cinema e literatura, a adaptacao como digest

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  A presente tradução se baseou no artigo original em francês publicado na Revista Esprit de julho de 1948, 16º ano, número 146, e numa tradução inglesa do artigo presente no livro norte-americano Film Adaptation, editado por James Naremore, que, por sua vez, usou a tradução de Alain Pierre e Bert Cardullo feita em 1997 para o livro Bazin at Work , de Bert Cardullo. Adaptação, ou o cinema como digest  (fácil assimilação) 1 . De André Bazin / Tradução: Maria Cristina Homem de Melo e Cesar Zamberlan Coloca-se, de uma maneira simplista, o problema das adaptações no âmbito da literatura. Mas ainda que faça parte da literatura, a literatura tem uma amplitude muito maior. Tomemos a pintura, como exemplo. Pode-se considerar o museu como um digest (síntese), pois lá encontramos reunida uma seleção de quadros cuja existência configura outro contexto arquitetônico e decorativo. Mas, são ainda quadros originais, mas o que pensar do “Museu Imaginário” proposto por Malraux e que, graças à reprodução fotográfica, retrata o original em milhões de cópias. Ele substitui as imagens de dimensões e de cores diferentes por uma foto do quadro, tornando esta obra muito mais acessível. A fotografia, no entanto, continua sendo uma 1  Nota dos tradutores: Digest   Uma palavra de difícil tradução no português. Bazin usa o termo  proveniente do inglês. O dicionário de língu a Inglesa Longman afirma que numa primeira acepç ão o termo refere-se à digestão; numa segunda, a uma história curta que dá os fatos mais importantes sobre u m livro, reportagem etc; e, numa terceira acepção, forma de entender novas infor mações, especialmente quando há muitas delas ou é difícil de entendê-las. Segundo o dicionário francês Larousse, digest é uma coisa de fácil digestão, assimilação; de um outro modo, poderia se p ensar em resumo, síntese, simplificação. O termo serve de título a Revista Esprit, de julho de 19 48, a qual este artigo está inserido, cujo tema é justamente: “A Civilização do Digest”. Quem explica melhor o termo e a ideia da revista é Chris Marker, num artigo intitulado “Sauvages blancs seulement confondre”, que numa tradução literal seria, “Os brancos selvagens somente confundem” e tanto o texto dele quanto o de J ohn Bainbridge, “Le Petit Magazine” que antecedem o texto de Ba zin, citam e se detém bastante na revista norte-americana Readers Digest.

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A Adaptacao Como Digest

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  • A presente traduo se baseou no artigo original em francs

    publicado na Revista Esprit de julho de 1948, 16 ano, nmero 146, e

    numa traduo inglesa do artigo presente no livro norte-americano

    Film Adaptation, editado por James Naremore, que, por sua vez, usou

    a traduo de Alain Pierre e Bert Cardullo feita em 1997 para o livro

    Bazin at Work, de Bert Cardullo.

    Adaptao, ou o cinema como digest (fcil assimilao) 1.

    De Andr Bazin / Traduo: Maria Cristina Homem de Melo e Cesar

    Zamberlan

    Coloca-se, de uma maneira simplista, o problema das adaptaes no

    mbito da literatura. Mas ainda que faa parte da literatura, a

    literatura tem uma amplitude muito maior. Tomemos a pintura, como

    exemplo. Pode-se considerar o museu como um digest (sntese), pois

    l encontramos reunida uma seleo de quadros cuja existncia

    configura outro contexto arquitetnico e decorativo. Mas, so ainda

    quadros originais, mas o que pensar do Museu Imaginrio proposto

    por Malraux e que, graas reproduo fotogrfica, retrata o original

    em milhes de cpias. Ele substitui as imagens de dimenses e de

    cores diferentes por uma foto do quadro, tornando esta obra muito

    mais acessvel. A fotografia, no entanto, continua sendo uma

    1 Nota dos tradutores: Digest Uma palavra de difcil traduo no portugus. Bazin usa o termo

    proveniente do ingls. O dicionrio de lngua Inglesa Longman afirma que numa primeira acepo o

    termo refere-se digesto; numa segunda, a uma histria curta que d os fatos mais importantes sobre um

    livro, reportagem etc; e, numa terceira acepo, forma de entender novas informaes, especialmente

    quando h muitas delas ou difcil de entend-las. Segundo o dicionrio francs Larousse, digest uma

    coisa de fcil digesto, assimilao; de um outro modo, poderia se pensar em resumo, sntese,

    simplificao. O termo serve de ttulo a Revista Esprit, de julho de 1948, a qual este artigo est inserido,

    cujo tema justamente: A Civilizao do Digest. Quem explica melhor o termo e a ideia da revista

