cidadania 2

98
OVÍDIO JAIRO RODRIGUES MENDES CONCEPÇÃO DE CIDADANIA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Orientador Prof. Doutor JULIANO MARANHÃO FACULDADE DE DIREITO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2010

Upload: joao

Post on 14-Nov-2015

38 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

hyry

TRANSCRIPT

  • OVDIO JAIRO RODRIGUES MENDES

    CONCEPO DE CIDADANIA

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Orientador Prof. Doutor JULIANO MARANHO

    FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO2010

  • OVDIO JAIRO RODRIGUES MENDES

    CONCEPO DE CIDADANIA

    Dissertao apresentado na Faculdadede Direito como requisito paraobteno do ttulo de mestre emFilosofia e Teoria Geral do Direito, soborientao do Professor DoutorJuliano Maranho.

    FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO2010

  • A todos os brasileiros, cidados

    annimos, que, ao pagarem impostos,

    financiam as instituies pblicas de

    ensino como a Universidade de So

    Paulo.

  • Agradecimentos

    Ao Professor Doutor Juliano Maranho, que, por motivos outros, gentilmente aceitou ser

    meu orientador exatos seis meses antes do prazo final para depsito desta dissertao.

  • RESUMO

    A dissertao tem por objetivo a investigao, no mbito da filosofia do direito, do

    significado da concepo de cidadania, seja ela formulada em termos tericos ou prticos.

    A hiptese central que a cidadania uma linguagem, semelhante s linguagens naturais,

    que se modificam ao longo do tempo pelo uso, mas que mantm intacto o ncleo, com as

    modificaes se processando nas camadas que o circundam.

    No ncleo da linguagem cidadania esto as noes de consenso e utilidade.

    Consenso entre pessoas significa que elas so socialmente iguais e esto aptas a exporem

    suas idias e vises sobre a melhor forma do convvio social harmnico e que sero

    ouvidas e ouviro as idias e vises de seus concidados. Da inter-relao dessas idias e

    vises esto dispostas a extrarem uma posio comum que reflita o equilbrio alcanado

    como resultado do encontro de significados diferentes para a vida social. Mas, igualmente

    importante, esto dispostas a observarem os princpios a que chegaram em suas vidas

    cotidianas.

    A noo de utilidade repousa na necessidade de resolver os problemas que se

    apresentam na vida em sociedade. A cidadania no uma noo abstrata desligada dos

    fatos concretos, mas expressa maneiras de, em igualdade de condies e possibilidades,

    todos participarem na proposio de solues e serem capazes de formularem posies que

    mantenham a coerncia e sistematicidade de procedimentos passados, presentes e futuros.

    Uma concepo de cidadania que seja de aplicao e domnio pblicos objetiva evitar que

    solues contingentes sejam adotadas sem considerao dos possveis reflexos nas vidas de

    outras pessoas e das geraes futuras. A funo da teoria assume, ento, o papel de

    ordenao e guia das aes prticas.

    Na defesa da cidadania enquanto linguagem universal de expresso para

    sentimentos e aspiraes coletivos conjugado com a superao de problemas, grandes

    narrativas universais, como as concepes formuladas por Aristteles, Hobbes e as

    derivadas do contrato social de Rousseau, aliadas s narrativas que configuram o perodo

  • ps-independncia do Brasil so analisadas, principalmente a encontrada na promulgao

    da Constituio Federal de 1988. Esta encontra sua principal justificativa na eleio da

    cidadania como fundamento de existncia do Estado pela enumerao de direitos valorados

    como fundamentais para o respeito vida digna e com padres mnimos de bem-estar

    individual e social. Em termos menos abstratos, a Constituio de 1988 define os direitos

    que configuram o senso de liberdade, rompendo com a heteronmia do cidado em funo

    do Estado que predominava nas constituies anteriores.

    Palavras chaves: Cidadania, Direitos, Democracia, Teoria da Cidadania,

    Liberdade.

  • ABSTRACT

    The dissertation takes the investigation as an objective, in the context of the

    philosophy of the right, of the meaning of the conception of citizenship, be it formulated in

    theoretical or practical terms. The central hypothesis is that the citizenship is a language

    similar to the natural languages, which are modified along the time by the use, but the core

    remains intact, with the modifications taking place in the layers that surround it.

    In the core of the citizenship language there are the notions of consensus and

    usefulness. Consensus between persons means that they are socially the equals to each

    other and are suitable exposing his ideas and visions on the best form of the social

    harmonic living together and that they will be heard and will hear the ideas and visions of

    his fellow-citizens. They are able to get from the inter-relation of these ideas and visions a

    common position that reflects the balance reached as result of the meeting of different

    meanings for the social life. But, equally important, they are concerned for observing the

    beginnings that they brought near in his daily lives.

    The notion of usefulness rests in the necessity of resolving the problems that show

    up in the life in society. The citizenship is not an abstract notion apart from the concrete

    facts, but it relates to manners of, in equality of conditions and means, give to every one

    the change of proposing solutions and formulating positions that maintain the coherence

    and systematic approach of past, present and future proceedings. A conception of

    citizenship that is of public application and domain aims to avoid which possible solutions

    are adopted without consideration of the possible reflexes in the lives of other persons and

    of the future generations. The function of the theory assumes, then, the paper of ordering

    and guide of the practical actions.

    In the defense of the citizenship while universal language of expression for feelings

    vehicles and aspirations conjugated with the overcoming of problems, great universal

    narratives, like the conceptions formulated by Aristotle, Hobbes and the derivatives of the

    social contract of Rousseau, allied to the narratives that shape the period post-

  • independence of healthy Brazil are taken into consideration, mainly the considered one in

    the promulgation of the Federal Constitution of 1988. This one finds his principal

    justification in the election of the citizenship like basis of existence of the State for the

    enumeration of rights judged as meaningful for the respect to the worthy life and with least

    standards of individual and social well-being. In less abstract terms, the Constitution of

    1988 defines the rights that shape the sense of freedom, breaking with the dependent

    condition of the citizen in function of the State that was predominating in the previous

    constitutions.

    Key Words: Citizenship, Rights, Democracy, Citizenship Theory,

    Freedom.

  • SUMRIO

    1. Configurao do problema ................................................................ 1

    1.1. Importncia da concepo de cidadania ............................................ 5

    1.2. Delimitao de objetivos ................................................................... 9

    1.3. Mtodo da investigao ..................................................................... 11

    2. Narrativas universais sobre cidadania ............................................... 15

    2.1. Filosofia e cidadania em Aristteles .................................................. 20

    2.2. Filosofia e cidadania em Hobbes ....................................................... 24

    2.3. Dos requisitios ticos da cidadania a partir de Rawls, Dworkin e Dahl 25

    3. Cidadania no Brasil: a cidadania prtica e suas inflexes .................. 35

    3.1. Institucionalizao da dependncia no perodo colonial .................... 39

    3.2. Primeira inflexo na concepo de cidadania: a necessidade de

    constituir o Estada Nao ................................................................... 43

    3.3. Segunda inflexo na concepo de cidadania: a modernizao do

    Estado e da sociedade ......................................................................... 49

    3.4. Terceira inflexo na concepo de cidadania: o cidado como

    fundamento do Estado ......................................................................... 52

    4. A narrativa contempornea sobre cidadania fundada em direitos ....... 63

    5. A manipulao das imagens pessoais pela teatralidade dos projetos

    polticos ............................................................................................... 70

    6. Concluso ............................................................................................ 79

    Referncias bibliogrficas ................................................................... 85

  • 1. CONFIGURAO DO PROBLEMA

    Esta uma investigao, no mbito da filosofia do direito, sobre o que significa

    cidadania, seja ela formulada em termos tericos ou prticos. A hiptese central que a

    cidadania uma linguagem, semelhante s linguagens naturais, que se modificam ao longo

    do tempo pelo uso, mas que mantm intacto o ncleo, com as modificaes se processando

    nas camadas que o circundam. No ncleo da linguagem cidadania esto as idias de

    consenso entre pessoas socialmente iguais, significadas no termo simples concidados, e

    de estabilidade nas relaes entre concidados, significada no termo composto harmonia

    social. O ambiente de formulao da hiptese est a seguir descrito.

    Habitamos um mundo em que cadeias sucessivas de fenmenos so por ns criadas

    e projetadas para se associarem com as mais diversas necessidades da vida cotidiana, de

    modo a continuamente requererem nossa ateno e gerarem novas necessidades. Como

    exemplo, o consumo fundado no critrio principal do impulso pela necessidade aparente

    recebe constantes incentivos. Seu disfarce concretiza-se no argumento de gerao de

    empregos e impulso atividade econmica, com conseqente melhoria do padro de vida

    geral. Adotado de modo amplo e acrtico, posteriormente um cdigo de defesa do

    consumidor torna-se imperioso porque fornecedores no agem eticamente com os

    consumidores. Em outro exemplo, a encosta de um morro clandestinamente invadida e

    povoada e, acobertada por interesses de agentes polticos especficos, tolerada. Mais tarde,

    na ocorrncia de algum acidente grave, como o desmoronamento e soterramento de casas

    em funo de fortes chuvas, o poder pblico instado a resolver o problema, quando no

    acusado, de modo amplificado, de desleixo. Inmeros outros exemplos, retratados

    cotidianamente pelos meios de comunicaes, podem ser citados, e a caracterstica que

    parece ser comum a todos o modo como so abordados. Majoritariamente, os argumentos

    explicativos no apresentam coerncia sobre suas causas lgicas, limitando-se esfera das

    opinies pessoais que, quando relacionadas aos assuntos pblicos, perdem

    significativamente o poder de convencimento pela fcil refutao por outras opinies. Isso

    acontece por que opinies pessoais denotam a concentrao argumentativa na particular

    esfera de atividade e interesse do argumentador, sem a devida valorao dos argumentos

    1

  • alternativos que abrangem diversas faces do mesmo problema. Somente o confronto

    sistematizado de argumentaes permite determinar racionalmente suas importncias

    relativas e delinear um sistema que, minimamente, apresente equilbrio entre vises da

    realidade concorrentes. Essa desconsiderao pelo argumento discordante revela que os

    pontos de partida das idias que justificam as opinies no so comuns ou que a pessoa as

    desconhece. Ora, por no apresentarem uma idia inicial consensual, as opinies, embora

    abordem conjuntamente o mesmo aspecto ftico da realidade, analiticamente dizem

    respeito a imagens diferentes, quando no antagnicas, de representao do mundo.

