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5/22/2018 ci-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/ci55cf94f8550346f57ba5a5e2 1/512 O Céu e o Inferno Sem título-1 13/04/05, 16:35 1

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  • O Cu e oInferno

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:351

  • O Cu e o IP or mim mesmo juro disse o Senhor Deus

    que no quero a morte do

    mpio, seno que ele se

    converta, que deixe o mau

    caminho e que viva.

    (EZEQUIEL, 33:11.)

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:352

  • e o Inferno

    Por

    ALLAN KARDEC

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA

    OU

    A JUSTIA DIVINASEGUNDO O ESPIRITISMO

    EXAME COMPARADO DAS DOUTRINAS SOBRE A PASSAGEM DA VIDA CORPO-RAL VIDA ESPIRITUAL, SOBRE AS PENALIDADES E RECOMPENSAS FUTURAS,SOBRE OS ANJOS E DEMNIOS, SOBRE AS PENAS, ETC., SEGUIDO DE NUME-ROSOS EXEMPLOS ACERCA DA SITUAO REAL DA ALMA DURANTE E DEPOISDA MORTE.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:353

  • Sem ttulo-1 13/04/05, 16:354

  • Sumrio

    PRIMEIRA PARTE

    Doutrina

    CAPTULO I O PORVIR E O NADA .................................. 11

    CAPTULO II TEMOR DA MORTE.................................... 22Causas do temor da morte ............................................ 22Por que os espritas no temem a morte ........................ 29

    CAPTULO III O CU ...................................................... 31

    CAPTULO IV O INFERNO .............................................. 47Intuio das penas futuras ............................................ 47O inferno cristo imitado do inferno pago .................... 48Os limbos ...................................................................... 52Quadro do inferno pago ............................................... 53Esboo do inferno cristo .............................................. 62

    CAPTULO V O PURGATRIO ......................................... 74

    CAPTULO VI DOUTRINA DAS PENAS ETERNAS ............. 81Origem da doutrina das penas eternas .......................... 81Argumentos a favor das penas eternas .......................... 88Impossibilidade material das penas eternas ................... 95

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:355

  • 6 O CU E O INFERNO

    A doutrina das penas eternas fez sua poca ................ 98Ezequiel contra a eternidade das penase o pecado original ...................................................... 100

    CAPTULO VII AS PENAS FUTURAS SEGUNDO OESPIRITISMO .............................................................. 103A carne fraca ............................................................ 103Princpios da Doutrina Esprita sobre aspenas futuras.............................................................. 107Cdigo penal da vida futura......................................... 108

    CAPTULO VIII OS ANJOS ............................................ 122Os anjos segundo a Igreja ........................................... 122Refutao .................................................................... 128Os anjos segundo o Espiritismo................................... 135

    CAPTULO IX OS DEMNIOS ....................................... 138Origem da crena nos demnios .................................. 138Os demnios segundo a Igreja ..................................... 143Os demnios segundo o Espiritismo ............................ 158

    CAPTULO X INTERVENO DOS DEMNIOS NASMODERNAS MANIFESTAES .................................... 162

    CAPTULO XI DA PROIBIO DE EVOCAR OSMORTOS ..................................................................... 186

    SEGUNDA PARTE

    Exemplos

    CAPTULO I O PASSAMENTO ....................................... 201

    CAPTULO II ESPRITOS FELIZES................................. 212Sanson ....................................................................... 212A morte do justo .......................................................... 224

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:356

  • 7SUMRIO

    Jobard ........................................................................ 225Samuel Filipe .............................................................. 232Van Durst ................................................................... 237Sixdeniers ................................................................... 239O doutor Demeure....................................................... 243A viva Foulon, nascida Wollis .................................... 250Um mdico russo ........................................................ 260Bernardin ................................................................... 265A condessa Paula ........................................................ 266Jean Reynaud ............................................................. 271Antoine Costeau .......................................................... 276A Srta. Emma ............................................................. 281O doutor Vignal ........................................................... 282Victor Lebufle .............................................................. 286A Sra. Anais Gourdon ................................................. 288Maurice Gontran ......................................................... 290

    CAPTULO III ESPRITOS EM CONDIESMEDIANAS .................................................................. 295Joseph Br .................................................................. 295Sra. Hlne Michel ...................................................... 297O marqus de Saint-Paul ............................................ 299Sr. Cardon, mdico ...................................................... 301Eric Stanislas ............................................................. 308Sra. Anna Belleville ..................................................... 310

    CAPTULO IV ESPRITOS SOFREDORES ....................... 317O castigo ..................................................................... 317Novel........................................................................... 319Auguste Michel ........................................................... 321Exprobraes de um bomio ........................................ 324Lisbeth ........................................................................ 326Prncipe Ouran ............................................................ 330Pascal Lavic ................................................................ 333Ferdinand Bertin ......................................................... 336Franois Riquier ......................................................... 341Claire .......................................................................... 343

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:357

  • 8 O CU E O INFERNO

    CAPTULO V SUICIDAS................................................ 355O suicida da Samaritana ............................................. 355

    O pai e o conscrito ...................................................... 359

    Franois-Simon Louvet ............................................... 362

    Me e filho .................................................................. 364

    Duplo suicdio, por amor e por dever ........................... 368

    Lus e a pespontadeira de botinas ................................ 372

    Um ateu ...................................................................... 376

    Flicen ........................................................................ 384

    Antoine Bell ................................................................ 389

    CAPTULO VI CRIMINOSOS ARREPENDIDOS ................ 395Verger ......................................................................... 395

    Lemaire ....................................................................... 400

    Benoist ....................................................................... 404

    O Esprito de Castelnaudary ........................................ 408

    Jacques Latour ........................................................... 417

    CAPTULO VII ESPRITOS ENDURECIDOS .................... 435Lapommeray ............................................................... 435

    Angle, nulidade sobre a Terra .................................... 442

    Um Esprito aborrecido ............................................... 446

    A rainha de Oude ........................................................ 449

    Xumne ...................................................................... 452

    CAPTULO VIII EXPIAES TERRESTRES .................... 455Marcel, o menino do n 4............................................. 455

    Szymel Slizgol ............................................................. 459

    Julienne-Marie, a mendiga .......................................... 466

    Max, o mendigo ........................................................... 472

    Histria de um criado .................................................. 476

    Antonio B... ................................................................. 479

    Letil ............................................................................ 484

    Um sbio ambicioso .................................................... 487

    Charles de Saint-G..., idiota ........................................ 489

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:358

  • 9SUMRIO

    Adlaide-Marguerite Gosse .......................................... 496

    Clara Rivier ................................................................. 498

    Franoise Vernhes ....................................................... 502

    Anna Bitter ................................................................. 504

    Joseph Matre, o cego .................................................. 508

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:359

  • P R I M E I R A P A R T E

    Doutrina

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3510

  • 1. Vivemos, pensamos e operamos eis o que positivo. E

    que morremos, no menos certo.

    Mas, deixando a Terra, para onde vamos? Que sere-

    mos aps a morte? Estaremos melhor ou pior? Existiremos

    ou no? Ser ou no ser, tal a alternativa. Para sempre ou

    para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos eternamen-

    te, ou tudo se aniquilar de vez? uma tese, essa, que se

    impe.

    Todo homem experimenta a necessidade de viver, de

    gozar, de amar e ser feliz. Dizei ao moribundo que ele viver

    ainda; que a sua hora retardada; dizei-lhe sobretudo que

    ser mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu

    corao rejubilar.

    Mas, de que serviriam essas aspiraes de felicidade,

    se um leve sopro pudesse dissip-las?

    C A P T U L O I

    O porvir e o nada

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3511

  • 12 O CU E O INFERNO

    Haver algo de mais desesperador do que esse pensa-

    mento da destruio absoluta? Afeies caras, inteligncia,

    progresso, saber laboriosamente adquiridos, tudo despe-

    daado, tudo perdido! De nada nos serviria, portanto, qual-

    quer esforo no sofreamento das paixes, de fadiga para

    nos ilustrarmos, de devotamento causa do progresso,

    desde que de tudo isso nada aproveitssemos, predomi-

    nando o pensamento de que amanh mesmo, talvez, de

    nada nos serviria tudo isso. Se assim fora, a sorte do ho-

    mem seria cem vezes pior que a do bruto, porque este vive

    inteiramente do presente na satisfao dos seus apetites

    materiais, sem aspirao para o futuro. Diz-nos uma se-

    creta intuio, porm, que isso no possvel.

    2. Pela crena em o nada, o homem concentra todos os

    seus pensamentos, forosamente, na vida presente.

    Logicamente no se explicaria a preocupao de um

    futuro que se no espera.

    Esta preocupao exclusiva do presente conduz o ho-

    mem a pensar em si, de preferncia a tudo: , pois, o mais

    poderoso estimulo ao egosmo, e o incrdulo conseqente

    quando chega seguinte concluso: Gozemos enquanto aqui

    estamos; gozemos o mais possvel, pois que conosco tudo

    se acaba; gozemos depressa, porque no sabemos quanto

    tempo existiremos.

    Ainda conseqente esta outra concluso, alis mais

    grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos

    de qualquer modo, cada qual por si; a felicidade neste mundo

    do mais astuto.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3512

  • 13O PORVIR E O NADA

    E se o respeito humano contm a alguns seres, que

    freio haver para os que nada temem?

    Acreditam estes ltimos que as leis humanas no atin-

    gem seno os ineptos e assim empregam todo o seu enge-

    nho no melhor meio de a elas se esquivarem.

    Se h doutrina insensata e anti-social, , seguramente,

    o niilismo que rompe os verdadeiros laos de solidariedade

    e fraternidade, em que se fundam as relaes sociais.

    3. Suponhamos que, por uma circunstncia qualquer, todo

    um povo adquire a certeza de que em oito dias, num ms,

    ou num ano ser aniquilado; que nem um s indivduo lhe

    sobreviver, como de sua existncia no sobreviver nem

    um s trao: Que far esse povo condenado, aguardando o

    extermnio?

    Trabalhar pela causa do seu progresso, da sua ins-

    truo? Entregar-se- ao trabalho para viver? Respeitar

    os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-

    -se- a qualquer lei ou autoridade por mais legtima que

    seja, mesmo a paterna?

    Haver para ele, nessa emergncia, qualquer dever?

    Certo que no. Pois bem! O que se no d coletivamen-

    te, a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamen-

    te, individualmente.

