cidadania mediada

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NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 155 [1] Gostaria de agradecer a todos os brasileiros que se dispuseram a dividir comigo seu tempo precioso, em parti- cular Sérgio Baierle,Cilto Rosembach, Ana Cláudia Teixeira e a família Silva Brito.Também sou grato a Rowan Ire- land e Francesco Formosa, que fize- ram valiosos comentários e sugestões acerca de várias etapas da pesquisa, a qual contou com apoio financeiro do Australian Research Council. [2] Roniger,Luis. Hierarchy and trust in modern Mexico and Brazil. Nova York/Londres: Praeger, 1990; Main- waring,Scott. Clientelism, patrimonia- lism and economic crisis: Brazil since 1979. Washington, DC: Latin Ameri- Ao enfocar o processo de redemocratização no Brasil, diversos autores têm enfatizado que práticas como o populismo, o per- sonalismo, a patronagem e o clientelismo ainda são vigentes na vida política 2 , até mesmo no âmbito das experiências de democracia partici- pativa 3 .Muitos desses autores argumentam que essa persistência de ele- mentos políticos “tradicionais” inibe o surgimento de instituições democráticas mais sólidas e de uma cultura política mais democrática. Embora essa interpretação pessimista tenha muito a dizer sobre as defi- ciências da democracia brasileira recente, deixa de examinar o espaço que se abre entre os pontos de referência do “tradicional” e do “democrá- tico”. Mais importante, deixa de observar o quanto essas práticas políti- cas tradicionais estão se transformando nos contextos de democracia participativa, no qual de fato figuram, para melhor ou para pior. CIDADANIA MEDIADA RESUMO O artigo discute a noção de que a persistência de práticas políticas “tradicionais” enfraquece a democracia no Brasil. Com base em estudos de caso realizados em três municípios administrados pelo PT entre 2001 e 2004 — São Paulo, Porto Alegre e Itabuna (BA) —, o autor examina o espaço entre o “tradicional” e o “moderno” e argumenta que um processo de democratização bem-sucedido não erradica práticas como o clientelismo e a patronagem, mas tende a incorporá-las e a edificar-se a partir delas. Sustenta ainda que a demo- cratização da política municipal em países como o Brasil está inextricavelmente ligada à redução da pobreza e à implan- tação de uma efetiva rede pública de assistência social. PALAVRAS-CHAVE: democratização; cidadania; Partido dos Trabalhadores; clientelismo; patronagem. SUMMARY This article discusses the notion that the persistence of “tradi- tional” political practices weakens Brazil’s democracy.Drawing on the cases of three Brazilian municipalities administered by the Workers’ Party (PT),the author examines the space between “traditional” and “modern” and argues that successful democratization does not eradicate practices such as clientelism and patronage, but it tends to incorporate and build on these traditional political elements. Moreover, the article maintains that the democratization of municipal politics is inex- tricably bound up with the eradication of poverty and the construction of a responsive, state-based social safety net. KEYWORDS: democratization; citizenship; Workers’ Party; clientelism; patronage. Goetz Ottmann Processos de democratização da política municipal no Brasil 1 tradução do inglês: Alexandre Morales

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Page 1: Cidadania Mediada

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 155

[1] Gostaria de agradecer a todos osbrasileiros que se dispuseram a dividircomigo seu tempo precioso, em parti-cular Sérgio Baierle,Cilto Rosembach,Ana Cláudia Teixeira e a família SilvaBrito.Também sou grato a Rowan Ire-land e Francesco Formosa, que fize-ram valiosos comentários e sugestõesacerca de várias etapas da pesquisa, aqual contou com apoio financeiro doAustralian Research Council.

[2] Roniger,Luis.Hierarchy and trustin modern Mexico and Brazil. NovaYork/Londres: Praeger, 1990; Main-waring,Scott.Clientelism, patrimonia-lism and economic crisis: Brazil since1979. Washington, DC: Latin Ameri-

Ao enfocar o processo de redemocratização no Brasil,diversos autores têm enfatizado que práticas como o populismo, o per-sonalismo, a patronagem e o clientelismo ainda são vigentes na vidapolítica2, até mesmo no âmbito das experiências de democracia partici-pativa3.Muitos desses autores argumentam que essa persistência de ele-mentos políticos “tradicionais” inibe o surgimento de instituiçõesdemocráticas mais sólidas e de uma cultura política mais democrática.Embora essa interpretação pessimista tenha muito a dizer sobre as defi-ciências da democracia brasileira recente, deixa de examinar o espaçoque se abre entre os pontos de referência do “tradicional” e do “democrá-tico”.Mais importante,deixa de observar o quanto essas práticas políti-cas tradicionais estão se transformando nos contextos de democraciaparticipativa, no qual de fato figuram, para melhor ou para pior.

CIDADANIA MEDIADA

RESUMO

O artigo discute a noção de que a persistência de práticaspolíticas “tradicionais” enfraquece a democracia no Brasil. Com base em estudos de caso realizados em três municípiosadministrados pelo PT entre 2001 e 2004 — São Paulo, Porto Alegre e Itabuna (BA) —, o autor examina o espaço entreo “tradicional” e o “moderno” e argumenta que um processo de democratização bem-sucedido não erradica práticascomo o clientelismo e a patronagem, mas tende a incorporá-las e a edificar-se a partir delas. Sustenta ainda que a demo-cratização da política municipal em países como o Brasil está inextricavelmente ligada à redução da pobreza e à implan-tação de uma efetiva rede pública de assistência social.

PALAVRAS-CHAVE: democratização; cidadania; Partido dos Trabalhadores; clientelismo; patronagem.

SUMMARY

This article discusses the notion that the persistence of “tradi-tional” political practices weakens Brazil’s democracy. Drawing on the cases of three Brazilian municipalities administeredby the Workers’ Party (PT), the author examines the space between “traditional” and “modern” and argues that successfuldemocratization does not eradicate practices such as clientelism and patronage, but it tends to incorporate and build onthese traditional political elements. Moreover, the article maintains that the democratization of municipal politics is inex-tricably bound up with the eradication of poverty and the construction of a responsive, state-based social safety net.

KEYWORDS: democratization; citizenship; Workers’ Party; clientelism;patronage.

Goetz Ottmann

Processos de democratização da política municipal no Brasil1

tradução do inglês: Alexandre Morales

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can Studies Association, 1990; Re-thinking party systems in the third waveof democratization: the case of Brazil.Stanford, CA: Stanford UniversityPress, 1999; Mettenheim, Kurt von.The Brazilian voter: mass politics indemocratic transition 1974-86. Pitts-burgh/Londres: University of Pitts-burgh Press, 1995; Hagopian, Fran-ces. Traditional politics and regimechange in Brazil. Cambridge/NovaYork: Cambridge University Press,1996; Weyland, Kurt. Democracywithout equity: failures of reform in Bra-zil. Pittsburgh: The University ofPittsburgh Press, 1996; “The Brazi-lian State in the new democracy”. In:Kingstone, Peter e Power, Timothy(orgs.).Democratic Brazil: actors, insti-tutions, and processes. Pittsburgh: TheUniversity of Pittsburgh Press,2000; Power, Timothy. The politicalright in postauthoritarian Brazil. Uni-versity Park, PA: The PennsylvaniaState University Press, 1997; Kings-tone, Peter e Power, Timothy. “Politi-cal institutions in democratic Brazil:politics as a permanent constitutio-nal convention”. In: idem (orgs.), op.cit.;Gay,Robert.“Rethinking cliente-lism: demands, discourses and prac-tices in contemporary Brazil”. Euro-pean Review of Latin American andCaribbean Studies [ERLACS], no 65,1998, pp. 7-24; Banck, Geert A. “Per-sonalism in the Brazilian body politic:political rallies and public ceremo-nies in the era of mass democracy”.ERLACS,no 65,1998,pp.25-43;Con-niff, Michael. Populism in Latin Ame-rica. Tuscaloosa/Londres: The Uni-versity of Alabama Press, 1999.

[3] Baierle, Sérgio. “OP ao termi-dor?”. In: Verle, João e Brunet, Lucia-no (orgs.).Construindo um novo mundo:avaliação da experiência do orçamentoparticipativo em Porto Alegre.Porto Ale-gre: Guayí, 2002; Teixeira, Ana Cláu-dia C. “A atuação das organizaçõesnão-governamentais:entre o Estado eo conjunto da sociedade”. In: Dag-nino, Evelina (org.). Sociedade civil eespaços públicos no Brasil. São Paulo:Paz e Terra,2002;Tatagiba,Lúcia.“Osconselhos gestores e a democratiza-ção das políticas públicas no Brasil”.In: Dagnino (org.), op. cit.; Ribeiro,Ana Clara T.e Grazia,Grazia de.Expe-riências de orçamento participativo noBrasil: 1997-2000. Petrópolis: Vozes,2003; Ottmann, Goetz. “Habermas ea esfera pública no Brasil”.Novos Estu-dos,n-o 68,2004.

O debate sobre os elementos “tradicionais” da política brasileiradescreve uma trajetória teórica que remonta ao menos aos escritos deOliveira Viana sobre o coronelismo no Brasil rural dos anos 1920 e 30.Nas análises mais contemporâneas, “tradicional” geralmente se refereà ausência de instituições modernas que regulem o poder dos políticose dos funcionários públicos, ao passo que “moderno” significa predo-minância de procedimentos legal-racionais na administração pública,um autêntico espírito representativo nas instituições políticas e umaefetiva preocupação com o universalismo e o “bem comum” na culturapolítica. A persistência dos elementos tradicionais, argumenta-se,reforça o viés elitista da democracia brasileira,enfraquece a estabilidadedo sistema democrático, fere princípios liberais fundamentais, comouniversalismo e devido processo legal (due process), e sedimenta estru-turas patrimonialistas4.