    Por outro lado, a importncia das opinies reside em que, apesar do aparente

    avano do conhecimento cientfico que modela e correlaciona as seqncias de fatos

    possveis no interior de um quadro referencial consensualmente aceito, ao julgarem os

    fatos primordialmente a partir de concepes particulares as pessoas revelam imagens que

    refletem as maneiras como concebem e julgam os fenmenos presentes no mundo

    concreto. E nessas imagens desvelam elevado antropocentrismo associado ao total

    desconhecimento das conexes passadas que resultam nos acontecimentos presentes. Essa

    inabilidade de organizao do passado com o presente e projeo para o futuro foi

    denominada por Donald Levine de fragmentao da experincia (LEVINE, 1995:7),

    fenmeno que reduz a abrangncia da existncia s sensaes presentes e vivncia

    imediata. O paradigma de nossa poca, presente na expanso dispersiva das tecnologias

    analticas (cognio e expanso das sensaes), em detrimento do elemento analtico-

    explicativo, denota a valorizao da gratificao imediatista e a cultura de hegemonia do

    novo em detrimento do histrico. Tal fenmeno caracteriza o processo j h algum tempo

    identificado como racionalizao instrumental da realidade em ambiente de

    competitividade industrial (LEVINE,1995:7-8). O ambiente competitivo requer a

    utilizao de tecnologias progressivamente mais eficientes e retro-alimentado pelo

    clculo consumista que exige a novidade dotada da crescente eficincia.

    Outro aspecto marcante de nossa cultura baseado nas imagens em constante

    movimento (ou fragmentao da experincia) que travestimos de novo prticas que foram

    usuais no passado ou ento mudamos de opinies aos sabores dos acontecimentos. Dois

    exemplos sero a seguir descritos e que melhor traduzem o significado da fragmentao da

    2

  • experincia. O primeiro mostra que esse fenmeno no se limita unicamente aos fatos

    corriqueiros, mas abrange setores que, intuitivamente, se supunha mais sistematizados e

    reflexivos sobre seus atos. caso do ambiente legislativo, marcadamente as constantes

    emendas Constituio Brasileira, lei fundamental e suprema do ordenamento jurdico

    nacional, que at 11 de novembro de 2009 teve 61 emendas promulgadas. Em termos

    mdios, foi uma emenda a cada quatro meses desde a promulgao em 5 de outubro de

    1988. Embora argumentos possam ser elaborados tentando demonstrar o porqu das

    constantes modificaes constitucionais, como, por exemplo, a alegao de que o texto

    constitucional por demais pormenorizado e que o processo de transformao social

    vivido pelo Brasil desde a redemocratizao tem-se operado com imprevisvel rapidez,

    contra-argumentos podem ser oferecidos afirmando que, talvez, seja mais fcil mudar a

    constituio onde no se quer obedec-la. E aqui estamos na seara das opinies, sem

    concordncia sobre a questo de a constituio ser definitivamente importante e dever ser

    obedecida ou se repetimos a prtica adotada pelo Governo Regencial do Brasil em 1831.

    Pressionado pela Inglaterra, promulgou lei declarando livres os escravos que aportassem

    no Brasil desde ento e punindo severamente a prtica de trfico, lei que existiu apenas

    formalmente, pois o trfico continuou por mais 20 anos, at 1852.

    O segundo exemplo de fragmentao da experincia mostra como, sem habilidade

    para correlacionar passado e presente, e dessa correlao estabelecer conseqncias para o

    futuro, atribumos roupagem nova e desenvolvemos argumentos que apenas repetem

    noes que esto profundamente arraigados em nossa cultura e que, ironicamente, so elas

    exatamente as causas do problema que estamos resolvendo. Exemplifica deciso prolatada

    por um tribunal brasileiro1, conforme segue: o municpio de So Leopoldo interps

    apelao em Reexame Necessrio contra deciso que determinou a admisso de candidato

    negro aprovado em concurso pblico pelo regime de reserva de cotas para afro-

    descendentes. Na fundamentao da deciso que confirmou a admisso do apelado, o

    Relator se apoiou no conceito de discriminao positiva, caracterizado pela adoo de

    aes que protejam o gozo e o exerccio de direitos humanos e liberdades fundamentais por

    parte de determinados grupos tnicos ou de indivduos em igualdade de condies com os

    demais cidados. Refere-se, tambm, a substitutivo ao Projeto de Lei n 650/99, aprovado

    1 Apelao Cvil 70023237878, 3 Vara Cvel da Comarca de So Leopoldo RS, de 10 de julho de 2008.

    3

  • pela Comisso de Constituio e Justia do Senado Federal em 17/04/2002, que pretende

    instituir, por cincoenta anos e em percentual no inferior a 20% to total, cotas para negros e

    pardos em concursos pblicos, nas universidades pblicas e privadas e nos contratos de

    crdito educativo. Esquematicamente, os argumentos podem ser condensados na seguinte

    hiptese: existem grupos sociais que no conseguem autonomamente exercer os direitos

    inerentes cidadania e, para que esses direitos se tornem concretos, indispensvel a

    proteo estatal. Questes como o porqu da ausncia da autonomia ou da

    indispensabilidade da proteo estatal e conseqncias futuras dessa interveno no so

    postas, mas dadas como evidentes. Tem-se um problema imediato e a resposta

    igualmente imediata, sem a necessria conexo sistematizada com aes passadas e com

    desdobramentos futuros. Alis, aqui o futuro parece estar deterministicamente

    estabelecido: as conseqncias devem, obrigatoriamente, adequar-se s imagens que

    supomos as mais adequadas na soluo da questo. Contingncias so priori ignoradas.

    A anlise da histria do Brasil mostra, entretanto, que a mesma hiptese foi adotada

    no perodo de consolidao da independncia. No debate entre conservadores e liberais, os

    primeiros defendiam que, em um pas com uma populao no preparada, em termos de

    instituies civis e mentalidade cvica, para se auto-governar, o Estado deveria assumir a

    tarefa de propulsor da transformao poltica, em contraposio ao proclamado pelos

    liberais, de educar o povo para o exerccio da cidadania (CARVALHO, 1991: 6). Se a

    tradio colonial portuguesa criara cidados dependentes, caberia ao Estado a preparao

    desses cidados para a liberdade, para o autogoverno. A viso conservadora foi

    hegemnica e, cerca de 160 anos depois, o problema ainda se coloca. Mudou a cena

    histrica, alteraram-se os atores, mas a relao hiptese-concluso continua a mesma.

    nesse contexto especfico que a concepo de cidadania abordada nesta

    dissertao. Se as diferentes opinies sobre o que seja cidadania so certas ou erradas no

    constitui o ncleo da investigao. O objetivo reside na abordagem no fragmentada do

    que possa constituir exercer o direito de cidadania. E para tal, urge visitar concepes

    passadas desse conceito e entender as mudanas e motivaes por que passou at adotar as

    roupagens presentes, caracterizadas no gozo de direitos.

    4

  • 1.1. IMPORTNCIA DA CONCEPO DE CIDADANIA

    A concepo de cidadania pode ser abordada sob duas ticas: cidadania terica e

    cidadania prtica. A cidadania prtica aborda a forma como os direitos que compem a

    rbita da cidadania so exercidos e respeitados no cotidiano das pessoas. Direitos so

    importantes por que definem, de forma geral, comportamentos caractersticos dos membros

    de uma sociedade, a denominada sociedade civil. De forma ampla, a Constituio Federal

    de 1988, no art. 5, define os direitos individuais da pessoa. Mas os direitos no podem ser

    concebidos apenas pela tica de propriedades incidentes sobre a figura da pessoa, como

    explicita o pargrafo I do referido artigo (homens e mulheres so iguais em direitos e

    obrigaes). Cada direito possui seu conjugado, que a obrigao de zelar e respeitar o

    direito do outro. Se, como anteriormente destacado, paradigma de nossa poca cada

    pessoa livremente desenvolver uma imagem que represente sua particular concepo de

    vida e, a partir dela, expressar opinies que externalizem essa imagem (paradigma esse

    constitucionalmente expresso como direito subjetivo pelos pargrafos IV liberdade de

    manifestao do pensamento - e X inviolabilidade da imagem do art. 5), o equilbrio

    entre o gozo do direito e a obrigao de respeitar o gozo alheio configuram possibilidades

    de violaes que, em termos sociais, indicam patamares em que diferentes grupos sociais

    de uma mesma sociedade respeitam ou tm sua cidadania concretizada. Por ser o locus

    especfico para resoluo de controvrsias, o poder judicirio surge como meio adequado

    para aferio de como as pessoas percebem o respeito aos seus direitos e aos de outras

    pessoas, como indica o seguinte excerto de deciso judicial ocorrida recentemente2:

    A funo jurisdicional transcende a modesta e subserviente atividade de

    aceder aos caprichos e vontade do legislador, pois, (...), o Juiz no se

    constitui em um simples tcnico que mecanicamente aplica o Direito em

    face dos litgios reais, mas, buscando solucionar os conflitos de interesse

    entre sujeitos de Direito, o magistrado aparece como uma verdadeira

    fora de expresso social que se define pelo exerccio de uma funo

    autnoma e irredutvel em relao s outras esferas de competncia do

    2 Apelao cvil n 70016616732/2006, 19 Cmara Cvil, comarca de Bento Gonalves RS- 2006.

    5

  • Estado. (...)

    Diferentemente da "declarao de 1789", (que proclamava os princpios

    da liberdade, da igualdade, da propriedade e da legalidade), os direitos

    fundamentais do homem (inclusive dos brasileiros) esto impregnados de

    conotaes mais modernas, tais como: igualdade, dignidade, no

    discriminao; direito vida, liberdade, ... . Do art. 22 at o art. 28, a

    declarao Universal consubstancia os direitos sociais do homem, assim:

    direito segurana social (que a humanidade levou sculos para

    conquistar e que alguns dos projetos de reforma da Constituio,

    propostos pelo Governo, querem simplesmente eliminar) e satisfao

    dos direitos econmicos, sociais e culturais indispensveis dignidade

    humana e ao livre desenvolvimento de sua personalidade; direito ao

    trabalho, escolha do trabalho, condio satisfatria de trabalho e

    proteo contra o desemprego, o salrio condigno, liberdade sindical;

    moradia ...