    E se as conseqncias no so desastrosas tanto quan-

    to poderiam ser, , em primeiro lugar, porque na maioria dos

    incrdulos h mais jactncia que verdadeira incredulidade,

    mais dvida que convico possuindo eles mais medo do

    nada do que pretendem aparentar o qualificativo de es-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3513

  • 14 O CU E O INFERNO

    pritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade e o amor-prprio; em

    segundo lugar, porque os incrdulos absolutos se contam

    por nfima minoria, e sentem a seu pesar os ascendentes

    da opinio contrria, mantidos por uma fora material.

    Torne-se, no obstante, absoluta a incredulidade da

    maioria, e a sociedade entrar em dissoluo.

    Eis ao que tende a propagao da doutrina niilista.1

    Fossem, porm, quais fossem as suas conseqncias,

    uma vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso

    aceit-la, e nem sistemas contrrios, nem a idia dos males

    resultantes poderiam obstar-lhe a existncia. Foroso di-

    zer que, a despeito dos melhores esforos da religio, o cep-

    ticismo, a dvida, a indiferena ganham terreno dia a dia.

    1 Um moo de dezoito anos, afetado de uma enfermidade do corao,foi declarado incurvel. A Cincia havia dito: Pode morrer dentro deoito dias ou de dois anos, mas no ir alm. Sabendo-o, o moopara logo abandonou os estudos e entregou-se a excessos de todoo gnero.

    Quando se lhe ponderava o perigo de uma vida desregrada, res-pondia: Que me importa, se no tenho mais de dois anos de vida?De que me serviria fatigar o esprito? Gozo o pouco que me resta equero divertir-me at o fim. Eis a conseqncia lgica do niilismo.

    Se este moo fora esprita, teria dito: A morte s destruir ocorpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Esprito viver.Serei na vida futura aquilo que eu prprio houver feito de mimnesta vida; do que nela puder adquirir em qualidades morais e in-telectuais nada perderei, porque ser outro tanto de ganho para omeu adiantamento; toda a imperfeio de que me livrar ser umpasso a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidadedepende da utilidade ou inutilidade da presente existncia. por-tanto de meu interesse aproveitar o pouco tempo que me resta, eevitar tudo o que possa diminuir-me as foras.

    Qual destas doutrinas prefervel?

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3514

  • 15O PORVIR E O NADA

    Mas, se a religio se mostra impotente para sustar a

    incredulidade, que lhe falta alguma coisa na luta. Se por

    outro lado a religio se condenasse imobilidade, estaria,

    em dado tempo, dissolvida.

    O que lhe falta neste sculo de positivismo, em que se

    procura compreender antes de crer, , sem dvida, a san-

    o de suas doutrinas por fatos positivos, assim como a

    concordncia das mesmas com os dados positivos da Cin-

    cia. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro,

    preciso optar entre a evidncia e a f cega.

    4. nestas circunstncias que o Espiritismo vem opor um

    dique difuso da incredulidade, no somente pelo racio-

    cnio, no somente pela perspectiva dos perigos que ela

    acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visveis e tan-

    gveis a alma e a vida futura.

    Todos somos livres na escolha das nossas crenas; po-

    demos crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles

    que procuram fazer prevalecer no esprito das massas, da

    juventude principalmente, a negao do futuro, apoiando-se

    na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posi-

    o, semeiam na sociedade germens de perturbao e dis-

    soluo, incorrendo em grande responsabilidade.

    5. H uma doutrina que se defende da pecha de materialis-

    ta porque admite a existncia de um princpio inteligente

    fora da matria: a da absoro no Todo Universal.

    Segundo esta doutrina, cada indivduo assimila ao

    nascer uma parcela desse princpio, que constitui sua alma,

    e d-lhe vida, inteligncia e sentimento.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3515

  • 16 O CU E O INFERNO

    Pela morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se

    no infinito, qual gota dgua no oceano.

    Incontestavelmente esta doutrina um passo adianta-

    do sobre o puro materialismo, visto como admite alguma

    coisa, quando este nada admite. As conseqncias, porm,

    so exatamente as mesmas.

    Ser o homem imerso em o nada ou no reservatrio co-

    mum, para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a

    sua individualidade, como se no existisse; as relaes

    sociais nem por isso deixam de romper-se, e para sempre.

    O que lhe essencial a conservao do seu eu; sem

    este, que lhe importa ou no subsistir?

    O futuro afigura-se-lhe sempre nulo, e a vida presente

    a nica coisa que o interessa e preocupa.

    Sob o ponto de vista das conseqncias morais, esta

    doutrina , pois, to insensata, to desesperadora, to sub-

    versiva como o materialismo propriamente dito.

    6. Pode-se, alm disso, fazer esta objeo: todas as gotas

    dgua tomadas ao oceano se assemelham e possuem idn-

    ticas propriedades como partes de um mesmo todo; por

    que, pois, as almas tomadas ao grande oceano da inteli-

    gncia universal to pouco se assemelham? Por que o g-

    nio e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vcios

    mais ignbeis? Por que a bondade, a doura, a mansuetu-

    de ao lado da maldade, da crueldade, da barbaria? Como

    podem ser to diferentes entre si as partes de um mesmo

    todo homogneo? Dir-se- que a educao que a modifi-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3516

  • 17O PORVIR E O NADA

    ca? Neste caso donde vm as qualidades inatas, as inteli-

    gncias precoces, os bons e maus instintos independentes

    de toda a educao e tantas vezes em desarmonia com o

    meio no qual se desenvolvem?

    No resta dvida de que a educao modifica as quali-

    dades intelectuais e morais da alma; mas aqui ocorre uma

    outra dificuldade: Quem d a esta a educao para faz-la

    progredir? Outras almas que por sua origem comum no

    devem ser mais adiantadas. Alm disso, reentrando a alma

    no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido du-

    rante a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Da se

    infere que esse Todo se encontraria, pela continuao, pro-

    fundamente modificado e melhorado. Assim, como se ex-

    plica sarem incessantemente desse Todo almas ignorantes

    e perversas?

    7. Nesta doutrina, a fonte universal de inteligncia que abas-

    tece as almas humanas independente da Divindade; no

    precisamente o pantesmo.

    O pantesmo propriamente dito considera o princpio

    universal de vida e de inteligncia como constituindo a Di-

    vindade. Deus concomitantemente Esprito e matria;

    todos os seres, todos os corpos da Natureza compem a

    Divindade, da qual so as molculas e os elementos cons-

    titutivos; Deus o conjunto de todas as inteligncias reu-

    nidas; cada indivduo, sendo uma parte do todo, Deus ele

    prprio; nenhum ser superior e independente rege o con-

    junto; o Universo uma imensa repblica sem chefe, ou

    antes, onde cada qual chefe com poder absoluto.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3517

  • 18 O CU E O INFERNO

    8. A este sistema podem opor-se inumerveis objees, das

    quais so estas as principais: no se podendo conceber di-

    vindade sem infinita perfeio, pergunta-se como um todo

    perfeito pode ser formado de partes to imperfeitas, tendo

    necessidade de progredir? Devendo cada parte ser subme-

    tida lei do progresso, fora convir que o prprio Deus

    deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria

    ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito.

    E como pde um ser imperfeito, formado de idias to

    divergentes, conceber leis to harmnicas, to admirveis

    de unidade, de sabedoria e previdncia quais as que regem

    o Universo? Se todas as almas so pores da Divindade,

    todos concorreram para as leis da Natureza; como sucede,

    pois, que elas murmurem sem cessar contra essas leis que

    so obra sua? Uma teoria no pode ser aceita como verda-

    deira seno com a clusula de satisfazer a razo e dar conta

    de todos os fatos que abrange; se um s fato lhe trouxer um

    desmentido, que no contm a verdade absoluta.

    9. Sob o ponto de vista moral, as conseqncias so igual-

    mente ilgicas. Em primeiro lugar para as almas, tal como

    no sistema precedente, a absoro num todo e a perda da

    individualidade. Dado que se admita, consoante a opinio

    de alguns pantestas, que as almas conservem essa indi-

    vidualidade, Deus deixaria de ter vontade nica para ser

    um composto de mirades de vontades divergentes.

    Alm disso, sendo cada alma parte integrante da Di-

    vindade, deixa de ser dominada por um poder superior; no

    incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus;

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3518

  • 19O PORVIR E O NADA

    soberana, no tendo interesse algum na prtica do bem,

    ela pode praticar o mal impunemente.

    10. Demais, estes sistemas no satisfazem nem a razo

    nem a aspirao humanas; deles decorrem dificuldades in-

    superveis, pois so impotentes para resolver todas as ques-

    tes de fato que suscitam. O homem tem, pois, trs alterna-

    tivas: o nada, a absoro ou a individualidade da alma antes

    e depois da morte.

    para esta ltima crena que a lgica nos impele irre-

    sistivelmente, crena que tem formado a base de todas as

    religies desde que o mundo existe.

    E se a lgica nos conduz individualidade da alma,

    tambm nos aponta esta outra conseqncia: a sorte de

    cada alma deve depender das suas qualidades pessoais,

    pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selva-

    gem, como a do homem perverso, estivesse no nvel da do

    sbio, do homem de bem. Segundo os princpios de justi-

    a, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos,

    mas para haver essa responsabilidade, preciso que elas

    sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arb-

    trio h fatalidade, e com a fatalidade no coexistiria a

    responsabilidade.

    11. Todas as religies admitiram igualmente o princpio da

    felicidade ou infelicidade da alma aps a morte, ou, por

    outra, as penas e gozos futuros, que se resumem na doutri-

    na do cu e do inferno encontrada em toda parte.

    No que elas diferem essencialmente, quanto natu-

    reza dessas penas e gozos, principalmente sobre as condi-

    es determinantes de umas e de outras.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3519

  • 20 O CU E O INFERNO

    Da os pontos de f contraditrios dando origem a cul-

    tos diferentes, e os deveres impostos por estes, consecuti-

    vamente, para honrar a Deus e alcanar por esse meio o

    cu, evitando o inferno.

    12. Todas as religies houveram de ser em sua origem rela-

    tivas ao grau de adiantamento moral e intelectual dos ho-

    mens: estes, assaz materializados para compreenderem o

    mrito das coisas puramente espirituais, fizeram consistir

    a maior parte dos deveres religiosos no cumprimento de

    frmulas exteriores.

    Por muito tempo essas frmulas lhes satisfizeram a

    razo; porm, mais tarde, porque se fizesse a luz em seu

    esprito, sentindo o vcuo dessas frmulas, uma vez que a

    religio no o preenchia, abandonaram-na e tornaram-se

    filsofos.