Este artigo examina alguns dos processos e procedimentos políticosque escapam a uma interpretação da política brasileira em termos de “-moderno” e “tradicional”5, sob a hipótese de que ao suspendermos essainterpretação bipolar podemos discernir uma conexão mais próximaentre esses dois pólos analíticos.O argumento central é o de que os avan-ços democráticos se constroem a partir das práticas políticas “tradicio-nais” e as transformam, em vez de erradicá-las totalmente. Nesse sen-tido,os três estudos de caso nos quais se baseia o artigo sugerem que noplano real da vida política municipal as transições democráticas dizemrespeito a transformações tanto culturais quanto materiais.

No âmbito cultural, esse processo de transição é suscitado — umtanto paradoxalmente — por demandas normativas baseadas numavisão bipolar do “tradicional” e do “democrático” que emergem na esferada sociedade civil.A fim de fundamentar teoricamente essa tensão esque-mática entre o “normativo” (ou democrático) e o “real” (ou tradicional),apóio-me na distinção conceitual de Jeffrey Alexander entre “a ‘sociedadecivil real’, na qual o universalismo é comprometido pela estratificação epela diferenciação funcional, e a ‘sociedade civil normativa’, que mantémas formas utópicas idealizadas”. Para o autor, quanto maior o contrasteentre essas duas representações, maior o raio de ação requerido para queos atores da sociedade civil produzam mudanças sociais, de modo quecabe “enfatizar não apenas a trágica distância entre o que é e o que deve ser,mas também a possibilidade de superá-la heroicamente”6.

No entanto, as transições democráticas em meio às quais essesideais democráticos se traduzem em realidade política não ocorremnum vácuo material, mas são moldadas pelas condições socioeconômi-cas. Assim, o fato de que muitas pessoas pobres buscam obter algumaforma de patronagem política tem menos a ver com um “familismo amo-ral” banfieldiano7 ou com alguma incapacidade de raciocínio dos pobres(como suporiam muitos autores inspirados no liberalismo do séculoXIX) do que com a própria pobreza em que vivem. Noutras palavras, empaíses como o Brasil a democratização das práticas políticas “tradicio-

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[4] Cf.Mainwaring,Rethinking partysystems..., op. cit.

[5] Ao sustentar a idéia de “múlti-plas modernidades”, Renato Ortizargumenta que os elementos cultu-rais “tradicionais” constituem aexperiência viva da modernidade bra-sileira (“From incomplete modernityto world modernity”. Daedalus, 129(1), 2000).

[6] Alexander, Jeffrey. “Mass com-munication, ritual and civil society”.In: Liebes, Tamar e Currun, James(orgs.).Media, ritual and identity.Lon-dres: Routledge, 1998: 28.

[7] Cf. Reis, Elisa. “Banfield’s amo-ral familism revisited: implications ofhigh inequality structures for civilsociety”. In: Alexander, Jeffrey C.(org.). Real civil societies: dilemmas ofinstitutionalization. Londres: Sage,1998.

[8] Esse argumento foi bastantedifundido nos anos 1980 (ver Tou-raine, Alain. “Mutations of LatinAmerica”. Thesis Eleven, no 38, 1994).Baseio-me aqui no suposto de que noBrasil a pobreza resulta mais de umadesigual distribuição de recursos doque de uma falta de crescimento eco-nômico,ao contrário do que propõemalguns autores (ver por exemplo Reis,op. cit.). Mais recentemente, em par-ticular na literatura que enfoca a tran-sição democrática no Brasil, a ques-tão da pobreza tem sido eclipsadapela discussão dos aspectos institu-cionais da democracia, e a meu verdeveria ser retomada.

[9] Segundo Weyland (Democracywithout equity, op. cit.), “o persona-lismo forma redes baseadas em inter-câmbios particularistas e laços afeti-vos. Nas sociedades de larga escalaessas redes tendem a assumir umaforma piramidal, de modo que a hie-rarquia permeia o personalismo.Uma vez que é do interesse daquelesposicionados no alto da pirâmidepersonalista manter seus seguidoresdivididos, as ligações horizontais sãodesencorajadas, se não suprimidas.Somente os atores que estão no topoda hierarquia têm poder suficientepara se contrapor a essa estratégia de‘dividir para governar’ e estabelecerrelações horizontais”.

[10] Cf.Mainwaring,Rethinking partysystems..., op. cit.

nais” está inextricavelmente vinculada à eliminação da pobreza emmassa e da desigualdade crônica8,ainda que pobreza e desigualdade per-maneçam como elementos da realidade em qualquer futuro que sedivise. Dessa forma, não é de surpreender que os estudos de caso aquiapresentados indiquem que a democratização das políticas municipaisque envolvem a redução da pobreza e das relações de dependência tendea requerer uma rede de assistência social organizada pelo Estado.

Em suma,o artigo enfoca iniciativas de democratização da vida polí-tica municipal implementadas por administrações do PT nas cidades deSão Paulo, Porto Alegre e Itabuna (BA) no período 2001-04, buscandomostrar como os diversos atores envolvidos nesse processo percebem apolítica local e negociam demandas de cidadania. Na verdade, a media-ção da cidadania conformou a base comparativa para os estudos de casodesses três municípios bastante diversos entre si. Ademais, a seleçãodesses municípios considerou o fato de que correspondiam a diferentesestágios do processo de democratização promovido pelo PT.O trabalhode campo foi conduzido entre outubro de 2003 e fevereiro de 2004. Aolongo desse período, permaneci o mesmo intervalo de tempo em cadacidade, onde travei contato com indivíduos e organizações que cum-priam papel-chave nas sociedades civis locais e segui suas redes de atua-ção nos bairros pobres.Em cada município conduzi mais de trinta entre-vistas e presenciei inúmeros encontros e eventos. Limitei a abrangênciageográfica do trabalho de campo a fim de viabilizá-lo: em Itabuna con-centrei-me em subúrbios das porções sul e oeste da cidade;em São Paulovisitei localidades compreendidas pelas subprefeituras de Freguesia doÓ/Brasilândia e Pirituba/Jaraguá; e em Porto Alegre freqüentei bairroslocalizados ao sul e extremo-sul.

CLIENTELISMO E CIDADANIA MEDIADA

Uma grande dificuldade para o avanço de um debate construtivoacerca da presença de elementos políticos “tradicionais” na democraciabrasileira reside na ambigüidade conceitual da terminologia empre-gada. Tal é o caso do uso do termo “clientelismo”, que na literaturarecente se tornou polivalente para exprimir categorias como “popu-lismo”, “patrimonialismo”, “personalismo” e “patronagem”. A bem daclareza conceitual,cabe oferecer aqui uma breve definição da terminolo-gia empregada.

O termo personalismo diz respeito aos laços pessoais que estruturamrelações sociais particularistas de caráter hierárquico9. Já patrimonialismo,em seu uso corrente, se refere a situações em que os políticos lidam comos recursos públicos como se fossem deles: em vez de distribuí-los deacordo com critérios universalistas e impessoais, privilegiam familiares,amigos e sua clientela política10. Em outras palavras, empreendem umaforma privada de patronagem política. Por fim, clientelismo se refere a umarelação de troca de favores em que os indivíduos envolvidos se beneficiam

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[11] Cf. Roniger, op. cit; Gellner,Ernest. “Patrons and clients”. In:Gellner, Ernest e Waterbury, John(orgs.). Patrons and clients in Mediter-ranean societies. Londres: Duckworth,1977;Schmidt,Steffen (org.).Friends,followers, and factions: a reader in politi-cal clientelism. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1977.

[12] Cf. Roniger, Luis. “Civil society,patronage, and democracy”. In: Ale-xander, Jeffrey. C. (org.), op. cit.

[13] Banck, op. cit.

[14] Entre muitos outros exemplosque poderiam ser citados, mencionoos sambas tradicionais Pelo telefone(Donga, 1917), Não quero saber maisdela (Sinhô, 1928), Preconceito (-Marino Pinto e Wilson Batista, 1941)e Antonico (Ismael Silva, 1950). Noentanto, Roberto Da Matta apontouem vários textos a dimensão da sub-versão de classe no samba, ao passoque Darién Davis afirma que por voltados anos 1930 passaram a surgir sam-bas com maior teor de crítica social,particularmente quanto às relaçõesraciais (“Racial parity and nationalhumor: exploring Brazilian sambafrom Noel Rosa to Carmem Miranda,1930-39”. In: Beezley, William e Cur-cio-Nagy, Linda (orgs.). Latin Ameri-can popular culture. Wilmington:Scholarly Resources,2000).É prová-vel porém que o samba praticado nosbares e nas esquinas sempre tenhasido um meio de expressão para aspercepções de crítica social das clas-ses populares.

[15] Cf. Cardoso, Fernando Henri-que. “Democracy in Latin America”.Politics and Society, 15(1), 1986-87.

mutuamente mas de modo desigual11. Assim, enquanto “patrimonia-lismo” diz respeito à apropriação privada de recursos públicos, “cliente-lismo” denota uma relação de dependência entre patronos e seus clientes12,a qual geralmente envolve uma série de mediadores ou agentes.

Geert Banck afirma que esses conceitos não são nem tradicional-mente intrínsecos nem inerentes aos países em desenvolvimento13.Segundo ele, o termo “clientelismo”, por exemplo, não deve ser tomadocomo elemento de uma tradição brasileira acadêmica ou mesmo colo-quial, uma vez que foi difundido no país por acadêmicos estrangeiros(norte-americanos),e numa época tão tardia quanto os anos 1960 e 70.Além disso, Banck refuta a transposição de termos usados no passadopara descrever o passado com a finalidade de refletir sobre o presente.Defato, a questão do autor procede. Termos como “clientelismo” e “patro-nagem” expressam um senso de fatalismo das relações de dependênciaque é freqüentemente encontrado nas manifestações da cultura popularbrasileira14. Ainda que esses termos sejam usados para pensar o pen-sado, não descrevem adequadamente circunstâncias históricas nemconstituem um “autêntico” vocabulário cultural. Eles remetem a umatradição imaginária e descrevem uma realidade evocada não apenas porintelectuais, mas também por músicos populares e outros artistas quenão raro misturam fatos históricos com enredos ficcionais e acrescen-tam consideráveis doses de sensibilidades modernas.

