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 TEMA DE CIBERTEXTUALIDADES 07 estudos sobre António ArAgão Organização de Rui Torres Publicação da Universidade Fernando Pessoa

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 TEMA DE CIBERTEXTUALIDADES 07

estudos sobre António ArAgãoOrganização de Rui Torres 

Publicação da Universidade Fernando Pessoa

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António ArAgão, ou AliberdAde dA invençãorogério barbosa da silva1

RESUMO: O artigo propõe a realização de uma leitura crítica da poesia e do pensamento poético de An-tónio Aragão sob a perspectiva da invenção e da liberdade da criação estética, compreendendo as in-terfaces da arte poética com os media e as tecnologias disponíveis em seu próprio tempo. Alem disso,propõe-se demonstrar, a partir da trajetória de Aragão pelo viés da poética experimental, de que maneirao poeta exerce a consciência crítica no domínio da técnica criativa e em sua relação com o meio social.

PALAVRAS-CHAVE: António Aragão; Invenção e Liberdade da Arte; poesia Experimental; Mídia.

ABSTRACT: This paper proposes to perform a critical reading of poetry and the poetic thought of Antó-nio Aragão from the perspective of invention and aesthetic autonomy of artistic creation, including the

interfaces of the poetic art with media and technologies available in their own time. Furthermore, it isproposed to prove, from the history of Aragão by the experimental poetics, how the poet performs criticalawareness in the field of creative art and its relationship with social environment.

KEyWORDS: António Aragão; Invention; Aesthetic Autonomy of Art; Experimental poetry; Media.

1  Doutor em Literatura Comparada (UFMg). professor do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-Mg na área deliteratura brasileira e portuguesa, estudos de edição, poesia e tecnologias.

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35REv ISTA CIBERTEXTUALIDADES n.7 [2015] - ISSn: 1646-4435 033 - 044

vos, mas especialmente em “A escrita do olhar”,quando afrma que o objeto novo

"desafia a nossa capacidade de assimilação ou par-

ticipação. Uma profunda mudança está em causa.O conhecimento não faz apenas parte das nossasnoções. Ele é introduzido no cosmos do nosso cor-po por uma espécie de osmose que faz parte danossa própria afectividade em face do mundo quenos rodeia". (Aragão, 1985: 178)

Essa mudança adviria não da crise que põe emcausa o conceito de poesia e artes em geral, algopeculiar ao questionamento das sucessivas van-guardas, mas sobretudo de uma alteração maisprofunda numa realidade que emerge da desen-voltura tecnológica a qual perpassa os meios eseu potencial de expressão simbólica. Está, por-tanto, na raiz da crise e altera tanto a expressãoquanto a percepção dos fenômenos estéticos, eaté mesmo os não estéticos. Aragão ressalta queo público já não constitui uma “elite de amado-res esclarecidos”:

"Uma pluralidade perceptiva torna-o, em grande

parte, apto a receber novas formas de comunica-ção ligadas à vida social ou técnica, às recentes con-cepções temáticas e consequentemente à reflexãosobre a razão de sua existência individual, o que lhepermite a aquisição de outros valores, mitos e hábi-tos mentais os quais compõem um ‘corpus’ culturaltotalmente diverso". (Aragão, 1985: 179)

Ainda segundo Aragão, essa deriva se colocafrmemente com o surgimento das rupturasvanguardistas que permitiram a esse público a

aquisição de um corpus cultural diverso na medi-da em que a explosão de descontinuidades pro-vocou a expansão de outros modelos (Aragão,1985: 178-182). A consequência vanguardista éa intensa movimentação criativa, que se impõee se nega para dar lugar a outras experiências,a novas atitudes interrogativas. Por isso, Aragãodestaca que na era eletrônica, ao se colocaremnovos médias ao alcance de todos, a liberdadede expressão referida na lei dos Direitos do Ho-mem sairia de seu confnamento às “regras retó-ricas da escrita” (Aragão, 1985: 183). Voltaremos a

Num de seus poemas-livro, Poema vermelho e

branco2 (1971), o escritor, artista plástico e histo-riador madeirense António Aragão escreve:- a signifcação está no que não se deseja

nem pretende.- este poema não serve para uso nempara consumo.- ousar é mais importante que usar.(Aragão, 1971: s.p)

