bons autores. Na cor-

rida matrimonial, ganhava pontos como parceiro quem soubesse escrever uma

poesia ou, ao menos, uma bela carta de amor ressaltando nossas qualidades.

Valia até copiar uma poesia do outro, mas que osse bela, transcrita sem erros!

Se, por um lado, tratava-se de um tempo em que havia muitos analabetos, por

outro, a letra estava no centro da cultura, e mesmo os analabetos não lhe ne-

gavam o valor. Se vericarmos a história de nossas amílias, com certeza muitos

de nós nos depararemos com grandes sacriícios eitos por algum antepassado

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Linguagem e Pensamento

analabeto para educar seus lhos, pois havia um certo consenso no ato de que

deveria ser preparado um melhor destino para as crianças e que este se obteria

por via da introdução dos descendentes na cultura letrada.

Por milhões de anos, mantivemos o caráter original da escrita: o de objeto

sagrado, originariamente inventado para servir de intermediário entre os

homens e Deus. Quem conhece a história da Bíblia sabe que em um de seuslivros (EXODO 31:8) está claramente indicado o ato de que as tábuas da aliança

entre os homens e o reino dos céus eram tábuas de pedra, escritas pelo dedo de

Deus. Independentemente das crenças religiosas de cada um, estudando a his-

tória do advento da escrita, somos obrigados a admitir que a escrita alabética

como a conhecemos hoje surge na cultura ao mesmo tempo que a invenção do

monoteísmo, tendo, por longo tempo, uncionado como aliada na manutenção

da cultura centrada nos valores de um pai, como apontei logo acima.

O que estou querendo mostrar com esse recuo até a instalação do monote-ísmo é que o estudo da história da escrita nos mostra, antes de tudo, como seu

advento e seus usos estão completamente ligados com o laço maior da cultura.

Portanto, não é possível estudar os enômenos ligados ao uso, ao ensino e à

conservação da letra como prática social sem nos remetermos ao laço social de

orma mais ampla. É dierente considerarmos a letra como um ragmento do

sagrado, exigindo cuidado, conservação e transmissão sistemática, e a conside-

rarmos como uma tecnologia entre tantas outras possíveis. Manter a letra em

seu pleno uncionamento, persistindo no diícil esorço de bem articulá-la no

texto, demanda, pelo menos em algum grau, a insistência na manutenção de

uma sociedade na qual as regras são claras, e que, antes de tudo, é claro o ato

de que há regras a serem cumpridas e ensinadas para as crianças.

Isso que acabo de armar no parágrao precedente equivale a dizer que, para

aquelas pessoas que são ruto de uma tradição cultural contemporânea, na qual

um pai não vale por sua mera condição de pai, mas pelo que pode oertar em

termos de conorto material para sua mulher e lhos, a letra deixou de ter um

valor central . Estamos em ace de um estranho paradoxo: no momento em que

caminhamos para “o extermínio” do analabetismo, uma vez que, como nunca,

temos pessoas consideradas alabetizadas, a letra oi esvaziada do seu valor.

Perdemos o amor pela escrita como um ator social generalizado, mantendo-o,

apenas, como um enômeno isolado e pontual. O que temos hoje é uma insis-

tência no uso da letra como uma tecnologia instrumental.

Escrever para conseguir emprego, redigir para ser secretária e dissertar para

passar no concurso público são ações solidárias com a lógica da cultura capitalista,

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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ou seja, quanto mais “uncionarmos” dentro de uma lógica utilitarista, mais are-

mos com que a letra perca seu poder, uma vez que a transormamos num objeto

como outro qualquer. Nossa cultura contemporânea é caracterizada pelo ato

de ser plural. Em seu seio, praticamente não há predomínio de uma opção em

detrimento das outras: quase tudo se pode escolher.

O problema principal nessa perda de estatuto sorida pela letra é o ato deque ninguém ama um objeto. A gente pode comprá-lo, usá-lo, trocá-lo, destruí-

-lo, mas quase nunca amá-lo. Consequentemente, cada vez mais, escreve-se de

qualquer jeito, sem cuidado, sem carinho, sem requintes de ternura para com

a mulher amada. Não é de se estranhar que, de norte a sul, uma mesma queixa

sobre a má qualidade da escrita dos alunos se imponha e, o que é pior, seja real.

Insistir nessa queixa é ajudar a enterrar os restos mortais da letra. Ninguém con-

vence a quem quer que seja a voltar ao passado, até porque seria impossível.

Assim sendo, o que resta ao proessor azer?

O papel do proessor noprocesso de aprender a escrever

Dadas as considerações de cunho cultural que acabamos de azer no item

precedente, convidamos o proessor para “deixar de chorar o leite derramado” e

olhar de rente a crise em que nossa geração se encontra. Para sermos ecazesno ato de ensinar a ler e a escrever, é necessário abdicar completamente das vãs

esperanças de azer com que nossos alunos vejam o mundo com os olhos de 50

anos atrás, porque, muito evidentemente, mesmo o proessor mais competente

não tem uma máquina do tempo.

Retomando a pergunta que os proessores costumam se azer (“É ainda possível

transmitir o amor pela escrita às novas gerações?”), é necessário ressaltar que sua

reposta é, ao mesmo tempo, negativa e armativa. Ela é negativa para todo aquele

que pretende transmitir o seu amor pela escrita ao outro, sem levar em conta o atode que, na contemporaneidade, as crianças estão regidas por uma outra lógica.

Entretanto, ela é positiva para todo aquele que, não temendo aprender com

as lições do passado, olhe de rente para as mazelas do presente e, incluindo-

-se nelas, reita sobre sua eventual responsabilidade e participação no estado

atual das coisas e ouse criar para si um novo modo de viver e para seus alunos

um novo modo de aprender. Tracemos, portanto, outros modos para trabalhar

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Linguagem e Pensamento

com a escrita. É hora de nós, educadores, transormarmo-nos em “operários do

amanhã”. De preerência por escrito, dada a natureza de nossa prossão.

Tendo considerado essa decisão a respeito da importância de exercer seu papel

de mediador, é hora de trazer algumas inormações de natureza mais técnica que

podem ajudar o proessor a ensinar a escrever. Vamos dividir essa reexão em duas

partes: a primeira versa sobre o que não se deve azer no momento de auxiliar acriança a se apropriar do código alabético; e a segunda, por sua vez, traz algumas

indicações para acilitar o trabalho no momento de auxiliá-la a redigir melhor.

Auxiliar a criança a se apropriar do códigoalabético exige saber o que estamos azendo

Para discutir sobre a centralidade do papel de mediador exercido pelo proes-sor para que a criança possa se apropriar do código escrito, vamos analisar um

ragmento de aula de alabetização registrado por Smolka (1989, p. 33).

São 35 crianças na sala de aula de uma 1.ª série. Os “ruins” ocupam duas leiras à esquerda,mas distante da mesa da proessora, que se encontra no canto à direita. A proessora começa eescrever na lousa, em linha horizontal e letra cursiva: ma me mi mo mu mão.

Pede para as crianças lerem a última sílaba dizendo:

— Aqui vocês vão ler com ão.

As crianças “leem”.

A proessora escreve uma segunda linha e pede para que as crianças leiam: na ne ni no nu não.As crianças repetem. A proessora pede para as crianças copiarem cada linha no caderno declasse e depois no de casa. [...]

De rente para a lousa e de costas para as crianças, a proessora pergunta:

— Se eu puser isso (aponta bo) aqui (na rente do né), como é que ca?

Uma criança ala:

— Boneca.

A proessora pergunta, virando-se para as crianças:

— Quem alou boneca?

Ninguém responde.

Em sua análise a partir do ragmento acima, Smolka salienta que as crianças

não correspondem às expectativas da proessora quando planejou sua aula. Elas

nem entendem o que era para azer e nem realizam a tarea conorme era es-

perado. Tendo constatado essa alha no processo educativo, a autora passa a se

ater no que a proessora diz aos seus alunos no prosseguimento da aula.