    Chris Marker, num artigo intitulado Sauvages blancs seulement confondre, que numa traduo literal

    seria, Os brancos selvagens somente confundem e tanto o texto dele quanto o de John Bainbridge, Le

    Petit Magazine que antecedem o texto de Bazin, citam e se detm bastante na revista norte-americana

    Readers Digest.

  • sucessora da gravura, se torna uma adaptao aproximada para o

    uso dos amantes da arte2.

    No se pode esquecer que a adaptao e o resumo das obras

    originais j h muito tempo faz parte dos costumes e com tal

    amplitude que seguramente no h como colocar sua existncia em

    discusso. Usemos o exemplo do cinema.

    Mais que um escritor, mais que um crtico e, veja, mais que um

    cineasta contestam a justificativa esttica das adaptaes de

    romances para a tela, mas existem poucos exemplos dos que se

    opem a esta prtica, dos que se recusam a vender seus livros, a

    adaptar o dos outros, ou mesmo, coloc-los em cena quando um

    produtor insiste com bons argumentos. No me parece que tal

    contestao seja, em geral, bem fundada. Eles invocam a

    especificidade nica de toda obra literria original. Um romance

    uma sintese nica cujo equilibrio molecular fatalmente

    comprometido quando se atinge a forma. Essencialmente, nenhum

    detalhe da narrativa pode ser considerado secundrio, nenhuma

    particularidade sinttica, nada que seja expresso da matria

    psicolgica, moral ou metafisica da obra. verdade que Andre Gid,

    quando usa os passados simpless (pass simple)3, tal tempo verbal

    imanente aos eventos de Sinfonia Pastoral, o mesmo ocorre quando

    Albert Camus usa o tempo verbal dos passados compostos (pass

    compos) no drama metafsico de O Estrangeiro. 2 Nota de Andr Bazin: Durante um recente programa de rdio do French Cancan, no qual os senhores

    Pierre Benot, Labarthe e alguns outros falavam amenidades, nos ouvimos Curzio Malaparte perguntar ao

    locutor o que ele pensaria, por exemplo, sobre a verso condensada do Parthenon; na sua mente isso

    supostamente seria um argumento contra o digeste. Ningum de l respondeu que uma verso

    condensada foi feita muito tempo atrs com o modelo das frisas e, sobretudo, a partir dos lbuns de

    fotografia da acrpole que a gente pode encontrar por um preo mdico em qualquer vendedor de

    reproduo de arte.

    Na nota da traduo inglesa, explica-se que: Pierre Benoit (1876-1962) foi um novelista francs

    membro da Academia Francesa, autor de "Koenigsmark and LAtlantide; que Labarthe foi uma figura

    literria obscura do tempo de Bazin, co-autor com Marcel Brion, Jean Cocteau, Fred Brence, Emmanuel

    Berle, Danielle Hunebelle, Robert Lebel, Jean-lucas Dubreton e Jean-jaques Salomon um volume

    intitulado Leonardo da Vinci, 1959; e que Curzio Malaparte (1898-1957) foi novelista italiano, clebre

    autor de Kaputt, entre muito outros trabalhos, e que contribuiu com um filme para o cinema italiano,

    Cristo Proibido, 1950, o qual escreveu, dirigiu e fez a trilha sonora.

    3 Nota da traduo inglesa: Bazin usa o termo pass simple em francs. O pass simple um tipo de

    tempo verbal no passado que no tem similar no portugus e nem no ingls. Este tempo do imperfeito no

    francs um tipo de passado simples, mas no usado na linguagem usual, um tempo verbal

    empregado apenas na linguagem escrita e, por consequncia, literria. Atualmente, para expressar a

    mesma ideia se usa o pass compos ou imperfeito.