O poema em si mesmo realiza a ousadia pro-posta no seu formato, ao se constituir como umenvelope que lhe serve de capa, com um orifíciocentral, através do qual percebemos a folha inte-rior fechada com uma tarja vermelha. O poemacompõe-se, portanto, de duas folhas, sendo umaexterior e outra interior, formada por dobradu-ras, com suas linhas e tarja a se sugerir como umlacre. Faz-se assim remeter para as produções damail-art (ou arte postal), muito utilizadas pelospoetas de linhagem experimental, em uma pri-meira visada. Em seu princípio, entretanto, essepoema desconstrói em sua dimensão materiala proposta do livro como suporte, e emboraconsidere a existência de um público a quem se

dirige, nega-se enquanto produto de consumo.Conceitualmente, incide na ideia de que o poe-ma não é portador de signifcados; a signifcaçãoseria uma construção do leitor ou visualizador,a qual pode ir além da expectativa existente noprojeto que o institui.

Inerente a essa proposta está o conceito de in-venção como elemento central da arte, conside-rada não só como signo do novo, mas tambémcomo da transformação culturmorfológica, con-

forme expressão de Haroldo de Campos, porquese representa nessa arte a busca da atualizaçãocultural e da escrita literária, nomeadamente aabertura da linguagem para novas realidades.Essa perspectiva é enfatizada por António Ara-gão em vários de seus textos críticos ou criati-

2  O poema pode ser visualizado no link: <http://po-ex.net/

taxonomia/materialidades/tridimensionais/antonio-aragao--poema-vermelho-e-branco> [Consulado em 28/08/14]

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36 ROgéRIO BARBOSA DA SILv A

iluminar os sentidos por dentro, eliminar o sentidoda sua exibição por fora". (pimenta, 1990: 283).

Assim, escapa-se a despragmatização de tipo

poetológico, isto é, aquela que se destina ape-nas a embelezar a praxiologia dos símbolos, per-petuando-se sua transcendência. Ao contrário, adespragmatização de uma estética emancipada,poetográfca, pode demolir-lhes a ontologia (Cf.Pimenta, 2003: 156). A arte exercita aqui a suacomponente transgressora. Mas há ainda outraatitude antipoetológica destacada por Pimenta,a qual nos parece também identifcada com osprocessos poéticos adotados por A. Aragão emsua trajetória poética e artística. Trata-se daquiloque Alberto Pimenta denomina a “contrafacçãodos modelos”, isto é, a destruição dos gêneros edos topoi  adotados pelo sistema poetológico, osquais acomodam o - e se acomodam ao - gostodo público. O exemplo de Pimenta são os sone-tos, e o fundamento de sua argumentação é ofato de que os gêneros reetem através de umgrau diverso de mimeses um grau diverso demitologia:

"A mitologia da tragédia, por exemplo, só poderealizar-se se a acção é levada a cabo, enquantoa mitologia da comédia requer a interrupção daacção num momento determinado". (pimenta,2003: 223).

Não se trata de negar o sentido das convençõesestéticas, como ocorrido em séculos passados,mas, sobretudo, afrmar o absurdo da conven-ção como valor intrínseco, a “mais valia” da arte.É um processo de destruição pela via do “silêncio

que ‘fala”, ao “mostrar tudo quanto por meio dosistema mimético-mitológico de representaçãohavia sido ocultado ou omitido” (Pimenta, 2003:225). Assim, no caso do soneto, os exemploscolhidos de escritores ocidentais, de alguns dalinhagem experimental portuguesa, inclusive,mostram que se reconhece a existência do sone-to, mas a recepção cega dessa convenção acabapor normalizar a potência da forma, esvaziadade seu conteúdo semântico. Portanto, conver-tido em mera estrutura. A contrafação, então,deforma essa estrutura e desnuda abertamente

esse tema um pouco mais adiante para demons-trar como a trajetória poética de António Aragãorevela esse forte questionamento do domínioretórico. Antes, vale ressaltar que essa reexão

sobre o lugar da poesia como expressão artísticaé componente essencial da criação enquanto li-bertação também no domínio estético.