Para nossa maior comodidade, em vez de transcrever a sequência da aula

toda, recortamos, a seguir, algumas das alas da proessora.

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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— Quedê, você não ez nada? Nem o cabeçalho?

— Tem que azer. Você não deixou espaço. Olha lá. Eu deixei espaço lá.

— Esse aqui é o bo. Tá errado, tá errado. Olha bem lá! Já copiou errado.

— Tá eio! Feio, o. Seu o parece um a. Tem que melhorar a letra.

— Assim eu não gosto. Tem que azer certinho, senão ca aquela misturança.(SMOLKA, 1989, p. 8)

Todos sabemos como é desagradável criticar nossos colegas, mas, neste mo-

mento, convidamos você a azer uma reexão sincera: se entendermos que o tra-

balho do proessor como mediador é, em primeiro lugar, azer com que as crian-

ças entendam a unção dos conhecimentos que devem aprender para, apenas

em um segundo tempo, introduzi-los, nós poderemos dizer que essa proessora

sabia o que estava azendo em sua sala de aula?

Se você entendeu o que estivemos discutindo até aqui, com certeza respon-

deu que não. Embora ela tenha se agitado muito, andado por todos os lados na

sala de aula, olhado os cadernos etc., somos obrigados a admitir que ela não

ajudou em absolutamente nada para que seus alunos pudessem se apropriar

do alabeto onético como um instrumento e, a partir dessa apropriação, desen-

volvessem padrões de pensamento que pudessem proporcionar a instalação do

complexo trabalho da escrita propriamente dito.

Deixemos que Smolka conclua a respeito do que acontece quando um adulto

age desse modo:

Os eeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas nos índices de evasão erepetência, mas nos resultados de uma alabetização sem sentido que produz uma atividadesem consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a escrita se transorma numinstrumento de seleção, dominação e alienação. (SMOLKA, 1989, p. 38)

Para concluir esta parte da reexão, gostaríamos de registrar, ainda, que caso

tivéssemos tido a oportunidade de dar apenas um conselho para a proessora que

serviu de inormante para a pesquisa de Smolka, esse conselho seria ao mesmo

tempo simples de ser enunciado e bastante complexo de ser cumprido. Ele se

resumiria na seguinte rase: não negue conhecimento aos seus alunos.

Auxiliando a criança a redigir melhorPara reetir sobre o trabalho que se az para

ensinar a redigir após a aquisição do alabe-

to propriamente dita, queremos recuperar as

ideias desenvolvidas em um de nossos últimos

trabalhos (RIOLFI et al., 2005).

Você já parou pararefetir como escrever bem

é extremamente diícil?

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Linguagem e Pensamento

Nossa equipe de pesquisa esteve um tempo muito curiosa para entender por

que escrever bem parece ser tão diícil para um grande número de pessoas e,

de ato, gastamos bastante tempo para explicar isso. A partir de um cuidadoso

trabalho de pesquisa, chegamos à conclusão de que a instalação do “trabalho

da escrita” (isto é, das operações que nos levam a escrever direito) depende da

relação que o sujeito tem com o seu outro, para quem escreve. Traduzindo em

miúdos: se o indivíduo é um leitor sorível, aí estará um escritor medíocre...

Por que isso acontece? Porque, se or um bom leitor, o proessor sabe onde

incidir para levar o seu aluno a aprender a ler criticamente o que ele mesmo

escreveu. Não é possível produzir um bom texto apenas andando para rente: é

preciso aprender olhar para trás, analisar o que está escrito e deixar que o pró-

prio texto, por assim dizer, diga-nos como melhorá-lo. Quando o ato de escrever

deixa de ser uma tarea chata e se transorma em um importante ganho cultural,

o aluno entra em contato com um tipo bastante especíco de trabalho de retro-

ação que pode alterar sua relação com sua palavra, sua história, sua vida.

Tomando-se o que uma criança ainda pequena pode

produzir como parâmetro, podemos dizer que um texto

está bem escrito quando ele não apresenta grandes di-

culdades de compreensão para um grande número de lei-

tores, ou seja, quando se trata de um texto que tenha vocação à universalidade.

O que é necessário para escrever um texto assim? Ora, essa complexa tarea

demanda duas pré-condições no que se reere à relação com o leitor:

que o escritor possa assumir parcialmente o lugar do outro e deixar que

seja esse lugar que lhe dê as diretrizes norteadoras para decidir sobre

a manutenção, supressão ou alteração de cada um dos segmentos que

compõem o texto escrito;

que o escritor possa esquecer parcialmente esse mesmo lugar, deixando

que a lógica interna do texto vigore, podendo, assim, sustentar e justicar

cada uma das operações discursivas realizadas para a construção da cçãotextual (RIOLFI et al ., 2005).

Concluindo, a qualidade do produto nal da escrita é estritamente depen-

dente da representação que aço de meu sujeito leitor e dos modos por meio

dos quais o incluo (ou não) no texto que estou escrevendo. Se, para os escritores

procientes, é possível já ter incorporado em si o outro que se torna puro cálcu-

lo durante o trabalho, para os escritores iniciantes, esse cálculo é realizado de

O que determinaa qualidade nal

de um texto?

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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modo precário a partir dos indícios que pode obter do seu proessor, argumento

esse que só reorça a importância da unção do proessor como mediador.

Texto complementar

Preácio1

(POMMIER, 1993, p. 5-14)

Na maior parte das vezes, minha mão me obedece. Não obstante, a

mestria sobre as ormas que traço usualmente me escapa quando escre-

vo. Relendo minhas notas, e pensando no que queria exprimir, me descu-

bro requentemente em alta, se não de ortograa, pelo menos de estilo oulegibilidade. Teria eu verdadeiramente escrito para ser lido? A quem se en-

dereçam os rabiscos eitos na margem de um pedaço de papel, rabiscados

quando as ideias se apressam e devem ser anotadas antes de desaparecer?

Desse modo, o lugar de onde vem a minha escrita é o que primeiramente

me escapa no momento de interrogar sobre a origem da escrita. A aprendi-

zagem escolar não caracteriza essa proveniência e, quando me acontece não

poder escrever, não é graças a uma técnica ensinada que consigo superar a

angústia da olha em branco.

Aquele que acabou de escrever é capaz de dizer de onde procede aquilo

que, na orma de suas letras, pertence exclusivamente a ele mesmo? Ele

poderá explicar acilmente o conteúdo, os pensamentos, as cções, as in-

ormações comunicadas por seu texto, mas não dirá nada sobre a origem

de sua escrita, independentemente do que ela signica. Eis o motivo para

interrogar a história das graas, observar as primeiras evoluções ormais das

letras, examinar as condições e as modalidades desse desenvolvimento. Bus-

cando responder a essas questões, aprenderei, quem sabe, que um cuidado

idêntico ao dos primeiros inventores me habita quando procuro alinhar pa-lavras sobre o papel.

O problema da origem da escrita pode ser abordado considerando sua

evolução ao curso dos últimos milênios. Trata-se de examinar o importante

1Tradução de Cristine Maria Tedeschi Conorti e Andreza Roberta Rocha.

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132

Linguagem e Pensamento

material arqueológico hoje disponível, de organizá-lo segundo suas inva-

riantes e sua cronologia e, eventualmente, interpretar suas modicações. A

gênese da escrita pode também ser estudada examinando-se sua aquisição

individual. É conveniente, então, observar como as crianças se põem a escre-

ver segundo os procedimentos conhecidos das regras gerais e das exceções.

As diculdades de integração da leitura e da escrita merecem uma atençãoparticular, porque elas permitem desembaraçar os pontos de sustentação

externa e, por consequência, as etapas dessa iniciação. Lá, ainda, o pesquisa-

dor poderá tentar interpretar essa evolução.