    Neste exemplo, um magistrado arbitra pela defesa do que denomina direitos

    sociais dos homens e outorga aos juzes a funo de verdadeira fora de expresso

    social que se define pelo exerccio de uma funo autnoma e irredutvel em relao s

    outras esferas de competncia do Estado. Entretanto, o significado da tomada de posio

    e a conseqente emisso de juzos valorativos somente podem ser consistentemente

    analisados sob a tica de uma teoria da cidadania que estabelea parmetros comuns no

    sopesamento dos argumentos prs e contrrios deciso. Por que, ao julgar fundado nos

    direitos sociais dos homens, o juiz, de forma indissocivel, adotou uma noo de

    cidadania sinnima de justia, ou, em termos aristotlicos, de medida entre pretenses

    opostas. Como bem demonstra o excerto em seu incio, a funo jurisdicional transcende

    a modesta e subserviente atividade de aceder aos caprichos e vontade do legislador,

    direitos concorrentes (e no necessariamente opostos), que talvez outras pessoas

    apontassem como mais adequados de serem declarados merecedores do voto do juiz,

    podem ter sido preteridos, como o direito de propriedade, que no aparece na parte da

    apelao transcrita, mas constituiu o motivo da disputa judicial. Tais controvrsias somente

    podem ser valoradas no mbito de uma teoria da cidadania, que estabelea priori

    6

  • condies a serem satisfeitas pelas atitudes e aes dos membros da sociedade.

    Em sentido diverso do acima exposto, mas ainda no campo da cidadania prtica,

    pessoas podem emitir juzos que radicalizem as diferenas entre pessoas e atrelar direitos

    diferentes para classes de pessoas diferentes. Neste contexto, teve incio em meados dos

    anos 80 do sculo passado o desenvolvimento do direito penal do inimigo (JAKOBS &

    MELI, 2008), que divide os nacionais em duas classes de sujeitos: aqueles que aceitam a

    existncia do Estado e que, portanto constituem seus cidados, com direitos e deveres

    constitucionalmente definidos e garantidos, e aqueles que propugnam a destruio estatal

    junto com o modelo social que representa, no podendo, em conseqncia, receber a

    denominao de cidados. A estes cabe a classificao de inimigos, com a implementao

    estatal de regras penais radicais que permitam a defesa efetiva do modelo social vigente.

    Embora razes tericas sejam apresentados na justificativa do direito penal do inimigo,

    estas justificam aes dirigidas contra pessoas especficas que se supem no estarem aptas

    a participar da sociedade civil. Mesmo tais excees (e a caracterstica principal dessa

    formulao de ser um direito de exceo e excluso) requerem uma teoria geral e

    abrangente da cidadania que enfoque o enquadramento argumentativo em parmetros

    racionalmente estabelecidos em detrimento do elemento puramente emocional.

    Por terem formulado teorias gerais e abrangentes sobre a sociedade civil nos

    regimes democrticos contemporneos, trs autores e trs respectivas obras norteiam os

    rumos desta dissertao. So eles: John Rawls e o livro Uma teoria da justia (RAWLS,

    2002), situado no campo da filosofia moral (ou tica moral) que orienta as formas como as

    instituies devem se comportar em sociedades bem-formadas; Ronald Dworkin e

    Levando os direitos a srio (DWORKIN, 2002), que defende o argumento de que

    decises judiciais devem ter origem em um princpio comum que impea decises to

    somente baseadas na utilidade de resultados ou em preferncias polticas; e Robert Dahl

    com Um prefcio democracia econmica (DAHL, 1990), que define os parmetros a

    serem preenchidos pelas modernas democracias do mundo ocidental, nas quais o Brasil se

    inclui, de modo a permitir a participao com justia na formao e desenvolvimento

    desses pases. Esses autores no esto diretamente preocupados com uma teoria geral e

    abrangente da cidadania, como o fez Aristteles na Antigidade sob a tica da poltica

    7

  • (ARISTTELES, 1997), mesmo por que a cidadania uma condio assumida em suas

    obras, mas desenvolvem argumentos que especificam sob que condies, nos regimes

    democrticos contemporneos fundados na economia de mercado, possvel a constituio

    do cidado livre em sua vontade e autnomo em suas aes. Essas teorias, de certa forma,

    se interligam por permitirem a apropriao de elementos comuns suficientes para a

    sistematizao de uma teoria racional ampla e abrangente da concepo de cidadania.

    8

  • 1.2. DELIMITAO DOS OBJETIVOS

    A motivao central desta dissertao so as caractersticas que assume a cidadania

    hoje no Brasil. Mas para essas caractersticas no se apresentem como aspectos

    fragmentados da experincia, urge a sistematizao, pelo enfoque lgico-analtico da

    experincia histrico, das diversas formas como a cidadania foi concebida em pocas

    distintas em respostas s necessidades prprias desses tempos. Por que, se a cidadania hoje

    pode ser expressa em termos de direitos e obrigaes, do qual exemplo eloqente encontra-

    se no Cdigo de Defesa do Consumidor, que regula direitos de consumo, nem sempre foi

    assim. No Brasil imperial, mais especificamente no Perodo Saquarema (CARVALHO,

    1991), direitos civis foram claramente diferenciados em relao a direitos polticos e estes

    ltimos receberam especial tutela estatal. Assim, talvez de forma um tanto quanto

    arbitrria, mas delimitada por narrativas que se supem fundamentais na gnese da

    cidadania enquanto modo prescritivo de comportamentos sociais, trs vrtices na histria

    universal foram estabelecidos para, tomados como paradigmas, situarmos os momentos de

    transformaes da concepo de cidadania no Brasil ps-independncia. Na histria

    universal, o primeiro vrtice emana da concepo aristotlica de cidadania, de feies

    elitistas e centrada na participao poltica. O segundo vrtice surge no sculo XVII, com

    as narrativas hobbesianas que se opem aristotlica e estabelecem a igualdade na

    liberdade entre os homens pela eleio do soberano como nico ser, depois de Deus, capaz

    de dizer o certo e o errado nas relaes intra-sociais. Sob o aspecto da igualdade na

    liberdade para aes e comportamentos sob a gide do soberano nasce a moderna

    concepo de sociedade civil, com a figura do soberano-rei, enquanto fonte das normas e

    das leis, substituda pela soberania estatal (e correspondentes constituies) no mundo

    contemporneo. Finalmente, o terceiro vrtice funda-se nas Revolues Francesa e

    Americana, que iniciaram a tradio at hoje majoritariamente seguida das liberdades

    individuais e democracias republicanas. Inspirador da Revoluo Francesa, o filsofo,

    escritor e poeta Jean-Jacques Rousseau concebeu a moderna concepo da cidadania

    poltica como autogoverno e , tambm, um dos inspiradores dos escritos de filosofia

    moral de John Rawls sobre sociedades bem-formadas.

    9

  • As narrativas brasileiras que retratam o desenvolvimento da cidadania no perodo

    ps-independncia encontram, sob diversos aspectos, analogias nas narrativas universais. A

    primeira delas est centrada no perodo Saquarema, poca em que a independncia j est

    consolidada. Tal qual a cidadania aristotlica, uma cidadania poltica de natureza elitista,

    onde amplos setores da populao, aqui inclusos os escravos, esto alijados de seu

    exerccio.

    O segundo vrtice surge com o Estado Novo de Getlio Vargas, com a tutela da

    cidadania de natureza corporativa, ensejando a posterior configurao desse tipo de

    cidadania como cidadania regulada por Wanderley Guilherme dos Santos (SANTOS,

    1979). semelhana do modelo hobbesiano, o soberano-estado unilateralmente decide e

    implementa constitucionalmente os direitos dos cidados-trabalhadores. O exemplo tpico

    desse perodo o incio do direito de natureza trabalhista.

    A terceira narrativa tem seu centro na Constituio Federal de 1988, baseada na

    igualdade de direitos entre todos os cidados e encontra semelhanas na declarao dos

    direitos do homem e do cidado da Revoluo Francesa. Marco desta fase, o Estado passa

    a ser visto como resultado da vontade conjunta dos cidados e no como representante de

    interesses especficos. Para tanto, necessita no apenas promover a racionalizao na

    utilizao dos recursos pblicos e incentivar a competio entre atores econmicos em prol

    do desenvolvimento social, mas assumir o papel de ferramenta de concretizao do modelo

    democrtico ao contrapor-se ao funcionamento fechado de seus rgos ou existncia de

    privilgios injustificveis. Decorre dessa mudana de paradigma estatal que o cidado no

    mais pode ser concebido como beneficirio passivo de direitos tutelados pelo Estado,

    reivindicando condies de bem-estar e sem se envolver construtivamente na gerao

    desses benefcios. Tambm o Estado precisa ter capacidade de decidir administrativa e

    gerencialmente e ser capaz de implementar decises, o que se convencionou denominar

    por governana, que, em ltima instncia, caracteriza um Estado forte do ponto de

    vista fiscal (fechamento contbil entre receitas e despesas), administrativo e de

    legitimidade poltica, sempre tendo por objetivo final a consolidao e fortalecimento da

    cidadania (CARDOSO, 1998).

    10

  • 1.3. MTODO DA INVESTIGAO

    praxe de a pesquisa jurdica limitar-se doutrina e jurisprudncia. Mas, assim

    procedendo, esta dissertao teria por foco a cidadania prtica. Mas, por situar-se na

    Filosofia do Direito, seu foco expande-se para o mbito analtico-sistemtico e abarca

    conceitos prprios da filosofia moral, da interpretao histrico-valorativa e da prpria

    filosofia jurdica. O objetivo, nesta perspectiva, desenvolver a modelagem analtica que

    permita detalhar conceitualmente e valorar casos concretos de forma no fragmentria e

    no anacrnica, identificando a cidadania como concepo intimamente associada ao

    estgio de desenvolvimento social e com os problemas enfrentados pelas sociedades

    durante suas diversas fases existenciais. Nesse percurso, como j citado anteriormente, o

    objetivo compreender racionalmente a fase presente do Brasil como nao integrante do

    mundo ocidental.