Ocorre que os fenômenos empíricos são muito mais complexos doque faz supor o conteúdo normativo da terminologia usada para des-crevê-los. O termo “clientelista”, por exemplo, é empregado pelas elitespara expressar sua indignação moral com o eleitor popular,considerado“mal-informado”, “retrógrado” e por conseguinte incapaz de fazer asescolhas “certas” (aparentemente racionais).Ademais,é usado por polí-ticos para manifestar sua frustração com eleitores indiferentes a ideaisdemocráticos,plataformas partidárias e conteúdos políticos,que votamconforme preocupações mais imediatas15.

Neste artigo,situo a noção de clientelismo num contexto político decidadania mediada. Com isso quero dizer que num contexto político quenão se pauta por regras efetivamente universalistas o acesso à cidadaniaé constantemente negociado. De fato, na maior parte da América Latinaos direitos de cidadania não estão disponíveis para a população pobre,etêm de ser resgatados mediante ação coletiva.Os processos que fazem amediação entre as afirmações e as contra-afirmações da cidadania sãoessenciais nos três municípios aqui estudados, na medida em que pro-vêem o elo da população pobre com as redes de assistência social públicae privada (patronagem privada). Como veremos nos estudos de caso,esses processos de mediação efetivamente expressam um compromissonegociado no conflito entre democracia civil participativa e democraciarepresentativa formal. Em Itabuna, por exemplo, processos que envol-vem mediadores como “supervisores de bairro” e dirigentes de associa-ções de bairro estão mais relacionados à democracia representativa,

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[16] Cf. Kahn, Joel e Formosa, Fran-cesco. “The problem of ‘crony capi-talism’:modernity and the encounterwith the perverse”. Thesis Eleven, no69, 2002.

[17] O orçamento participativo con-siste num processo pelo qual a popu-lação de um município discute e deli-bera sobre as prioridades de alocaçãode recursos da prefeitura. Tal comoimplementado em Porto Alegre, oprocesso funciona grosso modo daseguinte forma. Numa primeira fasehá rodadas de assembléias regionais elocais de moradores,que determinama composição dos delegados que irãoparticipar da fase seguinte, em cujasassembléias são hierarquizadas asdemandas de prioridades de investi-mentos regionais. Gera-se uma pro-posta orçamentária para o município,que é discutida com técnicos dassecretarias municipais, e em seguidasão eleitos os conselheiros das re-giões para o Conselho do OrçamentoParticipativo, que tem por funçãodebater e aprovar a proposta orça-mentária,rever o orçamento final ela-borado pela prefeitura e acompanhara respectiva execução. A câmara devereadores tem a prerrogativa deemendar itens do orçamento.

[18] Cf.Roniger,Hierarchy and trust...,op. cit.; Hagopian, op. cit.

enquanto aqueles que envolvem líderes comunitários tendem a ser maisrelacionados com a democracia civil. Os vários conselhos populares e omecanismo do orçamento participativo potencialmente ocupam omeio-campo entre os dois pólos. No entanto, ficará evidente nos estu-dos de caso que essas ligações são muito mais complexas e fluidas.

A patronagem política (uso de verbas pelos políticos para concessãode benefícios às suas bases eleitorais) certamente constitui um aspectocentral da maioria dos sistemas políticos modernos16, mas em lugaresonde os direitos de cidadania não são universais essa prática se revelaainda mais essencial,na medida em que conforma uma importante redede assistência social.Assim é que não faz muito sentido conceber o clien-telismo latino-americano em termos de um “familismo amoral” banfiel-diano: num contexto de pobreza em massa e de direitos de cidadanianegociados,a mobilização e a inclusão sociopolíticas dos pobres tende aenvolver alguma forma de política de bem-estar. Dessa forma, umaquestão crucial que se coloca aos programas de reformas sociais dasadministrações democráticas é a mediação dos conflitos entre asdemandas populares por participação civil e direitos de cidadania e porpatronagem política. De fato, esse foi o principal ponto de conflitodefrontado pelas administrações do PT nos três municípios estudados,até mesmo no âmbito do orçamento participativo de Porto Alegre, cele-brado precisamente por sistematizar e tornar mais transparente esseprocesso de mediação17.

É importante ter em mente que a mediação política é uma atividadecompetitiva, já que os eleitores são muito exigentes e perspicazes aofazer suas escolhas entre mediadores ou representantes que prometemos melhores retornos possíveis. E não é de surpreender que aqueles emsituação de extrema carência de serviços públicos freqüentementevotem em políticos que cooptam as comunidades pobres para suas redesde patronagem mediante doação de creches ou subsídio privado de equi-pamentos médicos, educacionais, culturais etc.

No Brasil, a patronagem constitui a base de sustentação de muitascarreiras políticas. Os legislativos municipais normalmente aprovamdotações orçamentárias que subsidiam as atividades assistenciais pri-vadas de seus membros,consolidando assim suas bases de apoio eleito-ral. Os políticos eleitos para os executivos municipais, por sua vez, ten-dem a visar estrategicamente o “alvo” da implantação dos serviçospúblicos e a convertê-los em “favores pessoais”, buscando ampliar seueleitorado. Uma vez que dependem do Poder Legislativo para viabilizaressa estratégia, procuram firmar alianças com os políticos dos legislati-vos municipal, estadual e federal a fim de assegurar a transferência derecursos às suas municipalidades e maximizar sua “governabilidade”.Os inúmeros postos públicos preenchidos por nomeação — os chama-dos “cargos de confiança” — são moeda corrente nesse processo de bar-ganha política por meio do qual as alianças são forjadas (freqüente-mente envolvendo trocas de partido)18.

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[19] Embora ultrapasse o escopodeste artigo uma comparação deta-lhada entre os processos de orça-mento participativo (OP) implanta-dos em Porto Alegre e em São Paulo,cabe ressaltar que assumiram caracte-rísticas consideravelmente diferen-tes. Sobretudo, em Porto Alegre o OPse enraizou muito mais nos bairros,na medida em que foi subdividido emdezesseis regiões administrativascompreendendo uma populaçãototal de cerca de 1,3 milhão de habi-tantes, enquanto em São Paulo, comcerca de 10 milhões de habitantes, foisubdividida em 31 regiões (algumascom mais de uma assembléia). Alémdisso, Porto Alegre contou com maissecretarias e escolas municipais nadivulgação do OP e na preparação dapopulação para o processo. Por fim –e talvez mais importante –, o mon-tante de recursos a ser distribuídopelo OP foi claramente estabelecidoem Porto Alegre, enquanto em SãoPaulo foi objeto de negociação entreos conselheiros do OP e as secretariasmunicipais, as quais tinham pesodecisivo na determinação do volumedos recursos a serem alocados.

Transformar esse modelo político particularista num sistema maisuniversalista evidentemente não é tarefa fácil, e cada uma das adminis-trações em foco nos estudos de caso encarou esse desafio mediante umaabordagem diferente.A prefeitura petista de Itabuna buscou implemen-tar políticas sociais eficazes, mas também fortaleceu as redes de patro-nagem privada. A gestão do PT em São Paulo adotou uma estratégiaainda mais contraditória: implementou uma versão do orçamento par-ticipativo de Porto Alegre e também cultivou amplas redes de patrona-gem privada, a fim de obter suporte legislativo para seus projetos dereforma. Em Porto Alegre a administração petista deu continuidade àssuas políticas sociais participativas, mas também se comprometeu emalguma medida com as políticas do espetáculo normalmente associadasao clientelismo populista (a construção de um sambódromo na cidadeprovavelmente entra nessa categoria).O fato de que nos três municípioso PT perdeu suas apostas na reeleição em 2004 ressalta a magnitude dodesafio encarado pelas administrações democráticas ao tentar respon-der às diversas demandas políticas que circulam na sociedade brasileira.

OS ESTUDOS DE CASO

Os três municípios enfocados nos estudos de caso não poderiamser mais diferentes. De fato, o único aspecto que parecem ter emcomum é que entre 2001 e 2004 foram administrados pelo PT — umpartido internacionalmente reconhecido por suas tentativas de demo-cratização da política municipal —, mas os estudos de caso evidencia-rão um outro elemento comum a todos eles:um setor da sociedade civilextremamente ativo.Porto Alegre,a maior metrópole da região Sul,temuma população mais homogênea, composta majoritariamente porbrancos com nítida linhagem européia. A cidade de São Paulo, quedetém o maior complexo industrial do Sudeste e do país, reflete a mis-tura de todo o caldo cultural do Brasil.E Itabuna,município nordestinodo estado da Bahia que até os anos 1980 viveu basicamente da exporta-ção de cacau e borracha, tem forte presença de população negra. Noperíodo em foco, Porto Alegre já se notabilizara por sua experiência deorçamento participativo desde gestões petistas anteriores, ao passoque em São Paulo a administração enfrentou grandes dificuldades paraimplementar esse mecanismo19 e em Itabuna havia relativamentemuito poucos processos participativos em curso.

Essa distribuição geopolítica em que o grau de democracia participa-tiva diminui no sentido Sul–Nordeste poderia ser interpretada como umrecorte que reforça preconceitos culturais — comuns no Brasil — acercade um Sul-Sudeste dinâmico e progressista e um Norte-Nordeste estag-nado e tradicional.Mas os estudos de caso não devem ser de modo algumconsiderados dessa forma: eu poderia ter selecionado municípios comcaracterísticas políticas análogas sem deixar o Sul, assim como poderiater enfocado municípios com avançadas experiências democratizantes

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[20] Com efeito, uma experiência dedemocratização das mais interessan-tes vinha ganhando corpo na cidade dePintadas, localizada no sertão seco eárido da Bahia.

[21] Ressalte-se porém que o PT sem-pre foi um partido bastante heterogê-neo e que as suas diretrizes políticasgerais constantemente foram inter-pretadas de maneira dinâmica e mul-tifacetada pelas diversas instânciasmunicipais (cf., por exemplo, Keck,Margaret. The Workers’ Party anddemocratization in Brazil. New Haven:Yale University Press, 1992).