Uma longa história de escrita precede o momento em que uma criança

se apodera dos signos do alabeto. Que analogias existem entre a aprendiza-

gem individual da escrita e as etapas que a humanidade precisou atravessar

para descobri-la? Há quem pense que tal semelhança de destino determi-

naria que a escrita seja um instrumento de comunicação progressivamenteaprimorado por aproximações sucessivas. Uma vez experimentada sua téc-

nica, ela teria sido em seguida transmitida às gerações seguintes. Segundo

uma tal concepção, bem ocidental, a escrita teria progredido por etapas, e

sua orma mais prática, o alabetismo, teria nalmente superado a pictogra-

a e o silabismo. Esses aprimoramentos sucessivos de procedimentos de

transcrição das mensagens seriam, em seguida, aplicados à aprendizagem a

ser cumprida por cada criança. Em consequência, o conhecimento da histó-

ria da escrita e de seus estágios poderia ainda ser útil para azer os escolares

compreenderem como ormalizar suas letras.

Os egípcios, por exemplo, utilizavam a acroonia para isolar algumas

de suas consoantes. Quem não seria tentado a imaginar que a descoberta

dessas letras se eetua do mesmo modo como o alabeto continua a ser en-

sinado às crianças? A letra A não é compreendida graças a sua acroonia com

Ana, a letra B graças a balão etc.? Nos esqueceríamos, assim, que se trata de

um método mnemônico inventado pelos adultos e que resiste a numero-

sos sintomas que têm o valor de uma útil evocação à ordem: um modelo

histórico não pode ser comparado a técnicas destinadas a acilitar a apren-

dizagem, pois elas não são, indubitavelmente, a própria aprendizagem.

Dentro de um louvável cuidado pedagógico, deseja-se ajudar as crianças

com procedimentos supostamente análogos aos da invenção do alabeto,

mas transmitir-lhes um instrumento inventado antes delas não será sempre

o mesmo que deixá-las descobrir por si mesmas. Quando a hora chega, as

crianças não inventam, por si próprias, a chave da escrita e, se elas não azem

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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esse trabalho solitariamente, não se torna impossível transmitir-lhes as or-

malizações grácas próprias de sua cultura?

Possivelmente, a descoberta histórica da escrita e sua aprendizagem in-

dividual seguem o mesmo caminho. Mas, para sustentar essa hipótese de

uma correspondência entre logênese e ontogênese, é preciso mostrar queas etapas de certas invenções, elaboradas em alguns milênios, devem ser

novamente transpostas em poucos anos por cada criança. Se assim sucede

com a escrita, ela brilhará muito pouco por sua originalidade. De outras des-

cobertas, conhece-se o mesmo destino: é duvidoso que o homem soubesse

caminhar ereto se ele crescesse ora do abrigo cultural. Mesmo a possibilida-

de de alar depende de um aprendizado, senão de uma técnica. No entanto,

a língua não se aprende no sentido usual do termo, pois, se a linguagem

constitui o objeto dessa iniciação, o próprio sujeito az parte desse objeto.

Essa apropriação da língua é um ato cultural, se bem que, por outro lado,cada criança se engaja na palavra segundo seu ato próprio de apreensão.

Existem muitas invenções semelhantes na história da humanidade. Cada

um deve reazê-las por si, porque é sujeito delas. A escrita az parte dessas

descobertas. É verdade que existem sociedades ditas “sem escrita”, que não

parecem ter se imposto tal obrigação. Não obstante, todas as civilizações,

sem exceção, têm uma prática da arte, seja por meio do desenho ou da es-

cultura. Suas representações artísticas, o denominador mínimo comum da

humanidade, quiseram se azer portadoras de uma mensagem que ainda seendereça a nós. Entre esta universalidade, um número maior de culturas ela-

borou uma escrita ideográca. Mais raras ainda oram aquelas que utilizaram

ideogramas. Por m, apenas algumas utilizaram o recurso dos alabetos.

[...] Quando traça um desenho, a criança se representa e apresenta inicial-

mente seus sonhos; seus desenhos são traçados segundo as dimensões oníri-

cas que ela projeta: a evolução de suas representações segue então o mesmo

trajeto que o de seus sonhos, cuja lembrança se perde sempre, mais ou menos,

no recalcamento. Sabemos no que nossos sonhos transormam: esquecemo--los quase todos, pois eles encenam um prazer que ocultamos. Da mesma

orma, se os primeiros desenhos possuem um valor idêntico ao dos sonhos,

não serão eles, em si, sujeitos a um recalcamento cujo resto será escrita?

Eis, então, o que este livro deseja explorar: os primeiros desenhos apre-

sentam os antasmas que estarão sujeitos ao recalcamento até o ponto em

que o retorno do recalcado se escreve na letra. Entre o espaço do desenho

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Linguagem e Pensamento

e o da letra, convém, consequentemente, localizar o evento diacrônico do

recalcamento. Se uma criança não consegue escrever antes de certa idade,

não é porque ela seria incapaz tecnicamente mais cedo. Com eeito, antes de

estar em condições de ormar as palavras, ela já conduziu a termo operações

mais complexas que a de azer corresponder um som e um signo. Se ela não

pôde azê-lo até então, é provavelmente porque sua relação com a represen-tação pictórica, seu valor psíquico, impedia-a. Quando completar um certo

caminho com relação aos desenhos, a criança se porá a escrever, ainda que,

quão inteligente osse ela, não pudesse tê-lo eito antes.

[...] Se alguém deseja manter a hipótese de uma invenção da escrita

comum à história da humanidade e à de cada um de seus membros, será

necessário igualmente examinar uma origem da letra pertinente em todas

as ocorrências em que está em questão a transmissão de uma mensagem

e estabelecer uma denição mais ampla que aquela à qual estamos acostu-mados. É necessário examinar o que pode haver em comum entre o sonho,

o desenho, o pictograma e a letra do alabeto. A instância da letra no incons-

ciente, tal como a psicanálise a dene, não permite situar essa primeira or-

malização da escrita, comum a todos, ainda que cada um deva reinventá-la?

Qualquer que seja a maneira pela qual comunique sua mensagem, poder-

-se-á mostrar que o grasmo do homem descende do pensamento.

[...] O que há em comum entre o que hoje me permite traçar letras e

aquele que, há muito tempo, atribuiu um signicado estável a alguns dese-nhos? Diante dessa questão, descobri, talvez, o que me az irmão do escriba

e do mandarim. Do sacerdote do araó, mestre da escrita, dando seu beijo

da manhã à estátua divina, recitando-lhe nos ouvidos seus próprios textos,

como se, sem ela (a estátua), não pudesse rememorá-los. Do adivinho chinês

lendo os primeiros signos do destino graças aos bastões incandescentes que

ele guiava sobre cascos de tartaruga, escrevendo os primeiros caligramas

no undo de vasos onde a ninguém ocorreria lê-los: no início, escrito para os

deuses! Irmão da criança rabiscando seus desenhos cuja orma não convém

mais a suas obsessões, riscando seu desenho como se explorasse inocente-

mente o interdito da representação, rasurando e descobrindo uma letra que

não se parece com nada e, portanto, signica.

A cada vez que escrevo uma palavra nova, em que me assemelho ao es-

criba, ao mandarim ou à criança? Como os corpos dormindo à noite, dis-

solvidos na obscuridade, ligam-se ao o de suas vidas graças à escrita tenaz

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O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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de seus sonhos? Como aqueles em vigília bem tarde, quase até a manhã,

debruçados sobre o papel branco: as letras que eles traçam não guardariam

seus semelhantes, os adormecidos, e elas não lhes permitiriam repousar em

paz? Espécies de sentinelas, irmãs do hieróglio onírico, elas tecem sobre a

cidade a rede que impede os sonhadores de se perderem em suas canções,

elas os acompanham até o despertar e lhes chamam para o dia. Como oramtraçados os primeiros signos capazes de alar por nós em nossa ausência?