    A justificativa central do modelo investigativo a pessoa caracterizada como

    cidado e sua insero harmnica no ambiente social, expressa na relao do ser com o

    dever-ser. O ser se expressa na existncia concreta de pessoa, adjetivada como cidad ou

    no, e seus condicionamentos. Essa relao j se configurava na teoria de Aristteles, na

    caracterizao da pessoa de acordo com possibilidades empricas de existncia e sua

    idealizao pelas prescries de comportamentos que permitissem alcanar o ideal de

    beleza e bem-estar da plis. uma teoria focada na igualdade entre cidados gregos, no

    entre indivduos. Sob as fronteiras em que a democracia grega floresceu, a escravido no

    representava contradio, mas, pelo contrrio, condio de possibilidade ao liberar o

    cidado do trabalho no-intelectual e do comrcio para dedicao s tarefas polticas. Da o

    fato de representar um anacronismo julg-la por parmetros contemporneos, ignorando os

    valores especficos daquela poca e cultura. O dever-ser, enquanto ideal normativo,

    centrava-se na pessoa, mas as dividia em classes: pressupunha a continuidade das pessoas

    classificadas em escravos, em comerciantes e cidados gregos. Da harmonia entre esses

    elementos dependia a configurao e beleza da plis.

    A teoria social de Thomas Hobbes assumiu o carter de igualitarismo. Todas as

    11

  • pessoas gozam de liberdade igual e so signatrias do Contrato Social sob supremacia do

    Soberano. O dever-ser est expresso na necessidade de garantia para a paz e segurana

    sociais, somente alcanveis sob a configurao do homem racional que entende que sua

    vontade somente pode concretizar-se na medida da harmonizao com a vontade de seus

    concidados. Onde a vontade absoluta predomina a conseqncia o estado de natureza,

    em que o caador de hoje pode ser a presa de amanh, no repetir de ocorrncias sem fim. A

    abordagem metodolgica diferente em relao aristotlica, mas a motivao igual: a

    preocupao com a pessoa.

    Com origem no Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau e o declnio na

    confiana nos atos do Soberano, o enfoque no arqutipo de pessoa expandiu-se. O dever-

    ser social requer, alm da igualdade formal (ou terica), a igualdade de oportunidades para

    gozo das riquezas somente produzidas com a participao de todos via diviso social do

    trabalho. A responsabilidade de manuteno da paz social deslocou-se do Soberano para o

    Direito e as figuras imparciais dos juzes. O Direito assume o papel de fiador da liberdade

    e garantidor de sua eficcia. Esta transformao tem conseqncias profundas na

    concepo de pessoa. Em Aristteles a procura da virtude que melhor expressasse o que se

    entendia por pessoa feliz se concretizava na contemplao passiva da natureza humana,

    que necessariamente tendia para a realizao de suas potencialidades. Hobbes rompe com a

    concepo de Aristteles e afirma que tudo no mundo movimento. Para que esse

    movimento desordenado, representativo de caos, seja sistematicamente compreendido e

    passvel da predio, preciso enquadr-lo em um sistema de referncias, como Descartes

    propusera para a matemtica. O clculo das aes adquire contornos em um sistema que,

    semelhana do quadro referencial cartesiano de ordenadas e abscissas, situe o Soberano

    como varivel independente e os cidados como variveis dependentes. O rei normatiza os

    espaos onde os cidados exercem suas aes. O equilbrio social advm do encontro da

    vontade do rei com a do cidado. Posteriormente, com a substituio do Soberano pelo

    Direito, o ordenamento jurdico torna-se o sistema de referncia (Art. 5, II - ningum

    ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei da

    Constituio de 1988) e seu objeto configura-se na harmonia entre as liberdades individual

    e social (Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza - 1 parte do

    art. 5). O ideal de Rousseau de o cidado somente obedecer s leis gerais que ele prprio

    12

  • editar configura-se na eleio dos legisladores.

    Ao Direito cabe a tarefa de interpretar sistematicamente as leis e adequ-las aos

    casos concretos, diluindo as diferenas entre a expresso da liberdade enquanto teoria e a

    expresso da liberdade enquanto prtica. Para atribuir contornos menos diludos ao que

    seja a liberdade, os direitos surgem como elementos configuradores de seu significado.

    Direitos e obrigaes no so elementos atomizados, mas partes simtricas em torno de um

    eixo consensual cuja referncia o ordenamento legal. Nesse contexto, configura-se como

    non-sense listar direitos como elementos atomizados ou privilgios, servindo apenas para

    apontar a fragmentao da experincia. Se, por exemplo, o pargrafo IV do art. 5 da

    Constituio estabelece que livre a manifestao do pensamento, isso no significa que

    os concidados sejam obrigados a presenciar sua manifestao ou aceit-lo, pois deixaria

    de configurar um direito para transformar-se em imposio. Ao direito de manifestao do

    pensamento corresponde o ato simtrico e pacfico de respeitar a recusa de aceitao do

    outro. O eixo sob o qual a simetria determinada jaz no consenso de que todos gozam do

    direito de manifestao em igual proporo ao direito de recusa e, violado esse consenso,

    ao Direito cabe pacificar as relaes entre as partes.

    So os argumentos de autores que se supem representativos das diversas

    configuraes sociais democrticas contemporneas3 que embasam a presente dissertao.

    Sociedades de cunho no-democrtico no so abordadas, bem como as concepes de

    cidadania oriundas da filosofia de procedncia marxista. Alm disso, somente aqueles

    conceitos que, de uma forma ou de outra, expressem a realidade brasileira foram

    considerados, Se comparaes com outras sociedades contemporneas aparecem ao longo

    do texto, tal fato visa to somente enfatizar a realidade vivida no Brasil.

    Finalmente, a dissertao centra-se na interdisciplinaridade entre direito, filosofia

    moral, filosofia poltica e histria. Alis, o local privilegiado em que se tecem os

    argumentos o do direito, mas este aparece mais como o fiador institucional de posies

    surgidas em outros ramos do conhecimento, como filosofia e a cincia poltica. Embora

    grandes tericos do passado sobre os direitos dos homens, os chamados direitos naturais,

    3 Uma definio tcnica de sociedade democrtica pode ser encontrada em MARSHALL e JAGGERS(2007).

    13

  • tenham sido juristas, como Samuel von Pufendorf, com o advento do direito codificado (ou

    positivo) a rea jurdica deslocou-se da esfera puramente criativa para a esfera

    interpretativa, alargando e legitimando noes que se situam especificamente em seu

    campo de ao (da, talvez, a idia de que os tribunais, para atuarem, precisam da

    provocao). Tal fato no representa, sob hiptese alguma, demrito para os atores

    jurdicos, mas apenas conseqncia da diviso de funes presentes nas modernas

    sociedades. Desenvolvida e positivada a concepo abstrata, cabe ao direito a guarda de

    sua integridade e obedincia, interpretando-a ao caso concreto.

    No captulo 2 as narrativas sobre cidadania de Aristteles e Hobbes so

    examinadas. Os elementos que se supem comporem o ncleo da cidadania contempornea

    so extrados de autores como Rawls, Dworkin e Dahl, em abordagem interdisciplinar

    entre filosofia moral, filosofia jurdica e filosofia poltica.

    No captulo 3 as fases que identificam as transformaes sofridas pela concepo

    de cidadania no Brasil ps-independncia so abordadas. So elas de natureza poltica (no

    Brasil imprio), econmica (incio no Estado Novo e trmino com a redemocratizao do

    Brasil, mais especificamente com a Constituio de 1988) e ps-1988, com a

    redemocratizao do Pas.

    No captulo 4 a cidadania enquanto correlao entre direitos e obrigaes

    abordada para, no captulo 5 serem levantadas algumas hipteses sobre a espetacularizao

    da cidadania, fenmeno que aponta para a transformao dos cidados em platias para

    projetos de poder de polticos profissionais.

    14

  • 2. NARRATIVAS UNIVERSAIS SOBRE CIDADANIA

    Inicialmente, um posicionamento sobre o olhar para o fenmeno histrico precisa

    ser explicitado. A cidadania requer a identificao das necessidades prticas enfrentadas

    por cada configurao social de modo que possa racionalmente ser situada, evitando

    posicionamentos anacrnicos. Afirmar que determinado regime de governo foi imperfeito

    porque tolerou a escravido, por exemplo, representa olhar e julgar a partir de conceitos

    contemporneos prticas que, ao tempo que existiram, sculos atrs, eram perfeitamente

    legais e moralmente corretas. Representa mais uma afirmao emotiva do que

    argumentao racional. Por outro lado, isso no significa que determinados conceitos

    surgidos ou desenvolvidos nesses tempos no sejam positivamente valorados atualmente.

    Embora na poca estivessem restritos aos cidados, os conceitos gregos de isonomia (todos

    submetidos em igual medida s mesmas normas) e isegoria (todos tm o mesmo direito de

    manifestar livremente o pensamento pelo discurso), sob ponto de vista semntico,

    continuam vlidos, com ambos apresentando correspondncias na Constituio de 1988

    (art. 5, I - homens e mulheres so iguais em direitos e obrigaes, e IV - livre a

    manifestao do pensamento).

    A primeira referncia histrica ao conceito de cidado (etimologicamente filho da

    plis, ou indivduo que pertence cidade e nela reconhecido) situa-se na Grcia antiga,

    mais precisamente no pensamento de Aristteles, autor que abordou sistematicamente as

    relaes sociais da poca e nas quais uma particular concepo de cidadania se apresenta

    como elemento legitimador das prticas da vida comunitria. Embora atualmente a

    cidadania esteja intimamente correlacionada com direitos e justia (SADEK, 1977; 2000;

    2005), na Grcia antiga implicava um modo tico de ser e agir do homem grego,

    concretizada na participao poltica no traado dos destinos da plis e a classificao das

    pessoas em classes, com diferenciao nas correspondentes funes sociais, denotava a

    estrutura capaz de atender as necessidades prticas do cotidiano.