  • Mesmo se colocado em termos to complexos, o problema da

    adaptao cinematogrfica no essencialmente insolvel, e a

    histria do cinema j prova que ele foi muitas vezes resolvido e de

    vrias maneiras. Como exemplos incontestveis, citaria Serra de

    Taruel, de Malraux; Um dia no Campo, de Jean Renoir, a partir de

    Maupassant; e o recente Vinhas da Ira de Steinbeck. Mas no me

    sinto vontade para defender um xito mais duvidoso como o de

    Sinfonia Pastoral. verdade que nem tudo nas adaptaes bem

    sucedido, mas tambm no certo que as pessoas a considerem

    como a mais inefvel, tendo em vista a obra original. Eu no gosto

    muito da atuao de Pierre Blanchard, mas, ao contrrio, eu acredito

    que os olhos de Michelle Morgan e o leitmotiv, sempre presente, da

    neve, suprem fortemente o tempo verbal do passado simples de

    Gide. Basta que o diretor tenha bastante imaginao para inventar os

    equivalentes cinematogrficos relativos ao estilo do texto original e

    ao crtico que tenha olhos para ver isso.

    verdade que tal tese implica no cuidado de no confundir o estilo

    com as particularidades gramaticais e mais geralmente ainda com as

    constantes formais. Esta uma heresia generalizada que no atinge

    somente, e infelizmente, os professores de frans. A forma no

    nada alm que um signo, uma aparncia sensvel do estilo, sendo que

    o estilo totalmente insepravel do fundo do qual se constitui, de

    alguma forma, como aponta Sartre, da metafsica. Nessas condies,

    a fidelidade a uma forma literria ou outra ilusria, o que conta e a

    equivalncia do sentido das formas4. O estilo do filme de Malraux

    rigorosamente idntico ao do seu livro, Serra de Taruel, ainda que

    um seja um filme e o outro um livro. Mais stil o caso de Um dia no

    Campo no qual a fidelidade ao esprito da obra de Maupassant

    beneficia todo o gnio de Renoir. E a que encontramos a refrao

    (rfraction) de uma obra no esprito de outro criador. Ningum

    contestar a beleza do resultado. Era necessrio sem dvida

    Maupassant, mas tambm Renoir (e os dois, Jean e August).

    Os mais instransigentes responderam que os exemplos citados

    provam somente que impossvel, metafisicamente, realizar uma

    obra cinematogrfica inspirada numa obra literria, com uma

    fidelidade suficiente ao esprito da original e uma inteligncia esttica

    4 Nota de Andr Bazin: Podemos encontrar algumas transferncias no estilo, tais como o tempo verbal

    pass simple que no encontro na decupagem tcnica da Pastoral, isto na sintaxe do filme, mas vejo

    nos olhos da atriz e no smbolo da neve.

  • que permita considerar que o filme vale o livro, mas que no se trata

    mais de uma adaptao no sentido que ns entendamos no comeo

    deste texto. Um dia no campo, na tela, outra obra, igual ou

    superior a seu modelo, porque Jean Renoir, , na sua arte, um

    criador do tipo de Maupassant, mas ele se beneficiou do trabalho

    anterior do escritor? Se temos agora inumerveis romances norte-

    americanos ou europeus adaptados a cada ms para a tela, a gente

    v que se trata de uma outra coisa e, precisamente, de um

    condensado, de um resumo, de um digest cinematogrfico, como

    um ad usum delphini5, algo esteticamente indefensvel, tais como O

    Idiota, Por quem os sinos dobram, e essas eternas adaptaes de

    Balzac, que parecem ter demonstrado que o autor da Comdia

    Humana o menos cinematogrfico dos romancistas.

    verdade que preciso primeiro saber para quem se adapta, se

    para o cinema ou se para o pblico, e que a maioria das adaptaes

    se preocupou muito mais com o segundo do que com o primeiro.

    O problema da adapatao para o pblico aparece mais claramente

    ainda no caso do rdio. Este efetivamente no uma arte como o

    cinema, mas a princpio e, sobretudo, um meio de reproduo e de

    difuso. O fenomeno da sntese (digest) no reside na condensao

    ou na simplificao das obras, mas na sua forma de consumo. O

    interesse cultural do rdio tem precisamente aquilo que espanta

    Georges Duhamel6: ele permite ao homem moderno viver num meio

    sonoro algo comparvel ao calor fornecido pelo aquecimento central.