Trata-se do sentido de liberdade proposto porAlberto Pimenta, no seu excelente ensaio O si-

lêncio dos poetas. Para Pimenta, a liberdade dapoesia (ou da arte literária) moderna consiste naemancipação da retórica e dos gêneros literá-rios preestabelecidos, isto é, na saída do círculovicioso do conceptual-imagem ou conceptual-

-palavra, em que a linguagem ganha vida ao se

"animar de todos os cinco sentidos animais, parase acrescentar dos sentidos ‘baixos’ que são o per-curso principal do corpo nessa vida. Tacto, gosto,olfacto: sentidos degradados por uma estética re-pressiva e sublimada". (pimenta, 1990: 203).

A abertura para o nível do gráfco e da lingua-gem visual ganha importância tanto para a cria-

ção quanto para crítica, pois contribuem para,no plano criativo, quebrar o encadeamentológico-discursivo em textos de baixa tensão crí-tica preferidos pela poetologia, isto é, pelo logosracional; no plano crítico, o normativismo perdeespaço para um exercício de recriação analíticado artístico. Nesse contexto, é necessário optarpela imagem: o essencial é saber ver. Ainda notexto “Acerca da poética ainda possível”, AlbertoPimenta conclui com uma afrmação que explicabem a multiplicidade de seus próprios trabalhos

poéticos, incluindo espetáculos, intervenções ouato poéticos, assim como sabemos também ser aprodução artística de António Aragão:

"(...) a nós interessa viver. Criar percursos poéticos

onde todos os estímulos sensoriais estejam pre-sentes e sejam vividos de dentro por cada um queos percorra. Realizar Sade, e esquecer Miranda. Mis-turar o "público" na ação: abolir o "público", abolira ordem exterior, a memória, o modelo. Abolir aeterna presença da distância, reiterar o contacto,

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37An T ónIO ARAgãO, OU A LIBERDADE DA Inv EnçãO

carga semântica é despersonalizada a qualquernível da construção – emoção.” (Aragão, 1970). Éo que defende o autor em “A arte como “campode possibilidades”, publicado originalmente em

1963 no  Jornal de Letras e Artes  e constitutivodos documentos teóricos da Po.ex   portuguesa:“Claro que o material sensível da obra de arte seapresenta normalmente sob um determinadopoder evocatório e numa possibilidade de idealque acrescenta o real.” (Aragão, 1981: 102). Maisadiante, no mesmo texto, o autor ressalta que odiálogo é um contínuo recomeço em que novasobras sobrepõem-se àquelas anteriores que per-deram carga emotiva e signifcante, isto é, que seconsumiram, desgastarem-se em sua novidade eoriginalidade. Assim procede a imaginação cria-dora, uma aventura artísticas que caminha sem-pre do improvável ao possível, diz ele.

Conquanto as recentes releituras realizadas nosmeios digitais atestem a vitalidade dessas poé-ticas, tomando-se o seu projeto enquanto sof-tware, acrescentaríamos que, passados quase 50da realização de algumas das obras de AntónioAragão, e mais tempo ainda das proposições

do texto acima, tais obras constituem ainda umdesafo para a recepção crítica. As produções deAntónio Aragão e seus companheiros de geraçãorequerem leituras que nos façam compreendermelhor o processo de autonomia da obra de arteem face também da apropriação que essas obrasfzeram da realidade da qual emergiram. CarlosMendes Sousa e Eunice Ribeiro, contextualizan-do a Poesia Experimental Portuguesa num exce-lente e denso ensaio, destacam as mutações e asquestões mais relevantes por que passa a Po.ex

ao longo do tempo. Enquanto modelo outro deescrita visual, nos anos 60/70, vinculado “explici-tamente a projectos de contestação e reformu-lação social não escapou a paradoxos e aporiasdecorrentes das suas próprias posições estéticase sociológicas.” (Sousa e Ribeiro, 2004: 38). Querdizer, inicialmente esteve interessada na expan-são de uma arte semiótica, renunciando à meraverbalidade, ou tentaram a integração da pala-vra, a exemplo das inspirações do minimalismo,da arte conceitual ou  pop art . E também se deti-

sua recepção acrítica. Acontece isso com o “so-neto soma 14x”, de Melo e Castro, com o “sone-to digital” ou “o soneto ecológico”, de FernandoAguiar (Cf. Pimenta, 2003: 230-31), ou ainda com

a “máquina poética” de Raymond Queneau, queretoma os sonetos de Mallarmé, reinserindo-osem nova confguração, a qual poderá abrir sem-pre novas rotas de leitura em novos contextos.

