cidadania

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T.H. Marshall é um dos principais autores quando se fala acerca do conceito de cidadania. Analisando eu desenvolvimento na Inglaterra, elaborou uma teoria que, se não universal, serviu como parâmetro para a análise do desenvolvimento da cidadania nos demais países. Assim, partindo da observação da conquista e implementação dos direitos na Inglaterra através da obra Cidadania e classe social, de 1950, Marshall chegou à conclusão de que a cidadania se constituía a partir de três tipos de direito: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Os direitos civis constituíam a base da cidadania ao garantir a liberdade individual para expressão, reunião, ser proprietário, etc.; se consolidaram na Inglaterra principalmente no século XVIII. Os direitos políticos garantiriam a participação no governo da sociedade, principalmente, através do direito de votar e ser votado; foram conquistados majoritariamente na Inglaterra no século XIX. No século XX se sobressaíram os direitos sociais, que garantiam direitos trabalhistas, à saúde, educação, aposentadoria, etc. Para Marshall, a educação é um direito que garante fundamentalmente a cidadania, uma vez que permite aos sujeitos se situarem em sociedade e serem capazes de reconhecer para si e para os outros direitos. Neste sentido, a cidadania seria uma forma de mitigar as desigualdades de classe produzidas pelo capitalismo. Ainda, a cidadania estaria sempre ligada a um determinado Estado- nação, circunscrito a um Estado, se desenvolvendo em uma linha reta na história, rumo ao progresso. Alguns autores criticam essa visão, como a brasileira Lígia Coelho, que recusa a ideia da centralidade do Estado na questão da cidadania, bem como o evolucionismo da teoria e sua suposta universalidade. Para a autora, a aquisição dos direitos não se deu naturalmente, mas através das lutas

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T.H. Marshall é um dos principais autores quando se fala acerca do conceito de cidadania. Analisando eu desenvolvimento na Inglaterra, elaborou uma teoria que, se não universal, serviu como parâmetro para a análise do desenvolvimento da cidadania nos demais países.

Assim, partindo da observação da conquista e implementação dos direitos na Inglaterra através da obra Cidadania e classe social, de 1950, Marshall chegou à conclusão de que a cidadania se constituía a partir de três tipos de direito: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Os direitos civis constituíam a base da cidadania ao garantir a liberdade individual para expressão, reunião, ser proprietário, etc.; se consolidaram na Inglaterra principalmente no século XVIII. Os direitos políticos garantiriam a participação no governo da sociedade, principalmente, através do direito de votar e ser votado; foram conquistados majoritariamente na Inglaterra no século XIX. No século XX se sobressaíram os direitos sociais, que garantiam direitos trabalhistas, à saúde, educação, aposentadoria, etc.

Para Marshall, a educação é um direito que garante fundamentalmente a cidadania, uma vez que permite aos sujeitos se situarem em sociedade e serem capazes de reconhecer para si e para os outros direitos. Neste sentido, a cidadania seria uma forma de mitigar as desigualdades de classe produzidas pelo capitalismo. Ainda, a cidadania estaria sempre ligada a um determinado Estado-nação, circunscrito a um Estado, se desenvolvendo em uma linha reta na história, rumo ao progresso.

Alguns autores criticam essa visão, como a brasileira Lígia Coelho, que recusa a ideia da centralidade do Estado na questão da cidadania, bem como o evolucionismo da teoria e sua suposta universalidade. Para a autora, a aquisição dos direitos não se deu naturalmente, mas através das lutas dos movimentos sociais. Ainda, pergunta pelos demais direitos (como os direitos culturais), que ficaram de fora da escolha de Marshall. Se pergunta, também, para além dos direitos: cidadãos tem deveres. O autor também restringiria o direito ao mero exercício legal, relativo ao Estado. A cidadania estaria então restrita à concessão de direitos por parte dele. Nesse sentido, a cidadania sempre estaria a ele atrelada. Para Lígia, a teoria de Marshall não pode resistir na realidade periférica brasileira: cada povo tem sua história particular. Por fim, a autora ainda reivindica por um conceito de cidadania que ultrapasse seu sentido individual e alcance seu sentido coletivo. Cidadania, para a autora, envolve participação democrática, autonomia para uma participação consciente e uma crítica necessária. Cidadania é luta coletiva engajada.

Também José Murilo de Carvalho, em Cidadania no Brasil: o longo caminho, afirma a necessidade de uma releitura de Marshall para a realidade particular brasileira. Cita Marshall e sua ideia de desenvolvimento da cidadania na Inglaterra enquanto um processo lógico e histórico. Anota que a educação popular tem um papel indispensável na teoria da cidadania de Marshall, uma vez que ela foi e é indispensável para a tomada de consciência dos direitos e da necessidade de se lutar por eles. Para Carvalho, A

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ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania civil e política. Assim, diz que O surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta.

Cada país seguiu seu próprio caminho, inclusive o Brasil. Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparação. No Brasil houve pelo menos duas diferenças importantes:

1) maior ênfase nos direitos sociais;

2) a sequencia em que os direitos foram adquiridos: no Brasil o direito social foi o primeiro.

Para o autor, Como havia lógica na sequencia inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Portanto, falar de um cidadão inglês e de um brasileiro não é a mesma coisa.