    Da minha parte, h um ano sinto a necessidade de ligar o rdio logo

    que chego a minha casa. Sempre escrevo e trabalho com o rdio

    ligado. Neste exato momento, escrevo este artigo, escutando um

    excelente programa dirio e matinal de Jean Vittold7 sobre os

    grandes msicos. Agora h pouco, enquanto me barbeava, Jean

    5 Nota da presente traduo Literalmente seria para o uso do delfim, ou seja, eram as obras clssica

    latinas especialmente preparadas, com passagens expurgadas, para o uso do filho de Lus XIV, o delfim.

    6 Nota da traduo inglesa (1884 1966) Atualmente uma figura esquecida. Famoso antes da 2 Guerra

    Mundial, foi eleito pela Academia Francesa em 1935. Lembrado por dois ciclos de romances: o primeiro

    Vie et aventures de Salavin (1920 1932) e a popular Chronique des Pasquier (1933 1945). Escrevendo

    de forma caloroso e cheia de humor, Duhamel usou a saga de Pasquier para atacar o materialismo e

    defender os direitos do indivduo contra foras coletivas da sociedade.

    7 Nota da traduo inglesa Vitold foi um famoso musiclogo francs.

  • Rostand8 me ensinou porque somente as gatas tm o privilgio de ser

    simultaneamente de trs cores (algo que os gatos no podem) e eu

    no sei mais quem me explicou, enquanto eu tomava meu caf, como

    os Aztecas esculpiam as extraordinrias mscaras de quartzo polido

    que a gente pode ver no Museu do Homem9. A sinistra farsa de Jules

    Romain10 sobre a viso extraocular se encontra seriamente realizada

    pelo rdio. A rdio criou uma cultura atmosfrica, onipresente como a

    umidade do ar. Para aqueles que acham que a cultura pode ser

    conseguida somente com grande esforo, a facilidade de acesso fsico

    s obras, permitida pelo rdio, no menos contrria sua natureza

    quanto sua forma. Mesmo que bem e integralmente executada no

    rdio, a 5 Sinfonia escutada tomando seu banho no mais a obra

    de Beethoven; seria necessrio msica o ritual do concerto, o

    sacramento do recolhimento. verdade que a gente pode ver nisso

    uma forma de todos terem acesso cultura um contato fsico com a

    cultura, contato fsico que a princpio a condio que o outro dispe.

    O rdio confortavelmente oferece, com a convenincia moderna,

    cultura para todos. Ele representa um ganho de tempo e de esforo

    que o simbolo mesmo da nossa poca, Duhamel deve pensar no

    rdio da mesma forma como o taxi que o leva ao concerto.

    O preconceito que no separa esforo intelectual da cultura deriva de

    um reflexo intelectualista e burgus, ele o equivalente numa cultura

    racionalista aos privilgios iniciticos das civilizaes primitivas.

    certo que o esoterismo uma das grandes tradies da nossa

    cultura, a Deus no agrada que nos o pretendamos banir da nossa

    cultura, mas que o coloquemos no seu lugar porque no h nenhuma

    razo dele ser absoluto. Existe um prazer especifico diante da

    dificuldade vencida que o refinamento supremo da relao que

    temos com a obra. Mas o alpinismo ainda no substitui a caminhada

    num terreno plano. Os modos de comunicao cultural clssicos so

    tanto uma defesa da cultura quanto uma defesa da afixao da

    cultura, as tcnicas e as condies da vida moderna se opem cada

    8 Nota da traduo inglesa Rostand foi um conhecido bilogo francs que fez muito para popularizar o

    estudo da cincia.

    9 Nota da traduo inglesa Famoso Museu de Antropologia em Paris.

    10 Nota da traduo inglesa Jules Romain (pseudnimo de Louis Farrigoule, 1885 1972), foi um

    romancista francs, dramaturgo, poeta, ensasta, eleito para Academia Francesa em 1946, escreveu La Vie

    Unanime, uma coleo de poemas publicado em 1908. Muitos dos seus versos e sua prosa foram

    influenciados por teorias unanimistas, tal teoria defendia que a obra literria deve exprimir e representar a

    vida e os sentimentos humanos coletivos.

  • vez mais a uma cultura extensiva s massas ascendentes. O lema da

    defesa intelectualista e inconscientemente aristocrtica : No h

    cultura sem esforo, a civilizao se ope ideia: nos agarramos o

    que podemos. Porm, um progresso existe e j alguma coisa.