    13. Se a religio, apropriada em comeo aos conhecimentos

    limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movi-

    mento progressivo do esprito humano, no haveria incrdu-

    los, porque est na prpria natureza do homem a necessida-

    de de crer, e ele crer desde que se lhe d o pbulo espiritual

    de harmonia com as suas necessidades intelectuais.

    O homem quer saber donde veio e para onde vai. Mos-

    trando-se-lhe um fim que no corresponde s suas aspira-

    es nem idia que ele faz de Deus, tampouco aos dados

    positivos que lhe fornece a Cincia; impondo-se-lhe, ade-

    mais, para atingir o seu desiderato, condies cuja utilida-

    de sua razo contesta, ele tudo rejeita; o materialismo e o

    pantesmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3520

  • 21O PORVIR E O NADA

    menos se raciocina e se discute, falsamente embora. E h

    razo, porque antes raciocinar em falso do que no racioci-

    nar absolutamente.

    Apresente-se-lhe, porm, um futuro condicionalmente

    lgico, digno em tudo da grandeza, da justia e da infinita

    bondade de Deus, e ele repudiar o materialismo e o

    pantesmo, cujo vcuo sente em seu foro ntimo, e que acei-

    tar falta de melhor crena.

    O Espiritismo d coisa melhor; eis por que acolhido

    pressurosamente por todos os atormentados da dvida, os

    que no encontram nem nas crenas nem nas filosofias

    vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lgica

    do raciocnio e a sano dos fatos, e por isso que inutil-

    mente o tm combatido.

    14. Instintivamente tem o homem a crena no futuro, mas

    no possuindo at agora nenhuma base certa para defini-lo,

    a sua imaginao fantasiou os sistemas que originaram a

    diversidade de crenas. A Doutrina Esprita sobre o futuro

    no sendo uma obra de imaginao mais ou menos ar-

    quitetada engenhosamente, porm o resultado da observa-

    o de fatos materiais que se desdobram hoje nossa vista

    congraar, como j est acontecendo, as opinies di-

    vergentes ou flutuantes e trar gradualmente, pela fora

    das coisas, a unidade de crenas sobre esse ponto, no j

    baseada em simples hiptese, mas na certeza. A unificao

    feita relativamente sorte futura das almas ser o primeiro

    ponto de contacto dos diversos cultos, um passo imenso para

    a tolerncia religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a

    completa fuso.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3521

  • CAUSAS DO TEMOR DA MORTE

    1. O homem, seja qual for a escala de sua posio social,

    desde selvagem tem o sentimento inato do futuro; diz-lhe a

    intuio que a morte no a ltima fase da existncia e

    que aqueles cuja perda lamentamos no esto irremissivel-

    mente perdidos.

    A crena da imortalidade intuitiva e muito mais ge-

    neralizada do que a do nada. Entretanto, a maior parte dos

    que nela crem apresentam-se-nos possudos de grande

    amor s coisas terrenas e temerosos da morte! Por qu?

    2. Este temor um efeito da sabedoria da Providncia e

    uma conseqncia do instinto de conservao comum a

    todos os viventes. Ele necessrio enquanto no se est

    suficientemente esclarecido sobre as condies da vida futu-

    C A P T U L O I I

    Temor da morte

    Causas do temor da morte

    Razo por que no a temem os espritas

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3522

  • 23TEMOR DA MOR TE

    ra, como contrapeso tendncia que, sem esse freio, nos

    levaria a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o

    trabalho terreno que deve servir ao nosso prprio adianta-

    mento.

    Assim que, nos povos primitivos, o futuro uma vaga

    intuio, mais tarde tornada simples esperana e, final-

    mente, uma certeza apenas atenuada por secreto apego

    vida corporal.

    3. proporo que o homem compreende melhor a vida

    futura, o temor da morte diminui; uma vez esclarecida a

    sua misso terrena, aguarda-lhe o fim calma, resignada e

    serenamente. A certeza da vida futura d-lhe outro curso

    s idias, outro fito ao trabalho; antes dela nada que se

    no prenda ao presente; depois dela tudo pelo futuro sem

    desprezo do presente, porque sabe que aquele depende da

    boa ou da m direo deste.

    A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte,

    de reatar as relaes que tivera na Terra, de no perder um

    s fruto do seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente

    em inteligncia, perfeio, d-lhe pacincia para esperar e

    coragem para suportar as fadigas transitrias da vida ter-

    restre. A solidariedade entre vivos e mortos faz-lhe com-

    preender a que deve existir na Terra, onde a fraternidade e

    a caridade tm desde ento um fim e uma razo de ser, no

    presente como no futuro.

    4. Para libertar-se do temor da morte mister poder encar-la

    sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto , ter penetrado

    pelo pensamento no mundo espiritual, fazendo dele uma

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3523

  • 24 O CU E O INFERNO

    idia to exata quanto possvel, o que denota da parte do

    Esprito encarnado um tal ou qual desenvolvimento e apti-

    do para desprender-se da matria.

    No Esprito atrasado a vida material prevalece sobre a

    espiritual. Apegando-se s aparncias, o homem no dis-

    tingue a vida alm do corpo, esteja embora na alma a vida

    real; aniquilado aquele, tudo se lhe afigura perdido,

    desesperador.

    Se, ao contrrio, concentrarmos o pensamento, no

    no corpo, mas na alma, fonte da vida, ser real a tudo sobre-

    vivente, lastimaremos menos a perda do corpo, antes fonte

    de misrias e dores. Para isso, porm, necessita o Esprito

    de uma fora s adquirvel na madureza.

    O temor da morte decorre, portanto, da noo insufi-

    ciente da vida futura, embora denote tambm a necessida-

    de de viver e o receio da destruio total; igualmente o esti-

    mula secreto anseio pela sobrevivncia da alma, velado ainda

    pela incerteza.

    Esse temor decresce, proporo que a certeza au-

    menta, e desaparece quando esta completa.

    Eis a o lado providencial da questo. Ao homem no

    suficientemente esclarecido, cuja razo mal pudesse su-

    portar a perspectiva muito positiva e sedutora de um futu-

    ro melhor, prudente seria no o deslumbrar com tal idia,

    desde que por ela pudesse negligenciar o presente, neces-

    srio ao seu adiantamento material e intelectual.

    5. Este estado de coisas entretido e prolongado por cau-

    sas puramente humanas, que o progresso far desapare-

    cer. A primeira a feio com que se insinua a vida futura,

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3524

  • 25TEMOR DA MOR TE

    feio que poderia contentar as inteligncias pouco desen-

    volvidas, mas que no conseguiria satisfazer a razo

    esclarecida dos pensadores refletidos. Assim, dizem estes:

    Desde que nos apresentam como verdades absolutas prin-

    cpios contestados pela lgica e pelos dados positivos da

    Cincia, que eles no so verdades. Da, a incredulidade

    de uns e a crena dbia de um grande nmero.

    A vida futura -lhes uma idia vaga, antes uma proba-

    bilidade do que certeza absoluta; acreditam, desejariam que

    assim fosse, mas apesar disso exclamam: Se todavia as-

    sim no for! O presente positivo, ocupemo-nos dele pri-

    meiro, que o futuro por sua vez vir.

    E depois, acrescentam, definitivamente que a alma?

    Um ponto, um tomo, uma fasca, uma chama? Como se

    sente, v ou percebe? que a alma no lhes parece uma

    realidade efetiva, mas uma abstrao.

    Os entes que lhes so caros, reduzidos ao estado de

    tomos no seu modo de pensar, esto perdidos, e no tm

    mais a seus olhos as qualidades pelas quais se lhes fizeram

    amados; no podem compreender o amor de uma fasca

    nem o que a ela possamos ter. Quanto a si mesmos, ficam

    mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se trans-

    formarem em mnadas. Justifica-se assim a preferncia

    ao positivismo da vida terrestre, que algo possui de mais

    substancial.

    considervel o nmero dos dominados por este

    pensamento.

    6. Outra causa de apego s coisas terrenas, mesmo nos

    que mais firmemente crem na vida futura, a impresso

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3525

  • 26 O CU E O INFERNO

    do ensino que relativamente a ela se lhes h dado desde a

    infncia. Convenhamos que o quadro pela religio esboa-

    do, sobre o assunto, nada sedutor e ainda menos

    consolatrio.

    De um lado, contores de condenados a expiarem em

    torturas e chamas eternas os erros de uma vida efmera e

    passageira. Os sculos sucedem-se aos sculos e no h

    para tais desgraados sequer o lenitivo de uma esperana

    e, o que mais atroz , no lhes aproveita o arrependimento.

    De outro lado, as almas combalidas e aflitas do purgatrio

    aguardam a intercesso dos vivos que oraro ou faro orar

    por elas, sem nada fazerem de esforo prprio para

    progredirem.

    Estas duas categorias compem a maioria imensa da

    populao de alm-tmulo. Acima delas, paira a limitada

    classe dos eleitos, gozando, por toda a eternidade, da

    beatitude contemplativa. Esta inutilidade eterna, prefervel

    sem dvida ao nada, no deixa de ser de uma fastidiosa

    monotonia. por isso que se v, nas figuras que retratam

    os bem-aventurados, figuras anglicas onde mais

    transparece o tdio que a verdadeira felicidade.

    Este estado no satisfaz nem as aspiraes nem a ins-

    tintiva idia de progresso, nica que se afigura compatvel

    com a felicidade absoluta. Custa crer que, s por haver re-

    cebido o batismo, o selvagem ignorante de senso moral

    obtuso , esteja ao mesmo nvel do homem que atingiu,

    aps longos anos de trabalho, o mais alto grau de cincia e

    moralidade prticas. Menos concebvel ainda que a crian-

    a falecida em tenra idade, antes de ter conscincia de seus

    atos, goze dos mesmos privilgios somente por fora de uma

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3526

  • 27TEMOR DA MOR TE

    cerimnia na qual a sua vontade no teve parte alguma.

    Estes raciocnios no deixam de preocupar os mais fervo-

    rosos crentes, por pouco que meditem.

    7. No dependendo a felicidade futura do trabalho progres-

    sivo na Terra, a facilidade com que se acredita adquirir essa

    felicidade, por meio de algumas prticas exteriores, e a pos-

    sibilidade at de a comprar a dinheiro, sem regenerao de

    carter e costumes, do aos gozos do mundo o melhor valor.