Aprenderemos a traçá-los sempre em nós para além de nossa aparência?

Atividades1. Em que medida a escrita inuencia na organização social do ser humano?

2. Em que medida um proessor que deseja transmitir o amor pela escrita às

novas gerações pode esperar ser bem-sucedido?

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Linguagem e Pensamento

3. É mais importante que o proessor aça os alunos compreenderem as un-

ções dos conhecimentos do que ensiná-los de maneira isolada? Justique.

Dicas de estudoALLOUCH, Jean. Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro:

Campo Matêmico, 1995.

Esse livro não é um daqueles que se destaca por sua clareza e, muito menos,

pelo ato de se tratar de um texto ácil para se ler. Entretanto, todos aqueles que

se dispuserem a pagar o preço de gastar algumas (muitas) horas de estudo perse-guindo o raciocínio deste rancês incansável para compreender os três registros

distintos do ato de escrever que são dissecados pelo psicanalista (transcrever, tra-

duzir e transliterar) com certeza ganhará em proundidade e em consistência na

reexão sobre o ato de escrever. Embora não se trate de um livro sobre o ensino

da escrita, ao tomar a letra como seu objeto de estudo ele nos dá alguns elemen-

tos muito signicativos para reetir sobre a história da escrita na humanidade,

sua apropriação pelos sujeitos e, consequentemente, sobre seu ensino.

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Você já parou para reetir como são diversicados os modos de rela-ção dos proessores com as teorias que circulam no meio universitário?

Se já o ez, com certeza pode perceber o seguinte: alguns proessores

estão engessados por suas opções teóricas, as quais elevaram ao estatuto

de dogma. Outros, que não tiveram a oportunidade de aproundar seus

estudos e compreenderem-nas proundamente, carregam-nas como se

ossem prossões de é. Os mais aguerridos agitam-nas ao público como

se tratasse de causas a serem deendidas a qualquer preço. Por último, os

discretos consideram-nas como opções particulares necessárias para darcoerência e consistência a sua prática investigativa e pedagógica.

Tão diversos entre si, tão parecidos no seguinte traço: todos acham

desagradável quando alguém questiona as suas opções, uma vez que é

necessária muita coragem para colocar anos de experiência na balança

e reetir sinceramente se o que você aprendeu com eles continua valen-

do no presente. Por esse motivo, iniciamos este capítulo visando reetir

sobre a aula de Língua Portuguesa e analisar os textos nela produzidos

sob uma perspectiva histórico-social. Para tanto, convidamos o leitor parase aastar o máximo possível de “sua opinião ormada sobre tudo” e, como

recomendava nosso saudoso Raul Seixas, estar permeável para tornar-se

uma “metamorose ambulante”. Feito esse primeiro alerta, açamos nossa

primeira parada no Brasil.

O pensamento sobre a alabetização no Brasil

Para melhor contextualizar as diversas tendências de discurso sobre a al-abetização em nosso país, é importante recuperar uma denúncia que serve

como ponto de partida para o trabalho de Magnani (1997): o ato de que,

contaminados pelo que se pode chamar de uror novidadeiro, os brasileiros

estão sempre tentando se desvencilhar das tradições para que se produzam

“novas metodologias”, supostamente mais adequadas para superar os desa-

os concretos que os proessores encontram em sala de aula.

Perspectiva histórico-social: a aula de LínguaPortuguesa e seus textos nela produzidos

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Linguagem e Pensamento

Visando superar essa prejudicial tendência que apaga nosso passado e, con-

sequentemente, condena-nos a um eterno patinar no mesmo lugar, a autora az

uma rigorosa pesquisa de undo histórico para mostrar como a crescente impor-

tância dada à alabetização pelos governos esteve sempre atrelada a um projeto

político de modernização social. No quadro 1, a seguir, o leitor encontrará os

principais momentos de um século de discussão sobre a alabetização, conor-

me Magnani.

Quadro 1 – Tensão entre os “modernos” e os “antigos” em cem anos de ala-

betização no Brasil

Antes de 1880Predomínio dos métodos que ensinam a escrever a partir da insistênciana soletração e na silabação.

1880Silva Jardim divulga o “revolucionário método” João de Deus, baseadona palavração, para o ensino da leitura (método sintético).

Início da República Miss Márcia Browne introduz no Brasil a seguinte diretriz: iniciar o ensinode leitura pelo todo, e decompô-lo (método analítico).

1930

A polêmica criada entre os seguidores de Silva Jardim (partidário dométodo sintético) e Márcia Browne (partidário do método analítico) co-meça a decrescer a avor da tentativa de construção de uma soluçãointermediária: o método misto (ou eclético).

1934Lourenço Filho publica os testes ABC – medidas de maturidade para oaprendizado na leitura e na escrita, objetivando a “organização racionale homogênea” das classes de alabetização.

Década de 1970

A discussão sobre o método mais ecaz cede lugar à investigação sobre

as causas da repetência e da evasão. Cresce o número de investigaçõessobre as “patologias” e, depois, sobre os condicionantes sociais e econô-micos do racasso escolar.

Década de 1980

O construtivismo, inspirado nos trabalhos de Piaget e seguidores (emespecial, Emília Ferreiro), ganha hegemonia em nosso país.

Com a “descoberta” do interacionismo, iniciam-se as críticas ao constru-tivismo.

Década de 1990Começam a se congurar as disputas pela hegemonia de projetos parao ensino inicial da leitura e da escrita em estreita relação com os projetospolítico-sociais.

Magnani justica o esorço gasto para pesquisar 100 anos de história denosso país: evitar um eeito neasto que as discussões levadas a cabo no interior

das universidades costuma exercer sobre os proessores – cegá-los para o seu

cotidiano educacional. Identicados com uma perspectiva que aprendem pri-

meiro “no papel”, sem a necessária reexão sobre ela, os prossionais da educa-

ção passam a divulgar sua experiência com a certeza de estarem de posse de uma

verdade inquestionável  (MAGNANI, 1997, p. 46). Por esse motivo, constrói uma

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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos

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sistematização da cronologia aqui previamente exposta, dessa vez destacando

qual era a “verdade inquestionável” que predominava em cada um dos períodos.

Para conhecê-las, conra o quadro 2.

Quadro 2 – Momentos históricos cruciais para a constituição da alabetiza-

ção como objeto de estudo no Brasil

Época Discussão predominante No que ela consiste?

1876-1890Método João de Deus X

métodos sintéticos

Os partidários da palavração conde-nam os partidários da soletração e dasilabação.

1890-1930Métodos analíticos X métodossintéticos

Os partidários dos métodos analíticoscondenam os partidários dos métodossintéticos.

Meados da décadade 1920 - nal da

década de 1970

Métodos ecléticos X métodosanalíticos

Os partidários dos métodos ecléticoscondenam os partidários dos métodos

analíticos.

Final da década de1970 - nal da dé-cada de 1990

Construtivismo X métodos tra-dicionais

Interacionismo X construtivismo

Os partidários do construtivismo con-denam os partidários de tudo o que oieito antes, atribuindo a todos a mesmaimportância: a dos métodos tradicionais.

Os partidários do interacionismo conde-nam os partidários do construtivismo.

Como você já deve ter percebido, a pesquisa de Magnani conclui-se com o

m do século XX, e é exatamente aqui que nosso trabalho começa. Guardemos

essa lição sobre a relevância de não se “perder o pé” da história de nosso país eagreguemos a ela uma perspectiva política que deenda o aprendizado da leitura

e da escrita como um direito da participação do sujeito humano na cultura de

seu tempo e também uma perspectiva de ser um produtor de sentidos válidos no

presente e aptos a construir um uturo. Essa recomendação é eita aqui no sentido

de nos ornecer um terreno mais seguro para alargar nossa reexão e interrogar

os padrões de interlocução verbal e seus eeitos na aula de Língua Portuguesa.