E aqui já podemos retornar aos comentáriosiniciais desse artigo sobre os processos de Antó-nio Aragão, no “poema vermelho e branco”. Namedida em que se nega uma signifcação aprio-rística (“a signifcação está no que não se desejanem pretende”), não se colocaria aí um questio-

namento desse gênero “poema”, com suas possí-veis intenções líricas ou questionamento dessehorizonte de expectativas que o gênero encerra?Um poema que não é dado ao consumo, um po-ema cuja proposta, inclusive para a recepção, seresolve numa atitude de ousadia? Ou de outromodo, um livro-poema que, pela sua forma inau-dita de composição editorial, confronta o leitorcom a tradição do códice livresco.

Algo semelhante já se dava com outro poemaanterior, “poema azul e branco”3 (1970), tambémcomposto em duas folhas, sendo uma capa--envelope, em que o poema acontece no planoverbal, e outra folha desdobrável, que institui aforma enquanto processo e como o conteúdodo próprio poema. É o que sugere esse objeto--poema no primeiro “verso”, se ainda é possívelreferir-se assim nessa nova poesia: “- a formaactiva mais a cor é a expressão do poema” (Ara-gão, 1970). De uma maneira um tanto quanto

didática, o poema reinsere o leitor ou fruidor nocontexto dessa nova poética, marcando a ruptu-ra com o gênero e familiarizando-o com o proce-dimento artístico adotado. Aqui a forma instituio lugar de produção e também o da ação, levan-do-se o fruidor pelos “versos” seguintes: “- ‘ler’ opoema é simplesmente dobrar e desdobrar; - a

3  v isualizar o poema no link: <http://po-ex.net/taxonomia/

materialidades/tridimensionais/antonio-aragao-poema-azul--e-branco> [Consultado em 28/08/2014].

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38 ROgéRIO BARBOSA DA SILv A

centes, apresentam-se como “software-poemas”capazes de produzir novos e inesperados sen-tidos, uma espécie de matriz. Isso porque suapoesia se contrapôs ao caráter normativo, aos

esquemas lógico-discursivos, colocando-se emcausa enquanto linguagem e assim as própriastradições artísticas. Conforme reete Aragão em“A escrita do olhar”, a invenção tem de inventar oseu próprio caminho, enfrentar as problemáticasdo próprio tempo, interrogando-se. Nesse tem-po, cuja escala de valores da tradição foi altera-da, o estatuto dos objetos de conhecimento setorna cada vez mais social e de difícil isolamen-to, e a técnica é impotente para explicar só porsi o surgimento de um novo estilo. E acrescenta:“a imagem tornou-se o procedimento estilísticopor excelência” (Aragão, 1985, p. 187). Esse pen-samento parece estar plenamente realizado emsuas electrografas4  (ou trabalhos xerográfcos)das décadas de 1980 e 90, por ele assim descritas:

"O texto, imagem mais palavra, é consequênciaduma operação global embora de situação com-plexa e pluriunívoca, globalidade cultural, históri-co-social, acto percepetivo que se congrega num

acto visual". (Aragão, 1985, p. 185-6)

Essas produções não só demonstram a quebrade fronteiras entre artes, porque fundem pala-vra e imagem como uma só construção visualque, segundo o poeta, permitem o desenrolarde movimentos ou espaços cinéticos. Por outrolado, compreende uma apropriação da técnicae das tecnologias de nossa civilização contem-porânea na contramão de sua produtividade,ou de sua utilização lúdica e humanizadora,

lembrada por Sousa & Ribeiro a propósito doexperimentalismo na década de 1990. E emboranão se apresente nesses trabalhos de AntónioAragão a dimensão de virtualidade da era dopixel, eles não deixam de constituir produçõesque antecipam questões próprias dessa nova

4 Cf. página de António Aragão disponível em <http://po-

-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades--alografas/antonio-aragao-biografia>

veram no questionamento de conceitos de auto-ria e originalidade em contraponto com os

"procedimentos citacionais da colagem ou com a

ideologia da  poesia encontrada e do  poema-objec-to ou objecto poemático, facilmente permeáveis àacusação de plágio (...)" (Sousa e Ribeiro, 2004: 39).