    Mais de um crente considera, em seu foro ntimo, que

    assegurado o seu futuro pelo preenchimento de certas fr-

    mulas ou por ddivas pstumas, que de nada o privam,

    seria suprfluo impor-se sacrifcios ou quaisquer incmo-

    dos por outrem, uma vez que se consegue a salvao traba-

    lhando cada qual por si.

    Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mes-

    mo muitas e honrosas excees; mas no se poderia con-

    testar que assim pensa o maior nmero, sobretudo das

    massas pouco esclarecidas, e que a idia que fazem das

    condies de felicidade no outro mundo no entretenha o

    apego aos bens deste, acorooando o egosmo.

    8. Acrescentemos ainda a circunstncia de tudo nas usanas

    concorrer para lamentar a perda da vida terrestre e temer a

    passagem da Terra ao cu. A morte rodeada de cerimnias

    lgubres, mais prprias a infundirem terror do que a pro-

    vocarem a esperana. Se descrevem a morte, sempre com

    aspecto repelente e nunca como sono de transio; todos

    os seus emblemas lembram a destruio do corpo, mos-

    trando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3527

  • 28 O CU E O INFERNO

    desembaraando-se radiosa dos grilhes terrestres. A par-

    tida para esse mundo mais feliz s se faz acompanhar do

    lamento dos sobreviventes, como se imensa desgraa atin-

    gira os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se

    jamais devessem rev-los. Lastima-se por eles a perda dos

    gozos mundanos, como se no fossem encontrar maiores

    gozos no alm-tmulo. Que desgraa, dizem, morrer to

    jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro bri-

    lhante! A idia de um futuro melhor apenas toca de leve o

    pensamento, porque no tem nele razes. Tudo concorre,

    assim, para inspirar o terror da morte, em vez de infundir

    esperana.

    Sem dvida que muito tempo ser preciso para o ho-

    mem se desfazer desses preconceitos, o que no quer dizer

    que isto no suceda, medida que a sua f se for firmando,

    a ponto de conceber uma idia mais sensata da vida

    espiritual.

    9. Demais, a crena vulgar coloca as almas em regies ape-

    nas acessveis ao pensamento, onde se tornam de alguma

    sorte estranhas aos vivos; a prpria Igreja pe entre umas e

    outras uma barreira insupervel, declarando rotas todas

    as relaes e impossvel qualquer comunicao. Se as al-

    mas esto no inferno, perdida toda a esperana de as

    rever, a menos que l se v ter tambm; se esto entre os

    eleitos, vivem completamente absortas em contemplativa

    beatitude. Tudo isso interpe entre mortos e vivos uma dis-

    tncia tal que faz supor eterna a separao, e por isso que

    muitos preferem ter junto de si, embora sofrendo, os entes

    caros, antes que v-los partir, ainda mesmo que para o cu.

    E a alma que estiver no cu ser realmente feliz vendo,

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3528

  • 29TEMOR DA MOR TE

    por exemplo, arder eternamente seu filho, seu pai, sua me

    ou seus amigos?

    Por que os espritas no temem a morte

    10. A Doutrina Esprita transforma completamente a pers-

    pectiva do futuro. A vida futura deixa de ser uma hiptese

    para ser realidade. O estado das almas depois da morte no

    mais um sistema, porm o resultado da observao. Er-

    gueu-se o vu; o mundo espiritual aparece-nos na plenitude

    de sua realidade prtica; no foram os homens que o desco-

    briram pelo esforo de uma concepo engenhosa, so os

    prprios habitantes desse mundo que nos vm descrever a

    sua situao; a os vemos em todos os graus da escala espi-

    ritual, em todas as fases da felicidade e da desgraa, assis-

    tindo, enfim, a todas as peripcias da vida de alm-tmulo.

    Eis a por que os espritas encaram a morte calmamente e

    se revestem de serenidade nos seus ltimos momentos so-

    bre a Terra. J no s a esperana, mas a certeza que os

    conforta; sabem que a vida futura a continuao da vida

    terrena em melhores condies e aguardam-na com a mes-

    ma confiana com que aguardariam o despontar do Sol aps

    uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiana de-

    correm, outrossim, dos fatos testemunhados e da concor-

    dncia desses fatos com a lgica, com a justia e bondade

    de Deus, correspondendo s ntimas aspiraes da Huma-

    nidade.

    Para os espritas, a alma no uma abstrao; ela tem

    um corpo etreo que a define ao pensamento, o que muito

    para fixar as idias sobre a sua individualidade, aptides e

    percepes. A lembrana dos que nos so caros repousa

    sobre alguma coisa de real. No se nos apresentam mais

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3529

  • 30 O CU E O INFERNO

    como chamas fugitivas que nada falam ao pensamento,

    porm sob uma forma concreta que antes no-los mostra

    como seres viventes. Alm disso, em vez de perdidos nas

    profundezas do Espao, esto ao redor de ns; o mundo

    corporal e o mundo espiritual identificam-se em perptuas

    relaes, assistindo-se mutuamente.

    No mais permissvel sendo a dvida sobre o futuro,

    desaparece o temor da morte; encara-se a sua aproximao

    a sangue-frio, como quem aguarda a libertao pela porta

    da vida e no do nada.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3530

  • C A P T U L O I I I

    O cu

    1. Em geral, a palavra cu designa o espao indefinido que

    circunda a Terra, e mais particularmente a parte que est

    acima do nosso horizonte. Vem do latim coelum, formada

    do grego coilos, cncavo, porque o cu parece uma imensa

    concavidade.

    Os antigos acreditavam na existncia de muitos cus

    superpostos, de matria slida e transparente, formando

    esferas concntricas e tendo a Terra por centro.

    Girando essas esferas em torno da Terra, arrastavam

    consigo os astros que se achavam em seu circuito.

    Essa idia, provinda da deficincia de conhecimen-

    tos astronmicos, foi a de todas as teogonias, que fize-

    ram dos cus, assim escalados, os diversos degraus da

    bem-aventurana: o ltimo deles era abrigo da suprema

    felicidade.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3531

  • 32 O CU E O INFERNO

    Segundo a opinio mais comum, havia sete cus e da

    a expresso estar no stimo cu para exprimir perfeita

    felicidade. Os muulmanos admitem nove cus, em cada

    um dos quais se aumenta a felicidade dos crentes.

    O astrnomo Ptolomeu1 contava onze e denominava ao

    ltimo Empreo2 por causa da luz brilhante que nele reina.

    este ainda hoje o nome potico dado ao lugar da

    glria eterna. A teologia crist reconhece trs cus: o pri-

    meiro o da regio do ar e das nuvens; o segundo, o espao

    em que giram os astros, e o terceiro, para alm deste, a

    morada do Altssimo, a habitao dos que o contemplam

    face a face. conforme a esta crena que se diz que

    S. Paulo foi alado ao terceiro cu.

    2. As diferentes doutrinas relativamente ao paraso repou-

    sam todas no duplo erro de considerar a Terra centro do

    Universo, e limitada a regio dos astros.

    alm desse limite imaginrio que todas tm colocado

    a residncia afortunada e a morada do Todo-Poderoso.

    Singular anomalia que coloca o Autor de todas as coi-

    sas, Aquele que as governa a todas, nos confins da criao,

    em vez de no centro, donde o seu pensamento poderia,

    irradiante, abranger tudo!

    3. A Cincia, com a lgica inexorvel da observao e dos

    fatos, levou o seu archote s profundezas do Espao e mos-

    trou a nulidade de todas essas teorias.

    1 Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo sculo da eracrist.

    2 Do grego, pur ou pyr, fogo.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3532

  • 33O CU

    A Terra no mais o eixo do Universo, porm um dos

    menores astros que rolam na imensidade; o prprio Sol mais

    no do que o centro de um turbilho planetrio; as estre-

    las so outros tantos e inumerveis sis, em torno dos quais

    circulam mundos sem conta, separados por distncias ape-

    nas acessveis ao pensamento, embora se nos afigure

    tocarem-se. Neste conjunto grandioso, regido por leis eter-

    nas reveladoras da sabedoria e onipotncia do Criador

    , a Terra no mais que um ponto imperceptvel e um

    dos planetas menos favorecidos quanto habitabilidade.

    E, assim sendo, lcito perguntar por que Deus faria da

    Terra a nica sede da vida e nela degredaria as suas criatu-

    ras prediletas? Mas, ao contrrio, tudo anuncia a vida por

    toda parte e a Humanidade infinita como o Universo.

    Revelando-nos a Cincia mundos semelhantes ao nosso,

    Deus no podia t-los criado sem intuito, antes deve t-los

    povoado de seres capazes de os governar.

    4. As idias do homem esto na razo do que ele sabe; como

    todas as descobertas importantes, a da constituio dos

    mundos deveria imprimir-lhes outro curso; sob a influncia

    desses conhecimentos novos, as crenas se modificaram; o

    Cu foi deslocado e a regio estelar, sendo ilimitada, no

    mais lhe pode servir. Onde est ele, pois? E ante esta ques-

    to emudecem todas as religies.

    O Espiritismo vem resolv-las demonstrando o verda-

    deiro destino do homem. Tomando-se por base a natureza

    deste ltimo e os atributos divinos, chega-se a uma conclu-

    so; isto quer dizer que partindo do conhecido atinge-se o

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3533

  • 34 O CU E O INFERNO

    desconhecido por uma deduo lgica, sem falar das ob-

    servaes diretas que o Espiritismo faculta.

    5. O homem compe-se de corpo e Esprito: o Esprito o

    ser principal, racional, inteligente; o corpo o invlucro

    material que reveste o Esprito temporariamente, para

    preenchimento da sua misso na Terra e execuo do traba-

    lho necessrio ao seu adiantamento. O corpo, usado, des-

    tri-se e o Esprito sobrevive sua destruio. Privado do

    Esprito, o corpo apenas matria inerte, qual instrumento

    privado da mola real de funo; sem o corpo, o Esprito

    tudo: a vida, a inteligncia. Em deixando o corpo, torna ao

    mundo espiritual, onde paira, para depois reencarnar.

    Existem, portanto, dois mundos: o corporal, composto

    de Espritos encarnados; e o espiritual, formado dos Esp-

    ritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido

    mesmo materialidade do seu envoltrio, esto ligados

    Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual ostenta-se

    por toda parte, em redor de ns como no Espao, sem limi-

    te algum designado. Em razo mesmo da natureza fludica

    do seu envoltrio, os seres que o compem, em lugar de se

    locomoverem penosamente sobre o solo, transpem as dis-

    tncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo no

    mais que a ruptura dos laos que os retinham cativos.