A interlocução verbalna aula de Língua Portuguesa

Para melhor contextualizar nossa reexão, a interlocução verbal na aula de

Língua Portuguesa, vamos recorrer brevemente a um exemplo já explorado por

nossa equipe de trabalho (RIOLFI et al ., 2005) com maior detalhamento. A seguir,

você vai encontrar um registro de uma aula de Língua Portuguesa eito em 2003

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Linguagem e Pensamento

por uma das autoras do livro Ensinar a Língua Portuguesa no Século XXI: desafos e

 perspectivas para o Ensino Fundamental II , em um momento de sua vida em que

ainda não era proessora de Língua Portuguesa, mas aluna de Letras, cumprindo

suas obrigações de estagiária.

Trata-se do retrato de um acontecimento registrado pela pesquisadora em

seu diário de campo com riqueza de detalhes, inclusive com seus comentáriosde cunho pessoal. É importante perceber preliminarmente o olhar perplexo de

quem anotou a aula, olhar esse ainda não gasto/contaminado pela indierença

e o descrédito que grassa na contemporaneidade. Antes de prosseguirmos com

nossa reexão, examinemos as cenas descritas pela “novata”.

Cada qual az o que quer!Neste dia, no primeiro horário, observei uma “aula” surreal! Com o desen-

rolar dos eventos, quei pensando que o acompanhamento individual da es-

crita do aluno é importante, mas não do modo como ele estava sendo eito.

Percebi dois problemas: 1) a proessora estava corrigindo somente a orma

das redações (no caso, se o mesmo seguia o padrão de “abaixo-assinado”) e

ignorando os aspectos ligados à Língua Portuguesa propriamente dita; e 2)

dado que não havia nenhuma outra atividade preparada para o restante da

sala, o acompanhamento individual estava sendo prejudicial à classe comoum todo. A proessora dirigiu uma única rase para o grupo durante os 45 mi-

nutos que lá permaneceu: “Pessoal, quem já tem o ‘abaixo-assinado’ pronto,

traz que eu vou dar visto.” Obedientemente, os alunos levavam o texto até a

proessora, que os vericava protocolarmente.

...enquanto isso...

Dois ou três grupinhos caram conversando baixo.

Um aluno cou cantando e beijando o rosto de quase todas as meni-

nas da sala.

Um casal permaneceu com os rostos encostados na carteira, beijando-

-se e cochichando ao mesmo tempo.

Um outro aluno azia ginástica no meio da sala, dançando capoeira,

“plantando bananeira” etc.

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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos

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Uma aluna deitou sua cabeça na carteira e dormiu durante a aula toda.

Algumas alunas olhavam silenciosamente o ambiente de bagunça e

a indierença da proessora. Depois, olhavam para mim, parecendo

constrangidas com a situação.

A proessora continuava indierente a tudo isso e, maquinalmente, escre-via o “visto” nos cadernos dos alunos. Tocou o sinal. Acabou a “aula” de Língua

Portuguesa.

Reetindo sobre a aula de Língua Portuguesa cuja

descrição você acaba de ler, você pode até acreditar na

boa-é da proessora, que estaria cumprindo sua obri-

gação de “dar visto nos cadernos”, mas, provavelmente,

terá mais diculdade para azer uma lista sobre os conteúdos relativos à escrita

que oram aprendidos durante essa aula.

Não se trata nem do ato de que a proessora não apresentou conteúdos

novos durante 45 minutos, pois todos sabemos que, muitas vezes, em nome de

um maior aproundamento de um ou outro tópico, é necessário permanecer

nele por um período maior. Ao contrário disso, nossa restrição incide sobre o

ato de que não houve nenhum esorço, por parte da proessora, para organizar

um ambiente de trocas verbais entre os alunos que pudesse levá-los a se enga-

 jarem em um trabalho e, consequentemente, desenvolverem um estágio mais

elaborado de seus conhecimentos sobre a escrita. Paralelamente, sua própria

“produção verbal” é muito restrita, apresenta baixíssimo nível de inormativida-

de e não apresenta qualquer desao intelectual a seus alunos. “Pessoal, quem

 já tem o ‘abaixo-assinado’ pronto, traz que eu vou dar visto” é o tipo de ala que

mantém os sujeitos exatamente no lugar onde estão.

Independentemente da liação teórica declarada pela proessora cuja aula

nossa estagiária assistiu, uma coisa é certa: em sua prática concreta, essa pro-

ssional não estava levando em conta a importância que tem sua ação para au-

xiliar a mediação necessária para a construção dos conhecimentos em aula. Em

suma: aquilo que ela azia parecia vir de nenhum lugar e ir para lugar algum, ou

dizendo de outro modo, a interlocução entre proessor e aluno existente em sua

aula de escrita não estava inscrita na história – limitava-se a um azer estereoti-

pado e sem maiores questionamentos.

Para concluir nossa reexão sobre a aula de Língua Portuguesa e os textos nela

produzidos, vistos sob a óptica da perspectiva histórico-social, vamos recorrer

Você acha quealguém aprendeu

alguma coisa?

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Linguagem e Pensamento

ao trabalho de Klein (1997), um dos principais expoentes brasileiros no que se

reere à investigação sobre a alabetização vista dessa óptica.

É importante risar, preliminarmente, que, longe de azer um discurso partí-

cipe do narcisismo humano, que coloca as individualidades em primeiro lugar,

a autora parte do princípio de que, acima de tudo, e em primeiro lugar, é ne-

cessário não negar ao aluno as “condições de civilização”, ou seja, assumir que oprocesso de humanização se dá “pela radical e inteira socialização do indivíduo”

(KLEIN, 1997, p. 86).

Especicamente no que se reere ao ensino da escrita, a autora arma:

A partir, portanto, de uma compreensão histórica do homem, é possível armar que o contatoda criança e sua ação sobre os símbolos da escrita, ainda que esses símbolos estejam organizadoscorreta e signicativamente como linguagem, não garantem, por si sós, que a criança aprendaa linguagem escrita. Isso porque, nesta circunstância, o aprendiz estará diante de um punhadode “coisas” que não conguram a linguagem escrita. É preciso que haja homens utilizando de

orma real a linguagem para que ela se congure enquanto tal. (KLEIN, 1997, p. 99-100)

A citação é bastante rica, mas, em primeiro lugar,

parece-nos necessário destacar que, na perspectiva

adotada pela autora, não se pode tentar ensinar uma

criança a escrever sem levar em conta sua inserção no

“mundo dos homens”. Não se trata de aprender a escrever por escrever: pelo

contrário, trata-se de azer nosso aluno compreender que aprender a escrever

consiste em uma importante conquista de um instrumento precioso.

Acompanhando a evolução da humanidade, é possível perceber que a es-

crita não serve apenas para registrar a história – aliás, uma de suas importan-

tes unções – mas também, em grande medida, ao nos auxiliar a compor textos

que possam ormatar novos modos de pensar em nossa sociedade, ornece-nos

alguns meios para construí-la.

A aula de escritagerando desenvolvimentosubjetivo para o proessor e seu aluno

Para concluir de maneira mais concreta nossa reexão sobre uma prática de

ensino de escrita que não atinge nem o proessor nem seu aluno da história da

qual são partícipes, vamos recorrer a um belo trabalho de ensino de Língua Por-

tuguesa já explorado parcialmente em trabalho anterior (RIOLFI, 1999).

Que lições podemostirar da citação que

acabamos de ler?

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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos

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Como será que isso aconteceu? Não vamos recuperá-

-lo em sua integralidade, evidentemente. Trata-se aqui

apenas de recortar um pequeno ragmento da prática

pedagógica da proessora S que, ao compreender o caráter histórico do homem,

levou-o em conta no planejamento de suas aulas e, com bastante insistência,

conseguiu uma preciosa conquista: azer com que um aluno de 13 anos, que

vinha se negando obstinadamente a escrever qualquer coisa que osse, produ-

zisse seu primeiro texto escrito.