Entendemos aí a apropriação das linguagense objetos cotidianos feita por essas poéticas, eentendemos, com Michel Schneider, que toda aliteratura é na verdade um grande plágio, umavez que a

"própria memória é uma forma da imaginação,

uma ficção que reescreve os vestígios deixados,enquanto a imaginação, por mais criativa que seja,procede da lembrança daquilo que não se produ-ziu". (Schneider, 1990: 19).

Ao fnal dos anos 70, com a evolução dos meiostecnológicos e comunicativos, ainda segundoos autores, Po.ex  conhece formas incompatíveiscom o suporte tradicional do livro e ultrapas-sa a exploração quase exclusiva do poema. Os

anos 1980 vêm exigir dessa poesia o modelointerativo e a integração de outros códigos ede outras dimensões sensoriais, enquanto quenos anos 1990 a produção de imagens virtuaise a introdução do pixel como unidade mínimavisual “permite modifcar substancialmente osmodelos de percepção e de fruição estéticas edefnir uma nova poética transgressiva” (Sousae Ribeiro, 2004: 41). Tratar-se-ia de uma espéciede “transpoética”, na visão de Melo e Castro, quetransgride seus próprios limites. E no ponto de

vista de Sousa e Ribeiro, uma poética que renun-cia, a seu modo, “míticos receios e velhos vaticí-nios sobre a vocação autofágica das linguagense consequente devoração da arte pelo silêncio(Cf. Sousa e Ribeiro, 2004: 41).

Em contraponto com essa perspectiva, rapida-mente sintetizada, observamos que a poéticade António Aragão, enunciada nos textos aquicomentados ou evidenciada no seu conjunto,parece-nos constituir-se como uma poética emaberto, ou, para usar termo das tecnologias re-

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Fortemente imagético, esse poema dispõe os ele-mentos que confguram a especulação que esseser faz sobre si e sobre o espaço em que se insere.Observa-se que o sujeito não se especula intima-

mente apenas, há um desdobramento de dentropara fora, e vice-versa, em que essa cabeça quese volta ao entrar na cidade projeta do olhar umapaisagem estranha: imagens desentranhadas domar de anúncios, o desejo impaciente, a atençãodas mulheres, inclusive nas imagens de afetosmais íntimos, e a violência que aponta a pers-pectiva de uma literatura de resistência política,e que atravessa a linguagem nos cortes secos daestrutura sintagmática. Escrito em pleno períododa guerra colonial portuguesa, a violência suge-rida pelo fuzilamento referido pelo sujeito líricoremete explicitamente aos problemas inerentesao fazer poético nesse contexto de uma realida-de dura, denunciando-a a partir de uma possívelreferência ao fuzilamento de um soldado portu-guês num episódio distante da Primeira Guerra,em 1917. Parece-nos, então, que o elemento sub- jetivo da linguagem nessa poesia implica maisfortemente um “nós (fusão do eu imaginador edo tu, leitor que compartilha a emoção). É e não

é uma forma da despersonalização sugerida no“poema azul e branco”, a que nos referimos ante-riormente. Na sequência abaixo, ao que parece avoz que soa ao “microfone do gesto” se desperso-naliza na medida em que incorpora também umtu e um “ele” (o morto, o fuzilado) ao se modelizar,uma espécie de alterização que se dá num espa-ço tridimensional, e que para se realizar precisaarejar a própria linguagem:

(Aragão, 1968, p. 4)

era, iniciada nos fns do século XX e que avan-çou pelo século XXI.

E para não nos restringirmos às últimas produ-

ções de António Aragão, salientamos que essacompreensão da relação palavra-imagem comouma instância única e, portanto, de questiona-mento do estatuto mesmo da linguagem já estápresente em obras anteriores. Destacamos aquiuma de suas obras que nos parece importante eque carece ainda de estudos mais densos, que éMais exactamente p(r)o(bl)emas (1968).