    6. Os Espritos so criados simples e ignorantes, mas dota-

    dos de aptides para tudo conhecerem e para progredirem,

    em virtude do seu livre-arbtrio. Pelo progresso adquirem

    novos conhecimentos, novas faculdades, novas percepes

    e, conseguintemente, novos gozos desconhecidos dos Esp-

    ritos inferiores; eles vem, ouvem, sentem e compreendem

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3534

  • 35O CU

    o que os Espritos atrasados no podem ver, sentir, ouvir

    ou compreender.

    A felicidade est na razo direta do progresso realiza-

    do, de sorte que, de dois Espritos, um pode no ser to feliz

    quanto outro, unicamente por no possuir o mesmo adianta-

    mento intelectual e moral, sem que por isso precisem estar,

    cada qual, em lugar distinto. Ainda que juntos, pode um es-

    tar em trevas, enquanto que tudo resplandece para o outro,

    tal como um cego e um vidente que se do as mos: este

    percebe a luz da qual aquele no recebe a mnima impresso.

    Sendo a felicidade dos Espritos inerente s suas quali-

    dades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram,

    seja superfcie da Terra, no meio dos encarnados, ou no

    Espao.

    Uma comparao vulgar far compreender melhor esta

    situao. Se se encontrarem em um concerto dois homens,

    um, bom msico, de ouvido educado, e outro, desconhecedor

    da msica, de sentido auditivo pouco delicado, o primeiro

    experimentar sensao de felicidade, enquanto o segundo

    permanecer insensvel, porque um compreende e percebe

    o que nenhuma impresso produz no outro. Assim sucede

    quanto a todos os gozos dos Espritos, que esto na razo

    da sua sensibilidade.

    O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, har-

    monias e sensaes que os Espritos inferiores, submetidos

    influncia da matria, no entrevem sequer, e que somen-

    te so acessveis aos Espritos purificados.

    7. O progresso nos Espritos o fruto do prprio trabalho;

    mas, como so livres, trabalham no seu adiantamento com

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3535

  • 36 O CU E O INFERNO

    maior ou menor atividade, com mais ou menos negligncia,

    segundo sua vontade, acelerando ou retardando o progres-

    so e, por conseguinte, a prpria felicidade.

    Enquanto uns avanam rapidamente, entorpecem-se

    outros, quais poltres, nas fileiras inferiores. So eles, pois,

    os prprios autores da sua situao, feliz ou desgraada,

    conforme esta frase do Cristo: A cada um segundo as

    suas obras.

    Todo Esprito que se atrasa no pode queixar-se seno

    de si mesmo, assim como o que se adianta tem o mrito

    exclusivo do seu esforo, dando por isso maior apreo

    felicidade conquistada.

    A suprema felicidade s compartilhada pelos Espri-

    tos perfeitos, ou, por outra, pelos puros Espritos, que no

    a conseguem seno depois de haverem progredido em inte-

    ligncia e moralidade.

    O progresso intelectual e o progresso moral raramente

    marcham juntos, mas o que o Esprito no consegue em

    dado tempo, alcana em outro, de modo que os dois pro-

    gressos acabam por atingir o mesmo nvel.

    Eis por que se vem muitas vezes homens inteligentes

    e instrudos pouco adiantados moralmente, e vice-versa.

    8. A encarnao necessria ao duplo progresso moral e

    intelectual do Esprito: ao progresso intelectual pela ativi-

    dade obrigatria do trabalho; ao progresso moral pela ne-

    cessidade recproca dos homens entre si. A vida social a

    pedra de toque das boas ou ms qualidades.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3536

  • 37O CU

    A bondade, a maldade, a doura, a violncia, a bene-

    volncia, a caridade, o egosmo, a avareza, o orgulho, a hu-

    mildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a m-f, a

    hipocrisia, em uma palavra, tudo o que constitui o homem

    de bem ou o perverso tem por mvel, por alvo e por estmu-

    lo as relaes do homem com os seus semelhantes.

    Para o homem que vivesse insulado no haveria vcios

    nem virtudes; preservando-se do mal pelo insulamento, o bem

    de si mesmo se anularia.

    9. Uma s existncia corporal manifestamente insufi-

    ciente para o Esprito adquirir todo o bem que lhe falta e

    eliminar o mal que lhe sobra.

    Como poderia o selvagem, por exemplo, em uma s

    encarnao nivelar-se moral e intelectualmente ao mais

    adiantado europeu? materialmente impossvel. Deve ele,

    pois, ficar eternamente na ignorncia e barbaria, privado

    dos gozos que s o desenvolvimento das faculdades pode

    proporcionar-lhe?

    O simples bom-senso repele tal suposio, que seria

    no somente a negao da justia e bondade divinas, mas

    das prprias leis evolutivas e progressivas da Natureza. Mas

    Deus, que soberanamente justo e bom, concede ao Esp-

    rito tantas encarnaes quantas as necessrias para atin-

    gir seu objetivo a perfeio.

    Para cada nova existncia de permeio matria, entra

    o Esprito com o cabedal adquirido nas anteriores, em apti-

    des, conhecimentos intuitivos, inteligncia e moralidade.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3537

  • 38 O CU E O INFERNO

    Cada existncia assim um passo avante no caminho do

    progresso.1

    A encarnao inerente inferioridade dos Espritos,

    deixando de ser necessria desde que estes, transpondo-lhe

    os limites, ficam aptos para progredir no estado espiritual,

    ou nas existncias corporais de mundos superiores, que

    nada tm da materialidade terrestre. Da parte destes a

    encarnao voluntria, tendo por fim exercer sobre os

    encarnados uma ao mais direta e tendente ao cumpri-

    mento da misso que lhes compete junto dos mesmos. Desse

    modo aceitam abnegadamente as vicissitudes e sofrimen-

    tos da encarnao.

    10. No intervalo das existncias corporais o Esprito torna

    a entrar no mundo espiritual, onde feliz ou desgraado

    segundo o bem ou o mal que fez.

    Uma vez que o estado espiritual o estado definitivo

    do Esprito e o corpo espiritual no morre, deve ser esse

    tambm o seu estado normal. O estado corporal transit-

    rio e passageiro. no estado espiritual sobretudo que o

    Esprito colhe os frutos do progresso realizado pelo traba-

    lho da encarnao; tambm nesse estado que se prepara

    para novas lutas e toma as resolues que h de pr em

    prtica na sua volta Humanidade.

    O Esprito progride igualmente na erraticidade, adqui-

    rindo conhecimentos especiais que no poderia obter na

    Terra, e modificando as suas idias. O estado corporal e o

    espiritual constituem a fonte de dois gneros de progresso,

    1 Vede 1 Parte, cap. I, n 3, nota 1.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3538

  • 39O CU

    pelos quais o Esprito tem de passar alternadamente, nas

    existncias peculiares a cada um dos dois mundos.

    11. A reencarnao pode dar-se na Terra ou em outros mun-

    dos. H entre os mundos alguns mais adiantados onde a

    existncia se exerce em condies menos penosas que na

    Terra, fsica e moralmente, mas onde tambm s so admi-

    tidos Espritos chegados a um grau de perfeio relativo ao

    estado desses mundos.

    A vida nos mundos superiores j uma recompensa,

    visto nos acharmos isentos, a, dos males e vicissitudes

    terrenos. Onde os corpos, menos materiais, quase fludicos,

    no mais so sujeitos s molstias, s enfermidades, e

    tampouco tm as mesmas necessidades. Excludos os Es-

    pritos maus, gozam os homens de plena paz, sem outra

    preocupao alm da do adiantamento pelo trabalho

    intelectual.

    Reina l a verdadeira fraternidade, porque no h

    egosmo; a verdadeira igualdade, porque no h orgulho, e

    a verdadeira liberdade por no haver desordens a reprimir,

    nem ambiciosos que procurem oprimir o fraco.

    Comparados Terra, esses mundos so verdadeiros

    parasos, quais pousos ao longo do caminho do progresso

    conducente ao estado definitivo. Sendo a Terra um mundo

    inferior destinado purificao dos Espritos imperfeitos,

    est nisso a razo do mal que a predomina, at que praza

    a Deus fazer dela morada de Espritos mais adiantados.

    Assim que o Esprito, progredindo gradualmente medi-

    da que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade; po-

    rm, antes de ter atingido a culminncia da perfeio, goza

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3539

  • 40 O CU E O INFERNO

    de uma felicidade relativa ao seu progresso. A criana tam-

    bm frui os prazeres da infncia, mais tarde os da mocida-

    de, e finalmente os mais slidos, da madureza.

    12. A felicidade dos Espritos bem-aventurados no con-

    siste na ociosidade contemplativa, que seria, como temos

    dito muitas vezes, uma eterna e fastidiosa inutilidade.

    A vida espiritual em todos os seus graus , ao contrrio,

    uma constante atividade, mas atividade isenta de fadigas.

    A suprema felicidade consiste no gozo de todos os es-

    plendores da Criao, que nenhuma linguagem humana

    jamais poderia descrever, que a imaginao mais fecunda

    no poderia conceber. Consiste tambm na penetrao de

    todas as coisas, na ausncia de sofrimentos fsicos e mo-

    rais, numa satisfao ntima, numa serenidade dalma im-

    perturbvel, no amor que envolve todos os seres, por causa

    da ausncia de atrito pelo contacto dos maus, e, acima de

    tudo, na contemplao de Deus e na compreenso dos seus

    mistrios revelados aos mais dignos. A felicidade tambm

    existe nas tarefas cujo encargo nos faz felizes. Os puros

    Espritos so os Messias ou mensageiros de Deus pela trans-

    misso e execuo das suas vontades. Preenchem as gran-

    des misses, presidem formao dos mundos e harmo-

    nia geral do Universo, tarefa gloriosa a que se no chega

    seno pela perfeio. Os da ordem mais elevada so os ni-

    cos a possurem os segredos de Deus, inspirando-se no seu

    pensamento, de que so diretos representantes.

    13. As atribuies dos Espritos so proporcionadas ao seu

    progresso, s luzes que possuem, s suas capacidades, ex-

    perincia e grau de confiana inspirada ao Senhor soberano.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3540

  • 41O CU

    Nem favores, nem privilgios que no sejam o prmio

    ao mrito; tudo medido e pesado na balana da estrita

    justia.