É importante ressaltar que esse primeiro sim dito à escrita não se deu de

modo isolado: ele oi contemporâneo à suspensão do emudecimento de alguns

alunos, que, vindo a se envolver proundamente com um longo projeto de tra-

balho de pesquisa sobre as histórias de suas amílias e da construção da sua

cidade – Foz do Iguaçu –, acabaram por poder assumir, em primeira pessoa, sua

história de vida. Em equipe, os alunos produziram o volume Escrevendo a História

de Foz do Iguaçu, cujo sumário segue abaixo para maior conhecimento do leitor.

  1. História de Foz do Iguaçu

  2. Pontos Turísticos

  2.1 Parque Nacional do Iguaçu

  2.2 Cataratas do Iguaçu

  2.3 Marco das Três Fronteiras

  2.4 Salto do Macuco

  2.5 Ponte da Amizade

  2.6 Ponte da Fraternidade

  2.7 Itaipu Binacional

  2.8 Ecomuseu

  2.9 Aeroporto Internacional

  2.10 Cassino Acaray e Cidades Paraguaias

  3. História de Nossa Turma

  4. Comentário

  5. Reerências Bibliográcas

Como será queisso aconteceu?

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Linguagem e Pensamento

Assim sendo, após o trabalho quase heroico para organizar uma turma de

adolescentes para, de ato, construir um projeto comum, a proessora S – que,

durante um longo tempo lamentava o ato de que dois de seus alunos nada es-

creviam, e mesmo quase nada alavam se não se levasse em conta os momentos

de bagunça generalizada – teve o prazer de se surpreender com a boa adesão de

um de seus alunos ao trabalho em um dia decretado por ela como sendo o “dia

de alar sobre a vida”, atividade de transição entre a pesquisa dos documentos

ociais da cidade e a investigação das histórias ociosas das amílias.

Nesse dia, seu aluno Pedro, cuja voz mal conhecia, alou ao grande grupo

pela primeira vez, ainda que apenas para responder, bastante laconicamente, às

perguntas dos colegas sobre sua vida. Embora não parecesse muito à vontade,

após quase um ano de trabalho intenso por parte da proessora, nosso aluno

escreveu um texto pela primeira vez .

Não era um texto qualquer, pois, como o leitor poderá comprovar logo abaixo,inscreve o menino em uma linhagem, dando a ele um lugar na história de Foz do

Iguaçu. Convido, então, o leitor a ler generosamente o texto de Pedro.

Tenho 13 anos meu nome e pedro meu pai tem 39 anos seu nome e sebas-

tião e minha mãe tem 39 anos seu nome e maria eu naci no paraguai o meu pai

na bahia e minha mae nasceu em minas gerais e eles oram morar no paraguai

mas meu pai ouviu alar uma conversa que tinha uma obra grande no brasil e ia

car muita gente e dai o meu pai comprou um lote aqui no brasil isto já az 10

anos que nos viemo morar aqui para o meu pai trabalhar na obra logo que nos

viemo para ca o meu pai ja chou na obra e trabalhou seis anos depois eles oi

despedido ele voutou para o paraguai trabalhou na agricultura mas ele deijou

nos no brasil para estudar e ele de todo 15 dias ele vem visistar nos.

Remontando às suas origens, Pedro narra,

ao mesmo tempo, seu drama amiliar e dá a

ver os eeitos da construção da hidrelétrica de

Itaipu nas correntes migratórias em seu localde implantação. Seu texto, embora muito pro-

blemático do ponto de vista da norma padrão, consiste numa bela denúncia sobre

as diculdades enrentadas pelas amílias cujos “chees”, acossados pelo desempre-

go, são obrigados a mudar não só de cidade mas até de país.

Concluindo nossa reexão sobre a aula de Língua Portuguesa, relembremos

que levar em conta a necessidade de assumir-se como partícipe no processo

de humanização de seus alunos – que se dá pela sua socialização, isto é, sua

O que, de uma perspectivahistórico-social, o trabalho daproessora S nos ensina sobre

a aula de Língua Portuguesa?

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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos

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inserção consequente na civilização em que grande parcela da população está à

margem – exige do proessor que, ao longo de todas as ases de seu trabalho, ele

não esqueça do caráter histórico do homem, incluindo ele próprio.

Ao relembrar o que tem sido a história da humanidade e analisar o papel de

cada um dos instrumentos que construímos em suas grandes transormações,

aquele que ensina a escrever não corre o risco de tornar-se o títere vivo das ten-dências da moda e, consequentemente, conduzir sua prática de um modo que,

até por ele mesmo, é ignorado. Se, por um lado, é verdade que jamais temos in-

teira consciência de tudo o que azemos, por outro, não podemos esquecer que,

para além do trabalho mecânico, há o gosto por aquilo que azemos, o prazer de

partilhar as conquistas, a obrigação ética de registrar nossas descobertas, para

que outros dela também se beneciem.

Nessa direção, a discussão sobre qual seria o melhor método perde sua cen-

tralidade, uma vez que é substituída por uma reexão cultural mais ampla naqual a questão dos métodos e técnicas localizados é apenas um detalhe.

Texto complementar

A vida não é torre de Hanói (MITSUMORI, 2005)

Eu, por tantas e tantas vezes, desejei que a vida osse torre de Hanói. Sabe

aquele jogo em que você tem que transportar uma “pirâmide” de discos de

uma haste para outra, intercambiando-os de um em um entre essas duas

colunas, usando também uma terceira como intermediária?

Pois é, o objetivo desse jogo é azer um número mínimo de movimentos.

Para isto, basta descobrir a lógica da relação entre as ações e estabelecer

minimamente a ordem de seu encadeamento. Pronto: tudo se torna passível

de previsão e de planejamento. Os movimentos estão todos conectados por

uma interdependência. Assim, a consideração da jogada anterior é suciente

para antecipar o deslocamento da seguinte.

Está certo... no começo o jogo nem sempre é assim tão simples: em geral,

a gente erra, volta, se atrapalha, az um monte de movimentos totalmente

“inúteis”. Mas quando se percebe que o que se tem ali é um sistema lógico,

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Linguagem e Pensamento

ca ácil inerir as regularidades, as leis que compõem a sua estrutura; o mis-

tério é deseito.

Como eu ia dizendo, muitas vezes desejei que a vida osse como esse jogo.

Pensem como seria legal: eu, proessora, rente a um aluno rebelde (desses

que adoram desaar a “autoridade”, ou que se recusam a azer qualquer coisaque não contraria o outro), só teria que procurar a técnica e os meios ade-

quados e planejar o momento certo de sua aplicação. Além disso, um livro

de receitas bastaria para que eu me tornasse uma boa cozinheira. Anal, ele

não me mostra todos os passos para se azer um belo bolo, por exemplo?

Sim, a vida, se osse torre de Hanói , seria (quase) pereita: meus alunos

seriam todos uns “anjos”, como proessora eu não teria problema algum,

meu bolo seria comestível... Mas a vida não é assim.

Por mais que se reita, raciocine e planeje uma ação, nunca é possívelsaber ao certo o que virá depois. As regras, as leis que regem os aconteci-

mentos não estão dadas de antemão e as decisões são quase sempre uma

aposta. Uma aposta de que aquele é o melhor caminho, o mais certeiro, o

que nos ajudará a chegar aonde queremos. Enm, a marca da vida é essa

imprevisibilidade, essa incerteza que nos deixa sempre a sensação de que as

coisas “escapam por entre os dedos”.

Mas então, se tudo na vida é incerto e se os desdobramentos das ações

nunca são passíveis de antecipação, por que a pedagogia insiste tanto emalar em planejamento? Planejamento educacional, planejamento pedagó-

gico, projeto de escola, plano de aula... Não seria tudo isso uma inutilidade,

uma perda de tempo?

Se pensarmos nesse tal planejamento como escudo contra toda e qual-

quer alha no processo, como possibilidade de previsão dos resultados,

talvez possamos dizer que sim.

Porém, não seria possível pensar nessa questão em outros moldes?Não podemos esquecer que alamos de um trabalho que é direcionado a

uma outra vida humana. Assim, como não esperar que esse alguém a quem

nos dirigimos saia do lugar em que estava e passe a ocupar uma outra posi-

ção? Não é essa causa que abraçamos?

Sim, e com certeza é isso que nos orienta e que nos leva a querer... plane-

 jar as ações. Mas esse planejar tem que considerar aquele imprevisível que é

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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos

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a marca da vida de todos nós; não pode deixar de levar em conta o desejo do

outro sujeito, que pode, em última instância, seguir por rumos totalmente

diversos daqueles por nós “planejados”. Caso contrário, esse planejamento

vira “camisa-de-orça”.

Enm, a educação nos lança esse enorme desao de planejar o implane- jável, de prever o imprevisível, numa busca incessante (e sempre rustrada)

de uma vida (quase) pereita, eito torre de Hanói.

Atividades1. Analisando-se a história da constituição da alabetização como objeto de

estudo no Brasil, o que podemos entender a respeito das transormações

soridas nessa prática pedagógica?

2. O contato do aluno com os símbolos da escrita garante que ele vá aprender

a escrever, bastando que estejam organizados correta e signicativamente?

Justique.

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Linguagem e Pensamento

3. Por que o proessor precisa compreender-se como agente da socialização de

seus alunos?

Dicas de estudoCALKINS, Lucy McCormick. A Arte de Ensinar a Escrever: o desenvolvimento do

discurso escrito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

Tematizando o “ensino de redação”, trata-se de um livro muito abrangente,

escrito de um modo simples, bastante agradável para se ler. Está repleto de su-

gestões que podem ser colocadas em prática, desde a pré-escola até o Ensino

Médio, por todos aqueles que desejam ensinar a escrever. Contém capítulos

sobre o ensino de poesia, cção e escrita de relatórios, consistindo, portanto, em

leitura imperdível para todos que estão preocupados com o desenvolvimento

do discurso escrito de seus alunos.

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A linguagem humanae seus eeitos sobre o pensamento1. Em uma visão que dá prioridade à linguagem, compreendida como

sistema de articulação de signos verbais exclusivo do homem, quan-

do compreendemos a extensão do poder que a linguagem tem sobre

os seres humanos, nós podemos ser mais ecazes como agentes da

manutenção da cultura em geral e, também, reetir a respeito dos su-

cessos e os impasses da educação dos alunos que nos oram conadoscom maior pertinência.

2. Para os animais, e mesmo para os primeiros humanoides, é possível

estabelecer uma relação entre causa e consequência uma vez que eles

são regidos pelo instinto, se comportam de modo não mediado pela

linguagem e pelo pensamento. Como somos animais de linguagem,

isto é, pensamos e alamos, essa correlação se torna uída. Isso permi-

te, por exemplo, que um humano não tenha que pagar uma violência

com outra violência; sempre podemos tentar dialogar. Essa tentativamantém a sociedade humana organizada.

3. O principal motivo para dedicar tempo à organização do ambiente es-

colar como um todo reside no ato de que o pensamento humano não

é um processo isolado e independente das contingências histórico-

-culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa medida,

determinam-no. Assim sendo, se quisermos agir na direção de ajudar

uma criança a estruturar o seu pensamento, trata-se de agir, em pri-

meiro lugar, no ambiente onde ela está inserida.

O imprevisível animal humano1. A linguagem humana é escorregadia, não existem sentidos xos. As-

sim sendo, o ato de que alguém diga uma coisa e o interlocutor en-

tenda outra é a regra, e não a exceção. A partir dos sons que alguém

escuta, é possível que ele crie sentidos pereitamente verossímeis para

Gabarito

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Linguagem e Pensamento

si, mas em nada relacionados às intenções comunicativas de quem alou. Se

isso não or esclarecido, a margem normal de equívoco pode se tornar de-

masiadamente grande, com prejuízo para o processo educacional.

2. Diversicar as oertas de conteúdos e de tipos de atividades em uma sala de

aula é importante porque, quando se trata do ser humano, não existe unici-

dade, nem nos padrões de comportamento nem na história de vida de cadaum de nossos alunos. Assim sendo, o que unciona para uns não unciona

para outros e vice-versa.

3. Porque nenhum ser humano tem o curso de seu pensamento completamente

determinado pelas leis que nos são impostas pela biologia de nossa espécie.

Isso signica que não temos um contato pleno com o mundo como ocorre com

os animais. Ao contrário, temos nosso encontro com a realidade de maneira

parcelar e ragmentada e construímos nosso padrão de pensamento a partir

dos ragmentos. As coisas no mundo são o que são, mas as percepções quetemos dela permanecem diversas, parcelares, requentemente deormantes.

Assim, nenhum ser humano é o dono da verdade, apenas, o da sua verdade.

Concepção do homem como ser de linguagem1. Porque vivemos em sociedade. Assim sendo, em nome da possibilidade de

convívio, e, até, da nossa autopreservação, precisamos usar as palavras para

outros ns, tais como lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situa-ção a nosso avor, e muitas outras unções que, legitimamente, não podem

ser chamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar

as palavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse

não quebrar o sigilo a respeito de determinada inormação.

2. Porque não somos animais! A nossa linguagem vai muito além do que os códi-

gos utilizados pelos animais. Caracteriza-se pela capacidade de ser potencial-

mente innita, uma vez que, cada enunciado permite análise e rearranjo de

suas partes com as de outros enunciados. Nossa linguagem não sore os limi-tes da percepção visual, assim sendo, podemos imaginar, ormular hipóteses,

projetar as consequências de nossas ações no uturo e assim sucessivamente.

3. Porque apenas podemos utilizar as palavras como suporte de nosso pen-

samento na medida em que se encontram organizadas em um sistema (a

linguagem, a cultura) que lhes dá consistência. Isoladas, as palavras não sig-

nicam absolutamente nada. A linguagem nos liga ao mundo ao ornecer

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Gabarito

um aparelho por meio do qual podemos manter o contato com a realidade:

a possibilidade de nomear os objetos e, por meio do nome, construir um

conceito para apreendê-lo.

Analisar os modos de alar e de pensar:exclusividade do ser humano1. É necessário levar o jovem humano a reetir a respeito da linguagem para

incidir sobre o seu desenvolvimento intelectual porque manter certo distan-

ciamento das palavras que alamos é condição necessária para interrogar

a realidade que nos circunda. Sem isso, nosso pensamento tende a ser, ao

mesmo tempo, limitado e limitante.

2. Pessoas de comunidades linguísticas dierentes tendem a interpretar atosanálogos de modos dierentes, tornando claro que tanto a percepção quan-

to a linguagem estão indissoluvelmente ligadas à práxis social. Como a lín-

gua amarra a percepção, um indivíduo não consegue ver qualquer realidade

que já não esteja previamente marcada em sua língua. Assim, pessoas que

alam dierentes línguas tendem a ver dierentes realidades.

3. É diícil para as crianças aprender a analisar os modos de uncionamento da

linguagem porque tomar um ato da língua como objeto de análise exige

uma experiência de vida na cultura que proporcione ao sujeito um repertó-rio que lhe permita se distanciar dos enunciados que nela circulam o bastan-

te para poder estudá-los.

A perspectiva histórica dodesenvolvimento do pensamento humano1. Em suas pesquisas, Vygotsky mostrou que o progresso da ala não é paralelo

ao progresso do pensamento. Para ele, as curvas de crescimento de ambos cru-

zam-se muitas vezes, podem atingir o mesmo ponto e correr lado a lado, e até

mesmo undir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente.

2. Porque o ser humano precisa viver em sociedade. Assim sendo, logo aprende

que, para se manter vivo, há um “discurso certo” a azer, que pode ser proerido

aberta e publicamente, e outros discursos e práticas que é necessário velar.

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Linguagem e Pensamento

3. A convivência com os pares é undamental para haver aprendizado porque o

ser humano constitui-se na sua relação com o outro social. É a sociedade que

lhe ensina o que pode e deve ser dito e, nas últimas consequências, dita ao

humano seus modos de pensar. Assim sendo, conrontar ormulações precárias

com as de seus colegas mais experientes ajuda o aluno a ir, paulatinamente,

renando seus modos de pensar.

Signicado da palavra: lugar de junçãodo pensamento e da linguagem1. Falar com o bebê pequeno é importante para a estruturação do pensamento

do ser humano porque, no início, o bebê unciona de modo mínimo, ou seja,

apenas segundo os imperativos do princípio do prazer (saciar a sede, matar

a ome, satisazer o sono etc.). Nesse nível, não há dierença entre um serhumano e um animal. É por meio da inuência de seus semelhantes mais ex-

perientes que lhe ornecem rudimentos de palavras em um contexto social

que o humano começa a organizar um pensamento elaborado.

2. Vygotsky aastou-se de duas tradições de pesquisa que circulavam em sua

época. Não concordava nem com uma perspectiva que consiste na usão en-

tre o pensamento e a ala nem com outra que consiste na segregação entre o

pensamento e a ala, isto é, na compreensão de que são enômenos que nada

têm em comum. Construiu uma terceira vertente: a da consideração do pen-samento verbal. Para o autor, no cérebro humano pensamento e linguagem

estão ligados numa zona que consiste no pensamento através da palavra.

3. A palavra tem uma importante unção no desenvolvimento intelectual do hu-

mano, tanto internas quanto externas. Internamente, pode organizar o pensa-

mento do homem, por meio de operações como, por exemplo, a classicação

e a seriação. Externamente, pode auxiliar na organização do homem em so-

ciedade, permitindo aos homens que possam a) compartilhar as conclusões

a que chegaram a partir da organização prévia de suas ideias; b) inserir-se nasrelações sócio-históricas por meio de um lento processo de apropriação dos

conceitos; e c) transmitir esses conceitos aos descendentes de uma cultura.

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Gabarito

O papel da linguagemno desenvolvimento intelectual de uma criança1. De acordo com a teoria de Vygotsky, as palavras da mãe são undamentais na

estruturação do pensamento do bebê. Quando ela mostra objetos a seu lho e

os nomeia, exerce uma importante inuência decisiva na ormação dos proces-sos mentais da criança. Como está relacionada à percepção direta do objeto, a

palavra isola seus traços e propriedades essenciais, inibindo as secundárias.

2. A teoria de Vygotsky se aasta da perspectiva comportamentalista na medi-

da em que entende que, para nós humanos, o uso de signos az com que se

crie um elo intermediário entre o estímulo e a resposta. Vygotsky classica

os signos como estímulos de segunda ordem. Para ele, quando a lógica da

linguagem se impõe ao bebê, ela substitui o processo simples de estímulo e

resposta por um ato complexo.

3. Para o autor, a criança pequena ainda não é capaz de controlar previamente seu

comportamento quando deseja realizar tareas concretas. Assim sendo, tende

a racassar em todas as tareas que exigiriam reexão e planejamento. Após

os sete anos, em média, ela já consegue controlar seu comportamento com o

auxílio de signos externos, como por exemplo, utilizando-se de um barbante

amarrado no dedo para não se esquecer de algo. Desse modo, é mais eciente

na realização de tareas às quais se propõe. Ao se tornar adulto, o humano tem

sua atividade psicológica organizada pelo signo linguístico. Consequentemen-te, mesmo sem o auxílio de instrumentos externos, seu comportamento pode

permanecer mediado, ou seja, planejado e reetido com antecedência.

A infuência do aprendizadoescolar no desenvolvimento da criança

1. O proessor que segue a perspectiva vygotstkyana não se preocupa tantocom aspectos como prontidão ou maturação porque, nessa orientação, a

educação não ca à espera do desenvolvimento intelectual da criança, mas,

ao contrário, entende que sua principal unção é dar origem ao desenvol-

vimento. O proessor não ca esperando a criança se desenvolver primei-

ro para azê-la aprender depois, mas, ao contrário, trata de azê-la aprender

para que possa se desenvolver.

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Linguagem e Pensamento

2. Os vygotstkyanos tendem a dar grande importância à escola e à sua orga-

nização porque compreendem que o desenvolvimento do comportamento

humano dá-se em sua relação com o contexto social. Por esse motivo, eles

dão muita importância aos lugares em que o aprendizado se az de modo

sistemático e socialmente organizado, como a escola.

3. Ensinar um grande número de conteúdos às crianças é pouquíssimo impor-tante para os vygotstkyanos. Para eles, aprender não é sinônimo de tomar

contato com uma lista de pontos registrada no currículo escolar. O ato edu-

cativo bem-sucedido é aquele que orça uma passagem: transormar os con-

ceitos espontâneos (aqueles que desenvolvemos na convivência social) em

conceitos cientícos (aqueles que são ormalizados de acordo com as regras

da cultura elaborada).

O desao de ensinar a escrever bem nos dias de hoje1. Desde a invenção do alabeto onético, pouco a pouco essa tecnologia oi se

tornando central na organização e na manutenção de nossa cultura. A escrita

tem orça de lei porque registra normas e procedimentos. Pode proporcionar

uma coerência de princípios losócos e operacionais nas várias instâncias por-

que ajuda no compartilhamento das ideias e na checagem da aprendizagem.

2. Se um proessor leva em conta o ato de que, na contemporaneidade, as

crianças estão regidas por outra lógica, ele pode ter expectativas mais rea-listas. Ele compreenderá que, muito provavelmente, não poderá transmitir

um amor igual ao seu, compatível com os tempos onde a vida era outra.

Compreenderá que deve se responsabilizar pela transmissão de outro tipo

de amor. Assim, ele tentará aprender com as lições do passado para olhar

de rente para as mazelas do presente e se responsabilizar pela invenção de

soluções sobre os novos problemas.

3. É mais importante que o proessor aça os alunos compreenderem as un-

ções dos conhecimentos do que ensiná-los de maneira isolada. Sua unçãoprincipal é a de ser mediador, isto é, auxiliar os jovens a integrar conheci-

mentos isolados em uma rede simbólica cuja internalização gera o processo

do desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.

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Gabarito

Perspectiva histórico-social: a aula de LínguaPortuguesa e seus textos nela produzidos1. Analisando-se a história da constituição da alabetização como objeto de

estudo no Brasil, podemos perceber que o momento atual sempre se unda

na condenação das práticas que caracterizavam o momento anterior. Aque-les que desejam ver a sua perspectiva adotada por todos armam que seus

contemporâneos estão errados, independente do ato de estarem obtendo

bons resultados.

2. O contato da criança e sua ação sobre os símbolos da escrita, ainda que es-

ses símbolos estejam organizados correta e signicativamente como lingua-

gem, não garantem, por si só, que a criança aprenda a linguagem escrita. A

partir, portanto, de uma compreensão histórica do homem, compreende-se

que é preciso que haja homens utilizando de orma real a linguagem paraque ela se congure enquanto tal.

3. O proessor precisa compreender-se como agente da socialização de seus

alunos para não perder de vista que ele é corresponsável pelo processo de

humanização daqueles que educa. O proessor precisa ajudar o aluno no di-

ícil processo de sua inserção na civilização, na qual grande parcela da popu-

lação está à margem. Para ser bem-sucedido, ele deve considerar o caráter

histórico do homem, incluindo ele próprio.

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5/17/2018 Claudia Rosa Riolfi - Linguagem e Pens Amen To - slidepdf.com

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