    Na inter-relao dos elementos constitutivos da cidadania grega, as noes

    consenso e utilidade funcionam como o elo de unio que permite a sistematizao e

    15

  • coerncia na concepo final do cidado e sua participao nos destinos da plis. Ao

    mesmo tempo em que til para a cidade, o cidado til a si mesmo pela realizao da

    possibilidade apenas latente de experimentar a felicidade e ser honrado. Mas a utilidade

    apenas se realiza pelo consenso de idias e, nesta, o sujeito precisa confrontar a maneira

    como se v a si mesmo e aos outros com a idia simtrica de como os outros o vem. O

    consenso resulta no equilbrio entre ver e ser visto e, por conseqncia, somente pode

    existir em ambiente de coletividade.

    Essas noes aparecem em todas as narrativas citadas nesta dissertao e parecem

    configurar o que se poderia hipoteticamente delimitar como caracterstica da cidadania

    enquanto linguagem universal para expresso de necessidades prticas pontuais dos

    grandes agrupamentos humanos e necessidades igualmente importantes de exteriorizao

    dos anseios de liberdade e modelagem do mundo de acordo com intuies do que seja o

    bem e o justo. As grandes narrativas, tanto universais, por que julgadas representativas da

    vontade e igualdade entre todos independentemente da nacionalidade, quanto as

    particulares, por que representam vises dos caminhos a serem trilhados para que se

    fundam nas universais, se inserem no contexto da cidadania enquanto linguagem universal.

    pela utilizao da cidadania enquanto linguagem universal que a delimitao dos

    espaos onde a cidadania se torna possvel, no apenas como ideal, mas como prtica

    difundida no dia-a-dia das pessoas, que se forja uma consenso geral do que signifique ser

    pessoa e quais condies necessitam ser satisfeitas para que noes como dignidade, honra

    e comportamento tico no sejam violados ou ofendidos. A rea imaginria delimitada pelo

    acordo consensual especifica as fronteiras no interior das quais os cidados podem livrem

    exercer sua aes sem impedimentos alm daqueles por eles mesmos impostos por

    intermdio de regras de condutas. O consenso significa para o cidado que ele no livre

    para agir e conduzir-se irrestritamente, mas deve pautar-se por aqueles princpios e normas

    livremente compactuados com seus concidados. Na filosofia poltica e moral, Thomas

    Hobbes (HOBBES, 2003) foi o primeiro a defender o consenso de renncia liberdade

    ilimitada em favor do soberano. Em contrapartida, este determinaria, por intermdio da

    edio de leis de condutas, o espao onde o seria possvel o cidado exercer, com

    segurana e proteo, sua vontade e liberdade agora condicionada. Rawls (RAWLS, 2002)

    16

  • desenvolveu a argumentao do vu de ignorncia, em que o sujeito no conhece a

    posio que ocupar na escala de benefcios da organizao social, para legitimar a

    necessidade de consensos sobre regras de procedimentos. Esses acordos consensuais, sob a

    tica de fundamentos, aproximam-se da renncia liberdade ilimitada defendida por

    Hobbes. Os participantes renunciam queles aspectos de suas vontades que so inaceitveis

    por outros, da mesma forma que outros participantes tambm renunciam aos aspectos que

    no podem ser aceitos por todos, de modo a permitir um espao compartilhado (e por isso,

    pblico) onde o bem coletivo predomine.

    Enquanto Hobbes formulou sua teoria em funo das guerras que assolavam a

    Inglaterra e a defendeu como nica soluo vivel para o retorno paz e prosperidade,

    Rawls adotou o caminho seguido por Rousseau (ROUSSEAU, 1978b), de procedncia

    iluminista, de elaborao abstrata dos fundamentos que legitimam a teoria. Mas, se tal

    procedimento pode ser acusado de irreal ou apenas demonstrativo de um ideal especfico,

    nem por isso a noo de consenso perde importncia. Importante terico da

    contemporaneidade, que manteve acentuado debate com Rawls, Jrgen Habermas tambm

    tem no consenso um dos fundamentos de sua teoria (HABERMAS, 1998). Para ele, a

    caracterstica principal da democracia no se encontra na crena de prevalncia das regras

    das maiorias, mas por que, fundamentalmente, as pessoas se renem, discutem, tanto

    concordam quanto discordam e se conciliam em consensos. Por maiores que sejam as

    divergncias de opinies, existe algo sobre a qual precisa haver um consenso mnimo: as

    pessoas vivem em um mundo concreto e, para que seja possvel a convivncia pacfica,

    sobre aqueles pontos necessrios ao bem-estar preciso haver concordncia, ou consenso.

    Mas qual o porqu da cidadania se aproximar, estruturalmente, da forma de uma

    linguagem universal?

    Qualquer meio sistemtico para a comunicao de idias ou sentimentos pelo

    intermdio de signos de qualquer natureza constitui uma linguagem (HOUAISS, 2009).

    Nessa conceituao, o Portugus, como a Matemtica e a Cidadania so linguagens.

    Gramaticalmente, o Portugus existe, a Matemtica ou existe e a Cidadania . O

    Portugus existe na medida em que as pessoas falarem portugus, mas, em uma hiptese

    17

  • extremada em que fosse substituda entre seus praticantes por outra lngua, como o ingls,

    o francs ou o alemo, com o passar do tempo e em termos da simples troca de linguagens,

    tal fato no teria maiores conseqncias. Representaria processo semelhante ao ocorrido

    com o latim, lngua oficial da Repblica Romana. Utilizado e difundido pela Igreja

    Catlica, foi uma lngua universal na Idade Mdia e parte da Moderna. Foi, tambm, meio

    de comunicao obrigatrio entre acadmicos e filsofos europeus medievais, e,

    atualmente, empregada apenas em crculos restritos, como a Igreja Catlica, mas no

    como lngua materna. A Matemtica apresenta duas linhagens de abordagens: um ponto de

    vista que considera que os princpios matemticos so descobertos, apresentando

    existncia prpria, e outra que tais princpios so criados, existindo apenas na esfera

    intelectual. Os membros do primeiro grupo recebem a denominao de Platonistas, ou

    ponto de vista Absolutista e, para esse conjunto de matemticos, a Matemtica . Aos

    membros do segundo grupo o da criao classifica-se de posio construtivista: a

    matemtica inventada pelos matemticos e, portanto, existe, da mesma forma que o

    portugus criado e modificado por seus praticantes. No tocante Cidadania, ela ! Est

    indissoluvelmente associada condio humana e foi descoberta pelos gregos, embora

    negada maioria da populao no incio de sua vigncia. Mas isso faz parte do processo de

    descoberta e afirmao de uma linguagem enquanto fenmeno social. O oposto da

    cidadania, a escravido4, tem sua existncia inconcebvel na atualidade, tanto que textos

    legais, como o Cdigo Penal Brasileiro (Art. 149), no mencionam a possibilidade de

    ocorrncia de situaes de escravido, mas de condio anloga de escravo, pois, admitir

    a existncia deste seria negar a condio de cidadania de toda pessoa nascida sob jurisdio

    de um estado determinado. Alis, todos os sistemas jurdicos contemporneos consideram

    abstratamente a cidadania uma pr-condio para a prpria existncia do Estado, como

    afirmado explicitamente no Art. 1, Pargrafo II, da Constituio Brasileira de 1988. De

    modo sintomtico da importncia das vises transmitidas pela tradio e do falar entre as

    geraes, esta constituio, por priorizar a explicitao dos direitos dos cidados em

    relao s constituies brasileiras anteriores, no ficou livre totalmente do modelo de

    dirigismo estatal naquelas predominantes: a cidadania est enumerada aps o princpio da

    4 Embora gramaticalmente, de acordo com o Houaiss, o antnimo de escravo seja liberto, livre, enquantoadjetivo essa palavra designa aquele (ou aquela) que inteiramente submisso a um poder que lhe externo (externa), como um senhor. Ora, a significao de Rousseau (ROUSSEAU, 1978) para acidadania exatamente no estar submetido a nenhum tipo de poder alm daquelas regras que a prpriapessoa elege como adequada para sua vida em sociedade. Alm do mais, algum pode no dispor daliberdade, como uma pessoa legalmente cumprindo pena em uma priso, mas nem por isso ela escrava.

    18

  • soberania, mesmo por que, como explicitamente descrito no pargrafo nico deste mesmo

    artigo, o poder poltico nasce no povo, ou conjunto de cidados da nao. Da, um

    entendimento de que o primeiro fundamento da repblica deveria repousar na cidadania e

    no na soberania. Mas, de qualquer forma, a ordem de colocaes serve como alerta: a

    cidadania , abstratamente, garantida pelo direito, enquanto coleo de predicativos que

    afirmam propriedades do sujeito. Mas a realizao concreta da cidadania fica a cargo de

    cada um dos sujeitos individualmente considerados, como caracterstica fundamental das

    linguagens. A fluncia em qualquer lngua exige sua prtica e estudo, em um processo que

    perpassa a existncia de cada nome prprio.

    19

  • 2.1. FILOSOFIA E CIDADANIA EM ARISTTELES

    Para abordar a cidadania na perspectiva grega torna-se necessrio compreender sob

    que tica desenvolveu-se a filosofia de Aristteles, pois foi este o autor, dos escritos que

    chegaram at o mundo contemporneo, aquele que mais tratou de forma sistemtica sobre

    a cidadania. Em oposio a Plato, que centrou sua filosofia no Cosmos, ou no

    especulativo, Aristteles preocupou-se com o mundo concreto, emprico, na esfera humana

    da vida em oposio divina, sem, porm, esquecer as justificativas tericas para seus

    posicionamentos. Abordou relaes que seriam hoje denominadas de jurdicas, mitigando

    tanto a desigualdade quanto a igualdade de natureza matemtica em favor da

    proporcionalidade. Classificou a justia em geral (ou moral e poltica) e particular (aqui

    especificamente jurdica, de atribuir a cada um o que lhe pertence). Priorizou os modos de

    ser do homem, fornecendo regras para preservao das instituies e luta contra a

    corrupo (CUNHA, 2009). O objetivo de Aristteles no se dirigiu a algo absoluto, ideal;

    ao contrrio, visou to somente a felicidade humana. Sua teoria poltica, em que o cidado

    figura central, tem lugares delimitados, no utpicos, com povo, vizinhanas, classes

    sociais e objetivos definidos: prover cada comunidade, por intermdio de uma constituio

    prtica, da forma de existncia que melhor bem-viver lhe proporcionar. Para Aristteles, tal

    constituio somente seria alcanada por meio da poltica e, da, sua figura central, no

    papel do cidado, quer conceituado em termos ticos (ou tericos), que se realiza na

    educao pelas virtudes, ou caminho para a felicidade, quer na esfera ftica, pelas aes e

    procedimentos no interior da plis. Se a maior felicidade a vida contemplativa racional,

    tambm, de algum modo, o 'andar a procur-la' () na vida poltica (de acordo com as

    virtudes) pode constituir um segundo nvel de felicidade (CUNHA, 2009). Se todas as

    coisas possuem uma finalidade, ou teleologia, a do homem, expressa na felicidade, s se

    realiza pela utilidade do exerccio da cidadania. Se na matemtica e nas cincias naturais a

    certeza de ordem racional, no exerccio da cidadania, expressa pela poltica, de natureza

    tica. Caracteriza-se pela justa medida na utilizao dos elementos requeridos pela vida

    material e na prudncia e equilbrio proporcionados pela experincia, elementos capazes de

    melhor expressar o que se entende por bem ou aquilo que bom. Para Aristteles, o

    bem, ou aquilo que bom, um fim perfeito em si mesmo, tornando a presena de

    20

  • outros adjetivos dispensveis. Sua conseqncia prtica a felicidade, donde ser cidado

    na plena acepo da palavra ser feliz, caracterstica em potencial da existncia humana.

