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O Cu e oInferno
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O Cu e o IP or mim mesmo juro disse o Senhor Deus
que no quero a morte do
mpio, seno que ele se
converta, que deixe o mau
caminho e que viva.
(EZEQUIEL, 33:11.)
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e o Inferno
Por
ALLAN KARDEC
FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA
OU
A JUSTIA DIVINASEGUNDO O ESPIRITISMO
EXAME COMPARADO DAS DOUTRINAS SOBRE A PASSAGEM DA VIDA CORPO-RAL VIDA ESPIRITUAL, SOBRE AS PENALIDADES E RECOMPENSAS FUTURAS,SOBRE OS ANJOS E DEMNIOS, SOBRE AS PENAS, ETC., SEGUIDO DE NUME-ROSOS EXEMPLOS ACERCA DA SITUAO REAL DA ALMA DURANTE E DEPOISDA MORTE.
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Sumrio
PRIMEIRA PARTE
Doutrina
CAPTULO I O PORVIR E O NADA .................................. 11
CAPTULO II TEMOR DA MORTE.................................... 22Causas do temor da morte ............................................ 22Por que os espritas no temem a morte ........................ 29
CAPTULO III O CU ...................................................... 31
CAPTULO IV O INFERNO .............................................. 47Intuio das penas futuras ............................................ 47O inferno cristo imitado do inferno pago .................... 48Os limbos ...................................................................... 52Quadro do inferno pago ............................................... 53Esboo do inferno cristo .............................................. 62
CAPTULO V O PURGATRIO ......................................... 74
CAPTULO VI DOUTRINA DAS PENAS ETERNAS ............. 81Origem da doutrina das penas eternas .......................... 81Argumentos a favor das penas eternas .......................... 88Impossibilidade material das penas eternas ................... 95
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6 O CU E O INFERNO
A doutrina das penas eternas fez sua poca ................ 98Ezequiel contra a eternidade das penase o pecado original ...................................................... 100
CAPTULO VII AS PENAS FUTURAS SEGUNDO OESPIRITISMO .............................................................. 103A carne fraca ............................................................ 103Princpios da Doutrina Esprita sobre aspenas futuras.............................................................. 107Cdigo penal da vida futura......................................... 108
CAPTULO VIII OS ANJOS ............................................ 122Os anjos segundo a Igreja ........................................... 122Refutao .................................................................... 128Os anjos segundo o Espiritismo................................... 135
CAPTULO IX OS DEMNIOS ....................................... 138Origem da crena nos demnios .................................. 138Os demnios segundo a Igreja ..................................... 143Os demnios segundo o Espiritismo ............................ 158
CAPTULO X INTERVENO DOS DEMNIOS NASMODERNAS MANIFESTAES .................................... 162
CAPTULO XI DA PROIBIO DE EVOCAR OSMORTOS ..................................................................... 186
SEGUNDA PARTE
Exemplos
CAPTULO I O PASSAMENTO ....................................... 201
CAPTULO II ESPRITOS FELIZES................................. 212Sanson ....................................................................... 212A morte do justo .......................................................... 224
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7SUMRIO
Jobard ........................................................................ 225Samuel Filipe .............................................................. 232Van Durst ................................................................... 237Sixdeniers ................................................................... 239O doutor Demeure....................................................... 243A viva Foulon, nascida Wollis .................................... 250Um mdico russo ........................................................ 260Bernardin ................................................................... 265A condessa Paula ........................................................ 266Jean Reynaud ............................................................. 271Antoine Costeau .......................................................... 276A Srta. Emma ............................................................. 281O doutor Vignal ........................................................... 282Victor Lebufle .............................................................. 286A Sra. Anais Gourdon ................................................. 288Maurice Gontran ......................................................... 290
CAPTULO III ESPRITOS EM CONDIESMEDIANAS .................................................................. 295Joseph Br .................................................................. 295Sra. Hlne Michel ...................................................... 297O marqus de Saint-Paul ............................................ 299Sr. Cardon, mdico ...................................................... 301Eric Stanislas ............................................................. 308Sra. Anna Belleville ..................................................... 310
CAPTULO IV ESPRITOS SOFREDORES ....................... 317O castigo ..................................................................... 317Novel........................................................................... 319Auguste Michel ........................................................... 321Exprobraes de um bomio ........................................ 324Lisbeth ........................................................................ 326Prncipe Ouran ............................................................ 330Pascal Lavic ................................................................ 333Ferdinand Bertin ......................................................... 336Franois Riquier ......................................................... 341Claire .......................................................................... 343
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8 O CU E O INFERNO
CAPTULO V SUICIDAS................................................ 355O suicida da Samaritana ............................................. 355
O pai e o conscrito ...................................................... 359
Franois-Simon Louvet ............................................... 362
Me e filho .................................................................. 364
Duplo suicdio, por amor e por dever ........................... 368
Lus e a pespontadeira de botinas ................................ 372
Um ateu ...................................................................... 376
Flicen ........................................................................ 384
Antoine Bell ................................................................ 389
CAPTULO VI CRIMINOSOS ARREPENDIDOS ................ 395Verger ......................................................................... 395
Lemaire ....................................................................... 400
Benoist ....................................................................... 404
O Esprito de Castelnaudary ........................................ 408
Jacques Latour ........................................................... 417
CAPTULO VII ESPRITOS ENDURECIDOS .................... 435Lapommeray ............................................................... 435
Angle, nulidade sobre a Terra .................................... 442
Um Esprito aborrecido ............................................... 446
A rainha de Oude ........................................................ 449
Xumne ...................................................................... 452
CAPTULO VIII EXPIAES TERRESTRES .................... 455Marcel, o menino do n 4............................................. 455
Szymel Slizgol ............................................................. 459
Julienne-Marie, a mendiga .......................................... 466
Max, o mendigo ........................................................... 472
Histria de um criado .................................................. 476
Antonio B... ................................................................. 479
Letil ............................................................................ 484
Um sbio ambicioso .................................................... 487
Charles de Saint-G..., idiota ........................................ 489
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9SUMRIO
Adlaide-Marguerite Gosse .......................................... 496
Clara Rivier ................................................................. 498
Franoise Vernhes ....................................................... 502
Anna Bitter ................................................................. 504
Joseph Matre, o cego .................................................. 508
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P R I M E I R A P A R T E
Doutrina
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1. Vivemos, pensamos e operamos eis o que positivo. E
que morremos, no menos certo.
Mas, deixando a Terra, para onde vamos? Que sere-
mos aps a morte? Estaremos melhor ou pior? Existiremos
ou no? Ser ou no ser, tal a alternativa. Para sempre ou
para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos eternamen-
te, ou tudo se aniquilar de vez? uma tese, essa, que se
impe.
Todo homem experimenta a necessidade de viver, de
gozar, de amar e ser feliz. Dizei ao moribundo que ele viver
ainda; que a sua hora retardada; dizei-lhe sobretudo que
ser mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu
corao rejubilar.
Mas, de que serviriam essas aspiraes de felicidade,
se um leve sopro pudesse dissip-las?
C A P T U L O I
O porvir e o nada
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12 O CU E O INFERNO
Haver algo de mais desesperador do que esse pensa-
mento da destruio absoluta? Afeies caras, inteligncia,
progresso, saber laboriosamente adquiridos, tudo despe-
daado, tudo perdido! De nada nos serviria, portanto, qual-
quer esforo no sofreamento das paixes, de fadiga para
nos ilustrarmos, de devotamento causa do progresso,
desde que de tudo isso nada aproveitssemos, predomi-
nando o pensamento de que amanh mesmo, talvez, de
nada nos serviria tudo isso. Se assim fora, a sorte do ho-
mem seria cem vezes pior que a do bruto, porque este vive
inteiramente do presente na satisfao dos seus apetites
materiais, sem aspirao para o futuro. Diz-nos uma se-
creta intuio, porm, que isso no possvel.
2. Pela crena em o nada, o homem concentra todos os
seus pensamentos, forosamente, na vida presente.
Logicamente no se explicaria a preocupao de um
futuro que se no espera.
Esta preocupao exclusiva do presente conduz o ho-
mem a pensar em si, de preferncia a tudo: , pois, o mais
poderoso estimulo ao egosmo, e o incrdulo conseqente
quando chega seguinte concluso: Gozemos enquanto aqui
estamos; gozemos o mais possvel, pois que conosco tudo
se acaba; gozemos depressa, porque no sabemos quanto
tempo existiremos.
Ainda conseqente esta outra concluso, alis mais
grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos
de qualquer modo, cada qual por si; a felicidade neste mundo
do mais astuto.
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13O PORVIR E O NADA
E se o respeito humano contm a alguns seres, que
freio haver para os que nada temem?
Acreditam estes ltimos que as leis humanas no atin-
gem seno os ineptos e assim empregam todo o seu enge-
nho no melhor meio de a elas se esquivarem.
Se h doutrina insensata e anti-social, , seguramente,
o niilismo que rompe os verdadeiros laos de solidariedade
e fraternidade, em que se fundam as relaes sociais.
3. Suponhamos que, por uma circunstncia qualquer, todo
um povo adquire a certeza de que em oito dias, num ms,
ou num ano ser aniquilado; que nem um s indivduo lhe
sobreviver, como de sua existncia no sobreviver nem
um s trao: Que far esse povo condenado, aguardando o
extermnio?
Trabalhar pela causa do seu progresso, da sua ins-
truo? Entregar-se- ao trabalho para viver? Respeitar
os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-
-se- a qualquer lei ou autoridade por mais legtima que
seja, mesmo a paterna?
Haver para ele, nessa emergncia, qualquer dever?
Certo que no. Pois bem! O que se no d coletivamen-
te, a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamen-
te, individualmente.
E se as conseqncias no so desastrosas tanto quan-
to poderiam ser, , em primeiro lugar, porque na maioria dos
incrdulos h mais jactncia que verdadeira incredulidade,
mais dvida que convico possuindo eles mais medo do
nada do que pretendem aparentar o qualificativo de es-
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14 O CU E O INFERNO
pritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade e o amor-prprio; em
segundo lugar, porque os incrdulos absolutos se contam
por nfima minoria, e sentem a seu pesar os ascendentes
da opinio contrria, mantidos por uma fora material.
Torne-se, no obstante, absoluta a incredulidade da
maioria, e a sociedade entrar em dissoluo.
Eis ao que tende a propagao da doutrina niilista.1
Fossem, porm, quais fossem as suas conseqncias,
uma vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso
aceit-la, e nem sistemas contrrios, nem a idia dos males
resultantes poderiam obstar-lhe a existncia. Foroso di-
zer que, a despeito dos melhores esforos da religio, o cep-
ticismo, a dvida, a indiferena ganham terreno dia a dia.
1 Um moo de dezoito anos, afetado de uma enfermidade do corao,foi declarado incurvel. A Cincia havia dito: Pode morrer dentro deoito dias ou de dois anos, mas no ir alm. Sabendo-o, o moopara logo abandonou os estudos e entregou-se a excessos de todoo gnero.
Quando se lhe ponderava o perigo de uma vida desregrada, res-pondia: Que me importa, se no tenho mais de dois anos de vida?De que me serviria fatigar o esprito? Gozo o pouco que me resta equero divertir-me at o fim. Eis a conseqncia lgica do niilismo.
Se este moo fora esprita, teria dito: A morte s destruir ocorpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Esprito viver.Serei na vida futura aquilo que eu prprio houver feito de mimnesta vida; do que nela puder adquirir em qualidades morais e in-telectuais nada perderei, porque ser outro tanto de ganho para omeu adiantamento; toda a imperfeio de que me livrar ser umpasso a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidadedepende da utilidade ou inutilidade da presente existncia. por-tanto de meu interesse aproveitar o pouco tempo que me resta, eevitar tudo o que possa diminuir-me as foras.
Qual destas doutrinas prefervel?
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15O PORVIR E O NADA
Mas, se a religio se mostra impotente para sustar a
incredulidade, que lhe falta alguma coisa na luta. Se por
outro lado a religio se condenasse imobilidade, estaria,
em dado tempo, dissolvida.
O que lhe falta neste sculo de positivismo, em que se
procura compreender antes de crer, , sem dvida, a san-
o de suas doutrinas por fatos positivos, assim como a
concordncia das mesmas com os dados positivos da Cin-
cia. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro,
preciso optar entre a evidncia e a f cega.
4. nestas circunstncias que o Espiritismo vem opor um
dique difuso da incredulidade, no somente pelo racio-
cnio, no somente pela perspectiva dos perigos que ela
acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visveis e tan-
gveis a alma e a vida futura.
Todos somos livres na escolha das nossas crenas; po-
demos crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles
que procuram fazer prevalecer no esprito das massas, da
juventude principalmente, a negao do futuro, apoiando-se
na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posi-
o, semeiam na sociedade germens de perturbao e dis-
soluo, incorrendo em grande responsabilidade.
5. H uma doutrina que se defende da pecha de materialis-
ta porque admite a existncia de um princpio inteligente
fora da matria: a da absoro no Todo Universal.
Segundo esta doutrina, cada indivduo assimila ao
nascer uma parcela desse princpio, que constitui sua alma,
e d-lhe vida, inteligncia e sentimento.
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16 O CU E O INFERNO
Pela morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se
no infinito, qual gota dgua no oceano.
Incontestavelmente esta doutrina um passo adianta-
do sobre o puro materialismo, visto como admite alguma
coisa, quando este nada admite. As conseqncias, porm,
so exatamente as mesmas.
Ser o homem imerso em o nada ou no reservatrio co-
mum, para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a
sua individualidade, como se no existisse; as relaes
sociais nem por isso deixam de romper-se, e para sempre.
O que lhe essencial a conservao do seu eu; sem
este, que lhe importa ou no subsistir?
O futuro afigura-se-lhe sempre nulo, e a vida presente
a nica coisa que o interessa e preocupa.
Sob o ponto de vista das conseqncias morais, esta
doutrina , pois, to insensata, to desesperadora, to sub-
versiva como o materialismo propriamente dito.
6. Pode-se, alm disso, fazer esta objeo: todas as gotas
dgua tomadas ao oceano se assemelham e possuem idn-
ticas propriedades como partes de um mesmo todo; por
que, pois, as almas tomadas ao grande oceano da inteli-
gncia universal to pouco se assemelham? Por que o g-
nio e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vcios
mais ignbeis? Por que a bondade, a doura, a mansuetu-
de ao lado da maldade, da crueldade, da barbaria? Como
podem ser to diferentes entre si as partes de um mesmo
todo homogneo? Dir-se- que a educao que a modifi-
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17O PORVIR E O NADA
ca? Neste caso donde vm as qualidades inatas, as inteli-
gncias precoces, os bons e maus instintos independentes
de toda a educao e tantas vezes em desarmonia com o
meio no qual se desenvolvem?
No resta dvida de que a educao modifica as quali-
dades intelectuais e morais da alma; mas aqui ocorre uma
outra dificuldade: Quem d a esta a educao para faz-la
progredir? Outras almas que por sua origem comum no
devem ser mais adiantadas. Alm disso, reentrando a alma
no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido du-
rante a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Da se
infere que esse Todo se encontraria, pela continuao, pro-
fundamente modificado e melhorado. Assim, como se ex-
plica sarem incessantemente desse Todo almas ignorantes
e perversas?
7. Nesta doutrina, a fonte universal de inteligncia que abas-
tece as almas humanas independente da Divindade; no
precisamente o pantesmo.
O pantesmo propriamente dito considera o princpio
universal de vida e de inteligncia como constituindo a Di-
vindade. Deus concomitantemente Esprito e matria;
todos os seres, todos os corpos da Natureza compem a
Divindade, da qual so as molculas e os elementos cons-
titutivos; Deus o conjunto de todas as inteligncias reu-
nidas; cada indivduo, sendo uma parte do todo, Deus ele
prprio; nenhum ser superior e independente rege o con-
junto; o Universo uma imensa repblica sem chefe, ou
antes, onde cada qual chefe com poder absoluto.
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18 O CU E O INFERNO
8. A este sistema podem opor-se inumerveis objees, das
quais so estas as principais: no se podendo conceber di-
vindade sem infinita perfeio, pergunta-se como um todo
perfeito pode ser formado de partes to imperfeitas, tendo
necessidade de progredir? Devendo cada parte ser subme-
tida lei do progresso, fora convir que o prprio Deus
deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria
ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito.
E como pde um ser imperfeito, formado de idias to
divergentes, conceber leis to harmnicas, to admirveis
de unidade, de sabedoria e previdncia quais as que regem
o Universo? Se todas as almas so pores da Divindade,
todos concorreram para as leis da Natureza; como sucede,
pois, que elas murmurem sem cessar contra essas leis que
so obra sua? Uma teoria no pode ser aceita como verda-
deira seno com a clusula de satisfazer a razo e dar conta
de todos os fatos que abrange; se um s fato lhe trouxer um
desmentido, que no contm a verdade absoluta.
9. Sob o ponto de vista moral, as conseqncias so igual-
mente ilgicas. Em primeiro lugar para as almas, tal como
no sistema precedente, a absoro num todo e a perda da
individualidade. Dado que se admita, consoante a opinio
de alguns pantestas, que as almas conservem essa indi-
vidualidade, Deus deixaria de ter vontade nica para ser
um composto de mirades de vontades divergentes.
Alm disso, sendo cada alma parte integrante da Di-
vindade, deixa de ser dominada por um poder superior; no
incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus;
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19O PORVIR E O NADA
soberana, no tendo interesse algum na prtica do bem,
ela pode praticar o mal impunemente.
10. Demais, estes sistemas no satisfazem nem a razo
nem a aspirao humanas; deles decorrem dificuldades in-
superveis, pois so impotentes para resolver todas as ques-
tes de fato que suscitam. O homem tem, pois, trs alterna-
tivas: o nada, a absoro ou a individualidade da alma antes
e depois da morte.
para esta ltima crena que a lgica nos impele irre-
sistivelmente, crena que tem formado a base de todas as
religies desde que o mundo existe.
E se a lgica nos conduz individualidade da alma,
tambm nos aponta esta outra conseqncia: a sorte de
cada alma deve depender das suas qualidades pessoais,
pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selva-
gem, como a do homem perverso, estivesse no nvel da do
sbio, do homem de bem. Segundo os princpios de justi-
a, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos,
mas para haver essa responsabilidade, preciso que elas
sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arb-
trio h fatalidade, e com a fatalidade no coexistiria a
responsabilidade.
11. Todas as religies admitiram igualmente o princpio da
felicidade ou infelicidade da alma aps a morte, ou, por
outra, as penas e gozos futuros, que se resumem na doutri-
na do cu e do inferno encontrada em toda parte.
No que elas diferem essencialmente, quanto natu-
reza dessas penas e gozos, principalmente sobre as condi-
es determinantes de umas e de outras.
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20 O CU E O INFERNO
Da os pontos de f contraditrios dando origem a cul-
tos diferentes, e os deveres impostos por estes, consecuti-
vamente, para honrar a Deus e alcanar por esse meio o
cu, evitando o inferno.
12. Todas as religies houveram de ser em sua origem rela-
tivas ao grau de adiantamento moral e intelectual dos ho-
mens: estes, assaz materializados para compreenderem o
mrito das coisas puramente espirituais, fizeram consistir
a maior parte dos deveres religiosos no cumprimento de
frmulas exteriores.
Por muito tempo essas frmulas lhes satisfizeram a
razo; porm, mais tarde, porque se fizesse a luz em seu
esprito, sentindo o vcuo dessas frmulas, uma vez que a
religio no o preenchia, abandonaram-na e tornaram-se
filsofos.
13. Se a religio, apropriada em comeo aos conhecimentos
limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movi-
mento progressivo do esprito humano, no haveria incrdu-
los, porque est na prpria natureza do homem a necessida-
de de crer, e ele crer desde que se lhe d o pbulo espiritual
de harmonia com as suas necessidades intelectuais.
O homem quer saber donde veio e para onde vai. Mos-
trando-se-lhe um fim que no corresponde s suas aspira-
es nem idia que ele faz de Deus, tampouco aos dados
positivos que lhe fornece a Cincia; impondo-se-lhe, ade-
mais, para atingir o seu desiderato, condies cuja utilida-
de sua razo contesta, ele tudo rejeita; o materialismo e o
pantesmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao
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21O PORVIR E O NADA
menos se raciocina e se discute, falsamente embora. E h
razo, porque antes raciocinar em falso do que no racioci-
nar absolutamente.
Apresente-se-lhe, porm, um futuro condicionalmente
lgico, digno em tudo da grandeza, da justia e da infinita
bondade de Deus, e ele repudiar o materialismo e o
pantesmo, cujo vcuo sente em seu foro ntimo, e que acei-
tar falta de melhor crena.
O Espiritismo d coisa melhor; eis por que acolhido
pressurosamente por todos os atormentados da dvida, os
que no encontram nem nas crenas nem nas filosofias
vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lgica
do raciocnio e a sano dos fatos, e por isso que inutil-
mente o tm combatido.
14. Instintivamente tem o homem a crena no futuro, mas
no possuindo at agora nenhuma base certa para defini-lo,
a sua imaginao fantasiou os sistemas que originaram a
diversidade de crenas. A Doutrina Esprita sobre o futuro
no sendo uma obra de imaginao mais ou menos ar-
quitetada engenhosamente, porm o resultado da observa-
o de fatos materiais que se desdobram hoje nossa vista
congraar, como j est acontecendo, as opinies di-
vergentes ou flutuantes e trar gradualmente, pela fora
das coisas, a unidade de crenas sobre esse ponto, no j
baseada em simples hiptese, mas na certeza. A unificao
feita relativamente sorte futura das almas ser o primeiro
ponto de contacto dos diversos cultos, um passo imenso para
a tolerncia religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a
completa fuso.
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CAUSAS DO TEMOR DA MORTE
1. O homem, seja qual for a escala de sua posio social,
desde selvagem tem o sentimento inato do futuro; diz-lhe a
intuio que a morte no a ltima fase da existncia e
que aqueles cuja perda lamentamos no esto irremissivel-
mente perdidos.
A crena da imortalidade intuitiva e muito mais ge-
neralizada do que a do nada. Entretanto, a maior parte dos
que nela crem apresentam-se-nos possudos de grande
amor s coisas terrenas e temerosos da morte! Por qu?
2. Este temor um efeito da sabedoria da Providncia e
uma conseqncia do instinto de conservao comum a
todos os viventes. Ele necessrio enquanto no se est
suficientemente esclarecido sobre as condies da vida futu-
C A P T U L O I I
Temor da morte
Causas do temor da morte
Razo por que no a temem os espritas
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23TEMOR DA MOR TE
ra, como contrapeso tendncia que, sem esse freio, nos
levaria a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o
trabalho terreno que deve servir ao nosso prprio adianta-
mento.
Assim que, nos povos primitivos, o futuro uma vaga
intuio, mais tarde tornada simples esperana e, final-
mente, uma certeza apenas atenuada por secreto apego
vida corporal.
3. proporo que o homem compreende melhor a vida
futura, o temor da morte diminui; uma vez esclarecida a
sua misso terrena, aguarda-lhe o fim calma, resignada e
serenamente. A certeza da vida futura d-lhe outro curso
s idias, outro fito ao trabalho; antes dela nada que se
no prenda ao presente; depois dela tudo pelo futuro sem
desprezo do presente, porque sabe que aquele depende da
boa ou da m direo deste.
A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte,
de reatar as relaes que tivera na Terra, de no perder um
s fruto do seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente
em inteligncia, perfeio, d-lhe pacincia para esperar e
coragem para suportar as fadigas transitrias da vida ter-
restre. A solidariedade entre vivos e mortos faz-lhe com-
preender a que deve existir na Terra, onde a fraternidade e
a caridade tm desde ento um fim e uma razo de ser, no
presente como no futuro.
4. Para libertar-se do temor da morte mister poder encar-la
sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto , ter penetrado
pelo pensamento no mundo espiritual, fazendo dele uma
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24 O CU E O INFERNO
idia to exata quanto possvel, o que denota da parte do
Esprito encarnado um tal ou qual desenvolvimento e apti-
do para desprender-se da matria.
No Esprito atrasado a vida material prevalece sobre a
espiritual. Apegando-se s aparncias, o homem no dis-
tingue a vida alm do corpo, esteja embora na alma a vida
real; aniquilado aquele, tudo se lhe afigura perdido,
desesperador.
Se, ao contrrio, concentrarmos o pensamento, no
no corpo, mas na alma, fonte da vida, ser real a tudo sobre-
vivente, lastimaremos menos a perda do corpo, antes fonte
de misrias e dores. Para isso, porm, necessita o Esprito
de uma fora s adquirvel na madureza.
O temor da morte decorre, portanto, da noo insufi-
ciente da vida futura, embora denote tambm a necessida-
de de viver e o receio da destruio total; igualmente o esti-
mula secreto anseio pela sobrevivncia da alma, velado ainda
pela incerteza.
Esse temor decresce, proporo que a certeza au-
menta, e desaparece quando esta completa.
Eis a o lado providencial da questo. Ao homem no
suficientemente esclarecido, cuja razo mal pudesse su-
portar a perspectiva muito positiva e sedutora de um futu-
ro melhor, prudente seria no o deslumbrar com tal idia,
desde que por ela pudesse negligenciar o presente, neces-
srio ao seu adiantamento material e intelectual.
5. Este estado de coisas entretido e prolongado por cau-
sas puramente humanas, que o progresso far desapare-
cer. A primeira a feio com que se insinua a vida futura,
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25TEMOR DA MOR TE
feio que poderia contentar as inteligncias pouco desen-
volvidas, mas que no conseguiria satisfazer a razo
esclarecida dos pensadores refletidos. Assim, dizem estes:
Desde que nos apresentam como verdades absolutas prin-
cpios contestados pela lgica e pelos dados positivos da
Cincia, que eles no so verdades. Da, a incredulidade
de uns e a crena dbia de um grande nmero.
A vida futura -lhes uma idia vaga, antes uma proba-
bilidade do que certeza absoluta; acreditam, desejariam que
assim fosse, mas apesar disso exclamam: Se todavia as-
sim no for! O presente positivo, ocupemo-nos dele pri-
meiro, que o futuro por sua vez vir.
E depois, acrescentam, definitivamente que a alma?
Um ponto, um tomo, uma fasca, uma chama? Como se
sente, v ou percebe? que a alma no lhes parece uma
realidade efetiva, mas uma abstrao.
Os entes que lhes so caros, reduzidos ao estado de
tomos no seu modo de pensar, esto perdidos, e no tm
mais a seus olhos as qualidades pelas quais se lhes fizeram
amados; no podem compreender o amor de uma fasca
nem o que a ela possamos ter. Quanto a si mesmos, ficam
mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se trans-
formarem em mnadas. Justifica-se assim a preferncia
ao positivismo da vida terrestre, que algo possui de mais
substancial.
considervel o nmero dos dominados por este
pensamento.
6. Outra causa de apego s coisas terrenas, mesmo nos
que mais firmemente crem na vida futura, a impresso
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26 O CU E O INFERNO
do ensino que relativamente a ela se lhes h dado desde a
infncia. Convenhamos que o quadro pela religio esboa-
do, sobre o assunto, nada sedutor e ainda menos
consolatrio.
De um lado, contores de condenados a expiarem em
torturas e chamas eternas os erros de uma vida efmera e
passageira. Os sculos sucedem-se aos sculos e no h
para tais desgraados sequer o lenitivo de uma esperana
e, o que mais atroz , no lhes aproveita o arrependimento.
De outro lado, as almas combalidas e aflitas do purgatrio
aguardam a intercesso dos vivos que oraro ou faro orar
por elas, sem nada fazerem de esforo prprio para
progredirem.
Estas duas categorias compem a maioria imensa da
populao de alm-tmulo. Acima delas, paira a limitada
classe dos eleitos, gozando, por toda a eternidade, da
beatitude contemplativa. Esta inutilidade eterna, prefervel
sem dvida ao nada, no deixa de ser de uma fastidiosa
monotonia. por isso que se v, nas figuras que retratam
os bem-aventurados, figuras anglicas onde mais
transparece o tdio que a verdadeira felicidade.
Este estado no satisfaz nem as aspiraes nem a ins-
tintiva idia de progresso, nica que se afigura compatvel
com a felicidade absoluta. Custa crer que, s por haver re-
cebido o batismo, o selvagem ignorante de senso moral
obtuso , esteja ao mesmo nvel do homem que atingiu,
aps longos anos de trabalho, o mais alto grau de cincia e
moralidade prticas. Menos concebvel ainda que a crian-
a falecida em tenra idade, antes de ter conscincia de seus
atos, goze dos mesmos privilgios somente por fora de uma
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27TEMOR DA MOR TE
cerimnia na qual a sua vontade no teve parte alguma.
Estes raciocnios no deixam de preocupar os mais fervo-
rosos crentes, por pouco que meditem.
7. No dependendo a felicidade futura do trabalho progres-
sivo na Terra, a facilidade com que se acredita adquirir essa
felicidade, por meio de algumas prticas exteriores, e a pos-
sibilidade at de a comprar a dinheiro, sem regenerao de
carter e costumes, do aos gozos do mundo o melhor valor.
Mais de um crente considera, em seu foro ntimo, que
assegurado o seu futuro pelo preenchimento de certas fr-
mulas ou por ddivas pstumas, que de nada o privam,
seria suprfluo impor-se sacrifcios ou quaisquer incmo-
dos por outrem, uma vez que se consegue a salvao traba-
lhando cada qual por si.
Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mes-
mo muitas e honrosas excees; mas no se poderia con-
testar que assim pensa o maior nmero, sobretudo das
massas pouco esclarecidas, e que a idia que fazem das
condies de felicidade no outro mundo no entretenha o
apego aos bens deste, acorooando o egosmo.
8. Acrescentemos ainda a circunstncia de tudo nas usanas
concorrer para lamentar a perda da vida terrestre e temer a
passagem da Terra ao cu. A morte rodeada de cerimnias
lgubres, mais prprias a infundirem terror do que a pro-
vocarem a esperana. Se descrevem a morte, sempre com
aspecto repelente e nunca como sono de transio; todos
os seus emblemas lembram a destruio do corpo, mos-
trando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma
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28 O CU E O INFERNO
desembaraando-se radiosa dos grilhes terrestres. A par-
tida para esse mundo mais feliz s se faz acompanhar do
lamento dos sobreviventes, como se imensa desgraa atin-
gira os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se
jamais devessem rev-los. Lastima-se por eles a perda dos
gozos mundanos, como se no fossem encontrar maiores
gozos no alm-tmulo. Que desgraa, dizem, morrer to
jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro bri-
lhante! A idia de um futuro melhor apenas toca de leve o
pensamento, porque no tem nele razes. Tudo concorre,
assim, para inspirar o terror da morte, em vez de infundir
esperana.
Sem dvida que muito tempo ser preciso para o ho-
mem se desfazer desses preconceitos, o que no quer dizer
que isto no suceda, medida que a sua f se for firmando,
a ponto de conceber uma idia mais sensata da vida
espiritual.
9. Demais, a crena vulgar coloca as almas em regies ape-
nas acessveis ao pensamento, onde se tornam de alguma
sorte estranhas aos vivos; a prpria Igreja pe entre umas e
outras uma barreira insupervel, declarando rotas todas
as relaes e impossvel qualquer comunicao. Se as al-
mas esto no inferno, perdida toda a esperana de as
rever, a menos que l se v ter tambm; se esto entre os
eleitos, vivem completamente absortas em contemplativa
beatitude. Tudo isso interpe entre mortos e vivos uma dis-
tncia tal que faz supor eterna a separao, e por isso que
muitos preferem ter junto de si, embora sofrendo, os entes
caros, antes que v-los partir, ainda mesmo que para o cu.
E a alma que estiver no cu ser realmente feliz vendo,
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29TEMOR DA MOR TE
por exemplo, arder eternamente seu filho, seu pai, sua me
ou seus amigos?
Por que os espritas no temem a morte
10. A Doutrina Esprita transforma completamente a pers-
pectiva do futuro. A vida futura deixa de ser uma hiptese
para ser realidade. O estado das almas depois da morte no
mais um sistema, porm o resultado da observao. Er-
gueu-se o vu; o mundo espiritual aparece-nos na plenitude
de sua realidade prtica; no foram os homens que o desco-
briram pelo esforo de uma concepo engenhosa, so os
prprios habitantes desse mundo que nos vm descrever a
sua situao; a os vemos em todos os graus da escala espi-
ritual, em todas as fases da felicidade e da desgraa, assis-
tindo, enfim, a todas as peripcias da vida de alm-tmulo.
Eis a por que os espritas encaram a morte calmamente e
se revestem de serenidade nos seus ltimos momentos so-
bre a Terra. J no s a esperana, mas a certeza que os
conforta; sabem que a vida futura a continuao da vida
terrena em melhores condies e aguardam-na com a mes-
ma confiana com que aguardariam o despontar do Sol aps
uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiana de-
correm, outrossim, dos fatos testemunhados e da concor-
dncia desses fatos com a lgica, com a justia e bondade
de Deus, correspondendo s ntimas aspiraes da Huma-
nidade.
Para os espritas, a alma no uma abstrao; ela tem
um corpo etreo que a define ao pensamento, o que muito
para fixar as idias sobre a sua individualidade, aptides e
percepes. A lembrana dos que nos so caros repousa
sobre alguma coisa de real. No se nos apresentam mais
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30 O CU E O INFERNO
como chamas fugitivas que nada falam ao pensamento,
porm sob uma forma concreta que antes no-los mostra
como seres viventes. Alm disso, em vez de perdidos nas
profundezas do Espao, esto ao redor de ns; o mundo
corporal e o mundo espiritual identificam-se em perptuas
relaes, assistindo-se mutuamente.
No mais permissvel sendo a dvida sobre o futuro,
desaparece o temor da morte; encara-se a sua aproximao
a sangue-frio, como quem aguarda a libertao pela porta
da vida e no do nada.
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C A P T U L O I I I
O cu
1. Em geral, a palavra cu designa o espao indefinido que
circunda a Terra, e mais particularmente a parte que est
acima do nosso horizonte. Vem do latim coelum, formada
do grego coilos, cncavo, porque o cu parece uma imensa
concavidade.
Os antigos acreditavam na existncia de muitos cus
superpostos, de matria slida e transparente, formando
esferas concntricas e tendo a Terra por centro.
Girando essas esferas em torno da Terra, arrastavam
consigo os astros que se achavam em seu circuito.
Essa idia, provinda da deficincia de conhecimen-
tos astronmicos, foi a de todas as teogonias, que fize-
ram dos cus, assim escalados, os diversos degraus da
bem-aventurana: o ltimo deles era abrigo da suprema
felicidade.
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32 O CU E O INFERNO
Segundo a opinio mais comum, havia sete cus e da
a expresso estar no stimo cu para exprimir perfeita
felicidade. Os muulmanos admitem nove cus, em cada
um dos quais se aumenta a felicidade dos crentes.
O astrnomo Ptolomeu1 contava onze e denominava ao
ltimo Empreo2 por causa da luz brilhante que nele reina.
este ainda hoje o nome potico dado ao lugar da
glria eterna. A teologia crist reconhece trs cus: o pri-
meiro o da regio do ar e das nuvens; o segundo, o espao
em que giram os astros, e o terceiro, para alm deste, a
morada do Altssimo, a habitao dos que o contemplam
face a face. conforme a esta crena que se diz que
S. Paulo foi alado ao terceiro cu.
2. As diferentes doutrinas relativamente ao paraso repou-
sam todas no duplo erro de considerar a Terra centro do
Universo, e limitada a regio dos astros.
alm desse limite imaginrio que todas tm colocado
a residncia afortunada e a morada do Todo-Poderoso.
Singular anomalia que coloca o Autor de todas as coi-
sas, Aquele que as governa a todas, nos confins da criao,
em vez de no centro, donde o seu pensamento poderia,
irradiante, abranger tudo!
3. A Cincia, com a lgica inexorvel da observao e dos
fatos, levou o seu archote s profundezas do Espao e mos-
trou a nulidade de todas essas teorias.
1 Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo sculo da eracrist.
2 Do grego, pur ou pyr, fogo.
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33O CU
A Terra no mais o eixo do Universo, porm um dos
menores astros que rolam na imensidade; o prprio Sol mais
no do que o centro de um turbilho planetrio; as estre-
las so outros tantos e inumerveis sis, em torno dos quais
circulam mundos sem conta, separados por distncias ape-
nas acessveis ao pensamento, embora se nos afigure
tocarem-se. Neste conjunto grandioso, regido por leis eter-
nas reveladoras da sabedoria e onipotncia do Criador
, a Terra no mais que um ponto imperceptvel e um
dos planetas menos favorecidos quanto habitabilidade.
E, assim sendo, lcito perguntar por que Deus faria da
Terra a nica sede da vida e nela degredaria as suas criatu-
ras prediletas? Mas, ao contrrio, tudo anuncia a vida por
toda parte e a Humanidade infinita como o Universo.
Revelando-nos a Cincia mundos semelhantes ao nosso,
Deus no podia t-los criado sem intuito, antes deve t-los
povoado de seres capazes de os governar.
4. As idias do homem esto na razo do que ele sabe; como
todas as descobertas importantes, a da constituio dos
mundos deveria imprimir-lhes outro curso; sob a influncia
desses conhecimentos novos, as crenas se modificaram; o
Cu foi deslocado e a regio estelar, sendo ilimitada, no
mais lhe pode servir. Onde est ele, pois? E ante esta ques-
to emudecem todas as religies.
O Espiritismo vem resolv-las demonstrando o verda-
deiro destino do homem. Tomando-se por base a natureza
deste ltimo e os atributos divinos, chega-se a uma conclu-
so; isto quer dizer que partindo do conhecido atinge-se o
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34 O CU E O INFERNO
desconhecido por uma deduo lgica, sem falar das ob-
servaes diretas que o Espiritismo faculta.
5. O homem compe-se de corpo e Esprito: o Esprito o
ser principal, racional, inteligente; o corpo o invlucro
material que reveste o Esprito temporariamente, para
preenchimento da sua misso na Terra e execuo do traba-
lho necessrio ao seu adiantamento. O corpo, usado, des-
tri-se e o Esprito sobrevive sua destruio. Privado do
Esprito, o corpo apenas matria inerte, qual instrumento
privado da mola real de funo; sem o corpo, o Esprito
tudo: a vida, a inteligncia. Em deixando o corpo, torna ao
mundo espiritual, onde paira, para depois reencarnar.
Existem, portanto, dois mundos: o corporal, composto
de Espritos encarnados; e o espiritual, formado dos Esp-
ritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido
mesmo materialidade do seu envoltrio, esto ligados
Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual ostenta-se
por toda parte, em redor de ns como no Espao, sem limi-
te algum designado. Em razo mesmo da natureza fludica
do seu envoltrio, os seres que o compem, em lugar de se
locomoverem penosamente sobre o solo, transpem as dis-
tncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo no
mais que a ruptura dos laos que os retinham cativos.
6. Os Espritos so criados simples e ignorantes, mas dota-
dos de aptides para tudo conhecerem e para progredirem,
em virtude do seu livre-arbtrio. Pelo progresso adquirem
novos conhecimentos, novas faculdades, novas percepes
e, conseguintemente, novos gozos desconhecidos dos Esp-
ritos inferiores; eles vem, ouvem, sentem e compreendem
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35O CU
o que os Espritos atrasados no podem ver, sentir, ouvir
ou compreender.
A felicidade est na razo direta do progresso realiza-
do, de sorte que, de dois Espritos, um pode no ser to feliz
quanto outro, unicamente por no possuir o mesmo adianta-
mento intelectual e moral, sem que por isso precisem estar,
cada qual, em lugar distinto. Ainda que juntos, pode um es-
tar em trevas, enquanto que tudo resplandece para o outro,
tal como um cego e um vidente que se do as mos: este
percebe a luz da qual aquele no recebe a mnima impresso.
Sendo a felicidade dos Espritos inerente s suas quali-
dades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram,
seja superfcie da Terra, no meio dos encarnados, ou no
Espao.
Uma comparao vulgar far compreender melhor esta
situao. Se se encontrarem em um concerto dois homens,
um, bom msico, de ouvido educado, e outro, desconhecedor
da msica, de sentido auditivo pouco delicado, o primeiro
experimentar sensao de felicidade, enquanto o segundo
permanecer insensvel, porque um compreende e percebe
o que nenhuma impresso produz no outro. Assim sucede
quanto a todos os gozos dos Espritos, que esto na razo
da sua sensibilidade.
O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, har-
monias e sensaes que os Espritos inferiores, submetidos
influncia da matria, no entrevem sequer, e que somen-
te so acessveis aos Espritos purificados.
7. O progresso nos Espritos o fruto do prprio trabalho;
mas, como so livres, trabalham no seu adiantamento com
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36 O CU E O INFERNO
maior ou menor atividade, com mais ou menos negligncia,
segundo sua vontade, acelerando ou retardando o progres-
so e, por conseguinte, a prpria felicidade.
Enquanto uns avanam rapidamente, entorpecem-se
outros, quais poltres, nas fileiras inferiores. So eles, pois,
os prprios autores da sua situao, feliz ou desgraada,
conforme esta frase do Cristo: A cada um segundo as
suas obras.
Todo Esprito que se atrasa no pode queixar-se seno
de si mesmo, assim como o que se adianta tem o mrito
exclusivo do seu esforo, dando por isso maior apreo
felicidade conquistada.
A suprema felicidade s compartilhada pelos Espri-
tos perfeitos, ou, por outra, pelos puros Espritos, que no
a conseguem seno depois de haverem progredido em inte-
ligncia e moralidade.
O progresso intelectual e o progresso moral raramente
marcham juntos, mas o que o Esprito no consegue em
dado tempo, alcana em outro, de modo que os dois pro-
gressos acabam por atingir o mesmo nvel.
Eis por que se vem muitas vezes homens inteligentes
e instrudos pouco adiantados moralmente, e vice-versa.
8. A encarnao necessria ao duplo progresso moral e
intelectual do Esprito: ao progresso intelectual pela ativi-
dade obrigatria do trabalho; ao progresso moral pela ne-
cessidade recproca dos homens entre si. A vida social a
pedra de toque das boas ou ms qualidades.
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37O CU
A bondade, a maldade, a doura, a violncia, a bene-
volncia, a caridade, o egosmo, a avareza, o orgulho, a hu-
mildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a m-f, a
hipocrisia, em uma palavra, tudo o que constitui o homem
de bem ou o perverso tem por mvel, por alvo e por estmu-
lo as relaes do homem com os seus semelhantes.
Para o homem que vivesse insulado no haveria vcios
nem virtudes; preservando-se do mal pelo insulamento, o bem
de si mesmo se anularia.
9. Uma s existncia corporal manifestamente insufi-
ciente para o Esprito adquirir todo o bem que lhe falta e
eliminar o mal que lhe sobra.
Como poderia o selvagem, por exemplo, em uma s
encarnao nivelar-se moral e intelectualmente ao mais
adiantado europeu? materialmente impossvel. Deve ele,
pois, ficar eternamente na ignorncia e barbaria, privado
dos gozos que s o desenvolvimento das faculdades pode
proporcionar-lhe?
O simples bom-senso repele tal suposio, que seria
no somente a negao da justia e bondade divinas, mas
das prprias leis evolutivas e progressivas da Natureza. Mas
Deus, que soberanamente justo e bom, concede ao Esp-
rito tantas encarnaes quantas as necessrias para atin-
gir seu objetivo a perfeio.
Para cada nova existncia de permeio matria, entra
o Esprito com o cabedal adquirido nas anteriores, em apti-
des, conhecimentos intuitivos, inteligncia e moralidade.
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38 O CU E O INFERNO
Cada existncia assim um passo avante no caminho do
progresso.1
A encarnao inerente inferioridade dos Espritos,
deixando de ser necessria desde que estes, transpondo-lhe
os limites, ficam aptos para progredir no estado espiritual,
ou nas existncias corporais de mundos superiores, que
nada tm da materialidade terrestre. Da parte destes a
encarnao voluntria, tendo por fim exercer sobre os
encarnados uma ao mais direta e tendente ao cumpri-
mento da misso que lhes compete junto dos mesmos. Desse
modo aceitam abnegadamente as vicissitudes e sofrimen-
tos da encarnao.
10. No intervalo das existncias corporais o Esprito torna
a entrar no mundo espiritual, onde feliz ou desgraado
segundo o bem ou o mal que fez.
Uma vez que o estado espiritual o estado definitivo
do Esprito e o corpo espiritual no morre, deve ser esse
tambm o seu estado normal. O estado corporal transit-
rio e passageiro. no estado espiritual sobretudo que o
Esprito colhe os frutos do progresso realizado pelo traba-
lho da encarnao; tambm nesse estado que se prepara
para novas lutas e toma as resolues que h de pr em
prtica na sua volta Humanidade.
O Esprito progride igualmente na erraticidade, adqui-
rindo conhecimentos especiais que no poderia obter na
Terra, e modificando as suas idias. O estado corporal e o
espiritual constituem a fonte de dois gneros de progresso,
1 Vede 1 Parte, cap. I, n 3, nota 1.
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39O CU
pelos quais o Esprito tem de passar alternadamente, nas
existncias peculiares a cada um dos dois mundos.
11. A reencarnao pode dar-se na Terra ou em outros mun-
dos. H entre os mundos alguns mais adiantados onde a
existncia se exerce em condies menos penosas que na
Terra, fsica e moralmente, mas onde tambm s so admi-
tidos Espritos chegados a um grau de perfeio relativo ao
estado desses mundos.
A vida nos mundos superiores j uma recompensa,
visto nos acharmos isentos, a, dos males e vicissitudes
terrenos. Onde os corpos, menos materiais, quase fludicos,
no mais so sujeitos s molstias, s enfermidades, e
tampouco tm as mesmas necessidades. Excludos os Es-
pritos maus, gozam os homens de plena paz, sem outra
preocupao alm da do adiantamento pelo trabalho
intelectual.
Reina l a verdadeira fraternidade, porque no h
egosmo; a verdadeira igualdade, porque no h orgulho, e
a verdadeira liberdade por no haver desordens a reprimir,
nem ambiciosos que procurem oprimir o fraco.
Comparados Terra, esses mundos so verdadeiros
parasos, quais pousos ao longo do caminho do progresso
conducente ao estado definitivo. Sendo a Terra um mundo
inferior destinado purificao dos Espritos imperfeitos,
est nisso a razo do mal que a predomina, at que praza
a Deus fazer dela morada de Espritos mais adiantados.
Assim que o Esprito, progredindo gradualmente medi-
da que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade; po-
rm, antes de ter atingido a culminncia da perfeio, goza
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40 O CU E O INFERNO
de uma felicidade relativa ao seu progresso. A criana tam-
bm frui os prazeres da infncia, mais tarde os da mocida-
de, e finalmente os mais slidos, da madureza.
12. A felicidade dos Espritos bem-aventurados no con-
siste na ociosidade contemplativa, que seria, como temos
dito muitas vezes, uma eterna e fastidiosa inutilidade.
A vida espiritual em todos os seus graus , ao contrrio,
uma constante atividade, mas atividade isenta de fadigas.
A suprema felicidade consiste no gozo de todos os es-
plendores da Criao, que nenhuma linguagem humana
jamais poderia descrever, que a imaginao mais fecunda
no poderia conceber. Consiste tambm na penetrao de
todas as coisas, na ausncia de sofrimentos fsicos e mo-
rais, numa satisfao ntima, numa serenidade dalma im-
perturbvel, no amor que envolve todos os seres, por causa
da ausncia de atrito pelo contacto dos maus, e, acima de
tudo, na contemplao de Deus e na compreenso dos seus
mistrios revelados aos mais dignos. A felicidade tambm
existe nas tarefas cujo encargo nos faz felizes. Os puros
Espritos so os Messias ou mensageiros de Deus pela trans-
misso e execuo das suas vontades. Preenchem as gran-
des misses, presidem formao dos mundos e harmo-
nia geral do Universo, tarefa gloriosa a que se no chega
seno pela perfeio. Os da ordem mais elevada so os ni-
cos a possurem os segredos de Deus, inspirando-se no seu
pensamento, de que so diretos representantes.
13. As atribuies dos Espritos so proporcionadas ao seu
progresso, s luzes que possuem, s suas capacidades, ex-
perincia e grau de confiana inspirada ao Senhor soberano.
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41O CU
Nem favores, nem privilgios que no sejam o prmio
ao mrito; tudo medido e pesado na balana da estrita
justia.
As misses mais importantes so confiadas somente
queles que Deus julga capazes de as cumprir e incapazes
de desfalecimento ou comprometimento. E enquanto que os
mais dignos compem o supremo conselho, sob as vistas de
Deus, a chefes superiores cometida a direo de turbilhes
planetrios, e a outros conferida a de mundos especiais. Vm,
depois, pela ordem de adiantamento e subordinao hierr-
quica, as atribuies mais restritas dos prepostos ao pro-
gresso dos povos, proteo das famlias e indivduos, ao
impulso de cada ramo de progresso, s diversas operaes
da Natureza at aos mais nfimos pormenores da Criao.
Neste vasto e harmnico conjunto h ocupaes para todas
as capacidades, aptides e esforos; ocupaes aceitas com
jbilo, solicitadas com ardor, por serem um meio de adian-
tamento para os Espritos que ao progresso aspiram.
14. Ao lado das grandes misses confiadas aos Espritos
superiores, h outras de importncia relativa em todos os
graus, concedidas a Espritos de todas as categorias, poden-
do afirmar-se que cada encarnado tem a sua, isto , deveres
a preencher a bem dos seus semelhantes, desde o chefe de
famlia, a quem incumbe o progresso dos filhos, at o ho-
mem de gnio que lana s sociedades novos germens de
progresso. nessas misses secundrias que se verificam
desfalecimentos, prevaricaes e renncias que prejudicam
o indivduo sem afetar o todo.
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42 O CU E O INFERNO
15. Todas as inteligncias concorrem, pois, para a obra
geral, qualquer que seja o grau atingido, e cada uma na
medida das suas foras, seja no estado de encarnao ou
no espiritual. Por toda parte a atividade, desde a base ao
pice da escala, instruindo-se, coadjuvando-se em mtuo
apoio, dando-se as mos para alcanarem o znite.
Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo es-
piritual e o corporal, ou, em outros termos, entre os homens
e os Espritos, entre os Espritos libertos e os cativos. Assim
se perpetuam e consolidam, pela purificao e continuidade
de relaes, as verdadeiras simpatias e nobres afeies.
Por toda parte, a vida e o movimento: nenhum canto
do infinito despovoado, nenhuma regio que no seja in-
cessantemente percorrida por legies inumerveis de Esp-
ritos radiantes, invisveis aos sentidos grosseiros dos en-
carnados, mas cuja vista deslumbra de alegria e admirao
as almas libertas da matria. Por toda parte, enfim, h uma
felicidade relativa a todos os progressos, a todos os deveres
cumpridos, trazendo cada um consigo os elementos de sua
felicidade, decorrente da categoria em que se coloca pelo
seu adiantamento.
Das qualidades do indivduo depende-lhe a felicidade, e
no do estado material do meio em que se encontra, podendo
a felicidade, portanto, existir em qualquer parte onde haja
Espritos capazes de a gozar. Nenhum lugar lhe circunscrito
e assinalado no Universo.
Onde quer que se encontrem, os Espritos podem con-
templar a majestade divina, porque Deus est em toda parte.
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43O CU
16. Entretanto, a felicidade no pessoal: Se a possusse-
mos somente em ns mesmos, sem poder reparti-la com
outrem, ela seria tristemente egosta. Tambm a encontra-
mos na comunho de idias que une os seres simpticos.
Os Espritos felizes, atraindo-se pela similitude de gestos e
sentimentos, formam vastos agrupamentos ou famlias
homogneas, no seio das quais cada individualidade irra-
dia as qualidades prprias e satura-se dos eflvios serenos
e benficos emanados do conjunto.
Os membros deste, ora se dispersam para se darem
sua misso, ora se renem em dado ponto do Espao a fim
de se prestarem contas do trabalho realizado, ora se con-
gregam em torno dum Esprito mais elevado para recebe-
rem instrues e conselhos.
17. Posto que os Espritos estejam por toda parte, os mun-
dos so de preferncia os seus centros de atrao, em vir-
tude da analogia existente entre eles e os que os habitam.
Em torno dos mundos adiantados abundam Espritos su-
periores, como em torno dos atrasados pululam Espritos
inferiores. Cada globo tem, de alguma sorte, sua populao
prpria de Espritos encarnados e desencarnados, alimenta-
da em sua maioria pela encarnao e desencarnao dos mes-
mos. Esta populao mais estvel nos mundos inferiores,
pelo apego deles matria, e mais flutuante nos
superiores.
Destes ltimos, porm, verdadeiros focos de luz e feli-
cidade, Espritos se destacam para mundos inferiores a fim
de neles semearem os germens do progresso, levar-lhes con-
solao e esperana, levantar os nimos abatidos pelas pro-
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44 O CU E O INFERNO
vaes da vida. Por vezes tambm se encarnam para cum-
prir com mais eficcia a sua misso.
18. Nessa imensidade ilimitada, onde est o Cu? Em toda
parte. Nenhum contorno lhe traa limites. Os mundos
adiantados so as ltimas estaes do seu caminho, que
as virtudes franqueiam e os vcios interditam. Ante este
quadro grandioso que povoa o Universo, que d a todas as
coisas da Criao um fim e uma razo de ser, quanto
pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a Hu-
manidade a um ponto imperceptvel do Espao, que no-la
mostra comeando em dado instante para acabar igual-
mente com o mundo que a contm, no abrangendo mais
que um minuto na Eternidade!
Como triste, fria, glacial essa doutrina quando nos
mostra o resto do Universo, durante e depois da Humani-
dade terrestre, sem vida, nem movimento, qual vastssimo
deserto imerso em profundo silncio! Como desesperadora
a perspectiva dos eleitos votados contemplao perptua,
enquanto a maioria das criaturas padece tormentos sem-
-fim! Como lacera os coraes sensveis a idia dessa bar-
reira entre mortos e vivos! As almas ditosas, dizem, s pen-
sam na sua felicidade, como as desgraadas, nas suas dores.
Admira que o egosmo reine sobre a Terra quando no-lo
mostram no Cu?
Oh! quo mesquinha se nos afigura essa idia da gran-
deza, do poder e da bondade de Deus! Quanto sublime a
idia que dEle fazemos pelo Espiritismo! Quanto a sua dou-
trina engrandece as idias e amplia o pensamento! Mas,
quem diz que ela verdadeira? A Razo primeiro, a Revela-
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45O CU
o depois, e, finalmente, a sua concordncia com os pro-
gressos da Cincia. Entre duas doutrinas, das quais uma
amesquinha e a outra exalta os atributos de Deus; das quais
uma s est em desacordo e a outra em harmonia com o
progresso; das quais uma se deixa ficar na retaguarda en-
quanto a outra caminha, o bom-senso diz de que lado est
a verdade. Que, confrontando-as, consulte cada qual a cons-
cincia, e uma voz ntima lhe falar por ela. Pois bem, es-
sas aspiraes ntimas so a voz de Deus, que no pode
enganar os homens. Mas, dir-se-, por que Deus no lhes
revelou de princpio toda a verdade? Pela mesma razo por
que se no ensina infncia o que se ensina aos de idade
madura.
A revelao limitada foi suficiente a certo perodo da
Humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao pro-
gresso e s foras do Esprito.
Os que recebem hoje uma revelao mais completa so
os mesmos Espritos que tiveram dela uma partcula em
outros tempos e que de ento por diante se engrandeceram
em inteligncia.
Antes de a Cincia ter revelado aos homens as foras
vivas da Natureza, a constituio dos astros, o verdadeiro
papel da Terra e sua formao, poderiam eles compreender
a imensidade do Espao e a pluralidade dos mundos? Antes
de a Geologia comprovar a formao da Terra, poderiam os
homens tirar-lhe o inferno das entranhas e compreender o
sentido alegrico dos seis dias da Criao? Antes de a Astro-
nomia descobrir as leis que regem o Universo, poderiam
compreender que no h alto nem baixo no Espao, que o
cu no est acima das nuvens nem limitado pelas estre-
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46 O CU E O INFERNO
las? Poderiam identificar-se com a vida espiritual antes dos
progressos da cincia psicolgica? conceber depois da morte
uma vida feliz ou desgraada, a no ser em lugar circuns-
crito e sob uma forma material? No; compreendendo mais
pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito
vasto para a sua concepo; era preciso restringi-lo ao seu
ponto de vista para alarg-lo mais tarde. Uma revelao
parcial tinha sua utilidade, e, embora sbia at ento, no
satisfaria hoje. O absurdo provm dos que pretendem po-
der governar os homens de pensamento, sem se darem con-
ta do progresso das idias, quais se fossem crianas. (Vede
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.)
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INTUIO DAS PENAS FUTURAS
1. Desde todas as pocas o homem acreditou, por intuio,
que a vida futura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o
mal praticado neste mundo. A idia que ele faz, porm, dessa
vida est em relao com o seu desenvolvimento, senso
moral e noes mais ou menos justas do bem e do mal.
As penas e recompensas so o reflexo dos instintos
predominantes. Os povos guerreiros fazem consistir a su-
prema felicidade nas honras conferidas bravura; os caa-
dores, na abundncia da caa; os sensuais, nas delcias da
voluptuosidade. Dominado pela matria, o homem no pode
compreender seno imperfeitamente a espiritualidade, ima-
ginando para as penas e gozos futuros um quadro mais
C A P T U L O I V
O inferno
Intuio das penas futuras
O inferno cristo imitado do inferno pago
Os limbos
Quadro do inferno pago
Esboo do inferno cristo
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48 O CU E O INFERNO
material que espiritual; afigura-se-lhe que deve comer e
beber no outro mundo, porm melhor que na Terra.1
Mais tarde j se encontra nas crenas sobre a vida
futura um misto de espiritualismo e materialismo: a
beatitude contemplativa concorrendo com o inferno das
torturas fsicas.
2. No podendo compreender seno o que v, o homem
primitivo naturalmente moldou o seu futuro pelo presente;
para compreender outros tipos, alm dos que tinha vista,
ser-lhe-ia preciso um desenvolvimento intelectual que s o
tempo deveria completar. Tambm o quadro por ele ideado
sobre as penas futuras no seno o reflexo dos males da
Humanidade, em mais vasta proporo, reunindo-lhe to-
das as torturas, suplcios e aflies que achou na Terra.
Nos climas abrasadores imaginou um inferno de fogo, e
nas regies boreais um inferno de gelo. No estando ainda
desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a com-
preender o mundo espiritual, no podia conceber seno
penas materiais; e assim, com pequenas diferenas de for-
ma, os infernos de todas as religies se assemelham.
O INFERNO CRISTO IMITADO DO INFERNO PAGO
3. O inferno pago, descrito e dramatizado pelos poetas, foi
o modelo mais grandioso do gnero, e perpetuou-se no seio
dos cristos, onde, por sua vez, houve poetas e cantores.
1 Um pequeno saboiano, a quem o seu cura fazia a descrio da vidafutura, perguntou-lhe se todo o mundo l comia po branco, comoem Paris.
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49O INFERNO
Comparando-os, encontram-se neles salvo os nomes e
variantes de detalhe numerosas analogias; ambos tm o
fogo material por base de tormentos, como smbolo dos so-
frimentos mais atrozes. Mas, coisa singular! os cristos
exageraram em muitos pontos o inferno dos pagos. Se estes
tinham o tonel das Danaides, a roda de xion, o rochedo de
Ssifo, eram estes suplcios individuais; os cristos, ao con-
trrio, tm para todos, sem distino, as caldeiras ferven-
tes cujos tampos os anjos levantam para ver as contores
dos supliciados1; e Deus, sem piedade, ouve-lhes os gemi-
dos por toda a eternidade. Jamais os pagos descreveram
os habitantes dos Campos Elseos deleitando a vista nos
suplcios do Trtaro.2
4. Os cristos tm, como os pagos, o seu rei dos infernos
Sat com a diferena, porm, de que Pluto se limita-
va a governar o sombrio imprio, que lhe coubera em parti-
lha, sem ser mau; retinha em seus domnios os que haviam
praticado o mal, porque essa era a sua misso, mas no
induzia os homens ao pecado para desfrutar, tripudiar dos
seus sofrimentos. Sat, no entanto, recruta vtimas por toda
parte e regozija-se ao atorment-las com uma legio de de-
mnios armados de forcados a revolv-las no fogo.
1 Sermo pregado em Montpellier em 1860.2 Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, podero
afastar-se de certo modo em razo do seu dom de inteligncia e davista distinta, a fim de considerarem as torturas dos condenados,e, vendo-os, no somente sero insensveis dor, mas at ficarorepletos de alegria e rendero graas a Deus por sua prpria feli-cidade, assistindo inefvel calamidade dos mpios. (S. Toms deAquino.)
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50 O CU E O INFERNO
J se tem discutido seriamente sobre a natureza desse
fogo que queima mas no consome as vtimas. Tem-se mes-
mo perguntado se seria um fogo de betume.1
O inferno cristo nada cede, pois, ao inferno pago.
5. As mesmas consideraes que, entre os antigos, tinham
feito localizar o reino da felicidade, fizeram circunscrever
igualmente o lugar dos suplcios. Tendo-se colocado o pri-
meiro nas regies superiores, era natural reservar ao se-
gundo os lugares inferiores, isto , o centro da Terra, para
onde se acreditava servirem de entradas certas cavidades
sombrias, de aspecto terrvel. Os cristos tambm coloca-
ram ali, por muito tempo, a habitao dos condenados.
A este respeito, frisemos ainda outra analogia: O
inferno dos pagos continha de um lado os Campos Elseos
e do outro o Trtaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos
homens divinizados, ficava nas regies superiores. Segun-
do a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto ,
aos lugares baixos para deles tirar as almas dos justos que
lhe aguardavam a vinda.
Os infernos no eram, portanto, um lugar unicamente
de suplcio: estavam, tal como para os pagos, nos lugares
baixos.
A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos
lugares elevados. Colocaram-na para alm do cu estelar,
que se reputava limitado.
1 Sermo pregado em Paris em 1861.
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51O INFERNO
6. Esta mistura de idias crists e pags nada tem de sur-
preendente. Jesus no podia de um s golpe destruir
inveteradas crenas, faltando aos homens conhecimentos
necessrios para conceber a infinidade do Espao e o n-
mero infinito dos mundos; a Terra para eles era o centro do
Universo; no lhe conheciam a forma nem a estrutura in-
ternas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noes do
futuro no podiam ir alm dos seus conhecimentos. Jesus
encontrava-se, pois, na impossibilidade de os iniciar no
verdadeiro estado das coisas; mas no querendo, por outro
lado, com sua autoridade, sancionar prejuzos aceitos, abs-
teve-se de os retificar, deixando ao tempo essa misso. Ele
limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada, dos
castigos reservados aos culpados, sem referir-se jamais nos
seus ensinos a castigos e suplcios corporais, que consti-
turam para os cristos um artigo de f. Eis a como as
idias do inferno pago se perpetuaram at aos nossos dias.
E foi preciso a difuso das modernas luzes, o desenvolvi-
mento geral da inteligncia humana para se lhe fazer justi-
a. Como, porm, nada de positivo houvesse substitudo as
idias recebidas, ao longo perodo de uma crena cega su-
cedeu, transitoriamente, o perodo de incredulidade a que
vem pr termo a Nova Revelao. Era preciso demolir para
reconstruir, visto como mais fcil insinuar idias justas
aos que em nada crem, sentindo que algo lhes falta, do
que faz-lo aos que possuem uma idia robusta, ainda que
absurda.
7. Localizados o cu e o inferno, as seitas crists foram
levadas a no admitir para as almas seno duas situaes
extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O
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52 O CU E O INFERNO
purgatrio apenas uma posio intermediria e passagei-
ra, ao sair da qual as almas passam, sem transio, man-
so dos justos.
Outra no pode ser a hiptese, dada a crena na sorte
definitiva da alma aps a morte. Se no h mais de duas
habitaes, a dos eleitos e a dos condenados, no se podem
admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibi-
lidade de os franquear e, conseguintemente, o progresso.
Ora, se h progresso, no h sorte definitiva, e se h sorte
definitiva, no h progresso. Jesus resolveu a questo quan-
do disse: H muitas moradas na casa de meu Pai.1
OS LIMBOS
8. verdade que a Igreja admite uma posio especial em
casos particulares.
As crianas falecidas em tenra idade, sem fazer mal
algum, no podem ser condenadas ao fogo eterno. Mas,
tambm, no tendo feito bem, no lhes assiste direito
felicidade suprema. Ficam nos limbos, diz-nos a Igreja, nessa
situao jamais definida, na qual, se no sofrem, tambm
no gozam da bem-aventurana. Esta, sendo tal sorte
irrevogavelmente fixada, fica-lhes defesa para sempre. Tal
privao importa, assim, um suplcio eterno e tanto mais
imerecido, quanto certo no ter dependido dessas almas
que as coisas assim sucedessem. O mesmo se d quanto ao
selvagem que, no tendo recebido a graa do batismo e as
1 O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.
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53O INFERNO
luzes da religio, peca por ignorncia, entregue aos instin-
tos naturais. Certo, este no tem a responsabilidade e o
mrito cabveis ao que procede com conhecimento de cau-
sa. A simples lgica repele uma tal doutrina em nome da
justia de Deus, que se contm integralmente nestas pala-
vras do Cristo: A cada um, segundo as suas obras. Obras,
sim, boas ou ms, porm praticadas voluntria e livremen-
te, nicas que comportam responsabilidade. Neste caso no
podem estar a criana, o selvagem e tampouco aquele que
no foi esclarecido.
QUADRO DO INFERNO PAGO
9. O conhecimento do inferno pago nos fornecido quase
exclusivamente pela narrativa dos poetas. Homero e Verglio
dele deram a mais completa descrio, devendo, contudo,
levar-se em conta as necessidades poticas impostas for-
ma. A descrio de Fnelon, no Telmaco, posto que hauri-
da na mesma fonte quanto s crenas fundamentais, tem a
simplicidade mais concisa da prosa.
Descrevendo o aspecto lgubre dos lugares, preocupa-se,
principalmente, em realar o gnero de sofrimento dos cul-
pados, estendendo-se sobre a sorte dos maus reis com vis-
ta instruo do seu rgio discpulo. Por muito popular
que seja esta obra, nem todos tm presente memria a
sua descrio, ou no meditaram sobre ela de modo a esta-
belecer comparao, e assim acreditamos de utilidade re-
produzir os tpicos que mais diretamente interessam ao
nosso assunto, isto , os que se referem especialmente s
penas individuais.
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54 O CU E O INFERNO
10. Ao entrar, Telmaco ouve gemidos de uma sombra in-
consolvel. Qual , perguntava-lhe, a vossa desgraa? Quem
fostes na Terra? Nabofarzan, responde a sombra, rei da
soberba Babilnia. Ao ouvir meu nome tremiam todos os
povos do Oriente; fazia-me adorar pelos babilnios num
templo todo de mrmore, representado por uma esttua de
ouro, a cujos ps se queimavam noite e dia os preciosos
perfumes da Etipia; jamais algum ousou contradizer-me
sem de pronto ser punido; inventavam-se dia a dia praze-
res novos para tornar-me a vida mais e mais deliciosa.
Moo e robusto, quantos, oh! quantos prazeres me
restavam ainda por usufruir no trono! Mas certa mulher,
que eu amava e que me no correspondia, fez-me sentir
claramente que eu no era um deus: envenenou-me, e...
nada mais sou. As minhas cinzas foram ontem encerradas
com pompa em urna de ouro: choraram, arrancaram cabe-
los, pretenderam fingidamente atirar-se s chamas da mi-
nha fogueira, a fim de morrerem comigo, vo ainda gemer
junto do tmulo das minhas cinzas, mas ningum me de-
plora; a minha memria horroriza a prpria famlia, en-
quanto aqui em baixo sofro j horrveis suplcios.
