cap 2 - conhecer a materia a ser ensinada

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  • CONHECER A MATRIA A SER ENSINADA

    Se existe um ponto em que h um consenso absolutamente geral

    entre os professores - quando se prope a questo do que ns, professores

    de Cincias, devemos saber e saber fazer - , sem dvida, a importncia concedida a um bom conhecimento da matria a ser ensinada.

    Isso pode parecer suprfluo, se levarmos em conta que a formao dos

    professores de Cincias se reduz, com frequncia, praticamente aos

    contedos cientficos (Furi e Gil-Prez, 1989). No entanto, esta insistncia

    justifica-se por diversas razes, sobre as quais convm deter-se nas

    seguintes:

    Em primeiro lugar, como reao, qui, contra a ateno exclusiva

    que tradicionalmente tem-se dado aos contedos cientficos na preparao

    do professor, geraram-se propostas que relativizavam a importncia deste

    conhecimento, em particular pelo que se refere Educao do segundo

    ciclo do 1 grau (de 11 a 14 anos). Pensemos, por exemplo, no plano de

    formao do professor de Educao Geral Bsica, vigente na Espanha, e

    nas licenciaturas curtas vigentes no Brasil, durante as duas ltimas dcadas,

    com os quais se pretendia (em apenas trs anos!) dar uma preparao de

    professor geral e outra de especialista (sic) em Biologia, Geologia, Fsica, Qumica e Matemtica (para alunas e alunos de 11 a 14 anos).

    Em segundo lugar, a tnica geral das atividades de formao

    permanente deixar de lado o que se refere a contedos cientficos,

    admitindo-se, assim, implicitamente, que suficiente a preparao

    proporcionada neste aspecto pela formao inicial. No entanto, cada vez

    mais evidente que no s essa preparao costuma ser insuficiente

    (Krasilchik, 1987; Zalamea e Pars, 1989), mas tambm que - como

    demonstraram Tobin e Espinet (1989), a partir de um trabalho de tutoria e

    assessoramento a professores de Cincias - uma falta de conhecimentos

    cientficos constitui a principal dificuldade para que os professores afetados

    se envolvam em atividades inovadoras. Todos os trabalhos investigativos

    existentes mostram a gravidade de uma carncia de conhecimentos da

    matria, o que transforma o professor em um transmissor mecnico dos

    contedos do livro de texto.

    preciso, ainda, chamar a ateno sobre o fato de que algo to

    aparentemente claro e homogneo como conhecer o contedo da disciplina implica conhecimentos profissionais muito diversos (Bromme, 1988; Coll, 1987) que vo alm do que habitualmente se contempla nos

    cursos universitrios e inclui - entre outros que equipes de professores

    costumam mencionar e que a pesquisa em didtica das Cincias j ressaltou

    - os seguintes (ver resumo no Quadro 2):

    QUADRO 2

  • Conhecer a matria a ser ensinada

    A. Conhecer os problemas que originaram a construo dos

    conhecimentos cientficos (sem o que os referidos conhecimentos surgem

    como construes arbitrrias). Conhecer, em especial, quais foram as

    dificuldades e obstculos epistemolgicos (o que constitui uma ajuda

    imprescindvel para compreender as dificuldades dos alunos).

    B. Conhecer as orientaes metodolgicas empregadas na

    construo dos conhecimentos, isto , a forma como os cientistas abordam

    os problemas, as caractersticas mais notveis de sua atividade, os critrios

    de validao e aceitao das teorias cientficas.

    C. Conhecer as interaes Cincia/Tecnologia/Sociedade associadas

    referida construo, sem ignorar o carter, em geral, dramtico, do papel

    social das Cincias; a necessidade da tomada de decises.

    D. Ter algum conhecimento dos desenvolvimentos cientficos

    recentes e suas perspectivas, para poder transmitir uma viso dinmica,

    no fechada, da Cincia. Adquirir, do mesmo modo, conhecimentos de

    outras matrias relacionadas, para poder abordar problemas afins, as

    interaes entre os diferentes campos e os processos de unificao.

    E. Saber selecionar contedos adequados que deem uma viso

    correta da Cincia e que sejam acessveis aos alunos e suscetveis de

    interesse.

    F. Estar preparado para aprofundar os conhecimentos e para adquirir

    outros novos.

    Comentaremos em seguida os diversos aspectos do que entendemos

    que seja o conhecimento do contedo necessrio a um professor

    proporcionando, ao mesmo tempo, algumas referncias:

    A. Um professor precisa conhecer a histria das Cincias, no s

    como um aspecto bsico da cultura cientfica geral (Moreno, 1990), mas,

    primordialmente, como uma forma de associar os conhecimentos

    cientficos com os problemas que originaram sua construo (Bevilacqua e

    Kennedy, 1983; Carvalho, 1989a; Matthews, 1990), sem o que tais

    conhecimentos apresentam-se como construes arbitrrias (Otero, 1985 e

    1989).

    Pode-se, assim, conhecer quais foram as dificuldades, obstculos

    epistemolgicos (Bachelard, 1938) que tiveram que ser superados, o que

  • constitui uma ajuda imprescindvel para compreender as dificuldades dos

    alunos (Saltiel e Viennot, 1985), e tambm como evoluram os referidos

    conhecimentos e como chegaram a articular-se em corpos coerentes,

    evitando assim vises estticas e dogmticas que deformam a natureza do

    trabalho cientfico (Gagliardi e Giordan, 1986).

    B. Conhecer as orientaes metodolgicas empregadas na construo

    dos conhecimentos, isto , a forma que os cientistas abordam os problemas,

    as caractersticas mais notveis de sua atividade, os critrios de validade e

    aceitao das teorias cientficas (Gil-Prez, 1986). Trata-se de um

    conhecimento essencial para orientar adequadamente as prticas de

    laboratrio (Gil-Prez e Pay, 1988; Gonzlez, 1991), a resoluo de

    problemas (Gil-Prez et al., 1988) e, em geral, a construo de

    conhecimentos pelos alunos (Gil-Prez et al., 1991).

    C. Conhecer as interaes Cincia/Tecnologia/Sociedade associadas

    construo de conhecimento, sem ignorar o carter, em geral, dramtico

    do papel social das Cincias (Gruender e Tobin, 1991), e a necessidade da

    tomada de decises (Aikenhead, 1985). Isso torna-se essencial para dar

    uma imagem correta da Cincia.

    Com efeito, o trabalho dos homens e mulheres de Cincias - como

    qualquer outra atividade humana - no tem lugar margem da sociedade

    em que vivem, e se v diretamente afetado pelos problemas e

    circunstncias do momento histrico, do mesmo modo que sua ao tem

    uma clara influncia sobre o meio fsico e social em que se insere. Afirmar

    isto pode parecer suprfluo, no entanto, a ideia de que fazer Cincia

    pouco menos que trancar-se em uma torre de marfim - no mundo dos livros ou coisa parecida - distanciado da realidade, constitui uma imagem tpica bastante difundida e com a qual nosso ensino lamentavelmente

    contribui, reduzindo a Cincia transmisso de contedos conceptuais e, se

    muito, treinamento em alguma destreza, deixando de lado os aspectos

    histricos, sociais, etc., que marcam o desenvolvimento cientfico (Solbes e

    Vilches, 1989; Jimnez e Otero, 1990).

    D. Ter algum conhecimento dos desenvolvimentos cientficos

    recentes e suas perspectivas para poder transmitir uma viso dinmica, no

    fechada da Cincia. Do mesmo modo, preciso adquirir conhecimentos de

    outras reas relacionadas, para poder abordar os problemas-fronteira, as interaes entre os diferentes campos e processos de unificao. Pode-se

    evitar assim a imagem das diversas matrias como compartimentos

    estanques, to criticada por professores e alunos.

    E. Digamos, por ltimo, que um bom conhecimento da matria

    significa tambm, para um docente, saber selecionar contedos adequados

    que proporcionem uma viso atual da Cincia e sejam acessveis aos alunos

    e suscetveis de interesse (Piaget, 1969; Hewson e Hewson, 1988;

    Krasilchik, 1988).

  • Como assinala Linn (1987), este conhecimento profundo da matria

    fundamental para um ensino eficaz, e sua aquisio no possvel,

    obviamente, no perodo sempre breve de uma formao inicial (e muito

    menos com a orientao atual da mesma). Deveramos por isso acrescentar

    um novo aspecto: a preparao para adquirir novos conhecimentos, em

    funo de mudanas curriculares, avanos cientficos, questes propostas

    pelos alunos etc. A formao dos professores deveria assim incluir

    experincias de tratamento de novos domnios, para os quais no se possui,

    logo de entrada a formao cientfica requerida. Trata-se de uma situao

    que se apresenta repetidamente ao longo de sua vida profissional e para a

    qual se requer tambm uma preparao, to importante ou mais que o

    estudo em profundidade de alguns domnios concretos (necessariamente

    limitados).

    Por fim, um bom domnio da matria constitui-se, tambm a partir de

    um ponto de vista didtico, como algo fundamental. Os prprios alunos so

    extraordinariamente sensveis a esse domnio da matria pelos professores,

    considerando-o com justia como um requisito essencial de sua prpria

    aprendizagem (Carrascosa et al., 1990).