    Ser feliz, em um primeiro momento, ter honra, aqui apartada do mero prazer. O prazer

    encontra sua maior expresso entre os escravos, a plebe e alguns membros das classes mais

    abastadas. A honra tambm se distingue da riqueza, que deveria ser valorada como meio

    para alcance da felicidade e no como fim em si mesmo. Por expressar, em um primeiro

    momento, a felicidade e, por isso, estar indissoluvelmente ligada Poltica, a honra

    virtude pessoal encontrada mais nos que honram do que nos que so honrados por outras

    pessoas. Entretanto, a honra expressa somente parcialmente a felicidade, porque podem

    existir pessoas honradas e infelizes. Mas o verdadeiro cidado, aquele que souber

    aproveitar das virtudes intelectuais representadas pela educao, pelo raciocnio lgico e

    pela prudncia, e das virtudes morais, representadas pela liberalidade e moderao, em

    benefcio dos concidados na busca pelo Bem, no ter como no ser feliz.

    Em termos menos filosficos e mais prticos, a cidadania configurava-se como

    condio e referncia para a participao poltica no governo da plis. Em Atenas, grupos

    relativamente pequenos de pessoas (necessariamente cidados), em relao ao total de

    habitantes da cidade (no-cidados, ou escravos, comerciantes, mulheres e estrangeiros),

    reuniam-se em assemblias e detinham o monoplio de debater e oferecer solues aos

    problemas da cidade. Todos estavam sujeitos s mesmas normas e todos tinham igual

    direito de manifestao da opinio. Pela discusso racional e clara obtinham-se os

    consensos sobre as solues para os problemas da plis.

    A execuo das tarefas correspondentes s solues era delegada aos magistrados,

    periodicamente selecionados entre aqueles cidados que aspiravam tal cargo. Eles sabiam

    de antemo que suas atividades estariam sob constante vigilncia das assemblias e que

    eventuais incompetncias na execuo das tarefas que lhe haviam sido atribudas estariam

    sujeitas a severas sanes (MANIN, 1997). Essa era uma importante caracterstica da

    democracia e cidadania, pois, para os gregos, o cidado, mais do que haver nascido na

    plis, era definido pela participao no poder de julgamento e no poder de comando

    (ARISTTELES, 1997).

    21

  • Se o poder de comando derivava das aes dos magistrados, escolhidos

    periodicamente dentre os membros das assemblias, ou podia eventualmente derivar

    diretamente destas, o poder de julgamento era prerrogativa exclusiva dos membros das

    assemblias, que eram a mais forte expresso concreta do exerccio da cidadania. Manin

    (MANIN, 1997:23) descreve o processo de exerccio do poder de julgamento que, de modo

    simplificado, pode ser expresso da seguinte forma: No incio de cada ano, as leis vigentes

    eram submetidas apreciao das Assemblias de cidados. Se qualquer delas fosse

    questionada pela Assemblia, qualquer cidado deveria propor uma substituta e cinco

    outros cidados ficavam encarregados de defender a rejeitada, originando o contraditrio

    entre as partes. Adicionalmente, qualquer cidado, ao longo do ano, poderia

    justificadamente propor a substituio de uma lei por outra. O processo de escolha de

    cidados para defenderem a lei em pauta e conseqente contraditrio repetia-se. Para as

    leis vigentes, seis magistrados detinham a incumbncia de supervisionar suas aplicaes,

    com os casos de invalidades na aplicao concreta ou conflitos entre leis submetidos

    apreciao da Assemblia, que poderia ento iniciar o processo de reviso como descrito

    acima.

    Para ser cidado, segundo Aristteles, alguns requisitos deveriam ser preenchidos,

    sendo o principal deles aquilo que modernamente se define como competncia pessoal: a

    capacidade de no apenas exercer o papel de governante quando necessrio, mas tambm

    saber portar-se como governado. O fundamento da democracia grega residia no na

    existncia de governantes e governados, mas na possibilidade de cada cidado ocupar as

    duas posies alternadamente (MANIN, 1997:28), que caracteriza um outro conceito

    umbilicalmente associado ao de cidadania, alm do de igualdade entre cidados gregos: o

    de liberdade: Uma das formas de liberdade governar e ser governado alternadamente.

    () a excelncia do todo bom cidado a capacidade de comandar bem e obedecer bem.

    (...) Somente pode comandar bem aquele que tambm demonstrar a capacidade de

    obedecer bem. (Aristteles apud MANIN, 1997:28). Da decorrerem algumas

    conseqncias importantes da concepo de cidadania: somente sob condies de governos

    democrticos (sob a concepo grega de democracia, ou de liberdade e possibilidade do

    cidado ser governante e governado em ocasies distintas) a cidadania torna-se concreta,

    pois esta a forma de governo adequada para que os cidados exeram o princpio

    22

  • democrtico (tenham liberdade e possibilidades de exercerem os papis de governantes e

    governados). Os cargos pblicos devem ser limitados no tempo, com rodzios na suas

    ocupaes. Nesse contexto, as concepes modernas de liberdade (em termos gerais) e

    igualdade entre todos se figura como anacrnica realidade dos gregos antigos. Para estes,

    no era logicamente possvel atribuir ao dependente economicamente de outrem (no

    necessariamente escravo) ou ao estrangeiro a possibilidade de ser cidado, j que, entre

    classes, essas pessoas concretamente no eram iguais. De onde viriam o desenvolvimento

    das competncias necessrias ao exerccio do governo em quem no dispunha nem de

    educao nem da prpria liberdade de conduzir autonomamente sua existncia? Mesmo

    entre os cidados, a melhor ocasio para serem governados situava-se na juventude e

    primeiros anos da vida adulta, ocasio adequada para o aprendizado obedincia, com os

    mais velhos, pela experincia de vida passada, apresentando maior obedincia para o

    comando. Essa era a caracterstica diferenciadora dos gregos e demais povos na

    Antigidade. Entre estes, os reis governavam vitaliciamente e o povo se limitava a

    obedecer (Aristteles apud MANIN, 1997:29).

    O que precisa ficar claro na concepo de cidadania dos gregos antigos que, alm

    de uma classificao jurdica que separava as pessoas em escravos e dependentes, metecos

    (estrangeiros) e cidados, decorrente da constatao emprica de que as pessoas

    apresentavam-se dessa forma desde tempos imemoriais, a cidadania se configurava como

    habilidade pessoal a ser desenvolvida e exercida coletivamente, configurando aquilo que,

    modernamente, podemos denominar de caractersticas psicolgicas do indivduo. O

    exerccio da cidadania, mais que condio, exigia responsabilidades e comprometimentos

    livremente assumidos pela pessoa em prol do bem comum, tendo por fundamento a

    possibilidade de que, no mbito do ideal democrtico grego de cada um viver como da

    melhor forma o desejasse, as aspiraes individuais necessitariam estar coletivamente

    harmonizados nas decises majoritrias. O no cumprimento das obrigaes pessoais

    necessariamente redundava em debates nas assemblias sobre a culpa ou no do acusado,

    resultando em punies que podiam terminar no exlio ou na morte, dependendo da

    gravidade da acusao.

    23

  • 2.2. FILOSOFIA E CIDADANIA EM HOBBES

    Em 1651 foi publicado na Inglaterra O Leviat, uma das obras mais importantes

    da filosofia poltica ocidental, seno a mais importante (pelo menos na viso de Leo

    Strauss (LEVINE, 1995: 121)), por representar a primeira empreitada bem sucedida da era

    moderna em oferecer resposta ao que o bem da vida e relacion-la com a correta

    ordenao da sociedade, de tal modo que a economia, a antropologia, a cincia poltica e a

    sociologia contemporneas nada mais so que elaboraes, revises ou substituies da

    cincia social iniciada pelo filsofo ingls Thomas Hobbes (LEVINE,1995:121). Para

    Hobbes, a ordem hierarquicamente estabelecida na sociedade e que atinge seu vrtice no

    rei, , racionalmente, a melhor das ordens possveis. Em crtica direta a Aristteles, Hobbes

    consumou o posicionamento j latente desde Maquiavel de que o guia da ao no deve

    repousar em noes idealmente elaboradas do que seja a vida humana, mas na crua

    realidade de como os homens agem e pensam no decorrer da vida cotidiana. Em

    contraposio idia aristotlica de que a contemplao racional o estado prprio da

    natureza humana, Hobbes, influenciado pelos novos desenvolvimentos cientficos de seu

    tempo, como a fsica de Galileu e os desenvolvimentos na Geometria, adaptou tais

    princpios psicologia e defendeu que, assim como o Universo no esttico, tambm a

    natureza humana encontra-se em permanente ebulio originadora de desejos ilimitados.