    As misses mais importantes so confiadas somente

    queles que Deus julga capazes de as cumprir e incapazes

    de desfalecimento ou comprometimento. E enquanto que os

    mais dignos compem o supremo conselho, sob as vistas de

    Deus, a chefes superiores cometida a direo de turbilhes

    planetrios, e a outros conferida a de mundos especiais. Vm,

    depois, pela ordem de adiantamento e subordinao hierr-

    quica, as atribuies mais restritas dos prepostos ao pro-

    gresso dos povos, proteo das famlias e indivduos, ao

    impulso de cada ramo de progresso, s diversas operaes

    da Natureza at aos mais nfimos pormenores da Criao.

    Neste vasto e harmnico conjunto h ocupaes para todas

    as capacidades, aptides e esforos; ocupaes aceitas com

    jbilo, solicitadas com ardor, por serem um meio de adian-

    tamento para os Espritos que ao progresso aspiram.

    14. Ao lado das grandes misses confiadas aos Espritos

    superiores, h outras de importncia relativa em todos os

    graus, concedidas a Espritos de todas as categorias, poden-

    do afirmar-se que cada encarnado tem a sua, isto , deveres

    a preencher a bem dos seus semelhantes, desde o chefe de

    famlia, a quem incumbe o progresso dos filhos, at o ho-

    mem de gnio que lana s sociedades novos germens de

    progresso. nessas misses secundrias que se verificam

    desfalecimentos, prevaricaes e renncias que prejudicam

    o indivduo sem afetar o todo.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3541

  • 42 O CU E O INFERNO

    15. Todas as inteligncias concorrem, pois, para a obra

    geral, qualquer que seja o grau atingido, e cada uma na

    medida das suas foras, seja no estado de encarnao ou

    no espiritual. Por toda parte a atividade, desde a base ao

    pice da escala, instruindo-se, coadjuvando-se em mtuo

    apoio, dando-se as mos para alcanarem o znite.

    Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo es-

    piritual e o corporal, ou, em outros termos, entre os homens

    e os Espritos, entre os Espritos libertos e os cativos. Assim

    se perpetuam e consolidam, pela purificao e continuidade

    de relaes, as verdadeiras simpatias e nobres afeies.

    Por toda parte, a vida e o movimento: nenhum canto

    do infinito despovoado, nenhuma regio que no seja in-

    cessantemente percorrida por legies inumerveis de Esp-

    ritos radiantes, invisveis aos sentidos grosseiros dos en-

    carnados, mas cuja vista deslumbra de alegria e admirao

    as almas libertas da matria. Por toda parte, enfim, h uma

    felicidade relativa a todos os progressos, a todos os deveres

    cumpridos, trazendo cada um consigo os elementos de sua

    felicidade, decorrente da categoria em que se coloca pelo

    seu adiantamento.

    Das qualidades do indivduo depende-lhe a felicidade, e

    no do estado material do meio em que se encontra, podendo

    a felicidade, portanto, existir em qualquer parte onde haja

    Espritos capazes de a gozar. Nenhum lugar lhe circunscrito

    e assinalado no Universo.

    Onde quer que se encontrem, os Espritos podem con-

    templar a majestade divina, porque Deus est em toda parte.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3542

  • 43O CU

    16. Entretanto, a felicidade no pessoal: Se a possusse-

    mos somente em ns mesmos, sem poder reparti-la com

    outrem, ela seria tristemente egosta. Tambm a encontra-

    mos na comunho de idias que une os seres simpticos.

    Os Espritos felizes, atraindo-se pela similitude de gestos e

    sentimentos, formam vastos agrupamentos ou famlias

    homogneas, no seio das quais cada individualidade irra-

    dia as qualidades prprias e satura-se dos eflvios serenos

    e benficos emanados do conjunto.

    Os membros deste, ora se dispersam para se darem

    sua misso, ora se renem em dado ponto do Espao a fim

    de se prestarem contas do trabalho realizado, ora se con-

    gregam em torno dum Esprito mais elevado para recebe-

    rem instrues e conselhos.

    17. Posto que os Espritos estejam por toda parte, os mun-

    dos so de preferncia os seus centros de atrao, em vir-

    tude da analogia existente entre eles e os que os habitam.

    Em torno dos mundos adiantados abundam Espritos su-

    periores, como em torno dos atrasados pululam Espritos

    inferiores. Cada globo tem, de alguma sorte, sua populao

    prpria de Espritos encarnados e desencarnados, alimenta-

    da em sua maioria pela encarnao e desencarnao dos mes-

    mos. Esta populao mais estvel nos mundos inferiores,

    pelo apego deles matria, e mais flutuante nos

    superiores.

    Destes ltimos, porm, verdadeiros focos de luz e feli-

    cidade, Espritos se destacam para mundos inferiores a fim

    de neles semearem os germens do progresso, levar-lhes con-

    solao e esperana, levantar os nimos abatidos pelas pro-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3543

  • 44 O CU E O INFERNO

    vaes da vida. Por vezes tambm se encarnam para cum-

    prir com mais eficcia a sua misso.

    18. Nessa imensidade ilimitada, onde est o Cu? Em toda

    parte. Nenhum contorno lhe traa limites. Os mundos

    adiantados so as ltimas estaes do seu caminho, que

    as virtudes franqueiam e os vcios interditam. Ante este

    quadro grandioso que povoa o Universo, que d a todas as

    coisas da Criao um fim e uma razo de ser, quanto

    pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a Hu-

    manidade a um ponto imperceptvel do Espao, que no-la

    mostra comeando em dado instante para acabar igual-

    mente com o mundo que a contm, no abrangendo mais

    que um minuto na Eternidade!

    Como triste, fria, glacial essa doutrina quando nos

    mostra o resto do Universo, durante e depois da Humani-

    dade terrestre, sem vida, nem movimento, qual vastssimo

    deserto imerso em profundo silncio! Como desesperadora

    a perspectiva dos eleitos votados contemplao perptua,

    enquanto a maioria das criaturas padece tormentos sem-

    -fim! Como lacera os coraes sensveis a idia dessa bar-

    reira entre mortos e vivos! As almas ditosas, dizem, s pen-

    sam na sua felicidade, como as desgraadas, nas suas dores.

    Admira que o egosmo reine sobre a Terra quando no-lo

    mostram no Cu?

    Oh! quo mesquinha se nos afigura essa idia da gran-

    deza, do poder e da bondade de Deus! Quanto sublime a

    idia que dEle fazemos pelo Espiritismo! Quanto a sua dou-

    trina engrandece as idias e amplia o pensamento! Mas,

    quem diz que ela verdadeira? A Razo primeiro, a Revela-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3544

  • 45O CU

    o depois, e, finalmente, a sua concordncia com os pro-

    gressos da Cincia. Entre duas doutrinas, das quais uma

    amesquinha e a outra exalta os atributos de Deus; das quais

    uma s est em desacordo e a outra em harmonia com o

    progresso; das quais uma se deixa ficar na retaguarda en-

    quanto a outra caminha, o bom-senso diz de que lado est

    a verdade. Que, confrontando-as, consulte cada qual a cons-

    cincia, e uma voz ntima lhe falar por ela. Pois bem, es-

    sas aspiraes ntimas so a voz de Deus, que no pode

    enganar os homens. Mas, dir-se-, por que Deus no lhes

    revelou de princpio toda a verdade? Pela mesma razo por

    que se no ensina infncia o que se ensina aos de idade

    madura.

    A revelao limitada foi suficiente a certo perodo da

    Humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao pro-

    gresso e s foras do Esprito.

    Os que recebem hoje uma revelao mais completa so

    os mesmos Espritos que tiveram dela uma partcula em

    outros tempos e que de ento por diante se engrandeceram

    em inteligncia.

    Antes de a Cincia ter revelado aos homens as foras

    vivas da Natureza, a constituio dos astros, o verdadeiro

    papel da Terra e sua formao, poderiam eles compreender

    a imensidade do Espao e a pluralidade dos mundos? Antes

    de a Geologia comprovar a formao da Terra, poderiam os

    homens tirar-lhe o inferno das entranhas e compreender o

    sentido alegrico dos seis dias da Criao? Antes de a Astro-

    nomia descobrir as leis que regem o Universo, poderiam

    compreender que no h alto nem baixo no Espao, que o

    cu no est acima das nuvens nem limitado pelas estre-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3545

  • 46 O CU E O INFERNO

    las? Poderiam identificar-se com a vida espiritual antes dos

    progressos da cincia psicolgica? conceber depois da morte

    uma vida feliz ou desgraada, a no ser em lugar circuns-

    crito e sob uma forma material? No; compreendendo mais

    pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito

    vasto para a sua concepo; era preciso restringi-lo ao seu

    ponto de vista para alarg-lo mais tarde. Uma revelao

    parcial tinha sua utilidade, e, embora sbia at ento, no

    satisfaria hoje. O absurdo provm dos que pretendem po-

    der governar os homens de pensamento, sem se darem con-

    ta do progresso das idias, quais se fossem crianas. (Vede

    O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.)

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3546

  • INTUIO DAS PENAS FUTURAS

    1. Desde todas as pocas o homem acreditou, por intuio,

    que a vida futura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o

    mal praticado neste mundo. A idia que ele faz, porm, dessa

    vida est em relao com o seu desenvolvimento, senso

    moral e noes mais ou menos justas do bem e do mal.

    As penas e recompensas so o reflexo dos instintos

    predominantes. Os povos guerreiros fazem consistir a su-

    prema felicidade nas honras conferidas bravura; os caa-

    dores, na abundncia da caa; os sensuais, nas delcias da

    voluptuosidade. Dominado pela matria, o homem no pode

    compreender seno imperfeitamente a espiritualidade, ima-

    ginando para as penas e gozos futuros um quadro mais

    C A P T U L O I V

    O inferno

    Intuio das penas futuras

    O inferno cristo imitado do inferno pago

    Os limbos

    Quadro do inferno pago

    Esboo do inferno cristo

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3547

  • 48 O CU E O INFERNO

    material que espiritual; afigura-se-lhe que deve comer e

    beber no outro mundo, porm melhor que na Terra.1

    Mais tarde j se encontra nas crenas sobre a vida

    futura um misto de espiritualismo e materialismo: a

    beatitude contemplativa concorrendo com o inferno das

    torturas fsicas.

    2. No podendo compreender seno o que v, o homem

    primitivo naturalmente moldou o seu futuro pelo presente;

    para compreender outros tipos, alm dos que tinha vista,

    ser-lhe-ia preciso um desenvolvimento intelectual que s o

    tempo deveria completar. Tambm o quadro por ele ideado

    sobre as penas futuras no seno o reflexo dos males da

    Humanidade, em mais vasta proporo, reunindo-lhe to-

    das as torturas, suplcios e aflies que achou na Terra.

    Nos climas abrasadores imaginou um inferno de fogo, e

    nas regies boreais um inferno de gelo. No estando ainda

    desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a com-

    preender o mundo espiritual, no podia conceber seno

    penas materiais; e assim, com pequenas diferenas de for-

    ma, os infernos de todas as religies se assemelham.

    O INFERNO CRISTO IMITADO DO INFERNO PAGO

    3. O inferno pago, descrito e dramatizado pelos poetas, foi

    o modelo mais grandioso do gnero, e perpetuou-se no seio

    dos cristos, onde, por sua vez, houve poetas e cantores.

    1 Um pequeno saboiano, a quem o seu cura fazia a descrio da vidafutura, perguntou-lhe se todo o mundo l comia po branco, comoem Paris.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3548

  • 49O INFERNO

    Comparando-os, encontram-se neles salvo os nomes e

    variantes de detalhe numerosas analogias; ambos tm o

    fogo material por base de tormentos, como smbolo dos so-

    frimentos mais atrozes. Mas, coisa singular! os cristos

    exageraram em muitos pontos o inferno dos pagos. Se estes

    tinham o tonel das Danaides, a roda de xion, o rochedo de

    Ssifo, eram estes suplcios individuais; os cristos, ao con-

    trrio, tm para todos, sem distino, as caldeiras ferven-

    tes cujos tampos os anjos levantam para ver as contores

    dos supliciados1; e Deus, sem piedade, ouve-lhes os gemi-

    dos por toda a eternidade. Jamais os pagos descreveram

    os habitantes dos Campos Elseos deleitando a vista nos

    suplcios do Trtaro.2

    4. Os cristos tm, como os pagos, o seu rei dos infernos

    Sat com a diferena, porm, de que Pluto se limita-

    va a governar o sombrio imprio, que lhe coubera em parti-

    lha, sem ser mau; retinha em seus domnios os que haviam

    praticado o mal, porque essa era a sua misso, mas no

    induzia os homens ao pecado para desfrutar, tripudiar dos

    seus sofrimentos. Sat, no entanto, recruta vtimas por toda

    parte e regozija-se ao atorment-las com uma legio de de-

    mnios armados de forcados a revolv-las no fogo.

    1 Sermo pregado em Montpellier em 1860.2 Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, podero

    afastar-se de certo modo em razo do seu dom de inteligncia e davista distinta, a fim de considerarem as torturas dos condenados,e, vendo-os, no somente sero insensveis dor, mas at ficarorepletos de alegria e rendero graas a Deus por sua prpria feli-cidade, assistindo inefvel calamidade dos mpios. (S. Toms deAquino.)

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3549

  • 50 O CU E O INFERNO

    J se tem discutido seriamente sobre a natureza desse

    fogo que queima mas no consome as vtimas. Tem-se mes-

    mo perguntado se seria um fogo de betume.1

    O inferno cristo nada cede, pois, ao inferno pago.

    5. As mesmas consideraes que, entre os antigos, tinham

    feito localizar o reino da felicidade, fizeram circunscrever

    igualmente o lugar dos suplcios. Tendo-se colocado o pri-

    meiro nas regies superiores, era natural reservar ao se-

    gundo os lugares inferiores, isto , o centro da Terra, para

    onde se acreditava servirem de entradas certas cavidades

    sombrias, de aspecto terrvel. Os cristos tambm coloca-

    ram ali, por muito tempo, a habitao dos condenados.

    A este respeito, frisemos ainda outra analogia: O

    inferno dos pagos continha de um lado os Campos Elseos

    e do outro o Trtaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos

    homens divinizados, ficava nas regies superiores. Segun-

    do a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto ,

    aos lugares baixos para deles tirar as almas dos justos que

    lhe aguardavam a vinda.

    Os infernos no eram, portanto, um lugar unicamente

    de suplcio: estavam, tal como para os pagos, nos lugares

    baixos.

    A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos

    lugares elevados. Colocaram-na para alm do cu estelar,

    que se reputava limitado.

    1 Sermo pregado em Paris em 1861.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3550

  • 51O INFERNO

    6. Esta mistura de idias crists e pags nada tem de sur-

    preendente. Jesus no podia de um s golpe destruir

    inveteradas crenas, faltando aos homens conhecimentos

    necessrios para conceber a infinidade do Espao e o n-

    mero infinito dos mundos; a Terra para eles era o centro do

    Universo; no lhe conheciam a forma nem a estrutura in-

    ternas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noes do

    futuro no podiam ir alm dos seus conhecimentos. Jesus

    encontrava-se, pois, na impossibilidade de os iniciar no

    verdadeiro estado das coisas; mas no querendo, por outro

    lado, com sua autoridade, sancionar prejuzos aceitos, abs-

    teve-se de os retificar, deixando ao tempo essa misso. Ele

    limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada, dos

    castigos reservados aos culpados, sem referir-se jamais nos

    seus ensinos a castigos e suplcios corporais, que consti-

    turam para os cristos um artigo de f. Eis a como as

    idias do inferno pago se perpetuaram at aos nossos dias.

    E foi preciso a difuso das modernas luzes, o desenvolvi-

    mento geral da inteligncia humana para se lhe fazer justi-

    a. Como, porm, nada de positivo houvesse substitudo as

    idias recebidas, ao longo perodo de uma crena cega su-

    cedeu, transitoriamente, o perodo de incredulidade a que

    vem pr termo a Nova Revelao. Era preciso demolir para

    reconstruir, visto como mais fcil insinuar idias justas

    aos que em nada crem, sentindo que algo lhes falta, do

    que faz-lo aos que possuem uma idia robusta, ainda que

    absurda.

    7. Localizados o cu e o inferno, as seitas crists foram

    levadas a no admitir para as almas seno duas situaes

    extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3551

  • 52 O CU E O INFERNO

    purgatrio apenas uma posio intermediria e passagei-

    ra, ao sair da qual as almas passam, sem transio, man-

    so dos justos.

    Outra no pode ser a hiptese, dada a crena na sorte

    definitiva da alma aps a morte. Se no h mais de duas

    habitaes, a dos eleitos e a dos condenados, no se podem

    admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibi-

    lidade de os franquear e, conseguintemente, o progresso.

    Ora, se h progresso, no h sorte definitiva, e se h sorte

    definitiva, no h progresso. Jesus resolveu a questo quan-

    do disse: H muitas moradas na casa de meu Pai.1

    OS LIMBOS

    8. verdade que a Igreja admite uma posio especial em

    casos particulares.

    As crianas falecidas em tenra idade, sem fazer mal

    algum, no podem ser condenadas ao fogo eterno. Mas,

    tambm, no tendo feito bem, no lhes assiste direito

    felicidade suprema. Ficam nos limbos, diz-nos a Igreja, nessa

    situao jamais definida, na qual, se no sofrem, tambm

    no gozam da bem-aventurana. Esta, sendo tal sorte

    irrevogavelmente fixada, fica-lhes defesa para sempre. Tal

    privao importa, assim, um suplcio eterno e tanto mais

    imerecido, quanto certo no ter dependido dessas almas

    que as coisas assim sucedessem. O mesmo se d quanto ao

    selvagem que, no tendo recebido a graa do batismo e as

    1 O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3552

  • 53O INFERNO

    luzes da religio, peca por ignorncia, entregue aos instin-

    tos naturais. Certo, este no tem a responsabilidade e o

    mrito cabveis ao que procede com conhecimento de cau-

    sa. A simples lgica repele uma tal doutrina em nome da

    justia de Deus, que se contm integralmente nestas pala-

    vras do Cristo: A cada um, segundo as suas obras. Obras,

    sim, boas ou ms, porm praticadas voluntria e livremen-

    te, nicas que comportam responsabilidade. Neste caso no

    podem estar a criana, o selvagem e tampouco aquele que

    no foi esclarecido.

    QUADRO DO INFERNO PAGO

    9. O conhecimento do inferno pago nos fornecido quase

    exclusivamente pela narrativa dos poetas. Homero e Verglio

    dele deram a mais completa descrio, devendo, contudo,

    levar-se em conta as necessidades poticas impostas for-

    ma. A descrio de Fnelon, no Telmaco, posto que hauri-

    da na mesma fonte quanto s crenas fundamentais, tem a

    simplicidade mais concisa da prosa.

    Descrevendo o aspecto lgubre dos lugares, preocupa-se,

    principalmente, em realar o gnero de sofrimento dos cul-

    pados, estendendo-se sobre a sorte dos maus reis com vis-

    ta instruo do seu rgio discpulo. Por muito popular

    que seja esta obra, nem todos tm presente memria a

    sua descrio, ou no meditaram sobre ela de modo a esta-

    belecer comparao, e assim acreditamos de utilidade re-

    produzir os tpicos que mais diretamente interessam ao

    nosso assunto, isto , os que se referem especialmente s

    penas individuais.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3553

  • 54 O CU E O INFERNO

    10. Ao entrar, Telmaco ouve gemidos de uma sombra in-

    consolvel. Qual , perguntava-lhe, a vossa desgraa? Quem

    fostes na Terra? Nabofarzan, responde a sombra, rei da

    soberba Babilnia. Ao ouvir meu nome tremiam todos os

    povos do Oriente; fazia-me adorar pelos babilnios num

    templo todo de mrmore, representado por uma esttua de

    ouro, a cujos ps se queimavam noite e dia os preciosos

    perfumes da Etipia; jamais algum ousou contradizer-me

    sem de pronto ser punido; inventavam-se dia a dia praze-

    res novos para tornar-me a vida mais e mais deliciosa.

    Moo e robusto, quantos, oh! quantos prazeres me

    restavam ainda por usufruir no trono! Mas certa mulher,

    que eu amava e que me no correspondia, fez-me sentir

    claramente que eu no era um deus: envenenou-me, e...

    nada mais sou. As minhas cinzas foram ontem encerradas

    com pompa em urna de ouro: choraram, arrancaram cabe-

    los, pretenderam fingidamente atirar-se s chamas da mi-

    nha fogueira, a fim de morrerem comigo, vo ainda gemer

    junto do tmulo das minhas cinzas, mas ningum me de-

    plora; a minha memria horroriza a prpria famlia, en-

    quanto aqui em baixo sofro j horrveis suplcios.