[22] Cf.Branford,Sue e Kucinski,Ber-nardo.Lula and the Workers’ Party in Bra-zil. Nova York: The New Press, 2003;Wallerstein, Immanuel. World systemsanalysis: an introduction.Durham:DukeUniversity Press,2004.

[23] Cf. Baiocchi, Gianpaolo. “Radi-cals in power”.In:idem (org.).Radicalsin power: the Workers’ Party (PT) andexperiments in urban democracy in Bra-zil. Londres/Nova York: Zed Books,2003.

[24] No final dos anos 1990, o entãopresidente do partido José Dirceuafirmava que “o jeito petista de gover-nar é uma coisa do passado” (Dirceu,José. “Governos locais e regionais e aluta política nacional”. In: Maga-lhães, Inês, Barreto, Luiz e Trevas,Vicente (orgs.). Governo e cidadania:balanço e reflexões sobre o modo petistade governar.São Paulo:Fundação Per-seu Abramo, 1999).

concentrando-me exclusivamente na Bahia20. Na verdade, as diferençasque vêm à tona nos estudos de caso resultam antes de fatores socioeconô-micos e do grau de organização da sociedade civil em cada município,bemcomo de diferenças político-ideológicas no interior do próprio PT.

O PT NA ENCRUZILHADA

Ao longo da década de 1990 o Partido dos Trabalhadores cursou umatrajetória ideológica em direção ao centro do espectro político. Issolevou a uma crescente divisão interna entre os grupos de esquerda iden-tificados com os movimentos sociais e as facções mais pragmáticas, aqual afetou o núcleo do projeto político do partido e repercutiu noâmbito municipal21. Ademais, a composição ideológica do PT se trans-formou drasticamente em razão da expansão de sua base eleitoral e dasua exposição ao “imperativo” da ortodoxia no contexto das finançasdomésticas e internacionais22.

Com isso, e com a burocratização do aparato partidário e a profissio-nalização de seus quadros, os petistas historicamente comprometidoscom a mudança social radical se tornaram uma minoria com pouco poderde expressão no interior do partido23. Hoje em dia, o programa políticodessa minoria — em geral identificado como “o jeito petista de governar”— freqüentemente é visto como elemento de um PT obsoleto24.Não obs-tante, muitos desses petistas permaneceram comprometidos com ospropósitos e formatos dos elogiados programas de governo do PT emPorto Alegre, cujo caráter democrático se consubstanciou em reformasdas políticas educacionais e sociais, numa base de impostos mais pro-gressista e sobretudo no mecanismo do orçamento participativo.

Entretanto,a viabilidade política do “jeito petista de governar” se viucada vez mais limitada — entre outros fatores, pelo declínio dos movi-mentos sociais nas principais áreas urbanas do país —, de modo que oPT foi obrigado a reinventar-se. Essa tarefa foi levada a cabo pela alamajoritária do partido, a Articulação, que conta com o apoio do presi-dente Lula. Hoje o partido apresenta uma imagem que transpira con-fiança e amadurecimento, bem como capacidade de vencer eleições egovernar. O desafio encarado por esse PT reinventado é triplo: conven-cer os setores de esquerda de que ainda é um partido que busca promo-ver mudanças sociais;demonstrar aos movimentos sociais e à sociedadecivil que não abandonou seu comprometimento com as demandas dossetores organizados da sociedade;e mostrar aos eleitores que é capaz deconciliar sua imagem “limpa” e transparente com os compromissosimplicados por suas inúmeras alianças político-partidárias.

ITABUNA

O município de Itabuna vem sofrendo uma depressão econômicaque já perdura por duas décadas. A queda da produção e dos preços dos

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[25] Além do PT, a aliança incluiu osseguintes partidos: PSDB, PDT, PTS,PV, PCdoB, PMDB, PPS, PSB, PTB ePMN.

[26] O caso do município baiano deVitória da Conquista contradiz essaopinião.Ali o PT adotava uma estraté-gia de mobilização de base e ao eleger-se para a prefeitura na gestão 1997-2000 implementou mecanismosparticipativos com sucesso. Ademais,o partido foi reeleito nas eleiçõesseguintes.

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principais itens de exportação da região, cacau e borracha, resultou emsubemprego e pobreza em larga escala. Na medida em que muitos elei-tores pobres tendem a se envolver com alguma forma de patronagempolítica para enfrentar tais circunstâncias, a perspectiva pragmáticaimplicada nesse envolvimento conflita com um imaginário social emi-nentemente democrático.De todo modo,a importância da patronagempolítica é imediatamente visível em Itabuna, sobretudo nos bairrospobres,onde há vários centros assistenciais,creches e escolas que levamnomes das famílias da elite política local.

Esse tipo de patronagem é particularmente exercido pelo grupoassociado à política patrimonialista de Antônio Carlos Magalhães, quehá várias décadas vem dominando o cenário político da Bahia. Noentanto, o personalismo também foi um elemento presente na aliançade centro-esquerda encabeçada pelo PT que venceu as eleições munici-pais de 2000. Essa aliança, composta por onze partidos25 e tendo emseu núcleo um grupo de funcionários públicos com formação universi-tária e independência financeira,reuniu condições para desafiar o poderhegemônico das elites locais, ainda que tenha vencido as eleições poruma diminuta margem de votos.

A despeito do êxito político desse grupo, persistiu em Itabuna umapolítica de patronagem de caráter privado.Isso se deveu em parte à gene-ralizada situação de pobreza e desemprego, mas também ao fato de queos movimentos sociais e as associações civis — e com eles as demandaspor direitos de cidadania — permaneceram incipientes e fracos.Em Ita-buna o setor organizado da sociedade se resume à presença de algumasONGs e movimentos sociais de âmbito nacional, tais como o Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a Comissão Pasto-ral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Federaçãodos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) — esses trêsúltimos, ademais, com pouca capacidade financeira. Nesse contexto, oPT local adotou uma estratégia de amplas alianças e de mobilização doeleitorado “de cima para baixo”, em vez de mobilizar os moradores dosbairros pobres mediante um “trabalho de base”.

O fato é que a gestão do PT em Itabuna não se pautou pelo “jeitopetista de governar” tal como consagrado em Porto Alegre: emboratenha implementado uma série de políticas sociais notoriamente basea-das nas experiências do PT em outros municípios, não adotou os meca-nismos participativos propagados pelo modelo porto-alegrense.Na ver-dade, o PT de Itabuna fizera uma tentativa de implantar processosparticipativos num mandato anterior (1993-96),a qual foi abandonadalogo no primeiro ano da gestão. Perguntado a respeito, um servidorpúblico de carreira filiado ao PSDB afirmou que a experiência gerarademandas politicamente inviáveis e que um mecanismo como o orça-mento participativo não poderia mesmo funcionar no Nordeste26.

Na gestão 2001-04 o PT seguiu uma estratégia diferente, criando oposto de “supervisor de bairro”. Oficialmente, 35 supervisores deveriam

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[27] Os nomes dos representantescomunitários foram aqui alterados.

[28] Segundo o seu questionário,aplicado em 2002, dos 235 entrevis-tados apenas quatorze sabiam daexistência do supervisor e somentequatro o conheciam pelo nome.

[29] Na verdade, os moradores ten-diam a manifestar demandas assis-tenciais ao dirigente da associação debairro, o qual porém não tinha acessodireto à prefeitura e precisava repassaras demandas ao supervisor,que entãocontatava a prefeitura. O que se cons-tata é que a maioria das comunidadesé nitidamente dividida conforme aslinhas partidárias e que os represen-tantes comunitários somente têmacesso à prefeitura se são pessoal-mente ligados aos seus ocupantes.

[30] No entanto, essa “neutralidade”muitas vezes era ostentada apenas empúblico, pois em suas vidas privadasos líderes comunitários podiam estarenvolvidos em redes de obrigaçõesrecíprocas que eles se sentiam compe-lidos a honrar.

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intermediar as relações entre a administração municipal e as comunidadesem 95 bairros.Extra-oficialmente,de acordo com alguns moradores,maisde trezentos “supervisores” estariam atuando na verdade como cabos elei-torais para diversos políticos.Os moradores se queixavam de que os super-visores eram nomeados pelo prefeito sob indicação desses políticos, quecom isso buscavam “pôr um pé” no eleitorado da comunidade.

De fato, os supervisores eram vistos com algum grau de descon-fiança na maioria dos bairros que visitei, principalmente naqueles quemantinham fortes ligações com a oposição, onde os moradores afirma-vam que o presidente eleito da associação de bairro fazia a maior parte dotrabalho em prol da comunidade, enquanto o supervisor, politicamentenomeado e ademais remunerado, era muitos vezes “invisível”. CarlosFerreira27, presidente de uma associação de bairro, chegou a aplicar umquestionário por conta própria para demonstrar que a figura do supervi-sor do bairro era ineficaz28. Ainda que na visão da prefeitura os supervi-sores de bairro fizessem parte de sua estratégia de descentralizaçãoadministrativa, todos os nossos entrevistados, à exceção dos própriossupervisores, viam o seu papel sobretudo como eleitoral.

Na minha visão,é como se a criação do posto de supervisor de bairrofosse uma tentativa do PT e dos partidos aliados de remoldar as redes depatronagem da oposição e conectar os bairros mais pobres aos seus pró-prios mediadores políticos29. Ocorre que a maioria dos moradoresestava perfeitamente consciente disso, e muitos deles ficaram desapon-tados com o fato de que o PT estivesse lançando mão de métodos “tradi-cionais” e não-democráticos ao isolar os dirigentes das associações debairro. Dessa forma, ainda que os moradores pobres mantivessem for-tes laços com os políticos patrimonialistas, esboçavam um imagináriosocial democrático ao criticar as tentativas de “descentralização” do PT.

Na vida cotidiana, porém, a maioria dos moradores tinha de contarcom a rede de patronagem que abrangia a cidade,e as estratégias para teracesso a essa rede eram extremamente variadas. Membros de umamesma família freqüentemente diversificavam suas afinidades políticase apoiavam partidos diferentes, o que lhes permitia manter seus laçoscom a prefeitura quando a administração mudasse de mãos. Da mesmaforma, certos líderes comunitários percebiam as vantagens da neutrali-dade partidária: menos clientelistas, politicamente mais sofisticados efinanceiramente mais estáveis que os dirigentes de associações e ossupervisores de bairro, tendiam a apoiar tanto conservadores quantoprogressistas30. Esse era o caso do presidente de associação de bairroRodrigo Leite, que tinha absoluta convicção da importância de nãotomar partido de nenhum dos lados. Caso solicitado a dar apoio, ele odaria a ambos os lados a fim de não ser associado a nenhum dos dois:“Não se deve apoiar um só candidato,porque se ele não for eleito o bairrovai acabar sem benefícios.É preciso deixar que os moradores façam suaspróprias cabeças”. Dessa maneira, Rodrigo buscava negociar o melhoracordo possível para a sua comunidade.

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[31] João Batista, por exemplo, via-seem débito com um patrono políticolhe ajudara em tempos de necessidadeem sua vida pessoal, mas reconheciaque as políticas educacionais imple-mentadas pelo PT de fato beneficia-vam os estudantes pobres e que com atempo a continuidade dessas políticasbeneficiaria toda a comunidade.

[32] Cabe mencionar em especial aPastoral da Juventude, que com suaatuação extremamente ativa entreadolescentes e jovens contribui para aformação de muitos líderes comuni-tários em Itabuna.

Alguns líderes comunitários evangélicos, como Rodrigo, usavamsua filiação religiosa para demonstrar comprometimento com suascomunidades e descaso pelos laços clientelistas. Ainda que idealistas emuito dedicados às suas comunidades, tendiam a ter pouco interesseem estruturas de democracia participativa. Rodrigo, por exemplo, par-ticipou do conselho de saúde local por um tempo e o abandonou por-que, segundo ele, as intermináveis discussões ali travadas geravampoucos resultados concretos. É certo que líderes comunitários dessetipo também buscam patronagem política, mas o fazem de forma maisdiscreta. Para João Batista, líder de uma grande congregação batista, apatronagem era o único meio de financiar os empreendimentos filan-trópicos de sua igreja.

A política desses líderes comunitários de fato não se encaixa facil-mente nos moldes democráticos modernos.Em contraste com os presi-dentes de associações de bairro, eles não são democraticamente eleitos,e sua liderança é estritamente vinculada ao papel proeminente quedesempenham em suas congregações. Além disso, suas alianças políti-cas freqüentemente são formadas mediante obrigações recíprocas assu-midas ao longo de suas vidas. Não obstante, alguns desses agentes seviram na contingência de reavaliar esses laços tradicionais em face doimpacto social positivo dos programas implementados pela adminis-tração do PT31.

Os movimentos de bairro predominantemente vinculados a seto-res progressistas da Igreja Católica32 encararam o problema de comolidar com redes de patronagem política sem perder sua autonomia.Embora contassem com algum financiamento de instituições religio-sas e fundos de apoio para seus projetos, as lideranças desses movi-mentos dependiam da renda de escassos empregos locais em meio aum contexto de altas taxas de desemprego na cidade. Assim, muitoslíderes capacitados partiram para os centros urbanos do Sudeste embusca de oportunidades de trabalho, o que enfraqueceu a políticacomunitária de base. Essa vulnerabilidade ficou evidenciada em váriosprojetos que foram iniciados pelos movimentos de base,com auxílio daprefeitura e de outras instituições, e acabaram sendo apresentadoscomo programas capitaneados por secretarias municipais e políticos aelas associados. Tal foi o caso do Programa Pré-Universitário paraNegros e Excluídos (Prune),uma iniciativa de diversos líderes comuni-tários que de início não contou com nenhum apoio da prefeitura edepois foi apropriada por uma administração ávida de publicidade,quea propagandeou como uma bem-sucedida realização governamental.Esse tipo de apropriação foi motivo de grande ressentimento para mui-tos ativistas comunitários, que afinal criaram tais projetos e os viabili-zaram dedicando-lhes um considerável tempo de suas vidas sem rece-ber qualquer remuneração.De fato,eles se lamentavam de que a falta derecursos os tivesse obrigado a renunciar à direção de seus projetos eentregá-la à prefeitura.

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[33] Cf. Tatagiba, op. cit.

Os movimentos comunitários e sociais de Itabuna lograram ampli-ficar sua voz política ao se organizar em torno do Fórum de Luta porTerra, Trabalho e Cidadania, em cooperação com entidades civis deâmbito nacional.Essa coalizão local acabou por se tornar um dos segmen-tos sociais mais veementemente críticos da gestão petista,ao percebê-lacomo a continuidade de um estilo de governo prepotente, patrimonia-lista e nepotista. Segundo um representante do MST local, a coalizãoexercia uma significativa influência no município e era capaz de mobili-zar entre 15% e 20% da população.No entanto,o movimento civil de Ita-buna está longe de ser politicamente unido.Interesses políticos particu-lares, traços personalistas incompatíveis e diretrizes estratégicasdiversas têm minado sua capacidade de desempenhar um papel maiscentral na política local.Isso talvez tenha a ver com o fato de que a prefei-tura conseguiu minimizar a influência dos movimentos nos processosdeliberativos dos quais participaram (embora o PT houvesse feito alian-ças eleitorais estratégicas com o setor). De todo modo, por seu compro-misso com os direitos de cidadania,a justiça social e a democracia parti-cipativa, o movimento civil é a força democrática mais importante emItabuna. Ironicamente, porém, sua crítica moral serviu aos propósitosda oposição conservadora.

A administração petista reativou dois conselhos gestores locais quehaviam sido marginalizados pelas gestões conservadoras anteriores: oConselho Tutelar da Criança e do Adolescente e o Conselho de Saúde.No entanto, esses organismos tendiam a se vincular demasiadamente adeterminadas secretarias municipais ou fundações e aos políticos que asdirigiam,e nem sempre funcionavam independentemente de partidos ede patronagem — limitações similares às apresentadas pelos conselhosgestores de outras localidades do país33. De fato, os conselheiros emgeral pareciam muito dispostos a abrir mão de sua autonomia ante aingerência de políticos locais.Por exemplo,educadores reclamavam quemembros do Conselho Tutelar eram freqüentemente acompanhados eassistidos em suas missões por uma candidata do PSDB a deputadaestadual que era presidente de uma organização assistencial estreita-mente associada à prefeitura (Fundação Marimbeta) e esposa do secre-tário de Governo.

Assim, as atividades dos conselhos gestores, intimamente entre-meadas com os interesses de políticos locais e insuficientemente anco-radas na sociedade civil, acabavam por assumir a marca da política depatronagem personalista praticada em Itabuna. Apenas os conselhosque contavam com apoio do movimento civil — tais como o Conselhode Segurança Alimentar — tinham algum grau de autonomia e partici-pavam dos processos de elaboração de políticas públicas,de modo que amaioria deles, especialmente aqueles associados à oposição conserva-dora,esteve afastada desses processos — a exemplo do Conselho da Ter-ceira Idade, o qual, conforme o seu coordenador, se recusava a servircomo instrumento de relações públicas do PT.

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[34] Segundo o Censo Demográficode 2000,mais de um terço da popula-ção da cidade vivia com menos de R$390 por mês.

[35] Na verdade, o debate sobre a pa-tronagem no Brasil tem sido moral-mente carregado há séculos (cf., porexemplo,Graham,Richard.Patronageand politics in nineteenth-century Bra-zil.Stanford,CA:Stanford UniversityPress, 1990; Bieber, Judy. Power,patronage, and political violence: statebuilding on a Brazilian frontier, 1822-89. Lincoln: University of NebraskaPress, 1999).

Pode-se concluir que a patronagem política cumpre um papel centralem Itabuna. Com efeito, sem alguma forma de patronagem muitos dosmoradores pobres teriam dificuldades de subsistência34. Não é de sur-preender que a “lisura” na distribuição dos recursos públicos seja objetode intensas discussões na cidade35. Esse debate parece ter constituído afundação do imaginário social democrático na cidade. De fato, comopudemos constatar em nossas entrevistas,os movimentos sociais e asso-ciações civis repudiam as práticas clientelistas e defendem uma forma dedemocracia mais participativa,enquanto os líderes comunitários tendema rejeitar moralmente as noções de clientelismo e patronagem. Noentanto, tanto uns como os outros dependem de redes de patronagemprivadas: ao passo que os primeiros recorrem a redes de patronagemsemiprivadas mantidas por igrejas e ONGs,os últimos se valem de redesde patronagem privadas vinculadas ao sistema político formal.

O PT de Itabuna tentou responder às expectativas clientelistas deambos os grupos de atores, buscando assim expandir seu eleitorado. Massobretudo procurou construir uma maioria política mediante uma amplagama de alianças,e deixou a tarefa da construção de uma democracia civil acargo de movimentos sociais com escassos recursos financeiros, os quais,justamente em razão de pressões conservadoras exercidas por seus aliadospolíticos, acabou por excluir do processo de tomada de decisões maisamplo.Em resposta,o movimento civil pressionou a administração petistapela adoção de políticas democráticas mais radicais, incluindo o direito aparticipar das deliberações sobre as políticas públicas.Em Itabuna,porém,o movimento civil é pequeno e dividido e vem encontrando crescentes difi-culdades para mobilizar a população pobre.Em conseqüência,essa popula-ção vem se constituindo cada vez mais num segmento eleitoral em busca depatronagem por meio dos canais representativos formais.

A administração petista buscou responder a essas crescentesdemandas clientelistas mediante iniciativas como a criação da função desupervisor de bairro. Dado porém o contexto de cidadania mediada nomunicípio,não é de surpreender que as políticas sociais implementadaspelo PT, ainda que competentes e reconhecidas positivamente por boaparte do eleitorado, não tenham sido capazes de reduzir a importânciadas redes de patronagem estabelecidas. De fato, o alto grau de desigual-dade social e a debilidade do movimento civil constituíram um contextopolítico relativamente resistente à mudança.

Isso posto, deve-se ponderar que entre os moradores pobres de Ita-buna há um forte esteio para o estabelecimento de políticas democráti-cas mais genuínas. Somando-se a isso a generalizada rejeição à políticade reformas convencionais adotada pela gestão do PT, tudo indica quefuturas administrações reformistas estarão sob considerável pressãopara desenvolver políticas públicas não apenas mais participativas edemocráticas,mas que gerem uma rede de assistência social alternativa,estimulando assim a população pobre a deixar para trás as redes depatronagem locais.

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[36] Couto, Cláudio G. “The secondtime around: Marta Suplicy’s PTadministration in São Paulo”. In:Baiocchi (org.), op. cit.

Nesse ponto,cabe ressaltar que em São Paulo e em Porto Alegre per-sistem relações de patronagem muito similares às observadas em Ita-buna. Assim, nas duas seções seguintes não enfatizarei esse aspecto.Nossa principal preocupação será examinar como os mecanismos parti-cipativos se constroem a partir da cultura política “tradicional” e a trans-formam, gerando formas políticas que incorporam simultaneamente o“tradicional” e o “moderno”.

SÃO PAULO

Após oito anos de administrações de direita marcadas por acusaçõesde corrupção — as gestões Maluf e Pitta —, a volta do PT à prefeiturapaulistana com as eleições de 2000 despertou esperanças e expectativasem muitos eleitores. No entanto, a administração Marta Suplicy repre-sentou praticamente uma antítese da gestão petista de Luiza Erundina(1989-92)36. Estreitamente ligada aos movimentos sociais, Erundinaimplementou um processo de consulta popular (tanto meticulosoquanto ineficiente) e introduziu uma forma precoce de orçamento par-ticipativo; por outro lado, recusou-se a negociar cargos administrativoscom outras forças políticas, de modo que seu governo careceu de apoiolegislativo e enfrentou uma séria crise de governabilidade. MartaSuplicy, ao contrário, imediatamente entabulou acordos com diversosvereadores — sem excluir aqueles associados a políticos “tradicionais”— a fim de estabelecer uma maioria na Câmara,com o que seu mandatotranscorreu exemplarmente em termos de governabilidade.

Em particular, os membros dos numerosos movimentos sociais deSão Paulo esperavam que a eleição de Marta representasse uma mudançaem direção a um processo de tomada de decisões mais democrático eparticipativo. Em resposta, a prefeita descentralizou a administraçãomediante a criação de 31 subprefeituras (cujos titulares foram apontadospor membros da aliança de governo) e implementou uma versão simpli-ficada do orçamento participativo. Já no segundo ano de mandato,porém,os líderes do movimento civil começaram a protestar que a admi-nistração não estava suficientemente comprometida com os processosparticipativos.De fato,veio a generalizar-se nos círculos do movimentocivil a percepção de que a gestão de Marta era politicamente ambivalenteao combinar uma forma de governo “de cima para baixo”, personalista,autocrática e intransigente com mecanismos participativos de base.Dessa forma,os membros dos vários setores do movimento civil,em suagrande maioria ligados ao próprio PT, tornaram-se os mais ferrenhosoponentes políticos da prefeita.

O modelo de governança adotado por Marta certamente pagou umalto preço.Sua base aliada foi construída mediante barganhas com polí-ticos conservadores e fisiológicos, que em troca de apoio políticopodiam designar nomes para cargos públicos. Aos olhos de muitospetistas tradicionais, o governo Marta cultivou as típicas políticas de

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[37] Genro, Tarso. “Um debate estra-tégico”. In: Magalhães, Barreto e Tre-vas (orgs.), op. cit.

[38] Segundo ele,“o PT de 2000 é umpartido completamente diferentedaquele de 1988.Em 1998 o PT era umpartido que promovia a luta social, e oPT de 2000 é um partido marcada-mente institucional, um partido quetrabalha para ganhar eleições.Hoje,ossetores dentro do PT que buscamorganizar a sociedade, organizar osexcluídos, são facções contra-hege-mônicas”.O entrevistado atribui umarazão pragmática ao distanciamentodo partido em relação ao movimentocivil: as eleições para prefeito em SãoPaulo geralmente são disputadas emdois turnos, com polarização dosvotos entre dois candidatos,e o movi-mento civil consegue obter para umcandidato petista cerca de 15% dosvotos, o que não é suficiente paraelegê-lo. Além disso, uma vez que aforça política dos movimentos sociaisvem declinando desde o final dos anos1980,o PT resolveu atrair outros seto-res da sociedade.

[39] Cf. Dagnino (org.), op. cit.; Ott-mann, op. cit.

[40] Muitos moradores receavam,comrazão, que esse projeto extremamenteoneroso fosse abandonado se o PT per-desse as eleições seguintes, como defato ocorreu anteriormente com umprojeto similar no Rio de Janeiro,abandonado por uma administraçãosubseqüente e que se tornou o paraísodos párias sociais.

patronagem às quais o PT deveria por princípio se opor em termos ideo-lógicos e éticos. Pior que isso, indispôs-se contra líderes do movimentocivil que por décadas haviam combatido os mesmos políticos de direitaque compuseram as alianças do PT. Entre setores do movimento civilcirculava o comentário irônico de que vereadores ultraconservadorescomo Viviane Ferraz, filiada ao Partido Liberal e tradicionalmente asso-ciada a Paulo Maluf, eram os “petistas” mais fiéis ao governo porquesempre votavam a seu favor,em contraste com membros esquerdistas dabancada do próprio PT, que chegavam a votar contra o governo.

Para muitos líderes do movimento civil,o pragmatismo da adminis-tração Marta era incompatível com os seus sonhos de uma democraciaradical,em que o governo,segundo o petista Tarso Genro,“se transformanuma espécie de grande comunidade solidária engajada numa políticaque protege os setores excluídos da população”37.Na visão da ala esquer-dista do PT, esse pragmatismo continha muitos elementos políticos“tradicionais”,o que desfigurava a marca que diferenciava o PT dos seusadversários. O chefe de gabinete do vereador petista Carlos Neder resu-miu o desapontamento da esquerda do partido ao afirmar que o PT setornara “um partido personalista com um discurso de esquerda”38.

No entanto, essa perspectiva negligencia o fato de que a “comuni-dade solidária” postulada por Genro tem de ser construída num con-texto de democracia formal.Ademais, ignora que num contexto de cida-dania mediada tal comunidade contém elementos clientelistas, bemcomo estruturas de patronagem democratizadas39.Por exemplo,muitoslíderes de movimentos de bairro reagiram de forma bastante positiva àspolíticas de bem-estar da administração Marta por lhes possibilitaremrenovar os acordos de patronagem que financiavam, em parte, os servi-ços sociais existentes em suas comunidades,tais como creches e centrosde treinamento profissional. Outros se valiam ainda de redes de patro-nagem ligadas ao governo estadual do PSDB, que propiciavam subsí-dios adicionais aos serviços sociais mantidos em seus bairros. Essaslideranças locais também viam com bons olhos os Centros Educacio-nais Unificados (CEUs), gigantescos complexos com serviços educati-vos,culturais,de recreação e esporte que a prefeitura estava construindonos bairros periféricos — muito criticados pelos líderes do movimentocivil, que os viam como um projeto “faraônico” e eleitoreiro, voltado acontemplar expectativas de diversas clientelas políticas (populares,mastambém da elite), à maneira das estratégias de governo “tradicionais”empregadas por políticos conservadores como Paulo Maluf40.

Para a maioria dos líderes comunitários,a democracia tem tanto a vercom a possibilidade de forjar as conexões políticas necessárias paramanter ou expandir os serviços sociais existentes em suas comunidadesquanto com a liberdade de expressão. Essa perspectiva pragmática,associada a uma habitual volubilidade política, caracterizava os repre-sentantes comunitários com quem travei contato no bairro da Brasilân-dia.No entanto, tal perspectiva assumia um aspecto interessante:ainda

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[41] Freqüentemente se cancelavamreuniões em cima da hora e a subpre-feitura muitas vezes deixava de infor-mar os delegados do OP tanto doscancelamentos quanto das novasdatas agendadas.

[42] Numa reunião em que se discutiacomo aumentar o grau de participaçãodos delegados do OP regional (apenasnove do total de 55 estavam presen-tes), esse coordenador fez a seguinteafirmação: “Eu não me preocupo comquantidade: eu quero qualidade. Elesprecisam ter algum conhecimentosobre o processo político. Em Brasi-lândia, muitos simplesmente nãoestão interessados. Nós deveríamoscriar um fórum educacional. Eles nãosabem ler direito,não estão acostuma-dos com política local”.

[43] Apesar de todos esses proble-mas, o OP de Freguesia do Ó/Brasi-lândia não estava absolutamenteentre os piores: um relatório de ava-liação da Coordenadoria do Orça-mento Participativo de São Paulorelativo ao primeiro trimestre de2004 destacou o comprometimentoda subprefeitura com o processo (-Andrade, Maria de Fátima, Ricci,Rudá e Camargo, Thiago. AvaliaçãoOP-SP 2004. Belo Horizonte: Insti-tuto Cultiva, 2004, mimeo).

que muitos deles cultivassem estreitas relações clientelistas com funcio-nários do governo municipal,manifestavam as demandas comunitáriasem termos de direitos de cidadania. Assim, se contavam com os benefí-cios a serem proporcionados por meio dos acordos clientelísticos,argu-mentavam que isso era um direito da comunidade. Nesse sentido, oslaços clientelistas constituíam um meio de estabelecer elos de comuni-cação com o poder público a fim de que as demandas de cidadania fos-sem expressas de modo mais efetivo. Dessa forma, práticas políticas“tradicionais” e “modernas” se interligavam e geravam um ambientepolítico ambivalente, em que os representantes comunitários não sim-plesmente encaminhavam expectativas clientelistas, mas as legitima-vam como demandas por direitos de cidadania.

Essa combinação ambivalente de elementos “tradicionais” e“modernos” também era visível no orçamento participativo (OP) emcurso na cidade.Recém-implementado,o OP paulistano estava longe deser um processo refinado e politicamente consolidado como o de PortoAlegre,onde já fazia parte do dia-a-dia da vida política.Paradoxalmente,foi ao mesmo tempo possibilitado e obstruído pelos esquemas “tradi-cionais” de partilha do poder negociados pela administração petista.Osefeitos ambivalentes da combinação “moderno/tradicional” se deramna forma de uma tensão mal-resolvida entre estruturas de democraciaparticipativa e de democracia representativa,como pudemos verificar naregião da subprefeitura Freguesia do Ó/Brasilândia.

Nessa região o OP era conduzido por funcionários públicos ligadosa uma figura política “tradicional”, a já citada Viviane Ferraz, que extra-oficialmente “comandava” aquela subprefeitura. Muitos dos líderes domovimento civil de Brasilândia rejeitavam esse esquema de partilha depoder,que tendia a direcionar o fluxo de informações acerca dos proces-sos do OP regional para o segmento de classe média-baixa da Freguesiado Ó. De fato, os cidadãos interessados em participar do OP regionaltinham de lidar com uma agenda de reuniões errática41, bem como comum coordenador (ligado ao PSDB) que ostentava uma conduta elitista ebuscava impor seu poder administrativo42.Assim,não é de surpreenderque ao fim do ciclo de atividades de 2003 diversos delegados do OPregional ainda pensassem que a autoridade das tomadas de decisãoestava nas mãos dos representantes da administração,e não do fórum doqual estavam participando. Em meio a um generalizado desaponta-mento quanto aos retornos esperados,essa percepção levou muitos líde-res comunitários a se retirar do OP, julgando-o de um modo extrema-mente cético, senão abertamente hostil43.

No âmbito do OP paulistano, o processo participativo não logrouerradicar o clientelismo. Antes, tendeu a mudar o foco das expectativasclientelísticas, que deixou de recair sobre os agentes das redes de patro-nagem mantidas pelos vereadores para se direcionar aos delegados econselheiros do OP. Isso pôde ser verificado no caso da líder comunitá-ria Rosângela Graciani, que por muito tempo havia lutado tenazmente

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[44] Em alguns círculos da sociedadecivil, o slogan governamental “Vocêdecide, o governo faz” foi ironica-mente alterado para “Você decide e ogoverno faz o que quiser”...

pela instalação de um posto de saúde em seu bairro e viu essa oportuni-dade materializar-se ao ser eleita delegada do OP regional de Piri-tuba/Jaraguá. Em vez disso, porém, a região recebeu apenas uma uni-dade do CEU,com o que ela se sentiu incompetente e desprestigiada aosolhos da sua comunidade,que a elegera a fim de que conquistasse aqueleserviço público essencial para o bairro. O fato é que essa demanda dacomunidade foi aprovada em várias rodadas de negociação do OP masdepois ignorada pela administração municipal,que em face de inúmerasreivindicações similares decidiu alterar seu programa de saúde pública.Sentindo-se ludibriada, a população local direcionou seu inconfor-mismo para aquela mediadora que conectava a comunidade com o OP.

Evidencia-se assim que o OP contém potencialidade tanto paratransformar estruturas políticas “tradicionais” como para desacreditarlideranças locais que levaram décadas para se sedimentar.De fato,várioslíderes comunitários e de associações civis que tomaram a defesa do OPacabaram por se enredar num conflito entre instâncias da democraciarepresentativa formal e da democracia civil, perdendo credibilidadeentre suas bases. Assim, para muitos desses líderes o OP perdeu seuapelo ao se revelar um processo cujas deliberações não eram implemen-tadas,pois ao fim e ao cabo prevaleciam decisões tomadas “de cima parabaixo”44. Técnicos da prefeitura alegavam que os CEUs eram a únicamaneira efetiva de ir ao encontro das demandas do OP,enquanto para oslíderes do movimento civil essa solução fundamentalmente deturpava oprocesso democrático. Decepcionados com os resultados do OP, váriosrepresentantes comunitários afirmavam que era mais fácil obter servi-ços públicos por meio de canais mais “tradicionais”.

Em suma, a experiência do OP em São Paulo evidencia que a imple-mentação de mecanismos de democracia participativa não erradica estru-turas clientelistas. Antes, combina elementos “modernos” e “tradicio-nais” e engendra assim uma cultura política híbrida, cuja complexidadeainda está por ser explorada.Muitas das formas de patronagem contidasnessa cultura híbrida certamente são compatíveis com os processosdemocráticos. Com efeito, é difícil imaginar como as associações comu-nitárias que contribuíram com o processo de democratização em SãoPaulo poderiam subsistir sem alguma forma de patronagem política.

O caso do OP paulistano também explicita uma tensão entre as“lógicas” da democracia participativa e da democracia representativa.De fato, muitos dos participantes do OP viam-no como a promessa deuma democracia civil com direitos de cidadania universais,mas ao fim eao cabo decepcionaram-se ao constatar que os resultados do processo denegociação de demandas foram determinados por fatores políticos deordem partidária e eleitoral. No caso dos líderes comunitários que bus-caram encaminhar suas demandas por meio do OP, alguns considera-vam prudente manter ao mesmo tempo as estratégias mais “tradicio-nais”, que afinal sempre haviam dado certo. Assim, esquemas depatronagem informais continuaram a operar em paralelo ao processo

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[45] Cf., por exemplo, Marquetti,Adalmir. “Participação e redistribui-ção: o orçamento participativo emPorto Alegre”. In: Avritzer, Leonardoe Navarro, Zander (orgs.). A inovaçãodemocrática no Brasil. São Paulo: Cor-tez, 2002.

[46] Cf., entre outros, Abers, Rebecca.“Do clientelismo à cooperação: gover-nos locais, políticas participativas eorganização da sociedade civil emPorto Alegre”.Cadernos da Cidade,vol.5, no 7, 2000; Avritzer, Leonardo. “Oorçamento participativo: as experiên-cias de Porto Alegre e Belo Horizonte”.In: Dagnino (org.), op. cit.; Sánchez,Félix. Orçamento participativo: teoria eprática. São Paulo: Cortez, 2002; San-tos,Boaventura de S.“Orçamento par-ticipativo em Porto Alegre: para umademocracia redistributiva”. In: idem(org.). Democratizar a democracia: oscaminhos da democracia participativa.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2002; Baiocchi, Gianpaolo. “Emer-gent public spheres: talking politics inparticipatory governance”. AmericanSociological Review, vol. 68, no 1, 2003;Goldfrank, Benjamin. “Making parti-cipation work in Porto Alegre”. In:Baiocchi, Gianpaolo (org.). Radicals inpower,op.cit.

[47] Ainda que o OP tenha de fatoatraído a participação de comunida-des ligadas à oposição,seus represen-tantes tinham dificuldade de influen-ciar a agenda política, na medida emque eram minoria no conselho do OP.

participativo. Em face desse quadro político movediço, evidenciou-se ainabilidade da administração do PT em fundir estruturas das democra-cias civil e representativa de uma maneira coerente.

Embora a administração Marta tenha procurado implementar umasérie de políticas sociais inovadoras, foi logo identificada pelos líderesdo movimento civil como um governo politicamente convencional, quenão se mostrava efetivamente comprometido com a construção de umademocracia civil participativa.Em conseqüência,os movimentos sociais(sobretudo aqueles ligados a setores progressistas da Igreja Católica)passaram a criticar veementemente a política petista de alianças prag-máticas com setores conservadores.Enfim,a tentativa do PT de respon-der a uma ampla gama de demandas clientelistas “tradicionais” a fim deampliar seu eleitorado acabou por prejudicar significativamente as cre-denciais democráticas de Marta Suplicy, assim como não foi suficientepara lhe garantir a reeleição.

PORTO ALEGRE

Nesse município,o debate público em torno de uma distribuição derecursos públicos “equânime” e “funcional” foi amplamente decididoem favor do orçamento participativo.O OP se tornou ali o principal veí-culo de mediação dos direitos de cidadania, canalizando as demandasclientelistas para o âmbito um processo democrático transparente. Aolongo de seus mais de quinze anos de existência,sob administrações doPT, o OP tendeu a favorecer os bairros periféricos mais pobres, que pas-saram a contar com muitas das infra-estruturas de que desfrutam aslocalidades centrais e mais desenvolvidas45.

Evidentemente, essa redistribuição dos recursos não esteve desvin-culada dos interesses eleitorais do PT. Na visão de vereadores conserva-dores de Porto Alegre, por exemplo, o OP constituiu um engenhosoplano elaborado pelo PT para expandir seu eleitorado nos setores popu-lares.Com efeito,por meio do OP o partido logrou dissociar os eleitoresdas redes clientelistas “tradicionais”,controladas por vereadores e polí-ticos conservadores, e conectá-los diretamente ao processo participa-tivo organizado pela prefeitura. Nesse sentido, como apontam diversosautores, o OP promove a formação de alianças livres de lealdades clien-telistas a políticos municipais46.

Em várias ocasiões a distinção entre o PT e o OP de Porto Alegre pare-ceu ofuscar-se,sobretudo quando a prefeitura utilizou a rede do OP comoum instrumento alternativo de comunicação e disseminação para mobili-zar a população.Dessa forma,os organizadores do OP tiveram de lidar comquestões de legitimidade e desfazer o rótulo de que se tratava meramentede “uma coisa do PT”,como apregoava a oposição.Essa não era uma tarefafácil,uma vez que um expressivo número de conselheiros,delegados e par-ticipantes do OP,bem como de seus familiares,tinha fortes vínculos com arede do PT47.Assim,inequívocos elementos de patronagem sustentaram a

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[48] Habermas, Jürgen. “Further re-flections on the public sphere”. In:Calhoun,Craig (org.).Habermas andthe public sphere. Cambridge, MA:MIT Press, 1992.