    Em termos morais, Hobbes deslocou a tica da esfera das virtudes e valores aristocrticos,

    como defendia Aristteles, para o campo das igualdades fundadas na justia, j que, ao

    depositar no rei a fonte da legislao e da proteo social, por meio de um contrato social,

    todos se tornam iguais em oportunidades e benefcios sociais. O principal destes benefcios

    o controle do desejo insacivel de poder e a evitar a morte violenta causada pela mtua

    predao. Se antes do contrato a anarquia imperava, com a ordem social instvel e

    entremeada por guerras civis, aps o contrato social o soberano assume a responsabilidade

    de manter a ordem social estvel e banir as guerras civis da sociedade, propiciando o

    desenvolvimento da ao racional.

    24

  • 2.3. DOS REQUISITOS TICOS DA CIDADANIA A PARTIR DE

    RAWLS, DWORKIN E DAHL

    Contemporaneamente, a noo de cidadania como resultado da existncia e livre

    participao, enquanto opo de escolha pessoal, nas instituies pblicas foi retomada, na

    filosofia moral e poltica, por Jahn Rawls (RAWLS, 2002). A crtica principal de Rawls

    centra-se no predomnio do utilitarismo (pelo menos entre os autores da filosofia poltica

    em lngua inglesa) enquanto critrio norteador de escolhas pblicas. O utilitarismo pode

    ser expresso no seguinte princpio: a maior felicidade para o maior nmero (RAWLS,

    2007:392). Sua interpretao significa a maximizao da felicidade associada ao bem-estar

    total entre o maior nmero possvel de pessoas da populao, tanto em termos presentes

    quanto futuros, na medida em que os atos pblicos interfiram nessa distribuio. O

    problema desse princpio que a utilidade total deve ser maximizada e no a utilidade

    mdia, tornando-se perfeitamente possvel a existncia de minorias desassistidas e, por

    conseqncia, a marginalizao social, desde que o nmero total de pessoas satisfeitas

    supere aquelas. Igualmente, se o total de pessoas beneficiadas superior ao total daquelas

    excludas, enquanto ocorre uma alternncia entre as pessoas no beneficiadas o grupo das

    beneficiadas abrange sempre as mesmas pessoas. Uma teoria da justia no pode

    permitir que desvantagens [sociais] para alguns sejam justificadas por vantagens para

    outros (KILCULLEN, 2006). De maneira enviesada, essa parece ter sido uma prtica

    rotineira no desenvolvimento econmico brasileiro, representada pela mxima existente em

    fins dos anos sessenta e incio dos setenta do sculo passado de incentivo ao crescimento

    concentrado do bolo [econmico] para sua posterior repartio. Aqui, a concentrao e

    acmulo da riqueza social tinham por objetivo alcanar um patamar que tornasse possvel a

    redistribuio futura de parte dessa riqueza sem afetar a continuidade do processo

    acumulativo em ambiente de livre concorrncia do mercado. Para Rawls, entretanto, a

    defesa da utilidade mdia centra-se na racionalidade da ao pblica baseada no na

    simples maximizao da acumulao econmica, mas na igualdade de oportunidades

    (justia social) para cada sujeito poder participar na apropriao das riquezas socialmente

    produzidas.

    25

  • Rawls desenvolveu um modelo terico capaz de nortear valorativamente a

    classificao de uma sociedade real em quo justa ela na criao de oportunidades para

    seus cidados, independente das diferentes posies sociais por estes ocupadas. Trs

    axiomas fundam a teoria.

    O primeiro axioma, denominado vu de ignorncia, fixa-se no estabelecimento de

    consensos em uma sociedade hipottica a respeito de que premissas so justas na aceitao

    de regras para diviso das riquezas socialmente produzidas. A experincia emprica

    demonstra que uma posio socialmente considerada mais importante que outra origina a

    apropriao em grau mais elevado das riquezas sociais do que uma posio considerada

    irrelevante. Mas, por no ter conhecimento de que lugar ocupar na hierarquia social dessa

    sociedade hipottica, o sujeito, racionalmente, no tende a defender privilgios, j que a

    possibilidade de situar-se ao nvel dos menos beneficiados iguala-se a de situar-se ao nvel

    dos privilegiados. Da o fato de as pessoas tenderem a defender regras de distribuio

    eqitativas, facilitando a obteno de consensos.

    O segundo axioma diz respeito igualdade de condies nas oportunidades de

    participao nos postos pblicos. Todos os membros da comunidade devem possuir

    igualdades de oportunidades no acesso educao e formao tcnica, assim como a

    outros bens necessrios para a configurao de habilidades requeridas pela sociedade em

    que so membros. O objetivo desse axioma evitar distores nas qualificaes das

    pessoas em funo das condies existentes no meio em que nasceram (denominado pelo

    autor de sorte social, como o nascimento em um ambiente provido de profundas

    restries econmicas capazes de bloquear o aproveitamento de oportunidades decisivas na

    formao exigida para participao nos mais prestigiados cargos pblicos). Se excluses

    so permitidas, a marginalizao social tende a reproduzir-se de forma autnoma, criando

    focos de tenso sociais e perpetuando situaes de necessidades materiais.

    O terceiro axioma diz respeito existncia de instituies de mbito pblico que

    publicizem e utilizem nos atos que normatizam suas atividades as regras que balizam a

    convivncia social. Se todos tm direitos de reivindicar a igualdade de acesso nas

    oportunidades de participao na gerao e distribuio das riquezas sociais, os consensos

    26

  • que norteiam esses direitos devem ser do conhecimento de todos. Devem essas instituies

    participar no incentivo constituio e manuteno da cidadania e de cidados cnscios de

    seus direitos e deveres.

    No tocante ao conceito de cidado cnscio de seus direitos e deveres, ou

    concepo poltica de pessoa, Rawls destaca a concepo de que os cidados se julguem

    livres sob trs aspectos:

    1 Os cidados so livres no sentido de se conceberem a si mesmos e a seus

    concidados como capazes de formularem uma relao moral do que seja o

    bem. So vistos como no estando de modo fundamentalista ligados a

    determinada concepo de verdade. Podem, motivados em crenas razoveis e

    racionais, rever as posies que adotam em determinados momentos de suas

    existncias. Dada sua capacidade moral de formular, revisar e procurar

    concretizar racionalmente uma concepo do bem, sua identidade pblica de

    pessoa livre no afetada por mudanas em sua concepo especfica do bem

    ao longo do tempo. (RAWLS, 2000:73);

    2 O segundo aspecto da liberdade diz respeito s pessoas se considerarem

    no direito de fazerem reivindicaes s instituies em que atuam na promoo

    de suas concepes de bem, desde que essas concepes de encaixem na

    crena pblica de justia. Esta uma forma de as pessoas se sentirem

    importantes (e realmente serem) na construo e manuteno da sociedade que

    julgam justa.

    3 O terceiro aspecto da liberdade relaciona-se com a percepo de serem

    capazes de assumir responsabilidades por seus objetivos, ajustando seus fins e

    aspiraes quilo que se julga razovel esperar que possam fazer. Alm disso,

    so vistas como capazes de restringir suas reivindicaes quelas permitidas

    pelos princpios de justia (RAWLS, 2000:77).

    Mas no apenas a moralidade individual baseada em princpios conhecidos e

    27

  • aceitos por todos que configuram uma sociedade onde a justia seja exercida com

    eqidade. As instituies dessa sociedade tambm devem adotar e seguir os princpios

    estabelecidos na Posio Original. Abordando a noo de sociedade, Rawls a concebe,

    idealmente, como tendo de preencher o requisito de bem-ordenada, cujos pressupostos

    so trs:

    1 Se trata de uma sociedade na qual existe um consenso a respeito dos

    princpios pblicos de justia, isto , cada sujeito aceita, e sabe que os demais

    tambm aceitam, os mesmos princpios norteadores do conceito de justia;

    2 Esse consenso a respeito de justia interpretado por todos como

    significando que concretamente observado pelas instituies significativas da

    sociedade, sejam elas de natureza poltica, social ou econmica, visto que a

    cooperao a forma que melhor permite a busca e satisfao das necessidades

    de cada cidado;

    3 As idias expressas nos dois pressupostos anteriores so efetivas, isto ,

    no so apenas meros aspectos formais, mas podem ser percebidas por todos

    nas decises oriundas das diversas instituies sociais. Por isso mesmo, essas

    instituies so vistas como sendo justas. Numa sociedade assim [na qual os

    trs pressupostos acima mencionados esto presentes], a concepo

    publicamente reconhecida de justia estabelece um ponto de vista comum, a

    partir do qual as reivindicaes dos cidados sociedade podem ser julgadas

    (RAWLS, 2000:79).

    Sintetizando a idia de justia como eqidade, Rawls prope dois princpios de

    justia capazes de nortear a forma pela qual as instituies mais importantes de uma

    sociedade realizam os valores de liberdade e igualdade numa sociedade em que os

    indivduos so tidos como livres e iguais. Importante destacar que as instituies

    consideradas so importantes (s quais Rawls denomina de instituies bsicas) porque

    capazes de influenciar o comportamento dos cidados e por estes vistas como

    imprescindveis ao seu modelo de organizao social em outras palavras, instituies

    28

  • institucionalizadas. So elas tambm portadoras de formas de organizaes que permitem

    de forma mais efetiva a realizao dos valores de liberdade e igualdade.

    Esses princpios sofreram alguns ajustes desde que propostos inicialmente no livro

    Uma teoria da Justia (RAWLS, 2002:64) at sua forma final presente em O

    liberalismo poltico (RAWLS, 2000:47-48). Essas modificaes, visando dar uma maior

    preciso aos termos utilizados nas definies, so frutos de cerca de 22 anos de debates a

    respeito da teoria decorridos entre as publicaes americanas do primeiro e segundo livros.

    Os princpios aqui apresentados so aqueles constantes em O liberalismo poltico:

    1 - Todas as pessoas tm direito a um projeto inteiramente satisfatrio de

    direitos e liberdades bsicas iguais para todos, projeto este compatvel com

    todos os demais; e, neste projeto, as liberdades polticas, e somente estas,

    devero ter seu valor eqitativo garantido.

    2 As desigualdades sociais e econmicas devem satisfazer dois requisitos:

    primeiro, devem estar vinculadas a posies e cargos abertos a todos, em

    condies de igualdade eqitativa de oportunidades; e, segundo, devem

    representar o maior benefcio possvel aos membros menos privilegiados da

    sociedade.