    No que concerne ao cinema, a minha inteno no de defender o

    infensvel, como as imundas vigarices que meramente usurpam o

    titulos dos romances que adaptam, ainda que um bom advogado diga

    que elas tm um valor indireto. provado que a tiragem de um livro

    aumenta quando ele adapatado ao cinema. A obra original s tem

    benefcios. Embora a adaptao no seja boa, O Idiota no cinema,

    por exemplo, s traz beneficios ao livro. certo que os leitores

    virtuais de Dostoievski nesta psicologia e ao muito simplificada tm

    um tipo de contato preliminar que lhe ter facilitado o acesso ao

    romance que, de outra forma, o teria amedrontado. A operao um

    pouco anloga praticada anteriormente por M. De Vogu (o autor

    de Abridged clssico para os estudantes do sculo XIX); mal visto

    aos olhos dos familiarizados leitores do romance russo, (mas estes

    leitores no tm nada a perder, assim como Dostoivski) e ainda

    muito til queles que ainda no so familiarizados com o romance

    russo e podem ganhar com isso. De qualquer forma, no vou me

    colocar neste terreno porque ele tem mais a ver com a pedagogia do

    que com a arte.

    Eu gostaria mais de me ater concepo moderna e da qual a crtica

    , em grande parte, responsvel pela ideia de intocabilidade da obra

    de arte.

    O sculo XIX, mais que os outros, estabeleceu firmemente um tipo de

    idolatria da forma, principalmente literria, que nos fez relegar a um

    segundo plano nosso esprito crtico, ele que , desde sempre, o

    essencial da criao: a inveno das personagens e das situaes. Eu

    quero muito que os heris e os acontecimentos de um romance s

    existam esteticamente atravs da forma que os exprime e que lhes

    faz viver no nosso esprito. Mas essa primazia to v quanto quela

    na qual regularmente colocamos os que querem ingressar na

    faculdade ao pedir que tratem da anterioridade da linguagem sobre o

    pensamento. interessante notar que estes mesmos romancistas que

    defendem to veemente a integridade de seus textos, sejam os

    mesmos que nos confidenciaram outro dia sobre as exigencias

    tirnicas de seus personagens. No entender deles, seus heris so

    enfant terribles e no so mais controlados por seus mestres. O

    romancista o escravo de seus caprichos, instrumento de seus

  • desejos. Eu no duvido disso nem um minuto, mas preciso admitir

    que a verdadeira realidade esttica de um romance psicologico ou

    social o personagem ou o meio antes de ser o que chamamos

    estilo. O estilo est a servio da narrativa, se a gente quiser uma

    imagem, o corpo no a alma. E no impossvel para a alma

    artstica se manifestar em uma outra encarnao. Essa suposio,

    que o estilo est a servio da narrativa, parece v e sacrlega

    somente se voc se recusar a ver os muitos exemplos que a histria

    da arte nos deixou, isto permite proferir a priori imprecaues contra

    as adaptaes cinematogrficas. Com o tempo, nos vemos, acima dos

    grandes romances, o fantasma do personagem. Dom Quixote e

    Gargantua habitam familiarmente a conscincia de milhes de

    homens que jamais tiveram contato direto ou completo com a obra

    de Cervantes e de Rabellais. Eu gostaria de estar certo que todos que

    invocam o esprito de Fabrice ou de Madame Bovary leram (ou

    releram para sermos honestos) Sthendal e Flaubert. Na medida em

    que o estilo da obra original soube criar e impor um personagem,

    este adquire uma autonomia maior que pode, em alguns casos,

    transcender a obra. Os romances, nos o sabemos, so criadores de

    mitos.

    Esta defesa feroz da obra literria , em certa medida, esteticamente

    fundada, mas preciso ver que ela se repousa tambm numa

    concepo individualista relativamente recente do autor e da

    obra, concepo que no era to rigorosa no sculo XVII e que

    comeou a ser juridicamente fixada no fim do sculo XVIII. Na Idade

    Mdia, a gente s conhecia temas comuns a muitas artes, como Ado

    e Eva, por exemplo, que a gente pode encontrar nos mistrios, na

    pintura, na escultura, no vitral, sem que ningum contestasse o valor

    de suas diferentes adaptaes. E quando a gente escolhe como tema

    para o Prmio de Roma na rea de pintura Os Amores de Daphne e

    Chle11 o que possvel fazer a no ser adaptar? certo que os

    direitos autorais no so reclamados. Para justificar a polivalncia

    esttica dos temas bblicos e cristos da Idade Mdia nos estaramos

    errados se pretendessemos que eles contituissem um fundo comum,

    um tipo de domnio pblico da civilizao crist, as canes de gesta

    no foram muito respeitadas por diversos copistas. Alm disso, a

    obra de arte no tinha um motivo nela mesma, seu contedo e a

    11

    Nota da traduo inglesa Daphne e Chle eram dois amantes num antigo romance pastoral grego com

    o mesmo nome, atribuido a Longus (sec III dC). Daphne era uma pastora siciliana que remonta ao mito

    grego como a inventora da poesia pastoral.

  • eficincia de sua mensagem eram os nicos critrios importantes.

    Mas, o equilibrio entre as necessidades do pblico e a criao era tal

    que garantia a excelncia da forma. Poderamos dizer, quem sabe,

    que tais tempos se foram e que a gente cometeria um contrasenso

    esttico ao querer retornar, anacronicamente, as relaes entre o

    criador, o pblico e a obra. A isso poderamos responder que, ao

    contrrio, possvel que artistas e crticos continuem cegos ao

    nascimento de uma nova idade mdia esttica, cujas causas so a

    ascenso das massas ao poder (ou ao menos a participao ao

    poder) e o aparecimento de uma tcnica artstica correspondente: o

    cinema.

    Mas sem se aventurar numa tese que mereceria outros argumentos,

    o cinema foi bastante obrigado a refazer, por sua vez, e a um ritmo

    extraordinariamente acelerado sua evoluo enquanto arte, algo

    como um feto que tem s alguns meses para evoluir no reino animal.

    Esta evoluo paradoxal contempornea a um perodo j

    longamente decadente de uma literatura ligada a elites

    individualistas. A sua Idade Mdia esttica busca os seus mitos onde

    ele pode os encontrar: na literatura dos sculos XIX e XX. Sem

    dvida, ele poderia os criar, e isso ocorreu em particular nos filmes

    cmicos, desde os primeiros burlescos franceses at as comdias

    norte-americanas, passando por Mack Sennet e principalmente

    Charles Chaplin. Os defensores da pureza cinematogrfica iro

    lembrar-se de exemplos como os das epopias dos westerns, da

    revoluo russa, ou das imagens inesqueciveis de Lrios Partidos

    (1919, Griffith) ou de Scarface (Howard Hanks, de 1932). Mas o que

    podemos fazer, a juventude se vai e com ela a grandeza, e outra

    grandeza lhe sucede e ser conquistada mais lentamente. espera

    disso, o cinema tomou como lhe convinha personagens j elaborados,

    j trabalhados, j adultos, polidos por vinte sculos de uma cultura

    literria j dada. O cinema os adotou e os fez entrar no seu jogo. Se

    a honestidade e o talento do roteirista e do diretor forem grandes, o

    personagem integrado da melhor maneira possvel a um novo

    contexto esttico. Se no, nos temos esses filmes evidentemente

    medocres e que a gente tem toda razo de condenar. No se deve

    confundir a mediocridade com o princpio da adaptao que almeja a

    simplificao e a condensao de uma obra, obra da qual busca reter

    apenas o personsagem central e as principais situaes onde o autor

    o havia colocado. Se o romancista no est contente, eu reconheo

    que ele tem o direito de defender a sua obra (ainda que ele tenha

    cometido no ato da venda um ato de proxenetismo que lhe retira

  • muita dos seus privilgios paternos), mas o far somente porque a

    no encontrou melhores pais para representar os direitos dos filhos

    at que atinjam a maioridade. No deveramos identificar este direito

    natural com uma infalibilidade necessria e a priori.

    Mais do que O Processo de Kafka, adaptado por Andr Gide, a partir

    de uma traduo de Andr Viallate, o exemplo que seria mais

    conveniente defesa da adaptao condensada seria a adaptao dos

    Irmos Karamazov por Jacques Copeau. Copeau no fez nada alm, e

    teve mais habilidade que MM. Spaak12 com O Idiota, este extrapolou

    os personagens do romance de Dostoievski e condensou os principais

    acontecimentos desta histria em algumas cenas dramticas. Existe

    algo levemente diferente nestes exemplos relacionados ao teatro,

    visto que, o pblico atual do teatro culto o suficiente para ter lido o

    romance, mas o trabalho de Copeau continuar vlido mesmo se no

    for este o caso.

    Independentemente do seu interesse pedaggico e social, a

    legitimidade da adaptao ento fundada esteticamente:

    - porque a obra existe de uma certa maneira independentemente de

    como ela chamada, do resto, errado confundir o estilo do

    original com a sua forma.

    - porque h uma diferena em relao aos direitos sobre as artes no

    sculo XIX e a noo recente e subjetivista do autor, identificado

    obra, no corresponde mais a uma sociologia estettica das massas,

    onde o cinema vem tomar a dianteira, como numa corrida de

    revezamento, com o teatro e o romance, mas sem suprimir ambos e

    mais ainda, os reforando.

    Na realidade, os verdadeiros planos de clivagem esttica no se

    desenham mais entre as artes, mas entre os gneros: entre o

    romance psicolgico e o romance de costumes, mais do que entre o

    romance piscolgico e um filme que retrate esse romance psicolgico.

    claro, que a adaptao ao pblico inseparvel da adaptao ao

    cinema, no sentido que o cinema mais pblico do que o romance.

    Meu conhecimento do livro de Radiget foi a causa do meu sofrimento

    vendo O Diabo no Corpo. O esprito e o estilo do livro so de uma

    certa forma traidos, mas isso no impediu que a adaptao fosse

    12

    Nota da traduo inglesa - Charles Spaak foi um roteirista belga que escreveu Carnavival in Flanders

    (1935) e A grande Iluso (1937).

  • uma das mais perfeitas que poderia ter sido feita e ela

    absolutamente justificada. Jean Vigo poderia ter sido mais fiel ao

    original, mas nos podemos pensar que o filme seria invsivel ao

    pblico porque a realidade do livro teria incendiado a tela. O trabalho

    de Aurenche e Bost consistiu de certa forma em transformar (no

    sentido que imaginamos um transformador eltrico) a voltagem do

    romance. A energia esttica se encontra quase que inteiramente, mas

    diferentemente distribuida segundo as exigncias de uma tica

    cinematogrfica, e mesmo que eles tenham conseguido transformar o

    amoralismo real do original numa moral quase que visivel demais, o

    pblico s o admitiu com dificuldade.

    A prpria palavra, que numa primeira abordagem parece

    ignominiosa, Digest, pode ser entendida num bom sentido. Como o

    nome o indica, escreveu Jean Paul-Sartre, isso uma literatura

    provavelmente digerida, um chyle13 literrio. Mas a gente poderia

    compreender tambm que se trata de uma literatura que se tornou

    mais acessvel pela adaptao cinematogrfica, nem tanto pelas

    simplificaes resultantes (na Sinfonia Pastoral, a narrativa para o

    cinema mais complicada), mas principalmente pelo prprio modo de

    expresso, como se as gorduras estticas diferentemente

    emulsionadas fossem mais toleradas pelo esprito do consumidor. Ns

    no pensamos da nossa parte que a dificuldade de assimilao seja

    um critrio, a priori, de um valor cultural.

    Dentro destas perspectivas, no proibido imaginar que nos amos

    em direo ao reinado da adaptao que destruiria a noo do autor,

    ao menos esta relacionada unicidade da obra. Se o filme extrado

    de Ratos e Homens (1940; dirigido por Lewis Milestone) tivesse sido

    bem sucedido (o que poderia ser muito mais fcil que a adaptao de

    As Vinhas da Ira), o crtica (literrio?) do ano 2050 se encontraria na

    presena no de um romance que foi extrado de uma pea e um

    filme, mas de uma mesma obra em trs formas artsticas, de um tipo

    de pirmide artstica de trs lados, os quais nada autorizaria a

    preferncia de uma a outra: a obra seria apenas um ponto ideal no

    topo desta figura, que uma construo ideal. A anterioridade

    cronolgica de um aspecto sobre outro no seria um critrio mais

    esttico que o que determina o direito de nascimento entre os

    gmeos. Malraux fez seu filme (Serra de Taruel ou LEspoir) antes de

    ter escrito A Esperana (LEspoir, o livro); a obra: ele a trazia nele.

    13

    NT: Chyle um liquido esbranquiada da digesto que se forma no intestino grave.