[49] Cf.Santos,op.cit.

[50] Cf., por exemplo, ibidem. Ironi-camente,foi esse aspecto que indispôsmuitos dos participantes do OP queentrevistei em São Paulo.

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emergência e o funcionamento do OP. Não obstante, é difícil imaginarcomo uma política popular poderia ter emergido de outra forma num con-texto político e socioeconômico tão altamente polarizado. Com efeito,Habermas tem razão quando afirma que para estabelecer uma esferapública autônoma os seus participantes precisam dispor de algum grau decapacitação educacional e de estabilidade financeira48. Não surpreendeportanto que houvesse no serviço público de Porto Alegre cerca de 660“cargos de confiança”, muitos dos quais destinados a “meritórios” mastambém necessitados membros da base de apoio do PT.

É certo que o OP municipal,em vez de suplantar e erradicar as práti-cas políticas “tradicionais”, acabou por incorporá-las em seus proces-sos. No entanto, na cultura político-administrativa de Porto Alegre oclientelismo e a patronagem não são dominantes como nos casos de SãoPaulo e Itabuna. Ali o OP foi inteiramente implementado pela adminis-tração conforme as diretrizes e decisões de investimento público estabe-lecidas pelo processo participativo. Isso fez do OP um efetivo veículomediador não apenas dos direitos de cidadania, mas também dasdemandas conflitantes oriundas dos campos da democracia participa-tiva e da democracia representativa.

Ainda que os interesses do PT e os dos ativistas do OP freqüente-mente coincidissem no fórum participativo, a relação entre os repre-sentantes da prefeitura e os conselheiros do OP por vezes envolveuconflitos49. No entanto, essas disputas tenderam a ser resolvidas emtermos burocráticos e legais. De fato, os processos internos do OPseguiram de perto as pautas e as regras previstas,de modo que a eficiên-cia de um conselheiro do OP dependia de seu conhecimento dos regu-lamentos que legitimavam os processos. Embora conflitos personalís-ticos tenham sido bastante comuns no estágio inicial do OP,o processoos assimilou e gerou um discurso paralegal com base em conhecimen-tos especializados e competência técnica50.Nesse sentido,o OP porto-alegrense dotou a cultura política da municipalidade de nítidas conota-ções weberianas.

Não obstante, nas franjas dessa “grande comunidade solidária” evi-denciavam-se ainda formas híbridas de políticas “tradicionais” e“modernas”. Tal o caso do loteamento Chapéu do Sol, um bairro pobrelocalizado ao sul da cidade.Ali,os membros de uma associação de bairrofragilmente integrada ao OP viam na assistência dos vereadores umcanal mais importante para as suas tentativas de encaminhar e resolveros problemas do bairro junto à prefeitura. Ainda que em Porto Alegre ascomunidades pobres efetivamente tenham acesso ao poder públicomunicipal (em contraste com a grande maioria dos municípios brasilei-ros), os líderes e moradores daquele bairro freqüentemente contavamcom os vereadores para mediar suas relações com a prefeitura, o que,conforme afirmavam, fortalecia suas demandas. Assim, quando verea-dores conservadores alegaram que a “mão invisível” que provera as tãodesejadas infra-estruturas no bairro era na verdade a deles próprios, e

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não aquela de um abstrato OP, os moradores, mal-informados e extre-mamente pobres, estavam prontos a acreditar neles.

Assim como em São Paulo e em Itabuna,as redes de patronagem pri-vada (mesmo quando fictícias) de fato continuam a cumprir um papelimportante nas vidas dos moradores pobres de Porto Alegre,na medidaem que oferecem uma importante medida de segurança contra as cala-midades da vida.Mas mesmo nesse aspecto pode-se discernir o impactodo OP, havendo amplas evidências de que ele transformou as relaçõessociais para além de sua esfera de influência imediata. Ainda que osmoradores muitas vezes não soubessem exatamente como certa infra-estrutura urbana foi implantada em seus bairros — dizendo que “foi oprefeito que fez” —,percebiam que o benefício obtido junto à prefeituranão era de natureza particularista. Afinal, na sua afirmação de que “foi oprefeito que fez” não se imprime a mesma veneração por patronos polí-ticos que verificamos em Itabuna, por exemplo. Trata-se de uma com-preensão genérica de uma realização da municipalidade que não carregao nome de um político local (João Verle, Tarso Genro etc.) e que conse-qüentemente não contém a marca das obrigações recíprocas das relaçõesclientelistas.

De maneira similar, ainda que apenas alguns dos moradores dasduas comunidades que visitei participassem das assembléias regionaisdo OP e poucos mais comparecessem às importantes sessões em que sevotavam as prioridades de investimento público na região,praticamentetodos os moradores apontaram o presidente da associação de bairroquando perguntados de que modo a comunidade foi contemplada cominfra-estruturas: “Pergunte a ele que ele sabe”. Assim como em SãoPaulo, expectativas clientelistas recaíam sobre o delegado ou conse-lheiro do OP. Mas esses moradores, mesmo os não-afiliados à associa-ção local,estavam razoavelmente seguros de que o dirigente desta repre-sentava seus interesses junto ao fórum municipal.Ao dizerem “perguntea ele que ele sabe”, ressoavam certa confiança na transparência de umprocesso que ainda lhes era relativamente distante.

O caso de Porto Alegre sinaliza que processos participativos como oOP podem transformar as práticas políticas “tradicionais” no Brasil.Contudo, também sugere que o clientelismo e a patronagem são aspec-tos persistentes mesmo num contexto político inclusivo e democrático,e não meros elementos de uma etapa no caminho para uma política maisracional e universalista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao examinar transições democráticas em países como o Brasil,mui-tos autores tomam a democracia como o resultado de um processo evo-lutivo pelo qual se eliminam elementos políticos “tradicionais” para seconstruir uma política “moderna”,baseada em critérios racionais,preo-cupação com o bem comum e regras procedimentais.Em contraste com

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essa visão, argumentamos aqui que o processo de democratização nãoerradica práticas políticas como o clientelismo e a patronagem: antes,transforma-as ao incorporá-las.Além disso,sustentamos que num con-texto político de direitos de cidadania extremamente restritos a constru-ção de democracias mais autênticas depende da implementação de umarede de assistência social universalmente acessível.

O caso de Itabuna sugere que na ausência de uma rede assistencialpública o desemprego e a pobreza tendem a reforçar a importância dasredes de patronagem privadas. Ademais, a competição clientelística porescassos recursos governamentais suscitou no município um intensodebate público sobre o modo como são mediadas as demandas popula-res por tais recursos. Independentemente de filiação política, os movi-mentos sociais e os moradores dos bairros pobres rejeitavam a mediação“de cima para baixo” e reivindicavam um processo de mediação maisdemocrático e transparente.Esse amplo apoio a uma forma de democra-cia mais autêntica também se evidenciou duas outras cidades em foco,onde processos participativos já haviam sido implementados. Em SãoPaulo,o debate público nos bairros pobres se concentrou nas decepçõessuscitadas por um OP implementado parcialmente e nas contradiçõesda política de alianças adotada pela administração do PT. Já na periferiade Porto Alegre o OP se encontrava amplamente aceito como um pro-cesso de mediação imparcial e transparente.

Os três estudos de caso enfocaram as diferentes estratégias adota-das pelos líderes das comunidades pobres para encaminhar suasdemandas. O caso de Itabuna mostrou que uma relativa autonomiapolítica e financeira cumpre papel importante na questão da demandapor patronagem política,na medida em que aumenta as possibilidadesde atuação dos movimentos sociais e dos líderes comunitários. Mos-trou ainda que uma estratégia multifacetada pode ser decisiva numcenário político em que as redes de patronagem privada contribuemsignificativamente para a assistência social da população pobre. Defato,muitos líderes comunitários construíram uma gama diversificadade laços de patronagem para poder sobreviver e negociar apoios ante asmudanças políticas. Em São Paulo, onde o setor dos movimentossociais é bem mais forte e onde as campanhas de mobilização de déca-das anteriores deixaram um legado mais duradouro,os líderes comuni-tários adotavam estratégias pautadas por perspectivas tanto “tradicio-nais” quanto “modernas” a fim de fortalecer as demandas sociaislocais. Embora tenham manifestado ceticismo quanto aos resultadosdo OP, essas lideranças se mostraram dispostas à participação no pro-cesso participativo e ao menos de início o apoiaram. O caso de PortoAlegre mostrou que as expectativas clientelistas podem ser transfor-madas num processo de mediação confiável e transparente, que pro-move a participação civil.Não obstante,formas de clientelismo e patro-nagem privada ainda eram evidentes nas franjas da chamada “grandecomunidade solidária”.

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Por fim,os estudos de caso demonstraram que num contexto socio-político de cidadania mediada a inclusão democrática da populaçãopobre tende a envolver alguma forma de subsídio estatal.Assim,tanto ademocratização da política municipal como os subsídios do Estado emáreas como saúde e educação são imprescindíveis para a transição a umademocracia autêntica,em que os direitos de cidadania sejam garantidosde modo universal. O caso de Porto Alegre mostra que um processo deorçamento participativo sustentado e inclusivo, em conjunção comoutras políticas voltadas às necessidades básicas da população, podeabrir caminho para uma tal democracia. No entanto, mesmo apósquinze anos de esforços da administração petista de Porto Alegre paraincluir a população pobre,os elos entre esta e o sistema político ainda semostram frágeis, o que sugere que num contexto de cidadania mediadapersiste a dialética entre inclusão participativa e patronagem política.Dessa forma, quando se considera o espaço social que há entre pólosconceituais do “tradicional” e do “moderno”,a visão evolutiva da transi-ção para a democracia deve dar lugar a uma perspectiva que conceba oavanço democrático como um contínuo processo dialético.

Goetz Ottmann é professor da Universidade La Trobe (Melbourne).

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Recebido para publicação em 30 de novembro de 2005.

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