    Cada um desses princpios regula as instituies numa esfera particular, no

    apenas em relao aos direitos, liberdades e oportunidades bsicos, mas

    tambm no que diz respeito s reivindicaes de igualdade; a segunda parte do

    segundo princpio, por sua vez, sublinha o valor dessas garantias institucionais.

    Juntos, os dois princpios regulam as instituies bsicas que realizam esses

    valores, conferindo-se ao primeiro prioridade sobre o segundo. (RAWLS,

    2000:47-48).

    Os conceitos de efetivao da realizao dos valores de liberdade e igualdade so

    extremamente importantes no sistema de Rawls, que a simples repartio da riqueza social,

    sem que esses elementos estejam presentes, so insuficientes para caracterizar uma

    29

  • sociedade como justa.

    Outros escritos de um autor contemporneo abordando a expresso dos sentimentos

    singulares e suas conseqncias concretas na vida social so os do jurista americano

    Ronald Dworkin (DWORKIN, 2002). Analisando diversas decises judiciais e o caminho

    seguido pelas interpretaes de textos legais que fundamentam decises de tribunais,

    Dworkin defende a necessidade de um princpio que embase todas as decises judiciais, e

    esse princpio somente pode ser a integridade, ou no-negociao de compensaes que

    justifiquem as desigualdades de tratamentos entre cidados. Por mais adequados que sejam

    as regrais do bem-estar econmico, da adequao poltica de determinadas decises, ou da

    utilidade social de outras, a cidadania e, em ltima instncia, as noes de liberdade e

    justia que legitimam as sociedades democrticas contemporneas, no podem prescindir

    do sentimento que todos os cidados so iguais e devem ser julgados pelos mesmos

    princpios.

    O mbito da filosofia poltica em Dworkin est situado na teoria liberal do direito.

    Liberal no implica o sentido que normalmente lhe atribudo pelo pensamento clssico: a

    diviso entre uma teoria positivista derivada de fatos representados em regras emitidas por

    instituies autorizadas para tal (ou nas condies suficientes e necessrias para validade

    de uma proposio jurdica) e uma teoria utilitarista que tem por proposta to somente o

    bem-estar da maior proporo da sociedade. Uma teoria liberal do direito significa que

    deve ser simultaneamente normativa e conceitual. Intrnseca na noo de conceitual est

    a escolha entre a natureza do direito como poltica ou jusnatural. Se poltica, os princpios

    sobre regras da maioria inscritos na Constituio so partes integrantes do direito; se

    jusnatural, ento as concepes genricas e socialmente compartilhadas que direitos so

    inatos condio humana podem ser contrapostas aos princpios constitucionais que

    eventualmente os limitem.

    A concepo de direito liberal pressupe a democracia (DWORKIN, 2006), com

    regras constitucionalmente expressas, aceitas e seguidas pela maioria dos membros de uma

    sociedade. Portanto, sua natureza poltica. Essa proposio integra a concepo

    comunitria de ao coletiva ao caracterizar o cidado participativo que identifica os atos

    30

  • praticados na sociedade a que pertence como atos seus (senso moral), percebendo-os como

    constitutivos dos condicionamentos que determinam as escolhas disponveis na vida diria.

    O cidado, por seu senso-comum, identifica-se na concepo democrtica de participao

    comunitria, que pressupe a condio de igualdade poltica, em oposio a uma maioria

    com critrio estatstico. Essa igualdade recusa a idia de trocas compensatrias, geralmente

    debatidas como meios de consensos polticos e /ou econmicos, em que pretenses so

    substitudas por ofertas alternativas na suposio utilitarista de que melhor ceder e no

    perder tudo do que defender posies legitimamente representadas por princpios

    constitucionais (DWORKIN, 2003). Assim, as trocas compensatrias, ou solues

    conciliatrias, so injustas por princpio, na medida em que estabelecem diferenas entre

    pessoas ou grupos de pessoas. So preferveis somente s situaes extremas, quando

    grupos inteiros de pessoas seriam severamente prejudicadas e a soluo conciliatria

    permite que alguns (no todos) tenham seus direitos respeitados.

    A concepo conjugada da conciliao a integridade, que nasce da confluncia de

    teorias da legislao e da deciso judicial. A teoria da legislao deve restringir o que

    legisladores ou outros participantes na criao do direito podem corretamente fazer ao

    expandir ou alterar normas pblicas. A teoria da deciso judicial deve exigir que, na

    medida do possvel, normas pblicas sejam tratadas e respeitadas como conjuntos

    coerentes de princpios, cuja conseqncia a permisso para que normas implcitas sejam

    desveladas de normas explcitas. Restringindo o que pode ser feito na expanso ou

    alterao de normas pblicas pela observao dos mesmos princpios considerados no

    tratamento de normas pblicas pelo judicirio, a integridade se expressa como esse

    conjunto coerente de princpios igualmente considerados em todas as decises polticas da

    comunidade.

    Concretamente, a integridade um ideal por existir a possibilidade de conflito com

    o que se considera justo ou com o que se considera imparcial. A justia uma questo de

    resultados. Por mais eqitativos que sejam os procedimentos observados para se alcanar

    uma deciso, poltica ou de outra natureza, ela provoca injustia quando nega s pessoas

    recursos, liberdades ou oportunidades que razoavelmente se acredita que elas tm direito.

    Somente em um estado utpico seria possvel pensar que as decises polticas so sempre

    31

  • coerentes, ocasio que a integridade seria desnecessria. Em um estado concreto, para que

    a integridade seja efetiva, pessoas e grupos necessitam o direito de controle mais ou menos

    igual sobre as decises legislativas que as vincularo em seus comportamentos. Mas se as

    pessoas tm concepes diferentes sobre que responsabilidades especiais decorrem das

    prticas sociais que definem grupos e percebem algumas como no sendo tambm suas,

    isso no justifica a imposio da vontade da maioria numrica nem a negociao

    objetivando a diviso eqitativa na aplicao de princpios, de acordo com a justia

    distributiva. Pois se assim fosse, a ordem pblica seria tratada como mercadoria, mais

    precisamente um bolo, com cada grupo recebendo eqitativamente a parte que lhe cabe.

    Em questes de princpio, a ordem pblica no pode ser fracionada entre correntes de

    opinio. Se existem divises irreconciliveis entre as opinies a respeito da justia, o

    acordo deve ser externo - sobre que sistema de justia a ser adotado e no interno,

    baseado em concesses. A integridade violada toda vez que uma comunidade estabelece e

    aplica direitos diferentes, embora coerentes em si mesmos, mas que no podem ser

    defendidos em conjunto como expresso integrada de princpios de eqidade, justia e

    devido processo legal.

    O Estado, como ente unitrio que se expressa por uma responsabilidade poltica e

    que constitudo por uma comunidade a que se chama nao, no pode aceitar trocas

    compensatrias porque compromete seus princpios. atravs da responsabilidade poltica

    (autoridade moral) que a integridade se afirma e que o direito se conforma como atividade

    interpretativa, protegendo contra a parcialidade, a fraude e a corrupo oficial. Se as

    pessoas aceitam que so governadas por regras explcitas resultantes de decises polticas

    tomadas no passado e por quaisquer outras regras decorrentes de princpios que essas

    decises pressupem, ento o conjunto de normas pblicas pode adaptar-se facilmente ao

    desenvolvimento social.

    Esse processo no totalmente eficiente quando as pessoas divergem, mas aceita

    transformaes orgnicas, propiciando aquilo que Kant e Rousseau chamaram de

    autolegislao, desde que observada a integridade. Esta (a integridade) insiste em que cada

    cidado pode aceitar as exigncias que lhes so feitas e pode fazer exigncias aos outros,

    compartilhando e ampliando a dimenso moral de qualquer deciso poltica explcita.

    32

  • Tambm promove a unio moral e poltica dos cidados ao solicitar a interpretao da

    organizao comum da justia decorrente da cidadania, interpenetrando circunstncias da

    vida pblica com a da privada. Trata-se da noo de fidelidade a um sistema de princpios

    que cada cidado tem a responsabilidade de identificar, ainda que apenas para si mesmo,

    como o sistema da comunidade qual pertence.

    Para Dahl, as instituies pblicas (e aqui est assumido o regime democrtico de

    governo, de acordo com a antiga condio enunciada por Aristteles de que a cidadania

    somente possvel sob a democracia) as instituies so sociais por que admitem um

    nmero no limitado de participantes e so democrticas por que as decises so

    estabelecidas por consensos em que todos tm o direito de emitirem opinies discordantes

    entre si. As caractersticas dos consensos abrangem sete suposies:

    1 os participantes de instituies sociais democrticas devem chegar

    consensos que sejam de cumprimento obrigatrio para todos os membros como

    resultado do livre debate de idias;

    2 esses consensos so estabelecidos em dois estgios distintos: num

    primeiro momento, as questes so colocadas e num segundo momento so

    debatidas, da surgindo o consenso decorrente de um ncleo mnimo de

    proposies contidas nas diferentes posies dos participantes que se acredite

    seja aceito por todos;

    3 os consensos devem ser impostos somente s pessoas que participam

    espontaneamente da instituio, por que obrigaes no podem vincular

    pessoas que no esto obrigadas a segui-las;

    4 deve ser observado um princpio de igualdade real e no apenas formal

    entre as opinies dos membros da instituio. Os votos de todos os membros

    tm o mesmo peso na determinao das posies diferentes que tornar-se-o

    parte dos consensos;

    33

  • 5 deve ser observado um princpio de liberdade entre as opinies dos

    membros da instituio. Cada um deve estar apto a expor e defender suas

    idias, sem a necessidade que um rbitro externo emita sobre elas um juzo de

    valor;

    6 deve ser observado um princpio de igualdade em possibilidades de

    deciso. Os membros que se renem para procurar um consenso devem ter o

    grau de conhecimento compatvel com as exigncias da questo e possuam

    tambm o senso crtico necessrio para discernir se a questo requer um

    consenso. Devem, tambm, ser capazes de reconhecer em que situaes esse

    consenso extrapolar os limites da instituio e afetaro os comportamentos de

    outras pessoas, ocasies em que as opinies dessas pessoas podero ser

    requeridas;

    7 Um princpio de justia. Se determinados bens no podem ser repartidos

    de forma igualitria entre todos, a justia exige que o merecim