O livro instaura já no título, e de maneira lúdi-ca, um jogo de ambiguidades entre poema eproblema no espaço de sua afrmação, isto é, aexploração da linguagem enquanto uma pro-blematização do poema, e este da linguagemcriativa. Esse nível de problematização fca evi-dente desde a epígrafe extraída de Jean-MarieAuzias, em que a estrutura sintagmática “je par-le, donc ne suis pas”, aparentemente incompleta,aparece deslocada e a sugerir uma contraditóriarelação entre o sujeito e sua expressão. A páginaem que se apresenta o índice nos leva a perce-

ber a natureza dos problemas, ou dos poemasque se seguirão: P(R)O(BL)EMAS, P(R)O(BL)EMASencontrados em livros, P(R)O(BL)EMAS encon-trados em jornais, P(R)O(BL)EMAS VISÍVEIS (aolongo do livro). Há o poema inicial, em que se in-dicia uma espécie de desnudamento do ser, ouuma perspectiva do “noticiar-me”, e logo depoiso primeiro “p(r)o(bl)ma:

(Aragão, 1968: 3)

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A disposição espacial e a inserção de elemen-tos gráfcos nessas duas páginas, embora aindaestejamos no domínio do verbal, já demonstraa predisposição do texto para incorporar o não

verbal como dimensão inerente à linguagem dopoema. O poema se faz na e com a problema-tização da linguagem. E com isso, o poema saido confnamento das regras retóricas, tal comodissemos no início desse artigo, questionandoo logos. Observamos que o uxo textual nãocompreende uma ordenação lógica, e o leitoré quem vai organizando depreendendo as pos-síveis questões postas por cada poema. E assim,podemos percorrer de maneira aleatória oulinear aquele uxo de “p(r)o(bl)emas” sugeridospelo índice do livro.

Como ultrapassaria o espaço de um artigo, nãoiremos percorrer todos os “p(r)o(bl)emas” dessaobra. Mas é intessante observar que na seção“P(R)O(BL)EMAS encontrados em livros”, ocor-rem os processos citacionais, conforme referi-dos por Sousa & Ribeiro (2004), na medida emque há uma incorporação de textos de obras dereferência, as quais são descontextualizadas e

possibilitam os processos de despragmatizaçãoda linguagem, tal como se vê em:

(Aragão, 1968, p. 36)

Esse trabalho realizado sobre a linguagem seapresenta de maneira evidente no segundo “p(r)o(bl)ema” de uma espécie de contrafacção entreo dito e o não dito:

(Aragão, 1968, p.7)

(Aragão, 1968, p.8 )

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41An T ónIO ARAgãO, OU A LIBERDADE DA Inv EnçãO

António Aragão – Amanhã petróleo, p. 48

Como se vê, a página se compõe na interposiçãoentre dois “textos”, fazendo com que um interfrana dimensão semântica do outro, produzindo-seassim uma tensão entre os signos, as páginas eas referências que se espraiam para o contextosocial. No primeiro exemplo, o texto em sua po-

tência lírica parece perturbado pela incisão dasimagens narradas pela televisão, ou pelo jornal.O petróleo, o progresso, os problemas cotidia-nos, as ameaças que turvam o diagnóstico, osdesejos e as esperanças do eu lírico. No segundoexemplo, a imagem se sobrepõe à imagem, e oprimeiro plano da página contribui para a seg-mentação da linguagem de no plano de fundo,em que pedaços de palavras guardam traços ain-da de legibilidade ou servem para se contraporem contra discurso à página de primeiro plano.

A última seção, “P(R)O(BL)EMAS VISÍVEIS (aolongo do livro)”, parece consistir numa espéciede síntese das anteriores, uma vez que retomaos “p(r)o(bl)emas” que implicam as percepçõesdo sujeito e a constituição de um coletivo queapreende os dados da realidade sob um olharproblematizador na constituição própria do po-ema. E por outro lado, repetem-se os processosde colagens e citações experimentados na se-gunda parte. Além disso, outros procedimentospassam a ser incorporados, como a inserção da

As colagens ocorrem ainda em “P(R)O(BL)EMASencontrados em jornais”, que nos parecem ga-nhar maior rendimento enquanto fusão de lin-guagens. Tal como ocorrem nos seus “poemas

encontrados”, que nos lembram os gestos dasvanguardas dadaístas, os poemas visuais dessaseção também percorrem os jornais e se apro-priam de segmentos linguísticos que funcionamtanto para a dimensão textual de uma lingua-gem despragmatizada tanto como desprag-matização da própria matriz visual. Lembra-nosaqui o que disse Alberto Pimenta acerca dosprocessos de “poemas encontrados”, cuja leitura“depende da distância a que o observador se en-contra, e isto signifca mobilidade semiótica” (Pi-

menta, 2003: 210). Nessa sequência, destacamoscomo exemplos as páginas fnais da seção, emque ocorre uma “contrafacção” no poema “ama-nhã petróleo”, conforme proposta de AlbertoPimenta, do jornal a partir do verbal num caso,e das imagens visuais (ambiguamente verbal enão verbal, conforme a perspectiva de leitura),no segundo caso:

António Aragão – Amanhã petróleo, p. 47

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42 ROgéRIO BARBOSA DA SILv A

Nesse poema, também realizado com uma pro-posição de uma linguagem cinética, já que seestrutura como uma montagem de fotogramas,o foco parece ser o plano de realização da histó-

ria, que pode ou não vir, conforme se lê em seuplano verbal. É como se o fato de a história exis-tir, comporta também a sua não existência, algoinerente ao seu “campo de possibilidades”. A pro-posta também nos remete ao poema-processobrasileiro, na medida em que é também umexemplo de antiestilo. A letra, os caracteres ousímbolos utilizados – há uma ambiguidade queos atravessa - podem funcionar a partir de regrasmuito diferentes da sintaxe verbal, subordinan-do-se às regras da percepção ótica que presidemà “leitura” do desenho ou da pintura.

Enfm, como viemos argumentando ao longodesse artigo, a poesia de António Aragão con-templa uma experiência importantíssima noplano das poéticas de invenção, de propensãovanguardista, e que é também fundamental paracompreendermos as novas poéticas que hoje sedesenvolvem no meio eletrônico. Do ponto devista teórico, sua poética contribui para a teoria

literária, ao evidenciar os aspectos semióticospresentes na criação artística. Além disso, trazimportantes subsídios para as reexões em tor-no das intermidialidades ou das escritas híbridasde hoje, feitas com auxílio das mídias eletrônicas.Para essas criações tecnológicas, a poesia, ou aarte, de António Aragão exemplifca o fato deque a invenção poética é uma abertura de cami-nho e, acima de tudo, um exercício crítico que sefaz com a criação de novas estesias e consciênciacrítica frente às questões sociais e tecnológicas

que são contemporâneas ao artista.

linguagem das histórias em quadrinhos (bandadesenhada) expressas nos balões, a inserçãode caracteres que insinuam pedaços de fontestipográfcas ou símbolos reimaginados, a incor-

poração de modelos de documentos da buro-cracia cotidiana, com interferências de escritamanual do poeta a induzir-lhes uma dimensãopoética, entre outros elementos. Eis os poemas:

António Aragão - istória: eu dou, tu dás, nós nós

O poema acima é interessante porque incorporalinguagens distintas, como a dos quadrinhos e acinética, já que comporta uma narrativa visual. Otítulo parece evocar um jogo entre “estória” e “his-tória”, com a supressão do h. A grande manchacomposta por caracteres tipográfcos ou dese-nhos conjuga-se com as mensagens nos balõesou fora deles, e nos faz retomar os elementoslançados ou temas desenvolvidos ao longo dos

vários poemas do livro, conforme o título da se-ção. Por outro lado, parece também evocar e de-monstrar a partir dos signos visuais as interaçõesentre o poeta/texto/leitor/realidade ou (h)istória:“eu dou, tu dás, nós nós”. Duplicidade novamen-te, nós e os nós da linguagem? E é conforme esse jogo interativo que o segundo exemplo abaixoparece convocar novamente o leitor:

António Aragão - istória: vem

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43An T ónIO ARAgãO, OU A LIBERDADE DA Inv EnçãO

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