O fenômeno da cidadania se desenvolveu dentro do fenômeno do Estado-Nação a partir da Revolução Francesa. A luta por direitos sempre aconteceu dentro das fronteiras do estado-naçao. Uma luta politica nacional, um cidadão nacional. Assim, a construção da cidadania sempre se deu com relação a um determinado estado e a uma determinada nação. Ser cidadão é sentir-se pertencente a um estado e a uma nação.

Da cidadania como a conhecemos fazem parte então a lealdade a um Estado e a identificação com uma nação. A lealdade à nação se constitui por fatores como religião, língua, etc, enquanto a lealdade ao Estado se da por condições de participação na vida política. Em alguns países, o Estado teve mais influencia na construção da cidadania, em outros partiu mais da sociedade.

Como fica a questão da cidadania hoje, como a crise do Estado-nação? Se discorda dos seus aspectos, mas todos concordam que essa crise existe. O autor afirma que a globalização promovida pelo capitalismo, os avanços tecnológicos, a criação de blocos econômicos e políticos tem causado uma redução do poder dos Estados nacionais. Neste sentido, a redução do poder do Estado afeta a natureza dos direitos políticos e sociais, o que nos leva a perguntar pela questão da cidadania nesse mundo capitalismo internacionalizado.

A obra Cidadania no Brasil pode ser entendida como uma analise histórica necessária do Brasil.

Esmiuçando cada situação detalhada de cada conjuntura desde 1822, o ano da independência, até 2000, ano em que o livro foi escrito e que comemorava os 500 anos da descoberta do Brasil, José Murilo procura saber como se deu o desenvolvimento da cidadania no país e qual sua implicação recente.

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Partindo de uma leitura de Marshall sobre a cidadania, José Murilo faz uma distinção entre 3 tipos de direitos básicos que constituem o conceito de direito.

No entanto, subverte a ordem estabelecida por Marshall ao afirmar que, apesar de cidadania ser um conceito histórico, ela não se dá como uma sequência necessária entre direitos civis, políticos e sociais. Cada país teu sua história peculiar do desenvolvimento de cidadania e com o Brasil não seria diferente.

Compreendendo que a cidadania só pode se dar em um determinado Estado e em uma determinada nação, escolhe como marco inicial a independência da colônia em relação a Portugal em 1822.

O primeiro passo em direção à cidadania se deu com a abolição da escravatura em 1988, que concedeu aos escravos a condição de livres. Mas não se pode dizer que os direitos civis foram os primeiros a se desenvolverem. Muito caminho ainda seria percorrido nesse sentido.

A partir daí, José Murilo aponta que a cidadania no Brasil sempre foi problemática, porque quase sempre partiu da elite conceder direitos ao povo. Por isso, diz que os trabalhadores foram incorporados à sociedade por virtude das leis sociais e não de sua ação sindical e política independente. Nesse sentido, a concessão dos direitos sociais teria uma grave implicação para a cidadania no Brasil.

Diz o autor que A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, corno independentes da ação do governo, mas como um (favor) em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora.

Por fim, José Murilo conclui que a herança atual de nossa cidadania é reflexo direto das práticas sociais desde a independência.

O Brasil sofre as consequências da inversão dessa ordem de direitos de Marshall e forma seus cidadãos nesses moldes. Como consequência disso, tem-se a tendência no Brasil de enxergar o governo como apenas o Poder Executivo, o concessor de direitos durante os períodos ditatoriais. A representatividade pouco importa nesse momento, sendo importante a concessão de direitos e privilégios. Segundo José Murilo, essa cultura orientada mais para o Estado do que para a representação é o que chamamos de “estadania”, em contraste com a cidadania.

Em Do (pre)conceito liberal a um novo conceito de cidadania: pela mudança do senso comum sobre a cidadania, Vera Regina Pereira de Andrade afirma que o conceito de cidadania dominante no meio jurídico brasileiro é de inspiração liberal e não pode dar atender às exigências sociais. A autora propõe a releitura do conceito de cidadania para além desse entendimento comum liberal predominante no Brasil.

Segundo o conceito dominante, o cidadão é aquele que tem a nacionalidade brasileira e que pode votar e ser votado, isto é, estritamente vinculado a um conceito de

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democracia representativa. Tal limite é traçado pelo próprio entendimento do liberalismo, que separa o homem do cidadão na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Separou-se Estado e sociedade civil, o público do privado, como se entre ambos não houvesse qualquer conexão. O homem só adquire status de cidadão no momento do voto, no momento público. Na sociedade, no privado, o sujeito deve se abster politicamente.

O conceito liberal de cidadania é restrito porque sua compreensão de poder, política e democracia também são limitados à esfera do Estado. Para tanto, é preciso recorrer a uma nova ideia de democracia para além do conceito liberal e estatizante, no esforço de recuperar sua dimensão politizada, participativa e plural, em que a coletividade tenha lugar. É preciso historicizar o conceito na práxis. Neste sentido, o conceito de cidadania liberal deve ser ultrapassado em nome de uma cidadania participativa e consciente politicamente. Uma cidadania que supere a atomização promovida pelo capitalismo e pela liberalização das instituições, aberta aos movimentos sociais e as diversas demandas. A igualdade perante a lei deve se deslocar para a realização das diferenças e para o respeito às minorias. A cidadania instituída pela democracia deve ser substituída por uma cidadania atuante, motor da democracia.