    Telmaco, compungido ante esse espetculo, diz-lhe:

    reis vs verdadeiramente feliz durante o vosso reinado?

    Senteis porventura essa paz suave sem a qual o corao se

    conserva opresso e abatido em meio das delcias? No,

    respondeu o babilnio; no sei mesmo o que quereis di-

    zer. Os sbios exaltam essa paz como bem nico; quanto

    raiva, nunca a senti, meu corao agitava-se continuamente

    por novos desejos de temor e de esperana. Procurava atur-

    dir-me com o abalo das prprias paixes, tendo o cuidado

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3554

  • 55O INFERNO

    de entreter essa embriaguez para torn-la permanente, con-

    tnua; o menor intervalo de razo, de calma, ser-me-ia muito

    amargo. Eis a paz que fru; qualquer outra parece-me antes

    uma fbula, um sonho. So esses os bens que choro.

    Assim falando, o babilnio chorava qual homem pusi-

    lnime, enervado pelas prosperidades, desabituado de su-

    portar resignadamente uma desgraa. Havia junto dele al-

    guns escravos mortos em homenagem honrosa aos seus

    funerais. Mercrio os entregara a Caronte com o seu rei,

    outorgando-lhes poder absoluto sobre esse rei, a quem ti-

    nham servido na Terra. Essas sombras de escravos no te-

    miam a sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada,

    infligindo-lhe as mais cruis afrontas. Dizia-lhe uma: No

    ramos ns homens iguais a ti? Insensato que eras, julga-

    vas-te um deus, a ponto de esqueceres a tua origem co-

    mum a todos os homens. Outra, para insult-lo, dizia:

    Tinhas razo em no querer que por homem te houvessem,

    porque na verdade eras um monstro desumano. Ainda ou-

    tra: Ento?! onde esto agora os teus aduladores? nada

    mais tens a dar, desgraado! nem mesmo o mal podes fazer

    mais: eis-te reduzido a escravo dos teus escravos. A justia

    dos deuses tarda, mas no falha.

    A estas frases duras Nabofarzan se rojava por terra,

    arrancando os cabelos em acesso de raiva e desespero. Mas

    Caronte instigava os escravos: Arrastem-no pela corrente,

    levantem-no contra a vontade. No possa ele consolar-se

    escondendo a sua vergonha: preciso que todas as som-

    bras do Estige a testemunhem como justificativa aos deu-

    ses, que por tanto tempo toleraram o reinado terreno deste

    mpio.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3555

  • 56 O CU E O INFERNO

    E ele avista logo, bem perto de si, o negro Trtaro

    evolando escuro e espesso fumo, cujo cheiro meftico daria

    a morte se se espalhasse pela morada dos vivos. Esse fumo

    envolvia um rio de fogo, um turbilho de chamas, cujo

    rudo, semelhante s torrentes mais caudalosas quando se

    despenham de altos rochedos em profundos abismos, con-

    corria para que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos.

    Telmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem

    medo nesse bratro. Viu primeiramente um grande nme-

    ro de homens que tinham vivido nas mais humildes condi-

    es, punidos por haverem procurado riquezas por meio de

    fraudes, traies e crueldade. A notou muitos mpios hip-

    critas que, simulando amar a religio, dela se tinham servi-

    do como de um belo pretexto para satisfazerem ambies e

    zombarem dos crdulos: os que haviam abusado at da pr-

    pria Virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como

    os mais celerados de todos os homens. Os filhos que haviam

    degolado seus pais; as esposas que mancharam as mos

    no sangue dos maridos; os traidores que venderam a p-

    tria, violando todos os juramentos, sofriam, apesar de tudo,

    penas menores que aqueles hipcritas.

    Os trs juzes infernais assim o queriam, por esta ra-

    zo: os hipcritas no se contentam com ser maus como os

    demais mpios, porm querem passar por bons e concor-

    rem por sua falsa virtude para a descrena e corrupo da

    verdade. Os deuses, por eles zombados e desprezados pe-

    rante os homens, empregam com prazer todo o seu poderio

    para se vingarem de tais insultos.

    Perto destes, outros homens aparecem, que vulgar-

    mente se julgam isentos de culpa, mas que os deuses per-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3556

  • 57O INFERNO

    seguem desapiedadamente: so os ingratos, os mentirosos,

    os aduladores que louvaram o vcio, os crticos perversos

    que procuraram enodoar a mais pura virtude; enfim aque-

    les que, julgando temerariamente das coisas, sem as

    conhecer a fundo, prejudicaram por isso a reputao dos

    inocentes.

    Telmaco, vendo os trs juzes sentados a condena-

    rem um homem, ousou perguntar-lhes quais os seus cri-

    mes. O condenado, tomando a palavra, de pronto exclama-

    va: Nunca fiz mal algum; todo o meu prazer era praticar o

    bem: fui sempre generoso, justo, liberal e compassivo; que

    se pode, pois, exprobrar-me?

    Minos ento lhe disse: Nenhuma acusao se te faz

    quanto aos homens, porm a estes menos no devias que

    aos deuses? Que justia, pois, essa de que te vanglorias?

    Para com os homens, que nada so, no faltaste jamais a

    qualquer dever; foste virtuoso, certo, mas s atribuste

    essa virtude a ti prprio, esquecendo os deuses que ta de-

    ram, tudo porque querias gozar do fruto da tua virtude en-

    cerrado em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses,

    que tudo fizeram, e o fizeram para si, no podem renunciar

    aos seus direitos; e, pois que quiseste pertencer-te e no a

    eles, entregar-te-o a ti mesmo, esquecidos de ti como de-

    les te esqueceste. Procura agora, se podes, o consolo em teu

    prprio corao. Eis-te agora para sempre separado dos

    homens, aos quais querias agradar; eis-te s contigo, tu

    que eras o teu dolo: fica sabendo que no h verdadeira

    virtude sem respeito e amor aos deuses, a quem tudo

    devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslum-

    brou os ingnuos, vai ser confundida. No julgando os ho-

    mens o vcio e a virtude seno pelo que lhes agrada ou os

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3557

  • 58 O CU E O INFERNO

    incomoda, so cegos quanto ao bem e quanto ao mal. Aqui,

    uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais, conde-

    nando muita vez o que eles admiram, e outras vezes justifi-

    cando o que condenam.

    A estas palavras, o filsofo, como que ferido por um

    raio, mal podia suster-se. O deleite que tivera outrora em

    rever a sua moderao, a coragem, as inclinaes genero-

    sas, transformavam-se em desespero. A viso do prprio

    corao inimigo dos deuses promove-lhe suplcios; v, e no

    pode deixar de se ver; v a vaidade dos preconceitos huma-

    nos, aos quais buscava lisonjear em todas as suas aes.

    Opera-se uma revoluo radical em todo o seu ntimo, como

    se lhe revolvessem todas as entranhas; reconhece-se ou-

    tro; no encontra apoio no corao; a conscincia, cujo tes-

    temunho to agradvel lhe fora, revolta-se contra ele,

    incriminando-lhe amargamente o desvario, a iluso de to-

    das as suas virtudes, que no tiveram por princpio e por

    fim o culto da Divindade, e ei-lo perturbado, consternado,

    preso da vergonha, do remorso, do desespero. As Frias

    no o atormentam, bastando-lhes o terem-na entregado a si

    prprio, para que expie pelo corao a vingana dos deuses

    desprezados.

    Procurando a treva no pode encontr-la, porquanto ino-

    portuna luz o segue por toda parte; de todos os lados os

    raios penetrantes da verdade vingam a verdade que ele des-

    denhou seguir. Tudo que amava se lhe torna odioso como

    fonte dos seus males infindveis. Murmura consigo: in-

    sensato! no conheci, pois, nem os deuses, nem os homens,

    nem a mim mesmo, porque jamais amei o verdadeiro e ni-

    co bem; todos os meus passos foram tresloucados; a mi-

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3558

  • 59O INFERNO

    nha sabedoria no passava de loucura; a minha virtude

    mais no era que o orgulho impiedoso e cego: eu era

    enfim o meu dolo!

    Finalmente reconheceu Telmaco os reis condenados

    por abuso de poder. De um lado, vingadora Fria apresen-

    tava-lhes um espelho a refletir a monstruosidade dos seus

    vcios: a viam, sem poder desviar os olhos, a vaidade gros-

    seira e vida de ridculos louvores; a crueldade para com

    aqueles a quem deveriam ter feito felizes; o temor da verda-

    de, a insensibilidade para com as virtudes, a predileo pelos

    cobardes e aduladores, a falta de aplicao, a inrcia, a

    indolncia; a desconfiana ilimitada; o fausto e a magnifi-

    cncia excessivos calcados sobre a runa dos povos; a am-

    bio de glrias vs custa do sangue dos concidados; a

    fereza, enfim, que procura a cada dia novas delcias nas l-

    grimas e no desespero de tantos infelizes. Esses reis

    reviam-se constantemente nesse espelho, achando-se mais

    monstruosos e horrendos que a prpria Quimera vencida

    por Belerofonte, que a Hidra de Lerna abatida por Hrcules e

    que Crbero vomitando por suas trs goelas um sangue ne-

    gro e venenoso, capaz de empestar todas as raas de mortais

    que vivem sobre a Terra.

    De outro lado, outra Fria lhes repetia injuriosamente

    todos os louvores que os lisonjeiros lhes dispensavam em

    vida e mostrava-lhes ainda outro espelho em que se viam

    tais como a lisonja os pintara. Da anttese dos dois quadros

    brotava o suplcio do amor-prprio. Era para notar que os

    piores dentre esses reis, foram os que tiveram maiores e mais

    fulgentes louvores durante a vida, por isso que os maus so

    mais temidos que os bons e exigem impudicamente as vis

    adulaes dos poetas e oradores do seu tempo.

    Sem ttulo-1 13/04/05, 16:3559

  • 60 O CU E O INFERNO

    Na profundeza dessas trevas, onde s insultos e es-

    crnios padecem, ouvem-se-lhes os gemidos agoniados.

    Nada os cerca que os no repila, contradiga e confunda em

    contraste ao que supunham na vida, zombando dos ho-

    mens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No

    Trtaro, entregues a todos os caprichos de certos escravos,

    estes lhes fazem provar por sua vez a mais cruel servido;

    humilhados dolorosamente, no lhes resta esperana algu-

    ma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual b