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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA

JOS RODRIGUES DE ALVARENGA FILHO

A CHACINA DO PAN E A PRODUO DE VIDAS DESCARTVEIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: NO D P NO TEM P NEM CABEA. NO TEM NINGUM QUE MEREA. NO TEM CORAO QUE ESQUEA.

NITERI 20101

JOS RODRIGUES DE ALVARENGA FILHO

A CHACINA DO PAN E A PRODUO DE VIDAS DESCARTVEIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: NO D P NO TEM P NEM CABEA. NO TEM NINGUM QUE MEREA. NO TEM CORAO QUE ESQUEA.

MESTRADO EM PSICOLOGIA.

Orientadora: Prof. Dr. Maria Lvia do Nascimento Co-Orientadora: Prof. Dr. Ktia Aguiar

NITERI 20102

Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

A473 Alvarenga Filho, Jos Rodrigues de. A Chacina do Pan e a produo de vidas descartveis na cidade do Rio de Janeiro: no d p no tem p nem cabea. No tem ningum que merea. No tem corao que esquea. / Jos Rodrigues de Alvarenga Filho. 2010. 316 f. ; il. Orientador: Maria Lvia do Nascimento. Co-orientador: Ktia Aguiar. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2010. Bibliografia: f. 190-216. 1. Subjetividade. 2. Segurana pblica. 3. Mdia. I. Nascimento, Maria Lvia do. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 158

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JOS RODRIGUES DE ALVARENGA FILHO

A CHACINA DO PAN E A PRODUO DE VIDAS DESCARTVEIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: NO D P NO TEM P NEM CABEA. NO TEM NINGUM QUE MEREA. NO TEM CORAO QUE ESQUEA.

Dissertao apresentada ao Programa de Psgraduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do grau de mestre em psicologia.

Orientadora: Prof. Dr. Maria Lvia do Nascimento Co-Orientadora: Prof. Dr. Ktia Aguiar

NITERI 2010

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Jos Rodrigues de Alvarenga Filho

A CHACINA DO PAN E A PRODUO DE VIDAS DESCARTVEIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: NO D P NO TEM P NEM CABEA. NO TEM NINGUM QUE MEREA. NO TEM CORAO QUE ESQUEA.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Prof. Dra. Maria Lvia do Nascimento - Orientadora Universidade Federal Fluminense

_____________________________________ Prof. Dra. Ktia Faria de Aguiar Co-orientadora Universidade Federal Fluminense

____________________________________ Prof. Dra. Ceclia Maria Bouas Coimbra Universidade Federal Fluminense

____________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Aos ninguns, que custam menos do que a bala que os mata.6

AGRADECIMENTOSA Maria Lvia por todos os bons encontros, orientaes, conversas e, principalmente, pela liberdade e apoio que me deu para ousar na construo desta pesquisa. Sempre presente, acessvel e exigente contribuiu para a realizao deste trabalho.

A Ktia Aguiar pelas crticas sinceras e leituras atentas do texto da pesquisa. Grata surpresa por ter surgido como co-orientadora no decorrer da pesquisa.

A Ceclia Coimbra por todas as sugestes de leituras, entrevistas e caminhos possveis. Pelas crticas, conversas e aprendizados.

Ao Pedro Paulo Bicalho, professor, orientador de estgio e companheiro de Comisso de Direitos Humanos, por ter me mostrado, ainda na graduao, as pegadas de Foucault; pelas aulas desestabilizadoras; pelo apoio.

A Vera Malaguti por ter contribudo, mesmo sem saber e de longe, com a minha formao.

A toda minha famlia e amigos por terem me apoiado e estado comigo durante estes dois anos de pesquisa. Todos buscaram, cada um de sua maneira, contribuir para que eu pudesse realizar esta pesquisa.

A Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) por ter financiado esta pesquisa.

A turma do mestrado e do doutorado UFF/2008 por termos, em pouco mais de dois anos, trilhado e compartilhado caminhos e sonhos to prximos.

Aos professores da Ps Graduao em Psicologia da UFF. Em especial Lilia Lobo, Mrcia Moraes e Helder Muniz. Alm de Lvia, Ktia e Ceclia.

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Ao grupo de orientao Lvia/Ktia. Em especial a Jonatha Rospide Nunes e Rafael Coelho Rodrigues. Ao grupo de pesquisa PIVETES (Programa de Interveno Voltado s Engrenagens e Territrios de Excluso Social) por ter me acolhido e aberto um novo espao de discusso e pesquisa durante o perodo do mestrado.

A Comisso de Estudantes do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-05): Ana Lcia Furtado, Vanda Moreira, Carlos Eduardo Norte (Cadu), Thiago Caetano, Raiana Micas (Rai), Gabriel Sert, Diego Visconti, a Ana Paula Uziel, a Maria Helena Zamora (MHZ).

A Comisso Regional de Direitos Humanos do CRP-Rio. Em especial a Luciana Vanzan por, mesmo sem me conhecer, ter acreditado no meu trabalho e me convidado a participar da Comisso.

Ao Grupo de Trabalho (GT) Psicologia e Mdia do CRP-Rio. Em especial a Noely Godoy, Conceio, Thiago Caetano, Carina Augusto e ngela Lopes. Grupo alegre e descontrado. A Silvia Helena Amaral, professora/orientadora, por na poca da graduao me apoiar na ideia de tentar fazer mestrado na UFF.

A Ansia Gilio por ter me apresentado a obra de Paulo Freire; pelas aulas, pelo apoio, pelas dicas e conversas sempre sinceras e crticas. A Heliana Conde, professora/orientadora, pelas aulas sobre Foucault (ou o Careca) e Anlise Institucional e por sua generosidade e pacincia em explicar cada conceito.

A Sabrina Souza da Silva por ter me apresentado um pouco do Ciep Thephilo de Souza Pinto e seu dia-a-dia na Favela Nova Braslia, Complexo do Alemo. A Andria por ter me indicado o timo livro Corpo negro cado no Cho.

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A Jos Carlos Brazo (Zeca) por, na Pr-Banca, ter lido e feito timos comentrios sobre minha pesquisa. A Aline Barbosa (musa do Forte de Copacabana) pela amizade, apoio, crticas, idias, sugestes, conversas, risos, caronas etc. Amiga do ousado e, muitas vezes, cansativo percurso UFF-UERJ. A Marina Vilar (musa do Recife) por ter me incentivado com tanta empolgao a fazer a prova do mestrado na UFF em 2008; pela amizade, pelas conversas, pelos debates e encontros. Tambm, amiga do percurso UFF-UERJ.

A Rodrigo Monteiro, amigo da poca de graduao. Bartono, piadista, companheiro e noivo da querida Bianca (Bia) Florencio.

A Antonio Carlos de Lima, amigo da graduao. Tenor, crtico, companheiro e aluno militante da residncia em Sade da Famlia da Fiocruz.

A Ana Silvia, amiga da graduao. Pelas parcerias, apoio, projetos, conversas e bons encontros. Aos alunos da disciplina Temas avanados em Psicologia Social (2009/2). Em especial Cristiane Nascimento (Cris), Gisele Diniz (Gi) e Paula Andrade (Paulinha).

A Mauricio Campos (Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia) que me concedeu uma entrevista sobre a atual conjuntura poltica do Rio de Janeiro e aceitou participar da disciplina que eu dei aula, junto com meus amigos de orientao e minha orientadora no segundo semestre de 2009 na UFF.

Ao jornalista Marcelo Salles que me concedeu uma entrevista em sua casa em Niteri na qual discutimos, entre muitas questes, as relaes entre grande mdia e Estado no Rio de Janeiro.

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Aos jornalistas e militantes que hoje fazem parte da chamada Mdia Alternativa e se recusam a se submeter lgica do mercado miditico brasileiro. Esta pesquisa deve muito aos veculos de comunicao da mdia alternativa. Em especial: Revista Caros Amigos e Revista Fazendo Mdia.

Aos inmeros companheiros de msica, canto e batucada da Escola Porttil de Msica (EPM). Foram muitas rodas de samba e choro aos sbados. Muitos encontros felizes e criativos no corinho da EPM ao som de sambas, marchas e choros: Eu tenho um calo que parece gente / Quando chega o tempo frio / Ele faz um tempo quente / Mas esse calo s falta falar / Ele adivinha at / Quando o tempo vai mudar / J me ensinaram / Pra arrancar com alicate / Pra botar tomate e pimenta-de-cheiro / Tenha pacincia, Dona Margarida / Eu no sou comida pra levar tempero1.

1

Choro Um calo de estimao (Z da Zilda e Jos Thadeu).

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RESUMONossa pesquisa tem por alvo colocar em anlise algumas questes sobre a trade segurana pblica mdia produo de subjetividades na cidade do Rio de Janeiro no primeiro semestre do ano de 2007. Para tanto, tomamos a Chacina do Pan como um acontecimento analisador para discutirmos: a) como se d, hoje, na cidade do Rio de Janeiro, a produo de vidas descartveis, isto , vidas sem valor; b) como alguns veculos de comunicao de grandes corporaes miditicas cobriram e apoiaram a Chacina no Complexo do Alemo; c) que processos de subjetivao so estes que vem sendo produzidos e que corroboram na produo do medo e da insegurana e, tambm, em aplausos e apoio a polticas de extermnios das populaes pobres cariocas. Nossa pesquisa constitui-se enquanto interveno, pois acreditamos que o papel do pesquisador no de apenas anotar, dissertar, entrevistar etc., mas, sobretudo, de intervir. Usamos como caixa de ferramentas, a obra de autores como Foucault, Guatarri, Agamben, Bauman, Wacquant, dentre outros. Fizemos uso de vasto material que compreende: artigos acadmicos, revistas semanais (impressas e online), sites de informao na internet, livros, documentrios, filmes, relatrios, manifestos, laudos, letras de msica, poesias, declaraes de autoridades etc. A chacina a qual nos referimos foi o resultado da mega-operao policial no Conjunto de Favelas do Complexo do Alemo em 27 de junho de 2007 e que terminou com a morte de 19 pessoas. A operao foi realizada alguns dias antes do incio dos jogos Pan-americanos e teve por alvo "apaziguar" o Complexo do Alemo para evitar que supostos "traficantes" atrapalhassem o referido evento. Relatrio realizado por peritos designados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal, concluram que h fortes indcios de excees sumrias e arbitrrias no Alemo. Atravs da pesquisa das notcias sobre violncia criminal na cidade do Rio de Janeiro em alguns veculos de comunicao, constatamos que o discurso dos mesmos foi um dos fatores que ajudou a alimentar o clima de medo e insegurana na cidade. Alm disso, tais discursos cobravam do governo fluminense uma "atitude determinada" para que os jogos Panamericanos do Rio de Janeiro no fossem prejudicados pela "onda crescente de criminalidade". A aclamada "atitude" do governo foi protagonizar nova chacina. Conclumos que a Chacina do Pan foi, para o grande pblico, a chacina que nunca aconteceu, pois nos discursos da grande mdia ou de polticos, a mesma foi vendida como: "um marco no combate criminalidade no pas" (Revista poca, 2007, ed. 476). Palavras - chaves: Produo de subjetividades, Segurana Pblica, Mdia, Vidas descartveis.11

ABSTRACTOur research is targeted as an analysis of some issues on the triad public safety - media - production of subjectivity in Rio de Janeiro in the first half of 2007. For this, we take the "Massacre of the Pan" as an event parser to discuss: a) as happens today in Rio de Janeiro, the production of Disposable lives, this is, worthless lives; b) as some communication vehicles major media corporations reported and supported the massacre in Complexo do Alemo; c) that these are subjective processes that has been produced and which support the production of fear and insecurity, and also to applause and support the policies of extermination of the poor in Rio. Our research is constituted as an intervention because we believe that the role of researcher is not only annotate, lecture, interview etc.. but more importantly, to intervene. We used as a toolbox the works of authors such as Foucault, Guattari, Agamben, Bauman, Wacquant, among others. We made extensive use of material comprising academic papers, weekly magazines (print and online), information sites on the Internet, books, documentaries, films, reports, manifestos, reports, letters, music, poetry, statements of authorities, etc. The massacre which we refer was the result of mega-police operation in the set of Conjunto de Favelas do Complexo do Alemo on June 27, 2007 and ending with the death of 19 people. The operation was performed a few days before the start of the Pan-American Games and target was to "appease" the Complexo do Alemo to prevent alleged "drug dealers" intrude on that event. Report conducted by experts appointed by the Special Secretariat for Human Rights of the Federal Government concluded that there is strong evidence of exceptions in the summary and arbitrary no Complexo do Alemo. Through the search of stories about criminal violence in Rio de Janeiro in some communication vehicles found that the speech was one of the same factors that helped fuel the climate of fear and insecurity in the city. Furthermore, these discourses were charging the Rio de Janeiro state government "Determined attitude" to the Pan-American Games in Rio de Janeiro were not harmed by the "rising tide of crime". The acclaimed "attitude" of government was new star in massacre. We conclude that the "Massacre of Pan" was, for the general public, the massacre that never happened, because the discourse of mainstream media or politicians, it was sold as: "A milestone in combating crime in the country"(Revista poca, 2007, ed. 476).

Keywords: Production of subjectivities, Public Safety, Media, Disposable Lives.

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SUMRIO

1. INTRODUO. Abrindo as cortinas: Bicho de sete cabeas2...........................................17

2. ATO I: No d p. No direito3: PAN-PAC e pau4...................................................34

2.1 Cena I: Viva est energia, viva esta energia, todo mundo junto pra jogar5....................34

2.2 Cena II: Pau! Pro rico o PAN esporte, pro favelado porrada e morte!6....................42

2.3 Cena III: As obras do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC)...........................61

3. ATO II: No tem jeito mesmo. No tem d no peito7: racismo, refugo humano e vida nua.............................................................................................................................................68

3.1 Cena I: Podem me prender. Podem me bater. Podem, at deixar-me sem comer. Que eu no mudo de opinio. Daqui do morro. Eu no saio, no: Documentrio Elas da favela8......................................................................................................................................69 3.2 Cena II: O morro sorri, mas chora por dentro 9: As duas chacinas da Favela Nova Braslia (1994-1995).................................................................................................................732

No ttulo desta pesquisa utilizo de um trecho da msica Bicho de sete cabeas (Z Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha). 3 Referncia cano Bicho de sete cabeas (Z Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha). 4 Em 2007 o Coronel do 16 Batalho da Polcia Militar do Rio de Janeiro, Marcus Jardim, afirmou que aquele ano seria de trs ps: os jogos pan-americanos, as obras do PAC e, enfim, o pau nos moradores do Complexo do Alemo e de outras comunidades da cidade. 5 Msica tema dos Jogos Pan-Americanos. Composta por Arnaldo Antunes e Liminha. Interpretada no espetculo de abertura dos jogos por Arnaldo Antunes e a cantora Ana Costa. 6 Protesto entoado por um grupo de manifestantes em torno do estdio do Maracan no dia da abertura dos jogos Pan-americanos. 7 Referncia cano Bicho de sete cabeas (Z Ramalho, Geraldo Azevedo, Renato Rocha). 8 Referncia cano Opinio (Z Kti).

13

3.3 Cena III: Tropa de elite osso duro de roer. Pega um, pega geral 10: Soberania, disciplina e biopoder..................................................................................................................................81 3.3.1 A Sociedade de Soberania................................................................................................82 3.3.2 A Sociedade Disciplinar...................................................................................................86 3.3.3 O racismo.........................................................................................................................99 3.3.4 A sociedade de Controle................................................................................................108 3.4 Cena IV: Vocs que fazem parte dessa massa, que passa nos projetos, do futuro11: refugo humano e vida nua.......................................................................................................110 3.4.1 Estado de exceo e vida nua.........................................................................................118

4. ATO III: No foi nada eu no fiz nada disso. E voc fez um bicho de 7 cabeas: Essa mdia que, atravs de suas matanas fictcias, nos faz acostumar com as matanas reais12.............................................................................................................................124

4.1 Cena I: Se h um assalto a banco. Como no podem prender o poderoso chefo. A os jornais vm logo dizendo que aqui no morro s mora ladro13: mdia e produo de subjetividade...........................................................................................................................125 4.2 Cena II: A favela, nunca foi reduto de marginal. Ela s tem gente humilde marginalizada e essa verdade no sai no jornal. A favela , um problema social14: a Revista poca e os novos rumos da guerra contra o crime no Rio de Janeiro ou a afirmao do Estado contra a barbrie15.....................................................................................................136

9

Referncia cano Favelado (Z Kti). Referncia cano Tropa de Elite (Egypcio, Pg, Romn, Baa, Leo e Jonny). 11 Referncia cano Admirvel gado novo (Z Ramalho). 12 LATUFF, C. Mdia burguesa: o pior de todos os caveires. Disponvel em:< 10 13 14

Referncia cano Vtimas da sociedade (Bezerra da Silva). Referncia cano Eu sou favela (Srgio Mosca e Noca da Portela). 15 Trechos da Revista poca (2007, Ed. 476).

14

4.3 Cena III: Eu no tenho papa na lngua e nem conversa fiada. Respeito ao sambista do morro deixem de palhaada16: A revista Veja e o ataque a cidadela do trfico................168 5. ATO IV (Consideraes finais): Enquanto o rico mora numa casa grande e bela, o pobre humilhado e esculachado na favela17.................................................................................177

REFERNCIAS....................................................................................................................190

ANEXO A Relatrio Tcnico Visita De Cooperao Tcnica. Rio De Janeiro, Julho de 2007........................................................................................................................................ 217

ANEXO B Carta Aberta a Nuzman 2007.........................................................................234

ANEXO C Recomendaes do Relatrio da Sociedade Civil para o Relator Especial das Naes Unidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais 2007.....................242

ANEXO D Nota de Repdio 2008...................................................................................247

ANEXO E - MANIFESTO PBLICO CONTRA A MEGA-OPERAO NO ALEMO 2007.........................................................................................................................................249

ANEXO F Manifesto pela Apurao das Violaes de Direitos Humanos Cometidas na Operao Complexo do Alemo 2007.................................................................................251

16 17

Referncia cano Partideiro indigesto (Bezerra da Silva). Referncia cano Rap da Felicidade (Julinho Rasta e Ktia).

15

ANEXO G Manifesto contra as Polticas de Extermnio 2007.......................................260

ANEXO H Chega de Massacres 2007.............................................................................263

ANEXO I Relatrio Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil 1999......................297

ANEXO J Relatrio Anual da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, da Organizao dos Estados Americanos (OEA) 1998............................................................304

ANEXO L NOTA DE REPDIO 2007............................................................................313

ANEXO M Mascote do Pan: Cau matador. Carlos Latuff, 2007..................................315

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1 INTRODUO. Abrindo as cortinas: Bicho de sete cabeas.

Esta pesquisa fruto de inmeras leituras, aulas, encontros, palestras e outros tantos atravessamentos. Mas ela o efeito, tambm, de muitos sonhos, estranhamentos e desejos de mudana. Ela nasce de nossa revolta diante das maneiras acovardadas e submissas de pensar e agir. Ela ergue-se contra as violncias e misrias que tentam subtrair a multiplicidade e beleza da vida, transformando seres humanos em lixo descartvel. Encaramos fazer esta pesquisa como um ato de resistncia e, ao mesmo tempo, de esperana. Resistir preciso. Nutrir esperana, tambm. Apostamos na construo de pesquisas que sirvam como ferramentas18, armas para questionar, criticar o que est posto, mas tambm, para pensar na criao de novos modos de existncia e em novos mundos possveis. Por isso, nossa pesquisa constitui-se enquanto pesquisa interveno (BARROS, 2009, p. 227), isto , o pesquisador no anota apenas, no escuta apenas, ele tambm intervm. Aprendemos a usar as teorias e as artes como armas e a fazer de nossa escrita um exerccio de liberdade, nunca de submisso. Escrever lutar, resistir... uma tarefa poltica, portanto (BARROS, 2009, p.28). Escrever , sobretudo, um trabalho tico. Pois, como defende Ferreira (2005, 23-4) seja em uma frase curta, em um poema ou em um ensaio, o que verdadeiramente importa que o ato de escrever somente mostra a sua fora a partir do momento que pe o leitor em uma nova perspectiva de si e do mundo. Por outro lado, preciso deixar claro de onde falamos, bem como, afirmar que se escrevemos no plural porque acreditamos que no coletivo nos fortalecemos e nos encontramos. No fazemos coro com aqueles que se escondem atrs do discursinho de cincia assptica (FLAUZINA, 2008), supostamente neutros e desimplicados 19. Como escreve Paulo Freire (1996, p. 101), minha voz tem outra semntica, outra msica.

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Pois, para Gilles Deleuze e Michel Foucault (2006), as teorias, os livros, as pesquisas que fazemos na academia, so como ferramentas. Ou seja, instrumentos que podemos e devemos utilizar para questionar e provocar algumas rupturas nos modos institudos de pensar, agir, sentir, perceber, enfim, viver.19

De acordo com LOURAU (1993, p. 9) o escndalo da anlise institucional consiste em propor o conceito de implicao. Esta diz respeito anlise dos lugares, que ocupamos, ativamente, no mundo. Para o autor, no h neutralidade, isto , prticas desimplicadas. Estamos sempre implicados e produzindo efeitos no mundo. A

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Falamos a partir do lugar de mestrando em psicologia, mas, tambm, de poeta, de msico, de artista. Fazemos nossas as palavras de Augusto Boal (2009) quando este afirma que: sinto sincero respeito por todos aqueles artistas que dedicam suas vidas sua arte seu direito ou condio. Mas prefiro aqueles que dedicam sua arte vida. Nesta pesquisa, a nossa arte fez-se de maneira plural e desobediente se manifestando e, ao mesmo, se alimentando, de nossa recusa em nos submeter, como bons samaritanos, aos imperativos e engodos da produo de subjetividades hegemnica. Assim que nossa arte coloca-se a favor da vida e posiciona-se contra as prticas que ferem e subtraem sua mais bela esttica: a existncia. Nossa pesquisa datada e localmente situada. O cenrio do qual parte nosso trabalho refere-se ao ano de 2007, especialmente ao ms de junho, e tem a cidade do Rio de Janeiro, especificamente o Conjunto de Favelas do Complexo do Alemo20, como palco. Em 2 de Maio de 2007, deu-se incio o cerco da polcia em torno do Complexo do Alemo. A mesma supostamente comeou como uma resposta da polcia morte de dois policiais do 9 Batalho da Polcia Militar em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio de Janeiro. No mesmo local onde os policiais foram mortos, o menino Joo Hlio Fernandes, em fevereiro de 2007, foi morto depois de ser arrastado preso ao cinto de segurana do carro roubado de sua me. O cerco da polcia as favelas do Complexo do Alemo se estendeu de maio at meados de julho de 2007. O pice da ao policial foi no dia 27 de junho de 2007 quando uma megaoperao policial, realizada em parceria entre os governos estadual e federal, envolveu mais de mil e trezentos policias, entre militares, civis e soldados da Fora Nacional de Segurana. Tal operao ainda contou com trs caveires, um helicptero e uma dezena de viaturas. O saldo total do cerco ao Complexo do Alemo, segundo Salles (2007a), foi, a saber: 44 mortos e 78 feridos. Em um nico dia, 27 de junho, foram mortas 19 pessoas que, de

questo que a Anlise Institucional levanta refere-se importncia de colocarmos em anlise os efeitos que nossas prticas produzem. 20 O Complexo do Alemo fica na Zona Norte do Rio de Janeiro, mais especificamente sobre a Serra da Misericrdia e situado entre os bairros de Ramos, Penha, Olaria, Inhama e Bonsucesso. composto por 13 favelas: Morro da Baiana, Morro do Alemo, Alvorada, Matinha, Morro dos Mineiros, Nova Braslia, Pedra do Sapo, Palmeiras, Fazendinha, Grota, Chatuba, Caracol, Favelinha, Vila Cruzeiro, Caixa d gua, Morro do Adeus. Sua populao estimada entre 100.000 a 300.000 habitantes. A regio tem um dos piores ndices de Desenvolvimento Humano (IDH) do municpio do Rio, sendo 0,587. Um tero de seus moradores tem renda inferior a um salrio mnimo. (PORTAL MEIO NORTE, 2007)

18

acordo com a Secretaria de Segurana Pblica do Estado, eram suspeitos de participar do crime organizado no Complexo do Alemo ou, para utilizarmos uma terminologia adotada pelo Globo Online referindo-se ao conjunto de favelas: na faixa de Gaza carioca (O Globo Online, 2007b). No dia seguinte mega-operao do dia 27 de junho, a Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) visitou o Complexo do Alemo, entrevistou moradores e colheu informaes sobre o ocorrido. O ento presidente da comisso, Joo Tancredo, apresentou denncias imprensa e ao Ministrio Pblico sobre evidncias que apontavam para mortes sem confronto, isto , execues. Contudo, Tancredo foi demitido pelo presidente da OAB-RJ o advogado Wadih Nemer Damous Filho denncias, preteridas pelos meios de comunicao, no chegaram ao grande pblico. Em outubro de 2007, relatrio feito por peritos forenses designados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (ANEXO A), comprovou que houve execues sumrias e arbitrrias no Complexo do Alemo. De acordo com o documento, a polcia gastou 70 balas para matar 19 pessoas, sendo que, pelo menos em dois casos21, os laudos comprovam que houve execuo. Os laudos feitos pelo Instituto MdicoLegal Afrnio Peixoto (IMLAP) e pelo Instituto de Criminalstica Carlos boli (ICCE) ambos subordinados a Secretaria de Segurana Pblica foram coniventes com o extermnio no Alemo. Na ocasio, acompanhamos as notcias sobre a mega operao no Complexo do Alemo tanto atravs dos veculos de comunicao da chamada grande mdia22 O globo online, Revista poca, Revista Veja etc. como atravs dos jornais e revistas da mdia alternativa. Percebemos que se tratava, ento, de uma mesma operao policial contada, no entanto, a partir de dois pontos de vista completamente diferentes. Enquanto a grande mdia afirmava que a operao policial foi um sucesso e que a mesma representava uma inovao no

e suas

21 22

Referimo-nos as mortes de Jos da Silva Farias Jnior (18 anos) e Emerson Goulart (26 anos). No captulo III de nossa pesquisa, falaremos mais especificamente sobre algumas questes envolvendo o tema da mdia. Chamamos aqui de grande mdia os veculos de comunicao ligados s grandes corporaes miditicas. A chamada mdia alternativa refere-se aos veculos de comunicao que no possuem a ligao direta com as grandes empresas de capital. No entanto, preciso deixar claro, que quando nos referimos grande mdia ou a mdia alternativa no estamos fazendo um juzo de valor, mas, antes, apontando para existncia de diferentes polticas de verdade que atravessam os diferentes veculos de comunicao. Em nosso trabalho, no almejamos descobrir ou discutir qual a melhor forma de ser fazer jornalismo ou, entre os diferentes veculos de mdia, apontar qual melhor etc. Aqui, interessa-nos, sobretudo, pensar os discursos da mdia como produtores de subjetividades, verdades, consensos, realidades etc.

19

combate a criminalidade23, a mdia alternativa chamava ateno para os fortes indcios de execues sumrias. A nossa percepo de que havia uma flagrante contradio entre os discursos narrados pelos diferentes veculos de mdia, foi o ponto de partida para o que veio se transformar, meses depois, em nosso projeto de mestrado. Naquele momento, assumimos o desafio de produzir uma pesquisa que, ao mesmo tempo em que fosse fundamentada academicamente, servisse, tambm, como instrumento de denncia e luta contra a violncia sofrida por nosso povo logo, sofrida por todos ns. O que ser que faz com que as pessoas aceitem e, at mesmo, apiem prticas de extermnio de outros seres humanos24? Como podemos aplaudir a banalizao da violncia policial e a fabricao de morte? O que ser, que ser25 que est acontecendo nesta cidade, ou melhor, neste mundo? Depois de tantas guerras, mortes, chacinas, violncias inmeras, ainda ouvimos falar que a polcia entra na favela para deixar corpo no cho26. A mquina ensina aceitar o horror como se aceita o frio no inverno, novamente Galeano (2001, p. 79). Muitas so as questes que fizemos (e, ainda, fazemos), contudo, nesta pesquisa, focamos as anlises em alguns pontos. Utilizando a Chacina do Pan27 como analisador28, pensar: a) como se d, hoje, na cidade do Rio de Janeiro, a produo de vidas descartveis, isto , vidas sem valor; b) como a cobertura de alguns veculos de comunicao de grandes corporaes miditicas cobriram e apoiaram a Chacina no Complexo do Alemo; c) que processos de subjetivao so estes que vem sendo produzidos e que corroboram na produo

23

No Ato III, veremos como as revistas semanais poca (2007, Ed. 476 e 477) e Veja (2007, Ed. 2009 e 2015) festejaram com fogos de artifcio a operao policial no Complexo do Alemo. 24 Para o movimento higienista do inicio do sculo XX no Brasil, todos os pobres deveriam ser esterilizados. Em nossos dias, a viso defendida por grande parcela da sociedade no muito diferente da viso higienista, pois no so poucos aqueles que incentivam e aplaudem os extermnios. (COIMBRA, 2001, p. 87).25 26

Referncia cano O que ser (A flor da terra) (Chico Buarque de Hollanda) Canto entoado pelo Batalho de operaes Especiais da Policia Militar do Rio de Janeiro (BOPE): Homem de preto qual sua misso, entrar na favela e deixar corpo no cho 27 Vera Malaguti Batista (2007) em entrevista ao site Correio da Cidadania declarou: Estamos chamando as aes no complexo do Alemo de "chacina do Pan". uma perspectiva de segurana pblica que tem, por trs de si, algo de "limpeza" - para utilizar uma expresso comum durante a era nazista da Alemanha. Faz parte da mesma lgica militarista norte-americana: George W. Bush atacou e invadiu o Iraque para "restabelecer a democracia". O que existe o coroamento de uma poltica anti-criminal e anti-drogas norte-americana, que acredito ser uma cortina de fumaa para o controle social violento dos pobres no neoliberalismo. 28 De acordo com RODRIGUES (1992, p. 42), o analisador no corpo nocional dos institucionalistas, trata-se de um acontecimento ou movimento social, que vem ao nosso encontro, inesperadamente, condensando uma srie de foras at ento dispersas. Neste sentido, realiza a anlise por si mesmo, maneira de um catalizador qumico de subestncias.

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do medo e da insegurana e, tambm, em aplausos e apoio a polticas de extermnios das populaes pobres cariocas. Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, utilizamos, como referencial terico (ou, caixa de ferramenta) as obras de autores como Michel Foucault, Zygmunt Bauman, Giorgio Agamben, Lic Wacquant, Flix Guattari, entre outros. Trabalhamos a partir da perspectiva da pesquisa interveno para a qual no h separao entre pesquisador e pesquisado (ou, sujeito e objeto). Ambos se constituem ao mesmo tempo no processo da pesquisa. Para Barros (2009, p. 230), a palavra interveno se junta pesquisa, no para substituir a ao, para produzir outra relao entre teoria e prtica, assim como entre sujeito e objeto. Trabalhamos, tambm, com a Anlise Institucional. Para esta, uma instituio uma dinmica de foras. Por este vis, a prpria pesquisa uma instituio29 e, por isso, atravessada por uma srie de foras. Neste contexto, imprescindvel que o pesquisador coloque em anlise as suas implicaes (afetivas, polticas, tericas etc.) com seu trabalho e, do mesmo modo, com a sociedade. Segundo Barros (2009, p. 231), a implicao no uma questo de vontade, de deciso consciente. Ela inclui uma anlise dos sistemas de lugares, o assinalamento do lugar que ocupa, que busca ocupar e do que lhe designado ocupar com os riscos que isso implica. Para ns, pesquisar sinnimo de questionar, investigar e, tambm, de criao. Pesquisar no meramente reproduzir a fala autorizada de autores consagrados, apesar do reconhecimento do valor de suas obras; no partir de certezas prvias a fim de poder, dentro do teatro acadmico, comprov-las para um pblico seleto. Nossa pesquisa feita de questionamentos e desconfianas. Termin-la no significa alcanar a verdade sobre o fato pesquisado, mas produzir um determinado tipo de verdade (local, parcial, implicado poltica e afetivamente com a histria do pesquisador). Como nos ensina Ren Lourau (1993, p. 111),No devamos apreender a teoria como aprendemos catecismo. A pesquisa uma criao permanente: consiste em interrogar conceitos, critic-los e nunca meramente aplicar nossa teoria, de um modo meio mgico, fazendo uma espcie de encantao atravs da

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Ren Lourau (1993, p. 70), alerta que (...) a instituio segura a nossa mo e escreve o produto final de nosso trabalho. Aqui, no se trata de uma postura fatalista e submissa diante daquilo que se mostra inevitvel ao processo de uma pesquisa, mas do reconhecimento das foras que atravessam a mesma. Sobretudo, da necessidade de coloc-las em anlise.

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repetio mecnica das mesmas palavras. Pode dar certo no universo da f, mas a pesquisa necessita de dvidas e no de certezas prvias.

preciso que deixemos claro, que ao fazemos esta pesquisa sobre a Chacina do Pan no almejamos, em hiptese alguma, esgotar a multiplicidade de questes e anlises que podem ser tiradas a partir deste acontecimento. Da mesma maneira, no pretendemos dar voz aos moradores da favela, muito menos, falar por eles ou para eles.

Falamos/escrevemos/pesquisamos com eles na medida em que compartilhamos com os mesmos, guardadas as propores de quem no vive o dia a dia da favela, o sentimento de revolta e indignao frente transformao de suas vidas em vidas descartveis. Ao fazer esta pesquisa - que conta a histria do extermnio cruel de pessoas que morreram por serem negras, pobres e faveladas no deixamos de afirmar a necessidade de contar s histrias que estamos dispostos a esquecer. As histrias sobre nossos medos e a maneira como estes nos aprisionam; as histrias sobre nossas misrias e a maneira pela qual estas nos desumanizam; as histrias sobre nossos silncios, nossas apatias e desesperanas. Mas, tambm, so fundamentais as histrias sobre nossos amores, alegrias e invenes. Como escreve Eduardo Galeano (2005, p. 110),O medo seca a boca, molha as mos e mutila. O medo de saber nos condena ignorncia; o medo de fazer nos reduz impotncia. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnsia; mas na se necessita ser Sigmund Freud para saber que no existe tapete que possa ocultar a sujeira da memria.

Esta no foi a primeira vez que uma chacina manchou o cho carioca com sangue de moradores de comunidades pobres30. No entanto, isso no quer dizer que devemos aceitar as execues orquestradas pela policia como acontecimentos naturais, muito menos, que devemos aplaudir o que no tem p, nem cabea31. Pois, este bicho de sete cabeas precisa ser enfrentado de frente.

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Podemos citar no Rio de Janeiro na dcada de 1990: Acari (1990), Candelria (1993), Vigrio Geral (1993), Nova Braslia (1994 e 1995), entre outras. Em todas estas chacinas ouve envolvimento de polcias, seja atuando em grupos de extermnio ou em operao pela polcia. Ser que a histria recente do Rio de Janeiro pode ser escrita a partir destas chacinas? O que elas nos falam sobre nossas maneiras de pensar, agir e viver? Ser que fazer a histria destas chacinas contar a histria de nossos medos, angstias, preconceitos e racismos? Ser a histria destes extermnios a histria de nossos fascismos e de nossa intolerncia seletiva? Est a, uma histria que um dia precisa ser contada. 31 Referncia cano Bicho de sete cabeas (Geraldo Azevedo, Z Ramalho e Renato Rocha).

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Em julho de 2007, a recm inaugurada casa de espetculo Vivo Rio32

foi palco do

lanamento de um novo modelo de carro da montadora francesa Citren. Nesta noite, a casa de shows recebeu 3.200 seletos convidados. Antes que a cantora Marisa Monte se apresentasse no palco do Vivo Rio, o presidente da Citren Brasil, Srgio Habib, anunciou a presena de alguns ilustres convidados na platia. Dentre os nomes citados por aquele, estava o do secretrio de segurana pblica do Rio de Janeiro, Jos Mariano Beltrame. Segundo reportagem da revista Veja Rio (S, 2007), a platia veio abaixo e deu fervorosa salva de palmas para o, ento, conclamado inimigo do trfico33! Poderamos at rir de tal acontecimento, pois o mesmo no deixa de ter certo ar de comicidade Beltrame, um heri? Todavia, a graa se dilui e o sorriso foge envergonhado do rosto quando pensamos que Beltrame foi aplaudido como heri porque coordenou a megaoperao policial no Conjunto de Favelas do Complexo do Alemo que dizimou a vida de dezenove pessoas34. Como ecoa na letra e no canto da cano Procisso dos retirantes, apresentada no 1 Festival Nacional de Reforma Agrria, organizado em 1997 pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):Nesta terra de chacinas Estas balas assassinas Todos sabem de onde vem. preciso que a justia e a igualdade Sejam mais que palavras de ocasio preciso um novo tempo em que No sejam s promessas repartindo A terra e o po. A hora essa de fazer a diviso. Eu no consigo entender Que ao invs de dar um quinho Seu povo merea ter

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A casa de shows Vivo Rio localiza-se no Bairro do Flamengo (Zona Sul), Rio de Janeiro. Inimigo do trfico o titulo escolhido pela Revista Veja Rio (18 de julho de 2007) ao se referir a Jos Mariano Beltrame. No subttulo da mesma matria est escrito: Quem o discreto gacho Jos Mariano Beltrame, o secretrio de Segurana Pblica empenhado em derrotar o crime com coragem e inteligncia. 34 Sem falar nas dezenas de feridos e mortos ao longo dos trs meses de ocupao policial no Complexo do Alemo.

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S sete palmos de cho

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As palmas para o secretrio de segurana pblica so um analisador para pensarmos o quanto operaes policiais, como a que ocorreu em 2007 no Alemo, ganham facilmente o apoio da populao. Por outro lado, preciso que coloquemos em anlise o papel dos veculos de comunicao da mdia enquanto produtores de verdades, de modos de subjetivao e, tambm, de consensos sobre tais aes da polcia em favelas e comunidades pobres do Rio de Janeiro. Muitos aplaudem o horror, o extermnio de outras pessoas, mas h em nossa sociedade a produo de modos de subjetivao (GUATARRI, F. 1996) marcados e alimentados pela insegurana e pelo medo. Para Guatarri, as subjetividades so produzidas e se referem aos diferentes modos e maneiras de experimentar o mundo e viver, isto , as maneiras como sentimos, olhamos, falamos, andamos etc. Historicamente, como defende Batista (2003, p. 23), a difuso do medo no Brasil tem servido como indutor e justificador de polticas autoritrias de controle social. Uma sociedade amedrontada, aponta a autora, aplaude e apia polticas repressivas e exterminadoras das classes pobres (bodes expiatrios). Como escreve Carlos Drummond de Andrade (2008a, p. 27), o medo esteriliza os abraos. A insegurana que paira no ar da modernidade lquida (BAUMAN, 2001) difusa e oriunda, principalmente, das desregulamentaes do mundo do trabalho. Contudo, os governos locais, incapazes de oferecer uma soluo real para esta insegurana, produzem polticas pblicas de perseguio, controle e represso36 dos pobres. Somos levados a acreditar que perigoso o pobre favelado, o morador de rua, enquanto aplaudimos as peripcias do capital globalizado. Neste capitalismo de desastres, as crises financeiras, climticas, polticas etc. so sempre, de alguma forma, utilizadas a favor do prprio sistema que as gerou. O livre mercado, como nos alerta a jornalista Naomi Klein (2008), o irmo siams da ditadura civil militar. A gesto dos medos atravs da produo da insegurana (Batista, 2002) gera a angstia e a

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Msica: Procisso dos retirantes (Pedro Munhoz) Obtida no site do Movimento dos Trabalhadores rurais sem terra (MST): http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4196. Acesso em maio de 2009. 36 A atual poltica de Choque de Ordem da prefeitura do Rio de Janeiro um bom exemplo de tais polticas de perseguio e represso aos pobres.

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resignao frente a uma realidade cada dia mais dura e cruel. A liberdade para o dinheiro exige trabalhadores presos no crcere do medo, como nos diz Eduardo Galeano (2002). Viviane Forrester (1997), afirma que as infindveis legies de desempregados que, desesperados por uma atividade remunerada, perseguem, como moribundos, vagas de emprego irreais oferecidas em lugar nenhum, no fazem mais, como apontou Marx em sua obra, parte de um exrcito de mo de obra de reserva. Para a autora, h uma flagrante diminuio da oferta de vagas de emprego no mercado para determinado grupo social. Assim, questiona Batista (2010, p.2) quais so as tcnicas de obedincia obrigatria que podem funcionar contra as multides crescentes que no tm e no tero emprego? Para a autora, a resposta est na fabricao de medos tangveis e na construo de um gigantesco sistema penal. Nestas veias abertas da Amrica Latina (GALEANO, 1989), a liberdade para os negcios sempre significou, por conseqncia, o crcere de grande parte de seus povos. A nossa misria representa a outra parte da balana na qual se encontram as riquezas do capitalismo mundial. Neste sentido, o desenvolvimento das foras produtivas capitalistas gerou a desigualdade e a misria que, paradoxal e historicamente, fez (e, ainda faz) da riqueza do solo sul-americano o motivo da pobreza de seu povo. O sistema chama de ajuda os emprstimos esterilizantes feitos pelos pases latinoamericanos ao Fundo Monetrio Internacional (FMI) que levam privatizao das naes e ao endividamento eterno das economias; chama de justia opresso disfarada de democracia que se resume no direito de uma minoria em explorar, vilipendiar e roubar toda uma populao que, preterida dos meios de produo, vende, neste mercado global de injustias e exploraes, a nica coisa que lhe resta: sua fora de trabalho. No continente latino-americano, ou melhor, nos pases subdesenvolvidos os extermnios das populaes mais pobres , infeliz e historicamente, um acontecimento recorrente e, infelizmente estratgico para a manuteno desta ordem social que acumula lucros para uns e cospe misria para a vida daqueles que ajudaram, com seu esforo e desfalecimento, a obteno dos mesmos lucros. Assim como o sistema capitalista fabrica mercadorias em escala industrial e engendra processos de subjetivao capitalsticos37, o37

Para Guattari (1996), o modo de subjetivao capitalstico refere-se a um certo processo de produo de subjetividade que se tornou hegemnico tanto em pases ditos capitalistas como naqueles chamados de

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mesmo produz, tambm, morte e misria num nvel que ultrapassa as fronteiras nacionais dos pases. Todavia, como alerta Bauman (1999, p. 87), as inmeras misrias que atravessam nossa sociedade, ontem e hoje, no so sinnimos da enfermidade do capitalismo, mas, pelo contrrio, de sua sade e robustez: do seu mpeto para uma acumulao e esforo sempre maiores. Apesar de tudo, como diz a cano: o Rio de Janeiro continua lindo. Rio quarenta graus, purgatrio da beleza e do caos? O Cristo est sempre de braos abertos para a Guanabara e as guas de maro fluem deslumbrantes como pano de fundo para o rebolado das garotas de Ipanema. Como entoava Tom e Vincius: minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro38. Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil39. Protagonista fundamental dos romances e contos de Machado de Assis. Lembranas de um tempo que no vivemos, mas que vemos atravs das linhas que narram s dvidas de Bentinho (ASSIS, 1997a), os olhos dissimulados de Capitu (ASSIS, 1997a), as saudades de Brs Cubas (ASSIS, 1997b), os o amor e loucura de Rubio (ASSIS, 1997c). Rio antigo, marcado pela passagem do Segundo Reinado para a Repblica. Outro Rio, menos distante, porm no menos conflituoso, surge quando ouvimos os sambas de Cartola, Noel Rosa, Z Kti e Ataulfo Alves: Habitada por gente simples e to pobre / Que s tem o sol que todos cobre / Como podes, Mangueira, cantar? Quem nasce l na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraar o samba / Que faz danar os galhos / Do arvoredo e faz a lua / nascer mais cedo (...). / So Paulo d caf, Minas da leite / e a Vila Isabel d Samba. Eu sou o samba / a voz do morro eu sou eu mesmo sim senhor. Por isso eu ando pelas ruas da cidade / vendo que a felicidade foi a vida que passou / E a favela que era minha e era dela / s deixou muita saudade porque o resto ela levou40.

comunistas; pases desenvolvidos ou subdesenvolvidos. Tal processo caracteriza-se pela produo de subjetividades serializadas e submissas. 38 Aqui fazemos referncia s canes: Aquele abrao (Gilberto Gil); Samba do Avio (Tom Jobim); Rio quarenta graus (Fernanda Abreu); 39 Referncia cano Cidade maravilhosa (Andr Filho) 40 Aqui fazemos referncia s canes: Sala de recepo (Cartola); Feitio da Vila (Noel Rosa); A voz do morro (Z Kti); Favela (Heckel Tavares);

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Da bossa ao samba, agora o funk: eu s quero ser feliz, andar tranquilamente na favela onde nasci41. A geografia das favelas, para a infelicidade de muitos, marca os contornos das paisagens do Rio. As mesmas, desde seu surgimento no sculo XX, j eram vistas pela polcia e por alguns setores da populao, como contam Zaluar e Alvito (2003), como locais perigosos, refgios da criminalidade e da desordem. Na equao mais comum sobre o tema as favelas aparecem mais como elemento que subtrai e divide do que como multiplicador de outros modos de existncia. No clculo das dores infligidas e dos absurdos cometidos, houve quem sorrisse e aplaudisse aquilo que no tem p, nem cabea. Nossa pesquisa ser divida em atos e cenas, pois a Chacina da Pan constituiu-se em dor e morte, por um lado, mas tambm, num verdadeiro espetculo42 dirigido em parceria entre o Estado e a grande mdia, por outro. Muitos foram os personagens que fizeram parte de suas cenas. Infelizmente, o desfecho da histria da operao policial no Complexo do Alemo foi trgica. O Ato I chama-se Pan-Pac e pau. O nome sugestivo foi inspirado em uma declarao do ento coronel do 16 batalho da policia militar do Estado do Rio de Janeiro, Marcus Jardim. Segundo o mesmo, 2007 seria o ano de trs ps: os jogos Pan-americanos, as obras do Programa de Acelerao Econmico nas favelas (PAC das favelas) e, tambm, do pau (ou seja, operaes policiais violentas e letais) contra pobres. Assim, temos por alvo neste captulo, contarmos, a partir do recorte que fizemos em nossa pesquisa, a histria dos trs ps. Para tanto, utilizamos de vasto material composto, principalmente, por matrias publicadas em diferentes veculos de comunicao na internet43. Os discursos da mdia, tambm, so usados como analisadores para pensarmos como os mesmos participaram da criao de um clima de medo e insegurana em relao realizao dos jogos PanAmericanos no Rio de Janeiro. O Ato II intitulado: No tem jeito mesmo. No tem d no peito: racismo, refugo humano e vida nua. Neste captulo, discutiremos alguns conceitos fundamentais para o desenvolvimento de nossa pesquisa. Destacamos, aqui, trs autores: Michel Foucault, Zygmunt Bauman e Giorgio Agamben.41 42

Referncia cano Rap da Felicidade (Julinho Rasta e Ktia). Em nosso trabalho, no fazemos uso do conceito de espetculo como formulado por Guy Debord. Compreenderemos espetculo como aquilo que chama e prende ateno; como encenao que apresentada diante de um pblico; no caso especfico dos meios de comunicao, como aquilo que gera audincia. 43 A maioria das matrias utilizadas foram publicadas no primeiro semestre de 2007. No entanto, h matrias do ano de 2006.

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Da obra de Foucault, falaremos, sobretudo, de seus conceitos de poder de soberania, biopoder, biopoltica, disciplina e racismo. Como pode um poder (biopoder) que tem por alvo de seu exerccio majorar os fenmenos da vida se ocupar, como se torna flagrante na Chacina do PAN, da produo de morte? O racismo, segundo Foucault (2005), desempenha papel fundamental neste processo, pois o mesmo aquilo que torna possvel que os Estados Modernos faam uso do antigo poder de gldio (2003), ou seja, poder de matar. A partir das contribuies de Bauman discutiremos como a vida das populaes pobres, tornadas inteis para o funcionamento do sistema, se transformaram em lixo. Para o autor (2007a), um dos principais problemas polticos enfrentados pelos Estados Modernos concerne ao que os mesmos faro com este refugo humano produzido em grande escala na chamada modernidade lquida. Por fim, no Ato II, utilizaremos os conceitos de Estado de Exceo (2007a) e de vida nua (2007b) trabalhados por Agamben. Vida nua a vida indigna de ser vivida, isto , uma vida que perdeu sua humanidade e que pode, impunemente, ser exterminada, pois sua morte no implica num crime, muito menos num sacrilgio. Quando o estado de exceo se torna regra e a biopoltica (gesto dos fenmenos que afetam as populaes) transforma-se, perigosamente, em tanatopoltica, temos a construo de um cenrio no qual o racismo tornarse elemento indispensvel na produo de seres humanos refugados e vidas nuas. Ainda no Ato II, falaremos sobre o documentrio Elas da favela e sobre nossa visita Favela Nova Braslia, uma das 13 favelas que compe o Complexo do Alemo, bem como, das duas chacinas que em 1994 e 1995 marcaram o cho desta comunidade de sangue e lgrimas. No Ato III, discutiremos o conceito de produo de subjetividade (GUATTARI, 1996), articulando-o idia de que a mdia um dos principais instrumentos produtores de modos de subjetivao no contemporneo. Do mesmo modo, a mdia produtora de verdades, silenciamentos, consensos, viles e heris. A partir dos discursos das revistas poca e Veja 44, as duas maiores revistas semanais de circulao nacional, veremos como ambas, na cobertura que fizeram na invaso policial no Complexo do Alemo (maio/julho de 2007), aplaudiram a ao da polcia, festejando como um marco no combate ao crime e desprezaram ou44

Em nossa pesquisa, utilizamos as verses online das revistas poca e Veja publicadas no perodo de maio a julho de 2007. No entanto, neste perodo, ambos veculos dedicaram matria a operao policial no Complexo do Alemo em duas de suas edies. Alm das mesmas, utilizamos, tambm, a verso online revista Veja Rio de julho de 2007 que um complemento publicado pela prpria Revista Veja para o pblico do Rio de Janeiro.

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diminuram as acusaes de violaes aos direitos humanos45 produzidos pela polcia contra a populao do Alemo. Em nossa pesquisa, utilizamos como material de anlise livros, revistas (impressas e online), artigos cientficos e de jornais, relatrios, laudos, manifestos, declaraes de autoridades, sites e portais de notcia na internet, filmes, vdeos da internet, canes. Quando este material se mostrou insuficiente para as questes que investigvamos, ento, fizemos tambm, entrevistas com pessoas ligadas mdia e luta por direitos humanos no Rio de Janeiro. Utilizamos fontes bibliogrficas das mais diversas reas do conhecimento: psicologia, psicanlise, sociologia, Anlise Institucional, antropologia, criminologia, direito, filosofia, histria, geografia, comunicao, educao, literatura, poesia. No nos preocupamos em nos manter dentro das fronteiras institudas do saber da psicologia. A partir de uma perspectiva transdisciplinar, o que importa nomadizar tais fronteiras potencializando a criao de novas redes e conexes entre os saberes. Esta pesquisa , tambm, rica em citaes de canes. Algumas destas, inclusive, ganharam lugar nos ttulos dos captulos da pesquisa e no prprio ttulo da mesma. Primeiro, utilizamos letras de msicas porque acreditamos que estas podem ser usadas, tambm, como um potente instrumento de estranhamento da realidade. Segundo, porque no estamos interessados, como j dissemos, em respeitar as fronteiras das disciplinas cientficas e a msica, assim como outras artes, podem ajudar a desestabilizar tais fronteiras. Terceiro, porque a msica faz parte da vida do autor da pesquisa como um significativo vetor de produo de subjetividades. A presena de canes, poesias, e a maneira como estas se conjugam na construo da pesquisa , tambm, a tentativa de dar um toque de singularizao num meio onde a padronizao e a uniformizao do modo de fazer/escrever pesquisas acabam colaborando para a produo de textos nos quais o que prevalece muitas vezes a suposta neutralidade, o distanciamento pesquisador x objeto de pesquisa; a falta de anlise das implicaes etc.

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A ideia de direitos humanos uma construo que surge a partir de determinadas prticas sociais em determinado momento histrico. Estes direitos, presentes em declaraes e revolues burguesas, so, tambm, a afirmao de determinadas concepes de humano para determinados grupos de pessoas. Os marginalizados de toda ordem nunca fizeram parte desse grupo que, ao longo dos sculos XIX, XX e XXI, tiveram e continuam tendo sua humanidade e seus direitos garantidos. (COIMBRA, C.;LOBO, L.; NASCIMENTO, M., 2008, p. 92). Em nossa pesquisa, compreenderemos direitos humanos como os direitos a diferentes modos de existncia.

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Obviamente, o saber/fazer cientfico necessita de modelos e padres que permitam sempre a maior coletivizao possvel do conhecimento pesquisado. No entanto, em nosso trabalho, assumimos o desafio e, at mesmo, o risco de fazer algo diferente. Isso no significa que o modo como escrevemos nosso texto seja melhor do que a dos demais. to somente a maneira que mais nos agradou e nos deu alegria em fazer. Por isso, no precisamos de outras justificativas do que seno esta.

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Dor. Di tudo Doem os corpos que caem alvejados E as crianas na rua vagando sem rumo Doem todos aqueles sonhos abortados.

Di ver as portas e as janelas cerradas As grades de ferro cercando os muros O medo estampado covardia nas caras Doem todos aqueles gritos mudos.

Di o cncer, a sfilis E sua legio de enfermos Di a AIDS, a pneumonia, a hepatite E as coisas que ainda no sabemos.

Di a fome, a sede Pior, tem comida, tem gua sobrando Di a desnutrio e suas crias Esqueletos humanos, crianas apticas agonizando.

Di a estupidez de mais uma guerra J foram tantas e outras mais diferentes31

Di ver o descolorido flagrante de nossa poca Pior, como di saber que poderia ter sido diferente.

Doem todas as nossas misrias histricas As desigualdades seculares e hipcritas Di o preconceito, a violncia e o racismo Di no olhar o que preciso ser visto.

Doem na pele as mentiras que engolimos E todas as falsidades que alimentamos Di perceber que nunca fomos mais do que isso E saber que assim jamais seremos diferentes do que somos.

A dor profunda e s vezes d vontade de parar Mas a roda viva continua a todo vapor a girar e girar Ento, apesar dos males e das tristezas preciso acreditar Que, mesmo que tudo diga o contrrio, possvel mudar.

E se a dor for ainda mais pungente e mordaz Que nossos desejos de transformar a vida Ento que num momento simples e fugaz A gente pode descobrir que ela mesmo bonita e bonita.32

E como as guas da chuva que caem no cho Ou as nuvens que passam velozes no cu distante A vida corre depressa, e no espera no preciso saber fazer valer a pena cada instante.

Pode at doer s tristezas, mas sempre haver alegrias E motivos pra continuar firme caminhando e acreditando Pois apesar de todas estas dores no quero anestesias Prefiro de olhos abertos e ps no cho, continuar sonhando. (Sem anestesias46-

Jos Rodrigues)

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Esta poesia foi especialmente escrita para a introduo de nossa pesquisa.

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1 Ato I: No d p. No direito47: PAN, PAC e pau.

1.1 Cena I: Viva est energia, viva esta energia, todo mundo junto pra jogar48

Mata mesmo... mata pelas costas, pela frente, com tiro na cara. Mata todo mundo, antes, durante e depois do Pan, da Copa do mundo, Olimpadas de qlq (qualquer) merda, tem (que) matar bandido pra ver se eles respeitam algo. Vcs (vocs) so engraados... bandido no v onde atira, em quem atira. Quero ver qdo (quando) for com vcs (vocs) ou com a famlia de vcs (vocs)!! Matem todos!! Todos!! (Comentrio feito no vdeo Pan Americano 2007 e o extermnio nas favelas49)

Os XV jogos Pan-Americanos, Organizado pela Organizao Desportiva Pan Americana (ODEPA), ocorreram entre os dias 13 e 29 de julho de 2007, tendo como sua sede cidade do Rio de Janeiro. No total, 5662 atletas de 42 pases do continente americano (Amrica do sul, Amrica central e Amrica do norte) participariam, disputando 35 modalidades esportivas. Em outubro de 2002, demonstrando poder cumprir todas as exigncias da ODEPA, a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida como sede dos jogos Pan-Americanos derrotando a cidade estadunidense de San Antonio, Texas. O espetculo de abertura dos jogos, que contou com a participao de aproximadamente 90.000 pessoas, foi marcado por apresentaes musicais, o desfile das 42 delegaes, pirotecnia e, tambm, pelas vaias sofridas pelo presidente Luiz Incio Lula da Silva. Por conta deste incidente, o roteiro oficial da apresentao foi quebrado e o presidente do Comit Olmpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuzman, fez a abertura oficial do

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Referncia cano Bicho de sete cabeas (Geraldo Azevedo, Z Ramalho, Renato Rocha) Msica tema dos Jogos Pan-Americanos. Composta por Arnaldo Antunes e Liminha. Interpretada no espetculo de abertura dos jogos por Arnaldo Antunes e a cantora Ana Costa. 49 Endereo do vdeo no site Youtube:< http://www.youtube.com/watch?v=N3_5TyJlQ4w>.

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evento no lugar de Lula. Pela primeira vez na histria dos jogos Pan-Americanos um chefe de Estado no discursou na abertura do mesmo. Nos jogos do Rio de Janeiro, os atletas brasileiros conseguiram 54 medalhas de ouro, 40 de prata e 67 de bronze, totalizando 161 medalhas. Este foi o melhor desempenho do pas em jogos Pan-Americanos desde 2003 quando, em San Domingo, o Brasil recebeu 29 medalhas de ouro, 40 de prata e 54 de bronze, totalizando 123 medalhas. No quadro geral de medalhas o Brasil ficou em terceiro lugar, atrs dos Estados Unidos, com 97 ouros, e Cuba, com 59 medalhas de ouro. O Canad que tradicionalmente ficava na frente do Brasil, ficou em quarto lugar com 39 de ouro. Desde os jogos PanAmericanos de 1967, em Winnipeg, Canad, o Brasil no conseguia esta posio. O grande destaque individual do Brasil foi o nadador Thiago Pereira, que conquistou seis medalhas de ouro. Outro destaque foi o mesatenista Hugo Hoyama, que, ao conseguir o ouro por equipes, se tornou o maior vencedor do pas em competies dos jogos PanAmericanos, com nove medalhas de ouro, superando o nadador Gustavo Borges, que tem oito. A cerimnia de encerramento dos jogos foi marcada pela homenagem realizada pelo Comit Olmpico Brasileiro s vtimas do vo 3054 da TAM50. Bombeiros que participaram dos resgates dos passageiros desfilaram carregando a bandeira nacional ao som do hino brasileiro. Nesta ocasio, o presidente da Organizao Desportiva Pan-Americana (ODEPA), o mexicano Mrio Vzquez Raa, declarou que os jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro foram os melhores da histria. Apesar do clima festivo, um misto de vaias e aplausos pode ser ouvido soando nas arquibancadas do Maracan quando Carlos Arthur Nuzman parabenizou os poderes federais e municipais pela realizao dos jogos. O evento se encerrou e foi dado o incio da contagem para os prximos jogos, que ocorrero em 2011, na cidade de Guadalajara, Mxico.50

O vo TAM JJ3054 era operado pela companhia brasileira TAM Linhas Areas, utilizando uma aeronave de passageiros Airbus A320-233, prefixo PR-MBK, que em um voo em 17 de julho de 2007, entre as cidades de Porto Alegre e So Paulo, ultrapassou o final da pista durante o pouso, vindo a chocar-se contra um depsito de cargas da prpria TAM situado nas proximidades da cabeceira da pista, no lado oposto da avenida que delimita o aeroporto. Estavam no aparelho 187 pessoas; no houve sobreviventes. Houve ainda outras 12 mortes no solo. O vo 3054 foi o pior acidente areo da histria da Amrica Latina por 22 meses, at o Vo Air France 447 em 31 de maio de 2009. A investigao apurou que a causa do acidente foi o posicionamento incorreto dos manetes que controlam os motores da aeronave, sem concluir definitivamente se houve uma falha humana ou do equipamento. (WIKIPDIA, 2010) 35

A trajetria da realizao dos jogos Pan-Americanos na cidade do Rio de Janeiro longa. Antes mesmo que estes fossem realizados, alguns veculos de comunicao, brasileiros e internacionais, produziam reportagens que apontavam para os riscos iminentes que atletas e turistas corriam ao pretenderem visitar a cidade maravilhosa durante o to aclamado evento esportivo. Pode-se perceber o teor alarmista destas reportagens e como as mesmas, atravs da fala de seus jornalistas supostamente preocupados com a crescente onda de criminalidade na cidade, criaram um cenrio no qual tornou-se urgente que os organizadores dos jogos em parceria com as foras estaduais e federais tomassem uma atitude quanto ao risco de um atentado durante o evento. Atitude, neste caso, como sinnimo de represso policial sobre as populaes pobres. Em dezembro de 2006, Lula declarou que com a posse de Sergio Cabral Filho como governador do Estado do Rio de Janeiro, o governo federal ajudaria no que fosse necessrio para a realizao dos jogos Pan-Americanos e, principalmente, com a segurana do mesmo. Segundo o presidente:Eu penso que ns vamos estabelecer uma relao extraordinria com o governador Sergio Cabral e vai ser muito melhor para o Rio de Janeiro. Ns no queremos nos intrometer, no vamos nos intrometer. O que ns podemos fazer e estamos fazendo oferecer aquilo que o governo federal pode oferecer a nvel de inteligncia, a nvel de fora policial nacional. (Estado Online, 2006)

Lula finalizou afirmando que ns temos a obrigao de fazer o melhor Pan j feito num pas da Amrica. Isso vai precisar de uma combinao perfeita entre a prefeitura do Rio, entre o governo do estado e o governo federal (Estado Online, 2006). Esta combinao foi, tambm, a responsvel pelo cerco no Complexo do Alemo em 2007. Em matria de 4 de abril de 2007, o site da BBC Brasil (2007b), noticiou que jornais estrangeiros ficaram chocados com imagens de tiroteio no Rio de Janeiro. O Washington Post, referindo-se ao tiroteio no Morro da Mineira, que resultou em 19 mortos, mostrou que a violncia carioca no est restrita s favelas da cidade. De acordo com o Miame Herald, a violncia ocorre s vsperas da visita do Papa Bento XVI ao Brasil e realizao dos jogos Pan-Americanos. Nas palavras do jornal:Gngsters com armas automticas trocavam tiros com a polcia em plena luz do dia perto do centro da cidade. Pais usavam seus corpos

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para proteger suas crianas a caminho da escola. Passageiros em nibus, presos no transito, se jogavam no cho enquanto balas penetravam as janelas.

Segundo matria do jornal Clarin da Argentina em 7 de abril de 2007 (BBC Brasil, 2007c), a violncia na cidade do Rio de Janeiro atingiu propores infernais. O jornal, bem como, o tambm argentino La Nacin noticiaram o ato realizado na praia de Copacabana pela Organizao No Governamental Rio da Paz que enterrou na areia da praia 1.300 rosas representando cada morto por assassinato no ltimo ano. A reportagem do La Nacin lembrou a proximidade dos jogos Pan-Americanos e da possibilidade do governo federal enviar mais foras de segurana cidade. A praia mais emblemtica serviu ontem de cenrio para uma homenagem emocionada s vitimas da violncia que castiga esta cidade, disse o jornal. Em junho de 2007, a operao policial no Complexo do Alemo repercutiu nos jornais argentinos que afirmaram que a violncia no Rio de Janeiro aumenta o temor quanto aos jogos Pan-Americanos. Segundo o La Nacin: quando faltam duas semanas para o comeo dos Jogos Pan-Americanos, foras de segurana brasileiras se enfrentam com narcotraficantes ontem em uma favela do Rio de Janeiro, com um saldo de pelo menos 18 mortos. Ainda de acordo com a reportagem, o objetivo do governo do Estado desarticular as quadrilhas de narcotraficantes que controlam as favelas. (BBC Brasil, 2007a) Em declarao dada ao jornal O Globo - uma espcie de Dirio Oficial do Capital (BATISTA, 2010, p. 6) -, rdio CBN e ao Globo online no dia 27 de junho de 2007, o Secretrio de Segurana Pblica do Rio de Janeiro, Jos Mariano Beltrame, afirmou que desta vez a secretaria quebrou o pacto de no-agresso contra os bandidos. Na ocasio o secretrio referia-se mega-operao policial ocorrida no conjunto de favelas do Complexo do Alemo e que teve como saldo 19 mortos. De acordo com o mesmo, a citada operao no teve relao com a proximidade dos jogos Pan-Americanos e foi planejada durante trs meses para que no houvesse risco populao civil. Segundo Beltrame, no houve pessoas inocentes mortas (O Globo Online, 2007a). Em editorial da revista Isto chamado de Violncia versus Pan (MARQUES, 2007), o seu editor geral, Carlos Jos Marques, afirmou que a violncia que antecede os jogos Pan-americanos representa um grande teste para a segurana pblica da cidade. Segundo o

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editor, com a Fora Nacional51 presente no Complexo do Alemo e a suposta ameaa de algumas faces criminosas que prometem aes de advertncia durante o evento, seria mesmo natural o estado de ateno com o assunto. Para o jornalista, o sucesso dos jogos Pan-americanos pode representar para o pas a chance de sediar novas competies bilionrias como as olimpadas e, tambm, ser visto com outros olhos, isto , no como uma nao terceiro-mundista, repleta de violncia por todos os lados. Por outro lado, o editor critica a chamada estratgia de enfrentamento da criminalidade, pois sustenta que as operaes nos morros cariocas devem ser balizadas pela serenidade e inteligncia. Segundo o mesmo: provocar o confronto no vem sendo o melhor mtodo e, diante da proximidade do Pan, que tem incio nesta sexta-feira, demasiadamente arriscado. A cautela e a preveno continuam como os melhores antdotos. Entre tantos discursos chamando a ateno para a onda crescente e intolervel de criminalidade na cidade do Rio de Janeiro e, obviamente, alertando para o perigo iminente da realizao dos jogos Pan-americanos, um blog na internet intitulado A verdade do Pan 52 (2007) chamou a ateno expondo duras crticas a Confederao Olmpica Brasileira (COB) e, tambm, ao seu presidente Carlos Arthur Nuzman. Um auto-intitulado professor de educao fsica do Rio de Janeiro tornou pblico, atravs do Blog, uma carta aberta (ANEXO B) dirigida ao presidente do Comit Olmpico Brasileiro (COB) e, tambm, do Comit Organizador (CO-RJ) do PAN, Carlos Arthur Nuzman. No documento, Homero Blota fez severas crticas e acusaes a Nuzman. Entre elas vale destacar:a. Carlos Arthur Nuzman est preocupado em transformar o COB numa empresa organizadora de eventos desportivos com a finalidade de: dar lucro e projetar sua figura nacional e internacionalmente;

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A Fora Nacional de Segurana Pblica (FNSP) foi criada em 2004 pelo Ministrio da Justia tendo por objetivo atuar nos Estados em situao emergencial. Ela composta por policiais e bombeiros dos diversos Estados do Pas. Os soldados passam por um treinamento de duas semanas e retornam para seus Estados. No entanto, os mesmos ficam de prontido a espera de uma convocao. (TERRA NOTCIAIS, 2010a) 52 Desde o dia 07/08/07, no mais possvel acessar o blog A Verdade do Pan 2007 nem A Verdade da Copa 2014 coordenados por uma pessoa com o pseudnimo Diana. H uma queixa de calnia, injria e difamao impetrada pelo presidente do Comit Olmpico Brasileiro (COB) e do Comit Organizador dos jogos Panamericanos no Rio de Janeiro (CO-Rio), Carlos Arthur Nuzman, contra a Diana. Este processo est sendo investigado pela Delegacia de Represso aos Crimes de Informtica Cidade Nova Rio de Janeiro. Consegui acessar novamente o material publicado no referido blog mesmo ele estando inacessvel acessando o site http://web.archive.org/collections/web.html e neste, colocando o antigo endereo do Verdade do Pan.

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b. O design das roupas da delegao olmpica foi entregue por Nuzman sua cunhada, Mnica Conceio; a chefia das delegaes olmpicas e pan-americanas do Brasil foi dada ao seu diretor e companheiro Marcus Vinicius Freire que, ao mesmo tempo, representa o Brasil a AON Seguros que quem faz os seguros das selees do COB. c. Por outro lado, Marcus Vinicius Freire amigo e scio de Ricardo Aciolly que, por sua vez, ganhou os direitos de comercializao dos bilhetes do Pan-Americano. Ademais, o mesmo ganhou os direitos sobre as cerimnias de encerramento e abertura dos jogos. d. A agncia de turismo que presta servios ao COB a da sua grande amiga Cristina Lowndes, em uma licitao at hoje contestada e dirigida. e. A empresa contratada para idealizar (...) as medalhas do PanAmericano ganhou o direito de faz-lo atravs de uma mera carta convite, auferindo R$ 720.000,00 em um contrato de trs anos. f. A filha de sua atual mulher estagiaria de direito do COB e viajou Sua, s expensas da entidade, para assessorar a defesa de Vanderlei Cordeiro de Lima, sem sequer estar formada, ou possuir inscrio na OAB/RJ. g. Quando se viu que sem vultosas verbas federais a coisa no andaria, mudaram o slogan e, para justific-las, a Globo criou a frase O Pan do Brasil. O senhor e a rede

Globo de televiso esto

fazendo de tudo para mascarar a verdade do Pan;

h. Primeiramente, o Pan, em termos tcnicos, no o que nos fazemcrer. Internacionalmente, o pan considerado competio fraca. No enganem o povo brasileiro, deixando-o imaginar que somos uma potncia olmpica somente porque nos Jogos Pan-Americanos ganharemos mais de 100 medalhas, superando Honduras, El Salvador, Nicargua, Bolvia, Ilhas Virgens, Paraguai, Bahamas, ou mesmo as equipes C dos EUA e Canad, ou Cuba que, devastada pela pobreza j no mais a mesma. i.

Para vencer a candidatura do Texas BA Odepa53, o senhor faltoucom a verdade junto aos delegados da Odepa. Apresentou-lhes um dossi de candidatura absolutamente impossvel de ser cumprido. (...) um dossi megalomanaco. No foram construdas uma s das obras prometidas no dossi que voc subscreveu e entregou a

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Uma das principais concorrentes do Rio de Janeiro para sediar os jogos Pan- Americanos era a cidade do Texas, Estados Unidos.

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ODEPA, tais como metr, linhas de transporte, alargamento de avenidas, despoluio da Baa de Guanabara (...). j. Ademais, vocs esto usando o Pan para tirar do papel coisas que h muito se pretendiam no Rio de Janeiro e no se fazia porque ilegal, ou porque no do interesse da Cidade. Cito alguns exemplos: a reforma da Marina da Glria, no um projeto do Pan. um projeto antigo que interessa a grupos privados h bastante tempo. Vocs esto usando o Pan como justificativa para acolher interesses desses grupos. k. Para que reformar a Marina da Glria, que tombada pelo IPHAN, se ela abriga um Pan-Americano como est? Para que construir um shopping Center na lagoa, para a raia de remo, isso necessrio para o Pan? Por que entregar a administrao do rio centro para a iniciativa privada por conta do Pan? l. Esse Pan virou um grande balco de negcios e eu me envergonho dele. m. O superfaturamento nas obras vergonhoso. Mostra falta de planejamento, de rigor e respeito com o dinheiro publico. n. Voc (Nuzman) vendeu algo que no poderia entregar. Encostou a faca no peito do governo federal como quem diz: ou paguem a conta ou vamos dar um vexame no exterior, e pagaram a conta.

Em entrevista dada Revista Caros Amigos (2007), Jos Trajano e Juca Kfouri, criticaram a realizao dos jogos Pan-Americanos e endossaram as crticas feitas pelo professor de educao fsica ao presidente do COB e do CO-RJ, Carlos Arthur Nuzman. Segundo Kfouri, os Jogos Pan-americanos no servem para nada. Para Trajano, o Rio no seria beneficiado pelo turismo, pois: Algum vai pro Rio pra ver uma competio de futebol sub 1754 (...) Trininad e Tobago versus Jamaica, Porto Rico versus Repblica Dominicana. Voc vai sair de casa para ver? Concordamos com as crticas feitas organizao dos Jogos Pan-americanos. Todavia, no concordamos com a fala do jornalista Juca Kfouri quando este afirma que os jogos PanAmericanos no servem pra nada. Pelo contrrio, tais jogos serviram para muitos fins, como por exemplo: o desvio e uso abusivo de dinheiro pblico, bem como, a justificativa para um conjunto de mega-operaes policiais nas favelas cariocas que acabaram provocando a morte de uma dezena de pessoas. Ento, o Pan foi extremamente til para muitos interesses, no apenas os esportivos.54

Trajano se refere s selees de futebol que so formadas com jogadores com a idade de at 17 anos.

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Em junho de 2007, o cartunista Carlos Latuff desenhou o mascote do Pan Cau segurando um fuzil (ANEXO M). Seu desenho foi parar em camisas utilizadas por manifestantes contra o chamado Pandemnio Social proporcionado pelos jogos PanAmericanos. Como efeito, Latuff foi convocado a comparecer numa delegacia de polcia para prestar contas sobre sua charge. Durante a abertura dos Jogos Pan-americanos do Rio, cerca de mil e quinhentas pessoas saram s ruas num protesto devido a uma srie de agresses cometidas contra o povo sob o pretexto da realizao do PAN (SALLES, 2007b). Foram lembrados os contratos superfaturados, as reformas neoliberais e a violncia policial nas favelas De acordo com reportagem de Marcelo Salles (2007b), a concentrao comeou s 11h e at as 14h foi juntando gente. Vinham de todos os lados: camponeses sem-terra; desabrigados; sindicalistas; professores; estudantes; servidores pblicos em geral e at palhaos. Em torno do estdio do Maracan, um grupo de manifestantes, integrantes de vrios movimentos sociais, protestavam contra a violncia da polcia nas favelas cariocas e, tambm, denunciavam a corrupo velada orquestrada pelo comit organizador dos jogos. O grupo chamava o Pan de "pandemnio social". Os manifestantes carregavam faixas com dizeres, como: Pro rico o pan esporte, pro favelado porrada e morte; "Uh, terror! O Cau matador!" e "Ei, ei, ei! Cavero vai pra Braslia e sai do Morro do Alemo!"; "Para esquecer a falta de po, eles do o Pan. J temos o circo, queremos o po" (SALLES, 2007b). Marcelo Braga, integrante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia, afirmou que:O ato mostra que nem todo mundo se cala diante dos abusos dos donos do poder, que a cada dia massacram mais a sociedade, as classes mais exploradas e que, de tempos em tempos, utilizam argumentos como o Pan para aumentar a violncia (SALLES, 2007b).

De acordo com Gesa Corra, integrante do Instituto Tamoios, ligado aos ndios, a luta por melhores condies de vida da populao do Rio de Janeiro."Ningum contra o esporte, nem contra o Pan. Somos contra o desvio de verbas que estamos chamando de pandemnio social. Eles (os governantes) maquiaram a cidade para mostrar que est

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tudo as mil maravilhas, o que no verdade. A criminalidade aumentou e o povo no est apenas morrendo em matanas nas favelas, mas tambm de fome" (TERRA NOTCIAS, 2007)

Como escreve Mike Davis (2006), os pobres do Terceiro Mundo temem os grandes eventos internacionais, pois sabem que seus governos orquestram verdadeiras cruzadas de limpeza da cidade. Segundo o autor, os favelados sabem que so a sujeira ou a praga que seus governos preferem que o mundo no veja (2006, p.111).

2.2 Cena II: Pau! Pro rico o PAN esporte, pro favelado porrada e morte55!19 vagabundos mortos? Essa foi a melhor notcia que eu li desde a faxina do Carandiru. Vamos continuar torcendo pra esse nmero subir amanh pra 50, depois de amanh pra 100 e assim por diante, at exterminar todos esses desgraados. Parabns a todos os envolvidos na operao. Merecem promoo imediata, com aumento de salrios. (Comentrio de um leitor sobre a matria do Globo Online56.) Como j apontamos na introduo deste trabalho, de maio a meados de julho de 2007 o Conjunto de Favelas do Complexo do Alemo, Zona Norte do Rio de Janeiro, ficou sob forte cerco montando por policiais civis e militares e pelos soldados da Fora Nacional de Segurana. A invaso ao Alemo teria sido, inicialmente, uma resposta da Secretaria de Segurana Pblica do Rio, a morte de dois policiais militares 9 Batalho da Polcia Militar em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio de Janeiro. Os supostos assassinos dos policiais estariam no Complexo do Alemo. O cerco ao Conjunto de Favelas se estendeu durante meses e ganhou as manchetes de jornais, revistas e a ateno de canais de televiso. O conflito no Alemo era descrito nos veculos de comunicao da grande mdia carioca como uma guerra travada pelo Estado contra a barbrie dos traficantes. Com o passar dos dias, o nmero de mortos e feridos no confronto crescia, no entanto, poucas eram as vozes que, na mdia, ousavam romper o consenso produzido que a ao da polcia era no apenas necessria, mas imprescindvel para a realizao dos jogos Pan-Americanos, bem como, para o futuro da cidade maravilhosa.55

Protesto entoado por um grupo de manifestantes em torno do estdio do Maracan no dia da abertura dos jogos Pan-americanos. 56 Mega operao no Alemo deixa 19 mortos (GLOBO ONLINE, 2007).

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27 de junho foi o dia em que a ao da polcia no Complexo do Alemo teve seu pice, tanto em termos de violncia e morte, como de espao na grande mdia. A operao policial do dia 27 ganhou o sufixo mega (virando mega-operao) pois a mesma envolveu um contingente de mais de 1.000 policiais, inmeros carros blindados do BOPE e at mesmo helicpteros. Junto com os policiais, estavam os jornalistas de diversos veculos de comunicao. Enquanto os primeiros, muitos vestidos e armados como se estivessem na Guerra do Iraque, atiravam com suas pistolas e fuzis, os segundos, atiravam com suas cmeras fotogrficas e filmadoras. Ambos produziram estragos: uns furaram paredes de casas e executaram pessoas. Outros, buscaram justificar a violncia policial e a matana. De acordo com o Relatrio da Sociedade Civil para o Relator Especial das Naes Unidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais (ANEXO C), tem se intensificando nos ltimos anos uma gesto violenta das populaes das comunidades pobres. Como conseqncia do tratamento penal da misria, a vida de tais populaes vem se transformando em vidas descartveis. Ainda segundo o documento, o Brasil lidera o ranking mundial de ndices de jovens mortos por armas de fogo. Efeito claro, do processo de militarizao da segurana pblica e da criminalizao da pobreza e extermnio dos pobres. O modelo de segurana pblica que vem sendo colocado em prtica pelos ltimos governos do Rio de Janeiro protagonizou um aumento acentuado da represso contra as classes populares. Em declarao ao jornal O Globo de 27 de fevereiro de 2003, o ento secretrio de Segurana Pblica Josias Quintal afirmou: Nosso bloco est na rua e, se tiver que ter conflito armado, que tenha. Se algum tiver que morrer por isso, que morra. Ns vamos partir pra dentro. (Relatrio da Sociedade Civil para o Relator Especial das Naes Unidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais, 2007, p. 2). Mais recentemente, em 29 de junho de 2007, o ento Secretrio Nacional de Segurana Pblica, Luiz Fernando Correia, em referncia poltica de extermnio adotada como modelo de segurana pblica pelo Governo Fluminense, declarou que os mortos e feridos geram um desconforto, mas no tem outra maneira (CORREIO DA CIDADANIA, 2007). O presidente Luis Incio Lula da Silva, por sua vez, no dia 2 de julho de 2007, afirmou ser impossvel enfrentar o narcotrfico com ptalas de rosas, jogando p de arroz. (FORTES, 2008, p. 64). No por coincidncia, ambas as declaraes se deram logo aps a mega-operao no Complexo do Alemo e visavam, de certa forma, amenizar as crticas sofridas pelo governador Srgio Cabral aliado do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula.43

O Coronel Marcus Jardim, do 16 Batalho da Polcia Militar do Rio de Janeiro (Olaria), foi definido por matria do Globo Online (2007d) como um chefe linha-dura que no d refresco para a bandidagem. O conclamado honrado guerreiro que comandou a espetacular operao no Alemo e chegou a defender o fuzilamento de policiais corruptos, quando da vinda do relator especial da ONU para execues sumrias, arbitrrias e extrajudiciais, Philip Alston, deu de presente ao mesmo uma rplica em miniatura do caveiro: Esta a representao de nosso veculo blindado, carinhosamente apelidado de caveiro, que tantas vidas j salvou. Viva o 16 Batalho da PM, viva o caveiro! (Agncia Carta Maior, 2007), declarou. O caveiro um veculo blindado de combate, usado para o transporte de tropas da polcia militar e civil em operaes em favelas e morros da cidade do Rio de Janeiro. O mesmo tornou-se smbolo de uma poltica de segurana pblica violenta e criminalizadora da pobreza (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008). Em 13 de maro de 2006, a Amnesty International, a Justia Global, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violncia e o Centro de Defesa de Direitos Humanos de Petrpolis lanaram uma campanha internacional contra o uso do caveiro pela polcia carioca (JUSTIA GLOBAL, 2006). Segundo matria do site da ONG Justia Global, o caveiro um smbolo das falhas da poltica de segurana pblica do Rio de Janeiro. Pois, no ser atravs da violncia, da represso policial, que o problema da criminalidade ser resolvido. Mais do que isso, no ser atravs de medidas repressivas que as populaes pobres do Rio tero seus direitos respeitados. O caveiro um analisador das atuais polticas de segurana (REBEQUE, JAGEL; BICALHO, 2008) e como estas reforam a lgica do inimigo interno que precisa ser eliminado e da criminalizao dos pobres. De acordo com documento da ONG Justia Global (2006),Com o caveiro tornou-se extremamente difcil responsabilizar a polcia em casos de violncia. Embora, em teoria, devesse ser possvel, atravs de investigaes balsticas, traar a origem das balas para as armas individuais que as dispararam, na prtica este procedimento no usado e raramente so feitos exames. O anonimato dos policiais quando operam dentro do caveiro agrava o

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problema. Em conseqncia, os policiais atiram nas comunidades de dentro do caveiro sem medo de serem identificados e processados.

O uso do carro blindado levou criao da campanha contra o caveiro (MAGALHAES, 2007). Em novembro de 2006, logo aps ser eleito governador do Estado do Rio da Janeiro, Srgio Cabral Filho, deu declaraes impressa afirmando que iria aposentar os caveires (TERRA NOTCIAIS, 2010b). Segundo as palavras do ento recm eleito governador, o uso do caveiro " um trauma para as comunidades. No d para fazer segurana pblica com 'caveiro'". Cabral acrescentou afirmando que a polcia entrar "prestando servios e garantindo segurana populao" (TERRA NOTCIAIS, 2010b). De acordo com a matria do Portal de Notcias Terra (2010b), com a aposentadoria dos blindados, Cabral pretende priorizar investimentos em inteligncia. Segundo ele, possvel prender traficantes e fazer apreenses sem disparar uma nica bala". Seria, ento, a mega operao no Complexo do Alemo o resultado do investimento do governo do estado em polticas de segurana pblica inteligentes? Todas as pessoas que morreram na Chacina do Pan e as outras centenas que ficaram feridas ou tiveram suas casas destrudas pela polcia, contrape a idia de prender traficantes e fazer apreenses sem disparar uma nica bala. Por quais motivos o governador Srgio Cabral decidiu voltar atrs em sua deciso de aposentar o caveiro? Quais so as relaes de poder, os interesses econmicos e polticos que atravessaram esta deciso e fizeram com que o governador recuasse de sua aparente posio contra o uso dos carros blindados? Cabral se aproxima dos seis meses de governo sem linha definida na segurana, sentenciou matria do Globo Online em 23 de junho de 2007 ou seja, quatro dias antes de ocorrer a Chacina do Pan. O Jornal convidou alguns especialistas para discutirem se j possvel definir uma linha de ao no comando da segurana no estado. A respeito da manuteno do uso do caveiro pela polcia e a poltica do confronto, a matria do Globo Online ouviu dois especialistas:

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a.

Marcelo Freixo (deputado estadual pelo PSOL-RJ). Um exemplo o Alemo, que hoje talvez seja o mais simblico. Estamos h quase um ms num confronto generalizado, onde inmeras crianas perderam o direito de ir escola, pessoas perderam os empregos, ficaram feridas sem ter relao com crime, policiais foram mortos, e existem denncias gravssimas de violaes bsicas de direitos cometidas pela polcia b. Geraldo Tadeu Monteiro (presidente do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social): Essa estratgia de ocupao um erro, ela foi equivocada pois no foi devidamente planejada. Ocorreu aps a morte dos policiais sem um planejamento mais fino, um levantamento de operaes sobre a rea. Ao mesmo tempo, o uso do caveiro continua sendo um problema poltico, que causa desgaste ao governador. At porque ele tinha prometido aposentar, mas a persistir esse tipo de enfrentamento, o caveiro acaba sendo inevitvel. Ser que possvel enfrentar a criminalidade a partir de outros princpios? Outras estratgias?

Em conversa com o jornalista Marcelo Salles, em sua casa em Niteri 57, o mesmo falou em resposta a nossa pergunta sobre quais seriam os motivos que fizeram o governador Srgio Cabral desistir de aposentar o caveiro que teramos que pesquisar tanto a questo econmica quanto custa um caveiro? Ainda a Ford que o produz? Quanto um caveiro custa em outros pases? como, tambm, a questo poltica, isto , o que representa o caveiro para a polcia etc. Ainda de acordo com Marcelo Salles, assim que tomou posse Cabral viu como funcionava a PM. Um governador precisa ter uma boa dose de loucura para bater de frente com esses caras. Esta polcia est totalmente sem controle! No entanto, em nossa pesquisa, no nos aprofundamos na investigao sobre o que teria levado Srgio Cabral a desistir de aposentar o blindado caveiro. Ainda assim, fica aqui o registro da mudana do governador sobre o futuro dos blindados da polcia carioca. Marcus Jardim, o Coronel do 16 Batalho da Policia Militar de Olaria, referindo-se ao ano de 2007, afirmou que este seria, como diz o ttulo deste captulo, o ano de trs ps: PAN, PAC e pau (O Globo online, 2007c). O polmico Coronel, em abril de 2008, afirmou que a PM o melhor inseticida social (FOLHA ONLINE, 2008b). Tal declarao inspirou o jornal Meia Hora (Organizaes Globo) a montar uma matria de capa na qual se57

Conversamos com Marcelo Salles no dia 01 de maio de 2010.

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encontrava desenhando no meio do corpo do jornal um inseticida e acima e abaixo deste podia-se, respectivamente, ler: Bopecida, O Inseticida da Polcia Terrvel contra os marginais e Eficaz contra vagabundos, traficantes e assassinos. (Revista Fazendo Mdia, 2008) A declarao do Coronel do 16 BPM fez com que movimentos sociais tornassem pblico uma nota de repdio (Anexo D e Anexo ) assinada por diversas entidades, militantes e acadmicos. Ademais, a matria do jornal mostra o quanto este tipo de jornalismo canalha (ARBX JNIOR, 2007), que tem a notcia enquanto capital (MARCONDES FILHO, 1989) e a velocidade como fetiche (MORETZSOHN, 2002), refora com fogos e pompas declaraes como aquela. O atual governo do Estado do Rio de Janeiro no apenas atualiza o modelo repressor voltado contra os pobres como o intensifica e investe em mega-operaes policias que, por sua vez, produzem ainda mais dor e violncia nas comunidades pobres. Segundo Igncio Cano:Alm de no romper com as antigas estratgias, o atual governo do Rio de Janeiro vem implementando na poltica de segurana pblica uma nova linha de ao no que diz respeito represso ao trfico de drogas: so as denominadas mega-operaes incurses policiais nas favelas que contam com um grande nmero de agentes das foras de segurana estadual e/ou federal, alm de uma ampla cobertura dos meios de comunicao. Essas mega-operaes, que tem se tornado cada vez mais constantes, contriburam para um aumento acentuado nos ndices de letalidade. (...) essas megaoperaes, de acordo com as autoridades publicas, tm como objetivo uma ao pacificadora para erradicar a fora armada. (Relatrio da Sociedade Civil para o Relator Especial das Naes Unidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais , 2007, p.12)

Neste contexto, o slogan da guerra contra o trfico (ou, Guerra contra as drogas) estrategicamente utilizado como grande justificativa para mega-operaes policiai