Telmaco, compungido ante esse espetculo, diz-lhe:
reis vs verdadeiramente feliz durante o vosso reinado?
Senteis porventura essa paz suave sem a qual o corao se
conserva opresso e abatido em meio das delcias? No,
respondeu o babilnio; no sei mesmo o que quereis di-
zer. Os sbios exaltam essa paz como bem nico; quanto
raiva, nunca a senti, meu corao agitava-se continuamente
por novos desejos de temor e de esperana. Procurava atur-
dir-me com o abalo das prprias paixes, tendo o cuidado
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55O INFERNO
de entreter essa embriaguez para torn-la permanente, con-
tnua; o menor intervalo de razo, de calma, ser-me-ia muito
amargo. Eis a paz que fru; qualquer outra parece-me antes
uma fbula, um sonho. So esses os bens que choro.
Assim falando, o babilnio chorava qual homem pusi-
lnime, enervado pelas prosperidades, desabituado de su-
portar resignadamente uma desgraa. Havia junto dele al-
guns escravos mortos em homenagem honrosa aos seus
funerais. Mercrio os entregara a Caronte com o seu rei,
outorgando-lhes poder absoluto sobre esse rei, a quem ti-
nham servido na Terra. Essas sombras de escravos no te-
miam a sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada,
infligindo-lhe as mais cruis afrontas. Dizia-lhe uma: No
ramos ns homens iguais a ti? Insensato que eras, julga-
vas-te um deus, a ponto de esqueceres a tua origem co-
mum a todos os homens. Outra, para insult-lo, dizia:
Tinhas razo em no querer que por homem te houvessem,
porque na verdade eras um monstro desumano. Ainda ou-
tra: Ento?! onde esto agora os teus aduladores? nada
mais tens a dar, desgraado! nem mesmo o mal podes fazer
mais: eis-te reduzido a escravo dos teus escravos. A justia
dos deuses tarda, mas no falha.
A estas frases duras Nabofarzan se rojava por terra,
arrancando os cabelos em acesso de raiva e desespero. Mas
Caronte instigava os escravos: Arrastem-no pela corrente,
levantem-no contra a vontade. No possa ele consolar-se
escondendo a sua vergonha: preciso que todas as som-
bras do Estige a testemunhem como justificativa aos deu-
ses, que por tanto tempo toleraram o reinado terreno deste
mpio.
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56 O CU E O INFERNO
E ele avista logo, bem perto de si, o negro Trtaro
evolando escuro e espesso fumo, cujo cheiro meftico daria
a morte se se espalhasse pela morada dos vivos. Esse fumo
envolvia um rio de fogo, um turbilho de chamas, cujo
rudo, semelhante s torrentes mais caudalosas quando se
despenham de altos rochedos em profundos abismos, con-
corria para que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos.
Telmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem
medo nesse bratro. Viu primeiramente um grande nme-
ro de homens que tinham vivido nas mais humildes condi-
es, punidos por haverem procurado riquezas por meio de
fraudes, traies e crueldade. A notou muitos mpios hip-
critas que, simulando amar a religio, dela se tinham servi-
do como de um belo pretexto para satisfazerem ambies e
zombarem dos crdulos: os que haviam abusado at da pr-
pria Virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como
os mais celerados de todos os homens. Os filhos que haviam
degolado seus pais; as esposas que mancharam as mos
no sangue dos maridos; os traidores que venderam a p-
tria, violando todos os juramentos, sofriam, apesar de tudo,
penas menores que aqueles hipcritas.
Os trs juzes infernais assim o queriam, por esta ra-
zo: os hipcritas no se contentam com ser maus como os
demais mpios, porm querem passar por bons e concor-
rem por sua falsa virtude para a descrena e corrupo da
verdade. Os deuses, por eles zombados e desprezados pe-
rante os homens, empregam com prazer todo o seu poderio
para se vingarem de tais insultos.
Perto destes, outros homens aparecem, que vulgar-
mente se julgam isentos de culpa, mas que os deuses per-
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57O INFERNO
seguem desapiedadamente: so os ingratos, os mentirosos,
os aduladores que louvaram o vcio, os crticos perversos
que procuraram enodoar a mais pura virtude; enfim aque-
les que, julgando temerariamente das coisas, sem as
conhecer a fundo, prejudicaram por isso a reputao dos
inocentes.
Telmaco, vendo os trs juzes sentados a condena-
rem um homem, ousou perguntar-lhes quais os seus cri-
mes. O condenado, tomando a palavra, de pronto exclama-
va: Nunca fiz mal algum; todo o meu prazer era praticar o
bem: fui sempre generoso, justo, liberal e compassivo; que
se pode, pois, exprobrar-me?
Minos ento lhe disse: Nenhuma acusao se te faz
quanto aos homens, porm a estes menos no devias que
aos deuses? Que justia, pois, essa de que te vanglorias?
Para com os homens, que nada so, no faltaste jamais a
qualquer dever; foste virtuoso, certo, mas s atribuste
essa virtude a ti prprio, esquecendo os deuses que ta de-
ram, tudo porque querias gozar do fruto da tua virtude en-
cerrado em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses,
que tudo fizeram, e o fizeram para si, no podem renunciar
aos seus direitos; e, pois que quiseste pertencer-te e no a
eles, entregar-te-o a ti mesmo, esquecidos de ti como de-
les te esqueceste. Procura agora, se podes, o consolo em teu
prprio corao. Eis-te agora para sempre separado dos
homens, aos quais querias agradar; eis-te s contigo, tu
que eras o teu dolo: fica sabendo que no h verdadeira
virtude sem respeito e amor aos deuses, a quem tudo
devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslum-
brou os ingnuos, vai ser confundida. No julgando os ho-
mens o vcio e a virtude seno pelo que lhes agrada ou os
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58 O CU E O INFERNO
incomoda, so cegos quanto ao bem e quanto ao mal. Aqui,
uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais, conde-
nando muita vez o que eles admiram, e outras vezes justifi-
cando o que condenam.
A estas palavras, o filsofo, como que ferido por um
raio, mal podia suster-se. O deleite que tivera outrora em
rever a sua moderao, a coragem, as inclinaes genero-
sas, transformavam-se em desespero. A viso do prprio
corao inimigo dos deuses promove-lhe suplcios; v, e no
pode deixar de se ver; v a vaidade dos preconceitos huma-
nos, aos quais buscava lisonjear em todas as suas aes.
Opera-se uma revoluo radical em todo o seu ntimo, como
se lhe revolvessem todas as entranhas; reconhece-se ou-
tro; no encontra apoio no corao; a conscincia, cujo tes-
temunho to agradvel lhe fora, revolta-se contra ele,
incriminando-lhe amargamente o desvario, a iluso de to-
das as suas virtudes, que no tiveram por princpio e por
fim o culto da Divindade, e ei-lo perturbado, consternado,
preso da vergonha, do remorso, do desespero. As Frias
no o atormentam, bastando-lhes o terem-na entregado a si
prprio, para que expie pelo corao a vingana dos deuses
desprezados.
Procurando a treva no pode encontr-la, porquanto ino-
portuna luz o segue por toda parte; de todos os lados os
raios penetrantes da verdade vingam a verdade que ele des-
denhou seguir. Tudo que amava se lhe torna odioso como
fonte dos seus males infindveis. Murmura consigo: in-
sensato! no conheci, pois, nem os deuses, nem os homens,
nem a mim mesmo, porque jamais amei o verdadeiro e ni-
co bem; todos os meus passos foram tresloucados; a mi-
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59O INFERNO
nha sabedoria no passava de loucura; a minha virtude
mais no era que o orgulho impiedoso e cego: eu era
enfim o meu dolo!
Finalmente reconheceu Telmaco os reis condenados
por abuso de poder. De um lado, vingadora Fria apresen-
tava-lhes um espelho a refletir a monstruosidade dos seus
vcios: a viam, sem poder desviar os olhos, a vaidade gros-
seira e vida de ridculos louvores; a crueldade para com
aqueles a quem deveriam ter feito felizes; o temor da verda-
de, a insensibilidade para com as virtudes, a predileo pelos
cobardes e aduladores, a falta de aplicao, a inrcia, a
indolncia; a desconfiana ilimitada; o fausto e a magnifi-
cncia excessivos calcados sobre a runa dos povos; a am-
bio de glrias vs custa do sangue dos concidados; a
fereza, enfim, que procura a cada dia novas delcias nas l-
grimas e no desespero de tantos infelizes. Esses reis
reviam-se constantemente nesse espelho, achando-se mais
monstruosos e horrendos que a prpria Quimera vencida
por Belerofonte, que a Hidra de Lerna abatida por Hrcules e
que Crbero vomitando por suas trs goelas um sangue ne-
gro e venenoso, capaz de empestar todas as raas de mortais
que vivem sobre a Terra.
De outro lado, outra Fria lhes repetia injuriosamente
todos os louvores que os lisonjeiros lhes dispensavam em
vida e mostrava-lhes ainda outro espelho em que se viam
tais como a lisonja os pintara. Da anttese dos dois quadros
brotava o suplcio do amor-prprio. Era para notar que os
piores dentre esses reis, foram os que tiveram maiores e mais
fulgentes louvores durante a vida, por isso que os maus so
mais temidos que os bons e exigem impudicamente as vis
adulaes dos poetas e oradores do seu tempo.
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60 O CU E O INFERNO
Na profundeza dessas trevas, onde s insultos e es-
crnios padecem, ouvem-se-lhes os gemidos agoniados.
Nada os cerca que os no repila, contradiga e confunda em
contraste ao que supunham na vida, zombando dos ho-
mens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No
Trtaro, entregues a todos os caprichos de certos escravos,
estes lhes fazem provar por sua vez a mais cruel servido;
humilhados dolorosamente, no lhes resta esperana algu-
ma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual b