albalat, antonio. a arte de escrever ensinada em vinte lições

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Page 1: ALBALAT, Antonio. A Arte de Escrever ensinada em vinte lições

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ANT6NIO AlBAlAT

Arte. .dé -EscreverEnsinad~ em Vinte Lições

Tradução portuguesa da 16.& edição francesa

POR

CÂNDIDO DE FIGUEIREDO

NOVA EDIÇÃO

'.I LIVRARIA ·cLAsSICA EDITORAA. M. Teixeira & C.a, Filhos, L.daõ) r a ç a dos R e s t II-'U r a d o r e 5, 1 7

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A ARTE DE ESCREVERENSINADA EM VINTE LIÇOES

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A Arte de EscreverEnsinada em Vinte Lições

Tradução portuguesa da 16." edição francesa

POR

CANDIDO DE FIGUEIREDO

NOVA EDIÇÃO

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. TiTULO A arte de escrever : 'e-ns"~ada em vinte licoes J Antonio

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A. M. Teixeira & c-, Filhos, L.daPraça dos Restauradores, 17

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PREFAÇAo

A MIRA DO AUTOR

Tenho lido quase todos os Manuais, e todos osCursos de Uteratura. São bons guias, mas nenhumensina, técnica e préticemente, a arte de escrever.Nenhum fez ainda as demonstrações do estilo. É umalacuna, que eu procurei preencher.

Creio que se pode ensinar a ter talento, a des-cobrir imagens e boas frases; e que, com uma reguleraptidão, se pode cheqer a formar estilo.

O meu alvo é mostrar no que consiste a arte deescrever; decompor os processos de estilo; expor tecni-camente a arte da composição; ministrar os meios deaumentar e ampliar as aptidões do estudioso, isto é,duplicar-lhe e triplicer-lhe o talento; numa palavra.ensinar a escrever quem quer que o não saiba. masque tenha o que é preciso para o saber.

Aos novos. aos principiantes. à gente de sociedade.a todos os que amam as letras e possuem o gosto doestilo. deve interessar uma obra que lhes proporcione ademonstração clara dos processos da arte de escrever.

Nada se encontrará nestas páginas. que se pareçacom a antiga rotina. Pus de parte os preconceitos dou-trinários. as apreciações tímidas. os métodos consagre-

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6 A ARTE DE ESCREVER

dos; e é inútil procurarem-se aqui as velhas clessiiice-ções, as divisões arbitrárias, os rançosos exemplos.

Terminando, devo prevenir os leitores de que menão assaltam pretensões de estiliste: que me propusescrever chêmente, secamente, uma obra, que é umatentativa de demonstração, e que reservo quaisqueresforços de estilo para obras de pura imaginação oude crítica propriamente dita.

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Lição Primeira

o dom de escrever

Toda a gente pode escrever? - Poderemos ensinar a escrever?- Como nos tornamos escritores. - Prim~iras condições paraescrever.

Uma pergunta nos ocorre desde já: devemos escrever?Não será mau serviço favorecer as tendências para

se cobrir de letras o papel?Não haverá bastantes escritores?Será preciso avisarmos os que escrevem mal?Estamos inundados de livros. Que será a literatura,

quando toda a gente a praticar?Ensinar a escrever não será impelir o próximo a

publicar tolices?Não será rebaixar a arte o pô-la ao alcance de todos,

e não a amesquinharemos, tornando-a mais acessível?Eu próprio protestei numa obra especial contra essa

doença de escrever, que nos invade e que fez desanimaro público.

Há nisso evidentemente um perigo, mas o abuso deuma coisa não prova que ela seja má.

Toda a gente fala e nem todos são oradores.A pintura vulqarizou-se, mas nem todos são pintores.Nem todos os músicos fazem óperas.

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8 A ARTE DE ESCREVER

É excelente ensinar-se a escrever; tanto pior paraaqueles que degradem o mester.

Demais, aqueles que quiserem seguir os conselhosdados nesta obra, deverão aplicar-se a escrever bem,e aqueles que se aplicarem serão obrigados a escreverpouco.

Estamos, portanto, ao abrigo de qualquer censura.Depois, podemos escrever, não só para o público,

mas para nós próprios, para satisfação pessoal.Aprender a escrever bem é aprender também a jul-

gar os bons escritores.Primeiramente, haverá a vantagem da leitura.A literatura é um atractivo, como a pintura e a

música, uma distracção nobre e permitida, um meio dedulcífícar as horas da vida e os enfados da solidão.

Outra objecção talvez me façam: os teus conselhosserão bons para as pessoas de imaginação, visto quea imaginação é faculdade essencial; mas dará acasoimaginação àqueles que não a têm? e esses como terãoestilo?

A resposta é fácil.Aqueles que não tiverem imaginação passarão sem ela.Há um estilo de ideais, um estilo abstracto, um estilo

seco, formado de nítida solidez e de pensamento puro,que é admirável!

É a questão de se escolherem outros assuntos.Pascal, ainda que tivesse apenas escrito as Pro-

víncias, seria grande escritor.O Emílio, de Rousseau, é uma obra-prima de língua

literária.La-Bruyêre e principalmente Montesquieu são, neste

género, modelos imortais.

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-A ARTE DE ESCREVER 9

Cada um pode, portanto, escrever conforme as suasfaculdades pessoais.

Esta poderá apresentar discussões abstractas. Aquelepoderá descrever a natureza, abeirar-se do romance,dialogar situações.

Se não vê claramente as suas aptidões, se se emba-raça na alocuçâo, consultará amigos competentes e, emúltimo caso, este livro, que foi feito para o ajudar, parao formar e para o revelar a si próprio.

Quem souber redigir uma carta, isto é, fazer umanarrativa a um amigo, deve ser capaz de escrever, por~que uma página de composição é uma narrativa feitaao público.

Quem pode escrever uma página, pode escrever dez.E quem sabe fazer uma novela deve saber fazer um

livro, porque uma série de capítulos é uma série denovelas.

Portanto, qualquer pessoa que tenha mediana aptidãoe leitura, poderá escrever, se quiser, se souber aplicar-se,se a arte a interessar, se tiver o desejo de emitir o que

~L vê e de descrever o que sente.A leitura não é uma ciência inatinqível, reservada

a raros iniciados e que exija grandes estudos prepa-ratórios.

É uma vocação, que cada um traz consigo e quedesenvolve, mais ou menos, segundo as exigências davida e as ocasiões favoráveis.

Há muita gente que escreve mal.E muita há, que poderia escrever bem, mas que não

escreve e não pensa em tal.Pessoas ordinárias, mordomos como Gourville, cria-

das de quarto como a senhora Hausset, como [ulião,

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o A ARTE. DE ESCREVER

criado de Chateaubríand, velhos soldados, Marlob, Ber-nal Díaz. deixaram-nos descrições vivas e interessantes.

O dom de escrever, isto é, a facilidade de exprimiro que se sente, é uma faculdade tão natural ao homemcomo o dom da fala.

Ora, se toda a gente pode contar o que viu, por quenão poderá rescrevê-lo?

A escrita não é senão a transcrição da palavrafalada, e é por isso que se diz que o estilo é o homem.O estilo mais bem descrito é, as mais das vezes, o estiloque se poderia falar melhor.

Assim o entendia Montaigne. Nunca vos ímpressío-nastes com o desembaraço, que os aldeões empregamnas suas narrativas, quando se servem da sua lingua-gem natal?

As pessoas do povo, para exprimir coisas por quepassaram, têm certas palavras e originalidades de expres-são e uma criação de imagens, que espantam os pro-fissionais.

Se qualquer mulher de coração, a primeira que seencontrar, escrever a alguém sobre a morte de umapessoa querida, fará uma admirável narrativa, quenenhum escritor poderá imitar, quer seja Chateaubriand,quer seja Shakespeare.

Afonso Daudet e Goncourt procuraram por todaa parte, em volta de si, esse som do verdadeiro ini-mitáveI.

Goncourt copiava servilmente os diálogos que ouvia.As mais belas palavras de Manon Lescaut foram

pronunciadas certamente.Uma ocasião, ouvi um camponês comparar o ruído

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A ARTE DE ESCREVER u

do trovão com o ruído que fazia «um bocado de panoque se rasgava».

As nossas antigas canções populares. de que G. Don-cieux nos prepara uma sábia reconstituição e uma ediçãodefinitiva. são obra anónima de poetas obscuros.

Portanto. se toda a gente pode escrever. com muitamais razão o podem fazer as pessoas medianamentecultas. as pessoas que têm leitura e que amam o estilo.a gente moça que faz versos elegantes ou regista osseus pensamentos num diário íntimo.

Há certa classe de gente. que. dirigida e ensinada,poderia determinar e aumentar as suas aptidões. e tertalento. até.

Muitos ignoram as suas forças. porque nunca asexperimentaram. e estão mesmo longe de imaginar quepoderiam escrever.

Outros. mal ajudados ou dissuadidos da sua voca-ção. desanimam por se reconhecerem medíocres, semum guia que 'os aperfeiçoe.

Conheci três mulheres. que nunca tinham escrito umalinha e que sorriam de incredulidade. quando as acon-selhei a escrever. Supunham-se incapazes de ter talento.

Decidiram-se a começar o seu diário. segundo pre-ceitos e fórmulas técnicas. e hoje fazem descrições vivas.em relevo. muito notáveis. que sõmente a sua modéstiase obstina em conservar inéditas.

Quase todas as pessoas escrevem mal. porque nãose lhes demonstrou o mecanismo do estilo. a anatomiada escrita. nem como se encontra uma imagem e seconstrói uma frase.

Impressionei-me sempre com a quantidade de pessoasque poderiam escrever e que não escrevem. ou escrevem

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mal. por não terem alguém que as desimpedisse dasligaduras, em que 'estão comprimidas.

Há estilos ínexperientes, que espalham pérolas eouro e fazem surgir plantas vivazes por entre as ervasincultas.

Descobrir o Filão, tirar o diamante. sachar a terra,nada é, e é tudo.

Quando se refazem as frases, quando se descobremas imagens, quando se limpa o estilo e quando se reu-nem as palavras, que estupefacção!

«Nunca ninguém nos disse tal!»E ficam maravilhados de ver o precipitado verda-

deiro. sólido. brilhante. que é só deles. e que se mostrano fundo do cadinho, depois da operação.

A necessidade de um guia é absoluta para as nature-zas vulgares. porque então não se trata de génios. nemde futuros grandes homens. aos quais nada se ensina,porque prescindem de tudo, mas daqueles que têm umavocação vulgar, e que podem duplicar o talento peloesforço e pelos conselhos .

Molíére interrogava a sua criada; Racine consultavaBoileau.

Flaubert ouvia Bouilhet.Chateaubriand sujeitava-se a Fontanes.Resolvi ser guia, para aqueles que não podem ter

outros.Há quinze anos que luto com as palavras e que

escrevo romances, novelas e artigos de crítica, feitose refeitos, com encarniçamento.

A minha experiência pessoal pouco vale certamente.Parece contudo que eu poderia ser útil a outros

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A ARTE DE ESCREVER 13

e que haveria proveito em publicar o que eu tinhaaprendido por mim só.

O resultado destes anos de leitura e de trabalhoservirá certamente àqueles que principiam a estudar aarte de escrever, àqueles que se preparam para isso pro-fissionalmente e àqueles que querem gozar essa arte,como amadores.

Lição Segunda

Os Manuais de Literatura

Os Manuais de Literatura. - O que eles deveriam ensinar.-Ensinam a escrever? - As demonstrações técnicas. - Há umestilo único? - Como conhecer as nossas próprias aptidões?

Os antigos Manuais de literatura alongavam-se des-medidamente em frisar as diferenças dos diversos estilos,o estilo simples, o estilo figurado, o estilo moderado.

Pesavam e discutiam a força das expressões, a qua-lidade das imagens.

Ensinavam a distinguir o género épico do génerodramático, lírico, dídáctíco,

Insistiam sobre os caracteres da ode ou da epopeia.Nada disto tem proveito, nem vale a pena ocupar-

mo-nos de tal.Também insistiam muito sobre o estudo dos mode-

los, dizendo:

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eFormat-vos, estudando-os: tratai de escrever tãobem como eles.»

Decerto é excelente coisa estudar as obras-primas.A admiração conduz à imitação, e a imitação é um

meio de assimilar as belezas alheias.Mas apontavam-se mais as perfeições que os defeitos.Como o leitor se inclina para escrever coisas medío-

cres, é o exemplo das coisas mediocremente escritas quese lhe deve apresentar para as evitar.

a que se lhe deve mostrar são as frases más quese podem tornar boas, e dizer por que é que elas sãomás e como se tornam boas.

Não compreenderão o que é escrever bem, senãodepois de lhe terem exposto o que é escrever mal.

A verdade é que é preciso desarticular o estilo e osprocessos, ir ao fundo, fazer sair o músculo, decompora sensação e a imagem, ensinar como se constrói umperíodo, mostrar principalmente os resultados que sepodem obter pelo esforço, pelo trabalho e pela vontade.Nisso é que está tudo.

Não se calcula o partido que se pode tirar de umpedaço de prosa ordinária, repelindo-lhe a feitura, refa-zendo-a, aperfeiçoando-a.

É no que se cifra toda a ciência de escrever; e énisto que vem a propósito o papel de um guia prático.

É verdade que é melindroso o quererem ensinar-nosa escrever, quando quem ensina não é escritor, consa-grado pela admiração que desperta. Em tais condições,porém, poucas pessoas seriam capazes de tal papel, ..

Decerto nos perdoareis que o tentemos, a julgar pelaquantidade de pessoas que se inculcam professoras deestilo.

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A ARTE DE ESCREVER 15

Quantos Manuais!Quantos Conselhos!Quantos Cursos!Quantos volumes profissionais!Consultem os catálogos das livrarias clássicas.A maior parte dos autores, que empreendem tal

tarefa. estão longe de ser notáveis escritores.Têm apenas erudição, um juízo claro e gosto.Visto que isto basta para justificar a pretensão deles.

não vejo motivo para me abster de publicar também umManual prático e técnico de literatura.

Eu sei que muita gente supõe a arte inacessível eindemonstréoel,

«Ensinar a escrever!»Que loucura!Não se ensina a escrever!O estilo é um dom.Ou se possui ou se não possui.Cada um sente como pode.Escrever é um caso de inspiração.A criação das palavras e a arte das expressões são

qualidades inatas.Os conselhos podem alimentar o fogo sagrado. pre-

parar a cultura das qualidades. dispor um pouco o ter-reno produtivo.

Mas nunca se aprenderá a descobrir belos pensa-mentos ou frases originais.

Há nisto porém uma confusão.Não se ensinará. a ninguém, a ser Bossuet ou

Ésquilor mas há na arte de escrever uma parte demons-trativa. um lado profissão, de uma extrema importância,uma ciência técnica. uma espécie de trabalho minucioso

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16 A ARTE DE ESCREVER

e profundo, que fornece quase tantos recursos como ainspiração.

Admiram-se muitas vezes belezas, que são devidasa combinações de palavras, à habilidade da estrutura,assim como a acasos e impressões inesperadas.

Os resultados de uma longa experiência, podemformar, portanto, um curso de lições aproveitáveis.

Há qualidades adquiridas e qualidades a adquirir.Aquelas que se podem adquirir ultrapassam talvez

aquelas que se possuem.Sem dúvida, uma parte da arte de escrever não se

aprende, mas outra parte aprende-se.É por falta de trabalho que tanta gente escreve mal.O trabalho ajuda a inspiração.Foi ele que a fez frutificar e é por ele que se con-

segue progredir.Se é verdade que o génio não é mais que uma longa

paciência, digamos em alta voz que a arte de escreverse pode aprender com tempo, pacientemente!

Não se trata, bem entendido, de dar fórmulasexactas, regras matemáticas, receitas infalíveis paraconjurar as dificuldades e encontrar as belezas fictícias.

Trata-se de decompor a forma, de analisar os amba-'ges e as expressões, de fornecer aos leitores a verda-deira revelação do estilo, o ãngulo onde é preciso vê-Io.

O ensino, que nós concebemos, lucraria sem serdado de viva voz; mais resultado alcançaria, se nósmesmos corrigíssemos as .composíções, feitas pelos dis-cípulos e não extractadas dos autores, porque os exer--cícíos dos que aprendem contêm erros e inexperiências,que escassamente aparecem numa obra impressa.

É fácil mostrar os processos, sobre um assunto sim-

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A ARTE DE ESCREVER 17

ples: e é difícil encontrar exemplos. inventar erros. pre-parar assuntos para correcção.

Procuraremos desviar. o melhor possível. esse íncon-veniente.

Poderão dizer-nos também: «a tua pretensão deensinar o estilo é quimérica: que estilo vais ensinar?Não há um só padrão de estilo. Cada autor tem o seu.Míchelet não escreveu como Guízot, e Bossuet nãoescreveu como Fênelon: Montesquíeu não se assemelhaa Chateaubriand. Com que direito poderás impor talforma em vez de outra? Mas conv'irá esta ao meutemperamento? Aconselhar-me-eis estilo regularmenteconstruido. a mim. cujo estilo é incisivo e rápido?E apontaríeis Bossuet, como modelo. a quem tenha otemperamento de Míchelet?»

Sem dúvida. há tantos estilos como autores. e seriaabsurdo querer impor um deles. fosse qual fosse.

Não é um estilo especial que queremos propor; que-remos ensinar cada estudioso a escrever bem no seupróprio estilo.

Há uma arte comum a todos os estilos.São os princípios. as graduações e as consequências

desta arte o que desejamos desenvolver.É essa arte o que constitui a ciência de escrever.Posto que as qualidades de escrita não sejam as

mesmas em todos os autores. um bom verso de Boileaué bom pelo mesmo motivo por que é bom um verso deVítor Hugo.

Dizia Flaubert:--- « Um bom verso não tem escola.»Também um bom estilo a não tem.

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$ --18 A ARTE DE ESCREVER

As nossas razões para admirar os mestres são sem-,pre as mesmas.

Quando falo de Ésquilo, podeis crer que falo deBossuet.

Pascal não é, na maior parte dos casos, mais queum Guez de Balzac, com génio.

E, à parte a eloquência, descobre-se perpetuamenteMontaigne por trás de Rousseau.

Certamente que não queremos obrigar ninguém aadoptar tal ou tal estilo.

O que aconselharemos é que se decomponham eassimilem todos os estilos, e que depois se forme umdeles.

Tratai primeiro de escrever bem, e a originalidade ,-do vosso estilo chegará por si mesma.

Em todo caso, há uma tradição de estilo da língua:é a tradição clássica, a mola regular e compassada, aestrutura acadêmica e lógica, de que usou Fénelon,Rousseau, Chateaubriand, Flaubert.

É uma ficção geral, e domina tudo.Eis, à priori, a forma que é preciso propor para

modelo.Tranquilizai-vos, porém, que o vosso temperamento

a modificará, se nascestes para a modificar, e semesforço quebrareis esse molde, se for estreito de maispara as vossas qualidades.

O epíteto trasbordará, se tíverdes a vocação doepiteto: a cor aparecerá, se tíverdes o gosto pela cor;e carreqá-la-eis, sem o querer. se amardes o empas-tamento.

Criareis por vós próprios, o pormenor, o cambiante,a florescência do vosso talento; mas, primeiro, adoptai

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A ARTE DE ESCREVER 19

os moldes clássicos, a forma prevista e sóbria, a linhaliterária, a temperança, a probidade, o plano.

Se as vossas qualidades contêm, em germes, flores-cências futuras, deixai-as germinar.

Não entreis com o pé esquerdo, como se costumadizer, e não vos estreeis com o excepcional, o exage-rado, o violento e o rutilante.

Se tendes vida, rompereis o ovo; mas sabei que nãohá desenvolvimento possível. fora do embrião ordinário.

O que é preciso pois ter em mira, o que se deveatingir, é a forma resultante do génio da língua.

Esta forma bastou aos mais diversos autores, aostemperamentos mais difíceis, a quem nós devemos obrascomo Salambô e Três Contos de Flaubert e os contosde Daudet.

Esta forma acadêmica não impede Bossuet de serum criador incomparável de palavras, e Chateaubriandde escrever, nas suas Memórias, páginas de um coloridoe de uma ousadia, em que se encontra o futuro pincelde Gautier, Saint-Victor e Goncourt.

Portanto, um Manual sobre a arte de escrever épossível, necessário e lógico, tomando-se por modelo aconstrução geral da frase, tal qual saiu do latim e talqual a exploraram excelentes literatos durante séculos.

É, em suma, a forma latina, ampliada e transformada;o estilo francês sai do latim por Amyot e Montaigne.e, como o das outras línguas românicas, pelos seus res-pectivos clássicos.

Isto é tão certo que, mesmo em nossos dias, os nossosmelhores escritores conservam, sob as suas expressõesoriginais e as suas audácias de artistas, qualquer coisa

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20 A ARTE DE ESCREVER

do latim, uma resistência de músculos e uma nitidez detraços, que vem da língua romana universal.

A primeira condição preparatória, para escrever, éconhecermo-nos, e, para isso, segundo diz Horácío, épreciso examinar, estudar, saber com que fardo pode-rão os nossos ombros.

Qual é a vossa vocação?Quais são os vossos gostos?De que sois capaz?Quais são as vossas preferências?Tendes aptidão para o romance, para o diálogo. para

a poesia, para a descrição?Nada é mais difícil que conhecermo-nos literàría- ~

mente.A nossa imaginação tem miragens, que nos iludem.O verdadeiro germe é muitas vezes sopitado. e só

aparece tardiamente.Gautier e Goncourt supunham-se nascidos para a

pintura.Rousseau só aos quarenta anos é que compreendeu

que era escritor.H. de Balzac procurou o seu norte durantes anos.

fazendo romances de aventuras.[ulqais-vos coloristas e nascestes para a análise.Éreis marinheiro, como Lati. e nascestes para escrever.Um caso nos revela a nós próprios. Nem sempre

temos bom êxito naquilo que mais nos agrada.Ledes comédias. eis-vos apaixonados pelos diálogos:

mas. residis na província, má condição para fazer peçasteatrais.

O espírito curioso faz muitas vezes o percurso dos

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A ARTE DE ESCREVER 21

conhecimentos, antes de saber com que pode, e de conhe-cer o seu valor.

Há assimilações passageiras, que são meras ilusões.É preciso, para termos completa certeza de vocação,

repetir as experiências, recomeçar as provas, mudar deexercício, passar de uma leitura a outra. Por fim, acen-tua-se uma predilecção, traça-se um atalho em meiodesses diversos caminhos, e, graças à intervenção deum amigo. ao auxílio dos conselhos' e das opiniões deum companheiro inteligente, sabeis, finalmente, poucomais ou menos, o que quereis fazer e o que podereisfazer.

É preciso sobretudo ver bem, porque sucede que,aquilo que mais prezamos em nós, são exactamente osnossos defeitos.

Deveremos reagir, violentar-nos, contrabalançandoas más tendências e dirigindo as disposições de ínteli-gência para o lado das qualidades reais.

É raro que se tenha o discernimento e a coragemde sermos pura e simplesmente o que somos.

Devemos examinar primeiramente a influência domeio em que se vive, pois é muitas vezes ele que deter-mina e desenvolve as nossas faculdades.

Se viveis na aldeia, tereis probabilidades de ser aptopara descrever os costumes rústicos e incapaz para des-crever os mundanos.

Quando estamos muito perto das coisas que se vêem,acabamos por as não ver e não pensamos em exprimiro que melhor sabemos.

É necessário um esforço, um recuo, para as notar.Se conversais bem, se possuís o espírito da conver-

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22 A ARTE DE ESCREVER

saçâo, há toda a probabilidade de que sereis orador enão escritor, e é para aquele lado que vos deveis voltar.

Seria extenso enumerar as diversas hipóteses a enca-rar, para chegarmos ao discernimento de nós próprios.

As observações e os conselhos variam para cadapessoa. E, depois, o meio, que mais luz vos ministraráa tal respeito, é a leitura.

, .Lição Terceira

A leitura

A leitura. ~ Consequências da leitura. ~ A assimilação pela lei-tura. ~ A leitura é uma criação. ~ Como se deverá ler: ~Devem ler-se muitos livros? ~ Quais os autores que se podemassimilar. - Estudo dos processos pela leitura. - Homero, .Montaigne, Balzac, Saínt-Evremond, Bossuet. Rousseau.v->Como devemos ler? ~ Como tomar notas? - A anatomia doestilo. - A falsa análise literária. - O estilo, o oficio, otalento. - Pastichos (') e comparações técnicas.

BuHon, no seu imortal Discurso acerca do estilo.disse judiciosamente:

(') Não conheço em português expressão ou termo, quecorresponda precisamente ao italiano pesticcio, que, propriamente,é termo de pintura, e que, afrancesado, deu pastiche. Paródiaseria termo vernáculo, mas, como envolve sempre a ideia deburlesco ou ridículo, não representaria com exactídão o italianopesticcio. Acho portanto preferível o aportuguesamento pasticho.

(Nota do tredutor ),

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A ARTE DE ESCREVER 23

- «Os nossos conhecimentos são os germes dasnossas produções».

O talento não se inventa.- «Transfunde-se sempre por infusão». acrescenta

Flaubert, que lera tudo.Rousseau. antes de escrever, lera e relera Montaigne

e Plutarco.Bcssuet conhecia profundamente a Bíblia e os Padres

da Igreja.É proverbial a imensa leitura de Montaigne: escre-

via e falava o latim. antes de saber o francês.Chateaubriand confessa que relia continuamente

Bernardim de Saínt-Píerre.Todos os grandes escritores proclamam a necessi-

dade de ler. de ler bem.A leitura é a base da arte de escrever.Sem dúvida. pode haver excepções, exemplos de

génio. uma G. Sand, escritora de improviso.Mas devemos olhar ao que é geral.Proveitosa a todos os grandes talentos. cuja vigorosa

personalidade ela provou. a leitura. com mais forte razãonos é necessária a nós. os medíocres 'e os retardatários.que tanta necessidade temos de fortificar a nossa inspi-ração. de auxiliar a nossa cultura e de ampliar. alimen-tare transformar as nossas ideias.

Para todos nós. o campo da imaginação está porcultivar; pode produzir. mas deve ser adubado.

É quase sempre após uma leitura que se declaram asvocações literárias. porque é por ela que o nosso espí-rito se abre aos múltiplos recursos da arte de escrever.

A leitura mostra-nos. postos em prática. os meiosde execução. faz-nos ver como se trata uma situação

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24 A ARTE DE ESCREVER

difícil. como se põe comoção nas frases, como se variamas expressões.

Alternadamente, passam-nos por diante dos olhoscenas bem executadas, descrições fortes, diálogos per-feitos, maleabilidades de espírito; os processos de estilo,os efeitos idênticos, obtidos por combinações diversas;os exemplos dos estilos mais opostos, os infinitos cam-biantes de uma ciência, aplicada por temperamentosdissemelhantes.

Despertam-se as subtilezas na nossa inteligência:a nossa imaginaçãoexcita~se; opera-se a assimilação.

É uma longa criação, uma segunda natureza quenos advém, o desabrochar motivado e fecundo dasnossas qualidades nativas.

Pode-se afirmar que o homem que não lê é incapazde ccnhecer as suas forças e ignorará sempre o quepode produzir.

Não me cansarei de repetir: é preciso ler, ler sempre.Desconfiai daqueles que dizem: «Nada quero conhe-

cer; nada quero ler: basta-me a natureza».Arriscam-se a nunca produzir coisa boa e a refazer

o que já está feito; porque há-de confessar-se, ao menos,que a leitura nos põe em guarda contra os assuntose processos já explorados.

Quereis saber se tereis talento? Lede!Os livros vo-lo dirão.Escreveis, mas suspendestes a escrita? LedelOs livros vos inspirarão.Lede, quando quiserdes escrever; lede, quando já

não puderdes escrever.O talento não é mais que uma assimilação.

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A ARTE DE ESCREVER

É preciso ler o que os outros escrevem, a fim deescrevermos para ser lidos também.

A leitura dissipa a monotonia. activa as faculdades,descrisalída a inteligência e põe em liberdade a ima-ginação.

Sei de alguns literatos abalizados, que nunca seentregam ao trabalho sem ter lido algumas páginas deum' grande escritor, -- meio excelente para encontrar ainspiração.

A leitura é o grande segredo.Ensina tudo, desde a ortografia até às construções

de frases.Devem ler-se muitos livros ou poucos?Pergunta importante e delicada. As leituras disper-

sas não têm proveito, assim como a leitura de um sóautor, por uma estreita assimilação, faz cair no pasti-cho e transfunde-nos os defeitos de um escritor.

Foi o que sucedeu a Lamennaís, no seu Ensaio sobrea Indiferença, em que a imitação de Rousseau é frisante.As mesmas frases, os mesmos rodeios, as mesmas anti-

JM teses, as mesmas veemências, a mesma linguagem.O timeo hominem unius libri é um velho adágio.Eu receio o homem que lê só um livro: Sem dúvida,

se esse livro é a Bíblia ou Homero, vastas florestasinesgotáveis de variedades e profundezas, em que seencontram todos os gênios e todas as escolas, o perigonão é sensível.

Mas, fora essas grandes obras, é preciso, creio, muitaprudência e tacto, se vos quereís prender à leitura deum só livro, para não cairdes nos inconvenientes queassinalamos.

Demais, como disse Spencer, há estômagos que con-

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f26 A ARTE DE ESCREVER

têm muitos alimentos e nada digerem. enquanto outrosabsorvem pouco e digerem tudo.

Séneca não queria que se lesse muito.Via uma depravação de apetite numa curiosidade

muito complexa. e entendia que querer ler tudo é correro risco de apenas percorrer tudo.

Segundo ele. não se pode entrar na substância deum autor, se não com uma Irequência assídua. cujoproveito só se desenvolve demoradamente; e concluios seus conselhos a Lucílío, ensinando-lhe que façaescolha entre os melhores autores.

É a regra mais sensata e devemos quíar-nos por ela.Mas, que autores deveremos escolher?Aqui é que as opiniões divergem.Em primeiro lugar, para se formar a aptidão, para

se possuir lance de olhos literário, completo. para des-pertar as faculdades criadoras e as disposições imagi-nativas, é necessário absolutamente ler muito, ler todosos bons autores, que possamos ler.

Depois, escolhem-se os melhores e. entre os melho-res, não os primeiros. nem ainda os mais puros e osmais simples, mas aqueles que estão em mais relaçãocom as nossas tendências, principalmente aqueles quenos podem aproveitar dírectamente, aqueles que sepodem assimilar, porque há autores que são essimilé-veis e outros que o não são.

Esta distinção tem extrema importância para quemquer aprender, pràticamente, a escrever e não a atacardurante anos, através dos autores.

É preciso ler os mestres. mas que mestres?Vamos tratar de os indicar. sem nos preocuparmos

com os assuntos, com o lado social ou moral. com o

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--A ARTE DE ESCREVER 27

valor filosófico ou com a influência das obras. tendoaqui em vista apenas a profissão. a arte de escrever.o proveito imediato. que se pode tirar da leitura.

Até agora. tem-se desprezado o lado da utilidadeprática; só se vêem na leitura modelos de elevação geral.mais proposto à admiração do espírito. do que à efectí-vação da faculdade de escrever.

Costumam dizer: Para vos ilustrardes. lede La-Fon-taine, Molíêre, Corneille, etc.

Eis aqui quatro autores que nos mostram até queperfeição se elevou a arte literária. mas cuja leitura.receio eu. se arrisca a ficar sem proveito imediato. quantoà formação do vosso estilo.

Passaríeis anos a ler La-Fontaíne, que nada lucra-ríeis com isso. e por uma razão bem simples: é queLa-Fontaíne é inimitável: levou consigo. para a sepul-tura. o segredo da sua arte; é impossível saber-se comoele construiu as suas frases. com que engenho e comque trabalho (1) ele obteve tal concisão e tal relevo.

Além disto. há ainda nele um requinte. uma malca-bílidade de espírito original, um não sei quê de humo-rismo. que ninguém poderá jamais decompor nem apro-priar.

Quanto a Boíleau, há nele uma perfeição de justezae de síntese admiráveis.

Mas a linguagem literária progrediu, ampliou-se.O verso clássico já não é possível; os rios não

sobem para as suas nascentes.A arte não é estacionária; o molde de Boileau foi

(') Ele refazia dez ou doze vezes cada fábula.

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r 28 A ARTE DE ESCREVER

posto de lado; quem o imitasse cairia na insipidez e noanacronismo.

Quanto a energia e sobriedade, podemos achá-Iasnoutros.

Relativamente a Molíêre, este oferece mais vanta-gens na essência, do que na forma, pela profundeza dasua observação assombrosa, e pelo seu diálogo eterna-mente humano, --- ainda que contornando embora rude-mente o verso, talvez tenha feito, a par de Comeílle.os versos mais felizes, mais belos e os mais surpreen-dentes da língua francesa.

A admiração que tivermos por Corneílle é igual-mente mais objectiva. Nós é que vamos para ele, e elenão vem para nós.

De um modo geral é melhor começar por ler o queé simples, clássico, sincero, puro, de pensamento e sen-timento recto, para dar ao gosto e às ideias a rectídãoe a clareza que são a base das grandes obras.

Mas, quanto à prática, para a assimilação técnicae proveito urgente, devemos ler principalmente os auto-res que nos deixam ver os seus processos, em que pos-samos discernir os meios de trabalho, os artifícios deestrutura, os pormenores do estilo, a ciência da expressão;em que possamos avaliar o esforço representado nasjustaposições empolgantes; ver como se obtém a inten-sidade e o relevo; o ponto, em que nos devemos colocar,para fazer ressair as idéias: a habilidade necessária paraampliar, imprimir movimento, etc.

Saber ver é a grande palavra da escrita literária;e saber como é preciso ver, é quase o mesmo que sabercomo é necesserto exprimir.

À frente dos autores que podem ministrar este

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A ARTE DE ESCREVER 29

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género de ensino, deve colocar-se Homero, que é sem-pre o maior escritor de todos os tempos.

É nele que se encontra o primeiro modelo de vidana descrição.

Se não lestes Homero. não sabereis nunca o queé o verdadeiro realismo e a arte de escrever.

Voltemos a este ponto, analisando as suas descri--ções; mas, fiquemos sabendo, desde já, que nunca nin-guém excedeu Homero a tal respeito.

Há nele germes de todas as escolas; tem comoção,elcquência, piedade, observação, pintura' e colorido, atal ponto, que Homero é o eterno modelo da arte deescrever.

Homero porém não produz todo o seu efeito, senãonuma boa tradução. As de Bítaubé e de M.me Daciersão frouxas.

Há apenas uma tradução, que dá a sensação de-o seu relevo, o seu realismo, o seu vigor e suavidade, eque o torna vivo para nós, como um livro contemporã-neo : é a tradução de Leconte de Lísle, apesar das suasinfidelidades, das suas manias bárbaras, das suas aíec-tações de arcaísmo, das suas durezas de construção, eapesar até dos seus contra-sensos.

Para vos convencerdes disto, bastará que compareisaquelas traduções entre si, como nós fizemos.

Cotejámos a de Leconte de Lisle com o texto grego,palavra por palavra.

Nenhuma tradução dá melhor do que esta a sen-.sação do original. posto que o estilo de Homero tenhauma fluidez, que ninguém poderá exprimir.

Montaigne é igualmente um tesouro de desc~bri~mentes e de ensinos; nunca ninguém praticou o francês

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30 A ARTE DE ESCREVER

com mais fecundidade; encontram-se nele todos osgêneros e todos os estilos.

Rousseau, Pascal, Balzac, Saínt-Bvremond estão emMontaigne, que mostra em cada página o partido quese pode tirar de um pensamento, como este se desen-volve, como se exprime todo o valor dele, fazendo-obrilhar nas suas facetas, decompondo-o, partindo-o, emembates e faíscas.

Nenhuma leitura pode substituir a leitura de Mon-taigne.

Guez de Balzac é também muito útil, é o Malherbeda prosa; fixou o estilo francês antes das Provinciais eantes dos Pensamentos de Pascal.

Posto que insuportàvelmente pretensioso por vezes,é um curioso escritor, mais brilhante que profundo,mais espirituoso que eloquente, mas de um extremorelevo de pensamentos e de uma harmonia delicada.

Aqueles que o desdenharam leram-no mal.O seu estilo produz tal efeito, que o acusaram de

ser apenas retórico, e Saínt-Beuve disse que o pode-riam imitar perfeitamente. Mais uma razão para o ler-des bem e o assimilardes.

Compete-vos a vós não ficar no seu molde. umavez recebida a impressão.

Não deixarei de recomendar também a leitura deSaínt-Evremond, embora autor secundário; mas nãodeveis demorar-vos com ele, e bastará limitar-vos aalguns dos seus Entretenimentos, e às suas Considera-ções sobre os Romanos, que parecem preanunciar Mon-tesquieu.

Temos o divino Bossuet, o maior criador de pala-vras e de expressões, o mais admirávelestilista, que

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A ARTE DE ESCREVER 31

existe na língua francesa. Verbos. substantivos. epitetos,união de palavras. imagens formidáveis. tudo extrai doseu engenho. Ê um deslumbramento em cada página.um trajo fulgurante com que veste pensamentos colossais.Suscitar-vos-à a imaginação. despertará em vós os ger~mes do estilo e dará à vossa faculdade de escreverpermanente ebulição.

Devem ler-se principalmente os seus Sermões.Em seguida. temos Rousseau, um autor eminente-

mente assimilável. Acautelaí-vos com os seus parado-xos; o erro tem nele visos de verdade; mas a sua formaé admirável e o processo sem disfarces.

Ponhamos de parte a Profissão de fé do VigárioSeboieno, as mais belas páginas da nossa literatura.talvez, mas que contém confissões de incredulidade. quenão estão ao alcance de todos os olhos.

Uma boa compilação dos seus fragmentos escolhi-dos é um livro indispensável. cujo estudo vos formarámelhor o estilo que os melhores tratados teóricos.

Depois destes autores. como a cor e a imagem sãonecessárias, aconselharemos a leitura de Chateaubríand,pai de toda a nossa escola contemporânea e dos nossosmais recentes escritores.

Há nas suas obras uma parte que envelheceu, comoos N etchez: mas uma parte permaneceu jovem e nuncaenvelhecerá: é o que ela tem de pessoal e descritiva.Atala. Renato e principalmente as suas Memórias deelém-túmulo, em que o talento atinge uma extraordiná-ria intensidade. É o melhor livro do seu século.

Eis aqui. creio eu. a escolha que há a fazer entreos autores que se devem ler tecnicamente. para proveitoda forma.

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32 A ARTE DE ESCREVER

A leitura dos bons autores é, portanto, índíspensá-vel para a formação do estilo; mas surge aqui umapergunta importante:

Como se deve ler?O proveito da leitura depende da maneira como

se lê.Goethe disse:- «Não há mau trabalho, que não tenha alguma

coisa de bom.»Ler, sem tomar notas, é como se nada se houvesse

lido. Decorridos seis meses, não vos lembrareis do quelestes.

Devorarmos tudo, vermos desfilar tudo, não nosdetermos em coisa nenhuma, é trabalho indigesto econfuso.

E mais diríamos:«Li isso algures ... ; de quem será este trabalho? este

pensamento?»Rumina-se. procura-se. fica-se aborrecido; seria

necessário reler tudo.Que curiosas aproximações, que lindas paqinas se

escreveriam, se pudéssemos precisar o que agita amemória, fixar o que se entrevê, localizar o que flutua!

A memória é coisa oscilante.Não haveria sábios, se nos fiássemos nela.A verdadeira memória consiste, não no recordar.

mas em ter, ao alcance da mão, os meios de encontrar.A primeira condição para ler bem é portanto fixar

o que se quer reter, e tomar notas.Um livro que se deixa, sem ter extraído dele alguma

coisa, é um livro que se não leu.Insisto na necessidade da leitura, para se criar uma !

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forma. um estilo. Quanto à essência. o proveito é igual:o mesmo recordar servirá para as ideias: a inteligênciaassimilará os pensamentos. a imaginação reterá as íma-gens e o senso estético abrangerá os contornos. os mol-des. as formas.

Para obter este tríplice proveito. é absolutamentenecessário ler. tomando notas; e. para as tomar. há ape-nas um modo prático.

Alguns autores aconselham que se faça escolha detrechos. para comparar os pensamentos dos escritoressobre a mesma matéria; ou escolha dos pensamentosmais salientes de tal ou tal escritor. para nos saturar-mos do seu espírito e compenetrarmo-nos deles o maispossível.

Estes meios. não os acho práticos; têm qualquercoisa de fictício e de insuficiente.

O perigo de tal trabalho é descambar em mania.acabar por copiar tudo. o bom e o mau. e coleccionaragendas.

Os espíritos medíocres imaginam que aprendemmuito. copiando tudo; é um engano.

Mas esse trabalho de cópia pode tornar-se excessivo.se se faz com um fim técnico.

Copiar um bom fragmento de um autor é um exer-cício útil para a ciência da construção.

O estilo. em letra redonda. embeleza-se. lisonjeia avista e ilude; o mesmo estilo. manuscrito. produz diversoefeito; dir-se-ia que é da própria pessoa que manuscreve;parece um exercício de composição; é uma pérola quecaiu de um estojo. e que se avalia em cima de um papel.Otil exercício. que me não cansarei de recomendar.

Voltemos ao nosso assunto.

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34 A ARTE DE ESCREVER

Para se ler bem, devem tomar-se apontamentos;mas como?

Sobre linguados de papel ou de cartão fino, díspos-tos alfabeticamente pelos nomes dos autores.

É o único meio prático.Uma classificação por ordem de ideias dá resulta-

dos confusos; poucos cambiantes separam as ídeias:encadeiam-se, confundem-se e não nos podemos asse-nhorear delas.

Os linguados podem ter três objectivos:1.o Notas de erudição.2.0 Citações notáveis.3." A apreciação, feita por quem lê.Os linguados são indispensáveis à erudição; todos

os sábios os têm; sem eles, nada se retém. É o UI11CO

meio, num dado momento, de nos recordarmos do quetemos lido.

Resumem-se os nomes das obras, notam-se 0$ juizosdos autores, as coisas que com eles se relacionam, 3S

aproximações e as recordações; são tesouros que seamontoam; bastará relê-los, mais tarde, para que tudo,que aí apontamos, nos volte com nitidez.

Graças a este meio, não é difícil ser instruído.Os sábios não o ignoram e é por isso que são

modestos.Conheceís as inumeráveis notas, colocadas ao fundo

das páginas, em trabalhos de erudição? É o resultadodum sistema de linguados, longa e pacientemente acurnu-lados.

Podem-se também registar nos linguados citaçõesnotáveis, frases típicas, extractos empolgantes, expres-

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A ARTE DE ESCREVER '35

sões estudadas. o lado profissional do estilo; é nissoque estará o proveito de copiar bons autores.

Depois. escrever nos linguados a própria crítica. opróprio conceito. constitui um exercício. cujas vantagensverifícareís. de dia para dia.

Ledes um livro ... Que deveispensar dele?Se não tomardes apontamentos logo. esquecer-vos-

-eis dele.Na ordem intelectual ou puramente artística. é impor-

tante ir escrevendo. à medida que se lê.Repetímo-lo: ler. sem empregar este método. é como

não haver lido.É ler como faz toda a gente. sem aspirar a ser

alguém.A regra que deve dominar a preparação literária é

ver tudo. tomar conta de tudo e avaliar tudo directa-mente.

Não creiam que. para conhecer uma obra. bastaráler histórias literárias ou livros de crítica.

Nenhum crítico. por mais forte que seja. substituirájamais a leitura de um trabalho. porque são os pro-cessos. os métodos e a anatomia do estilo que diferen-ciam os autores. e muito poucos críticos se preocupamde nos mostrar esse lado profissional.

É. pois. para isto que deveis dirigir a vossa atenção.se quiserdes examinar e analisar os escritores nas vossasnotas.

Notai num (Míchelet ) o emprego da síntese. paraexprimir o que outro (Bossuet) dirá em longos períodos.

Um procede por empastamento ou justaposições(Taíne. Goncourt. Zola); outro tem a frase colorida.mas clássica (Cha tea ubriand, FIaubert) .

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36 A ARTE DE ESCREVER

Este (Montesquíeu}, aperta e liga frases bastantecurtas. que ele faz esbarrar espiritualmente; aquele(Rousseau). tem a paixão da antítese; e aquele outrotem harmonia e majestade na sua calma (BuHon. etc.).

Muitos professores aconselham que se façam análi-ses literárias. que se resumam os assuntos. que se redu-zam os desenvolvimentos à ideia-mãe, que se exponhamparalelos. que se assinalem as belezas, que se exami-nem os caracteres, que se desenvolva o plano, que secaracterize o estilo, que se exponha a acção, que seaprecie o título. etc.

Tal trabalho poderia ser frutífero, se fosse bem feito;mas os exemplos de análises literárias, que nos dão comoexcelentes. são executados com processos de retórica,tão superficial, que é inútil aconselhar tais exercícios.

É perder tempo obrigar os principiantes a torturaro espírito. num género de estudo. que não transpõe osmoldes de La Harpe.

Lemos essas espécies de análises literárias, propos-tas pelos mestres. ou publicadas por alunos. em frag-mentos de composição: análises da fábula O Carvalhoe o Canavial. Os Animais Doentes de Peste, A Ando-rinha e os Passarinhos.

Tudo se limita a repetir apreciações. como esta queé textual:

-- «O plano é bem seguido ... Estes oito versos sãoum retrato ... É um retrato bem desenhado Eis aquias palavras de uma pessoa idosa e prudente O poetapõe-nos a andorinha sob os olhos. Que delicadeza eleexpressões naqueles dois versos! Este incidente é de umefeito encantador!. .. Escutemos os argumentos da ando-rinha ... Esta exclamação tem uma vivacidade empol-

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A ARTE DE ESCREVER 37

gante ... O drama vai precipitar-se ... Aquela linguagemé bem a do jovem presunçoso! Como o carácter dospassarinhos se encontra descrito ali tão naturalmente ede uma maneira empolgante!... Estes versos são encan-tadores! As suas expressões são cheias de delicadeza ...Esta comparação está cheia de apropósitos ... »

Estas linhas são assinadas por um estudante deretórica de um liceu de Paris, aprovadas pelo mestree publicadas num dos mais modernos Cursos de Lite-ratura escolar, aprovado pela Academia.

Vede que modelos de análises!Tudo se reduz ali a uma paráfrase do autor; segue-se

a narrativa, enqrínaldando-a de reflexões aprovadoras;é o que se chama fazer sobressair as belezas.

Dão-vos duas ou três chaves, algumas palavras:plano, narrativa, rapidez, cerécter, composição, anda-mento geral. estilo, figura, unidade de acção, etc.

Experimentais as vossas chaves, uma por uma e,logo que elas serviram e todos os compartimentos fica-ram fechados, está jogada a partida.

É assim que se aprende a fazer análises, segundo,um padrão único, estreito e insignificante.

Eis aqui outra análise, feita também por um retórico:Exame do sonho de Paulina e do sonho de AtaZia.Como estes dois sonhos se não assemelham, indi-

caram a diferença que há no seu alcance e nas suasconsequêncías, em que intenção diferem e quais os seusefeitos.

Um «põe a acção em movimento»; no outro, «girasobre o sonho a tragédia inteira»; ambos excitam o terrore despertam funestos pressentimentos: tudo isto, pre-

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cedido de um lance de vista sobre o papel dos sonhosno teatro.

Tantas reflexões, e nada de execução artística e demérito literário!

Respondereís: mas, que se há-de exigir de um man-cebo, de um estudante, de uma criança? Não se lhepode exigir um profundo conhecimento das coisas, umestudo aturado e minucioso, considerações transcenden-tes. Por que haveis de substituir este método?

O que eu digo é que é preciso dar outra direcçãoàs ideias do estudante, aos seus esforços, às suas apti-dões de examinando.

Deve-se-lhe proibir que escreva essas banalidadesde apreciação, essas puerilidades, esses chavões fáceis,esses moldes, prontos a receber a forma dos pensamen-tos vulgares.

Então, que lhe deveremos pedir? É bem simples.Isto: «Que pensais deste estilo? Donde vem a sua força?Que diria, em tal caso, um escritor ordinário? Por queprocesso de execução suporides que o autor tenha atin-gido a concisão? Em que consiste a concisão? Que frasesseriam essas, se não fossem concisas? Como e porquêhá vida em tal narrativa? Que é o que constitui relevode estilo? Reconstituí esses versos, para mostrar comoeles seriam, se não tivessem relevo. Em que é que oautor faz dizer às personagens o que devem dizer, e quediriam elas, sem o engenho do autor? Onde está o colo-rido desta narrativa? Onde está o movimento? Ondesupondes que haja transições? Qual é, na vossa opinião,a passagem mais difícil de tratar? Que maleabilidade deespírito se prova nesse fragmento? De que outra formase poderia compor? etc., etc.».

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A ARTE DE ESCREVER 39

Poderíamos enumerar um longo questionário destegénero, visando essencialmente a arte de escrever. o mis-ter. o talento. e atirando para o segundo plano a apre-ciação das ideias, dos sentimentos e dos pensamentos,o que é contudo necessário e que tem também a suaimportância.

É neste sentido prático que se deve dirigir o julga-mento e as opiniões de um aluno, em vez de restringiro seu espírito a um trabalho de ideologia.

Não se pensa nisso, porque ninguém pe~sa em fazera crítica da profissão, e contentam-se em examinar ascercanias de um livro, de um fragmento, rondando emvolta da casca, sem tocar na madeira, examinando acasca sem a abrir, despojando o osso «sem partir amedula».

A leitura bem feita compreende não somente os lin-guados, notas, análises, mas uma grande quantidadede outros exercícios aproveitáveis, como as compara-ções, o pasticho e a transposição.

Comparando fragmentos semelhantes, tratados porautores diversos, verífícar-se-á a diversidade de exe-cução, a oposição dos estilos, as vantagens que umpode ter sobre o outro. o que será preciso acrescentar,a duplo aspecto que pode ter um assunto.

Lede a tempestade, que termina Paulo e Virgínia;comparaí-a à tempestade de Chateaubriand nas suasMemórias e, para terdes uma ideia nítida da evoluçãoda linguagem literária, ajuntai a de um escritor con-temporâneo, Pedro Loti, no Pescador de Islândia.

Renovai esses exercícios.Quando, nas vossas leituras, tiverdes encontrado

fragmentos já discutidos, notai-os, para os terdes à

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40 A ARTE DE ESCREVER

vossa disposição e fazer sobre eles o trabalho queaconselhamos.

Seria prático este género de extractos.O pasticho é igualmente um bom meio de nos pre-

pararmos para a arte de escrever.Quando se tem aptidão para assimilar e um reflec-

tido gosto de leitura, depressa se consegue imitar certasmaneiras de estilo, as dos retratos de La-Bruyêre. porexemplo, e fazer retratos moldados sobre aqueles.

Imita-se assim Rousseau, Bossuet, La-Bruyêre,Montesquieu.

Saber imitar é aprender a não imitar mais, porqueé habituarmo-nos a reconhecer a imitação e a passarsem ela, quando já não for precisa.

O funâmbulo serve-se da maromba, para a poderdeixar.

A transposição é ainda um modo de assimilação ede maravilhosa lucidez.

Pôr em prosa o que está em verso, pôr em verso oque está em prosa.

Assim, convencer-se-ão de que todas as palavras,que compõem os versos de Racíne, são palavras simples,vulgares, absolutamente próprias, não rebuscadas, quese não devem substituir, e verão como se pode fazerboa poesia com as palavras usuais da nossa língua.

Mais adiante demonstraremos a eficácia dessesexercícios técnicos.

Por agora, contentar-nos-emos com indicâ-los comoaplicações de leitura, visto que é da leitura que aindase trata.

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IA ARTE DE ESCREVER

Lição Quarta

Do estilo

Que é o estilo? - A cnaçao das palavras. - A magia das pala-vras. - O «Díscursos de Buffon. - A ideia e a forma sãoessencialmente uma só coisa. - A forma modifica sempre aideia. - A importância da for~a. - É a forma que dá vida.- A forma de Homero, - O que é bem escrito e o que émal escrito.

Que é o estilo?a estilo é a maneira privativa, que cada um tem,

de expttmir o seu pensamento pela escrita ou pelapalavra.

Pela escrita, no escritor.Pela palavra, no orador.a estilo é o cunho pessoal do talento.Quanto mais original é o estilo, quanto mais empol-

gante ele é, mais pessoal é o talento.a estilo é a expressão, a arte da forma, que torna

sensíveis as nossas ideiase os nossos sentimentos; é omeio de comunicação entre os espíritos.

Não é somente o dom de exprimir os nossos pensa-mentos, é a arte de os tirar do nada, de os fazer nascer,de ver as suas relações, é a arte de os fecundar e deos evidenciar.

a estilo abrange a ideia e a forma.

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-42 A ARTE DE ESCREVER

Devemo-nos persuadir de que as coisas que se dizemnão impressionam senão pela maneira como se dizem.

Todos nós pensamos. pouco mais ou menos. as mes-mas coisas. de um modo geral; a diferença está naexpressão e no estilo; este eleva o que é comum. encon-tra novos aspectos para o que é banal. engrandece oque é simples. fortifica o que é fraco.

Escrever bem é pensar bem, sentir bem e reproduzirbem tudo ao mesmo tempo.

Dizia Racine:--- «O que me distingue de Pradon é saber eu

escrever.»La-Bruyêre disse:--- «Homero, Platão, Vergílio e Horácío, não estão

acima dos outros escritores, senão pelas suas expressõese pelas suas imagens.»

E Chateaubriand escreveu:--- «Nada vive, senão pelo estilo; embora protestem

contra esta verdade, a melhor obra, cheia das melhoresreflexões, morre à nascença, se lhe falta o estilo.»

O estilo é a arte de aprender o valor das palavras .••.e as relações das palavras entre si.

As ídeias simples, representadas pelas palavras dodicionário, em número somente de umas 17.000, nãobastam para fazer um escritor.

Aquele que conhecer essas 17.000 palavras poderá.não obstante, ser incapaz de traçar uma frase.

O talento não consiste em nos servirmos secamentedas palavras. mas em descobrir as imagens. as sensaçõese os cambiantes, que resultam das suas combinações.

O estilo é pois uma criação de [arma pelas ideias euma criação de ideias pela forma.

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A ARTE DE ESCREVER 43

o escritor chega a inventar palavras para indicarnovas relações.

O estilo é uma criação perpétua: criação de com-binações. de ambaqes, de tom. de expressão. de pala-vras e de imagens.

Quanto mais essa criação se reconhece na leitura.melhor é o escritor.

A aproximação. o emprego de certas palavras dá-lhesuma magia especial. uma poesia particular. uma siqni-ficação nova.

Guy de Maupassant diz em qualquer parte:- «As palavras têm uma alma. A maior oarte dos

escritores e dos leitores só lhes pedem um sentido.É preciso encontrar essa alma. que aparece ao contactode outras palavras. que ilumina certos livros. com umaluz desconhecida. bem difícil de fazer brotar.

«Há nas aproximações e combinações da língua.escrita por certos homens. toda a evocação de um mundopoético. que o vulgo não sabe ver nem adivinhar. Quandose fala disso. zanqa-se, raciocina. argumenta. nega, grita

-. e quer que lhe mostrem esse mundo. Seria inútil ten-tá-lo. Não sentindo. nunca compreenderá. Homens ins-truidos. inteligentes. escritores. até. admiram-se também.quando lhes falam desse mistério. que ignoram. e sorriem.encolhendo os ombros! Que importa! Eles não percebem.É como falar em música a quem não tem ouvido.»

Bossuet disse:- «A graça. divina tanto chove sobre o rico como

sobre o pobre.»Eis uma palavra. tomada em acepção nova e que

produz uma imagem soberba.Assim este pensamento também:

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44 A ARTE DE ESCREVER

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«Dormi o vosso sono, grandes da terra!»E este:«Derramar lágrimas e orações sobre um túmulo.»A palavra indeterminede, por exemplo, é uma pala-

vra qualquer, geometricamente empregada, sem eloquên-cía, sem brilho.

Sob a pena de Chateaubriand, vai tomar relevo epintará uma paisagem longínqua:

- «A claridade da Lua, a sua claridade pardacenta,descia sobre os píncaros indeterminados das florestas.»

A palavra repousar é trivialíssima; mas, aplicada aum objecto que não repousa, pode tornar-se magnífica:

- «A lua repousava sobre as colinas longínquas»(Chateaubriand) .

Há até palavras de uma frivolidade técnica, oficial,que causam grande efeito, quando um artista lhesencontra uma relação imprevista.

Que haverá de mais incolor que a palavra anun-ciador?

Eis como Pedro Loti se serve dela:- «Os tristes maçaricos, anunciadores do outono,

tinham aparecido às primeiras chuvas.»Outro poderia ter dito:- «Os maçaricos, como tristes pássaros que anun-

ciam ° outono, tinham aparecido ... »Era outro estilo, que não valeria o primeiro.O estilo é portanto a maneira de cada um criar

expressões para patentear ° seu pensamento.Pode ser largo, curto, colorido, seco, abundante, vivo,

periódico, conforme os temperamentos.É difuso, pálido, incolor, freixo, nos maus escrito-

res; incisivo, nervoso, relevado, nos bons.

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A ARTE DE ESCREVER 45

É tão completa a união, entre o carácter e o estilode um indivíduo, que bem se pode dizer realmente:o estilo é o homem.

A vivacidade de palavras, a energia das concepções,o tom da própria conversação falada, a originalidadeda imaginação, tudo isto se junta exactamente no estilode um homem.

O estilo é o reflexo do coração, do cérebro e docarácter.

Diz Blair:- «Os povos do Oriente, em todo o tempo, carre-

garam os seus estilos de figuras fortes e híperbólícas:os Ateníenses, povo subtil e delicado, tinham o estiloclaro, puro e correcto. Os Asiáticos, amigos do faustoe da nobreza, tinham um estilo pomposo e difuso.Notam-se hoje as mesmas diferenças entre o estilo dosFranceses, dos Espanhóis, dos Alemães e dos Ingleses.»

Saber muitas coisas não basta para ser bom escrí-tor; o estilo é independente da erudição; por isso, dizendoque precisamos de ler muito para sermos bons escritores.

•• .supomos. já se sabe que temos aptidões para o estilo,pelo menos uma vocação razoável e um gosto deter-minado. Sem isto, a maior erudição não fará encontrarum torneio de frase.

Há pessoas sábias, que nunca serão escritores; e háescritores brilhantes, que pouco sabem.

O saber e a arte de escrever são coisas distintas,-que não andam sempre a par.

O Discurso sobre o Estilo, de Buffon, contêm asmelhores páginas que temos sobre tal assunto.

Nunca ninguém explicou melhor os processos de umaarte, que podemos considerar como uma ciência, nem

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46 A ARTE DE ESCREVER

expôs melhor as diversas operações do espírito. pelasquais se conseguem boas frases.

Contudo, há nesse Discurso de Buffon uma tendên-cia visível para aconselhar o emprego dos termos geraise dar ao estilo uma espécie de andamento sintético evivo, que constitui certos lados belos do estilo, masque não é todo o estilo.

Villemain teve razão em assinalar o carácter alta-mente pessoal desse Discurso.

Mas que profundo sentido da beleza escrita, e queconselhos práticos!

Diz Buffon que as obras bem escritas serão as úni-cas que passarão à posteridade.

E acrescenta:- «Todas as belezas que ali se encontram, todas

as relações de que o estilo é composto, são outras tan-tas verdades, tão úteis e talvez mais preciosas para oespírito humano, do que as que podem constituir ofundamento do assunto.»

E Buffon diz ainda:- «O estilo é a ordem e o movimento, que se dão

aos pensamentos.»A ordem quer dizer a lógica das ideias, o seu enca-

deamento, o seu fundo; o movimento quer dizer a vida,a forma; a ordem é a concentração, o andamento, o con-junto; o movimento é a imaginação, o agrado e o relevo.

Aqui vem a pêlo a famosa distinção da ídeia e daforma.

Uns separam-nas e diferenciam-nas. A ideia são osmateriais, os pensamentos, a substância, o assunto.

A forma é a expressão, o revestimento, o trajo.Donde concluem que são duas coisas separadas.

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A ARTE DE ESCREVER 47Outros dizem: a ideia e a forma são uma só coisa;

não se podem separar, como se não separa o músculoda carne, É impossível exprimir uma ideia que não tenhauma forma, como se não pode conceber que uma criaturahumana não tenha alma e corpo.

Quando se muda a forma, muda-se a ídeia, e, assim,a modificação da ideia arrasta a da forma. Trabalhara forma é trabalhar a ideia: a forma cola-se à idéia.

Esta teoria é verdadeira e cumpre tê-Ia presente.Em certos casos muito raros, efectívamente, a

mudança da forma não altera a 'ídeía.Assim, se eu digo: chove em vez de cai água: chorar

em, vez de derramar lágrimas: ajoelhar-se em vez depôr-se de joelhos; ressoou um ruído em vez de um ruídose fez ouvir, teria empregado a melhor forma, sem termudado a ideia: e seria antes um sinónimo, que umamodificação de forma.

Afora este género de correcções, puramente grama-ticais. a ideia suporta sempre as alterações da forma.

Escrevo esta frase:«Os nossos corações inebriedos do amor mundano.»Estudo-a e ponho:«Os nossos corações encantados com o amor do

mundo» (Bossuet).A ídeía modificou-se segundo os matizes de uma

nova forma.Encanto não é o mesmo que inebriemento, e amar

o mundo não é a mesma coisa que sentir o amor mun-dano.

Se, em vez de dizer: «Os mártires estavam animadospelo desejo de sofrer» eu digo: «Os mártires estavamanimados pela avidez de sofrer» (Bossuet}, terei encon-

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48 A ARTE DE ESCREVER

trado uma expressão soberba, que alterará a ideia. por-que o desejo não é a avidez (1).

Em vez de se fazer essa demonstração apenas sobre.alqumas linhas, pode ser feita sobre uma página inteira,sobre duas páginas, três, etc.

Eis aqui uma frase de que ressalta uma linda ima-gem, a propósito da noite, nas solidões da América:

- «O génio dos ares sacudia nas trevas a sua.cabeleira. »

Esta frase não me satisfaz; cerra-se bruscamentede mais; queria temeté-le com uma palavra, com umepiteto, que a arredondasse e a concluísse ...

Procuro ... penso no céu azul e acho:- «O gênio dos ares sacudia, nas trevas, a sua

.cabeleíra azul...» (Chateaubriand).O esforço, a preocupação da forma fez-me assim

descobrir uma imagem, que dá, por si própria, umencanto imprevisto à ideia primitiva.

Eis aqui outro pensamento.Trata-se de exprimir que as mulheres romanas são

tão belas como as estátuas dos seus templos.- «Dír-se-íam estátuas dos seus templos, descidas

dos seus pedestais ... »Bonita imagem, mas não me satisfaz.Quero estendê-Ia e embelezá-Ia,Ora, tudo o que eu ali acrescentar será um trabalho

.de forma sobre a ideia.

(') Não quero dizer que Bossuet tenha encontrado estaexpressão com um trabalho de embelezamento e um esforço extraor-dinário. Suponho o facto, para mostrar que modificar a forma émodificar a ideia. '",'(! li.

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A ARTE DE ESCREVER 49

Eis o que obterei:- «Dir-se-Iam as estátuas dos seus templos, des-

cidas de seus pedestais e que em volta deles deambu-lassem» (Chateaubriand).

E é justamente este último membro de frase o quedá à imagem todo o prestígio, todo o seu efeito.

Direis que a ideia não mudou ... Oh! sim!A primeira frase é conhecida, já a lemos algures:

mas a segunda, que constitui o quadro e a vida, essaé a nova e foi criada.

Portanto, a forma e a ideia constituem uma só coisa.Não se pode, em geral e de maneira definitiva. tocar

numa. sem alterar a outra.Quando se diz de um fragmento:- «A ideia é boa, mas a forma é má», - isto nada

significa, porque o valor da forma é que torna boaa ideia.

Deveria d izer-se :- «A ide ia poderia ser excelente, se a forma tosse

boa», - pois é a forma que faz valer a ideia.Se exclamo:- «o Jesus! Deus crucificado!» - é um estilo nobre.

mas muito conhecido.Procuro e encontro:- «o Jesus; Deus aniquilado!» (Bossuet).A expressão é magnífica, mas a ideía mudou logo,

explodiu, é outra.Todos nós temos observado: trabalhando. refazendo

is frases. supúnhamos nada mudar. só melhorar a forma,e eis que tudo se organiza de novo: as ideias multi-plícam-se: surgem incidentes, as proporções aumentam;

hmos imagens inesperadas, relações novas; tanto é

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50 A ARTE DE ESCREVER

verdade que se não pode tocar na forma sem alterara ideia.

A forma é de tal maneira separada da ideía, quea última encarnação da forma chega a não ser senãoa expressão da ideía pura.

Tentaí, pois, exprimir de outro modo certos pensa-mentos, certos versos, literàríamenteexactos, como estes:

o que bem se concebe, bem se exprimeE fàcilmente ocorrem as palavras ...

A brandura faz mais do que a violência ...Parece alguma coisa, ao longe, e é nada ao pé...Em tudo que se faz cumpre atender ao fim...

A razão do mais forte é a que prevalece ...Nada serve o correr a quem não parte a tempo.

Entre outros conselhos notáveis e que se devemreter para avaliar o estilo, Buffon recomenda «que seadicione o colorido à energia do desenho».

Ele quer «que se dê a cada objecto luz forte»; eexprime o desejo de que cada pensamento seja limaimagem.

Foi este último conselho que prevaleceu, quando che-gou Bernardin de Saint-Píerre, Chateaubríand, TeófiloGautier, e quando a literatura francesa estava fatigadada beleza sem colorido.

Resumamos.O estilo é o esforço, com que a inteligência e a ima-

ginação encontram matizes, relações, expressões, ima-gens, nas ideias e nas palavras ou na relação que elastêm entre si.

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A ARTE DE ESCREVER 51

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Há neste trabalho do estilo (e é trabalho consíde-rável), um lado que é a ordem. a disposição, a correcção,as proporções, o equilíbrio, a boa colocação de todasas peças desse xadrez, que se chama uma frase, umapágina, um capítulo.

Há também outro lado, que é o movimento, a cria-ção das palavras. das imagens, a sua combinação, dondeprecede a intensidade. o efeito, a energia, o jacto de luz,o relevo.

Mesmo o lado disposição. a arte de colocar as pala-vras e de combinar as frases, é ainda uma criação.

O sabor dessa criação múltipla evapora-se muitasvezes numa tradução, justamente porque constitui aessência do estilo.

É o que fazia dizer a Lamotte:- «Um grande número de belezas dos antigos auto-

res estão ligadas a expressões, que são peculiares à sualíngua, ou a relações, que, não nos sendo tão familiarescomo a eles, nos não causam o mesmo prazer.»

O cuidado da forma deve portanto preocupar. pri-meiro que tudo, aqueles que têm o gosto de escrever.visto que ela compreende a ideia, e é nela que está ovalor de uma obra.

Um autor contemporâneo, Emílío Zola, que só temuma feição brutal de escrever, e que nunca se dignouaperfeiçoar a sua forma, protestou contra esta teoria .

Diz ele:- «Não é verdade, - apesar do que diz Buffon,

Boileau, Chateaubriand e Flaubert, que se obstinaram.em repetir o contrário, - não é verdade que basta pos-suir um estilo muito cuidado para que alguém assinalepara sempre a sua passagem numa literatura. A forma.,

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52 A ARTE DE ESCREVER

é o que muda e o que passa mais depressa. Primeiroque tudo. é preciso que um trabalho seja vivo e só opode ser. com a condição de ser verdadeiro. Ganha-sea imortalidade. pondo de pé criaturas vivas.»

Tudo isto é falso.A criação desses seres vivos não irá à posteridade.

se não foi servida por uma forma irrepreensível.Zola replica:- «Podemos julgar a perfeição do estilo de Homero

e de Vergílio 1»Que o Sr. Zola não possa julqá-la, é possível. mas

há quem o possa fazer e não é preciso ter estudadomuito para ler Vergílio no texto. I

Em todo o caso. uma tradição ininterrompida de hís- I'toriadores e de antigos autores ensina-nos que o seu Iestilo fazia a admiração do seu tempo. E foi justamente ~essa superioridade de forma que os imortalizou.

Se os seus versos tivessem sido maus. os seus con-temporâneos não os teriam fixado; e. se o seu estilotivesse sido medíocre. as suas obras não chegariamaté nós.

Não existe nenhuma obra-prima sem forma cuidada;e um trabalho mal escrito não pode subsistir. pela razãode que até nós nada chegou que fosse mal feito.

Dom Ouixote, que é um modelo de obra viva. étambém um modelo de estilo. um modelo de perfeiçãoescrita. única no seu género em Espanha.

Objectam ainda:«Quando lemos Homero, não é a sua forma que

lemos. é uma tradução. Só temos a sua ideía. A formanão se identifica com a ideia.»

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A ARTE DE ESCREVER 53

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Mas, pelo contrário: foi precisamente a forma o quesalvaguardou a ideia; e não possuiríamos provàvelmentea ideia, se a forma não tivesse sido perfeita. Neste caso,se quiserem, podem separá-Ias um pouco, visto tratar-sede uma tradução. Fica sempre o que se pode conservar.As melhores traduções são as que mais observam ooriginal.

Em todo caso, quando se trata de obras-primas. aforma está de tal maneira ligada com a ideia, que atéa ideia fica prejudicada, logo que desaparece o encantodo texto.

Eis por que, numa boa tradução, as descrições deHomero são tão vivas como qualquer página dos nossosmelhores autores contemporâneos.

Afora estes princípios, que é preciso olhar comoverdades absolutas, não se pode ministrar senão umavaga apreciação do estilo.

É preciso termos, como diz Pascal, acertado o nossorelógio, e não fazer caso daqueles que regulam mal.

La-Bruyére disse:- «Há bom gosto e mau gosto, e pode, a tal res-

peito, discutir-se.»Nada há de mais vulgar que os juizos e frases Icitas.Julgamos dizer bem, quando dizemos por acaso:- «Isto está bem escrito; isto está mal escrito;

Fênelon escreve bem; Díderot escreve mal; Merimée égrande escritor», etc.

Que é o que está bem escrito?Que é o que está mal escrito?Eis aqui três citações tiradas de três autores dife-

rentes, e que podem, desde já, dar a impressão geralde um estilo bem escrito.

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54 A ARTE DE ESCREVER

Sobre o homem

Desejamos a verdade. e só encontramos incertezas em nós.Procuramos a felicidade e só encontramos a miséria e a morte.Somos incapazes de não desejar a verdade e a ventura. e não

somos capazes de certeza nem de ventura.O homem não sabe em que ponto se deverá fixar.E: claramente transviado. e cai do seu verdadeiro lugar (')

sem poder tornar a encontrá-lo. Procura-o por toda a parte. cominquietação e sem resultado. em trevas impenetráveis.

Se se lisonjeia. abato-o eu; se se abate. lisonjeio-o eu. E con-tradigo-o sempre até que ele compreenda que é um monstroincompreensível.

(PASCAL. Pensamentos).

o nascer do Sol

Na planície de Sallsburqo, no dia 24. de manhã (Setembro.1833). o Sol apareceu a Leste das montanhas que eu deixava paratrás de mim. Alguns cabeços de rochedos. no Ocidente. ilumina-vam-se com os seus primeiros clarões. extremamente suaves. ~A sombra pairava ainda na planície. meio verde. meio lavrada.

O castelo de Salísburqo, ampliando o cume do montículo, quedomina a cidade. incrustava no céu azul o seu relevo branco.

Com a ascensão do Scl, emergiam do seio da fresca evapora-ção do orvalho as avenidas. os bosques. as casas de tijolos verme-lhos. as cabanas revestidas de cal brilhante. as torres da IdadeMédia. acuminadas e Iencstradas, velhos campeões das idades.feridos na cabeça e no peito. ali sozinhos e de pé. no campo debatalha dos séculos.

(') «O homem é um Deus caído. que se lembra dos céus»(LAMARTlNE) •

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A ARTE DE ESCREVER 55

A claridade outonal daquele cenarro tinha a cor víolácea doscólquicos, que se ostentam naquela estação e de que estavamexornados os campos de Salza,

Os corvos em bando, deixando as heras e as ruínas, desciamsobre os alqueives; e as suas asas, de reflexos ondeados, recebiamda alvorada cambiantes de rosa.

(CHATEAUBRIAND, Memórias de Além-Túmulo. Diário dePádua a Praga, de 20 a 26 de Setembro de 1833).

A beira de um lago

Quando se aproximava a noite, eu descia da cumeeira da ilhaI' ia sentar-me, de bom grado, à beira do lago, sobre a praia.nalgum sítio oculto; ali, o ruído das vagas e a agitação daágua, atraindo-me os sentidos e expulsando-me da alma qual-quer outra agitação, mergulhava-a num delicioso devaneio. emque a noite me surpreendia muitas vezes, sem que eu desse por tal.

O fluxo e o refluxo da água. o seu ruído continuo. masa!teado a reveses, ferindo sem cessar o meu ouvido e os meusolhos, substituíam os movímentos interiores, que o devaneio apa-gava em mim, e bastavam para me fazer sentir com prazer amínha existência, sem me incomodar a pensar.

De vez em quando. surgia em mim alguma froixa e curtareflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo. de que asuperfície das águas me exibia a imagem.

Mas logo essas impressões ligeiras se apagavam na uniformi-dade do movimento contínuo, que me embalava, e que. sem nenhumconcurso activo da minha alma, não deixava de me prender, apontos de que. chamado pela hora e pelo sinal combinado, nãopodia arrancar-me dali. sem esforço.

(RoUSSEA U. Devaneios).

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56 A ARTE DE ESCREVER

lição Quinta

A originalidade do estilo

Falsa divisão dos estilos e dos pensamentos. ~ Por que variamos estilos. ~ Or iqínalidade do estilo. ~ A originalidade e atrivialidade. ~ O estilo falso. ~ O estilo inex prcssivo. ~O estilo de Merimée. ~ Como corrigir o mau estilo? ~ Asexpressões vulqares. ~ As frases feitas. ~ O natural e oesforço. ~ A palavra simples e a palavra natural. ~ Processopara adquirir originalidade.

..•.

A maior parte dos tratados de literatura contêm arespeito do estilo exposições e análises teóricas.

Imaqina-se fazer obra de ensino prático. decom-pondo. como dizem. os elementos do estilo e as suasqualidades. elementos gerais. elementos particulares.qualidades gerais. qualidades particulares: a claridade,'a pureza, a correcção, a elegância, a força, a netureli-dede, a nobreza, a riqueza, a magnificência.

Há também figuras de palavras e figuras de pensa-mentos; temos pensamentos vigorosos. justos. delíca-dos, naturais; depois a catacrese, a alegoria. a elipse, asinédoque, a prosopopeia, a onomatopeía, o pleonasmo,a antonomásia.

É inútil procurar coisas dessas neste nosso trabalho.Evitamos. com cuidado. tudo que se assemelha a

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A ARTE DE ESCREVER 57

uma divisão fictícia, toda a espécie de classificação ede repartição.

Este livro não se fez para ensinar o que é um pen-samento vigoroso ou um pensamento delicado, o queé a clareza, o que é o mimo e a naturalidade.

Estas distinções sobrecarregam a memória. nadaensinam e são essencialmente arbitrárias.

Porque enfim, um pensamento vigoroso é tambémum pensamento verdadeiro e não conheço pensamentojusto. que não seja ao mesmo tempo um pensamentonatural; nem pensamento sublime. que não seja aomesmo tempo um pensamento vigoroso. verdadeiro.natural e justo .

.~ Sucede o mesmo com os estilos.É falso que sejam restritos, numerados e classifica-

dos em estilo simples, estilo moderado, estilo sublime, etc,Muitas vezes o estilo é simples, porque é sublime;

em todo o caso, simples ou sublime, deve ser semprenatural.

Não há estilo [lorido, como não há estilo temperado.São invenções gramaticais, de que se deveria, de uma

vez por todas desembaraçar o ensino.Que há estilos apropriados ao assunto, é tudo que

se pode dizer; ou tons de estilo, tons pessoais, tonsdiversos, segundo a elevação, a inspiração, o autor, oassunto, o fim que se tem em mira.

É supérfluo ensinar que as principais qualidades doestilo são:

1.o a clareza: 2.0 a pureza. etc. Isto é: deve-seescrever para se compreender, deve-se escrever em boalinguagem, duas coisas evidcntissimas.

O estilo difere, con forme os assuntos. e alqumas

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58 A ARTE DE ESCREVER

vezes. conforme os géneros; mas os géneros têm umatendência para se confundir.

Se os queremos distinguir. acabam por se juntar.O espírito clássico não admitia o estilo familiar nas

tragédias.Contudo. vemo-lo em Shakespeare, que vale bem

Corneille.Condilac observa:- «O estilo varia infinitamente, e varia algumas

vezes por meio de cambiantes tão imperceptíveis, quenão é possível marcar a transição de uns para os outros.Em tal caso, não há regras para nos certificarmos doefeito das cores. que se empregam; cada qual formadiversamente o seu conceito. porque este se forma .,.".segundo os hábitos que temos contraído; e. muitas vezes.custa bastante rejeitar os juizos que ocorrem.

«Supomos que temos ideías absolutas acerca de tudode que falamos. a ponto de ser preciso reflectir, paranotar que as palavras grande e pequeno não significamsenão ideias relativas.

«Assim. quando dizemos que Racine, Boileau, Bossuete Sevigné escreveram naturalmente, somos levados atomar esta palavra num sentido absoluto, como se anaturalidade fosse a mesma em todos os géneros, esupomos dizer sempre a mesma coisa, porque nos ser-vimos sempre da mesma palavra.»

Entretanto. algumas grandes ideías, alguns prin-cípios gerais abraçam todos os outros, dominam aquestão e devem guiar~nos no estudo dos diversoscaracteres do estilo.

As três qualidades. que deve ter o bom estilo e queabrangem as outras qualidades são. na minha opinião:

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A ARTE DE ESCREVER 591.0 __ A originalidade.

2.° -- A concisão.3.° -- A harmonia.

A originalidade do estilo

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Há o estilo vulgar. o estilo trivial. no uso de todaa gente; um estilo de chapa, cujas expressões neutrase usadas servem para todos; estilo incolor. constituídoapenas de palavras de dicionário; estilo morto, semchama. sem imagem. sem colorido. sem relevo. semimprevisto; um estilo terra-a-terra, elegante. gramaticale inexpressivo; o estilo dos escritores que não são artis-tas. estilo burguês e correcto, irrepreensível e sem vida.

Não é com esse estilo que se deve escrever.Se tendes de escrever como toda a gente. é inútil

pegar na pena.Ora. se há estilo trivial. deve haver também estilo

original. visto que a originalidade é o contrário da tri-vialidade.

Diz-se correntemente:-- «Jogo de frases originais. expressões oriqínais,

imagens originais». qualidades que constituem precisa-mente o estilo original. aquele que surpreende. queimpressiona. que seduz. que tem o seu cunho pessoal.

A originalidade está principalmente na maneira dedizer as coisas, de exprimir as ideias. de fazer valera ideia.

A originalidade deve ser, portanto. considerada comoa grande. a geral. a essencial qualidade do estilo.

É preciso. pois. desde já. abandonar os preconceitosescolares e fazer nova idéia do estilo.

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60 A ARTE DE ESCREVER

Nos colégios, dizem o que ele deve ser, mas nãoo mostram.

Bem sabemos que devemos escrever como Bossuet(pouco mais ou menos, bem entendido), e não cornoFénelon. no seu Telémaco; mas como? Rondaríamos emvolta da casa, sem nunca lá 'poder entrar. Boa ou má,temos uma chave. Abramos a porta.

Eis aqui uma descrição de Nisard, citada comomodelo num Curso Prático do estilo (10.a edição), cujoautor é professor de Retórica:

Descem bosques até à beira do caminho, que sobe ao longoda colina e se dobra em todas as suas sinuosidades; um pequenorio, oculto sob os salgueiros, corre no fundo do vale paralela-mente à estrada. de forma que o viajante caminha sempre entreduas frescuras, a da sombra e a das águas.

Há também bosques na montanha oposta; mas esses bosque :não descem, detêm-se a meia encosta; vinhas ou prados, espalha-dos pela encosta ou pelo vale com uma extremidade, tocam nasá.quas do rio, e com a outra péo reunir-se à orla daqueles bosques.Nada mais flexível que os movimentos dessas duas pequenas mon-tanhas; são sinuosas como o rio; ora as vedes reentrar e comoque cavarem-se; ora salientarem-se em cotovelos; ora traçaremuma linha recte, que quebram bruscamente com um desvio. Afas-tam-se, aproximam-se; aqui, abrem-se de repente, como umadecoração esperada, que ocultasse outra e deixam ver o Pico doMeio-Dia, que conserva todo o ano as suas neves. Depois, fecham-sede novo, cercam-vos, reduzem o vosso céu e o vosso horizonte, eisto durante léguas.

Mais longe, transmuda-se o caminho.Deixais o vale, para entrar num desfiladeiro.Outra cordilheira forma essa garganta; outro rio COrre ao

fundo; a linda estrada branca mete-se por ele, apertando-se, adel-gaçando-se, e continua a andar de companhia como o rio. pois é O

mesmo quadro de há pouco, mas ('1:1 n~in:~tu~.1 e C0Dl (!;uer~i...dades encantadora.'.

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A ARTE DE ESCREVER 61

Depois de termos lido esta descrição, não ficamosmais adiantados; nada se vê, nada está pintado. É umapágina do guia Baedeker; não uma descrição, mas umaenumeração geográfica; à direita há isto, à esquerdaaquilo; depois sobe-se, depois desce-se, depois volta-se,a estrada muda, entra-se numa garganta, etc.

Depois de ter citado este extracto, o professorobserva:

-- «Este fragmento não reúne acaso todas as qua-lidades que se exigem na descrição? É tão claro, tãonítido, que nos parece estar viajando. Vêem-se osobjectos, tocam-se. Há uma verdade, uma exactidãoirrepreensível em todo o quadro; sente-se isso sem terfeito a jornada, pela exactidão dos pormenores. Nasobriedade o mesmo mérito.»

Pergunto eu, com toda a boa fé: como há-de umaluno aprender a escrever, quando lhe apresentam, comoexcelente, o que é detestável. e quando lhe propõemcomo modelo o que deveria, a todo o custo, repudiar?

Eis portanto ali um exemplo de trivialidade autêntica.Toda a gente pode escrever assim, sem cor, sem

evocação, sem imagens, sem pintura.É este um exemplo de estilo trivial. que se poderia

chamar ordinário, e que se nos depara no mais baixograu da escala literária.

Mas há outro estilo mais distinto, elegante, cuidado,brilhante, imaginoso até, e que é também detestável-mente trivial.

Eis aqui dois exemplos.Tirei o primeiro de um livro de Júlio Sandeau. e

poderiam extrair-se passagens idênticas em todas aspáginas dos seus livros.

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62 A ARTE DE ESCREVER

Vede este homem: tem vinte anos. não mais. Entra na vida,que atê aqui só entrevia através dos sonhos encantados da solidãoem que cresceu. A sua infância decorreu à sombra do tecto peier-na! na profundeza dos vales. A natureza embelou-o no seio. Deussó colocou. em torno dele. nobres e piedosos exemplos. Eí-lo queavança. escoltado por todo o ridenie cortejo. que a juventudearrasta consigo. A graça reside na sua fronte. a ilusão habita noseu seio ('); como uma flor desabrochada sob o cristal das águas,no fundo do seu olhar vê-se ::J beleza da sua alma. Crê ingenua-mente. sem esforço. em todas as paixões honestas. nas ternurassem fim, que se perpetuam para além do túmulo, nos juramentostrocados à clandade das noites serenas. Só tem uma ambição, éo amor. Pois bem! enquanto perguntais a vós mesmos sob quesopro tão embalsamado esses preciosos tesouros acabarão de seostentar ... tudo isso é já presa de algum coração vicioso e cor-rompido. As Beatrizes não chegam nunca a tempo e, quando oanjo se apresenta. nada mais lhe resta senão respigar onde odemónio ceifou (').

Parece uma aposta ou propósito.Dír-se-ia que Júlio Sandeau procurou expressamente

reunir naquela página toda a fraseologia inusitada. depar com as expressões mais repisadas e as mais rãnci-das, que constituem o estilo mais trivial.

Abri um livro ordinário, um romance, mais ou menoscontemporâneo. É nesse estilo ómnibus que está escrito,menos a elegância, a condensaçâo. o tom, a harmoniae as qualidades que lhe pode ajuntar um autor comoSandeau, para suprir a qualidade intrínseca que lhe falta.

(') «A fecunda ilusão habita no seu seio», disse Chéníer.f: um belo verso, principalmente por causa do adjectivo fecundo.

(') Passagem citada nas Memórias de Philarete Chasles,t, n, pág. 215.

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A ARTE DE ESCREVER 63

Eis aqui um segundo exemplo, em que esse pro-cesso de trivialidade chega a efeitos grotescos:

Esta região montanhosa e erborizede, que se chama a Flo-resta Negra, em volta da qual o Reno gira, sem penetrar nela, eda qual se afasta. correndo para o Norte, esta região produz, soba forma de um simples regato, um rio muito modesto na sua nas-cente, posto que destinado a tornar-se um dos dois maiores riosdo mundo: é o Danúbío, Empurra-o para Leste para onde ele sedirige inclinando-se contudo um pouco ao Norte projectado nesta

. última ditecçêo pelo pé estendido dos Alpes, que ele percorre atéViena. Recolhe no seu curso todas as águàs que descem dessacomprida cordilheira o que é a causa da sua súbita grandeza apóstão medíocre origem.

(THIERS, Consulado, 1, m).

Esta «reglao. que produz um rio», «sob a formade um regato», «destinado a tornar-se ... », «o que é acausa da sua grandeza», «apesar de tão medíocreorigem ... »

É a última palavra de insipidez!Enfim, eis aqui uma página de outro escritor, que

passa por admirável e que o foi algumas vezes.É o triunfo da chapa:

Todas as suas ideias eram contusas e sucediam-se com tantarapidez, que não tinha tempo de se deter numa só (?). Era comoessa continuação de imagens, que aparecem e desaparecem à por-tinhola de uma carruagem, arrastada sobre uma linha férrea. Mas,assim como em meio da corrida mais impetuosa, a vista, que nãodistingue todos os pormenores, chega contudo a colher o ceréctergeral dos lugares que atravessamos, assim também, no meio destecaos de pensamentos, que a assaltavam, M.rne Píenncs tinha umaimpressão de susto e sentia-se como que arrastada num decliverápido, no meio de precipícios horríveis.

--

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r64 A ARTE DE ESCREVER

De que Max ~ amava, não podia ela duvidar. Esse amor(ela dizia: essa feição), datava de longe; mas até ali ela não seassustara com isto: entre uma devota como ela, e um libertino,como Max, elevava-se uma barreira insuperável, que a fortaleceriaoutrora.

Posto que não fosse insensível ao prazer ou à vaidade deinspirar, um sentimento sério a um homem tão leviano, como eraMax em sua opinião, ela nunca pensara que aquela afeição sepudesse tornar um dia perigosa para o seu repouso.

Ainda uma vez, eis o estilo trivial, que se deve evi-tar, a todo o custo.

Deve euiter-se o escreverem expressões já feitas.O cunho do verdadeiro escritor é a palavra própria

e a criação da expressão.Os fragmentos, que acabamos de citar, embora pas-

sem por bons, estão e ficarão mal escritos, enquantonão substituírem as suas expressões vulgares poroutras mais exactas; enquanto se não puser uma sópalavra, em vez de duas, duas em vez de três, três emvez de quatro, etc.

Finalmente, esse estilo será mau, enquanto puder-mos Iazê-lo melhor.

-- Mas então, -- díreis vós, -- não há meio de escre-ver; as pessoas, que citais, são escritores; e a línguanão se pode refundir. A crítica é fácil. Como remediarisso?

Tentemos.Tomemos o último fragmento.Vamos pôr o estilo à direita, e as passagens corrrqi-

das à esquerda, sublinhando o que é trivial ou inútil.

fI

---

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A ARTE DE ESCREVER

Texto

Todas as suas ídeias eramconfusas e sucediam-se comtanta rapidez, que ela nãotinha tempo de se deter numaSÓ (Quem? a rapidez?)

Era como essa continuaçãode imagens, que aparecem àportinhola de uma carruagem.arrastada sobre uma linhatérrea.

Mas, assim como em meioda corrida mais impetuosa. avista, que não distingue todosos pormenores, chega. contudo.a colher o carácter geral doslugares, que a t r a v e s s a mos.assim também, no meio destecaos de pensamentos. que a assal-tavam. M.me Piennes tinha umaimpressão de susto e sentia-secomo que arrastada num decliverápido. no meio de precipícioshorríveis.

De que Max a amasse, nãopodia ela duvidar. Esse amor(ela dizia: essa afeição), datavade longe: mas até ali ela nãose assustara com isso.

Entre uma devota como ela.e um libertino como Max, ele-vava-se uma barreira ínsuperá-vel, que a fortaleceria outrora.

65

Estilo que se propõe

As suas ídeías eram tãoconfusas, tão rápidas, que Elanão tinha tempo para reteruma.

Dir-se-ia uma continuaçãode imagens, desfilando à porti-nhola de uma carruagem decaminho de ferro.

Mas, assim como em meiode uma corrida louca. a vistanão distingue os pormenores esó colhe o conjunto, assim nomeio deste caos de pensamentos,M.me de Piennes tinha o terrorde se sentir arrastada para umprecipicio.

Que Max a amava, não oduvidava. Esse amor datava delonge; mas não a assustara atéali.

Entre uma devota. comoela. e um libertino, como Max,elevava-se um obstáculo, que afortaleceria outrora.

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66 A ARTE DE ESCREVER

Posto que não fosse insen-sível ao prazer ou à vaidade deinspirar um sentimento sério aum homem tão leviano, como.Max em sua opinião, ela nuncapensara que aquela afeição sepudesse tornar um dia perigosapara o seu repouso.

Sensível ao prazer de atrairseriamente (de seduzir, de con-quistar), um homem tão leviano,ela nunca pensara que aquelaafeição se pudesse tornar peri-gosa.

Seria mais cómodo ainda refazer os dois outrosfragmentos antecedentes de Thíers e de Sandeau.

É um género de demonstração, que renovaremosmuitas vezes, no decurso desta obra, trabalho que éabsolutamente impossível fazer-se, tomai nota, quantoao estilo de Pascal ou de La-Bruyêre.

- Mas, - observará alguém, -- na refundição quepropondes, não entram senão palavras vulgares.

Precisamente as verdadeiras palavras são as palavraspróprias, as palavras naturais, aquelas que se não podemsubstituir.

O cunho da chapa, da expressão feita não é o sersimples, ordinária, já empregada; é que pode ser subs-tituída por outra mais simples; é que, por detrás dela,há a verdadeira, a única, aquela que é preciso empregara todo o custo.

Para se dizer: chove, há-de dizer-se sempre: chove.Quanto à questão de saber por que é que Merimée,

G. Sand, Feuíllet, etc., se conservaram escritores, apesardos defeitos que assinalamos, havemos de falar nisso.

É que eles tinham outra coisa para resgatar aquilo.Quanto a nós, se quisermos saber escrever, renun-

ciemos para sempre à expressão trivial. Deve ser istoprincípio absoluto.

~!ii

It

5?

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A ARTE DE ESCREVER 67

Se adoptarmos esse estilo feito, que passa por serestilo, podemos sem dúvida escrever como toda a gente,mas não nos tornaremos nunca escritores.

Teremos os defeitos dos autores que indicamos, semnos podermos convencer de que temos as suas qualidades.

É preciso, pois, evitar, quando se escreve, toda aexpressão trivial P) ou toda a perífrase, no génerodestas, que encontramos em escritores contemporâneosde nomeada:

Derramar lágrimas.

As expressões triviais

Por: chorar.

Provocar uma discussão. Verbo, que serve para tudo:provocar lágrimas. provocarum incidente, provocar paraduelo...

Tomar uma resolução.

Presa de uma súbita reso-lução.

Inspirar um sentimento.

A serenidade reinava noseu rosto.

(') Veremos mais adiante como elas se podem engrandecere empregar.

Idem: Tomar uma decisão,tomar conselho, etc.

P o r : bruscamente resol-vido.

Verbo para tudo: inspiraruma resolução, uma paixão;inspirar uma ideia, um pensa-mento, confiança.

Idem: a abundância rei-nava nos seus Estados ...Luís XIV reinava na França.A ordem reina em Varsóvia.

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Por: reconheceu logo.

68 A ARTE DE ESCREVER

Levar uma acusação. Como se leva a espingardaou um embrulho.

Fazer uma violência. Por: violentar.

Perder o hábito. Por: desabítuar-se.

Adquirir o hábito. Por: acostumar-se.

A tristeza estava pintada Pintada a óleo, provável-no seu rosto. mente.

Uma vermelhidão coloriu- Por: ela corou.-lhe as faces.

Por um desses fenômenos Qual?tão frequentes.

Obedecer apenas à sua fan- O que nada significa.tasia.

Prestar ouvido atento. Por: escutar com atenção.

Abandonar-se ao seu de- Abandonar-se à sua dor, àsespero. esperança, ao desespero.

Não tardou em descobrir.

Salão m a g n i f i c a m e n t edecorado.

Os princípios que ele abra-çara.

Chegara ao cúmulo dosseus desejos.

Redobrar os seus trans-portes.

Dizeí em que consiste essadecoração. Sem isso, a expres-são é nula nada mostra.

Abraçar a sua carreira,abraçar os seus pais, etc.

Ao cúmulo da felicidade, aocúmulo da miséria, ao cúmulodo desespero!

Sem significação.

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A ARTE DE ESCREVER 69

A febre da demora devo- Por: desesperado de espe-rava-o. rar, a inveja devorava-o, a ambi-

ção devorava-o, a demora devo-rava-o!

Ele retomou o curso dos Como fazem os rios, queseus pensamentos. retomam o seu curso.

Nenhum incidente vinhaquebrar a monotonia.

Conceber por alguém umaafeição.

Ele tInha a perspicecie e apenetração do amor.

Abandonar alguém aos ri-gores do seu destino.

o seu coração despertava.

Vencer a sua resistência.

Esses pensamentos, que sehaviam sucedido no seu espí-'rifo.

Uma atracção misteriosa.

Manifestar-se abertamente.

Abrir o seu coração.

Desvendar o estado da suaalma,

Linguagem abstracta, ín-slqnifícante e pretensiosa.

Conceber um desí g n io ,conceber um pensamento, umadúvida.

Substantivos idênticos.

Grandes p a I a v r as, ínex-pressívas e ocas.

A natureza desperta, a vin-gança desperta; a paixão, quedorme ...

Chapa de primeira ordem.

Fraseologia inútil.

Complemento obrigatório.

Servilismo.

Como uma porta.

Isto nada quer dizer, se nãodísserdes mais nada; e, se dízeísoutra coisa, é inútil aquela.

Page 69: ALBALAT, Antonio. A Arte de Escrever ensinada em vinte lições

1I70 A ARTE DE ESCREVER

Um inimrqo implacável,encarniçado.

Respirar honradez.

Apresentar o aspecto.

Os seus olhos traduziamos seus pensamentos.

Estas palavras revelavamtoda a importância que ...

Este projecto correspondiaàs suas ídeías.

Acariciar vagamente umprojecto.

Os seus olhos possuíam opoder.

Envolver numa doce atmos-fera.

Sofrer uma impressão.

A esse primeiro sentimentosucede ...

Epítetos obrigatórios!

Respirar amor, respirar oar puro.

Como se apresenta umamaçã.

Os resultados que se tra-duzem, como se traduz Sha-kespeare ...

Revelar acomo se revelaum segredo.

importância,um mistério ou

.~A correspondência de um

projecto com ideias!!!

Isto nunca significou coisanenhuma.

Como um déspota possuio poder, em vez de: os seusolhos podiam.

Estilo oco.

Por: experimentar.

Como Luís XIII a Henrt-que IV.

O encanto do seu rosto Como Luís XIV em Ver-.resídía em... salhes.

Sob essa frivolidade apa-rente dissimulavam-se .

.L...---.-.----

F r a s e o Io g i a para dizer;essa frivolidade ocultava.

.__ .~. "--".--...- - -- -

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~~ ...~.

~; ..~-

A ARTE DE ESCREVER

Produzir uma impressão.

Adornada de toda a sedu-ção,

Imprimir a dírecção da suavida.

Adoràvelmente linda.

Uma expressão... se lianos seus olhos.

71

Por impressionar.

Cem vezes dito.

Imprimir uma d í r e c ç ã o ,imprimir um movimento.imprimir uma obra.

Insignificante. Mostrai emquê.

Insignificante.

Um gosto perfeito presidirá Como a uma distribuiçãoà instalação deste aposento. de prêmios.

Oferecer o espectáculo.

A recepção que lhe estavareservada.

Alegria exuberante.

O brilho da sua tez.

Uma irresistivel atracção.

O plano não prosseguiasem reais dificuldades.

Era o complemento obriga-tório de ...

Despertar as suas apreen-sões.

Delicadeza de feições.

Como se oferecem confeitos.

Estilo oficial.

Sempre!

Cem vezes dito.

Epíteto obrigatório.

Palavras inúteis. visto que.riscando-as. a ideía fica intacta.

Estilo abominável.

Como se despertadorme. Ver mais alto:morso desperta-se. etc.

quemo re-

Meu Deusl Sim?

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,72 A ARTE DE ESCREVER

o encanto inesperado, quese revelava.

Presa de uma exuberância.

Formavam os traços carac-terísticos da sua natureza.

A nova perspectiva queacabava de surgir a seus olhos.

Indagar a hora.

Não dissimulou o secretodesejo.

Manifestou a intenção de...

o conjunto das suas quali-dades físicas e morais.

A sua delicadeza tornavaum dever ...

Declinar toda a responsa-bilidade.

Ainda mais! Veja-se o quese disse acima.

Presa da alegria, presa dador, etc.

Estilo estúpido.

Faustoso e prudhommesco.

Por perguntar que horassão.

Para dizer: confessou quedesejava.

Por: declarou que...

Como fazer uma ideia desse«conjunto»?

..

Por: julgou dever, pordelicadeza.

Por: recusar, abster-se.

Ele, a quem incumbe o Estilo de distribuição dedever... prémios.

Assumir para si.

Esse projecto, que germi-nava no seu espírito.

Idem.

Por: esse projecto, em quepensava. Poderá germinar umproiecto num espírito ou numcérebto?

:. I

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+ .p

A ARTE DE ESCREVER 73Ele adivinhou instintive- Para que serve isto? é pelo

mente. instinto que se adivinha?

Esses sentimentos amanhe-ciam.

Estilo sem nome.

A sua vida compunha-se Vê-se daqui essa compo-de obstáculos. sição.

Executar a sua resolução. Por: fazer o que tinharesolvido.

Tratar de se convencer.

Dissipar as ilusões....•...

Meu Deus. sim!

Como o vento dissipa onevoeiro. como o fumo se dís-sipa, etc,

Assinar o primeiro lugar. Por: colocar na primeiraplana.

Conservar o seu ardor.

Conceber receios..

Recorrer a esta exiremi-dade.

Como se conserva a cútis,a discórdia, os cabelos. ou asilusões.

Como se concebe um pro-[ecto, ou uma esperança, ouuma empresa.

Por: servir-se desse expe-diente.

Experímentava-se d i a n t e Por: essa criatura pareciadessa criatura a impressão de ser ...que ela era ...

Boca encantadora. Sempre!

=.õllJi-. IC==--_._ -_.__ .- -~-

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·24

74 A ARTE DE ESCREVER

Um ar d~ distinção estavacomo espalhado por toda a suapessoa.

Exercer influência.

Todas e s s a s qualidadesconstituíam.

o desprezo que ele profes-sava pelas mulheres.

As linhas harmoniosas dasua beleza.

o azul dos seus olhos. atransparência da sua tez.

Suportar a influência.

Enunciar teorias.

Por: a sua apresentaçãoera distinta.

Como se exerce uma pro-físsão.

Estilo parlamentar.

Como se professa Matemá-tica numa escola.

Por: a sua beleza harmo-niosa.

Sempre!

E bordão.

Idem.

Esses sentimentos provi- Como o ouro que provémnham de... de uma mina.

Aliviar de um peso.

Conduzir o discurso porum terreno ardente.

Esgotar as conjecturas.

Acaba de dar à sua Iísío-nomia.

Que peso? e por que sã-mente um?

Conduzí-lo pela mão. pro-vàvelmente.

Como se esgota uma fonte.

Frase sem Significação.

Um eflúvio de paixão. Estilo de todos os roman-ces; eflúvío de primavera.eflúvio de desejo ...

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A ARTE DE ESCREVER

Levantar uma ponta domistério.

Uma altivez que se enxer-tava sobre aquela melancolia.

Por condição primeira.

Uma expressão indefinivelanimou-lhe o rosto.

Lance de olhos sedutor.espectáculo encantador. vaI edelicioso.

Como a ponta de umatampa.

Estilo de horticultura.

Estilo de manual.

Deveis definir esta expres-são. ou não falar dela.

Em quê? Isto são epítetosnulos. enquanto não tiverdesmostrado em que consiste asedução. a delícia ou o encanto.

Isto não quer dizer que se devem prescrever aquelasexpressões.

Há casos em que são necessarias, em que são belase em que não podem ser substituídas.

Assim. nestes versos célebres sobre a morte de Orfeu:

«E nos antros. que gemeram.o leão derramou lágrimas ... »

Também Lefranc de Pampíqnan, duma ode célebre.atinge o sublime com expressões. que. de por si só.seriam triviais. como «o astro brilhante (o Sol). ele-mores insolentes, monstros bárbaros, prosseguir na car-reira, torrentes de luz ... »

o Nilo viu os negros do desertoinsultar. com os gritos mais selvagens.o astro que ilumina o universo.Gritos em vão! extravagante fúria!

75

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76 A ARTE DE ESCREVER

Ao passo que tais bárbaros soltavamseus impotentes gritos e clamores,o Sol continuava no seu curso,difundindo torrentes de esplendores

sobre aqueles obscurosblasfemadores!

ú lago! O ano acaba de atingiro termo do seu curso,

Eis por que seria de uma desesperadora trivialidadeo primeiro verso do Lago, de Lamartine:

se não fosse logo realça da pelos belos versos, queseguem:

Perto das ondas, que ela amava tantoe que ela havia de tornar a ver, etc.

A mesma ideia, em Florian, é insípida:

O Sol não começara ainda o seu percurso.

(FLORIAN, Ruth).

Já censurámos acima o emprego do verbo reinar:-- «A sequídão reina no seu rosto», como Luís XIV

reinou na França, etc.».Isto não impede que o verso seguinte seja um belo

verso.

Essa brilhante paz que reina no seu rosto.

(JoÃo MORI!AS).

Trata-se da lua:

Deveís abster-vos também dos epítetose frases fel-

__~~~ __~ •• ••__~ -==s~ ~__~ ••~

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A ARTE DE ESCREVER 77

tas, dos epítetos obrigatórios, que se julgam indíspen-sáveis para acompanhar certas palavras.

Exemplos de eprtetos sabidos e insignificantes

A ironia amarga.Lágrimas amargas, etc.Expediente favorável.Horror indescritível.Um olhar frio e severo.Um delicioso devaneio.Um surdo rumor.Rosto fresco e vermelho.Sombras magníficas. (Em quê?)Um doce êxtase.Uma repulsão instintiva. (Ela é sempre instintiva).Um inimigo implacável. encarniçado. (Sempre!).Uma comoção represada.Uma tristeza grave. (Poderia ser uma tristeza alegre?)Impaciência febril.Boca bem arqueada.Doçura singular. (Em quê?)Cólera implacável.Irresistível impulso.Doçura afectuosa, bondade verdadeira (1).Altivez legítima.Excessiva reserva.Calor benéfico.Odiosos contrastes.

C) Qual é a doçura que não é afectuosa e qual a bondadeque não é verdadeira?

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r

78 A ARTE DE ESCREVER

As alegrias inesperadas.Espírito penetrante.Progressos assustadores.Cabeleira abundante.Imperiosas exigências.Perversidade precoce.Recordação odiosa.Desespero supremo.Delicadeza nativa. etc.

-, .

Não se verá talvez. à primeira vista de olhos. quantoimporta a abstenção de tais locuções.

Mas. pegai num livro ordinário e verificareis queestá escrito nesse estilo e que é por isso. apenas porisso. que ele não impressiona e que. apenas lido. éesquecido.

Podem. uma ou outra vez, adoptar-se essas locuções.e achamo-Ias em bons escritores.

Mas a continuidade é que produz a trivialidade e ocarácter incolor de um estilo.

Mas. permitido uma vez. mais vezes será permitido.E. arrastados no declive. deixamo-nos ir. pois é

mais fácil escrever no estilo de toda a gente. do queter estilo pessoal.

É isso o que Bonhours chamava «falar por frases»como estas. que ele cita:

• I.

\. t, s-

. 1 t

·í'~

Introduzir a desordem em...Lançar o facho da discórdia.Ouvir a voz da honra.A severidade da justiça.Sujeito ao dominio das paixões ...A hídra da anarquia ...

,..,i.

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A ARTE DE ESCREVER 79Frases entanguidase ridículas, que se empregam à

míngua de palavras próprias, e que conduzem a expres-sões grotescas, como estas:

No seio da academia, no seio da assembleia...As desordens que minam a Igreja.Assediado por um dilúvio de heresias ...O horizonte político .O sol do Progresso .O campo das conjecturas .O terreno das hipóteses .O arsenal das leis...A corrente da opinião ...A aurora das nossas liberdades ...

Boileau, na sua segunda sátira, zombou aqradàvel-mente deste estilo obrigatório, e do costume, que há,de reunirem estas palavras:

Se a Fílís eu louvasse,Em milagres fecunda,Junto a nenhuma outra,Seria ela. segunda.

Se eu quisesse louvar objecto sem igual.Diria que é mais beloQue o asrro triunfal.

Eis aqui um exemplo do que nos daria o estilo tri-vial, de que citámos algumas locuções.

Vamos tratar de escrever uma página, servindo-nosdas expressões que assinalámos:

Sem se deter em derramar lágrimas, dominado de uma reso-lução súbita e querendo raciocinar friamente, o Conde jurou asi mesmo não voltar a casa de seu amigo. contra quem acabavam

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80 A ARTE DE ESCREVER

de formular tão terrível acusação. Compreendeu que seria obrí-gado a violentar-se para perder o hábito daquela casa. «Terei eutal coragem?» Esta hesitação traduzia o seu pensamento.

Consultando a dignidade do seu cerécter, à força de interro-gar com ansiedade, ele, que até ali não obedecera senão à suafantasia, não tardou em descobrir a chave dessa natureza excep-cional, pela qual havia concebido desde logo tão viva admiração.Depois de se ter alargado com complacéncia sobre esses doloro-sos pensamentos, que se haviam sucedido no seu espírito, segurode vencer a atracção misteriosa que o conduzia invencioelmentepara casa daquele homem, encontrou-se de súbito seu inimigoimplacável, e tomou a decisão formal de se dirigir a casa daMarquesa, para lhe desvendar o estado da sua alma e pinier-lheo seu intolerável sofrimento. Ali, envolto numa atmosfera maisdoce, depois de ter suportado a desastrosa impressão dessa luta,sentiria o encanto inesperado, que aquela adorável mulher desen-volvia, para a qual o levava sempre uma invencivel atracção ecujo domínio ele suportava contra vontade, etc., etc.

Se quereis ter um longo catálogo das expressõescorriqueiras, que constituem o estilo estereotipado, bas-tará que abrais o nosso «imortal cançonetista Béranger».

Foi nesse estilo que ele escreveu as suas canções.

Como vai devagar este navio,A que foi confiada a minha sorte!Como ele tarda em encontrar um porto,

Nas praias a que aspiro!

Respeitem-me a independênciaOs escravos da vaidade;Foi à sombra da indigênciaQue eu achei a liberdade.

Para apagar do bárbaro os vestígiosImpressos em teus campos profanados,Nunca te foi avara a Providência?

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A ARTE DE ESCREVER 81

Contempla estes campos.Coroado de espigas numerosas,

Pronto a vingar a ofensa,Tu vês que as belas artes.Honrando os seus altares.

Ali gravam em traços indeléveis:_ Honra aos filhos da França.

Escuta a voz da história:Que o povo antigo não terá tremidoPerante ti? Qual o moderno povo.Que. invejoso da tua excelsa glória,.Por tal glória mil vezes esmagadoNão tenha sido? Em balde o inglês encheraTua balança do ouro. que os monarcas.Mendigam. por vencer seus inimigos.

Ouves a voz da história?Honra aos filhos da França!

Deus castiga os tiranos e os escravos:Não te sirvam de empeço, os teus prazeres;Deve sorrir ao amor a Liberdade.

Ergue o teu facho e deixaDormir a sua lança, etc.

(BÉnI\NGER). Os Filhos da França.

A originalidade é pois condição primordial. essen-cial. no estilo.

Para a obter. é preciso evitar, absolutamente. oestilo trivial e saber bem o que é esse estilo.

Acabamos de: mostrar em que ele consiste.Primeiro. no «falar por frases». nas expressões este-

reotipadas, que se podem substituir pela expressão justa.Com tais defeitos. ainda que haja elegância, correc-

çâo, pureza, só se obterá um estilo fastiento. fictício,neutro. inexpressivo e sem relevo.

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82 A ARTE DE ESCREVER

Este VICIO acarreta outro, não menos perigoso: é aperífrase, que é uma círcunlocução, um circuito de pala-vras, para dizer extensamente uma coisa que poderiaser dita com brevidade.

Perdemos um pouco, na nossa maneira actual deescrever, aquela mania da perífrase, que grassava nosséculos XVII e XVIII, e que tornou célebres Saínt-Lamberte Delille.

O conhecimento de Shakespeare, e principalmente arevolução romântica, inaugurada por Vítor Huqo, desern-baraçaram, pouco a pouco, a nossa literatura da obrí-gação, que ela adquirira, de não chamar as coisas peloseu nome.

Hesitava-se em traduzir Otelo para o teatro, comreceio do emprego da palavra lenço; e Alfredo de Vignyteve de se arrepender de a riscar, contra vontade deDucis.

João Aicard é que ousou escrever uma boa traduçãodo Oteio.

Hoje o terreno está limpo, a palavra própria triunfa,posto que o emprego da perífrase, em certos casos,seja legítimo e bastante literário.

O excesso, como sempre, é o que se deve evitar, anão ser que o pensamento nada lucre nisso, em intenção,em vivacidade ou em cor.

Questão de tacto.Se Racine tivesse observado tal prudência, não teria

feito versos destes:

Entanto, sobre o dorsoDa líquida planície.Ergue-se relervendoUma montanha húmida.

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A ARTE DE ESCREVER 83

Uma montanha húmida, que se eleva em grandesbolhas, sobre o dorso de uma planície líquida, é umanfiguri.

Há pensamentos insignificantes, que não merecem,na verdade, a honra e a solenidade de uma perífrase.

Levanta-te, Laódíce,E vai deitar azeite em tua lâmpada.

Seria talvez um pouco brusco e prosaico em verso.Mas é admissivel o dizer-se com Ponsard:

Laódíce se ergueu e foi buscar à bilhaO azeite que há-de arder na lâmpada nocturna.

Para nomear o bicho-da-seda, Lebrun emprega estaperífrase ridícula:

Apraz-rnc ainda alimentar o amigoDas ramagens de Tisbela.

E designa assim o queijo e a porcelana:

Vanves, lá onde habita Galateia,Sabe espessar as ondas, escumosas,Da 10 como leite de Amalteía:

E Sevres, com mão ágil,Em que Moca nos presta o seu calor,Endurece o alabastro, branco e frágil.

Casimiro DeJavigne, falando dum fiacre, disse:

Eí-lo, incomodamente, a balouçar, sentadoSobre os nobres coxins de um carro numerado!

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84 A ARTE DE ESCREVER

E outro Clássico, para exprimir que o rei 'vem:

Ouvem-se, então, do rei os passos imperiosos.

...

Buffon tinha razão em dizer:- «Nada é mais oposto ao belo natural, que o

trabalho que se tem para exprimir coisas ordinárias oucomuns, de uma maneira singular ou pomposa; nadaavilta mais o escritor. Lamentamo-lo por ter passadotanto tempo a fazer novas combinações de sílabas, paraafinal dizer o que toda a gente diz.»

Eis aqui, em compensação, uma soberba perífrasede Bossuet. para designar o confessionário:

- «Estes tribunais purificam os que se acusam.»Portanto, e desde sempre, deve-se evitar a expressão

e a perífrase triviais.A principal originalidade consiste em escrever com

a palavra natural. com a palavra própria, a palavrasimples e exacta,

Essa palavra será talvez mais conhecida, mais empre-gada ainda que uma locução falsamente elegante, masnão será substituivel, não se poderá passar sem ela;e é o emprego dessa palavra própria, seja qual for, queIJroduz a nitidez, a correcção, o brilho do estilo e a suaenergia.

Alguns estilos, como os de La-Bruyêre, La Roche-Foucauld, Fênelon. Montesquieu, devem todo o seu êxitoàquele grande mérito.

Vejam o que diz La-Bruyêre, e o exemplo que elenos dá no seu imortal conselho:

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li·

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~ I

Que quereis dizer? Como?Agradar-vos-ia recomeçar?

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A ARTE DE ESCREVER 85

Adivinho finalmente; quereis dizer-me, Acis, que está frio.Por que não dízeis: está frio? Quereís significar-me que choveou neva; dízei: chove, neva. Achaís-me de cara alegre e quereisfelicitar-me por isso; dizei: acho-lhe boa cara. Mas respondereisque isto é corrente e bem claro; e que, de facto, quem não poderádizer outro tanto? Que importa, Acis? Será grande mal serouvido, quando se fala, e falar como toda a gente? Uma coisa vosfalta. Acis, a vós e aos vossos semelhantes; não ca\culais o queseja, e vou causar-vos espanto; uma coisa vos falta: é o espírito.Além do quê, há em vós uma coisa a mais, que é a opinião deter mais espírito que os outros. Eis a origem do vosso pomposoqalimatias, das vossas frases confusas e das vossas grandes pala-vras, que nada significam. Aproxímaís-vos de um homem, oucntrais no seu quarto; puxo-vos pelo casaco e digo-vos ao ouvido:«Não penseis em ter espírito; não o tendes nunca; é o vossopapel; tende, se puderdes, uma linguagem simples, tal qual atêm aqueles em que não encontrais nenhum espírito; talvez queentão se creia que o tendes».

Não se pode dizer melhor.E La-Bruyêre prega com o seu exemplo.Eis um estilo sem frases feitas.Há nele a palavra própria, a palavra que se não

,. pode substituir.Só se atinge originalidade pela palavra natural ou

pela expressão criada.As duas fazem apenas uma, nos grandes escritores:

a expressão criada é neles sempre natural. parque é apalavra que era preciso encontrar, para caracterizar umcambiante novo, uma relação inédita, um pensamentoraro.

São ambas precisas para se ser perfeito.O inimitável La-Fontaíne é um incomparável criador

do estilo.

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(BOSSUET, Sermões).

Ií I,I1i,it

86 A ARTE DE ESCREVER

A simplicidade, só por si, é que muitas vezes nãotem cor, corre (I risco de se tornar pálida,

Exemplo, o Telémeco, tão uniforme de tom. semrelevo. posto que bem escrito (1).

Ter a simplicidade e o relevo, eis o ideal. Falare-mos mais tarde do relevo.

Eis aqui uma passagem de Bossuet, escrita com aspalavras mais ordinárias, mais simples. menos procura-das, com palavras quase prosaicas e que ninguém pen-sará substituir; primeiro. porque seria difícil. e depoisporque o ressalto da ideia compensa tudo.

Ah! como tinhamos razão em dizer que passamos o tempo!Na verdade, passárno-lo, e passamos com ele. Todo o meu sertem por alvo um momento; eis o que me separa do nada; essemomento decorre, e prende-me a outros; passam uns após outros;reúno-os uns após outros. tratando de me assegurar; e não reparoque me arrastam insensivelmente com eles e que faltarei ao tempoe não o tempo a mim. Eis o que é a vida; e o que é espantoso éque isso passa. em relação a mim: perante Deus, isso permanecepor parte dos seus tesouros. O que eu lá tiver posto, encontrá-Ic-ei.Não gozo dos momentos desse prazer, senão durante a passagemdeles; quando passam, é preciso que eu responda por eles, comose ficassem. Não basta dizer que passaram; não pensarei maisneles; sim, passaram para mim: mas, para Deus, não; ele pedirácontas deles.

Como se vê, o natural e a simplicidade constituema verdadeira energia.

C) Telémaco é um livro negativamente bem escrito, maisnotável pelos defeitos, que não tem, que pelas qualidades quepossui. Tem elegância sem brilho. nitidez sem relevo, correcçãosem cor, a facilidade que não é original, a clareza que não bri-lha, etc.

"

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A ARTE DE ESCREVER 87

Cícero disse:

- «É uma arte. parecer que não temos arte. Assimcomo há mulheres. a quem fica bem a falta de enfeites.a elocução simples agrada-nos. mesmo sem ornatos.É uma beleza descuidada. que tem as suas graças. tantomais comoventes, quanto menos se pensa nela... Estegénero não admite o ornato nem o brilho: é uma refeí-ção sem maqnificência, mas onde o bom gosto reinacom economia: o bom gosto é a selecção.»

o dom de escrever naturalmente não é uma aptidãoinconsciente.

O natural conquista-se e é quase sempre pelo traba-lho que ele se cbtém. Pode até dizer-se que o naturalé resultado do esforço.

La-Fontaíne, por exemplo, não atingiu o inimitávelnatural do seu estilo. senão à força de trabalho obsti-nado: riscava continuamente e refazia dez a doze vezesa mesma fábula.

Podeis convencer-vos disto, como Taíne, lendoos manuscr-itos do fabulista, que estão na BibliotecaNacional.

Condillac tem pois razão em dizer que "O naturalconsiste na facilidade de realizar uma coisa. quando.depois de ela se ter estudado, conseguimos realizá-Iapor fim. sem estudar muito. É a arte convertida emhábito».

A ilusão, que dá o natural, é que se escreveu semcusto. Dir-se-ía que não foi procurado e parece quecada um poderia escrever assim.

Ora. é o contrário que sucede .

. .~ ~--_.-.--- .••... --

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88 A ARTE DE ESCREVER

.--

Imaqína-se poder escrever como La-Bruyêre, Pascalou La-Fontaíne.

Quando se trata disso, nove vezes sobre dez, o quese encontra é o estilo estereotipado, o estilo ordinário,que já mencionámos.

Porquê? Porque foi esse o estilo mais lido, porqueestá na cabeça, porque não há o instinto ou a arte denos livrarmos dele, porque se não sabe, como diz Pascal,que «a eloquêncía dispensa eloquência», e porque omelhor estilo, segundo Montaigne, vai ao fundo daídeía, é quase «falado, quase soldadesco».

Procure-se muito, para escrever.É preciso procurar, efectivamente, mas é também

preciso procurar não escrever.Que fazer, para evitar o estilo trivial e atingir o

relevo?Indicaremos os processos no capítulo da composição .Em todo o caso, é preciso encontrar outra coisa,

escrever outra coisa, ver a ideia de outra forma, tomaroutro tom.

Não é muito difícil. uma vez adaptado o processo,desde que se entrou num certo trena de espírito.

Vejamos, por exemplo, estas linhas de George Sand:

Havia no seu rosto, de um amarelo trigueiro, na sua pupilanegra e ardente, na sua boca fria e desdenhosa, no seu aspectoimpassível, e até no movimento imperativo da sua mão, compridae magra, ornada de diamantes, uma expressão de altivez arro-gante e de rigor inflexível que eu nunca tinha encontrado ..

(G. SAND, A última Aldini).

Relede este fragmento.Notareis um insuportável balancear de epítetos ince-

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-A ARTE DE ESCREVER 89

lores; cada palavra tem o seu adjectivo, que lhe pendeao lado; «rosto amarelo trigueiro. pupila negra e ardente.aspecto impassível. movimento imperativo; mão com-prida e magra. altivez arrogante. rigor inflexível.

É intolerável!Em primeiro lugar. rosto trigueiro era suficiente:

amarelo bastaria também; impassibilidade poderia subs-tituir aspecto impassível; movimento imperativo da suamão quer dizer provavelmente o gesto autoritário. A suaarrogância, simplesmente. substituiria a expressão dealtivez arrogante (pois que é a mesma ·coisa). e rigorinflexível é uma parelha muito usada.

Tentemos refazer.

Havia no seu rosto moreno, na sua pupila ardente, no des-dém da sua boca. na sua ímoassibilldade E' até no gesto 3I1tO,·;t"-rio da sua mão, magra, uma ;,rwqfmci" inflexível, qUE' pu nuncatinha encontrado.

Mesmo assim. não ficaria muito bem, porque istoquer dizer: «Havia arrogância no seu desdém e rigorna sua impassibilidade», o que não é vigoroso, e quasenada significa.

Por aqui se vê, tanto quanto o podemos exprimircom uns traços preliminares. como se deverá procederpara evitar a vulgaridade do estilo e dar-lhe a origina-lidade, que é inseparável do verdadeiro dom de escrever.

Um último exemplo, para concluir esta entrada emmatéria.

É um fragmento de Lamennais.Não o refaremos.

.~-e

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90 A ARTE DE ESCREVER

Acentuaremos somente o que se deveria cortar oumudar.

O autor descreve a visão. que nos sugere a sinfoniapastoral de Beethoven:

Um canto simples e doce se faz ouvir (por que não se eleva?seria mais simples). os ecos repetem-no de vale em vale (repete-oo eco dos vales. seria mais harmonioso). Parece que vagueaissobre a relva. húmida ainda... (julgar-se-ia ceminhsr sobre arelva ainda fresca. teria mais relevo). quando os bosques. osprados. os campos exalam como que um vapor de harmoniaindeiinivel (quando do campo se eoole como que um vapor har-monioso. será mais bem escrito).

Mil acidentes de luz se desenrolam aos vossos olhos (Oh! ovelho bordão! procurai outra coisa: desvendam-se. mostram-se ... )quadros variados (que horrível vulqandade, para dizer: cenasimprevistas); o som invisível. estranho mistério (epíteto obriga-tório) afroixa ou se reveste de um vipo brilho (um som que sereveste de um vivo brilho é a última palavra da mediocridade).

Pouco a pouco. o Sol eleva-se. o ar abrasa-se. Aos trabalhosinterrompidos sucedem-se as danças alegres (estilo de traduçãobucólíca] .

Entretanto. as nuvens amontoam-se (antigo verbo obrigatóriopara as nuvens, que se encontram sob a pena de todos os alunos).um ruído surdo e longínquo (sempre!) saído não se sabe de onde.anuncia a tempestade; não se: vê ainda; engrossa e aproxima-se(se engrossa, é porque se aproxima. e se se aproxima é que enqros-sou. Tudo isto tem pouco relevo. vê-se pouco!) o relâmpago sulcaas nuvens (estilo dos exercícios de meninas). o raio despedaça-ascom horrível ruído. As danças interrompem-se. etc.

E Lamennais acrescenta esta frase. que encerra. porsi só. toda a lição que nós queremos dar:

Os pastores dispersem-se assustados ...O autor julgou escrever bem. empregando estas

palavras genéricas e inexpressivas. As pessoas habitua-

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A ARTE DE ESCREVER 91

das a frases feitas, talvez se contentem com elas edigam: «que se há-de pôr no lugar delas?» Que sehá-de pôr? Simplesmente as palavras verdadeiras, aque-Ias que Herédía emprega num caso idêntico:

o pegureiro eierredo,Que foge para Tirinto ...

Fugir é mais forte que dispersar; aterrado tem maisrelevo que assustado; e pequreiro é a palavra própria,muito melhor que pastor (pastor de' homens. pastorevangélico, etc.).

A originalidade é pois, repetimo-lo, a primeira qua-lidade do estilo. É por ela que nos afastamos do queestá muito visto, com ela evitamos as perífrases e asexpressões estudadas; com ela achamos força e vida.

A originalidade é um esforço contínuo. Consiste emdizer melhor, em dizer com energia, em procurar apalavra própria, em encontrar a imagem nova.

Se tívésseis esta qualidade, escreverieis descuidada-mente como Saint-Simon, seríeis escritor, independente-mente dos cursos de literatura, das gramáticas e dasortografias .

.-!

.._-d...·---~

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92 A ARTE DE ESCREVER

Lição Sexta

A concisão de estilo

Processos para adquirir a concisão. ~ Locuções viciosas. ~ Pro-lixidade. ~ Sobriedade. ~ Condensação. ~ Acumulação erepetição de palavras. ~ Emprego dos auxiliares ter e ser.~ Os equivalentes. ~ As transições fictícias.

A segunda qualidade essencial do bom estilo é aconcisão, isto é, a arte de encerrar um pensamento nomenor número de palavras possível '(1).

Uma grande causa de fraqueza literária, o que tiraao estilo a sua força e lhe tira todo o seu efeito. é adifusão.

Nunca nos cativam frases, em que há palavras amais.

Um crítico disse:..- «A clareza é o verniz dos mestres.»

(') Dissemos na lição precedente que é preciso empregar apalavra própria. exacta, imaginosa, com relevo, e não a palavratrivial e a expressão vulgar.

Estes conselhos, para se atingir a originalidade. compreen-dem, pois, implicitamente a precisão, a correcção, a clareza, ajusteza, o natural, etc., de qUI! me não parece precíso formarqualidades separadas.

Na presente lição. é evidente também que a concisao encerraa sobriedade, a temperança, a força, o brilho, ctc.

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A ARTE DE ESCREVER 93

Ora, a clareza é o brilho que a concisão produz.Não consiste mais em frases curtas, do que em fraseslongas.

Cada qual tem a sua medida; o molde pouco importa.ou seja a frase curta dos retratos de La-Bruyêre, ousejam os belos períodos dos discursos de Bossuet.

A concisão é a arte de se restringir, de fazer ressal-tar a ideia, de condensar os elementos de uma frasenuma forma incisiva 'e concreta.

É o horror ao estilo frouxo.A eloquência não está na quantidade das coisas

ditas, mas na sua intensidade.A falta de concisão é o defeito geral daqueles que

começam a escrever e que não tomam cuidado.As três quartas partes dos autores contentam-se

com uma forma. que supõem definitiva e que se refazpor si própria na leitura.

A concisão é, pois, uma questão de trabalho.É preciso limpar o estilo, joeírá-lo, peneirá-lo, tirar-

-lhe a palha, clarificá-lo, Iortalecê-lo, até que deixe deter lascas de madeira. até que a fundição fique semrebarba e se tenham tirado todas as escórias do metal.

Lede Pascal, La-Bruyêre, Montesquieu; não se podetirar uma palavra às suas frases.

Enquanto não tiverdes chegado a este estado fixo.sólido, índestrutível, o vosso estilo não estará apurado.

Numa palavra, é preciso que se não possam dizerde uma maneira mais concisa as coisas que dissestes.

É que Flaubert exprimia nesta frase:- «A prosa nunca está concluída.»Acrescentemos que ela se não pode concluir. No

ponto em que detíverdes, vós, que sois Chateaubriand

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Q

94 A ARTE DE ESCREVER

ou La-Bruyêre, outro se pode apresentar, outro gemomaior que vós, que verá mais longe que vós e que rea-lizará outra forma mais perfeita. Os nossos grandesescritores representam a expressão mais alta da artede escrever; mas esta expressão não é a última; pode-ria existir outra mais elevada.

Empregamos muitas palavras, porque estamos emba-raçados para exprimir uma ideia; fazemos círcunlóquíose, quando as palavras estão escritas, tornam-se infeliz-mente inseparáveis da ideia; já se não pode ver o pen-samento senão com os seus fílamentos: seria precisoseparar brutalmente aquilo que se quer dizer e sacudira terra que adere às raizes da planta.

Falta eloquência a certos estilos, por causa do des •.graçado defeito da difusão.

As mesmas coisas seriam empolgantes, se fossemresumidas.

O leitor vulgar não pode dizer por que é que senão sente atraído pela leitura de tais ou tais páginas.

O profissional verá nelas o que é preciso, ou anteso que há a mais.

O mesmo pensamento torna-se fraco ou forte,segundo a compreensão que se lhe dá.

Serei frouxo e dífuso, se disser:- «As mulheres não têm limites nos seus sentimen-

tos; umas vezes valem mais, outras vezes menos do queos homens.»

Mas, tornar-me-ia atraente, se dissesse como La--Bruyêre:

- «As mulheres são exageradas; são melhores oupiores que os homens.»

Ninguém estranhará que eu diga:

JI

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A ARTE DE ESCREVER 95

- «Os pensamentos elevados, aqueles que enobre-cem e exaltam os homens, têm a sua origem e a suafonte no fundo do vosso coração.»

Mas a concisão tornará a ideia soberba, se digocom o célebre moralista:

- «Os grandes pensamentos vêm do coração.»Um estilo espesso e sem firmeza suporta-se um

momento, mas depressa fadiga.Podem pôr-se no estilo todos os incidentes que se

queiram, ornando-o, embelezando-o. cortando-o empequenos períodos, canalizando-o 'tão longamente quantose julgar necessário.

Poderá realmente haver concisão em cada pormenor.O que se deve evitar é o supérfluo, a acumulação.

o palavrório, o acrescentamento de ídeias secundárias,que nada ajuntam à ídeía mestra e que só a enfraquecem.

Assim. nesta frase:-«Não se podem ver tais desgraças noutrern, sem

que tenhamos um sentimento de compaixão. de receio,de apreensão, por nós próprios. sentimento que nos fazsaborear melhor a alegria e a satisfação de estarmosisentos.»

A palavra apreensão nada ajunta à ideia de receioe a palavra satisfação é muito fraca após a palavraalegria.

Assim também nesta frase de Fléchier:

Lamento neste púlpito um homem e virtuoso capitão. cujasintenções eram puras e cuja virtude parecia merecer uma vidamais longa e mais ampla.

(Oração fúnebre de TURENNE).

Este aditamento de epitetos é indigno de um escritor.

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96 A ARTE DE ESCREVER

Quando se diz que uma vida é mais longa. é inútilajuntar que é mais ampla.

O mesmo defeito se nota nestes versos de Corneille:

Três ceptros, que em seu trono 'eu pus por minha mão,Por ela falarãoE não se calarão.

p\i

Há frases que parecem cerradas, e que se podemtornar mais concisas, tais como estas:

- «O senhor tinha dito que a duquesa ficaria des-contente, se ela soubesse que nós estemos sos.s

Deveria escrever-se antes:- «O senhor dizia que a duquesa Iícarra descon- •

tente de nos saber sós.»Tereis substituído sete palavras por quatro, e isto

será mais elegante.Parece sem importância, mas este gênero de cor-

recção tem grande alcance, quando é feito sobre pági-nas e páginas.

Empregam-se demasiadas palavras, porque se repeteo pensamento por diversas formas.

Acumulam-se em torno dele pensamentos similares,que, destinados a Iazê-lo ressaltar, não fazem, pelocontrário, senão enfraquecê-Io.

Assim, no seguinte I" .emplo, citado por Deltour (')a frase de Henrique 1\ «Quero que o camponês meta,todos os domingos, galinha na panela», acha-se desfi-gurada e difusanestes versos de um escritor do séculopassado:

(') Princípios de composição francesa.

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A ARTE DE ESCREVER 97

Eu quero que nos dias de descansoO trenquilo habitante de uma aldeia

Tenha na sua mesa.Então menos humilde.Alguns daqueles pratos.

Próprios da confortada medíania.

Eis ainda um exemplo desse repisar das mesmasideias. copiado do padre Du-Guet:

Toda a gente é capaz de compreender que ela seria a felici-dade de uma nação. em que toda a [oeçe- e toda a autoridadeseriam concedidas à virtude. em que todas as ameaças e todos oscastigos seriam contra o vício; cujo príncipe não seria terrívelsenão para quem praticasse o mal e nunca para aqueles queamam e fazem o bem; em que a espada. que Deus lhe confiou.seria a protecção dos justos e não faria tremer senão os seus InI-migos; em que a verdade e a clemência se uniríam; em que a[ustiçt: e a paz se beijariam. e em que se veria cumprir o quedisse o Apóstolo: a virtude respeitada e cheia de honras e o viciohumilhado e coberto de ignvminia.

Estes sobrecargos. este desdobramento de cadaideía, nada ajuntam à ideia principal. que se perde nocaminho, por falta de concisão.

Há escritores, que não podem abandonar uma ideia,sem a ter mastigado em todos os sentidos, até que eladeixe de ter gosto.

Quantas frases não temos 0S lido no género destas,que cita o atilado crítico Blair:

- «Cometer uma acção má é, em primeiro lugar,afastar uma amizade boa e pacífica, para a substituirpor outra, má e desordenede: ou ainda:

«g cometer uma acção iníqua, imoral e injusta .. .:

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98 ;A ARTE. DE ESCREVER

enfim, é proceder contra a justiça, a natureza e a vir-tude ... »

É principalmente na oratória que esta prolixidadese torna abusiva.

Quase todos os oradores caem neste vício; é o quetorna os seus discursos insignificantes para a leitura (1).

Nos versos célebres de Casimira Delavigne sobre amorte de [oana d'Arc, esse processo é ,impressionante,porque o autor acrescentou-lhe ainda a trivialidade dasfrases feitas:

Para quem se destinamEstes aprestos fúnebres?Por quem se acendem tochas?Tremem sinos e agitam-se ...

Donde vêm estes lúgubres murmúrios?Aonde vão guerreiros,

Precipitando-se em compactas ondas?A alegria ilumina-lhes o rosto;Sem dúvida o dever os entusiasma.

Irão formar fileirasPara um assalto heróico?

Não! aqueles guerreiros são ingleses,Que correm para verMorrer uma mulher!

Tremem sinos e sqitem-se ... , um dos dois verbosé inútil.

(') Demóstenes é contudo um modelo de concisao. Quantoa Cícero, encarna a difusão. mas encarna-a com talento. Adornatudo e repete tudo. Procede por multiplicidade de nomes, deverbos e de adjectivos.

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A ARTE DE ESCREVER 99

E. logo que se diga: Aonde vão guerreiros, .é inútilajuntar-se: precipitando-se em .xompectes ondas. .

Há apenas os três últimos versos irrepreensíveís deque se não pode substituir nem cortar palavra nenhuma.

Ê pela concisão, repetimo-lo, que se obtém a clareza,a sobriedade, a propriedade, a correcção, a brevidadee a pureza, qualidades que seria de mau aviso quererdemonstrar separadamente, pois estão contidas na con-cisão; como vimos que o relevo. a força, a expressão. aenergia; o natural. a riqueza. a clareza. que estão con-tidas na originalidade do estilo:

Aqueles que se exercitam em escrever, verificarãoquanto é lógica esta observação.

Muitas vezes, sem que se queira ser mais claro,estende-se o que se quer dizer, ao passo que isso serialuminoso. tendo-se sido conciso.

Prova-o esta passagem do padre Du-Bos, que nãoé. contudo. um mau crítico:

Os pintores e os poetas excitam em nós paixoes artificiais.apresentando imitações dos objectos, capazes de excitar em nóspaixões verdadeiras.

Como a impressão. que essas imitações produzem sobre nós.é do mesmo gênero da impressão. que o objecto imitado pelo poetaou pelo pintor faria sobre nós; como a impressão, que a imitaçãoproduz. não é diferente da impressão. que o objecto imitado pro-duziria. senão em que ela é menos forte. deve excitar em nossaalma uma paixão. que se assemelha àquela que o objecto imi-tado poderia excitar: a cópia do obiecto deve. por assim dizer.excitar em nós uma cópia da paixão que o objecto teria excitado.Mas. como a impressão. que a imitação produz. não é tão pro-funda como a impressão. que o próprio objecto causaria. aquelaimpressão superficial. feita por imitação. desaparece sem ter asconsequêncías duradouras. que teria a impressão produzida peloobjecto, que o poeta ou o pintor imitou.

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100 A ARTE DE ESCREVER

o bom padre Du-Bos cai no palavrório e chegaa não saber o que diz, por ter querido exprimir-semais claramente, mais tecnicamente, de uma maneiramuito chão

Deve-se observar a concisão, não só nas palavras.reduzindo-as ao menor número, mas também no tor-neio das frases. empregando de preferência as cons-truções rápidas, aquelas que aliviam o estilo, em vezde o carregar.

Locuç6es viciosas

A manhã estava soberba ...O seu procedimento foi admirável. ..Não é preciso acrescentar nada ...Com o único fim de...De forma que ...Ele não respondia, tão fatigado começava a estar ...M. X ...• de cuja morte se tinha espalhado o boato.

Não vos esqueçais de que as frases são feitas umaspara as outras. c de que é o seu encadeamento cerradoque constitui uma das belezas gerais do estilo.

Não pareçam enxertadas, mas engendradas as vos-sas frases; não justapostas ficticiamente. mas lógica-mente deduzidas.

Eis aqui um exemplo, em que parece que a ídeíaprincipal vai acabar. e em que ela recomeça sempre.arrastando uma sequência de reflexões inúteis, comouma cauda. que se dividisse infinitamente.

Os ferimentos eram mais mortíferos para os Mouros, porqueeles se contentavam em os lavar na água do mar e diziam. numamaneira de provérbio ou de anexim do seu país. que Deus. que

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A ARTE DE ESCREVER 101

lhos dera. lhos havia de tirar; isto menos pelo desprezo. que pelaignorância dos remédios. pois estimavam bastante um renegado.o seu único cirurgião. a quem. por uma política excêntrica. acada ferido de importância. que morria entre as suas mãos. davamprimeiro um certo número de bordoadas, para o castigar mais oumenos. segundo a importância do morto; depois umas tantaspeças de oito reales, para o consolar e o exortar a proceder melhorpara o futuro.

Parece que se não chega a sair desta frase desen-rolada. como essas serpentes de papelão. C0111 que seentretêm as crianças.

É composta de excrescêncías' intermináveis.Examinai bem se as frases, que ali se agregam,

significam alguma coisa mais que as precedentes.Sede imparcial e rigoroso e riscai implacàvelmente,

à menor dúvida. O fragmento lucrará com isso.Há expressões que, por si só, nada significam.O vício da falta de concisão é talvez o mais difícil

de verificarmos, no nosso próprio estilo.É necessário um recuo incessante, uma vigilância

sempre alerta, para se notar a falta de brevidade. Estedefeito universal é o que torna as traduções enfado-nhas. porque a dificuldade de exprimir exactamente umpensamento, comprimido no texto, força o tradutor aempregar muitas palavras.

Daqui, uma forma extensa e frouxa, que não prendeo espírito e revolta o gosto.

A brevidade é a última qualidade que se aprende,no mecanismo da arte de escrever.

Devemos, portanto, persuadir-nos de que se devesempre resumir e aclarar o estilo.

Pode dizer-se que há sempre necessidade disso.Quando julgardes ter já escrito um fragmento defí-

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-102 A ARTE DE ESCREVER

nitivo. retomai-o, emendai-o:mulas mais rápidas: e trataiexistem.

O que produz. na maior parte dos casos. a difusão.é o emprego das ideias semelhantes. que se sobrepõemou se justapõem no calor da composição.

Tírai de uma ideia tudo que a não fortifica. tudoque é matiz idêntico. tudo que não tem relevo, tudo quepode ficar para trás. E o que restar, o que guardardes.tratai de o exprimir com o menor número possível depalavras.

Acusaram de prolixidade o historiador Guichardinie Gassendi.

As arengas de Títo Lívíolices heróicas, pedaços deampliações laboriosas.

A narrativa de Théraméne, naé o mais belo exemplo dessa artee inutilmente.

Com que minúcia está pintado o dragão que saidas ondas!

Como o autor nos descreve a tristeza dos guardasde Hipólito e a tristeza dos cavalos!

E. todavia. esses trechos são admiráveis em sipróprios. e andaríamos mal, se os considerássemos malescritos.

Não nos esqueçamos nunca dos versos de Boileau:

tratai de descobrir Iór-de as encontrar, porque

são modelos de taqare-retórica parafraseados,

Fédore de Racinede escrever longa

o que se diz de mais é sempre fastiento.E o espírito, enfadado. enjeita-o num momento.

Como declara Boíleau. é preciso saber restringir-mo-nos para sabermos escrever.

I

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A ARTE DE ESCREVER 103

A arte de desprender o pensamento. de o tirar doseu embrião. a arte de o insular; e de o apresentar emrelevo. só é difícil. por se empregarem muitas palavras.

Há autores. como A. de Pontmartin, por exemplo.em que tal processo é visível em cada página.

Escritor elegante. que atrai pelo seu perfeito ati-cismo. pela sua distinção e o seu belo tom. aquele autornão pode enumerar sem acumular; procede somente comepítetos múltiplos; repisa no mesmo lugar e. como nãoavança. ímpacienta-se.

Esta repetição das palavras. està insistência emtocar a mesma áría, tiram toda a espécie de efeito afrases destas:

Camílo Desmoulíns aspirava com o ar tudo que pode per-turbar e perverter a consciência humana: paixão. ebriedede, terror.chama. furor. ódio. esperança. febre. anarquia moral. espírito deáesfruição e morte. A faculdade de sobreexcitação nervosa. peri-goso privilégio da nossa profissão. era continuamente prooocede,exaltada. exacerbada. azedada. decupliceda pelos acontecimen-tos (').

Enfiar serres de palavras: paixao, embriaguez. ter-ror. chama. furor. ódio. esperança. febre (por quenão: dor. vício. angústia. miséria. desespero. inveja,revolta. etc.. etc.?). provocada. exaltada. azedada.exacerbada. decuplicada, etc., tudo isto, apesar de umailusória aparência de graduação. nada acrescenta àideia.

É a difusão. é a prolixidade fácil. não é verdadeira

(') Pontrnartin. Novos Sábados. 12." séríe, art. [úlio Cle-retie.

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agudeza nem verdadeira inspiração. porque não há alienergia nem sobriedade.

A verdadeira heroína de Iêené, - diz mais adiante o mesmoPontmartín, - chamava-se também Lucílía,

Bela. poética. plangente. inquieta visionária. alucínada, dír--se-ia o fantasma da sociedade morta. vagueando na necrópole.povoada pela Revolução. Viva. enérgica, apaixonada. heróica, aoutra Lucílía, Lucília Desmoulíns, personifica a jovem liberdade.

Noutra passagem ainda, o exemplo é mais empol-gante:

A curiosidade! foi ela a Musa. a confidente. a companheira.a alegria. o tormento. a amante. o [lagelo. o refúgio. o bom e omau génio de Saínt-Beuve.

Se nos concedem que. para as almas que se não abrigaramdesde logo sob a asa do seu anjo da guarda ou nas castas caríciasde uma noiva. esta curiosidade se torna fãcilrnente cúmplice dossentidos, e que tem toda a aparência do amor ou desejo vago.agitado. inquieto. precoce. [uqitioo, misturado de ignorância e decandura e de impudor, de timidez e de ousadia. tal qual opinta Beaumarchais sob os traços de Querubim, hão-de permi-tir-me que eu acrescente. etc. j

Eis aqui uma frase de Alfredo de Vigny. mal feita,por causa de uma palavra inútil:

A grande estrada de Artois e de Flandres é longa e triste.No mês de Março de 1815. passei por esta estrada e tive um encon-tro de que nunca mais me esqueci depois.

(VIGNY, Servilismo e Grandeza).

A palavra depois é inútil e fica no ar.Nada acrescenta, nem ídeía, nem matiz. e segura,

perdoaí-me a expressão, a frase pelas patas .

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A ARTE DE ESCREVER 10~

E assim também esta frase de um romancista con-temporâneo:

o seu corpo esguio fazia-o parecer mais alto e mais novo doque ele era na realidade.

Evidentemente do que ele era na realidade é demais. A frase ficava completa até novo.

A propósito de um polemísta, li isto:

Ninguém caluniou tanto os seus adversários como ele o fez.

_. É a última palavra da superfetação insípida... eincorrecta.

A obrigação de ser conciso não significa que tenha-mos de cortar as asas à fantasia e à imaginação, erenunciar à cor ou à magia das palavras; mas é pre-ciso que essas palavras sejam mágicas, que enriqueçamo que já se disse; e, se essas mesmas são ínexpressívas.incolores e triviais, como: ousadia, timidez, mau génio,musa, flagelo, tormento, paixão, embriaguez, terror,chama, furor, ódio, tornam-se inúteis e devem sersuprimidas.

Um exemplo ainda tirado de um autor ccntempo-râneo, que passa por bom escritor.

Se o leitor suprimir tudo que vamos pôr em itálico,como similar, repetido ou já dito, verá que o que restado fragmento pode constituir estilo honroso.

o doutor, seu velho amigo, aconselhou-lhe ares mais suaves,clima mais quente, céu mais puro, luz mais tépida, vida maistranquila. O inverno é rigoroso, áspero, bravio, nas costas daBretanha, ao longo daquelas penedies abruptas, naquela fria região.Seria tão bom. tão trenquiliztmte, tão reconfortante, um raio de

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,-

sol meridional! Mas o doutor diz O que lhe parece! O seu doenteé um padre. um servidor do altar. edstrito a um serviço piedoso.e que não pode deixar o seu posto. desertar do seu dever. aban-donar a casa de Deus. onde os seus ouvintes se vão agrupar. reu-nir-se e confortar-se. Quantos obstáculos e dificuldades paraviajar! quantos pormenores. imperceptiveis para nós. penosos.alarmantes. inquietadores e dolorosos para um padre! Pode elepercorrer hotéis. sentar-se às mesas-redondas. habitar um quartoestranho. ouvir conversas insolentes. aventurar a sua muita idadee os seus. cabelos brancos ao meio daquelas colónias mundanas.em que cada um faz exibições de luxo. de entusiasmo e de frivoli-dade. de elegância?

Suprimidas as palavras em itálico. eis o que ficaria:

O doutor. seu velho amigo. aconselha-lhe ares mais suaves.O inverno e rigoroso nas costas da Bretanha, naquela fria região.Seria tão bom um raio de sol meridional! Mas o doutor diz oque lhe parece! O seu doente é um padre. que não pode deixaro seu posto, Quantos obstáculos para viajar! Ouantos porme-nores imperceptíveis para nós. penosos para um padre! Pode elepercorrer hotéis. sentar-se às mesas-redondas. aventurar os seuscabelos brancos ao meio daquelas colónias mundanas. em quecada um faz exibições de luxo e de frivolidade?

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Certos espíritos. apaixonados por ouropeis e pendu-ricalhos. preferirão o primeiro texto. diluído: mas um«bom espírito». um espírito são. não hesitará.

Empregar muitas palavras é um defeito grave; masrepetir canhestramente as mesmas palavras é enfraque-cer o estilo de cutra maneira; contra isto. devemos serimplacáveis. Nada revela tanto a pobreza de imaqína-ção e nada fatiga tão depressa o leitor; dedicai aocaso a maior atenção, pois é fácil deixar passar umaexpressão já empregada. ou muito parecida, sem quese, veja,

A-I

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A ARTE DE ESCREVER 107

Não falamos aqui das palavras correntes. que senão podem evitar. como ele, ela, onde, em, a, que sãonecessárias a cada instante; mas. se encontrardes umapalavra. um epiteto, empregado algumas linhas maislonge. eliminai-o ou substituí-o.

Alguns autores. como Chateaubriand e Flaubert,enjeitaram com ardor as repetições. a ponto de as nãotolerarem na mesma página.

O limite desta exigência é questão de gosto. masvale mais pecar por severidade. É ~m ponto importanteno estilo.

Os bons prosadores conhecem-se nisso.Não há necessidade de numerosos exemplos para

demonstrar em que consiste a repetição de palavras;bastará abrir um autor vulgar. para se colher delequanto se queira.

Encontram-se também repetições nos melhores escri-tores. de tal forma a atenção naturalmente se iludiu.

Esta frase de Philarete Chasles, extraída das suasMemórias, que têm. contudo. bastante vida e relevo.parece-me típica.

Pinta ele o retrato de um autor:

Passando tudo em revista. encarnando-se em tudo por ummomento. para tudo destruir. naturalmente falso. insincero, pala-vreador, apaixonado das pequenas coisas; capaz de transformarpara penetrar tudo; incapaz de colher qualquer coisa no coração.de atingir o centro e a essência seja do que for; fino até à fraude:atingindo uma solidez aparente ...

Um pouco de atenção teria apagado estas nódoas.E o mesmo nesta passagem de Bernardím de

Saint- Píerre:";

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.. Q

108 A ARTE DE ESCREVER

Apesar desta situação perigosa. os nossos marinheiros puse-ram-se a beber e a divertir-se, supondo-se ao abrigo de todo operigo. porque se viam rodeados pela terra de todos os lados.

Em seguida foram deitar-se sem que ficasse um só para velara manobra. Tinhamos ficado sobre a ponte. Cefas e eu. sentadosnum banco de remadores (').

E mais adiante:

Minha filha. é tempo de irdes descansar. Pensa i que vosdeveís levantar amanhã. antes da aurora. para irdes à festa domeu Liceu (').

Há aqui negligências imperdoáveis.Gustavo Flaubert, na sua correspondência. censura

Chateaubríand, porque. ao pintar nos seus Mártiresa chegada de Eudoro a Roma. deixou passar duas outrês repetições. que o crítico. no lugar dele. não teriapermitido.

Efectívamente, nota-se isso pouco em Flaubert.Contudo. eis aqui uma. que encontrámos na Salambó

e que teria desgostado o autor. se lha houvessem mos-trado (3).

-

(') A Arcádia. pág. 223, ed. Delagrave.(') Ibid., pág. 239.(') Selsmbô, ed. Charpentier, pág. 138.

A estrada atravessava um campo. chaquetado de compridoslajedos, agudos no cimo. tais como pirâmides. e que tinham.gravado ao meio. uma mão aberta, como se o morto, deitado embaixo, a houvesse estendido para o céu, suplicando alguma coisa.Em seguida, viam-se. disseminadas. cabanas de terra. de ramos.de caníçados, de juncos, todas de forma cónica. Pequenos murosde pedra. regueiras de água viva. cordas de esparto, sebes de

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A ARTE DE ESCREVER 109

nopais separavam irregularmente essas habitações, que se amon-toavam cada vez mais, elevando-se para os jardins de Súpeta.Mas Amílcar estendia os olhos para uma grande torre, etc.

Esta repetição, posto que afastada, é curiosa numescritor, tão exigente a tal respeito.

Há repetições absolutamente inadmissíveis no gé~nero desta:

Defendeu-se duas vezes contra os ataques publicados contraele na imprensa.

(G. CLAUDIN).

Encontram-se, a cada passo, repetições em Saínt--Simon. Eis aqui uma, cuja intenção é duvidosa. Talvezfosse propositada:

Eí-lo que atravessa a avenida. Em breve, a encontra longa;depois, dirige-se às árvores, mas não as encontra já; nota quechegou ao fim e volta às apalpadelas a procurar as árvores;segue-as ao acaso, e depois cruza, e não encontra a sua casa.Nada compreende de tal aventura.

Ti tando-se de uma repetição, que o leitor notará,é preciso procurar outra palavra, ou outra construçãoaté, se for necessário.

Custa sacrificar certas palavras, mas a ausência derepr ' ções é beleza superior à indicação de pormenores.

Empreqaí, portanto, grande vigilância, porque sucedemuitas vezes que, para tirar uma palavra repetida, sepõe outra, que se encontra algumas linhas mais abaixo.

Começa-se assim uma caça, que conduz longe. Masnão se deve recuar.

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110 A ARTE DE ESCREVER

Certa escola contemporânea, que só procura oimpressionismo em literatura, afecta não se preocuparcom as repetições; deixa-as, acentua-as e vanqlo-ria-se delas.

Cícero notava que não há absurdo, que não tenhasido dito por filósofos.

Poderia estender a sua reflexão à literatura. Deí-xá-lo. As grandes regras da arte de escrever sãoeternas.

Há também repetições desculpáveis.Em vez de mudar o sentido a uma frase. em vez

de introduzir nela uma palavra frouxa ou atenuar umapassagem, convirá conservar as repetições quando sãoexactas, nítidas. luminosas e quando não podem sersubstituídas, senão por expressões mais frouxas.

Foi o que sentiu Pascal, quando escrevia estaslinhas, em que ele mesmo dá o exemplo de uma repe-tição que poderia ter evitado:

<, .\

dQuando, num discurso, se encontram palavras repetidas, e

quando, procurando corrigi-Ias, se encontram tão correntias, queprejudicariam o discurso, é preciso deixá-Ias. E: o quinhão dainveja, que é cega e não sabe que tal repetição não é erro naquelepasso, pois que não há regra geral.

,

It~\:

Li

Sim, há regras gerais, mas há também excepções,As excepções são questões de tacto e dependem

das circunstâncias.As regras gerais resumem os preceitos da arte de

escrever.É certo que as repetições seguintes podiam ser Iàcil-

mente eliminadas desta frase de Montesquíeu :

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A ARTE DE ESCREVER 111

Cômodo sucedeu a Marco-Aurélio, seu Péli: era um. monstro,que seguia todas as suas paixões e as dos seus ministros e dosseus cortesãos. Aqueles que livraram dele o mundo puserem emseu lugar Pertinace, que os soldados pretorianoslogo truci-daram. Puseram o império em almoeda e Dídto Júlio obteve-opelas suas promessas. isto revoltou todo o mundo, pois, que, ape-sar de o império, etc.

(MoNTE~QUJEU, Grandeza e Decadênciados Romanos, capo XVI, 5.° parág.).

Bastaria um pouco de atenção I?ara corrigir estasfrases de F énelon :

Estas armas eram polidas, como um espelho, e brilhantescomo um raio de sol. Via-se ali Neptuno e Palas, que pales-travam entre si. sobre quem teria a glória de dar o seu nome auma vila nascente. Neptuno, com o seu trídente, feria a terra,e via-se sair dela um cavalo íoqoso: saía-lhe fogo dos olhos eespuma da boca.

(FÉNELON, Telémaco).

Entre as repetições, que se 'permitem correntemente,e que prejudicam o estilo, nota-se o emprego epidêmicodos auxiliares ser, ter, haver, estar. ..

Todos os escritores, e não dos menores, abundamnestas repetições.

Não se lhes dá importância, e nada é tào pobre,nada revela tanto a esterilidade, a difusão, a dispersão.Porquê? Porque os auxiliares de um particípio sãopalavras cómodas, já encontradas para substituir osverbos próprios, para nos dispensarmos de procurar apalavra verdadeira. a única que diria tudo e diriamelhor. o verbo estreme e coesivo, o verbo que arre-dondaria a frase.

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-I112 A ARTE DE ESCREVER

~ assim que se escreve:

Por: persuadir-se de que ...

Ela estava tomada de Por: ela receava; ou:receío. tomava-a o receio; ou: tinha

apreensões.

Estava persuadida deque ...

o horizonte estava velado.de vapores.

Era de mais afinal: estavadisposto a falar.

Visto que o acaso lhetinha proporcionado essa oca-sião, iria ...

Sentiu que estava abando-nada pelo céu.

Por: o horizonte velava-sede vapores .

Por: era de mais: resolviafalar.

Por: visto que o acaso lheproporcionava essa o c a s i ã o,iria ...

Por: sentiu que o céu aabandonava; sentiu-se abando-nada pelo céu.

Quase sempre se podem substituir estes auxilia-res pelo verbo próprio, cujo emprego dará força aoestilo e terá evidente valor, como se vê nesta frase deum autor contemporâneo, frase que nada quer dizer:

Os seus cabelos e as suas sobrancelhas eram castanhos-escuros,e o seu bigode era louro-claro, o que dava ao seu rosto uma doçurasingular.

Quando era tão simples dizer-se:

Os seus cabelos e sobrancelhas castanhas, o seu bigode louro-.-claro, davam à sua fisionomia uma doçura singular.

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A ARTE DE ESCREVER 113

E assim, nas seguintes linhas de um autor con-temporâneo, podemos suprimir os auxiliares inúteis, eo estilo (irremediàvelmente banal, aliás), não ficará malde todo:

Era um homem de cerca de quarenta anos, alto e magro,com feições fatigadas, mas regulares, talvez finas. O carácter efe-minado desse belo rosto era ainda acentuado pela estranha lan-!;uidez dos olhos negros. muito escuros; os cabelos. igualmentenegros e sedosos. tornavam-se raros; a barba. que ele usava cres-cida. era vaporosa e ondeada naturalmente. Toda a sua pessoatinha um raro cunho de elegância com alguma coisa de inquie-tador e de perturbador, que teria impressionado os menos hábeisem perceber o jogo das almas. sob as aparências flsíonómicas.

o autor podia dizer. dispensando todos os auxi-liares. excepto o primeiro. se quiserem:

Era um homem de cerca de quarenta anos. alto e magro.com feições íatíqadas, mas regulares. talvez finas. A estranhalanguidez dos seus olhos negros. muito escuros. mais acentuavao carácter efeminado daquele belo rosto; os cabelos igualmentenegros e sedosos tornavam-se raros: a barba. que ele usava cres-cida. ondeava naturalmente. Toda (') a sua pessoa tinha um arde elegância excepcional. com alguma coisa de ínquíetador e deperturbador, que poderia impressionar (ou: ou que poderia sernotada por) os menos hábeis em perceber. ete.

Como se vê. todos os auxiliares desapareceram. maso estilo fica trivial?

Quem é que não vê a importância de tal trabalho.continuado em muitas páginas. para a concisão doestilo?

(') Por que toda? Bastaria a sua pessoa.

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(G. S.I\ND. A última Aldini).

114 A ARTE DE ESCREVER

Empregando-se os auxiliares à farta. caí-se na difu-são. na má qualidade do estilo.

E escrevem-se páginas. como esta. extraída de umautor contemporâneo de grande nomeada:

Quanto a Antónía, apesar do ensinamento irregular da tiaIsabel. tinha-se convertido numa simples e moderna criatura.Não se mostrava nada Marquesa. nas suas maneiras. que eramdoces e calmas, tanto quanto as do irmão eram vivas e desorde-nadas. Ela era alta e maravilhosamente bem feita. O seu rosto,de tez fresca. era iluminado por olhos negros. brilhantes e pro-fundos.

Quase todos os escritores abusam dos auxiliares.Bastará abrir um livro para se encontrarem logo.

ao acaso. linhas destas:

Eu estava muito perturbado e convencido de que me seriaimpossível articular um som. porque havia bem um ano que metinham avisado daquilo. Eu tinha então dezassete anos. A minhavoz tinha voltado; não havia que duvidar.

Esta repetição dos auxiliares afeia o estilo dealguns escritores do século XVII.

É impossível deixar de notar frases destas que seencontram em cada página de Fénelon. Descreve eleo carro de Anfitrite:

Os tritões rodeavam o carro de Anfítrite, puxado por cavalos--marinhos. mais brancos do que a neve. e que fendendo as ondassalgadas. deixavam longe. por detrás deles, um vasto sulco nomar; os seus olhos estavam inflamados e as suas bocas estavamfumegantes. O carro da deusa era uma concha. de forma maravi-lhosa; era de uma brancura mais brilhante que o marfim. e asrodas eram de ouro.

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A ARTE DE ESCREVER 115

Ou se deve renunciar à arte de escrever, ou nuncase devem aprovar tais negligências.

Eis uma frase, ainda mais característica, de Duelos,o autor das Considerações sobre os Costumes, livro umpouco seco mas bem escrito:

Ele tinha o título de chefe do Conselho das Finanças; e,como era incapaz de compreender disso qualquer coisa era inve-joso do duque de Noailles, que sendo apenas presidente, ere con-tudo o senhor de toda a administração.

(DueLOS, Memórias sobre a Regência. págs. 104, 185).

Aqueles que querem baralhar escolas e processosnão deixarão de fazer aqui a objecção, já refutadaa propósito do estilo trivial. Dirão que se pode ser umgrande escritor, cometendo embora negligêncías.

E nós responderemos:~ Sois acaso grande escritor? Podeis sê-Ia, efectí-

vamente, e continuar a sê-lo, apesar dessas negligên-cias; mas, se o não puderdes ser, tereis de vos coibirrigorosamente das negligências, que não podereis com-

• pensar com qualidades superiores (1).Ninguém tem a certeza de possuir talento bastante,

para que se lhe perdoe aquele defeito.Quem começa por contrair maus costumes e vícios

literários, verá sufocadas as suas boas aptidões ou redu-zidas à mediocridade.

A proscrição das repetições, sejam elas quais forem,é pois um princípio absoluto da arte de escrever.

(') Por exemplo, dísponde-vos a ser um escritor de gênio,como Saínt-Sirnon, e já não precisareis de conselhos sobre a artede escrever.

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116 A ARTE DE ESCREVER

É preciso subordinarmo-nos a ele, desprezar qual-quer concessão, qualquer transigência.

Há até ocasiões, em que um solecismo e uma incor-recção são preferíveis a uma repetição.

Quanto mais a vossa prosa for castigada, traba-lhada, irrepreensível, mais deveís evitar as repetições.

Não seria preciso mais nada, para estragar umtrecho excelente.

O célebre soneto de Arvers, que passa por um dosmelhores que se têm feito, e que tornou famoso o seuautor, seria obra-prima, o ideal do soneto, sem mancha.se não fosse lesado por nele se repetir três vezes oparticípio feito.

Para substituir as repetições, podemos recorrer aossinónimos e aos equivalentes. Discutir agora sinónimosnão teria utilidade prática. De uma maneira absoluta,pode-se dizer que não há sinónimos.

Preguiça, ociosidade, indolência, mendiiice têm um-sentido diferente; inquietação, susto, perturbação, agita-ção, não exprimem as mesmas ídeias, assim como fugir,sair, eoedir-se, ir-se embora, escapar, esquiasr-se.

Mas no estilo, que vive de combinações de palavrase de valores de ídeias incessantemente, tais palavraspodem passar por sinónimas e abundam, como tais, emqualquer língua.

Quanto aos equivalentes, pede-se dizer que consti-tuem precisamente a variedade da arte de escrever.

Encontramos em Massilon um pensamento expressosob quatro formas:

-,l

Tudo retoma o seu lugar num estado em que sobretudo 05

grandes e o príncipe adoram o Senhor. A piedade está acredi-tada. desde que há grandes exemplos para ela.

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A ARTE DE ESCREVER 117

I." ~ O culto pode ainoa ser menosprezado sccretamentepelo ímpeto, mas, desforra-se, pelo menos, com a magnificênciapública.

2.° ~ O templo santo pode ainda ver, aos pés dos seus alta-res, pecadores e incrédulos, mas não vê profanadores.

3.° ~ Ainda se podem encontrar homens corrompidos, quenegam o seu coração a Deus, mas não se atreveriam a recusar-lheas suas homenagens.

4.° - Numa palavra, pode ser fácil a perdição, mas a salva-ção, pelo menos, não é vergonhosa.

É pela leitura que nos familiarizamos com estes pro-cessos e que o espírito se habitua a ver as relações dascoisas e a descobrir a expressão conveniente.

Eis aqui como Montesquieu varia a ideia de que,em todos os empreendimentos, era preciso recorrer aPompeu:

Foi preciso fazer guerra a Sócrates, e dava-se essa incum-bência a Pompeu.

Foi preciso fazê-Ia a Mítridates, e toda a gente bradou:Pompeu!

Foi preciso importar cereais para Roma, e o povo julgar-se-iaperdido, se disso não fosse encarregado Pompcu.

Querem destruir os piratas. e lembram-se logo de Pompeu!E quando César ameaça invadir Roma, o Senado também

brada: Pompeu; e só tem esperanças em Pompeu.

É preciso proscrever do estilo o que eu chamo osparasitas, essas ligações, de que se abusa, para esta-belecer transições de frases, como: ejectioemente, certe-mente, de resto, tanto mais, por outro lado, definitiva~mente, por um lado a dizer a verdade, pois, pela suaparte, de seu lado, na verdade ...

As frases devem liqar-se, não com atilhos fictícios,mas com 3 lógica da ídeía, com a força do pensamento.

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118 A ARTE DE ESCREVER

Devem prosseguir a par, indissolúveis, mas pare-cendo que não estão ligadas.

Há casos, já se vê, em que tais ligações são índis-pensáveís e produzem o melhor efeito; é somente con-tra o abuso que protestamos.

Supõe-se que essas partículas encadeiam as frases,as tornam mais correntias ou mais sólidas. Pelo con-trário, vê-se-lhes a fraqueza, porque é evidente a sol-dadura, e porque a verdadeira transição depende doespírito de uma frase e não de uma junção mecânica.

Os estilistas inexperientes abundam nestas espéciesde vegetações parasitárias.

As boas frases não precisam de cavilhas; formambloco. O verdadeiro escritor assenta-as direitas.

Uma vez de pé, já não oscilam. Disto nos conven-cerá a leitura dos mestres.

Vede esta frase de Montesquieu:

~.

Os vícios de Alexandre eram extremos como as suas virtudes:era terrível na sua cólera, e esta tornava-o cruel. Mandou cortaros pés. o nariz e as orelhas a Calístcncs, ordenou que o metessemnuma gaiola de ferro e o levassem assim atrás do exército.

(MONTESQUIEU. Lisímaco).

Ou ainda esta passagem de Salambó, o suplíciode Mato:

Os seus joelhos dobraram-se e caiu brandamente no lajedo.Alguém foi buscar ao peristilo do templo de Mclkarth, umabarra de ferro encandecido por carvão ardente. e. insinuando-ano primeiro grilhão. encostou-a à chaga. Viu-se fumegar a carne:a algazarra do povo abafou-lhe a voz; ele estava de pé.

(F!.AUBERT. Seíembo, pág. 350).

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A ARTE DE ESCREVER 119'

A concisao aprende-se, não só à força de trabalho,mas principalmente pela leitura dos escritores clássicos.

Pascal. La-Bruyêre são, a este respeito, muito apro-veitáveis e, entre os contemporâneos, figura GustavoFlaubert. principalmente nos seus Três Conte-s.

Lição SétimaA harmonia do estílo

Da harmonia. - Necessidade da harmonia. -' Harmonia das pala-~.' vras. - Harmonia natural: Chatcaubriand. - Trabalho de

harmonia: Flaubert. - Harmonia imitativa. - Harmoniapueril.

Explicámos sumàriamente em que consistem as duasgrandes qualidades gerais do estilo: a originalidadee a concisão.

Há ainda outra qualidade muito importante e neces-__ sária: a harmonia, isto é, o sentido musical das palavras

e das frases e a arte de as combinar agradàvelmentepara o ouvido.

A harmonia, para as palavras. consiste no seu pró-prio som.

A harmonia, para as frases. consiste na sua cadên-cia e no seu equilíbrio.

Boileau disse e com razão:

Não apraz ao espíritoA ideia mais sublime,

Quando os ouvidosEstão feridos.

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120 A ARTE DE ESCREVER

Em nosso tempo, a anarquia dos processos literá-rios e a extravagância dos gostos estéticos criaram umareacção injusta, contra a arquitectura do estilo e anecessidade da harmonia.

Parece haverem convencionado que se escreva comose quiser; que já não há ordem lógica; que se podempermitir todas as inversões, fazer esperar a regência,pô-Ia no fim de uma frase; acumular os seus incidentes;em suma, que se escreva como se quiser.

Não nos deixemos influenciar por estas declaraçõesde decadência.

Os maus pintores passarão; o impressionismo sóterá a sua época; as obras-primas ficarão.

Conservemos, portanto, a harmonia como qualidadeessencial da arte de escrever.

Veremos em que caso e por que é preciso por vezesdesprezá-Ia; e mostraremos as qualidades, que se devemcolocar acima dela.

Em princípio, a harmonia faz parte do bom estilo.Todos os grandes escritores a têm procurado;

aqueles até, que zombam dela, não a enjeitaram; e nassuas obras se encontram, a cada passo, exemplos defrases com ritmo, ligações de palavras agradáveis, jogometódico de sílabas.

A harmonia é tão necessária à prosa como à poesia.É o ritmo, que tão amado era pelos Gregos, o

número oratório, o numetus dos latinos.A harmonia não é um agregado arbitrário; baseia-se

no génio da língua, nas exigências do ouvido, que temgosto próprio, como a imaginação tem o seu.

O sentido do ouvido era para Cícero «um juiz altivoe desdenhoso».

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A ARTE DE ESCREVER 121

Toda a força do estilo, pelo menos uma parte dasua força, reside na disposição das palavras.

Ora a harmonia não é senão a arte suprema da dis-posição das palavras, o cuidado dessa disposição. emvista da cadência e do som.

Foi Guez de Balzac o primeiro que deu à prosafrancesa a suavidade, a doçura, o número, o equilíbrio.a ordem, a harmonia.

O seu êxito foi considerável. o seu nome mereceucontar-se entre os grandes nomes da literatura.

Desde Balzac, não houve um só prosador, cuida-doso da arte de escrever, que não procurasse a harmo-nia da forma, como a originalidade das ideias.

Este cuidado conservou-se até Chateaubriand eFlaubert, que escreviam as suas frases, como se asdestinassem a serem lidas em voz alta,

Harmonia das palavras

Falando de Flaubert, diz Guy de Maupassant:- «Algumas vezes, deitado num grande prato orien-

tal, cheio de penas de pato, cuidadosamente aparadaa pena que ele segurava na mão, tomava a folha depapel. elevava-a à altura dos olhos e, apoiando-se numdos cotovelos, lia em voz alta e vibrante, Escutava oritmo da sua prosa, detinha-se, como para apanharuma sonoridade fugidia, combinava os tons, afastava.as dissonãncias, fazia a pontuação conscienciosamente.como se fossem descansos de uma longa carninhada.»

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122 A ARTE DE ESCREVER

C'artas de Flaubert a G. Sand

l

i[t

t'.

Dizia Maupassant:-«Uma frase viverá, se corresponde a todas as

necessidades da respiração. Sei que é boa, quando podeser lida em voz alta.»

No prefácio das Últimas Canções de Luís Bouílhet.acrescentou:

- «As frases mal escritas não resistem a tal expe--riência; oprimem o peito, incomodam o pulsar do cora-ção e encontram-se assim fora das condições da vida.s

Sem largas explanações, que aliás seriam muitofáceis, trataremos, primeiramente, da harmonia daspeleures. e, seguidamente, da harmonia das frases.

Boileau tem razão:

Haja escolha de sons harmoniosos,Evitando-se os sons desagradáveis.

Certas palavras, insuladamente, não têm caracterís-tica, nem som agradável. e só se tornam harmônicaspela sua aliança com outros sons; e outras há até que,conjugadas, produzem durezas insuportáveis.

Regra geral: é preciso abstermo-nos de toda a aspe-reza de som, de toda a dissonãncia notável. a não serque haja razões de relevo de originalidade, ou outrosmotivos de beleza literária para conservar certos sonsde palavras.

Evitai, pois, os choques como estes:

...

Não há nada no mundo,Que Nenine não honre.

(VOLTAIRE) •

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..•.

A ARTE DE ESCREVER 123

E se os seus súbditos, se os seus aliados, se a Igreja univer-sal aproveitou as suas grandezas ...

(BOSSUET) .

Se vós vos ooteis à educação ...

Evitai não só o predomínio das consoantes fortes,mas também a repetição muito frequente de certas vogais,a acumulação de monossílabos, de nasalações, etc.

A junção do que é doce, e do que é suave, convémsempre à formação do estilo (1).

Que negligência ínexplícável dos bons autores podeobrigá-Ias a cometer frases como esta?

Por que é que o rei do mundo.Tão livre e tão prudente,Suporta tantas vezesTão dura escravidão?

(VOLTAIRE) .

(1) Boíleau, na sua Epístola ao Rei sobre a passagem doRena. conseguiu adoçar e fazer tolerar palavras assaz rebeldes:

Os nomes duros. bárbaros •Das Cidades. que tomas.

Só nos exibem sílabas exóticas;E o ouvido indignado.

Para encontrar uma palavra boa.Tem de correr, desde Issel,Até Tesscl ao menos.

Cada praça. vestida do seu nome.Vai brigar contra o verso.Destruindo-lhe a harmonia.E sem estremecer quem é que pode

Abeirar-se de Waõrden? E onde há versoQue não caísse com o estranho nome

De Hcusden?

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124 A ARTE DE ESCREVER

Há por vezes consonâncias desgraçadas, que oautor teria evitado, se houvesse relido a sua frase emvoz alta.

Tendo o padre Maury elogiado não sei que frag-mento de Arnaud, Saínt-Beuve termina assim as suasreflexões:

Não se pode deixar de admirar o entusiasmo do padre Maurypor tão pouco.

(Port-l(oyal).

Outra consonância censurável:

I

I

,Jo Cardeal. vendo o cavaleiro Marcieur vir ao seu encontro,não duvidou de que ele vinha para o observar e tomá-lo à suaconta.

(DueLOS. Memórias Secretas, pág. 257).

o emprego dos «ques>

Uma das grandes causas de dureza no estilo é oemprego frequente dos «ques», e aqui esbarramos numhábito inveterado nos bons autores do século XVII.

O seu estilo está repleto de ques, o que os nãoimpede de que fossem excelentes escritores os quepuseram a firmeza e o vigor acima da harmonia.

Pascal multiplicava os ques.La-Bruyêre serve-se deles a cada passo.Num dos seus prefácios, o prefácio da Mulher de

Cláudio, Dumas filho justifica Moliêre de ter abusadodas conjunções e dos pronomes, sob pretexto de que.

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A ARTE DE ESCREVER 125

escrevendo para o teatro. e para o diálogo. eles desa-parecem com o modo de dizer.

A desculpa não é acertada. visto que todos osautores daquela época. fosse qual fosse o seu género.empregaram correntemente os ques, em detrimento daharmonia.

É certo que este defeito se não nota em cena.quando se lêem estes versos de Racine:

Britanicus est seul: que/que annui qui le presse,Il ne voít à son sort que moi qui 's'ínteresse.li n'a pour tout plaisír, seiqneur, que quelques pleursQui lui font quelque [ois oublíer ses malheurs (').

E fica-se contrafeito. quando se lê em Lamartine:

Igual ao grande César.Que, quando soava a hora ...

Bastará folhear qualquer autor do século XVII. Cor-neille e Racíne nos seus prefácios. Boileau nas suasCartas. Bossuet nos seus Sermões, para se verificaraquela epidemia. que só abranda um pouco a partirde Rousseau, para desaparecer com Chateaubriand. àmedida que a língua se afasta do génio latino.

(') Como a lição se cifra nas palavras grifadas. e elas nãopodem ser todas substituidas por palavras nossas. que a mesmalição representem, reproduzimos o texto, sem o traduzir.

(Nota do tradutor).

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126 A ARTE DE ESCREVER

(LA-BRUYF.RE. Discurso na Academia).

Eis aqui duas passagens. uma de La-Bruyêre, aoutra de Pascal. que caracterizam o abuso dos ques, talqual o encontramos em todos os seus contemporâneos:

Comparaí-vos, se vos atreveís a isso. ao grande Richelíeu:homens dedicados à fortuna que pelo êxito dos vossos negóciosparticulares vos julgais dignos de que vos confiem os negóciospúblicos; que vos inculcais génios felizes e boas cabeças; quedizeis que nada sabeis, que nunca lestes. que nunca lereis, oupara indicar a inutilidade das ciências. ou para parecer que nadadeveis aos outros. mas tudo tirastes de vós próprios; sabei que oCardeal Richelieu soube ql:e leu; não digo que ele se afastassedos homens de letras. mas que os estimou. acarínhou e favoreceu;que lhes tributou privilégios; que lhes dava pensões; que osreuniu numa companhia célebre; que fez a Academia Francesa.

Ele sabia qual a força e a utilidade da eloquência, o poderda palavra. que auxilia a razão e a faz valer. que insinua noshomens a justiça e a probidade. que leva ao coração do soldadoa intrepidez e audácia que acalma as comoções populares. queexcita ao seu dever as multidões; não ignorava o que são osfrutos da história e da poesia. o que é a necessidade da gramá-tica. base e fundamento das outras ciências; e que, para levar-estas coisas a grande perfeição que as torne vantajosas à Repú-blica. é preciso formar o plano ...

Todas as espécies de talento. que se vêem espalhadas entreos homens. são compartilhadas por vós.

Se quiserdes oradores. que tenham semeado do púlpito todasas flores da eloquência, que com uma sã moral, tenham empre-gado todos os circunlóquios e todas as subtilezas da língua. queagradam por uma bela selecção de palavras. que fazem amar assolenidades. os templos. e que os fazem encher: cumpre que osnão procureis algures. porque estão entre vós.

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--A ARTE DE ESCREVER 127

Eis aqui uma passagem de Pascal tomada ao acaso:

E assim, quando se lhes censura que o que eles procuramcom tanto ardor os não satisfaria, se eles respondessem, comodeveriam, que eles pensavam bem nisso, que eles não procuramassim senão uma ocupação violenta e impetuosa, que os distraide pensar em si, e que é por isso que eles procuram um objectoatraente que os encanta e os atrai com ardor, deíxarram os seusadversários sem réplica. Mas não respondem assim, porque senão conhecem a si próprios; não sabem que não é senão a caça enão a presa o que eles procuram ...

Têm um instinto secreto que os leva aprccurar a diversão e aocupação exterior que provém do sentimento das suas misériascontinuas; e têm outro instinto secreto que lhes foi deixado pelagrandeza da nossa natureza primitiva, que lhes faz conhecer quea felicidade só reside efectivamente no repouso e não no túmulo;e desses dois instintos contrários se firma neles um projecto con-fuso, que se oculta a sua vista no fundo da sua alma, que os levaa tender para o repouso pela aqitação e a imaginar sempre que asatisfação que não têm lhes aparecerá se, vencendo algumas difi-culdades que encaram, puderem abrir por ali a porta à tranqui-lidade.

(PASCAL,Pensamentos, capo v).

Entre os escritores de segunda ordem, este abusoatinge um processo seco e uma aspereza desagradável.como podereis avaliar por estas linhas:

Será possível que se não possa encontrar ninguém que repre-sente ao Rei o miserável estado em que está o Padre Du-Breuíl,para obter que se trate ao menos com indulgência um homem debem, como a que têm por um padre tão ruim, como é o que está,presentemente, tão à sua vontade no seu mester em Paris?

(Carta de Arnaud, SAINTE-BEUVE,Port-Roçei,t. v, capo VI).

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128 A ARTE DE ESCREVER

É justo dizer-se que os referidos escritores têmmilhares de páginas, onde quase se não encontram osques, e que tais páginas são as melhores das suas obras.

Quase todos tinham na cabeça a construção lata epreferiram soldar os seus pensamentos com aquelasduas cavilhas a fazer com elas muitas frases.

O abuso dos ques acabou por desaparecer da nossaliteratura.

Flaubert proscrevia-os, como ao maior escolho daharmonia.

É preferível não os multiplicar e servir-nos delessobriamente; mas não há que hesitar, quando a clarezae a originalidade se impõem.

Não obstante, podem suprimir-se, em muitos casos,como nas frases seguintes:

Este costume que achavam-ridículo ...

Por: este costume julgamridículo ...

Esta passagem que é citadaem tal livro ...

Por: Esta passaqern citadaem tal livro ...

o mancebo que avistara na Por: o mancebo avistadovéspera... na véspera ...

O que relativo e o que regime podem substituir-se-quase sempre.

É preciso, pois, quando se escreve, não só evitaro encontro de sons desagradáveis e as más dissonãn-cias. mas também procurar a fluência musical.

Pode-se, assim, precavendo-se, "acostumar o ouvidoao estilo harmonioso e obter, em verso ou prosa, belís-simos efeitos.

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..•.

A ARTE DE ESCREVER 129

Escutai os conselhos, que nos dá um poeta, emversos de uma cadência muito variada:

Se queres descrever ligeiros zé firas,Murmure o suave arroioEm versos suavissimos.

Se referem as ondas agitadasO verbo trocará como torrentes

Correndo em catadupa.Se Ajax ergue um penedo.E o arremessa, com custo.Pesada é cada sílaba.E as palavras arrastam-se.Mas. se vires Camila

Aflorar a serena superfícieDas águas prateadas.O verso voa e ergue-se.Ligeiro, como as aves.

(DELlLLE) •

Quantos exemplos harmoniosos se não podiam tirardos bons autores. quase em cada página!

Um marido chora aos pés do leito onde agoniza suamulher:

Ela já não ouvia de dentro todos os ruídos da terra. senão ointermitente lamento daquele pobre coração. lamento doce eindistinto. como os últimos ecos de uma sinfonia, que se afasta.

(FLAtlBERT. Madame Bovary).

O astro-rei inclina-se ao poenteE desce do seu carro vitorioso.A nuvem flamejante. que o esconde.Mantém no espaço, em sulcos coloridos,Os vestígios do astro e a flux espalha

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130 A ARTE DE ESCREVER

(LAMARTINE) .

Revérberos purpúreos. No horizonte,Campeia a lua, como áurea lâmpada,No azul suspensa, e os seus froixos raiosAlastram-se no campo, e o véu da noite

Estende-se nos montes.

Ouvir das harpas o gemer saudoso,Vaguear, cismando, quando as andaluzasAssomam à janela e atiram flores!

(VíTOR HUGo).

Há palavras que, pela sua cor antiga, grega, latinaou exótica, têm uma harmonia própria, e que, aplicadasnum bom estilo. produzem maravilhosos efeitos.

Ê o que torna encantador o fragmento seguinte, umdos melhores, que se poderão ler:

Uma noite em Roma

Escuta! a minha Egéria canta à beira da sua fonte; ouve-seo rouxinol na vinha do hipogeu dos Cíptões: a brisa lânguida daSíria traz-nos indolentemente o perfume das túberas selvagens ...

Os manes de Délía. da Lálaqe, de Lídia, de Lésbía, de cimadas cornijas desmanteladas. murmuram em volta de ti, palavrasmisteriosas.

Os teus olhares cruzam-se com os das estrelas e confundem-secom os seus raios. Uma nuvem vaporosa ergue-se e envolve oolho da noite. de retina prateada.

O pelicano grita e volta para os areaís: a galinhola descesobre as fontes diamantínas: o sino tange na cúpula de S. Pedro;o cantochão nocturno, voz da Idade Média, entristece o mosteiroinsulado de Santa-Cruz; o monge salmodía, de joelhos, o laudessobre as colunas derruidas de S. Paulo; prostram-se vestais sobrea laje gelada que cerra as suas criptas.

~-

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A ARTE DE ESCREVER 131

Ventos dos laranjais de PaI ermo, que soprais sobre a ilha deCírce: brisa, que passas pelo túmulo do Tasso, que acaricias asninfas e os amores da Farnesina; vós, que doidejais no Vaticano,entre as virgens de Rafael e as estátuas de Musas; vós quemolhais as vossas asas nas cascatas de Tívoli; génios das artes,que viveis de obras-primas e adejais com as recordações, vinde;sómente a vós eu permito que inspireis o sono de Cintia.

(CHA TEA UBRIAND, Memórias).

Evidentemente, todo o efeito harmônico deste fra-gmento procede da magia das palavras.

Algumas palavras têm uma particular sedução, que,aliada a brilhantes epítetos, produz singular encantomusical.

Relede, por exemplo, o retrato do Sumo Pontífice,na Salambó:

Em Cartago, ninguém era mais sábio do que ele. Na suamocidade, estudara no colégio dos Mogbedes, em Borsípa, pró-ximo da Babilónia; depois visitara Samotrácia, Pessínonte, Efeso,a Tessálía, a [udeia, os templos dos Nabateus, que estão dís-persos nos areais, e, desde as cataratas até o mar, percorreu,a pé, as margens do Nilo. Com o rosto coberto de um véu e agi-tando archotes deitara um galo preto sobre uma fogueira desandáracas, diante da Esfinge, mãe do Terror. Desceu às cavernasde Prosérpina; viu girar as quinhentas colunas do labirinto deLemnos e resplandecer o candelabro de Tarento, que sustinha nasua haste tantas lâmpadas, quantos os dias do ano.

(FLAUBERT. Salambó).

E estes belos versos de linguagem tão doce:

o Ânio inda segredaAos rochedos de TíburUm doce nome. Cintia;Vauclusa inda conserva

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132 A ARTE DE ESCREVER

Outro nome querido. que é o de Laura,E Ferrara. nos séculos futuros.

Há-de repetir sempreO nome de Leonor.Oh! ditosa a beleza.Que os poetas adoram!

Há um encanto. uma música especial. não somentenas palavras exóticas e raras. mas até nas palavrasordinárias da língua. segundo o emprego que se fazdelas.

A prova de que há certa harmonia nas palavras.consideradas em si próprias ou conjugadas. é que seobtêm com elas. muito Iàcilmente, efeitos de harmoniaimitativa. e-

As palavras vêm alinhar-se por si mesmas debaixoda pena:

O reboar surdo do trovão ...O leão redobra os seus rugidos ...Ela ouvia ainda o movimento rítmico dos mil pés que dan-

çavam ...(FLAUBERT) •

O rugido do leão. rouco e cavernoso. como um eco numaqueduto.

(FLAUBERT) •

Os peitos estalavam como caixas. sob os pés dos elefantes.que os esmagavam.

(FLAUBERT) .

O vento áspero soprava sobre aqueles crânios insepultos.

(V. HUGo).

A tristeza salta-lhe para a garupa e galopa com ele.

(BOlLEAU).

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A ARTE DE ESCREVER 133

A fadiga:

Num íngreme caminho pedregosoEm que o sol dardejava,Seis valentes cavalosPuxavam por um carro.Mulheres. frades. velhos.

Todos ali se tinham apeado.Os cavalos suavam.

Arquejavam e o passo suspendiam .

. (LA-FoNTAlNE).

A preguiça:

Ouvindo tais palavras. a preguiçaSente a língua qelar-se-lhe na boca.Escusava de ter falado tanto;Boceja. estende os braços.Fecha os olhos e dorme.

(BoILEAu).

o vento:

Enche-se de pavoresComo um balão. fazendo

Burburinho infernal; sopra. ruge. estrondeia ...

(LA-FONTAlNE) .

Há um século que a prosa francesa é manejada porartistas, que a solidificaram de uma forma admirávele lhe fizeram emitir novas sonoridades (Chateaubríand,Gautíer, Huqo, Flaubert, Leconte de Lísle, Heredia, etc.}.

A linguagem, com efeito, tem evidentes harmonias.Pode exprimir a rapidez. por uma sequência de

sílabas breves:

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"'-----

134 A ARTE DE ESCREVER

o momento, em que falo, está já longe de mim;

ou a lentidão, por uma seqüência de sílabas longas:

Traçam difícil sulco os passos vagarosos.

É preciso um esforço para ler tal verso.Também Boileau dá uma impressão de luta e de

obstáculo nestes versos sobre a tomada de Namur:

... Sobre montões de lanças,Cadáveres e penedos,Abrir caminho largo.

Um crítico, para caracterizar a dureza, dirigiu estaestrofe a Vttor Hugo:

Onde haverá quem bem te exalte, ó Hugo?Quem te íará justiça?De rochedo em rochedo,

Quando subirás tu, ó homem raro,Ao monte, que se chama Academia? ...

Não obstante, esse mesmo Vítor Hugo escreveumilhares de versos, de uma irrepreensível harmonia:

Na sombra nupcial. solene e augusta,Os perfumes da noitePairavam sobre Gálgala;

E dos moitedos de albas Iiláceas,Um fresco e doce aroma se evolava.

o emprego da harmonia imitativa só pode ser pas-sageiro.

Seria um abuso procurá-Ia sempre, e caie-se-ia no

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A ARTE DE ESCREVER 135

artificial e no pueril, como nestes versos, em que Ron-sard quis imitar o voo da andorinha:

Guiada pelo zéfíroSublima-se no espaço.Volteia. revolteía,E solta um lindo grito.Em que há risos e tais bálsamosPara os nossos espíritos.Que não sei descrevê-los.

o que se deve realizar, o que se deve procurar,é a harmonia geral das palavras, por uma feliz mesclade vogais e consoantes, de longas e breves. como nosversos seguintes, que têm uma flexibilidade e uma varie-dade notáveis:---~

-to'

Como nuvem que passa.Desvaneceu-se a minha primavera!

E nunca mais meus olhosVerão os traços da fugaz ventura.

Arrebatados à terraPelo sopro cruel da tua cóleraIrei adonde nunca mais se volta.Os meus vales. a minha moradia,

E estes olhos que choram.Não mais verão os meus passos.

(LAMARTlNE) •

Marmontel diz:

- «As vogais não são todas iguais e bilhantes;a voz agrada mais no som do a e do 0, que nas outrasvogais.»

Compete a um ouvido exercitado distinguir todosesses cambiantes e evitar as palavras que produzamsom desagradável e repreensível.

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136 A ARTE DE ESCREVER

A prosa oferece tão belos efeitos como a poesia naarte de dar vida a uma imagem pelo som das sílabas:

A coruja voa silenciosamente. como enchumaçada de algodãoem rama. A comprida doninha introduz-se no ninho sem tocarnuma folha. A Iuínha fogosa, de sangue quente, é tão rápida,que num momento sangra pais e filhos, degola toda a família.

(MICHELET) •

Ainda uma vez, não vos deveis preocupar com asdificuldades, que pode apresentar a procura da har-monia imitativa. Fàcilmente a encontrais.

Todas as línguas têm os sons necessários para pro-duzir um movimento, ou uma impressão física.

Pouco é preciso juntar a palavras como assobiar,murmurar, gritar, estalar, uivar, mugido, uivo, eco,gorjeio, murmúrio, clamor, burbuiinho, gemido, paraobter a harmonia imitativa.

Disse Villemain:

o carácter primitivo das línguas está em fazer-se ouvir, o maisque se possa, o objecto e a ideia pelo som; e esse carácter é-lhetão essencial, que resiste a todas as épocas ... A língua figurativa,aquela que pinta pelo som, ficou sendo a força e a vida de toda alinguagem humana; e o espírito do homem nunca renunciaráa ela.

Esta relação do som com o objecto não é limitada a algunscasos, em que nos impressiona por uma forte onometopeie, encon-tra-se em toda a parte; nas palavras compostas da nossa língua,como nos derivados das línguas estrangeiras, para a expressãodas ídeías, como para a expressão das coisas.

Tal relação é, a certos respeitos, a primeira etimologia daspalavras.

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A ARTE DE ESCREVER 137

Não é somente por imitação de grego. ou do latim tremere,que fizemos a palavra [remir; é pela relação do som com a como--ção que se exprime.

Horror, terror, meigo, suave, corar, suspirar, pesado, leve,não vieram para nós do latim somente, mas do sentido íntimoque reconheceu e adaptou esses termos. análogos à impressãodo objecto.

Lição Oitava

A harmonia das frases

A harmonia das frases. - O equilíbrio. - A construção. - Osperíodos. - Como construir uma frase? - Processos contem-porâneos. - A Proposição. - Digressões e desvios. - Har-monia por coesão. - Importância da harmonia. - A falsaharmonia.

Assim como as palavras. segundo os sons e as suascombinações. produzem uma harmonia. que anima oestilo. assim a construção das frases produz uma har-monia geral. que domina o estilo e lhe dá a sua cadên-cia. o seu aspecto definitivo.

Uma frase tem número, quando está construí da ese desenvolve num ritmo largo segundo as exigênciasda respiração.

Um período é uma frase. dividida entre alguns mem-bros (os quais se podem subdividir em frases incidentes)e cujo sentido completo está suspenso até a última eperfeita pausa.

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138 A ARTE DE ESCREVER

A construção das frases é o segredo da arte deescrever.

Como há uma infinidade de maneiras de construirfrases. o que depende da maleabílídade pessoal do espí-rito seria difícil dar conselhos minuciosos.

Fixemos observações gerais. alguns princípios. queexplicam a maior parte dos casos.

Seja qual for o assunto de que se tratar. não énecessário escreverem-se sempre longos períodos.

Não se deve adoptar mais o estilo de frases longas.do que o estilo de frases curtas. A mescla é que produza variedade. Nada é mais agradável. do que descansaro espírito em frases breves. depois de termos lido frasesmajestosas.

Um estilo amplo e firme é todavia mais sedutor.de mais relevo e mais estimado. do que um estilo defôlego curto.

Os belos períodos provam que se tem fôlego. Comigual mérito. as frases curtas serão sempre de maisdifícil realização.

Os belos períodos exigem trabalho complicado. aopasso que um artigo de jornal se pode fazer sem grandeesforço.

O período constitui o mecanismo mais importanteda arte de escrever. É uma parelha que tem de seguiar. Não se devem perder as guias de nenhum doscavalos que governamos; cumpre caminhar sempre paraum alvo, obviar os obstáculos, alinhar bem as regências.conservar a clareza e a lógica, prodigalizando imagens.

Não há grande dificuldade em explicar as diversasformas, que um período pode tomar. Convém todavia

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A ARTE DE ESCREVER 139

que o leitor, que decerto as conhece, tão bem comonós, tenha sob os olhos alguns exemplos de períodos,com o auxílio dos quais poderá avaliar o alcance dosnossos conselhos.

Perlodo de dois membros sem incidentes

Seja qual for a indiferença do nosso século pelos talentos queo honram, ~ presta, pelo menos, justiça àqueles que já nãoexistem.

(TOMÁS).

Poderia juntar-se um incidente a cada um dos doismembros daquele período simples, e ter-se-ia um períodode dois membros com incidentes.

Podemos, como é fácil ver-se, juntar a cada membroum ou dois incidentes.

Perlodo de dois membros com Incidentes

Aquele que reina nos Céus, e de quem dependem todos osimpérios e a quem só pertence a glória, a majestade e a indepen-dência, ~ é também o único que se glorifica de fazer leis para osmonarcas, e de lhes dar, quando lhe apraz, grandes e terr iveislições.

(BOSSUET) .

Perfodo de três membros

Se a equidade reinasse no coração dos homens; se a verdadee a virtude lhes fossem mais queridas do que os prazeres, a fortunae as honras, nada poderia alterar a sua felicidade.

(MASSILON) .

o que produz o encanto e o brilho de um períodoé o andamento progressivo das palavras e das idéias.

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140 A ARTE DE ESCREVER

Perlodo de quatro membros

Amar-vos um pai - é um sentimento que a natureza ins-pira; - mas ter-nos um pai, tão esclarecido, testemunhado essaconfiança, até ao último suspiro, é o mais belo testemunho quea vossa virtude poderia lograr.

(BoSSUET) .

Há longas frases, que nem por isso são períodos r,

mas simplesmente frases inumerativas:

Vereis numa só existência todos os extremos das coisas huma-nas; a felicidade sem limites, assim como as misérias; uma longae tranquila fruição de uma das mais nobres coroas do Universo; J.""tudo que de mais glorioso pode dar o nascimento e a grandeza,acumulados sobre uma só cabeça, que, em seguida, é exposta atodos os ultrajes da fortuna, etc,

(BOSSUET).

A primeira condição para se escrever uma frase,seja qual for a sua extensão, é observar-lhe bem alógica, o equilíbrio e a proporção. ~

A lógica.Devem construir-se as frases, segundo a ordem natu-

ral dos pensamentos e das regras gramaticais; o sujeito,o verbo e o atributo.

Não se deve dizer:Deus deu a todas as criaturas humanas a sua graça.Mas:Deus concedeu a sua graça a todas as criaturas

humanas.Também se não deverá dizer:Esta prova pareceu a todos os filósofos insuficiente;

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A ARTE DE ESCREVER 141

mas sim: esta prova pareceu insuficiente a todos osfilósofos.

E assim, numa frase mais longa, em vez de:Como ousar crer, após tais ameaças, que ele volte?Dír-se-á :Como ousar crer que ele volte depois de tais ameaças?Os complementos estavam muito afastados dos ver-

bos que os regem; era preciso colocá-Ios mais próximos.Falta de lógica, que é também falta de harmonia.

A prova é que podeis, alongando o defeituoso mem-bro da frase incriminada, empregar o mesmo arredou-<lamento, que deixará assim de ficar defeituoso.

Poderá, portanto, dizer-se, aceitando estes exemplos:

Deus concedeu a todas as criaturas humanas a sua graçadivina e fortificante, essa graça de que é pródigo. etc.

Esta prova pareceu a todos os filósofos insuficiente e malapresentada.

Como crer, após tais ameaças, que ele volte. que se atreva aapresentar-se?

~ Defeito de disposição e de lógica, de que resultaum estilo estropiado. é o que se nota nesta frase deum autor contemporâneo:

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Fora atingido por uma dessas febres terríveis. cuja extraor-dinária violência só se pode avaliar. experimentando-as.

Lemos ultimamente. na Revista dos Dois Mundos,esta frase de um acadêmico ilustre:

Passou em revista o dogma católico. com uma se.gurança dedoutrina. igual ao brilho da sua palavra.

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142 A ARTE DE ESCREVER

São construções dissonantes, que raiam pela incor-recçâo.

Saínt-Beuve descreve uma procissão das raparigasde Pon-Royal.

A proporção dos membros de frases entre si produzo equilíbrio e a harmonia de um período.

É preciso que os incidentes ou as proposições prín-

cipais sejam, entre si, pouco mais ou menos, de com-primento igual, e que a frase termine em sonoridadeextensa.

Noutros termos, é preciso que a construção sustentea voz sem a fatigar; que haja nela, de distância emdistância, pausas de sílabas, com bastante variedade nacadência, para evitar a monotonia de estrutura; e, Final-mente, que tudo isto se observe, sem detrimento da ela-reza e da concisão.

Bossuet possuiu, no mais alto grau, esse dom admí-rável, já nas suas frases simples, já nos seus períodoscomplicados.

Eram mais brilhantes de caridade, que os círios que levavamnas mãos.

Dír-se-ía que um círio pode ser também brilhantede caridade.

Construindo melhor a frase, ter-se-ia dito sem anfi-bologia:

A caridade tornava os seus rostos mais brilhantes. que os ciriosque levavam nas mãos.

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A ARTE DE ESCREVER 143

Eis aqui uma frase simples que é modelo de har-monia, de talhe, de pausa e descanso final:

Esta orgulhosa sabedoria do século, que, não podendo com-preender a justiça das vias de Deus, emprega todas as suas falsasluzes em contrariá-Ias, é maravilhosamente confundida pela dou-trina do Evangelho e pelos sagrados mistérios do Salvador Jesus.

(BOSSUET) •

Lede também em voz alta o seguinte trecho deBossuet, mais complicado, mas requintado no desenvol-vimento e na pausa harmônica das vogais:

Multiplícai os vossos dias, como os veados e os corvos que aFábula ou a história da Natureza faz viver, durante tantos séculos;durai tanto como esses grandes carvalhos, sob os quais os nossosantepassados descansaram e que darão ainda sombra à nossa pos-teridade; amontoai nesse espaço, que parece imenso, honras, rique-zas, prazeres; de que vos servirá esse amontoamento, visto queo último sopro da morte, tão fraco, tão débil. abaterá de repenteessa pompa vã, com a mesma facilidade com que se desfaz umcastelo de cartas, fútil entretenimento de crianças?

Para se obter harmonia, não há melhor regra, queo conselho dado por M. A. Henry, no seu Curso deLiteratura:

Fazeí que o som se sustente ou vá mesmo em crescendo atéo fim da frase e que esta termine com os membros mais extensose as palavras mais sonoras.

É preciso, noutros termos, que a melodia vá cres-cendo e se vá ampliando, como neste exemplo:

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144 A ARTE DE ESCREVER

A quem impende tocar os corações. senão à verdade? Ela éque há-de aparecer a todos os corações rebeldes no dia final. Sim.deparar-se-lhe-à, até no fundo do abismo; espectéculo horrível aseus olhos; peso insuportável sobre as suas consciências; chamasempre deooredore em suas entranhas.

(BOSSUET).

Quintíliano preceituou:

- «Não haja nada de duro nem de precipitado.no final do período. Ê aí que o espírito respira e sedesafoga; o descanso do discurso.»

A maior parte dos escritores da nossa época per-deram o gosto das belas construções clássicas. dos dís-eretos preceitos da frase bem feita.

Tem-se abusado dos incidentes. deploràvelmente.Em vez de se cuidar da arquitectura da frase. como

fez Flaubert, com uma consciência a que a crítica deveprestar justiça. hoje em dia gostam mais de escrever.como direi? confusamente. fazendo seguir os incidentes.uns após outros. de forma que as frases se sobrecar-reguem de palavras e fiquem longas sem ficarem equí-libra das.

Há um defeito de proporção e uma falta de lógica.a que é difícil habituarmo-nos, quando acabamos deler grandes escritores clássicos.

Fingem desdenhar da forma. para se não preo-eu parem senão da sensação.

Os Goncourts principalmente foram os mais auda-ciosos desarticula dores do antigo estilo; tudo partiram.misturaram. confundiram e trituraram.

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A ARTE DE ESCREVER 145

Eis aqui uma frase característica, que representa bema acumulação e o abuso dos incidentes, de que falámos.

Trata-se da passagem por Paris, de uma famosapintora:

La-Tour pudera assistir a esse triunfo do pastel. a essa for-tuna dos carvões da Veneziana, visitada pelo Regente, procuradapela alta sociedade, cheia de comendas e de dinheiro, solicitada,exorada, para um retrato pelos Paraberes e pelos De-Príes, pelasmais nobres damas da corte, apaixonadas pelo encanto dessa arte,que dá à mulher não sei que tênue 'Vida de nuvem, um quê desemelhança com uma flor colorida.

(E. E J. DE GoNOOURT, A Arte do século XIX 1.& série,pág. 324).

Como se vê, os incidentes e os particípios estãoligados seguidamente, como um rosário.

Ora se referem à «Veneziana», ora às grandes«damas da corte», ora ao «encanto daquela arte», etudo na mesma frase, por um escandaloso processo demistura acumulativa.

Zola não escreve de outra forma.Uma escola inteira se pôs a explorar esse género

de impressionismo descritivo, que consiste em descons-truir a frase e o estilo.

Em verdade diremos que será sempre mais difícil,mais estético e mais meritório fazer um belo período;e depois, as descrições de Chateaubriand, principal-mente nas Memórias de Além-Túmulo, posto que deum estilo clássico e regular, não têm menos intensi-dade e são tão vivas, tão modernas, como as descriçõesde hoje.

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146 A ARTE DE ESCREVER

Pedro Loti, o autor comovente do Pescador deIslândia, é também um dos que mais empregaram nesteproveito da sensação crua, o estilo descrito:

Todas as minhas impressões cambiantes desta noite se fun-dem agora neste desejo enternecido de a tornar a ver, em impulso,quase sem esperança, para ela.

(LOTI. Fantasma do Oriente, pág. 39).

Ou ainda:

Somente na sua visão final ele imaginara ... ~ Da primeiravez que ela o avistou, aquele Yann ... ~ Aquele pequeno Silves-tre tornara-se desde logo numa espécie de irmão... E. nas suasbodas, estavam lá todos, aqueles que ele tinha convidado outrora,todos, excepto Silvestre, que fora dormir para os jardins encan-tados, muito longe do outro lado da terra.

(LeTI, Pescador de Islândia).

Mas daqui não se conclua que autores, como Loti,não são escritores notáveis. Seria cair num preconceitoe condenar, ao mesmo tempo, o estilo desordenado deSaínt-Símon, que não brilha pela harmonia, nem pelaordem, nem pela construção.

O estilo, que se observa em nosso tempo, é o resul-tado da própria evolução da arte de escrever, nos últi-mos trezentos anos.

Demais, cada um escrever como pode e como quer,visto que o estilo é a expressão individual do pensamento.

Num livro contudo, como este, num livro de teoriase de demonstrações, é preciso aconselhar que se remonteàs origens, à unidade, à tradição da língua. aos pro-

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A ARTE DE ESCREVER 147

cessos lógicos e clássicos da verdadeira e grande artede escrever.

Observemos o desleixo, a afectação, a extravagânciados processos; e desculpemo-nos, porque isso também éestilo; mas não os tomemos como lição ou exemplo.

Em resumo, a proporção, o equilíbrio, a lógica sãoo que deve determinar a priori, a harmonia de umafrase; e é cuidando especialmente dos finais que seobterá o efeito musical, completo.

A frase deve ser cadenciada, bem terminada, bemproporcionada. Se, num primeiro membro, pusestes doisou três epítetos, é preciso pôr igualmente dois ou trêsno segundo membro.

Sem isso, o estilo tem qualquer coisa de casual, deincompleto, um andamento de quem cavalga.

Impressionável e viva na juventude, indiferente e pesada navelhice, a imaginação diminui e perde-se, à medida que o corpoenfraquece.

Eis aqui uma frase que não é harmoniosa, quer seleia com os olhos, quer se diga em voz alta.

Emparelhemos outro verbo com enfraquece. e tere-mos esta frase:

Impressionável e viva na juventude, indiferente e pesada navelhice, a imaginação diminui e perde-se, à medida que o corpose gasta e enfraquece.

O perigo está em que, quando se quer balancearo equilíbrio das palavras, se juntem palavras inúteis einexpressivas.

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148 A ARTE DE ESCREVER

É o pior defeito; antes a dureza e a dissonância,o enfado e a vulgaridade.

Os membros de frases, o número dos verbos ou dosepítetos devem, portanto, corresponder-se sempre; edevem as frases terminar, quanto possível. musicalmente,como nestas melodiosas linhas:

o justo considera a sua vida, ora como o fumo, que se eleva,que se rarefaz elevando-se. que se desvanece nos ares; ora comoa sombra que se estende, se contrai, se dissipa, escura, viva efigura fuqidía.

(FLÉCHIER) .

Evitai acumular, numa só frase, pensamentos quenão têm relação bastante entre si e com os quais sepossam formar algumas frases separadas.

Assim, esta frase de uma tradução de Plutarco,citada por Blair:

Os Gregos (comandados por Alexandre), marchavam atravésde uma região inculta, cujos habitantes selvagens não tinhamoutra riqueza. senão uma raça de carneiros de má qualidade. cujacarne era insípida porque se alimentavam continuamente de peixedo mar.

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Como se vê. passa-se aqui de um sujeito a outro,as ídeías acumulam-se, atropelam-se, sem razão. Serianecessário fazer duas ou três frases e dizer:

Os Gregos marchavam através de uma região inculta. Os sel-vagens. que habitavam essa região. não tinham outra riqueza.'senão uma raça de carneiros ruins; além de que a carne dessesanimais era insípida. porque se alimentavam. etc.

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A ARTE DE ESCREVER 149

Devemos evitar também as digressões e os parêntesis.Por digressões, compreendo os caminhos de través,

os desvios que a ídeía principal pode tomar, passandobruscamente de um objecto para outro, como nesteexemplo:

Logo que deixei a carruagem, os meus amigos acompanha-ram-rne e apresentaram-me ao dono da casa, que me recebeu coma amável solicitude. cujo segredo ele e os seus possuíam, desdeque habitavam aquela velha casa ediiicede garridamente à beirado mar, cujas águas azuis se viam agitar e brilhar, à luz do sol.

Exageramos talvez o processo, para que ele ímpres-sione os vossos olhos.

Uma frase é um pensamento capital.Para sermos fiéis ao sentido, à lógica, à harmonia.

é necessário que os acessórios a não apouquem, e a nãofaçam nunca perder de vista.

Os parêntesis prejudicam igualmente a harmoniadas construções.

Eis uma frase de La-Bruyêre :

A maior parte dos homens para conseguirem seus fins, sãomais capazes de um grande esforço, do que de uma longa perse-verança.

Bastaria um parêntese para a estragar se díssês-semos por exemplo:

A maior parte dos homens. para conseguirem os seus fins(cada qual tem um fim em vista). são mais capazes de um grandeesforço, do que de uma longa perseverança.

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150 A ARTE DE ESCREVER

Sobretudo não acrescenteís nada às frases, quandose vêem concluídas, como neste exemplo aduzido porBlair:

Alguns espíritos presumidos censuram tão grosseiramente apoesia antiga, para dar preferência à poesia moderna, que se nãopode ler nem o elogio de uma nem a crítica da outra, sem indigna-ção, sentimento que é vivamente despertado pela arrogância.

Este último membro juntou-se à frase, para a arre-dondar; mas, realmente, é inútil, porque nada acrescenta.

Examinando de perto o tom e o som dos estilos dosdiversos escritores, pode dizer-se que há duas espéciesde harmonias: uma é ampla, voluntàriamente extensa.majestosamente solene, produzida, não só pela combi-nação das frases, mas em que também entra o efeitomusical de certas palavras imaginosas, coloridas eexcepcionais.

Cabe nesta categoria aquele fragmento célebre queFontanes nunca podia reler sem chorar:

Ligeiros barcos da Ansónia, sulcai o mar calmo e brilhante;escravos de Neptuno, desfraldai a vela, ao sopro amoroso dosventos ...

Voai, aves da Libia, cujo colo flexível se curva graciosamente;voa i para a cumeada de Itome c ide contar que a filha de Homerovai tornar a ver os lauréis da Messéníal

Quando encontrarei eu o meu leito de marfim. a luz do diatão querida dos mortais. os prados matizados de flores, e regadosde água cristalina ...

(CHATEAUBRIAND. Os Mártires).

A poesia não tem música mais divina, do que umaprosa assim.

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A ARTE DE ESCREVER 151

Há um segundo género de harmonia. peculiar aosescritores. que a não procuram precisamente nas pala-vras e na fisionomia das palavras.

Esta harmonia resulta apenas da coesão.Em geral, quando se não pode cortar uma palavra

numa frase. e as palavras dela se mostram estreitamenteunidas. acha-se harmonioso o estilo. apenas pela forçada concisão.

Assim escrevem Montesquieu, La-Bruyêre e PascaI.Toda a harmonia que se não identifica com a frase.

que não é resultado da precisão do estilo cerrado. éapenas harmonia artificial.

Diga-se. desde já. que a harmonia faz parte dogosto de escrever; não é uma coisa absoluta, matemática.

A combinação dos sons realiza-se à medida que seescreve: a escolha das palavras majestosas ou musicaisproduz-se instintivamente.

O dom da harmonia adquire-se à medida que setoma cuidado com ela e que se relê o que se escreve.

A cadência de uma frase é apenas questão de cons-trução.

É preciso possuir fôlego e escrever largamente.E então se poderão dar ao assunto proporções harmo-niosas.

Para ver se se obteve o equilíbrio musical, é precisoreler em voz alta o que se escreveu.

Não se diga que os livros são destinados a serlidos e não ouvidos! Os olhos também 'Ouvem os sons.E assim como o músico ouve a orquestra. percorrendouma partitura. bastará ler-se uma frase, para se lhesaborear a cadência.

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152 A 'ARTE DE ESCREVER

Contudo, devemos convencer-nos de que a harmonianão é uma qualidade, senão quando associada às outrasqualidades do estilo.

Moliere e Racíne são dois exemplos notáveis danecessidade relativa da harmonia.

Racine fez certamente os versos mais harmoniososda língua francesa. É o poeta por excelência.

Molíere escreveu os versos mais felizes, os mais bemconcatenados, os mais inesperados, os mais enérgicos,que se podem ler.

E, não obstante, os seus versos são ásperos, disso-nantes, escritos ao acaso dos sons e da cadência.

É que há uma certa beleza de pensamento absoluto,que está acima até da harmonia e que a pode dispensar.

La-Fontaíne não teve receio de escrever versos extre-mamente duros, como estes dos Animais Doentes dePeste:

... Mas eu penso,Que é bom que cada um acuse assim como eu.

Em nossos dias, desde o romantismo, com a culturada fluência, da elegância, da ponderação musical dasfrases, habituaram-se. e muitas vezes com razão, a pôra ideia e a imagem acima de tudo.

É assim que Vítor Hugo escreveu tantos e belosversos, já no teatro, já nas outras suas obras, sem sepreocupar do som das sílabas.

Apesar disso, o cuidado da harmonia, deslocadotalvez e modificado pela poesia, que se chamou livre,não abandonou Vitor Hugo, mais que a Leconte del'Isle, a Herédía e aos nossos modernos poetas.

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A ARTE DE ESCREVER 153

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Opor-nos-ão o exemplo de Saínt-Símon, que escre-veu à toa, e quis fazer realidades. Isto prova que ogénio e a realidade vão adiante e dispensam tudo: eque o que se deve ver primeiro é a originalidade, odom de pintar, o dom de imaginação e de criação.A harmonia vem depois.

Ê certo que a harmonia, só por si, quando não háfundamento para ela, só serve para tornar fastiento oestilo, e que se torna então uma qualidade insuportável.

Só é essencial ao estilo, quando tira o seu encantodo valor das palavras e não do seu manejo, que ésempre fácil de se obter, e que algumas vezes é ela-ramente oco.

Diz Buffon:--- «Bastará possuir-se um pouco de ouvido, para

evitar as dissonâncias, e tê-lo exercitado e aperfeiçoadocom a leitura dos poetas, para que, mecânicamente, seja-mos levados à imitação da cadência poética e do tor-neado oratório.»

Nada é mais acertado.Uma frase parecerá harmoniosa; mas se os termos

não forem empolgantes. se a idéia não tiver relevo. sehouver palavras de mais, a harmonia só servirá parafazer sobressair a trivialidade.

O Visconde de Arlíncourt, esse Chateaubriand semtalento, é disso memorável exemplo.

A sua prosa é harmoniosissima, mas como nada temdentro dela, dá vontade de rir, apesar do inexplicávelêxito que ele logrou com os seus romances O Solitárioe Os Três Castelos.

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154 A ARTE DE ESCREVER

Avaliem-se as minhas palavras por estas linhas.tomadas ao acaso:

o dia tinha sido sufocante e a brisa da noite estava aindaimpregnada desses pesados calores de Junho, que parecem prelu-diar as tempestades.

Os jardins do solar acabavam de se iluminar com vidroscoloridos. Os tablados de um belo fogo de artifício elevavam-sesobre um dos relvados do parque; e os bosquetes de Suzannintomavam um ar festivo, de encanto, e enchiam-se de uma rnulti-dão, ávida de comoções. Uma brilhante orquestra fora colocada.não longe do castelo, ao fundo de uma sala de baile campestre.disposta sob uma tenda de lona vermelha, ao centro de um grandemaciço de árvores.

Aquele retiro, guarnecido de flores, donde saíam ondas deharmonia, era rodeado de palanques, ladeados de espelhos, sobre-carregados de candelabros e coroados de lustres. Pleiteavam alipreferências a graça e a riqueza, o esplendor e a elegáncia.

Por toda a parte, aspectos encantadores, novas surpresas;aqui, um pavilhão de música, onde jovens cantores entoavamárías modernas; além, um teatrinho de folhagem, onde distintosactores deveriam, alternadamente, cantar uma opereta e executarum bailado. De todos os lados, os brasões da Marquesa, em pin-tura e iluminações. Tudo isto só tinha um defeito, mas um defeitocruel e mortal: muita pretensão e pompa, um exagero contínuoem todas as coisas, ruído fatigante, e um alvo constantementetransposto.

...

(ARUNCOURT.Os Três Castelos, I, pág. 140).

Este texto é tão harmonioso como oco. As cincoprimeiras linhas do segundo parágrafo são admirável-mente musicais.

Mas a harmonia é um ornato, que mais faz sobres-sair a miséria daquele estilo.

Devemos portanto amar a harmonia, procurá-Ia,

--,-,--c-- ~ ------~---- •••-__. ••••••

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A ARTE DE ESCREVER 155

cultivá-Ia. mas nunca em detrimento da vida. do relevo.da observação. da originalidade. Deve ser uma quali-dade por acréscimo. É preciso colocar acima dela o valorda ideia e a qualidade das palavras.

Os autores franceses. cuja leitura é. a tal respeito.mais proveitosa. são Chateaubriand. Bossuet. Buffon eFlaubert.

Lição Nona

...•.I

A Invenção

Como se inventa. ~ A gestação. ~ A sensação pessoal. - Esco-lher assuntos verdadeiros.

Já dissemos quais são as condições fundamentaisda arte de escrever.

Examinámos as três grandes qualidades que deveter o estilo e que. em nossa opinião. resumem todasas outras.

Sem nos demorarmos em rotular o que se chamaas figuras e as imagens. de que falaremos pràticamenteem próximas demonstrações. tratemos de explicar comose pode aprender a escrever e a pôr em prática asaptidões, com que a natureza nos dotou.

Principiaremos pelo estudo da composição.A composição literária pode definir-se: a arte de

desenvolver um assunto; ou. por outras palavras. a artede encontrar ideies, de as combinar, e de as exprimir.

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156 A ARTE DE ESCREVER

Daqui esta divisão lógica e natural:Invenção.Disposição.Elocuçêo.Estas três operações não são rigorosamente distin-

tas; pelo contrário. não se podem separar.Encontrar um assunto é já díspõ-lo ou pô-lo em

ordem. desde que o observemos e o estudemos. Asvezes. no próprio momento em que se descobre umasituação. uma cena. vem-rios a expressão e tomamosnota dela. para não nos esquecermos. Em tal caso. aelocução antepõe-se à invenção e à disposição.

Aquela divisão porém é boa. geralmente falando.Trataremos da elocução em último lugar e demo- --::~

radarnente, porque ela engloba também a invenção e adisposição. visto que faz descobrir coisas novas. que sedevem pôr em ordem.

A Invenção

A invenção é o esforço de espírito. com que se encon-tra um assunto e os desenvolvimentos que se relacionamcom ele.

Para descobrir um assunto e os recursos que elesugere. a primeira condição é reflectir nele. amadure-cê-lo para romance. fábula. diálogo. descrição. narra-tiva ou discurso.

Disse Buffon:«:É por não ter reflectido bastante sobre um assunto

que um autor se vê embaraçado para escrever.»Portanto. deve sentir-se o assunto.

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A ARTE DE ESCREVER 157

o difícil não está no escrever, mas no sentir.Eis um grande princípio: só se escreve bem. quando

se sente bem.Sucede-vos um acidente, uma dor; Ferve-vos um

episódio da vossa vida.Nada mais fácil do que sentir tais assuntos; e, se

quereis descrevê-los, Iá-lo-eis excelentemente.A dificuldade está em escolher um assunto estranho,

atraí-lo, assimilá-lo, torná-lo familiar, para o poderdesexplorar sob todas as faces, até qu~ dele fiqueis cheio,saturado.

Se as ideías não vierem, é que o assunto não estábem amadurecido.

É preciso pensar nele bem, demoradamente, até quese fique num estado de efervescência tal, que se sintaa necessidade de nos desembaraçarmos dele.

Só então é que virá a verdadeira fluência; a verda-deira inspiração.

A necessidade de trazer muito tempo um assunto.a gestação, numa palavra, é uma condição absolutado dom de escrever.

Evidentemente, cada um tem o seu processo dife-.rente para operar.

Há quem, como Rousseau, não possa escrever senãodepois de ter pensado demoradamente; de forma queas suas páginas estavam traçadas na sua cabeça, antesde o estarem no papel.

Outros, pelo contrário, como Chateaubriand, nãopodem pôr-se em ebulição, senão sentados à sua secre-tária; e tanto, que de Chateaubriand se disse que «a suapena fazia fogo sobre o papel».

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158 A ARTE DE ESCREVER

Da escolha do assunto e da sua incubação prepa-ratória depende o valor do trabalho.

A invenção consiste em sentir um assunto e dar aimpressão que ele produz na vossa imaginação e navossa sensibilidade.

Pela imaginação e pela sensibilidade, aplicadas eencontradas num tema, é que se descobrem as relações,as ideias, as aproximações e as imagens que o temaencerra.

Levais uma ideia a um autor dramático.Ele exclama:- «Aí dentro, está uma peça; não vejo, mas há

uma peça.»Trata-se de a ver.Para isso, que fará o autor dramático?Insular-se-à, meditará, aprofundará a ideia, até que

entre nela, até que lhe descubra todas as consequências,todas as estradas, todos os atalhos, todas as clareiras.

Perguntareis:- «Como vedes essa cena? Como a sentis?É que, na verdade, o grande caso está no sentir, seja

ele de que forma for, não segundo as regras e segundoum modo obrigatório, mas segundo o temperamentoindividual.

Um assunto é uma ídeía, uma unidade, é algumacoisa simples.

Se a imaginação e a sensibilidade não desdobramessa ídeía descrevendo os aspectos que ela pode ter,as formas que poderá tomar, diz-se tudo em poucaspalavras, e não se passa disso.

Trata-se, por exemplo, de descrever as sensaçõesOl':fVE"S!OADE FEDERAL DE SEftOf".

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A ARTE DE ESCREVER 159

de um homem, que caiu a um poço, onde esteve vintee quatro horas.

Ponde-vos no lugar desse homem.Mas, se isso me não aconteceu, como posso adivi-

nhar as sensações que aquele homem teria?Mas é nisso que está o dom da criação.A arte não é mais que uma substituição.Trata-se, como se disse, de nos pormos no lugar

de outro.Pensai nisto durante muito tempo, evocai essa situa-

ção e notaí, gradualmente, ideias que' tiverdes: o frio,a água, a noite, a sufocação, o afundamento progressivo,a duração das horas, o som da voz, o eco, a abolição dotempo, o silêncio, a vista lá de baixo, o clamor do deses-pero, o abandono das forças, a extenuação lenta, osmovimentos inúteis do homem que se conserva à tonada água e que mergulha quando se agita; lá em cima,o ar puro, alguns gritos de aves, o voo de uma coruja.vida das coisas lá fora, aquele contraste com a angústiado paciente, aqueles ruídos de piscina sonora, etc.

Numa palavra, procurar-se-à ter a ilusão do factoem todas as suas circunstâncias, com a graduação, ocrescendo doloroso, necessário ao efeito, isto é, aointeresse.

O importante não está em descrever minuciosamentetodos os pormenores de um facto, mas em ter dessefacto uma sensação pessoal e viva.

E evocação voluntária dará essa sensação; e. setendes a sensação, os pormenores virão por si mesmos.

É pelo trabalho, sensibilidade e imaginação que seconserva e fortifica a faculdade da invenção.

A arte de escrever é um perpétuo esforço, salvo

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160 A ARTE DE ESCREVER

para grandes génios, que, não obstante, também tra-balharam muito.

Entre a escolha de um assunto e a sua execuçãopela escrita, passa-se um lapso de tempo, uma incuba-ção mais ou menos longa, conforme as pessoas, e étalvez esse o mais doloroso momento, a parte maispenosa do labor literário. Há então uma espera e ummal-estar intoleráveis.

Nada ocorre, é preciso arrancar do espírito ideiasque não existem, e dominar a apatia do cérebro. É pre-ciso insulamento, concentração, para esse grande esforço.

Sonha-se, medita-se,Se a visão tarda, não desanimeis. No dia seguinte

procurá-Ia-eis.Recomeça-se e vão-se tomando notas.Disse acertadamente Buffon:.- «É por não ter reflectido muito, que um autor

se embaraça.»Quanto mais longe o assunto estiver dos vossos

hábitos e da vossa maleabilidade de espírito, maisnecessitareis de trabalho e de vontade.

Trazei convosco o vosso assunto, trazei-o muitotempo e por toda a parte; ele acabará por se encarnarem vós.

Concebe-se que a inspiração seja sempre um esforço.visto que é uma criação.

Tem-se mais ou menos imaginação, mas pode-sesempre apurar, desenvolver, aperfeiçoar a parte quenos toca.

Se a vossa imaginação se conservar fria, alimentai-acom excitantes.

Lede coisas, que se refiram ao vosso assunto.

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A ARTE DE ESCREVER 161

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Quereis 'escrever para o teatro, combinar cenas, fazerdialogar as personagens? Lede os vossos autores dra-máticos e observaí-vos nas suas obras.

Quereis pintar uma floresta, que já não tendes àvista? Então lede, para vos encamínhardes, a descriçãoda floresta de Fontainebleau, na Educação Sentimentalde Flaubert, a dos Goncourts, em Manette Selomon,a Viagem aos Pirenéus, de Taíne, as de Chateaubríand,Bernardím de Saínt-Pierre, etc.

Despertai com a leitura a vossa imaginação entor-pecida; é processo que dá sempre bom resultado.

Quantas vezes vos não sucedeu estardes frios, indi-ferentes, sem expansões imaginativas, sem ideias docérebro, sem saber se podereis sentir alguma coisa!

Mas passais à esquina de uma rua; ouvis uma música,um piano, um órgão: acabais de ouvir uma orquestra,ou de ver uma paisagem, e, de súbito, as ideias surgem,a imaginação muda de estado e de disposição. Bastaqualquer coisa para modificar o nosso ser mental eintelectual.

Para excitar e modificar a imaginação, não há nadamelhor do que a leitura, porque tem a vantagem de seadaptar às nossas exigências e podemos escolher aspáginas de que necessitamos.

A cultura da imaginação é de uma importânciaextrema.

É preciso que ela seja permanente, conservada,inínterrupta, pois tudo depende da imaginação.

A própria sensibilidade, sob o ponto de vista lite-rário, não é senão a arte de nos impressionarmos pelaimaginação.

Que é a imaginação?

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162 A ARTE DE ESCREVER

É o poder de representar os objectos, sob forma dequadros e com os seus pormenores.

A memória tem grande influência na imaginaçãoliterária. Se Iazeís, no mês de Agosto, uma descriçãode uma queda de neve, é a memória que entra em jogo.

Descrevereis então o que vistes; evocareis recor-dando.

O nosso espírito é uma lâmina fotográfica, em quefica impresso, mais ou menos tempo, tudo quanto vimos.É um tesouro que se acumula continuamente e aondevamos buscar recursos.'

Devemos portanto enriquecer o mais possível essetesouro; reparar bem no que vemos, notar o que sen-sibiliza, observar minuciosamente, salientar as circuns-tâncias, fixar e armazenar bem as sensações de todaa espécie, natureza, carácter e arte, pensando que é alique se deverá recorrer, e que a memória combinaráaqueles elementos sob o nome de imaginação.

Quanto mais dificilmente o assunto for assimilável,mais esforços serão necessários para chegar a senti-Io.

Deve-se, pois, tanto quanto possível, escolher umassunto que tenheis vivido, ou que pudésseis observar.

Tereis cem vezes menos trabalho em evocá-lo: senti--lo-eís mais depressa; os desenvolvimentos virão por si.

A sua investigação terá um atractivo, que vosanimará.

A escolha de um assunto é portanto de uma impor.tãncía considerável.

Nem todos os assuntos convêm; devem ser propor-cionados às nossas forças; devemos pesar aquilo quese pode fazer e de que somos capazes.

Depende disso o valor do trabalho, o talento que

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A ARTE DE ESCREVER 163

nele se empregar, a excelência da arte de escrever 'e oêxito final.

Agrada-nos um assunto e imaginamos poder tratá-lo,Quando o tentamos, «aquilo não vem», não se pode

apanhar, não sai nada. Às vezes, é por o não termosmeditado muito; mas muitas vezes também, é porqueo assunto não é para nós.

Reconheçamos a nossa incompetência.Escolhamos, pois, coisas verdadeiras, vividas ou

obseroéoeis.A verdade, a vida, a observação são condições fun-

damentais de toda a obra literária.O verdadeiro tem, por si mesmo, uma força con-

tagiosa; a vida comunica a vida; a observação conservao estro, a veia.

Ainda quando inventardes, deve haver pontos decontacto na verdade das coisas; aditai circunstânciase digressões, tiradas da vida real e que vos ajudarãoa tratar o assunto; socorreí-vos dos meios e dos seresque vedes, e Fazei-os coincidir com os raios da vossalente.

Procurais um carácter, um retrato?Tíraí-os dentre as pessoas que conheceis: descre-

vei-os tais quais são; ou tirai uma feição a um, umafeição a outro, para assim formardes um todo.

Molíêre fez a sua comédia dos Importunos, obser-vando o que diziam os maníacos da Corte.

É assim que procedia Afonso Daudet, que deveua este método o ter produzido obras cheias de vida.

Não nos esqueçamos de que o próprio Luís XIVtambém indicou a Moliere certos modelos dos Impor-tunos.

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•164 A ARTE DE ESCREVER

A cena dos Advogados, de Racíne, entre Chícaneaue a Condessa, era a narrativa de uma aventura recente.

A Metromenie, peça clássica de Píron, é baseadanuma anedota verdadeira.

A sociedade, que se reunia no palácio de Ram-bouíllet, foi posta em cena por Molíêre.

Os retratos da comédia de Destouches, O Meldi-zente, eram copiados do natural.

Manon Lescaut é a história do Padre Prévost. Etc.Um carácter, extraído da realidade, é uma chave

que facilita os desenvolvimentos.Se estamos embaraçados para descrever uma cena

ou fazer dialogar personagens, ° carácter conhecidoa priori cortará a dificuldade.

Desde que está em jogo um indivíduo, que vósconheceis, sabereís como ele tomará ° caso, como seportará, o que responderá.

É condição importante; Iíxaí-a bem.Precisais de uma paisagem?Ide vê-Ia e tomai apontamentos no local, a não ser

que tenhais bastante memória plástica para a repro-duzir. (Voltaremos a este ponto; v. descrições).

Desejais uma intriga? É ° que mais abunda na vida.Só tereis a dificuldade da escolha.

Medítaís num diálogo? Ide ouvir os verdadeirosconversadores, principalmente as mulheres, e retende--lhes ° tom.

A escolha de um meio, exacto, conhecido, é iqual-mente decisivo.

Tendes o plano de uma novela; mas estais ernba-raça dos, porque ° meio, em que a colocais, é vago.

Localizais a vossa novela em ponto conhecido e não

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A ARTE DE ESCREVER 165

imaqínârío. a plano logo tomará corpo e desenvol-ver-se-à. Experimentai e vereis.

Quereis escrever literatura imaginosa, idealista,romântica? Ainda neste caso, não sentireis o assuntoe só o tratareis bem, transpondo-o, dando-lhe ilusão,a aparência de vida.

a D. Quixote é um exemplo notável. Tudo ali éimaginado e tudo parece verdadeiro.

Se a vossa personalidade é o assunto que melhorsentís, falaí-nos de vós.

Vede quanto Montaigne deveu ao seu eu.a Padre Prêvost, que escreveu tantos livros, fez

uma obra-prima no dia em que escreveu a sua própriahistória em Manon Lesceut.

A melhor obra de Alfredo de Vigny é aquela queele viveu pessoalmente, Servilismo e Grandeza Militar.

a segredo do talento de Afonso Daudet e PedroLoti é. naquele. a observação rigorosa. e neste a forçadas coisas vistas ou vividas.

Verdade. vida, observação. eis as três qualidadesque dominam a arte literária e a que se devem subor-dinar todas as operações do espírito.

Como só se fazem narrações para agradar e paraconvencer. perde-se o alvo. se caminhamos contra averdade, a verosimilhança e a experiência.

Assim o autor da Henriede andou mal-avisado.fazendo viajar Henrique IV até Inglaterra, visto quese sabe que aquele rei não pôs lá os pés nem teve nuncaentrevistas com a rainha Isabel.

Seja qual for o assunto de que se trate, teatro,poesia ou prosa, devemos conservar sempre a cor local,

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166 A ARTE DE ESCREVER

isto é. os pormenores. o tom. as circunstâncias e oscambiantes da época. em que o facto se passa.

Somos decerto muito exigentes neste assunto muitodescurado até agora. apesar dos bons conselhos deBoileau.

Temos um belo exemplo da cor local. como tom(pois a cor local não existe somente na pintura). noCamponês do D.anúbio, de La-Fontaíne.

Salambó, de Flaubert. é obra que se deve reler muí-tas vezes. por causa da pintura local.

Tais são as condições gerais. sob que se pode con-siderar a invenção.

lição Décima

A disposição

Da disposição. ~ Importância do plano. ~ O plano e a fermen-tação das ideias. ~ O plano e as regras. ~ O plano. o inte-resse e a acção.

.-_._._--~---I.

Entende-se por «disposição». a ordenada colocaçãodos materiais. a arte de bem dispor o que se vai escre-ver. o que deve suceder primeiro. o que se deve colo-car depois. a vista do conjunto. segundo as proporções.

'Trata-se de reconhecer a medida. a importância. ovalor e a extensão dos diversos elementos. de que secompõe um trecho; de apresentar as diversas partes.ministradas pela invenção, de uma maneira progressiva.encadeada, lógica e interessante.

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A ARTE DE ESCREVER 161

É da disposição que depende o plano, o interessee a acção.

Um trecho de literatura, seja qual for, discurso,descrição, carta ou narrativa, faz-se, tendo em miraa unidade. Deve tender para um efeito geral. Mas ospormenores são ali necessários; os incidentes agradam;é necessário que haja muitas ídeias, muitas imagens,numa palavra, variedade.

Conciliar a variedade com a unidade é uma questãode tacto e de gosto.

Existe, pois. uma arte especial para ponderar tudoisso, uma ciência particular para o dosear, para dis-tribuir e proporcionar a sua matéria.

Bons espíritos .têm caído em prolixidades imperdoá-veis, por não serem rigorosos neste assunto. O próprioRacine mostrou na sua narrativa de Terêmenes umaprolixidade e uma falta de equilíbrio, que se tornaramlendárias.

Richardson poderia ter feito de Clerice Harloweuma obra-prima, se não repetisse tudo continuamente"e não tivesse acumulado cartas sobre cartas, com o fimde estender o interesse do romance. que se tornoumonótono e sem sabor.

No D. Quixote há contradições de factos e invero-similhanças inadmissíveis.

O Édipo, de Sófocles, está cheio de impossíveismateriais, que o autor dissimulou. à força de génio.

Devemos pois. já que não temos o talento dos grandesescritores, respeitar as regras racionais e as exigênciasde estrutura. necessárias ao plano. ao interesse. à acção.

Na nossa época de improviso e de ímpressionísmo,Iinqe-se desprezar o plano.

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168 A ARTE DE ESCREVER

Em compensação, vê-se felizmente um artista, comoGoethe, assinalar a cada instante a importância. doplano.

Dizia ele muitas vezes:- «Tudo depende do plano.»Ê que, efectívamente, um bom plano é a base de

uma boa execução.Geralmente, não se vê neste conselho de mestre

senão um exagero de método, um preconceito de escolás-tica literária.

Contudo, nada é mais sério.A vantagem que daí se tira não é imediata; mas,

pela continuação, é imensa.Escreva-se o que se escrever, devemo-nos cingir a

um plano severo, o mais desenvolvido possível. e dondenos não possamos desviar.

Não devemos sair das proporções que se nos impõem.porque foram estabelecidas pela razão, pela lógica.

Quanto mais se escreve mais se estuda; quanto maisse lêem as obras dos mestres, mais se adquire a con-vicção de que num bom plano está a resistência e ovalor de uma obra, tanto como o estilo.

A composição é um sinal de superioridade 'e defirmeza.

Todas as obras-primas são bem compostas.Racine dizia que, quando acabava o seu cenário em

prosa, estava feita a sua peça. Ê exagero, mas nada nosmostra melhor a importância que Racine dava ao planoe ao seu desenvolvimento.

Se a imaginação não é inflexivelmente encaminhada.quem pode saber onde ela se deterá?

O melhor talento se deixa arrastar.

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A ARTE DE ESCREVER 169

Que obras brilhantes. desregradas. cheias de magní-ficas intemperanças, e que seriam superiores. tendo maisordem. plano e método!

Poetas deslumbrantes. como Saínt-Arnaud e Gau-thíer, ficaram esquecidos. porque produziram mistifórios,ao acaso da inspiração.

Malherbe, posto que melhor poeta do que eles. ficou,porque soube escolher. reqrar-se, desbastar e ordenar.

Não observamos que se cai fatalmente na confusãopelo simples facto de não estar bastante desenvolvidoum plano; mas é verdade absoluta que. entre duasmaneiras ou 'estilos iguais. a superioridade de execuçãopertencerá àquele que formar o seu quadro. que soubero que deverá dizer ou tudo que é preciso dizer. só oque deverá dizer.

A gente moça não faz ideia bem nítida desta obri-gação.

Há em todo o trabalho literário uma parte de pre-paração. de amadurecimento. de reflexão. necessáriasà boa execução da obra.

Deveis saber construir. Sem isso nada se conser-vará de pé.

Este trabalho parece árido a alguns espíritos. quepreferem confiar-se à sua Iecundidade, Supõem poderdirigir a parelha. sem segurar as rédeas.

Incita-vos a avidez de escrever; o estilo quer sair.o cérebro referve.

Demoras. para quê?Mas não!As ideias nada perdem em ser comprimidas; o

líquido. que fermenta. torna-se mais forte. Abrindo-se

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170 A ARTE DE ESCREVER

muito depressa o frasco, sai muitas vezes dele apenasa espuma que se evapora.

Sem um plano determinado, pormenorizado, a rexe-cução é problemática.

Corre-se o risco de dar importância a certa passa-gem, porque sairá como se deseja; e, comprazendo-senessa, o escritor descurará outra que é mais difícil.

Não percamos nunca de vista estas palavras deBuffon:

É pela ausência de plano, é por não ter reflectido bastantesobre o assunto, que um homem de talento se sente embaraçado,não sabendo por onde principiar a escrever. Entrevê, ao mesmotempo, grande número de ídeias: e como as não comparou, nem ..~subordinou, nada o obriga a preferir umas às outras; fica, pois,perplexo, Mas quando tiver esboçado um plano, quando tiver reu-nido e posto em ordem todos os pensamentos essenciais ao seuassunto, notará fàcilmente o momento, em que deverá pegar napena, sentirá o ponto de maturação da produção do espírito,apressar-se-à a fazê-lo desabrochar e terá prazer em escrever ...

Para escrever bem, é preciso, portanto, estar plenamentesenhor do seu assunto; é preciso reflectir bem nele, para ver cla-ramente a ordem dos pensamentos e formular deles lIma sequêncie, ..,.uma cadeia. em que cada ponto representa uma ideia; e, quandotivermos pegado na pena, devemos conduzi-Ia sucessivamentesobre esse primeiro traço, sem a firmar muito desigualmente, semlhe dar outro movimento. além do que for determinado pelo espaçoque deverá percorrer.

E Fénelon acrescenta:

Não há verdadeira ordem, senão quando se não pode deslocarparte alguma, sem enfraquecer, sem obscurecer, sem alterar otodo ...

O autor, que não dá esta ordem ao seu discurso, não está

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A ARTE DE ESCREVER 171

senhor do seu assunto; terá apenas gosto imperfeito e um semí-génio.

A ordem é que há de mais raro nas operações do espírito;quando a ordem. a justeza a força e a veemência se encontramreunidas. o discurso é perfeito.

Ao passo que a elocução, isto é. a forma, consti-tuem a magia de uma obra literária. o interesse e aacção dependem do plano. da distribuição da matéria.isto é. da ordem e da disposição.

O interesse vem da relacionação das partes. da suagraduação. ao seu agrupamento. da arte com que secolocar cada facto no lugar que lhe convém. É a ciênciada composição.

É necessária. pois. muito tacto e reflexão na escolhae sucessão das idéias, visto que estas podem ter tãograves consequências.

Para isso. mcstrai-vos inflexível. sabei cortar. mon-tar. dividir no vosso próprio terreno.

Quando um assunto 'está ainda em pedaços. emmateriais. é que se deve talhar e cortar.

Não espereis que vos paralise a redução da forma.O sacrifício seria tão árduo. que vos faria recuar.

Prevede a vossa fraqueza. e. desde logo. rejeítai,sem piedade. o que não é de absoluta utilidade.

Ainda que tenhaís semeado pérolas. monda i as quesão supérfluas e renunciai aos pormenores. que nãoconcorram para o conjunto, que não tendam para o fime nada acrescentem à unidade.

Tenhamos sempre presente a frase de Pascal:-«Não basta que uma coisa seja bela. é preciso

que ela seja própria do assunto. que nada haja a maisnem a menos.»

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172 A ARTE DE ESCREVER

Os que têm a experiência do estilo sabem quantascoisas inúteis, cenas, palavras, diálogos, excesso de des-crição ou de análise, se podem eliminar em cada páginade uma peça ou de um livro que se escreve.

Lição Décima Primeira

A elocução

A elocução e a expressão. - O trabalho. - Dever-se-à impro-visar? - Como se dá relevo às idéias. - O relevo dasexpressões. - As refundições,

..Encontrastes O assunto; dispusestes a matéria; sabeis

como haveis de principiar, como acabareis, está com-pleto o vosso plano, está tudo em ordem, princípio,meio, desenvolvimento, conclusão.

Trata-se agora de escrever.O estilo, isto é, a expressão, varia infinitamente e

muda, não só segundo as pessoas, mas também segundoo género e o assunto; daqui a diversidade de tom, quese nota nas obras literárias.

Os conselhos, que se podem dar acerca da maneirade escrever, têm pois de se modificar, consoante osassuntos, e são variáveis, segundo se trata de narra-tivas, de descrições, de discursos, de uma peça teatral,de uma poesia ou de uma fábula.

Entretanto, escreva-se seja o que for, a expressão,a boa elocuçâo, o estilo valioso, só se obtém, segundoas leis gerais, comuns a todos os géneros.

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A ARTE DE ESCREVER 173

É destas leis e destas condições que vamos falar.a que vamos dizer lembrará talvez certas demons-

trações, que já fizemos a propósito das qualidadesdo estilo.

Um tratado da arte de escrever tem o inconvenientede se não poderem delimitar bem certos capítulos, que,pela sua própria natureza, se assemelham e se con-fundem.

A invenção, a disposição, a elocução relacionam-seintimamente entre si.

Aelocução não passa de uma invenção; é a inven-ção das palavras, em vez de ser a invenção do assunto.

Trata-se de procurar a ideia; trata-se agora de pro--curar a forma.

Estávamos na preparação; agora estamos na exe-cução técnica do estilo.

Estais com a pena na mão, diante de uma folhabranca de papel.

Que vai suceder?Tudo depende da maleabilidade de espírito, da

incubação anterior, actividade imaginativa, numa pala-vra, de boas disposições 'em que vos encontrais, serneditastes bem o assunto.

Mas, seja qual for a aptidão de cada um, o bom eo mau escritor procedem, pouco mais ou menos, damesma forma.

a plano está traçado, trata-se não só de 'exprimirpensamentos, mas também de os inventar, à proporção'que se opera esse trabalho de elocuçâo.

É a operação mais importante, visto que a força deum pensamento é que produz a sua expressão, e vistoque a própria imagem não é senão um pensamento.

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174 A ARTE DE ESCREVER

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Demais, desde que se começa a escrever, todas asoperações, que constituem a arte de escrever, entramem jogo simultãneamente : criação, disposição, colorido ..•

Alguns professores aconselham que se escreva tudoque nos passa pela cabeça. que dêmos livre curso àinspiração, que lancemos no papel todas as ideias queocorrem. dispostos a fazer escolha e aproveitar o queé bom, no segundo jacto.

Creio que é método perigoso.Não é prudente escrever coisas, que se não julgam

completamente boas.Não nos devemos habituar a escrever no primeiro

jacto, senão o que se supõe bom. Ê o único meio denão repetir o que se disse e de evitar a vulgaridade.

Devemos decidir-nos a não traçar desde logo senãoo que nos parece novo. pouco mais ou menos. É nistoque reside o relevo e o talento.

Por conseguinte, desde o começo, esforçaí-vos pornão escrever senão pensamentos que ressaltem; e tomaía resolução formal de rejuvenescer as ídeías, procurandooê-les de outra maneira. a fim de as exprimir de outraforma.

Talvez se não dê todo o valor a esta necessidadede ideias novas, num primeiro jacto.

Ficam sempre bastantes correcções para se fazerem.pelo que devemos procurar evitá-Ias logo, o maispossível.

Não sujeitar nada ao acaso é economizar trabalho.Escolher bem o que se vai dizer não significa que

se devam dizer poucas coisas. Pelo contrário, são pre-cisas muitas, porque há sempre que cortar.

Mais vale pecar por excesso, que por escassez.

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A ARTE DE ESCREVER 175

o essencial é nada arriscar de vulgar, de medíocreou de incolor.

Quanto melhor for o primeiro jacto, mais perfeitosserão os outros, visto que serão a correcção, a refun-díção, a perfeição do primeiro.

Compenetrai-vos da ideia de que a boa execuçãoliterária e o bom estilo se obtêm pelo trabalho, e deque se pode, pela insistência e pela perseverança, dupli-car a força do próprio talento.

Há uns versos, que se deveriam inscrever no Iron-tispício de todos os manuais de literatura:

o tempo não respeitaO que se faz sem tempo;

Retocai vinte vezes vossa obra,Límaí-a e relimai-a, sem descanso;

Acrescentai, às vezes,E riscai, muitas outras.

o talento não é senão uma aptidão que se desen-volve. Poderá duplicar-se e triplícar-se o que se tem.

Dizia Buffon:- «Todos os dias aprendo a escrever. O gênio é

uma longa pacíêncía.»Quem mais do que Boileau recompunha o seu estilo?La-Fontaine não atingia o natural senão refazendo

quase dez vezes a mesma fábula.Taíne, que folheou os seus manuscritos na Biblioteca

Nacional. ficou admirado de os ver cheios de emendas.Voltaire, Guez de Balzac e outros autores não se

imortalizaram senão pela sua profunda consciência deestilistas e pela sua insaciável sede de perfeição.

La-Bruyêre só publicou um livro perfeito.

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176 A ARTE DE ESCREVER

Pascal é a última palavra de clareza concisa. o quesó se consegue pelo trabalho.

Montesquieu emendava-se constantemente.Chateaubriand ensina-nos que refundiu. até dez

vezes. a mesma página.Buffon recopiou dezoito vezes as suas Épocas da

Natureza.Flaubert, como se sabe. matou-se com trabalho.Pascal diz-nos que escreveu quinze vezes as Cartas

Provinciais.Se todos os nossos clássicos houvessem repetido os

seus processos de composição. veríamos que Flaubertnão foi o único que lutou contra as torturas da frase.

O estilo da maior parte dos grandes prosadores.denuncía trabalho.

O trabalho é visível em Boíleau, Montesquieu eBuffon.

Não só entendo que não devemos censurá-los porisso, mas até ousarei dizer que aquela constante apli-cação. que se manifesta em todas as suas páginas.adiciona mais um encanto à sua leitura. assim comoa ciência da orquestração aumenta para os entendidos.o atractivo de uma audição musical.

Somente La-Fontaíne escapou a esta lei. porque neleo trabalho mal se percebe.

Ora. foi precisamente ele o que mais trabalhou!A lei do esforço. do trabalho. da emenda constante.

é pois indiscutível.É preciso adoptá-la ra priori, cegamente.Não é menos verdade que temos na nossa literatura

páginas admiráveis. que saíram de um primeiro jacto;

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A ARTE DE ESCREVER 177

soberbos trechos, produzidos num só fôlego, e tão per-feitos, que não foram retocados.

Mas é privilégio do génio encontrar às vezes aBeleza imutável, a expressão" superior, que se não pôdeexceder.

E não nos esqueçamos de que um livro sobre a artede escrever é para aqueles que têm talento ordinárioou simplesmente vocação literária.

Atendamos, pois, à regra geral, nós, que não somosexcepções.

Em matéria de arte, os preceitos são para a maioriados escritores, em cujo número nos devemos modesta-mente contar.

Seria imodéstia insensata revoltarmo-nos e dizermos:- Mas Byron, Shakespearee Corneille procediam

de outra forma!Não podemos iqualar-nos àqueles cuja sublime voca-

ção não necessitou de processos nem de trabalho.[ulquemo-nos felizes, se encontrarmos, também,

ideias, imagens e até páginas, que não sejamos obri-gados a retocar.

E talvez que isso possa suceder ...Há certamente escritores, que pouco ou nada cor-

rigem às suas obras.Emílio Zola não poderia escrever todos os anos

um volume de quinhentas páginas se refundisse as suasfrases.

O romancista Balzac só corrigia o seu estilo nasprovas; e Stendhal afectou sempre o mais profundodesprezo pela perfeição literária.

Mas ponderemos:É certo que, se Balzac não tivesse escrito senão

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178 A ARTE DE ESCREVER

dois ou três volumes perfeitos na forma, comoM adame Booenj, teria sido tão célebre, como com oscinquenta volumes que deixou.

La-Bruyére fez um, que há-de durar mais que osde Zola.

E depois, visto que se trata da arte de escrever ede conselhos literários, ninguém sustentará que se deveescrever como Balzac e que se não pode escrever melhorque Zola ou Stendhal,

Com os grandes mestres da forma é que é precisoaprender o estilo. Ora, como sabemos, eles trabalharam.tressuaram, recomeçaram, corrigiram.

Portanto a teoria é inatacável.A primeira escrita não pode ser definitiva, porque:

a cabeça está quente, e os olhos não vêem nitidamenteo que se escreve.

A ciência do estilo só se exerce verdadeiramentesobre uma inspiração que já arrefeceu.

Persuadi-vos de que nada é definitivo, nas páginas.que esc revestes primeiro; mas escrevei-as, ainda assim,com a maior aplicação e o relevo possíveis, para quese vos facilite a tarefa ulterior. Se a vossa primeiraescrita é má, não tereis de fazer mais duas ou três,mas seis ou sete.

Suponhamos que ides descrever uma manhã de pri-mavera.

Tendes pressa, possuis talento de improvisador, efiando-vos nessa qualidade, traçais no papel as ídeiasseguintes (aliás extraídas de George Sand):

..

Eis-me na culminante altitude. A manhã está deliciosa.está impregnado do perfume das macieiras novas.

o ar

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A ARTE DE ESCREVER 179

Os prados. declivosos sob os meus pés. desenrolam-se branda-mente lá em baixo. Estendem pelo vale o seu tapete branqueadoainda pelo orvalho congelado da manhã.

As árvores das margens do Indre desenham meandros. de umverde-brilhante. e cujos cimos o sol começa a dourar.

Acabam de abrir a comporta do rio. Quebra o silêncio umruído de cascata. que me recorda a contínua harmonia dos Alpes.

Por seu turno. despertam as vozes das aves. Eis aqui pertoa cadência voluptuosa do rouxinol; além. no moutedo. o triloescarninho da toutinegra; lá em cima. nos ares. o hino da ando-rinha. que sobe com o sol (').

••

Com tais ideias.expressas daquela forma. nãopodereis ir longe.

Precisais de outra urdidura, se quereis entretecercoisa com jeito.

Neste fragmento apenas ressai omacieiras novas, o orvalho congeladohermonie dos Alpes.

Tudo mais já foi dito e redito, e talvez melhor.Portanto, deveremos poupar aquelas três idéias e

eliminar as outras. ou, pelo menos. dar-lhes mais relevo .Isso se poderá fazer num segundo jacto; mas. se jáestivesse feito melhor seria.

Mas como substituir aquelas fracas imagens. oucomo dar-lhes relevo?

Seria necessário procurar outra coisa. falar de outramaneira. dizer. por exemplo. como Amyot:

~ «As abelhas começavam a zumbir. as aves a chil-

perfume dase a contínua

Ii

(') Esta descrição não é pior que qualquer outra. comoefeito geral. porque está escrita com elegância; mas tem frases eimagens de convenção. que já serviram de outras vezes.

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180 A ARTE DE ESCREVER

rear e os rebanhos a saltar; os cabritos pulavam pelasmontanhas, as abelhes murmuravam pelos prados e ospassarinhos faziam ressoar as sarças com os seuscantos.»

Estas duas últimas ideías. aquelas «abelhas quemurmuram pelos prados» (em vez dos insectos e dasaves que despertam, frase geral), aqueles passarinhosque fazem ressoar os bosques, são duas ideias que, pelasua expressão, produzem efeito absolutamente novo.

Que se poderá dizer então?Tudo que dizem sobre este assunto aqueles que

disseram coisas melhores, Vítor Hugo, por exemplo:

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Entre todos os rumores da floresta, da aldeia, da vaga, daatmosfera, havia um arrulho. As primeiras borboletas pousavamnas primeiras rosas. Tudo era novo em a natureza, as ervas, osmusgos, as folhas, os perfumes, as irradiações. Parecia que o solnunca tinha servido. As pedras estavam lavadas de fresco.A íntima canção dos arvoredos era interpretada pelas avezinhas,nascidas na véspera. É provável que ainda estivessem no ninhoas casquinhas de ovo, partidas pelos seus bicos. Havia frémitosde asas, que tentavam voos, nas franças trémulas. Aquelas avezi-nhas soltavam o seu primeiro canto, voavam pela primeira vez.

Atentemos neste exemplo, e ponhamos ao lado destadescrição alguns traços, extraídos de um romance con-temporâneo, que causou sensação:

o céu espraiava-se, docemente azul. Uma débil viração agi-tava a folhagem e refrescava o ar. Urna sensação de beatítudedelicada enchia o coração e dominava o pensamento. O horizonteestava velado de uma ligeira bruma, em que se fundiam os lon-ges, levemente esfumados. Subiam do vale ruídos confusos, ani-mando a solidão dos soutos profundos que se encrespavam, comoum mar negro, lá em baixo, ao fundo do terraço.

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A ARTE DE ESCREVER 181

Estes pormenores, assim apresentados, são indignosde figurar até num primeiro jacto.

Não há ali uma exposição nem uma ídeía nova.É a vulgar expressão de coisas mil vezes ditas.É evidente que numa linda manhã há sempre um

pouco de «viração débil», que «agita a folhagem», quehá os «longes que se fundem», e que há «ruídos con-fusos que sobem dos vales».

De que serve pegar na pena para fazer tais desce-brimentos?

Escreve-se assim, nos colégios, aos dezassete anos.A deficiência e a vulgaridade de tal estilo são incon-

testáveis.Mas eis aqui outros traços, extraídos de um escritor

melhor.Sob aparência de fantasia, mais bem descrita, encer-

ram o mesmo vácuo e a mesma nulidade.Esta passagem éextracto de Uma manhã na lndie,

A campina espalhava a alegria matinal; as árvores e as floresselvagens pareciam estremecer às primeiras carícias do sol e purí-ficar-se sob o orvalho nocturno; o ar enchia-se da harmonia pro-duzida pelo canto das avczínhas, pelo arrulhar das rolas, e pelaalegre sinfonia das águas vivas, que brincavam com as hastes daservas e com os ramos flutuantes das íris. Com a noite viera atempestade; e o dia, ao nascer, só encontrava a verdura calma dapaisagem, o brilho de todos os cambiantes de flores, esmeraldas,safiras, topázios, rubis alados, que cantavam sobre todas as folhas.no horizonte uma faixa de ouro, e no fírmamento o azul da lndia.

Isto é cintilante, variado, mas é apenas uma Iuma-rada, que fadiga a vista, e, em vez de mostrar, nãodeixa ver.

Uma descrição da índia!

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I182 A ARTE DE ESCREVER

E nada de cor local, nenhum traço de região. nadade particular!

Salvo o purijicer-se sob o orvalho nocturno, a sin-fonia das águas vivas e a faixa de ouro no horizonte.mais nada se aproveita.

Alegria matutina, flores selvagens. carícias do sol.hastes de ertzas, verdura calma, esmeraldas. safiras.topázios. tudo são velhas roupagens.

Numa palavra. é preciso procurar traços novos.novidade verdadeira. observação inédita. evocar ascoisas em que se não pensa. dar relevo àquelas que jáforam ditas. renovar a descrição velha. por meio davisão pessoal e imprevista.

Eis aqui como J. J. Rousseau deu novidade a umadescrição do nascer do Sol (à .parte as repetições):

Verno-lo anunciar-se de longe por traços de fogo que ele pro-jecta adiante de si.

O incêndio aumenta. o Oriente parece todo em chamas; peloseu brilho. espera-se o astro. muito tempo antes que ele surja; acada instante supomos oê-lo aparecer: vemo-lo finalmente.

Um ponto brilhante ressalta como um relâmpago e enche logotudo o espaço.

É empolgante.A não serem as repetições do verbo ver. nada mais

lá se desaproveita.O princípio que domina a composiçao, o estilo e

a elocução. é que é preciso escrever com relevo pensa-mentos e imagens novas. salientes, empolgantes.

Para chegar a este resultado. é necessário trabalhare refazer duas. três. quatro vezes a mesma página.

Mas. que vem a ser escrever com relevo?

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A ARTE DE ESCREVER 183

É achar coisas que os outros não disseram, e é dizerde outra maneira o que se disse já. Ê relacionar palavrasimprevistas! é empregar digressões inesperadas e vivas,uma forma variada e atraente, que prenda a atençãopela vibração da ideia e pela vida das palavras.

l\ssim, não há relevo em se dizer:

Estou cansado da vida. vou arrastando por toda a parte omeu aborrecimento. Ao menos. quando a eternidade me houverdeitado entre aqueles que já não ouvem nada. ninguém meimportunará mais.

Ê preciso dizer-se isto de outra forma, encontrar-seuma imagem que seduza o leitor, empregar outras pala-vras, avivar o estilo, aquecê-Io, torná-lo febril, e eis aquino que tal frase se poderá converter, sob a pena de umverdadeiro escritor:

Desalenta-me a existência. e vou deixando apagar-se a minhavida. Ao menos. quando a Eternidade me tiver cerrado os ouvi-dos com as suas duas mãos. na família dos surdos que são pó. jánão ouvirei ninguém...

(CHATEAUBRlAND, Memórias).

A propósito da mágoa de Rancé, fidalgo mundano.que chorava uma mulher amada, que falecera, Cha-teaubriand escreveu:

Chamava-a em vão. a Senhora Montbazon tinha ido para ainfidelidade eterna.

Não é pensamento de grande preço. mas é novoe tem relevo.

~VEftSIOAOEFE'o~RALf.it '3EiI!GI I' ~

~STlTUTO DE LEnU~SE {Y'

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184 A ARTE DE ESCREVER

Chateaubriand disse de Napoleão:

Águia, deram-lhe um rochedo, no cimo do qual ficou, ao sol.até à morte, e donde ele era visto de toda a terra.

E noutro ponto, referindo-se também a Napoleão:

Sentou-se sobre aquele magnífico pedestal, estendeu os bra-ços, segurou com eles os povos, reunindo-os em torno de si; masperdeu a Europa, tão depressa como a adquirira; fez que duasvezes os aliados entrassem em Paris, apesar dos milagres da suainteligência militar. Tinha o mundo debaixo dos pés e só tiroudele uma prisão para si, um exílio para sua família, a perdade todas as suas conquistas e de uma parte do velho territóriofrancês,

(CHATEAUBRIAND, Memórias, m).

E mais adiante, falando da lenda napoleónica, tãopopular:

o mundo pertence a Bonaparte; aquilo que o assolador nãopôde acabar de conquistar, usurpa-o a sua fama; vivo, faltou-lheo mundo; morto, possui-o.

Vê-se bem o que é um estilo com relevo.Algumas citações o evidenciam melhor do que as

teorias.Tal estilo, talvez até em Chateaubriand, que tra-

balhava tanto as suas frases, pode ser o resultado devárias refundições.

Em Bossuet, encontra-se em todas as páginas, prin-cipalmente nos seus Sermões, que não foram, contudo.

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A ARTE DE ESCREVER 185

trabalhados (1). É a sua maneira vulgar de escrever.É~lhe familiar o relevo e a criação do estilo.

Lede ao acaso as suas obras.Encontram-se nelas, a cada passo, frases que sedu-

zem o leitor, como estas, extraídas dos seus Sermões:

Elanguescemos no amor das coisas mortais ...Alma, toda abismada. toda submerqida, nas afeições sensuais ...O seu estado era uma dor mortal, uma dor assassina e cruci-

ficante ...Os mártires eram animados pela avidez dos sofrimentos! ...6 Jesusl Deus aniquilado!Estaremos sempre encantados com o amor desta vida passa-

geira?A morte abísma-nos no nada ...O amor impuro tem as suas agitações violentas, as suas reso-

luções irresolutas, o inferno dos seus ciúmes, e o mais que eu nãodigo.

Já demos uma lista-espécime das expressões triviais,que se devem evitar. Podemos vevitá-las com o estilode Bossuet, e extrair deste uma lista de expressõesempolgantes, no gênero das que vamos designar e quetiramos, ao acaso, dos seus Sermões:

As veemências do desejo.As ondas da dor.As expressões da alegria mundana.Esses desvarios agradáveis.As nossas alegrias perniciosas.

(') Não obstante, há nos Sermões de Bossuet emendas eaumentos, que provam que ele encontrava belas expressões, ape-nas com trabalho de refundição.

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186 A ARTE DE ESCREVER

As nossas cobiças indomáveis.Os nossos corações desencantados do mundo.As nossas alegrias corrompidas.As nossas sedes insaciáveis.O coração desembaraçado e desenganado de tudo.A profusão do amor.Atordoado de desejo.A magnificência do seu amor.As delicias desse devaneio.A afluência de recordações.As sublimes baixezas do Cristianismo.A mobilidade das paixões.O homem apaixonado por Deus ...Extenuado de ventura. Etc.

Era este o vocabulário habitual de Bossuet.Vê-se em que consiste o estilo criado.Isto não quer dizer que toda a gente deva ou possa

escrever assim: mas toda a gente deve ter o brio de nãoescrever trivialmente e tratar de escrever com relevo.

Como consequi-lo?Trabalhar, recomeçar, procurar, rever, encarníçar-se.Está concluído o primeiro acto.Há certamente coisas que ficarão; mas há muitas

que não devem ficar. Cumpre ver bem o que deve seraproveitado e o que deve ser tirado ou substituído.

Emendareis logo o primeiro jacto, ou recopiá-lo-eís.emendando-o gradualmente.

Não percais nunca de vista, durante esse trabalho,o que dissemos da concisão do estilo, condição tãoimportante como a procura de expressões, a criação deimagens, e a vivacidade dos ornatos.

Para exprimir as mesmas ideias de maneira maisintensa, procura i ser um pouco brutal, dizer as coisas'

..

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A ARTE DE ESCREVER 187

com mais crueza, tirar a ideia do seu sobrescrito lite-rário e retóríco,

Tende a audácia de empregar as palavras que res-saltam. Vale mais o barbarismo do que o tédio.

Pensai em palavras inesperadas e experimentai-as :procurai emparelhar epitetos que brigam, e que dãomuitas vezes efeitos surpreendentes; mudai o adjectivoem advérbio, o verbo em substantivo, e vice-versa.

Se escrevestes: «Tinha soluços convulsivos», pende:«Chorava convulsivamente».

Se Iizestes uma sequêncía de verbos, refazei a frasesubstantivamente.

E tereis:«A imolação precoce do seu coração», em vez de

«Imolava precocemente o seu coração».«A dependência», em vez de «Dependia».O que vos dará também:«O seu servilismo para com ele»; os verbos antó-

nimos: «Agarrar-se, desaqarrar-se: enganar-se, desen-ganar-se».

1"- Tende, sobretudo, presente ao espírito, grande quan-tidade de palavras, como se têm números num saco delotaria: as três quartas partes servirão, não só para serempregadas, mas para nos fazer descobrir outras.

É necessário remexer tudo isso, para que a ídeía quequereis exprimir, se agite, numa constante efervescêncía.

Esta efervescência, esta afluência das palavras e dasimagens, fornecê-les-á a leitura.

O principal meio de obter a variedade do estilo oude o melhorar, quando não estamos satisfeitos com ele,é refundir a matéria dele pela substituição das pala-

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A mesma frase, refundida:

188 A ARTE DE ESCREVER

vras e a transposição dos epítetos: mudar tudo de lugarexpressamente, alterar tudo:

Os substantivos tornaram-se adjectivos e vice-versa,Transpusemos epítetos: «o latido da canzoada

rouca», em vez de: «latido rouco dos cães»; comprí-mimos a forma, suprimimos os particípios: «deixandocair a cabeça», etc.

Procurai sempre interverter as correlações, o quedará combinações agradáveis e inesperadas.

Dante fala do sol que se cela: encontra-se nele umlugar mudo de luz, um brilho rouco; como há em Ver~gílio silêncios da lua, sons que se aclaram.

-- «Este artifício do estilo .....•disse Rívarol -- não ésenão uma feliz permuta de palavras, feita pelos nossossentidos: a vista aprecia o som, dizendo-se: um sombrilhante; a garganta aprecia a luz, dizendo-se: brilhorouco.»

Frase boa, que pode ficar,mas que se pode refundir ainda:

Sem pensar em nada, ba-lanceava-se, ao andar caden-ciado e rítmico dos moços dacadeirinha, deixando cair acabeça para trás a cada sola-vanco mais rude, seguida dopovoléu, que os garotos aumen-tavam continuamente, saudada,de passagem, pelo rouco latidode cães amarelos e pelados,que se dispunham a meter-seno cortejo.

Sem pensar em nada em-balava-se nos passos cadencia-dos dos moços da cadeirinha,com a cabeça inclinada, con-soante o balouço do andamento,e seguida de uma nuvem degarotos, saudada, de passagem,pelo latido da canzoada rcuca,dos cães amarelos e pelados.que seguiam o cortejo. f

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E a propósito desta expressão de Dante: O ar nãotinha estrelas - diz Rívarol:

- «Pode fazer-se uma observação a respeito dessesmistérios, a que chamam caprichos da língua, a res-peito dessas relações secretas, que fazem que as pala-vras se atraíam ou se repilam, entre si» (1). Rívarolacha que tal expressão não tem fisionomia.

Diz ele que preferia noite sem estrelas, o que aliásjá se tem dito muitas vezes.

O ar estava sem estrelas é mais novo e mais impres-sionante, porque a palavra ar le~bra aqui o vácuo,e porque se julga ler, como se lá tivesse:

O infinito ou a imensidade estava sem estrelas.Os conselhos, que poderíamos dar, são inumeráveis

e encheriam volumes.Saínt-Beuve tinha razão, resumindo-os na necessi-

dade de pintar as coisas concretamente:- «Em vez da palavra abstracta, meta física e sen-

timental, empregais a palavra própria e pinturesca.«Em vez de céu irado, ponde céu negro c tempes-

.• tuosol em vez de lago trenquilo, pende lago azul; pre-feri aos dedos delicados os dedos afusados, ou magros;ou compridos. Só o Padre Delílle poderia dizer, julgandopintar alguma coisa:

A ARTE DE ESCREVER 189

Cai por terra, altivas colunatas;Soberbos capitéís, desrnoronai-vos:Prostrai-vos, orgulhosas arcarias!

«Racine não pinta vantajosamente, quando faz de

(') Rívarol, tradução de Dante, O Inferno. m.

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190 A ARTE DE ESCREVER

um monstro marinho um indomável touro, um dragãoimpetuoso. Parny fala do temo fogo que brilha nosolhos de Eleonora. Fénelon era daqueles que cantavamos bosques cheios de atractivos» (1).

Lição Décima SegundaiL

Processo das refundições

Processo das refundíções. - Exemplos de refundíções. - Mauestilo corrigido. - Larnartine. - O terceiro jacto. - Exemplosdo bom estilo, obtido por três jactos sucessivos. - O esforçoe o trabalho. - Mau estilo, louvado sem razão . .:....Corríqk-secontinuamente.

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É preciso pensar nos milhares de combinações queas palavras podem ministrar, pelos seus encontros, peloembate, pela sua deslocação; partir as frases longas,soldar as frases curtas para as tornar longas, mudaros indicativos em particípios enumeratívos e vice-versa:ver pela leitura os recursos, de que lançaram mão osbrilhantes escritores.

O primeiro trabalho frutífero a fazer, sobre um pri-meiro jacto, é a limpeza; joeirar, comprimir, limpar oestilo, passar por água o filão, desembaraçá-Io dasimpurezas.

(') Saint-Beuve, Pensamentos de José Delorme, xv.

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~ ....-----------A ARTE DE ESCREVER 191

Eis um exemplo dos resultados. que se obtêm peloprocesso da eliminação.

Tomemos um fragmento de um escritor contem-porâneo.

Poderia considerar-se um primeiro jacto ruim. Con-sideremo-lo pois em primeiro jacto.

Só cortaremos aquilo que é inútil, e faremos inter-verter o que pode ser transposto.

Texto Impresso

Um aspecto de feira

Texto corrigido

Nada mais interessante doque a chegada das carrlolas dossaltimbancos. Entre esses uei-culos, alguns há que são deum luxo inaudito; notam-secortinas bordadas nas janelase no interior tudo brilha comespelhos e dourados. Mas o quenos seduz de preferência é aantiga e clássica carriola, deum verde de alho bravo. malassente nas suas rodas. tendoos postigos fechados com umbocado de paninho ordinário;e sobre os varais da qual seenxergam algumas rodilhas.Na frente está pendurada umagaiola amolgada, onde um peri-quito depenica uma folha dealface.

Este veículo é o do ban-queiro boêmio. - pois o bancotem os seus boêmios. do mesmomodo que a política e a litera-

Nada interessa como a che-gada das carriolas dos saltim-bancos Há-as de um luxoinaudito: cortinas nas janelas.interior brilhante de espelhose dourados. O que mais seduzé a antiga. a clássica e verdecarríola, mal assente nas suasrodas. postíqos fechados porpaninho ordinário e. sobre osvarais. r o d i I h a s a enxugar.À frente. uma gaiola. onde umperiquito depenica alface.

É o veiculo do banqueiroboêmio (o banco tem os seusboêmios. como a política e aliteratura). Essa carriola atrai

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192 A ARTE DE ESCREVER

tura, - mas atrai-nos mais queo casinhoto do saltimbanco re-mediado, que vai instalar-seorgulhosamente no belo centrodo campo da feira.

A miserável carriola dopalhaço da velha sonâmbulaextra-lúcida, do pobre diabodo azteca, essa procura osrecantos, as esquinas das vie-las, encostada a uma velhaparede, à beira de um terrenobaldio, e calçam as suas rodascom alguns pedaços de tijoloapanhados num monte de entu-lho. Procura a sombra, a soli-dão e não trai, as mais dasvezes. a sua existência (lI)senão pelo delgado fio de fumo,que se espirele por cima doseu tecto.

Outro espectáculo que nosdetém, é o da carriola do di-rector do carrocel. A outranoite, um desses v e í c u Iasabria-se junto a um passeio,e pela sua abertura distin-guiam-se os cavalos de pau,empilhados uns sobre os outros.Aqui e ali. viam-se cabeleirasamarelas ou o veludo desbo-tado de um selim. Diante docarro, tinham-se agrupado osgarotos do bairro. Entre estes.uns tinham a boca muito aberta,os outros o I h a v a m imóveiscomo tomados de admiração.Todas aquelas cabecítas, mal

muito mais que o casinhoto dosaltimbanco instalado no meioda feira.

A miserável carriola dopalhaço da velha sonâmbulaextra-lúcida. do pobre diabodo azteca, procura os cantos,as esquinas das ruas; e encos-tada a uma velha parede àbeira de um terreno baldio,calça as suas rodas com algunspedaços de tijolo, apanhadosno entulho. Procura a sombra.a solidão; e denuncia-se pelofio de fumo, que sai da cober-tura.

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Outro espectáculo é o dacarriola do dírector do carro-cel. Noutra noite um dessesveículos, abria-se junto a umpasseio, e pela abertura distin-guiam-se, empílhados, os cava-los de pau. Aqui e ali, viam-secabeleiras amarelas e o veludodesbotado de um selim. Diantedo carro, tinham-se agrupadoos garotos do bairro, uns deboca aberta, outros imóveis,tomados de admiração, cabecí-tas mal penteadas. cheias decuriosidade. Um rapazito decamisola rota, aproximou-se dacarriola e tentou puxar a cauda

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r,. A ARTE DE ESCREVER

penteadas. estavam cheias decuriosidade. Um rapazito, quetinha a camisola toda rota.aproximou-se da carriola e pro-curou atrair a si a cauda deum dos cavalos de pau. O em-presário chegou. de gesto irado.soltando ameaças; logo os garo-tos fugiram como por encanto.e nós oimo-los ir reunir-se umpouco mais longe. em todo com-primento de uma trave. numaestância de madeira. Dír-se-íaa distância. uma fileira de par-dais. à beira de uma cornija.

193

a um dos cavalos de pau. O em-presário chegou. de gesto irado.ameaçador. e os garotos fugi-ram logo. para se irem reunirmais longe. sobre uma trave.numa estância de madeira;dir-se-ia uma fileira de pardais.na beira de uma cornija.

Tal comotrecho aindamedíocre. Étraços queridades.

Seria necessário refundir tudo, o que seriam játrês jactas.

Eis por que é importante meditar muito, antes depegar na pena.

Outro exemplo daremos:Um autor faz o retrato de sua mãe; é definitivo;

mas poderia ser apenas um primeiro jacto, medíocre.O trecho está escrito com expressões feitas, vul-

gares, que já indicámos serem documento do mauestilo: elegância de estatura. finura de pele. purezadas feições. cabelos sedosos e brilhantes. irresistivelatracção. etc,

está refundido neste segundo jacto, onão está bem, porque a matéria era

uma narrativa correcta, sem relevo. semdeleitem, sem incidentes, sem partícula-

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r194 A ARTE DE ESCREVER

Eis aqui a passagem:

Na altura e elegância da sua estatura, na flexibilidade dopescoço, na atitude da cabeça, na finura da sua pele rosada comoaos quinze anos, na pureza das feições, na flexibilidade sedosados cabelos negros, brilhantes sob o seu chapéu, e principalmentena radiação do olhar, nos lábios, no sorriso, tinha aquela irresis-tivel atracção, que é ao mesmo tempo o mistério e o complementoda verdadeira beleza.

É difícil haver coisa mais incolor; não se vê aliuma pessoa. Só se notam ali qualidades superficiais,que pertencem a todas.

Pode dizer-se aquilo de todas as mulheres. LPintar a sua estatura esbelta. e ágil, elogiar os seus

magníficos cabelos, o brilho da sua tez, a frescura dassuas faces, o fogo do seu olhar, a graça do seu sorriso,a nobreza do seu porte, a distinção da sua pessoa, étudo a mesma coisa.

Mas então que se há-de dizer em vez daquilo?Ora! deverá dizer-se o que é que caracterizava

aquela mulher e não outra. Pintá-Ia, não pelo que elatinha de comum com as outras, mas pelo que tinha deexcepcional, pelos pormenores que a diferençavam, pelascoisas que só se viam nela.

Deveria dizer-se aquilo de outra forma ou vê-lo deoutra forma.

Flaubert diz algures. com originalidade:- «Tem os olhos tão cheios de languidez, que

parece cega!»E noutro lugar:- «Os seus dois olhos brilhavam como duas Iãm-

padas muito suaves.»

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A ARTE DE ESCREVER 195

Eis aqui como Magistral nos apresenta a pessoade Míreílle:

Mireille estava nos seus quinze anos. Outeiros de Fonte-víeílle, e vós, colinas dos Baux, nunca vistes uns quinze anos maisbelos. Fê-Ia desabrochar o sol festivo; e o seu rosto ingénuo efresco tinha duas covinhas à flor das faces. O brilho das estrelasera menos d~e que o seu olhar; os seus cabelos caiam-lhe emtranças negras; e o seu seio arredondado era um duplo pêssego.ainda pouco maduro.

Esta vê-se! Tem vida, posto que geral. Embora!Se vos ocorrem, num primeiro jacto, frases como asque vimos no penúltimo trecho que citámos, e que pas-sam por bem escritas, devereís partir logo esse molde;e, se não descobrírdes outra coisa, procurai mudar aforma.

Rigorosamente, seria preferível qualquer coisa ordi-nária e simpies, como isto:

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Texto citado

Na altura e elegância daestatura, na flexibilidade dopescoço, na atitude da cabeça,na finura da sua pele rosadacomo aos quinze anos, napureza das feições, na flexibili-dade dos seus cabelos negrose sedosos, brilhantes sob o seuchapéu e principalmente na ra-diação do olhar. nos lábios, nosorriso, tinha aquela irresistivelatracção. que é ao mesmo tempoo mistério e o complemento daverdadeira beleza.

Texto proposto

N a sua erecta estatura, noseu pescoço altivo, na sua finapele de jovem corada, nas suaspuras feições, na negra cabe-leira, que brilhava sob o seuchapéu, e principalmente nadoçura do seu sorriso e dos seusolhos, tinha aquela enigmáticaatracção, que completa a verda-deira beleza.

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196 A ARTE DE ESCREVER

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Tirámos pelo menos a altura, a eleqãncie, a [lexibi-lidade, a finura, a pureza, o brilho, a itresistioel atrecçêo,conjunto de palavras incolores, que nada justifica.

Em todo o caso, isto seria mais conciso, menosenfadonho, menos amplificado .

Mas deveriam procurar-se outras ideias.A primeira condição do estilo é ser fácil. desimpe-

dido, ir até o fundo da ideia e brotar naturalmente.Uma vez escrita a segunda inspiração, é necessário

deixá-Ia em descanso; depois se retomará.Ê necessário recuar, para se ver bem; e esse recuo

só se produz, quando a matéria arrefece.Muda-se, sacode-se, refunde-se: aplica-se a esse

segundo jacto a mesma operação que se aplicou aoprimeiro.

O que produz a magia de um estilo, não o esque-çamos, é a condensação, a força, a originalidade, orelevo, qualidades que se não obtêm senão por meio derefundíções sucessivas e por correcções continuas.

Simplificai também as vossas fórmulas, calculai asvossas expressões, mostrai-vos mais rigorosos, não dei-xeis passar nada do que vos possa parecer trivial.

Vede bem se, a cada palavra. não podereis empre-gar locução mais forte.

Pensai no valor dos verbos. no efeito dos substan-tivos; são os verbos e os substantivos que engrandecemo estilo de Bossuet.

Procura i a palavra justa. apropriada. cavai a ideia,não superficialmente. mas por forma que bem se veja oque está dentro, o que se não viu ainda e o que aindase não disse.

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A ARTE DE ESCREVER 197

Não abandoneis uma frase, senão depois de lhedardes toda a perfeição possível. pela justeza, pelo brí-lho e pelo natural.

Quando estiver concluído esse trabalho, depois derecopíado, vereis se não há que empregar terceiroesforço. e quase sempre sentireis necessidade disso.

Deveis antes examinar as coisas mais gerais. o equi-líbrio do trecho. a variedade das digressões. a fluência.a harmonia definitiva.

Não se aprecia bem um trecho, senão quando jánão tem rasuras.

Conviria que a obra fosse recopiada por mão estra-nha. Ê o que explica a obrigação. que Balzac criou. decorrigir o seu estilo nas provas tipográficas.

A nitidez da imprensa. fazendo sobressair os defeí-tos da execução. obrigava-o a ver que o seu trabalhonão estava perfeito. e o escritor via-se na necessidadede fazer mais correcções.

Atentai na execução geral. revede o conjunto. notaicontinuamente as repetições.

Ê preciso recomeçar o mesmo esforço. até que sefique satisfeito.

Ter talento é compreender que se pode escrevermelhor, e possuir os meios intelectuais para realizar aperfeição que se procura.

Os verdadeiros artistas não desanimam. e só estaperseverança é que constitui a pedra-de-toque do estilo.

Um estilo está bom. quando já se: não pode retocarmais; uma frase é definitiva. quando se não pode cor-rigir mais.

O limite desse esforço é evidentemente individual.A exigência parou. ou acabou o talento.

-

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198 A ARTE DE ESCREVER

A minha prosa parece-me excelente: outro poréma pode corrigir.

Mas quê! cada um escreve segundo os seus meios.As operações do espírito são as mesmas em todos.

mas nem todos têm o mesmo talento.A unanimidade da admiração e a impotência uni-

versal para conceber de outra forma um estilo. são. porassim dizer. a consagração desse estilo.

O melhor escritor não poderá melhorar o estilo dePascaJ.

Pode-se desafiar quem quer que seja. a que lheajunte ou tire uma palavra. O carácter do Belo é serindestrutíveJ.

Agora vamos dar um exemplo de refundição e detrabalho literário. para mostrar aonde se pode chegar.de um vulgar ponto de partida.

Um passeio a S. Dinis, depois da exumaçlodos restos de Luls XVI

Quero evocar as ídeías do nada.Impressionou-me a ironia da morte. através da his-

tória. Pergunto a mim próprio para que tende tudo isto.esta sucessão de séculos. desfeitos em pó. Perante estestúmulos. estes crânios. estas caveiras. pensa-se: que foifeito dos seus pensamentos. das suas almas? Que éa vida?

Quero algumas linhas rápidas. um parágrafo. umfragmento. para acabar um capítulo e que seja enér-gico; algumas ídeías grandes resolvidas.

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_a:z S!L _', . • •

A ARTE DE ESCREVER 199

Primeiro Jacto

Eis aqui o que eu encontro para o primeiro jacto:

.-

Quando terminou a cerimônia, pus-me a caminhar pela igreja,donde se despregavam os paramentos.

Pensava na vaidade da vida, perante aqueles túmulos profa-nados; reflexão que se impunha por si própria. e aprofundavaaquela ideia horrivel.

O abismo da morte só contém o nada? A alma humana. porsua natureza. seria destinada a perecer i- Não haverá na. mortemais nada de existência? Não estremeceriam mais aquelas ossa-das? As paixões deste mundo. a glória. a inteligência, a virtude.desapareceriam. para sempre. com a vida?

O eco do túmulo não é mais que o riso de Hamlet? Mais valenão reflectír, fechar os olhos. perante esse abismo. e elevar paraDeus o grito da fé!

Se releio este primeiro jacto. não fico descontente.mas acho-o seco. sem imagens. sem grandeza.

Seria necessário desenvolver tudo aquilo. procurarexpressões com relevo, dar às frases o aspecto e a ele-vação que tal assunto comporta.

Mais vale não escrever, que limitarmo-nos a exporpensamentos medíocres, a que nada dá relevo.

Se eles não têm relevo. que haverá de mais insípidoque um lugar-comum?

Tentemos pois. e refundamos aquilo.

Segundo Jacto

Acabara a cerimónia. Dispus-me a passar pela igreja sombria,que desguarneciam. pouco a pouco. dos seus paramentos. Comose não há-de pensar na vaidade das coisas humanas perante estestúmulos saqueados e violados? E. como se não há-de ir mais

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200 A ARTE DE ESCREVER

longe, como se não há-de reflectir, nem perscrutar o nosso destinoe a nossa natureza? Na morte, haverá só o vácuo? Não conteránada o túmulo realmente? O nada não tem vida? Os mortos nãotêm a sua existência? As suas paixões e os seus ideais desaparece-ram, para sempre, com eles? A glória deste mundo, o crime e avirtude, os amores e as riquezas, a inteligência e o génio, tudoisto não será mais que uma sensação momentânea, que se aniquilacom o coração que as concebeu? No silêncio dos túmulos. só seouvirá o riso zombeteiro? Este riso será a única realidade quedeverá sobreviver à mentira deste universo? Curvemos a cabeça erespondamos ao abismo com este grito dos primeiros mártires:«Sou cristão!»

Isto agora já vai melhor; já tem mais amplitude;temos imagens, mas é preciso que sejam mais empol- •..••••gantes, mais originais. Aquele estilo não sai bem domolde elegante e convencional.

E se eu pudesse produzir o embate de palavras?Se eu pusesse a par algumas expressões desseme-

Ihantes?Há ali matéria para antíteses, e o assunto é fértil.Primeiro, igreja poderá substituir-se por expressão •.•

menos vulgar.Em vez de desquemeciem, seria melhor um parti-

cípio, o que me tornaria a frase mais bela.A segunda frase está prejudicada por saqueados e

violados. Como é uma transição, mais valia expô-Ia sim-ples e harmoniosamente.

Há duas ou três frases, em que se poderiam pôrantíteses; tirar novos efeitos; introduzir palavras quetenham magia.

A propósito do riso e do túmulo, seriam necessáriasexpressões mais incisivas ou, se quiserem, mais macabras.

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A ARTE DE ESCREVER 201

Esta «realidade do riso», de que falo, éuma detrisêo.Conserve-se esta palavra.

Espalhemos, finalmente, alguns epítetos vibrantes einterpelemos as coisas, com mais eloquêncía, segundofor preciso.

Torno a refundir o trecho, frase por frase, e obtenhoa redacção seguinte, que é a de Chateaubríand (subli~nhamos as expressões que têm novidade e relevo):

Terceiro jacto

Concluída a cerimônia, pus-me a passear na besilice, quaseáesarmada. Pensar na vaidade das grandezas humanas, entreaqueles túmulos devastados, seria natural: moral vulgar, quedimanava do próprio espectáculo; mas o meu espírito não selimitava a isto, e penetrava até a natureza do homem.

Será tudo vazio e ausência na região dos sepulcros? Nãohaverá nada nesse nada? Não haverá existência de nada, pensa-mentos de pó? Aquelas ossadas não terão formas de vida, que seignoram? Quem conhece as paixões, os prazeres, os abraços daque-les modos? As coisas que eles idealizaram, criaram e esperaram,serão, como eles, idealidades abismadas juntamente com eles?Sonhos, futuros, alegrias, dores, liberdades e escravidões, poderese fraquezas, crimes e virtudes, honras e infâmias, riquezas e misé-rias, talentos, génios, inteligências, glórias, ilusões, amores ('),- sois acaso, percepções momentâneas, percepções extintas com oscrânios destruidos em que elas se engendraram, com o peito ani-quilado em que pulsou outrora um coração?

No vosso eterno silêncio, ó túmulo, se vós sois túmulos - nãose ouve senão um riso irónico e eterno? Esse riso será o Deus, a

(') Notai como ali se evita bem a monotonia da enumeração;o centro equilibra-se por palavras ligadas por um e: depois con-tinua a frase e precipita-se, para ir descansar nas últimas sílabasde amores.

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202 A ARTE DE ESCREVER

I

i1

única realidade derrisàrie, que sobreviverá à impostura deste uni-verso? Fechemos os olhos; enchamos o abismo desesperado davida com estas grandes e misteriosas palavras do mártir: «Soucristão!»

(CHATEAUJJJW\ND. Memórias, m, pág. 300).

Desta vez, está admirável.Pínturesco, relevo, imagem, atracçâo, originalidade.

elevação de pensamentos, variedade. harmonia. há alide tudo.

Chateaubriand era homem para escrever aquelapágina de um só jacto; mas era bem capaz de a nãoter concluído. senão depois de cinco ou seis refundi-ções. Já sabemos que ele corrigia largamente o queescrevia.

A este esforço de escrever deveriam tender os con-selhos de certos professores de literatura. em vez dese declararem satisfeitos. quando os alunos conseguemrealizar uma forma fácil e corrente entre o vulgar e oelegante.

De forma que aqueles que não pensam em se líber-tar das faixas infantis, e que não podem voar por sipróprios. ficam condenados ao estilo medíocre. escravosde uma forma ordinária e correcta em que o seu talentodormitará durante anos. acabando por se apagar.

Dír-se-ía que há medo da originalidade.As cópias de alunos. premiados ou não. publicadas

em certos Manuais. têm todas o mesmo estilo morno.a mesma forma invertebrada, a mesma frieza imaqina-tíva, o mesmo processo inexpressivo e sorna! E. nãoobstante, os alunos não têm o mesmo temperamento!

Ainda uma vez, devemos mostrar-nos muito severos

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A ARTE DE ESCREVER 203

em matéria de refundição e de emendas, e recomeçar,até que se tenha atingido a expressão que cativa, queseduz, que atrai a vista.

Em vez disto, imprimem-se nos Manuais de Lite-ratura, a título de boas composições, trechos de alunos,em que o mestre deixa passar, sem correcçâo, sem pro-testo, frases de uma experiência e dissonãncia infantis,como esta:

Tal é o crime que perpetrais, julgando que dais apenas lugarà vossa curiosidade. Pensai bem nisto, todos vós que me escutais.Pensei nisto, vós principalmente, etc.

(Discurso do aluno H. J ... Retórica, Iíceu"?"}.

Assim, não vale a pena ensinar harmonia.Apresentam-nos, como cópias definitivas, trechos

que se deveriam considerar somente como primeirosjactos insuficientes, e em que se vêem repetições imper-doáveis, como este exemplo:

.•• Não tenho nunca, bem o sabeís, mostrado nos meus versosum sentimento que não tinha; não tenho cantado nunca o amorquando não amasse: como teria eu podido escrever cantos deódio, não tendo ódio? Porque eu não odiava os Franceses, apesarde agradecer a Deus o ter-nos livrado deles! Não terie podido darsenão conselhos de moderação; mas qual é o alemão que, em 1814e em 1815, pensaria na moderação? Em vão eu teria, inútil Cas-sandra, feito ouvir prudentes conselhos; em vão eu teria faladode justiça, de fraternidade e relembrado o inevitável, etc.

(Carta de Goethe a Guilherme de Hurnboldt, por P ... , alunode Retórica, no liceu" *) .

Em vez de se elogiarem tais trabalhos. deviam-se

. .._--.-----------------._--_.

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204 A ARTE DE ESCREVER

classificar como ruins, e notar, pelo menos, os gravesdefeitos, que eles contêm.

Como ensinareis a escrever, se tolerais tais neqlí-gências?

Ainda mais: a forma vulgar e incolor, contra a qualacautelamos o leitor, é aceita como satisfatória, e atése lhe concedem menções oficiais:

A independência da América! Que grandes ideias despertaesta palavra! Quantas mudanças pressagia aquela assembleía.não só naquela parte da terra, mas em todo o mundo civilizado!Pois quê! duzentos homens, que não recebem a sua autoridadesenão do povo! duzentos homens, sem [eusto, livres de toda aambição pessoal. que no poder só procuram nobres fadigas e a ._'"ocasião de fazer bem! Que mernvilhoso espectéculo! E como, emface daqueles modestos plebeus. parecem miseráveis os congressosdos príncipes, que se reuniam para suprimir uma nação!

(Discursos de alunos, J. J. W ... Retórica, liceu"'*).

I

~)

Poderá ímaqinar-se estilo mais ordinário; mais charro?Depois, todos estes trechos são escritos num estilo

incolor, com as detestáveis expressões estereotipadas,que se devem evitar a todo o custo.

As passagens, que citamos, são tomadas ao acaso.Eis aqui outra:

Caro amigo, sempre coragem e generosos sentimentos! Sem-pre a mesma dedicação à nossa infeliz pátria! Poderei eu quei-xar-me disso, eu, que a amo como vós, eu, que desejaria compar-tilhar as vossas esperanças e aprovar a prudência dos vossosplanos, como lhes admiro o heroismo? Mas, ai se eu vos dissesseque tentásseis sempre, convencido como eu estou, de que os vossosesforços seriam inúteis, combater pela liberdade da Grécia, quando

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A ARTE DE ESCREVER 205

as vossas armas não fariam senão agravar a sua escravidão e pre-cipitar-vos a vós mesmo num abismo de males, dízeí-me, provariaeu assim o meu amor para com ela e para convosco?

(Carta de Políbio a um amigo. F. D ... Retórica. liceu***).

Enquanto nos não revoltarmos contra esta deplo-rável maneira de escrever, o ensino do estilo será esté-ril; nada se ensinará; os conselhos serão inúteis.

Em vez de aprovadas com indulgência, tais expres-sões deveriam ser notadas como o avesso da arte deescrever.

Tais trechos seriam apenas bons como primeiros[ectos, como matéria para desbastar!

Deparam-se-me estas linhas num Manual muitovulgar:

Se a mendicidade encobre a maior miseria, encobre também.às vezes. eu/posa ociosidade! A esses pobres. que poderiam traba-lhar. não nos devemos contentar em lhes dar uma pequena esmola.que não poderá fazer-lhes nenhum bem duradouro; devemos, sequeremos íazer-lhes bem ir-lhes em auxílio. procurando arranjar--lhes trabalho, tiré-los da miséria e [ezec-lhes sentir o que há devergonhoso e de humilhante em viver à custa da caridade alheia,quando se poderia ganhar a vida com qualquer ocupação.

Este estilo é tão ruim, que o professor pôs à mar-gem esta nota indulgente: Um pouco pesado! quandodeveria ter escrito: «Péssimo: deve refundir-se».

Vergonhoso é o mesmo que humilhante ..Tirar da miséria é um estilo de noticiário.Fazer nenhum bem, fazer bem, é de uma pobreza

abominável.

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206 A ARTE DE ESCREVER

Culpose ociosidade, ir em auxílio, viver à custa dacaridade, estilo todo feito. estilo gasto.

Resumamos.Deve-se trabalhar o estilo. refazer as frases. até que

fiquemos satisfeitos com elas e se não possam fazermelhor.

Entretanto. devemo-nos conter. Haveria graves esco-lhos em corrigir indefinidamente.

A correcção deverá ter um termo. Pode-se estragaruma obra. à força de a emendar.

Diz Quintiliano:

Há pessoas que nunca estão satisfeitas com o que escrevem;nunca supõem boas as primeiras ideias: cada vez que põem mãosna sua obra. mudam. riscam e procuram sempre qualquer coisamelhor. Sucede então que esses escritos ficam. por assim dizer.cheios de cicatrizes. e mais fracos do que eram. Admitamos por-tanto que chegue enfim a agradar-nos o que tivermos escrito poisque a lima deve polir a obra. mas não gastá-Ia.

Está muito bem.Gustavo Flaubert é um exemplo característico.Dotado de grandes qualidades de imaginação. escri-

tor superior na Salambó e nos Três Contos, acabou. àforça de trabalho e de exigências. por se dissecar numaespécie de jansenismo literário, e por não ter já carnenem músculos. mas apenas a magreza e a linha.

Devemos portanto conter-nos, e ficar satisfeitosconnosco.

Para saber se tendes o direito de ficar satisfeito,escolhei um mestre esclarecido. um amigo perspicaz;lede-Ihe a vossa obra. subrnetei-vos às suas apreciações.

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A ARTE DE ESCREVER 207

escutai-lhe os conselhos, e fazei as alterações que elevos indicar.

Nenhum escritor, salvo os grandes génios, conse-gue conhecer-se a si próprio.

Os melhores espíritos não estão em circunstânciasde julgar as suas próprias obras.

Uma crítica sincera é tesouro precioso; devemos jul-gar-nos muito felizes em a encontrar.

Não vos rebeleís contra os reparos que vos fizerem.É sinal de talento a maior ou menor aptidão em

reconhecer os defeitos que vos apontarem.Se, como diz o adágio, é difícil conhecermo-nos a

nós próprios, mais difícil é ainda o conhecermo-nos líte-ràríamente.

A docílidade aos conselhos de outrem prova lar-gueza de espírito, senso prático e inteligência, pois quenada custa tanto como sacrificar o que se escreveu eeliminar o que se julgava bom.

Lição Décima Terceira

Da narração

Da narração. - A arte de contar. - A verdadeira narração.-A narração rápida. - O interesse na narração. - Nada dedigressões - A brevidade pode parecer longa. - As boasnarrações.

A elocução, isto é, O que diz respeito à execuçãoliterária. tem principalmente em mim duas coisas:contar e descrever.

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.-••208 A ARTE DE ESCREVER

Falaremos principalmente da narração e da des-crição.

Ambas se confundem muitas vezes, posto que a des-crição seja antes uma pintura e a narração um recitativo.

A narração é um género de composição índepen-dente, é um todo completo.

Sem ·entrar no exame de diversas especies de nar-rações, de que os Manuais se comprazem em multiplí-car divisões arbitrárias, -- narrações oratórias, históricas,anedótícas, poéticas, etc., -- falaremos das condições queconvêm a todas, e das leis gerais que as regem.

O talento de narrar é o mais sedutor, porque é abase da arte literária.

Ainda que toda a gente o veja em si, é mais rarodo que se pensa; e, se é inato em alguns, exige para omaior número muita aplicação e cultura.

Só se escuta de boa vontade o que é bem contado.Não basta só dispor de um assunto atraente, é pre-

ciso também apresentá-lo com beleza e dar-lhe interesse.Algumas pessoas são excelentes contistas, conver-

sando, e chegam a encantar o seu auditório.Daí-lhes uma pena e ei-los embaraçados: Ialta-lhes

.a veia, e deploramos que eles não escrevam como falam.Outros, como George Sand, não sabem conversar,

e só quando fazem estilo se sentem à vontade.Não é novidade que todo o valor da narração está

no interesse, hàbilmente distribuído, isto é, na qradua-ção, com que se encaminha e se aumenta a curiosí-dade do leitor, prendendo-o aos acontecimentos que seexpõem, e dando-lhe o desejo de chegar ao desfecho.

O interesse de uma narração depende da maneira

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A ARTE DE ESCREVER 209

de tratar. de coordenar. de alongar. de desenvolver aexposição. o entrecho, o desenlace.

A exposição faz conhecer o assunto e os aconteci-mentos. Deverá ser tão rápida quanto possível; abreviaros preliminares; ir direita ao fim; não produzir enfado;evitar toda a superfluidade; entrar depressa na matéria.sacrificar o inútil e desprezar os preâmbulos.

Síqa-se o preceito de Boileau:

Seja simples o exórdio e jamais aíectado.

Antes uma frase dramática. ex-ebtupto, do que mui-tas precauções. que paralisam à força de habilidade.

Se a importância do começo não é proporcional aosdesenvolvimentos que seguem. a narrativa já não teráunidade.

Ora. é a unidade que produz o efeito total.Racine zombou espirituosamente desses contistas

pretensiosos. que começam sempre as coisas de muitolonge e aos quais poderíamos gritar:

- «Ah! passemos ao dilúvio!»Ségur principia assim o seu Incêndio de Moscovo:

Dois oficiais tinham-se aquartelado num dos edífícíos doKremlin. Dali. podiam abranger. com a vista. o norte e o lesteda cidade. Por volta da meia-noite. uma claridade extraordináriaos desperta. Olham e vêem as chamas encher os palácios. cujaarquitectura. nobre e elegante. em breve se desmoronará. Salta-vam já para cima do telhado do Kremlin faíscas e destroçosardentes.

Este começo tem a própria rapidez do incêndio.Numa exposição. cumpre atender principalmente à

simplicidade. não elevar o tom. nem prometer muito.

14

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(LA-F<JNTAll\E) •

210 A ARTE DE ESCREVER

Nunca digais à gente:«Vínde ouvir uma frase deliciosa,

Escutar maravilhas»;Quem sabe se os ouvintes

Farão conceito igual ao que supondes?

Eis aqui como o inimitável La-Fontaíne, o contistapor excelência, anuncia que vai falar da peste:

Mal. que o terror espalha,E que o céu inventou, como castigo

Dos delitos humanos,A peste, -- é necessário dar-lhe um nome, --

Capaz de encher num diaO reino de Aqueronte,

Fazia guerra aos seres animados.

Cícero diz que a exposição deve sair do assunto.como uma flor da sua haste.

A rapidez e o movimento são, em suma, duas qua-lidades que devem dominar a narração.

Eis aqui, em algumas linhas, como Fênelon contaa morte de Bócorís, rei do Egipto:

Vi-o morrer; o dardo de um fenício atravessou-lhe o peito;as rédeas escaparam-lhe das mãos, e caiu do seu carro paradebaixo dos pés dos cavalos. Um soldado cortou-lhe a cabeça, e,pegando nela pelos cabelos, mostrou-a corno em triunfo, a todo oexército.

Fénelon não teria pintado melhor este quadro numapágina inteira.

O nó da acção é o momento, em que o interesse-

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A ARTE DE ESCREVER 211

avulta, redobra, se enreda e se complica: em que osacontecimentos, as personagens. as circunstâncias. odiálogo. tudo se mistura e se funde. a fim de seduzir.de transviar o leitor. sem que este possa prever no queaquilo dará.

Tal é aquela passagem dos Mártires, tantas vezescitado.

O cristão Eudoro, disposto a sofrer antes o últimosuplício. do que a renunciar à sua fé. é informado deque sua mulher acaba de ser condenada a entrar numlugar infame e que ele a não pode salvar, senão sacri-ficando aos falsos deuses.

Uma tentação horrível se apodera do coração de Eudoro:Címodoceía nos lugares infames! O peito do mártir arqueja.partem-se as ligaduras das suas feridas. e o sangue corre-lheabundantemente. O povo. cheio de piedade. cai também de joelhose repete com os soldados: Secrtiicei! Sacrificai!

Então Eudoro, com voz surda: Onde estão as águias? Ossoldados batem nos escudos:" em sinal de triunfo. e apressam-se air buscar as insígnias.

Eudoro levanta-se. amparado pelos centuriões, e avança atéjunto das águias. Reina o silêncio entre a turba. Eudoro empunhaa taça; os Bispos cobrem a cabeça com as suas vestes; os con-fessores soltam um grito; Eudoro larga das mãos a taça; lançapor terra as águias. e. voltando-se para os mártires. diz: Soucristão!

Há poucas narrações. em que o interesse. que cons-titui o nó da acção, seja tão sabiamente encaminhado.como naquela.

Citemos ainda a admirável narração da morte deTurenne, por Sêvíqnê:

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212 A ARTE DE ESCREVER

Montou a cavalo. no sábado. às duas horas. depois de tercomido; e. como iam muitas pessoas com ele. deixou-as todas. atrinta passos do cabeço aonde ele queria ir. e disse ao pequenoElbeuf: Fica aí. meu sobrinho; não fazes senão andar à roda demim e [ar-me-ies reconhecer. Hamilton. que se encontrava pró-ximo do sitio. onde ele ia. disse-lhe: Senhor venha por aqui;poderão disparar para esse lado. - Tendes razão, -lhe disse ele.- Não quero ser morto hoje! - Mal voltava o cavalo. avistouSaínt-Hílaíre, que de chapéu na mão. lhe disse: Senhor, tenha abondade de ver esta beterle, que eu acabo de mandar assentar ali.Turenne voltou-se e naquele mesmo instante. foi-lhe despedaçadoum braço e o corpo pelo mesmo tiro. que levou o braço e a mão.que seguravam o chapéu de Saint-Hrlníre. Este fidalgo não o vêcair; o cavalo leva-o para onde deixara o pequeno Elbeuf: tinhaa cabeça inclinada sobre o arção: naquele momento. o cavaloestaca e o herói cai entre os braços da sua gente; abre muito osolhos e a boca por duas vezes e fica tranquilo para sempre. Estavamorto e fora-lhe arrebatada uma parte do coração ...

Todas as circunstâncias. que a escritora expõe. eaté as próprias palavras de Turenne, se encaminham aafastar a ideia da morte. que chega como um raio.irónica e desesperada.

O desfecho é o ponto. em que o interesse está satís-feito e em que se resolve o nó da acção.

Ele deverá estar preparado por tudo que precede enunca fazer-se pressentir.

Se o leitor o adivinha. cessa a sua curiosidade e que-bra-se o encanto.

O trecho. que acabamos de citar, pode considerar-seum modelo de desenlace.

Eis aqui outro. igualmente bem traçado.Trata-se de uma aventura. sucedida ao imperador

Galiano:

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11

I!

A ARTE DE ESCREVER 213

Um mercador tinha vendido à imperatriz pedras falsas porverdadeiras; a princesa, irritada, quis que se desse castigo exem-plar ao burlador. Galiano anuiu, e deu ordem para que condu-zissem o mercador à arena. onde seria entregue às feras. O joa-lheiro tremia todo. Os espectadores, ansiosos, nem respiravam;supunham ver sair de um momento para outro, da sua jaula,- um leão. um tigre ou um urso; mas qual não foi a sur-presa. quando viram aparecer ... um carneiro. Toda a gente sepôs a rir. e Galiano disse: Visto que ele enganou. engana-ram-no também.

A primeira condição de um bom desfecho é não lheacrescentar nada. porque o leitor. logo que saiba o queesperava. já não tem vontade de saber; desde que oprincipal desaparece. já o acessório não interessa.

Após a queda da Bilha do Leite. o leite entorna-se:Adeus bezerro. vaca. porco e ninhada.La-Fontaine andou mal em acrescentar:

Deitando um triste olhar 20S seus haveresAssim desperdiçados

Foi desculpar-se com o seu marido.Em risco de uma sova.

Contou cõmicamente a sua históriaE a história se chamou Bilha do leite.

É preciso atender a estes princípios. para escrevernarrações interessantes; o que não impede que os mes-tres tenham pecado contra os mesmos princípios.

O génio toma liberdades, que se recusam ao sim-ples talento.

Por exemplo. está assente que devemos ir dírecta-mente ao fim e evitar as digressões. E. contudo. oD. Juan de Byron está cheio delas.

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214 A ARTE DE ESCREVER

No Gil Bles os episódios ocupam quase tanto espaçocomo o ponto principal.

Nada de digressões. poucos episódios. nada de pro-lixidade. mas vigor. sobriedade e rapidez: eis as qualí-dades da narração.

A concentração. a brevidade. não deve todaviadegenerar em sequidão.

A narrativa deve ter movimento. variedade. atrac-tivo. Evidentemente. tudo isto depende do talento. quenisso se emprega.

Uma narração longa pode parecer curta. e umanarração curta pode parecer longa.

As digressões de Saínt-Símon não aborrecem.Em matéria de literatura. e à parte os géneros e as

regras. tudo se reduz a este aforismo: «Tende talento».Disse um crítico latino:- «A narração. por ser curta. não deve deixar de

ter atractivos; do contrário. seria sem arte ... Um cami-nho alegre e plano. posto que longo. não fatiga tantocomo um caminho mais curto. mais acidentado ou Ira-goso.» ~

Eis aqui uma fábula de Boíleau, A Morte e oLenhador, que é de uma concisão rara:

Sob um molho de lenha. recurvado,E de suor banhado.Um velho lenhadorCaminhava ofegante ...Até que já cansadoE oprimido de dor.Lançou o molho ao chão.Querendo antes morrer;

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,r

A ARTE DE ESCREVER

E cem vezes chamando pela morte.A morte enfim chegou e, com voz forte:

~ Visto que de mim gostas,Que pretendes de mim ~

~ Quem? eu? ~ disse ele, arrependido enfírru ->

Que me ajudes a pôr o molho às costas!

215

Vede agora como La-Fontaíne tratou o mesmoassunto.

A sua fábula tem o dobro do comprimento e, nãoobstante, parece mais curta:

Um pobre lenhador cansado e velho,Sob um molho de lenha que o cobria,

Vergando ao duplo pesoDos anos e do molho,

Procurava chegar à sua choça,E, a custo, os passos arrastava, triste.Deitou ao chão o fardo e meditava

Na sua triste sorte:Que prazeres teve ele,Desde que veio ao mundo?

Quem há mais pobre que ele, sobre a terra?Às vezes não tem pão e não tem nunca

Um pouco de descanso.jua mulher. seus filhos, os tributos,

E os credores, completam-lheUm quadro de desgraça.

Invoca então a morte, e esta acorre,Perguntando-lhe o que é que ele deseja.

~ Era, ~ respondeu ele. -Que viesse ajudar-me, sem demora

A pôr o molho às costas. -Tudo acaba na morte,Mas não lhe demos pressa;

Antes sofrer do que morrer, é estaA divisa dos homens!

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216 A ARTE DE ESCREVER

Entretanto. as condições e as qualidades. de quefalávamos ainda há pouco. subsistem e devem ser toma-das a sério.

É preciso termos para nós que somos humildes,modestos. e que. não possuindo génio. precisamos detrabalho e de cultura para desenvolver as nossas apti-dões.

Não prolongaremos mais este assunto.Os nossos leitores aprenderão nos Manuais de Lite-

"ratura que se deve respeitar na narração a verdade. averosimilhança.

Não tenhamos a pretensão de dizer o que outrosdisseram melhor do que nós.

Poremos de lado a narração oratória. que deve ser ,,,"«verdadeira. ordenada. imparcial e moral».

Bossuet tem-nas admiráveis.Alguns escritores do nosso tempo elevaram a arte

de contar a uma rara perfeição. e bastará mencionar asCartas do Meu Moinho, de Afonso Daudet, que deve-riam ser clássicas nas escolas.

~."

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A ARTE DE ESCREVER 217

Lição Décima Quarta

Da descrição

A arte de escrever. - A descrição deve dar a ilusão do verdadeiro.- A descrição deverá ser «materíal». - O verdadeiro rea-lismo. - Copiar a natureza. -- Haverá inconvenientes? -A descrição sem vida. - Telémaco. - Descrição víva.o=-Homero. - Realismo e processo de Homero. - O relevo atodo o custo.

A arte de descrever constitui um pouco o própriofundamento da literatura. Nem toda a gente trabalhapara o teatro; o diálogo é o apanágio do menor número;mas, já em verso, já em prosa, desde que tomemos umapena, somos chamados a descrever.

~. É a qualidade necessária por excelência e é sobreesta matéria que se pode, frutuosa e pràticamente, ensí-nar a ter estilo.

Todo o homem que escreve qualquer coisa. que nãoseja filosofia. deverá ser pintor. e artista, isto é. deveráter talento descritivo pessoal.

A descrição é a pinturaanim.ada dos objectos.Não enumera. não faz meras indicações: pinta.Não se contenta em caracterizar o que se vê; mos-

tra-o aos olhos. e dele forma um quadro.A descrição é um quadro que torna visíveis as coí-

sas materiais.

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-218 A ARTE DE ESCREVER

Numa palavra, o fim da descrição é dar a ilusãoda vida.

A sua razão de ser, o seu esforço, a sua ambição,é fazer viver, tornar vivos. materiais e tangíveis os por-menores, as situações. os seres. tudo que é físico, prin-cipalmente a natureza.

Aqui é sobretudo a imaginação que está em jogo.uma certa força de ressurreição que evoca o que seviu ou que cria o que não existe .

. A descrição é a pedra-de-toque do talento. É elaque distingue os bons e os maus escritores.

Alguns autores, por mais que acumulem os porme-nores e exornem as suas frases. nada vêem; lêem-sepalavras. e isso não impressiona. Outros há que, apenascom uns traços. são evoca dores admiráveis.

É que uns não sabem e os outros sabem descrever.Pode saber-se escrever e não se saber descrever.Há bons escritores. que não são descritivos. como

Guez de Balzac e Saínt-Evremond: e outros que sãosõmente descritivos. como Teófílo Gautier.

A descrição deve ser viva. É a sua essência. Comoela é a arte de animar os objectos inanimados, depreen-de-se daqui que a descrição é quase sempre uma pinturamaterial, uma visão que se ministra, uma sensação quese impõe. seja paisagem ou seja retrato.

Poremos de lado os conselhos e as consideraçõessupérfluas dos Manuais de Literatura.

Não vale a pena ensinar «que se deve escolher bemo objecto que se quer pintar. o ponto de vista mais Iavo-rável, o momento mais vantajoso, as circunstâncias. oscontrastes. etc.».

Além disso. o conhecimento da etopeia, prosopopeía,

\)•.

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J/

A ARTE DE ESCREVER 219

hipotipose, etc .. não habilita a descrever bem nem asaber o que é uma boa descrição.

Deixemos a outros o cuidado de dividir a descriçãoem «corografia. topografia. prosopografia. etopeia».

Não faltam livros. que podereis consultar sobre aque~Ias categorias estéreis. embora bem aceitas de certosmetodistas.

Contentemo-nos em fixar apenas duas divisões:a descrição prõpciemente dita e o retrato, que é umaespécie de descrição reduzida e de qualidade especial.

Dar a ilusão da vida pela imagem sensível e o por-menor material. eis o fim da descrição.

Quanto mais relevo tiverem os traços. melhor sevêem; quanto mais perto estíverdes da verdadeira natu-reza. mais vida tereís.

Dar aparência de realidade a uma coisa fictícia écolocar sob os nossos olhos a própria visão da natureza.suplantá-Ia pela evocação. torná-Ia palpável e tangível.

Este ponto é extremamente importante.Nenhum Manual, nenhum ensino nos explica por

que é que uma descrição é boa. e porque é que umadescrição é má.

Saibamo-Io nós de uma vez para sempre e não nosesqueçamos mais. porque todas as obras-primas descri-tivas. desde Homero, podem atestar a verdade do quevamos dizer.

Uma descrição é boa. quando é viva; e não é viva.senão quando é real. visível. material.

A realidade e o relevo são as duas qualidades prin-cipais. necessárias. dominantes, da descrição.

Mas, dir-nos-eís. é a descrição realista que nosensinais?

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----~---220 A ARTE DE ESCREVER

Eu respondo: não há outra descrição, senão a des-crição realista, bem compreendida.

A tomar-se o realismo como rótulo de escola, poderárecusar-se, se ele representar as reivindicações de umprocesso sobre outro, o verdadeiro exagerado, o mono-pólio da fealdade, o preconceito de não mostrar senãoo que é baixo, violento, repelente e indecoroso.

Nesse caso, é tão falso, como a escola oposta, aquelaque só desejaria pintar o romanesco, o convencional, ofictício, o belo no mais alto grau, o heroísmo sem mes-ela, o que é irreal, desnatural, quimérico, não observado.

O verdadeiro realismo, o dos mestres, desde Homero,não é mais que o cuidado de interpretar o verdadeiropelo belo, a vontade imparcial de pintar o bom e ohonesto como coisas também reais, como o feio e o mau,

Este realismo, que sabe ver os dois lados da ver-dade, o lado real e o lado moral, deverá ser consideradocomo o próprio fim da arte de escrever e a base eternadas literaturas. É esta confusão que ocasiona tantosmal-entendidos.

Este nobre realismo, aspiração da arte, poderiaassim definir-se:

Método de escrever, que consiste em dar a ilusãoda verdadeira vida, com o auxílio da observaçãomoral ou plástica.

Ver só o lado desagradável ou feio da vida e dascoisas é reduzir a arte, é falsear a própria realidade,que tem coisas agradáveis e belas, é cair no fictício eno convencional.

O realismo é um processo. com que se devem tratarsegundo a realidade das coisas que se querem pintar.sejam elas queis forem.

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-c-,

A ARTE DE ESCREVER 221

A descrição deve ser principalmente real. viva, ver-dadeira, material e com relevo.

Para isso, é preciso, o mais possível; tirá-Ia donatural.

Quereís traçar um carácter? Tomaí-o de entreaqueles que conheceis.

Quereis pintar um retrato? Escolheí-o em volta devós. Mas é sobretudo em matéria de descrição que sedeverá copiar a natureza.

Trata-se de pintar uma paisagem.Se a vistes, se a tendes perante a imaginação, isso

bastará; mas, se a não vístes, íde vê-Ia, descrever-ano próprio local e notai aquilo que vos ocorrer, a evo-cação, o tom, a sensação, os pormenores .

Deveria Fazer-se tudo, segundo o natural.A imaginação não é senão uma memória evocadora.Objectar-me-ão :-- «Não, a arte não é uma cópia, a descrição não é

uma simples fotografia. Se se não escolhe o que é pre-ciso dizer-se, se se não transforma, se se não transfi-guram as coisas, através da sensibilidade pessoal, oquadro será inexpressívo e estranho ao ideal. A arte e,antes de tudo, uma interpretação.»

Vai nisto uma confusão de ideías.Colocaí-vos diante de uma paisagem e descrevei-a,É impossível que façais pura e rigorosa fotografia.A vossa imaginação é uma lente involuntária, atra-

vés da qual. o que se vê, não pode passar sem se trans-formar, sem ser interpretado. sintetizado, aumentado oureduzido, embelezado ou entristecido, comentado ouapresentado.

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222 A ARTE DE ESCREVER

",

o cérebro humano não é aparelho fotográfico e, sequiser, nunca fotografará.

Portanto, quando dizemos:......- «Copiai as vossasdescrições, os vossos caracteres, os vossos assuntos, osvossos quadros, os vossos retratos», não vos preocupea falta de interpretação.

Ela há-de produzir-se por si, e com tanta segu-rança, quanto melhor tiverdes sentido o vosso assunto.Para o sentir bem, é preciso vívê-Io, é preciso vê-Ia.

Quando uma descrição não ressuscita materialmenteas coisas, é porque não foi vista ou porque o artistanão soube ver.

Ter a visão e mostrá-Ia real. é nisto que está todaa força descritiva.

Não receeis fazer apenas a semelhança; é impossívela exactídão, porque a alma humana vê com a sua uni-dade, isto é, com a sua sensibilidade, a sua imagina-ção e o seu pensamento.

Os pintores, com a sua paleta e o seu pincel, nãofarão o mesmo?

Velásquez e Van Díck desceram acaso, por teremexecutado retratos?

O que ressalta das suas telas, o que mais nos sen-sibiliza, é justamente aquela semelhança que se supõe.

Fizeram obras eternas, copiando o que era fugitivo.Assim, em literatura, é fazer um retrato o pintar

uma árvore, uma paisagem, um tipo, uma figura, umaregião.

Reconstituir pela recordação o que se observou, ouobservar no local o que é preciso pintar, não há outroprocesso a empregar na arte de escrever.

Portanto, fazei viva, fazei ver o que desejaís pintar.

Ob"

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A ARTE DE ESCREVER 223

Eis aqui uma descrição que não é vista, que nadamostra e que é, contudo, citada como modelo, nos cur-sos de literatura.

É a descrição da gruta de Calipso, extraída doTelémeco.

Esta gruta era talhada na rocha, com abóbadas cheias depedrinhas e conchas; estava etepeteda com uma pequena videira.que estendia as suas hastes flexíveis, para todos os lados. Osbrandos zéfíros conservavam naquele lugar, apesar dos ardoresdo sol, uma deliciosa frescura.

As fontes, que corrlam com um doce murmúrio sobre terre-nos semeados de amarantos e de violetas, formavam em diversoslugares banhos, tão puros e tão claros, como o cristal; mil floresnascentes esma/tavam os tapetes verdes, de que estava rodeada agruta. Aqui havia um bosque dessas árvores copa das, que dãomaçãs de ouro, cuja flor, que se renova em todas as estações.derrama o mais suave de todos os perfumes; esse bosque pareciacoroar aqueles belos prados e formava uma noite, que os raios desol não podiam penetrar; além só se ouvia o canto das aves, ou oruído de um regato que, precípitando-se do alto de um rochedo.caía em grandes bolhas cheias de espuma, e fugia através doprado.

A gruta da deusa estava no declive de uma colina. Dali sedescobria o mar, algumas vezes claro e plano como um espelho,algumas vezes loucamente irritado contra os rochedos, onde sequebrava, gemendo e elevando as suas vagas, como montanhas.De outro lado. via-se um rio, onde se formavam ilhas. bordadasde tilias floridas e de altos olmeiros, que elevavam as suas cebe-ças soberbas ate às nuvens. Os diversos canais, que separavamessas ilhas, pereciem brincar nos campos: uns rolavam as suaságuas claras com rapidez; outros tinham água serena e dor-mente; outros, por longos desvios, voltavam sobre os seuspassos, etc.

(FÉNELON, Telémaco).

É inútil ir mais longe: é a última palavra da vulqa-

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224 A ARTE DE ESCREVER

! ..

rídade ínexpressíva, o tipo da descrição florida, poética,imaginosa, em que nenhum pormenor é vivo, em quenada impressiona e nada se fixa.

É a insipidez risonha de um estilo incolor e límpído.Encontra-se ali todo o «velho jogo», que, como

vimos, e veremos ainda. persistiu até nós.Aquela gruta «atapetada de videiras», e aquelas

«flores que esmaltam os tapetes verdes», «aqueles bren-dos zéfiros», aqueles «doces murmúrios», aqueles «sua-ves perfumes», aquele regato «que foge através doprado», aquele mar que «se descobre», e que está «lou-camente irritado contra os rochedos», aquelas «ilhas»,que se «formam», este verbo formar repetido váriasvezes; aqueles «canais» que «rolam águas claras. sere-nas c dormentes» e que «voltam sobre os seus passos»,tudo isto nada faz ver, porque não foi visto.

É uma paisagem, feita de elegância, e com as Iór-mulas genéricas, que se usam nos colégios.

E eis os trechos. que se consideram bem escritos.É descrição, como a pode fazer, no seu gabinete,

um homem de imaginação vulgar, que não sente anatureza.

A noção do verdadeiro. do real. da vida observada,tirada dos factos e reproduzida tal qual. é que dá valoràs boas descrições, como sucede em Homero, o inimí-tável pintor, em Teócrito, em Vergílio e, mais tarde,em Bernardim de Saínt-Pierre e principalmente em Cha-teaubriand, que deve ser considerado como pai dadescrição, na literatura do último século.

Taíne notou acertadamente:- «Quando Menelau é ferido por uma frecha

Homero compara o seu corpo branco, manchado pelo

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_.--------. ----------.......---

A ARTE DE ESCREVER 225

sangue vermelho, ao marfim, que uma mulher de Cáríamolhou em púrpura ... »

E depois acrescenta:- «Aquilo é visto, visto como por um pintor e por

um escultor: Homero esquece-se da dor, do perigo, doefeito dramático, tão impressionado está com a cor ea forma. Flaubert e Gautier, a quem consideram sin-guIares e inovadores, fazem hoje descrições muitosemelhan tes ... » (1) .

Todas as boas descrições com relevo recordamHomero.

Os grandes pintores literários, seja qual for a suaescola e os seus processos, têm um pouco de Homero.

Em todos os escritores ilustres. Dante, Verqílío,Cervantes, Teócrito, Chateaubriand, os melhores traçosdescritivos têm o cunho de Homero.

Ora a descrição em Homero é a visão pela cor, anotação pela materialidade, a observação brutal dospormenores visíveis.

O cunho de Homero, aquilo que o caracteriza, àparte a sua elevação moral, o seu alento épico e a noçãoque ele tem das coisas da alma e do ser interior, é queele é um fotógrafo da natureza e das comoções humanas.

A sua descrição é a análise, a decomposição levadaao último grau, de um acto físico, de um facto observado,de um efeito rápido: uma transcrição verdadeira dascoisas, não sõmente sem intervenção aparente de per-sonalidade, mas também com a falta de intenção eausência absoluta de ornatos.

(') TAINE, Viagem na Itália. t. I. pâg. 131.

15

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226 A ARTE DE ESCREVER

Noutros termos, Homero é um realista de gênio, umfotógrafo impassível, que desbasta e que avoluma, quefaz baixo-relevo, que modela e que esculpe, mais doque pinta.

Não é assim que ele nos aparece 'em todas as tra-duções, mas é assim que um artista, como Leconte deLisle, no-lo soube dar, e é assim que o deveremos elas-sííícar.

Vede este recontro, extraído da llíada:

Idomeneu feriu Crimante na boca com a sua lança, e obronze da lança penetrou até o cérebro, quebrando os ossosbrancos; e todos os dentes ficaram abalados, e os dois olhos enche-ram-se de sangue, e o sangue soltou da boca e do nariz. e asombra da morte o envolveu.

Outro:

Peneleu e Lícon, atacando-se. deixaram as suas lanças e com-bateram com as espadas. Lícon partiu o capacete. de penacho decrina. e a espada espedaçou-se: mas Peneleu feriu-o no pescoço.abaixo da orelha. e a espada entrou toda nele. e a cabeça ficoususpensa da pele. e Licon foi morto.

Pátroclo ataca Testor:

E Testor estava curvado sobre o assento do carro. com oespírito abatido; tinham-lhe caído as rédeas das mãos. Pátrocloferiu-o com a sua lança na face direita. e o bronze passou atravésdos dentes e, arrastando-o. tirou o homem do carro. Tal como umhomem que, sentado no cume de alto rochedo. com o auxílio dacana brilhante e da linha. tira um grande peixe para fora do mar.Pátroclo tirou do carro, com o auxílio da lança brilhante. Testor,de boca aberta; e este. caindo. expirou.

E por toda a parte o mesmo processo.

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A ARTE DE ESCREVER 227

Bastará ler, ao acaso, a Iliede ou a Odissele:

Recuou, caiu sobre os seus joelhos, apoiou contra a terra asua mão robusta e expirou ...

Atravessou com uma frecha o pé direito de Díómedes: e afrecha atravessando o pé, enterrou-se na terra ...

Quando saltava do carro, o outro feriu-o por baixo do escudo,no umbigo, e o troiano rolou no pó, agarrando a terra com ambasas mãos. A alma escapou-se-lhe por entre os seus dentes ...

Pátrcclo, pondo-lhe o pé sobre o peito, atravessou-o com asua lança; depois, retirou a lança e os intestinos seguiram-na.

Foi ferido na última vértebra e os dois músculos foram cor-tados, e a sua cabeça, a sua boca e o seu nariz tocaram na terra,primeiro que os seus joelhos...

Foi ferido na testa, por cima do nariz, e os seus ossosestalaram, e os seus olhos ensanguentados caíram a seus pés,no pó ...

Caiu do alto da muralha, como um mergulhador ...A frecha entrou-lhe no pescoço e ele caiu do carro, e os cava-

los recuaram, sacudindo o carro vazio ...Caiu, uivando, sobre os joelhos (ferido no ventre) e curvado

para o solo, sustinha os intestinos com as mãos abertas.

Está-se vendo o processo; pintar as coisas fisica-mente, fotogràficamente.

Homero é fiel a este processo, não só na descriçãodas batalhas, mas também quando pinta a dor deAndrómaca; o terror de Astianacte perante o elmo deseu pai; o velho Príamo na tenda de Aquiles; as via-gens de Ulisses, Caribde e Scila; as jogos e as corridasque fecham a llíada.

Em face de uma personagem ou em face da natu-reza, descreve para fazer ver. e a sua visão é material.

Citemos ainda a inolvidável descrição da morte dospretendentes, na Odisseie:

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228 A ARTE DE ESCREVER

(

Puxou pela sua espada de dois gumes e arremeteu contraLllísses gritando horrivelmente. Mas Lllisses, prevenido, atirouuma frecha e feriu-o no peito, junto ao mamilo, e a Irecha, rápida,enterrou-se no fígado, e a espada caiu da sua mão contra a terra,e ele andou à volta de uma mesa, deitando ao chão as iguarias eas taças cheias; e ele próprio caiu, contorcendo-se e gemendo, ebateu com a cabeça no chão. empurrando um escabelo, com ospés, e as trevas estenderam-se sobre os seus olhos ...

Dirigiu a frecha contra Antínoo, e este ia erguer com asduas mãos uma bela taça de ouro, de duas asas, a fim de bebervinho. Mas Ulisses feriu-o na garganta com a frecha e a pontatraspassou o pescoço delicado. Ele caiu para trás, a taça escapou--se-lhe da mão inerte, e um jacto de sangue saiu das narinas, eempurrou a mesa com os pés, e as iguarias caíram espalhando-sepelo chão. E os outros, erguendo-se em tumulto, olhavam paratodos os lados, procurando agarrar escudos e lanças.

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Homero mostra-nos a noite que chega, dizendo:- «Os caminhos encheram-se de sombra.»Para exprimir que Ulisses tinha saudades da sua

pátria, disse:- «Tinha vontade de tornar a ver o seu país e o

fumo que sai do telhado natal.»Se fala do escudo de Aquíles, parece que estamos

a vê-lo:- «Aquiles pegou no seu enorme escudo, donde

saía uma longa claridade, como a da lua, etc.»Insistamos sobre a necessidade de dar relevo às

coisas, cruamente, porque se os nossos autores realistascontemporâneos, como Zola, Goncourt e Flaubert. abu-saram disso, pode dizer-se que é 'O que mais faltaàqueles que principiam a cultivar a arte de escrever,aos moços que ensaiam o seu talento, a todos aquelesque estão seduzidos de perífrases, escravos da retórica

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II·

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-A ARTE DE ESCREVER 229

dos colégios, ainda hesitantes no estilo inerte 'e semaudácia.

Portanto, para descrever bem, isto é, para dar asensação da natureza, é preciso copiar a natureza.

Lição Décima Quinta

A observação directa

Descrição por observação dírecta. - A intensidade. - Procurarforça e não extensão. - Exemplos de sensações fortes. - Comose movimenta uma ídeia ou uma imagem. - Como se obtémo relevo.

Há duas maneiras de escrever naturalmente:1.° -- Por observação directe.2.° -- Por observação indirecte.

A observação directa

É a copia tirada no próprio local, de lápis na mão.Tendes uma paisagem para pintar, um rio, um pôr

de sol, um sítio.Ide lá; tomai os vossos apontamentos, não simples

notas fotográficas, a vista das coisas e das cores, enotai também a impressão que sentírdes, a vossamelancolia, o vosso estado de alma.·

Regressando a casa, ainda que seja no dia seguinte,

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230 A ARTE DE ESCREVER

recopiareis, poreis em ordem as vossas notas; dareis aoesboço a sua significação total, sintética, geral.

Igual processo para uma personagem, para umafigura, para um carácter.

Estais diante da natureza e quereis descrever umafloresta. Que pormenores escolhereis?

Que coisas se deverão ver e mostrar?Que é o que se há-de reter, de preferência?É o grande ponto, o grande problema, problema

que subsiste aliás, se fazeis a vossa descrição no vossogabinete, de memória e por imaginação.

As rninúcias, que se hão-de empregar, dependemda vossa maleabilidade de espírito, e da sensação quequereis produzir.

Na descrição de uma floresta, por exemplo, apre-senta-se um mundo de sensações: sensações de silêncio,de verduras, variedade de árvores, vegetações enormes,fresquidão, luz principalmente.

Podeis ver a floresta apenas sob uma ou duas des-tas sensações; podeis confundi-Ias todas, insular osdesenhos, variar as tintas, ou pintar por grupos, coma cor geraL rutilante, faiscante. Tudo depende do géneroda vossa imaginação, sóbria ou exuberante.

A melhor descrição não é a que emprega mais coi-sas, mas a que dá a sensação mais forte.

Não se trata de acumular os pormenores; trata-sede exprimir os mais salientes, os enérgicos e os defi-nitivos.

A intensidade está na qualidade e na escolha doque se diz.

Devem-se, portanto, escolher traços em relevo, quesejam de uma observação interessante, inesperada, que

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•A ARTE DE ESCREVER 231

façam imagem e quadro, que mostrem o que há de maisverdadeiro, de mais visível e de mais impressionante.

Para mostrar o silêncio de uma floresta, Flaubertexprime-se assim:

Quando a carruagem parou, havia um silêncio universal;apenas se ouvia o cavalo arquejar entre os varais, e um grito deave, muito fraco, repetido ...

E mais adiante:

o silêncio era cortado, com rápidos intervalos, pelo ruído deuma vaca, que pastava e se não via .

.-',' (FLAUBERT.A Educação sentimental. 1." parte. I).

Bastam alguns traços do mesmo autor, para nosdescrever o fim do dia. à medida que o sol se põe:

Flutua no espaço um pó de ouro, tão fino, que se confundecom a vibração da luz ... O céu está vermelho, a terra completa-mente negra. Sob as rajadas de vento, a areia levanta-se, comogrande mortalha, e cai depois. De repente, numa clareira, passamaves, que formam um batalhão triangular, semelhante a umpedaço de metal. do qual só fremem as bordas.

(FLAUBERT,A Tentação de Santo Antônio. p. 1).

Há duas espécies de descrições: aquela que. con-densando as coisas, se contenta em dizer pouco. esco-lhendo os pormenores mais fortes. como Homero; e aque acumula. liga. multiplica, desenvolve e amontoa:é o processo dos líricos, dos imaginosos: Vítor Hugo,Teõfilo Gautier, Barbey d'Aurevilly. Zola.

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232 A ARTE DE ESCREVER

A condensação e a simplicidade produzem maisefeito que as amplificações sistemáticas.

Quando Tourgueneff, o escritor russo, autor dedescrições admiráveis, para descrever a imobilidade damorte, nos pinta o cadáver exposto sobre o seu leito,com os olhos entreabertos, com «uma mosca que andaentre as sobrancelhas», temos uma sensação tão pro-funda da morte, como se ele houvesse empregado umapágina inteira a descrevê-Ia.

Lembram-se decerto da admirável sessão nocturnada Assembleia dos Anciães, em Cartago, na Selembô,de Flaubert.

A discussão interrompe-se. Há um intervalo dedescanso,

- «E o silêncio torna-se, de súbito, tão profundo,que se ouve o ruído do mar.»

O mesmo autor, para pintar a sonoridade das eis-ternas, diz:

- «O menor ruído tornava-se num. grande eco.»Eis aqui como Tourgueneff faz sentir a grande paz,

a tranquilidade de uma floresta, em Setembro:

o sossego era tão grande, que se podia ouvir, a mais de cempassos, saltitar um esquilo sobre folhas secas, que juncavam já osolo; ou então um ramo seco, que, soltando-se de cima dumaárvore, batia, mansamente, nos outros ramos, ao cair, caía, caía,para não mais se mover, na erva fanada ...

.,_ Como se vê, estes pormenores parecem copiados donatural, com o lápis na mão, olhando e escutando anatureza.

É a transcrição da realidade.

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A ARTE DE ESCREVER 233

Não se pensava em tais coisas, e, contudo, ao lê-Ias,parecem as mais empolgantes, as únicas aproveitáveís.

Eis aqui uma sensação de água fria:

Há o viveiro por onde corre toda a água da montanha,espumando, e tão fria. que queima os dedos ... O rio está cheiode trutas. Entrei uma vez nele. até às coxas; pareceu-me que tinhaas pernas cortadas com uma serra de gelo.

(JÚLlO VALLÉS. A Criança).

Numa palavra, a arte de descrever consiste na esco-lha de certos pormenores empolgantes. com certas ídeíasde relevo e força.

Não se devem procurar muitas; fortes, sim, e, paraque sejam fortes. é necessário somente que sejam obser-vadas. Devemos também reforçá-Ias, valorizando-as,insulando-as, frisando-as. fazendo-as ressaltar.

Em Homem é que se deverá aprender essa artede preparar o relevo.

Eis aqui um exemplo:Trata-se dos jogos, que cerram a lliada:

)

i

Fez erguer um mastro de um navio, e no cimo do mastromandou prender, por um fio delgado, uma pomba trêmula. alvodas frechas.

Aquele que atingir a pomba levará os machados grandes;aquele que, errando o tiro cortar o fio, levará os machadospequenos.

O príncipe Teacro disparou uma frecha com vigor. Errouo tiro, mas atingiu o fio que prendia a ave, por baixo do pé, e airecha cortou o fio, e a po.nbe voou para o céu, enquanto ofio caía.

Não há aqui nenhuma ídeía de primeira ordem,nenhuma imagem grandiosa, nada de genial, mas uma

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234 A ARTE DE ESCREVER

j,

arte particular de descrição. que consiste em ver foto-gràficamente as coisas. em transcrever. passo a passo.a realidade. com uma verdade tal. que nem sequer seperde de vista o fio que cai. quando tudo se acaba ea pomba foge.

Mais outro exemplo do relevo que este processoproduz:

Apolónío de Tiana e seu discípulo Dãmíde apre-sentaram-se a Santo Antônio e tiveram com ele umaconversação. em que contaram incríveis milagres. Depois.foram-se embora.

;.:

Recuando. aproxima-se da escarpa, transpõe-na e fica sus-penso.

Ambos. a par. se elevam nos ares suavemente.Antônio. sobraçando a cruz. vê-os subir.Eles desaparecem.

(FLAUBEn. Tentação de Santo António).

r'It,

Outrem diria:- «Elevam-se nos ares e desaparecem. enquanto

Antônio os vê subir.»Flaubert preferiu separar cada ideia, fortalecê-Ia,

insulá-Ia a fim de nos dar a sensação do tempo e daimportância que tiveram. para Santo Antônio. essesdiversos movimentos.

Suponhamos que eu quero descrever um dueloà faca.

Escrevo isto:

Precipitou-se sobre mim. Voltei-me. desviei o rosto. e. gra-ças a este gesto. o meu adversário já não encontrou obstáculos

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A ARTE DE ESCREVER 235

diante de si. Mas. no mesmo instante. atingi-o na garganta eenterrei-lhe a arma até ao cabo.

Revolvi a lâmina na chaga. onde se quebrou. e saiu com osangue que refervia; e o meu adversário caiu.

Este texto satisfaz, mas não é suficiente para queas Ideias, que contém, produzam todo o seu efeito.A forma é ainda muito froixa.

Vejamos agora o texto de Merimée. que desta vezé vigoroso, condensado, írrepreensível e recorda asmelhores páginas de Homero:

Atirou-se contra mim. como uma frecha; virei o pé esquerdo.e ele nada mais encontrou diante de si; mas atingi-o no pescoço.e a faca entrou tanto. que a minha mão lhe pOl1S0Uno queixo.

Revolvi a lârnina com tanta força que se partiu. E acabou-se.A lâmina saiu da chaga impelido por uma onda de sangue. dagrossura de um braço. Ele caiu para a frente. inteiriçedo comouma estaca.

(MERIMÉE. Cármen. pág. &).

; É lacónico. violento. imaginoso. empolgante.O modo de dizer uma coisa duplica-lhe a intensidade.Se eu digo:- «Cortou-lhe a cabeça. enquanto ele falava». está

muito bem e parece que não há outro modo de dizer.E todavia tornarei mais dramática a idéia, se disser

como Homero (Morte de Dôlon}: «Falava ainda.quando a cabeça lhe caiu».

Assim. vê-se melhor o facto. E o fim da descriçãoé fazer ver as coisas.

Esta frase: - «Surge o dia. a aurora vai apareceu.é a ideia sem a visão.

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236 A ARTE DE ESCREVER

Mas se eu digo: -- «Uma faixa de ouro se formouno horizonte» (Chateaubriand). a visão está aí.

Se eu escrever: «Vi as nuvens passarem sobre a lua.que parecia correr atrás delas». terei exprimido umacoisa bem observada. mas que não terá tanta íntensí-dade, como se eu dissesse: -- Vi as nuvens voarem nocéu sobre a face da lua. que parecia correr ràpidamente(Cha teaubriand) .

Temos agora duas frases, que ainda mostram melhorquanto pode aproveitar a uma ideia o realismo daexpressão e a energia crua do estilo.

Chateaubríand. descrevendo a batalha dos Francos.escreve:

-- «Os cornos dos touros levavam fragmentos hor-rorosos». Esta maneira inexpressiva é insuficiente.

Levavam é um termo geral; e fragmentos horrorosossão igualmente palavras gerais do antigo estilo. recor-dações de Atália, de que se servia quem não ousavaservir-se da expressão própria.

Eis como Flaubert. mais próximo de Homero destavez. exprime a mesma imagem. a propósito de umabatalha, falando dos elefantes:

-- «Longos intestinos lhes pendiam dos harpões demarfim. como rolos de cordame. pendentes de mastros.»

É com este esforço que se deve descrever.Sentireis uma impressão de violência um pouco ínco-

modativa, quando quiserdes pintar quadros realistas;mas este processo não impressionará desaqradàvelmente,quando pintardes a natureza, as coisas belas. os qran-des espectáculos, tudo que nada perde com ser salíen-tado, tudo que o processo contrário poderia tornar froixoe ordinário.

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---- ._--A ARTE DE ESCREVER 237

Resumindo:Para se descrever bem, é preciso fazer viver, pintar

com relevo, com realidade.Para isso, é preciso observar bem, e, para observar

bem, é preciso copiar da natureza, da verdade.A observação direcie é o primeiro género de obser-

vação.Passemos agora à observação indirecta.

1 Lição Décima Sexta

A observação indirecta

Descrição por observação indirccta. - Necessidade de evocar overdadeiro. - Flaubert. - Exemplos empolgantes de observa-ção evocada, - Descrições de memória. - Chateaubríand. -Identidade dos dois métodos. - Evocar a vida ou copiá-lav-e-Descrever o que se viu. - Idealizar o verdadeiro. - A des-crição de fantasia. - Barbey d'Aurevílly. - Mostrar imagina-ção não é descrever. - A fantasia arrasta à puertlídadec ->Exemplos de descrições fantasistas. - A escolha das sensa-ções. - Difusão e longuidão. - O abuso da descrição.

Há paisagens, lugares e coisas, que se podem copiarno próprio local; e há outras, que não estão à vista,ou que não existem sequer.

É por um esforço de imaginação que se pintará oque não existe, e é pelo esforço da memória que se des-creverá o que já não temos à vista.

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238 A ARTE DE ESCREVER

1- Deseriçio Imaginada

Suponhamos que eu quero descrever os antigosCampos Elísíos, a região das sombras, como no Telé-maco; o Inferno, como na Divina Comédia; a queda deum homem no vácuo, como no Bug-Jargal (o anãoHabribrah) e em Nossa Senhora de Paris (CláudioFroIlo); a morte de um homem, que se deixa submergirpelo Oceano, como nos Miseráveis; as batalhas dosmercenários e as ruas de Cartago, como na Salambó; etc.

É preciso. ainda neste caso. procurar auxílio no quese viu, recordar tudo que se pode relacionar com oassunto. e, pelo verdadeiro, dar as aparências do ver-dadeiro ao que o não é.

Irão procurar-se ídeias e sensações a situações aná-logas; poderemos transportar ou adaptar ao nossoassunto o que se observou já.

Rousseau incluía na sua Nova Heloísa as paisagensque amava.

Bernardim de Saint-Píerre serviu-se de um naufrá-gio verdadeiro para a morte de Virgínia.

Chateaubriand transportava para os seus Mártiresas viagens que fizera, e os lugares que tinha percorrido.

Até quando o assunto e os desenvolvimentos deuma descrição são imaginários, deve-se proceder sempresegundo a verosimilhança, a verdade suposta e a obser-vação aparente. Na sua viagem a Lílípute, Swift éadmirável. neste sentido; pinta com um cuidado. umaminúcía, uma seriedade. uma observação calculada epersistente, quadros que são impossíveis e fabulosos:

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A ARTE DE ESCREVER 239

e é por aquele lado que a vida aparece e que surgea ilusão.

Quero pintar o Inferno.Evidentemente, eu nunca vi o Inferno, mas sei que

é um lugar de tormentos e posso colocar nele suplícios,gente que sofre. Ora, gente que sofre posso eu vê-Iae observá-Ia.

Por outro lado, disseram-me que a privação de Deusdeverá ser um dos suplícios dos condenados.

Eu posso imaginar esse género de dores, a avidezírrealizável, o desejo impossível, o írreparável pesar.

É o domínio da humanidade.Podem-se observar coisas similares._.

e Porei as minhas cenas em tenebrosos vales, que des-creverei tão bem, como se os tivesse visto. Colocareiali pessoas famosas pela sua vida e a sua lenda e, seeu tiver génio, farei obra-prima.

Na Selembo, Flaubert reconstituiu uma cidade quenão existe e de que há muito poucas informações.

Mas há coisas eternas, sempre as mesmas, analogiasde assuntos na história dos povos, certas reconstituiçõesanálogas, a natureza que não muda, os exércitos e oscampos antigos, acerca das quaisexistem documentos,assédios conhecidos, factos assimiláveís, batalhas, aspec-tos de algumas terras actuais de África, certos estadosimutáveis de civilização.

Neste caso ainda, observa-se com ° verdadeiro, emnome do verdadeiro, evocando ° verdadeiro, procurandoprecisamente dar aos outros a sensação de que se nãoimaginou e de que deve ser assim.

Vítor Hugo descreveu algures o desaparecimento deum homem nas areias do deserto.

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240 A ARTE DE ESCREVER

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IIEvidentemente, foi obrigado a imaginar o facto, a

imaginar sensações, que tivessem a aparência da rea-lida de.

Eis como ele pinta a cena sem a ter visto:

Sente alguma coisa, como se o peso dos seus pés aumentassea cada passo que dá. A súbitas, enterra-se, duas e três polegadas.Decididamente não está em bom caminho; pára, para se orientar.Neste momento. olha para os pés; os pés desapareceram. e a areiacobre-os. Retira os pés da areia; quer voltar para trás. mas aindamais se enterra. A areia chega-lhe ao tornozelo. Procura arran-car-se. lançando-se para a esquerda e a areia chega-lhe às canelas;lança-se para a direita. e a areia chega-lhe aos joelhos.

Então. reconhece. com indizível terror. que está metido emareia movediça e que tem debaixo dele o meio horrível. em que ohomem não pode caminhar. nem o peixe pode nadar.

Lança fora o seu fardo. e alivia-se. como um navio em perigo.Mas já é tarde; a areia chega-lhe acima dos joelhos.

Chama. agita o seu chapéu ou o seu lenço; a areia sobe cadavez mais. Se o areal estiver deserto. se a terra estiver muito dis-tante. se o banco de areia é dos de pior nomeada. se não houverheróis nos arredores. acabou tudo. Está condenado àquela sepul-tura. àquele horrível enterro. infalível. implacável. impossível deretardar ou apressar. que dura horas. que não acaba nunca. quevos apanha de pé. livre. cheio de saúde; que vos arrasta pelospés; que a cada esforço que tentaís, a cada clamor que soltais.vos arrasta mais para o fundo; que parece punir-vos da vossaresistência com um novo abraço. que faz penetrar lentamente ohomem na terra. deixando-lhe todo o tempo preciso para ver ohorizonte. as árvores. os campos verdes. os fumos das aldeias nasplanícies. as velas dos navios no mar. as avezinhas, que voam eque cantam. o sol e o céu.

Tal desaparecimento é o sepulcro. transformado em maré. quesobe do fundo da terra para um ser vivo. Cada minuto é umdesenrolar de mortalha.

O mísero procura sentar-se. deitar-se. trepar, mas todos osmovimentos. que faz. mais o enterram. Endireita-se. enterra-se;

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-A ARTE DE ESCREVER 241

sente-se deslizar. uiva. implora. grita às nuvens. torce os braços.com desespero. Eí-lo metido na areia até ao ventre; a areia atingeo peito. Não ficou agora mais do que o busto. Ergue as mãos.solta gemidos furiosos. crispa os dedos na areia. quer segurar-seàquelas cinzas. apoia-se sobre os cotovelos para se arrancar àquelaespécie de bainha flexivel; soluça freneticamente. A areia sobe. aareia atinge-lhe os ombros. o pescoço. Agora. somente o rosto estávisível. A boca solta gritos e enche-se de areia.

Silêncio. Os olhos ainda olham; a areia fecha-os; noite.Depois. a fronte desce; à superfície da areia estremecem os cabe-los: uma mão surge. fura a superfície do areal, mexe, agita-se edesaparece. - sinistro desaparecimento de um homem!

(VÍTOR Huoo).

Esta descrição é bela. porque o autor dá a ilusãodo verdadeiro. Acumulou uma sequêncía de sensaçõesreais. Colocou diante de si o seu assunto e pintou tãobem o que quis ver, que iríamos jurar que o viu!

O autor copiou a seu modo o que imaginou. semfrases. sem fantasias. sem lirismo.

Assim compreendida e disposta. a descrição porobservação indirecta pode atingir o mesmo efeito quea descrição à vista, ou como a descrição de memória,de que vamos falar.

II - Descrição de mem6rla

Há espíritos que são rebeldes à notação imediata,e que nada sabem reter, nada sabem escolher momen-tâneamente 'e só depois se recordam do aspecto e dospormenores. Tudo lhes ocorre. logo que deixem de teros objectos à vista.

Ou seja por necessidade ou seja por gosto. desde

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242 A ARTE DE ESCREVER

que já não estiverdes perante o assunto da vossa des-cnçao, tereis de evocá-lo.

Já não tereis a visão imediata, mas procurareísressuscitá-Ia pela evocação, e não a descrevereis bem,senão quando a ilusão for completa, isto é, quando atíverdes presente à imaginação e quando a vírdes, porassim dizer, diante de vós, com os olhos do espírito.

Os pormenores, que não tiverdes notado na própriaocasião. voltar-vos-ão nítidos e salientes, com o relevode uma coisa, vista no próprio momento.

Alguns cérebros são acumuladores, que armazename guardam as impressões.

Vamos reproduzir uma descrição de tempestade, deChateaubriand, que não é muito citada e que deveriaser célebre.

Em toda a nossa literatura, não temos páginasmais belas.

Notai que o autor não a pôde escrever, assistindoa ela.

Quando a vida está em perigo, não se pensa empegar no lápis nem no papel.

Foi, pois, após o drama, e de memória, que Cha-teaubriand escreveu; mas a impressão recebida foi tãoprofunda, que a evocação tem o vigor de um instantâneo.

Eu tinha levado duas noites a passear sobre a tolda, a ouviro marulho das ondas nas trevas, o sussurro do vento no cordame,e debaixo dos assaltos do mar, que cobria e descobria a ponte.Em torno de mim era uma sublevação de vagas.

Fatigado dos balanços e dcs encontrões, no começo da ter-ceira noite fui-me deitar.

a tempo estava horrível. a meu beliche estalava e abanava,com as investidas das ondas que caíam sobre o navio.

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A ARTE DE ESCREVER 243

Dentro em pouco senti correr gente de um "lado para o outro,c caírem rolos de cordame; senti a impressão, que se sente, quandoum barco vira de bordo.

Abre-se a cobertura da escada da entreponte e uma voz assus-tada chama pelo capitão. Aquela voz no meio da noite e da tem-pestade, tinha qualquer coisa de formidável.

Aplico o ouvido e parece-me ouvir os marinheiros discutiremsobre a situação de uma terra.

Salto abaixo da minha cama. Uma vaga inunda o castelo depopa, entra no camarim do capitão, derruba e faz rebolar, mescla-damente, mesas, camas, caixas, móveis e armas.

Alcanço a tolda, encharcado.Ao meter a cabeça na entreponte, presenciei um espectáculo

sublime. A embarcação tentara virar de bordo, mas, não o tendoconseguido, tinha amainado sob o vento.

A claridade da lua, que emergia das nuvens, para logo seesconder nelas, descobria, sobre os dois lados do navio, através deuma bruma amarelada. colinas eriçadas de rochedos.

O mar erguia ondas, como montanhas, para o canal em queparecíamos ençoljndos, e as ondas ora se desfaziam em espumae faiscas. ora exibiam uma superfície oleosa e vítrea. com manchasnegras. acobreadas, esverdeadas, segundo a cor dos baixios, sobreque .agiam.

Durante dois ou três minutos, confundiam-se os vagidos doabismo e os do vento.

Da concavídade da embarcação saiam rui dos. que faziam pul-sar o coração dos mais intrépidos marinheiros.

A proa do navio cortava a massa espessa das vagas com ran-gido horrível; e, ao leme. precipitavam-se torrentes de água. eescorriam. redemoínhando, como à saída de uma comporta.

No meio de tudo. nada era mais alarmante que um certomurmúrio surdo, semelhente ao de uma vasilha que se enche ...

Restava uma experiência a tentar; a sonda não marcava maisque quatro braços sobre um banco de areia. que atravessava ocanal; era possível que a vaga nos fizesse transpor o banco e noslevasse para água profunda; mas quem ousaria tomar o leme eincumbir-se da salvação comum? Um errado movimento da cana,e estaríamos perdidos!

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••••244 A ARTE DE ESCREVER

Um marinheiro de Nova Iorque toma o lugar que o pilotoabandonara. Parece-me estar ainda a vê-lo, em camisa. calças delona. descalço. os cabelos esparsos e encharcados. segurando otimão com as suas fortes garras. enquanto. com a cabeça voltada,olhava à popa. a onda que devia salvar-nos ou perder-nos. Eisque chega a vaga. em toda a largura do estreito. rolando muitoalto sobre si mesma. como se um mar invadisse as ondas de outromar. Grandes aves brancas. de voo sereno. precedem essa vaga.como aves da morte.

O navio tocava no recife. tacteava ...Houve profundo silêncio: todos os rostos empalideceram.Chega a esperada onda. No momento em que ela nos ataca.

o marinheiro dá volta ao leme; e o navio. prestes a cair de lado.apresenta a ré; e a vaga. que parecia tragar-nos. levanta-nos.

Lançam a sonda; traz vinte e sete braças.Um hurra sobe até ao céu. -_

(CHATEAUBRIAND. Memórias).

É esta uma pagma que pode passar por modelo detoda a espécie de descrição.

Vê-se o processo.Parece que nada se concedeu ali à imaginação.Dír-se-ía fotografia.São sensações verdadeiras. que se sucedem.E tal é a força dos pormenores. que se diria que

ali não há imagens. pois que a metáfora se confundecom a ídeía, e a intensidade da visão absorve tudo.

[urar-se-ía que o autor notou as coisas. à medidaque se produziam.

E. graças ao poder de imaginação pessoal. cadasensação é exprimida numa forma absolutamente nova.com uma propriedade e ressonância extraordinárias.

No lugar de Chateaubriand. qualquer Saínt-Lambertou Delílle. pintando a mesma tempestade. teria descrito

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••-A ARTE DE ESCREVER 245

«uma tempestade» qualquer, como se descreve um nas-cer do sol, uma batalha, um tremor de terra, umaepidemia.

Pelo contrário, a tempestade de Chateaubríand, éa sua e não outra.

Não se assemelha àquelas que tendes lido, porqueele não disse senão o que ele próprio sentiu: nada lhejuntou por fantasia: não lhe deu nenhum desses traços,que se lêem em toda a parte e que relembram exercíciosde colégio. .

Ali, tudo é particularizado, com a tecnicidade deum corpo-de-delito, porque tudo foi vivido.

Como os realistas aplicaram este método e só seserviram dele para pintar exclusivamente o trivial. obaixo e o repugnante, confundem este processo com asua escola e acusar-nos-âo de sermos realistas.

Dír-nos-ão :- «Aconselhais a fotografia material: mas o que

será então da imaginação, da fantasia, da moralídade,do bom e do belo?»

Responderemos:- «O que é censurável é a escolha do assunto, a

disposição para só se tratar do mau e do vulgar. Des-crevei o que é bom, o que é belo, o que é moral, o queé elevado e nobre, mas descrevei-o com esse senso doreal, do verdadeiro, fora do que, nada é duradouro.»

Uma descrição não deve nunca parecer imaginada.Eis o grande princípio.Empregai nela o vosso coração, os vossos impulsos,

as vossas aspirações imaginativas: reabilitai o ideal.pintai a virtude, desprezai a baixeza e o vício; massede fiel àquela virtude de escrever exactamente, foto .•

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246 A ARTE DE ESCREVER

gràficame'nte e em relevo. que faz de Paulo e Virgínia.uma obra-prima de verdade e um livro magnificamenteideal.

Dois escolhos há. que sobretudo se devem evitarsempre na descrição: a vulgaridade e a fantasia.

Não falaremos mais da vulgaridade.Bastará que atendais a certas páginas deste livro.

para aprender a fugir do estilo. que nade mostra ..A vulgaridade consiste em dizer o que já se disse.

mostrar apenas pormenores ordinários, como nesteretrato:

Era bela, mas. poste que loura e branca. de uma beleza menosprópria para inspirar o amor do que o respeito.

Os seus cabelos. de rara maqnificência, coroavam uma frontelisa. O nariz era aquilino e orgulhoso. o olhar imperioso e altivo.a boca fàcrlmente desdenhosa. Sem deixar de ter elegância. o seubusto nada tinha das formas etéreas ...

--(JÚLIO SANDEU).

Isto são descrições de passaporte. sinais ínsíqnifí-cantes.

É bastante vulgar o dizer de uma mulher que é bela,loura e branca; que a sua beleza inspira respeito; queos seus cabelos são magníficos; lisa a sua fronte; o seuolhar imperioso e altivo; a sua boca desdenhosa, etc,

O segundo escolho é a fantasia ou antes o excessode fantasia.

A imaginação é uma doida, que é preciso guiar.amparar, servindo-nos dela como de um instrumento;mas não a empregando só por si ou convertendo-a noalvo, da inspiração e da arte de escrever.

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A ARTE DE ESCREVER 247

Se a não dirigirmos. habituamo-nos a ouvir só aela; escrevemos com elegância. deixamos correr o mar-fim. deitamos fogo de artifício. enfeitamos. queremosentontecer. e entontecemo-nos,

Numa palavra. é a fantasia; e. para se brilhar nadescrição. não se chega sequer a mostrar o que sedescreve.

Lede este retrato de mulher. feito por um escritor.que é rei da fantasia:

Era morena. mas morena nos cabeios até o negro de azeviche.o mais belo espelho de ébano que ainda vi brilhar na voluptuosaconvexídade lustrosa de uma cabeça de mulher; mas era loura naepíderrne, e é pela epiderrne e não pelos cabelos que se deve julgarse uma mulher é loura ou morena... Tinha cabelos da cor danoite. mas sobre um rosto de Aurora. pois que o seu rosto resplan-decia com aquela frescura rosada. estonteante e rara. que resistiraa tudo. naquela vida nocturna de Paris. que ela vivia havia muitosanos e que tantas rosas queima à luz dos seus candelabros. Pare-cia que as suas se haviam apenas esbraseado, pois que nas suasfaces e nos seus lábios o carmim era quase luminoso; demais esteduplo brilho harmonizava-se com o rubi que ela trazia habitual-mente na fronte. o que produzia no seu rosto. com os seus doisolhos incendiários. cuja chama impedia de se Ihes ver a cor. comoque um tríânqulo de três rubis. Alta. robusta. e até majestosa.talhada para mulher de um coronel de couraceiros, tinha. aindaque dama nobre. a saúde de uma camponesa. que bebe sol pelapele. e tinha também o ardor desse sol bebido. tanto na alma comonas veias ...

(BARBEY O·AUREVILLY. As Diabólicas).

Isto não é vulgar. é fantasia: não se vê nada. Puraornamentação literária. arabesco recreativo. prurido deestilo, descrição arborescente, virtuosidade e fogo deartifício.

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-248 A ARTE DE ESCREVER

Aqueles espelhos, os azeviches, as convexidedeslustrosas, aquelas Auroras, aquelas frescuras rosadas,aquelas rosas queimadas, aquele carmim luminoso, aque-les olhos incendiários, aqueles rubis, aqueles ardores desol bebido, etc., nada disto pinta uma mulher ou qual-quer pessoa.

E, não obstante, Barbey d'Aurevilly é um escritor;tem ° fogo, o ressalto, a cintilação, a expressão atraente,a sedução do estilo, um estilo enflorado, colorido, íncí-sivo, flamejante ...

Mas nele tudo proveio da imaginação, da fantasiae do capricho.

Vejamos ainda este retrato:

A sua testa, regular, mas estreita, mostrava audácia. Os seuslábios eram de uma imobilidade, que desesperaria Lavater e todosaqueles, que julgam que o segredo da natureza de um homemestá mais expresso nos traços móveis da sua boca, do que noaspecto dos seus olhos. Quando ele sorria, o seu olhar não sorria,e então mostrava dentes de um esmalte de pérolas, como aquelesIngleses, filhos do mar, os têm às vezes, para os perder ou ene-grecer, à chinesa, nas ondas do terrível chá. O seu rosto era com-prido, de faces cavadas, de certa cor escura, que lhe era natural,mas tisnado pelos raios de um sol que, para o ter queimado tanto,não podia ser o sol débil da nevoenta Inglaterra.

(BARBEY D'AuREVILLY, As Diabólicas).

Tais descrições não são mais que um brilhante moví-mento de palavras.

:.;: falar muito, para dizer pouco ou nada.Por baixo daquelas linhas, não se vê ninguém, não

se distingue rosto algum; é apenas fantasia, a propó .•sito das feições de uma cara.

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A ARTE DE ESCREVER 249

Citamos Barbey d'Aurevílly, porque ele encarna umaescola completa de 'descrição fantasista.

Se Homero tivesse empregado este processo, as suasobras dariam cem volumes e não teriam chegado aténós. Os ornatos vaporosos ter-se-iam dissipado pelocaminho.

Imaqine-se o que a fantasia pode inspirar aos dís-cípulos, quando os mestres abusam dela a tal ponto.

Evitai, pois, a todo o custo, esse género de des-crição;evitai~o, porque tem todos os defeitos da ima-ginação e nem uma só das suas virtudes.

A verdade não é aquilo; o caminho directo da arteestá em Homero e naqueles que observam o processo

......,. deste.

Tocadores de flauta, enreda dores de palavras, mala-baristas líricos e coloristas, executantes de variaçõessedutoras. sabeí que não é com subtílezas nem comfantasia que se fazem descrições vivas.

As vezes, é um perigo escrever com muita facilidade;não se pode parar, mete-se poesia em tudo, persequem-se

~ borboletas, pulveriza-se o estilo.Por exemplo, tenho de falar de uma linda tez e

improviso isto:

Tinha a pele transparente c cor-de-rosa, dessa cor-de-rosa deflor fresca, fechada, onde a alma, com um hábito de primavera,insinua a sua frescura embalsamada. Era o tom mate dos lilás,dos belos lilás pendentes. quando o dia enxugou as suas lágrimasde ouro; uma brancura. em que se mesclaria o carmim das rosasde Maio; havia ali transparência e macieza. neve purpúrea de umsol moribundo. etc., etc.

Pode-se continuar indefinidamente neste tom e fazer

. --:-.~_._.-. ~~--~---'-.-

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250 A ARTE DE ESCREVER

mil descrições neste género: mas afinal de contas tereidesfeito a cor, terei feito poesia pateta, mas nada tereimostrado, nem criado.

Muitos escritores acumulam frases sobre cada feiçãode um rosto, sobre cada pormenor de um carácter.Por exemplo:

Os olhos tinham aquela fixidez que revela pensamento pro-fundo, energia interior. Eram negros, daquela cor que absorve obrilho, do negro de ébano na sombra, do azeviche, etc.

A dilatação das pupilas. a claridade irradiada, quando sor-riem ... , a água vista de noite, estrelas afogadas. etc., etc.

o abuso da fantasia inspirou muitas vezes puerili-dades a bons escritores, como Chateaubnand, quandodescreve o nariz do padre Aubry, aquele nariz que«se inclinava para o túmulo!. .. » (Atala, L'" ed.).

Encher-se-iam volumes com as extravagâncias Ian-tasistas de Vítor Hugo e de Saínt-Amand.

Um escritor, que Rousseau estimava, supunha como-ver, escrevendo isto:

Vejo, com prazer a minha barba grisalha flutuar em ondasesbranquiçadas sobre o meu peito e testemunhar a constante bon-dade dos deuses. Brandos zéfiras, que murmurais em torno demim, não vos dedigneis de vir brincar nos refegos prateados, quea minha barba forma debaixo do queixo.

(GESSNER).

Entre os imitadores. a descrição de fantasia chegaa não ser mais que uma figura com papelotes.

Imprimem um traço em cada ídeía, e caem no mau

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II

J

A ARTE DE ESCREVER 251

gosto, supondo-se oriqinais e variados. Vejam esta des-crição, extraída de um escritor conhecido:

o mar sorria ainda ao sol desaparecido. O grande indolenteabraçava amorosamente os rochedos, e retraía-se nas enseadas,oferecendo o seu espelho aos pinheiros inclinados para ele. O ata-lho, que descia até à água, contornava a colina, ocultava-se ummomento, reaparecia mais longe, formava caprichosamente circui-tos imprevistos ao longo dos pinhais, sempre verdes, que lhe ser-viam de cortejo, de espaço a espaço, e que a brisa balouçava, comosaudação monótona à natureza. Caíra a noite. A cúpula infinitado céu bordava de estrelas o seu véu azul, diamantes longínquos,entressachados, aquém e além, pela pérola branca de um planeta.Ao poente, as colinas longínquas, barreira ideal, fechavam o hori-zonte da terra, evaporando os seus perfumes, como uma boca embal-samada, que adormece. E aquela hora tinha uma lentidão estra-nha naquelas trevas Iroixas, em que amortecia o balouçar davaga, em débeis amortecimentos sem fim, etc., etc.

Tudo isto pouca coisa revela.Nada ali é vivo; são flores, frioleiras, guizos atados

às palavras e que se agitam para os pacóvios; má lite-ratura, que se não deve imitar.

Posso dizê-lo, sem receio, visto que não foi nenhumescritor conhecido, mas sim eu, quem improvisou aqueletrecho.

As sensações simples, sóbrias, escolhidas e limita-das, devem preferir-se sempre.

Uma donzela lacrimosa:

Os seus olhos brilhavam corno chamas sob as ondas.

(FLAUBERT) •

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252 A ARTE DE ESCREVER

Vinte linhas Iantasístas, acerca da chuva, não pro-duzem sensação tão forte como esta imagem:

Adormeci, ao ruído da chuva, que tamborilava na capota daminha cabeça.

(CHATEAUBRIAND) •

Nenhuma página de Barbey d'Aurevilly valerá estacomparação, a propósito da lua:

Semelhante a grande pedaço de gelo, cheio de luz imóvel.

(FLAUBERT) •

E ainda isto:

1:: uma morena alta, de grandes olhos, olhos negros, muitonegros, e que ardem; fá-Ias mover, como eu movo, no escritório,um espelho partido, para lançar relâmpagos; e rolam, nas órbitas,sobem ao céu e levam-nos consigo.

(JÚUO VALLES, A Criança).

Censura-se à descrição com relevo o pôr tudo noprimeiro plano e não ter perspectiva. ..,

~ o defeito de Homero (se isso é defeito).Homero fez sempre baixo-relevo,Mais vale cair neste inconveniente, do que descre-

ver com prolixidade.A descrição longa afoga as coisas, em vez de as

salientar.Toda a arte está na sobriedade e na energia.

o segredo de enfadar é o de dizer tudo.

(VOLTAIRE) •

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~----------

A ARTE DE ESCREVER 253

Evitai a profusão e a fadiga, tão justamente crítí-cadas por Boileau:

Salto vinte folhetosPara Ihes ver o fim,

E salvo-me, fugindo para o campo.Fujam todos da estéril abundânciaDe tais autores. O que longamenteSe exprime é sempre, sempre fastiento ...Quem não sabe ou não pode restringir-se,

Escrever nunca soube!

Aos verdadeiros grandes mestres basta uma pínce-Iada, alguns traços artisticamente escolhidos, para pintarvivamente os objectos e pô-los diante dos olhos.

Vede a pintura do gato em La-Fontaíne:

Este é terno, gracioso, aveludado,Mosqueado, humilde em sua cauda longa,Olhar modesto em olhos luminosos ...

,

1 Depois o galo:

O outro, inquieto, sempre turbulento,Tem voz cortante e rude,

Um pedaço de carne na cabeça,E uma cauda em penacho,Com que se eleva, como que voando.

Para uma festa de igreja:

Ouvem-se os sinos do lugarejo; os camponeses largam osseus trabalhos; o vinhateíro desce da colina; o lavrador acorreda planície; o lenhador sai da floresta; as mães, fechando as suascabanas. chegam com os seus filhos; e as raparigas deixam as suascoces, os seus rebanhos e fontes. para assistir à festa.

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.-

254 A ARTE DE ESCREVER

Mas, dízeís que Homero também caiu na prolixidade.que tem enumerações fatigantes, repetições enfadonhas,comparações de «longa cauda», como lhes chamavaPerrault.

Certamente; mas no que é bom é que nos devemosassemelhar a ele, e não seguir o exemplo de Chateau-bríand, que algumas vezes imitou Homero desastrada-mente nos Mártires como, entre outras, na passagemseguinte (combate dos Francos e dos Romanos):

A cavalaria romana move-se para aniquilar os Bárbaros. Clo-dião precipita-se ao seu encontro.

O rei cabeludo cavalgava uma égua estéril. meio branca, meiopreta, criada entre rebanhos de renas e de esquilos, nas coudela- ~.)rias de Faramundo: os Bárbaros entendiam que ela era da raçaáe Rinfax, cavalo da Noite, de crinas geladas, e de Siliniex,cavalo do Dia, de crinas luminosas. Quando durante o invernotransportava seu dono num carro de cortiça, sem eixos e sem rodas.nunca os seus pés se enterravam na neve; e mais ligeira que afolha de videira, arrastada pelo vento, roçava levemente a facedas neves recentemente ceidss. Um combate violento se trava. entreos cavaleiros, nas alas dos dois exércitos, etc.

Esta genealogia do cavalo de Clodião retarda a mar-cha da narrativa, com que nada temos, e faz perdê-Iade vista,

Em nosso tempo tem-se abusado da descrição, queestá em risco de morrer de afectação alambicada, comomorreu de sensaboria e de vulgaridade no século XVlII.

depois de Saint-Lambert, Roucher e Delille,Este género persistiu em prosa; e, na última metade

do século findo, recrudesceu furiosamente.Zola fez dele a sua especialidade.

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A ARTE DE ESCREVER 255Evitai tal abuso. Sobretudo, não façais trechos sepa-

rados, colocados de propósito em tal ou tal ponto, comofez Zola. Fazei, pelo contrário, que as vossas descrí-.ções não sejam nunca longas, que penetrem a urdidurados factos, que façam corpo com o resto; que estejamem toda a parte e não numa parte determinada, per-didas, por assim dizer, na substância da obra, como osnervos na carne.

Afonso Oaudet teve esse raro mérito.As suas Cartas do meu Moinho, os seus Contos e

o Evangelista são modelos de fusão descritiva.A descrição contínua não se pode admitir, senão

nas narrativas de viagem, como o Verão no Sehers, deFromentin; o Deserto, de Lotí, etc.

Lição Décima Sétima

As imagens

As imagens. - Necessidades das imagens. - O que é uma íma-gemo- Imagens forçadas. - Imagens sobrecarregadas. - Ima-·gens afectadas e empoladas. - Imagens muito sucessivas.-O gosto é o limite das imagens. - As imagens são o encantodo estilo.

Como dissemos, não trataremos de examinar as Iiqu-ras de palavras e as figuras de pensamento.

O leitor encontrará nos manuais de literatura osmais abundantes pormenores, sobre a significação e o

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256 A ARTE DE ESCREVER Tj

valor dos tropos, cuidadosamente catalogados, classifi-cados, circunstanciados, segundo o processo dos antí-gos métodos literários.

Bastará abrir o primeiro compêndio, que nos apa-reça, para saber o que é a prosopopeie, a exclamação,a apóstrofe, a reticência, a preteriçêo, a interrogação,a graduação, a antítese, ° epiioneme, a hipérbole, asilepse, a entonomésie; o pleonesmo, a alegoria, a cata-crese, a sinédoque.

Nada disto tem importância. iSó falaremos das metáforas ou antes, das imagens, I

pois que a metáfora é sempre uma imagem. -j-_

A metáfora consiste em transportar uma palavra, .de sua significação própria, para outra significação, em Tvirtude de uma comparação, que se faz no espírito e que.se não indica.

É uma transposição por comparação instantânea.Se dizeis, falando de Condé: Este leão precipita-se,

Iazeís uma metáfora.Mas diz eis : Condé precipita-se, como um leão, e I

fazeis então uma comparação.Quando o Profeta-Rei disse ao Senhor: a vossa i

palavra é uma lâmpada adiante dos meus passos.!fez uma metáfora; se tivesse dito: A vossa palavra ilu-mina os meus passos, como uma lâmpada, teria expri-mido comparação e não teria havido figura nenhuma.

A metáfora é uma imagem, resultante de uma com-paração subentendida.

Mas uma imagem nem sempre é uma metáfora.A imagem é uma maneira vigorosa de escrever •

.é a maneira de tor~r um objecto mais sensível.Quando Bossuet disse que os homens «se iam enter-

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1! A ARTE DE ESCREVER 257

rando na iniquidade», não fez nenhuma comparação:disse, de uma maneira mais enérgica, imaginosa, queos homens se tornavam cada vez piores. E pinta-nos ainiquidade, como um abismo, por onde o homem descegradualmente.

Pelo contrário, esta frase de Delavigne é uma ima-gem que contém comparação:

A vida é um combate, cujas palmas estão nos céus.

Estes versos de J. J. Rousseau apresentam imagensque não são metáforas:I

I1

Ii

Iii

"

Sua voz formidávelNo inferno reboa;Rumor pavorosoOs ares atroa;A terra, agitada.Treme de terror;A lua sangrentaRecua de horror!

A metáfora faz parte do próprio estilo; é inerente,não só ao estilo, mas até à língua.

Não se pode escrever sem ela; e, falando, empre-gamo~la continuamente.

Fervendo em cólera, voar ao combate, falar comsequidêo. a penetração do espírito, a rapidez do pen-samento, calor do sentimento, a cegueira da alma, atorrente das paixões. o fogo da juventude, a primaverada vida. a flor da idade. os gelos da velhice, o invernoda vida. o peso dos anos. ébrio de glória, gelado desusto. embalado de esperança. etc.

17

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258 A ARTE DE ESCREVER

São isto metáforas, ou, falando mais simplesmente,é nas imagens que reside a grande força do estilo.

Em vez de dizer que Deus amparará uma pessoafraca e desgraçada, Volta ire diz na Zaira:

Deus. que dá força a todo o pusilânime.Ampara a própria cana.Que o vendaval curvara.

Esta ideia: morro prematuramente, reveste-se de umarica metáfora. neste verso de Lamartine.

Partiu-se ainda cheia, a taça dos meus dias.

Racine. em vez de dizer: impediu-se a destruiçãoda raça de David, diz:

E do extinto Dooid se rcacendeu o facho.

A ciência de escrever não consiste toda na imagem:mas o encanto de estilo, a sua cor. o seu brilho. o seuefeito e a sua vida. residem certamente na imagem.

Falaremos, pois, das imagens, em que se compreen-dem as metáforas.

Não se deve abusar das metáforas. porque. com acontinuação, cansam. como ornamentações exageradas;mas não se deve recear multiplicar as imagens.

Segui o conselho de Buffon, que chegou a dizer.a propósito do estilo:

- «Seja cada pensamento uma imagem.»Há metáforas atrevidas, que se vão buscarem

objectos muito pouco semelhantes àqueles que se queremexprimir. como se chamássemos ao trovão a trombetado céu.

l

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A ARTE DE ESCREVER 259

Não se devem tolerar tais metáforas, senão quandoas atenue um por assim dizer, ou outro qualquer rodeio:

Apesar, pois. de todos os cuidados,Não logrou escapar à acção do tempo;

Pode reconstruir-seUma casa em ruínas;

E pena é que o mesmo não sucedaÀs ruínas do rosto.

Devemos evitar as imagens (imagens ou metáforas):1.°...- Quando são forçadas, tiradas de muito longe,

e cuja relação não é bastante natural nem a comparaçãobastante sensível; como quando um poeta chamou relvaaos cabelos de Ceies.

2.° ...- Quando são tiradas de objectos ordinários edesagradáveis, como quando Tertuliano diz, falando dodilúvio universal:

o dilúvio foi a barrela geral da natureza.

3.°...- Quandoideias que se nãode Malherbe:

os termos metafóricos despertampodem ligar. como nesta metáfora

Levanta-te. Luís.E vai, como um leão,

Levar o último golpe à última cabeçaDessa rebelião!

Luís é sucessivamente comparado a [úpiter, senhordo raio, a um leão, e a Hércules, que derruba a hídrade Lerna.

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260 A ARTE DE ESCREVER

Rousseau cometeu erro igual na seguinte estrofe:

o longo inverno. que branqueou os campos.[á não impede o curso dos regatos;E o tépido hálito dos brandos zéfíros

Foi derreter a crostaDas águas.

A crosta das águas. em vez do gelo. é metáforapouco natural.

Evitai todas as imagens forçadas. como a de VítorHuqo, quando descrevia a brancura de uma tez demenina:

Esta criança parecia neve petrificada.

Seria esta uma imagem admissivel. mas prejudicou-aa expressão.

A imaginação é que faz encontrar as imagens.Ora a imaginação desregra-se fàcilmente; e. se nos

deixarmos arrastar por ela. esmaltaremos o estilo comuma ornamentação excessiva. que raia pelo grotesco epelo incoerente.

Afonso Karra escreveu:- «Sucedeu-nos um dia pedir a um nosso amigo.

que. sob a nossa dírecção, pintasse. ditando nós. umretrato de mulher; e. pegando num livro. cujo autor nãoimporta nomear. lemos: «Ela tinha uma testa de marfim.olhos de safira. sobrancelhas e cabelos de ébano. facesrosadas. boca de coral. dentes de pérolas e um pescoçode cisne». Pois bem! este conjunto formava a coisa maishedionda do mundo.»

Um retórico antigo. Quintiliano, chamava às Fiqu-

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A ARTE DE ESCREVER 261

ras os próprios olhos do discurso, mas pedia, continuandoa sua comparação, que esses olhos não estivessem aquie ali, por todo o corpo.

Afonso Karra tem razão.A profusão das imagens violentas ou atrevidas

deforma a visão, falseia a cor e desagrada ao gosto.Fàcilmente se cai na extravagância, quando se pro~

cura a originalidade.É forçar uma imagem o dizer-se:

Embrenha-se nas negras cavernas do crime...

É trivial quem descreve:,'-,

[úpiter, vomitando neve sobre os Alpes ...

Há um livro de Vítor Hugo, em que abundam asimagens extravagantes. É as Canções das Ruas e dosParques.

Em quase todas as suas páginas se vê a que exces-sos pode chegar a imaginação desenfreada, abandonadaà fantasia.

O perigo da fantasia, em matéria de imagens, é cairno preciosismo ou na insipidez.

Vítor Hugo escreve: «Nevam borboletas»! é maisfeliz, quando compara as árvores floridas à «neve per-fumada da primavera»; mas está em maré de mau gosto,quando põe em cena irmãos que assassinam sua irmã.por esta ter tirado o seu véu.

Eu.:

Sobre os meus olhos ...Estende-se um véu de morte:

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262 A ARTE DE ESCREVER

ELES:

Ao menos esse, não o tirarás!

Pala também algures da «tosse lúgubre» dos vul-cões, do «bocejo negro do Etna».

Depois, temos os soldados de uma companhia, queperderam o seu capitão em batalha, e que, pensandonele, por uma linda e clara noite, julgam tornar a ver,ao avistarem o crescente da lua, a «gola do capitão».

O preciosismo e a afectação das imagens são insu-portáveis; todo o escritor razoável as deverá evitar.

Molíêre deixou-nos belos exemplos dessa gíria:Trezei-nos as comodidades da conversação; em vez

de: aproxima i as poltronas.Satisfazei a vontade, que essa poltrona tem, de vos

abraçar; em vez de: sentai-vos,O conselheiro das graças; em vez de: um espelho.La-Motte chama a uma sebe: a Suíça de um jardim.Lemoine, descrevendo o desembarque do exército

francês, diante de Damieta, conta assim a coragem, comque S. Luís se atirou ao Nilo:

,i"-.,

Luis, impaciente,Salta do seu navio;O fogo do seu peitoFaz que despreze a água.

Nada é mais pueril que esta oposição do fogo e daágua.

Balzac escrevia a um homem amargurado:

A vossa eloquência torna contagiosa a vossa dor; e que gelose não derreterá, ao calor das vossas belas lágrimas?

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,.

A ARTE DE ESCREVER 263

Um poeta disse à Virgem Maria:

As tuas lágrimas apaqaríam todo o fogo dos infernos.

Nada é mais vulgar em nossos dias, do que estasaproximações forçadas.

Eis aqui uma metáfora, que foi admirada pelosretóricos dos séculos clássicos, como exemplo de figuraoratória:

ó Deus! que é o homem? é um prodígio? é um conjuntomonstruoso de coisas incompatíveis? é um enigma inexplicável?ou não será antes, se assim posso falar, um resto de si mesmo,uma sombra do que foi a sua origem, um edifício arruinado,que, nos seus compartimentos derruídos, conserva ainda algumacoisa da beleza e da grandeza da primeira forma? Caiu emruínas pela sua vontade depravada; o vértice caiu sobre asparedes e sobre os alicerces: mas, revolvam-se essas ruínas, eencontrareis nos restos desse edifício desmoronado os vestígios dasformações. a idéia do primeiro desenho e o sinal do arquitecto.

Em nossa humilde opinião, tal imagem, tão demo-radamente mantida, destrói e nem sequer deixa ver oobjecto que se quer pintar.

Acabamos por não saber se se trata do homem oude um velho edifício; só se notam destroços materiais.um aspecto de coisas físicas, que faz esquecer a ideiaprincipal.

As regras literárias afroixaram muito, há cinquentaanos para cá, e hoje há muito menos rigor em questãode imagens e de metáforas.

Apesar da opinião de Condillac, segundo o qual senão devia acrescentar nada, que não tivesse analogiacom a primeira imagem, poderiam citar-se muitos exem-

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264 A ARTE DE ESCREVER

plos de metáforas. que se relacionam e nem sempre seseguem lógicamente.

Nada de excessos rigoristas.O talento tudo pode salvar.A imagem muito longa. e fielmente continuada. foi

ridicularizada por Molíére, nas suas Sabichonas:

FILAMlNTE:

Servi-nos prontamenteA refeição amável.

TRISSOTIN:

Para esta grande fome.Que expõem aos meus olhos.Parece-me ser poucoUm prato de oito versos;Creio que mal não faço,

Juntando ao madrigal ou epigramaO oportuno guisado de um soneto,Que, no conceito de gentil princesa.Passou por ser um tanto delicado.

--

As imagens são como aqueles meteoros, que embe-lezam as noites de verão e sulcam os belos céus puros;devem ser numerosas, brilhar e apagar-se depressa.

Há imagens. que os clássicos. sem-razão, conde-navam.

No Hernêni de Vítor Hugo, Dona Sol diz a Hernâni:

Vós sois o meu leão soberbo e generoso ...

O que desesperou. como se sabe. os amadores daantiga tragédia .

•...-

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-A ARTE DE ESCREVER 265

Contudo, aquela palavra encontra-se, não só emMalherbe:

Toma o raio, Luís, e vai como um leão ...

Mas precisamente numa tragédia de Racíne, naquelasúplica, feita por Ester, antes de ver Assuero:

Acompanha os meus passos à presençaDo leão altivo. que te não conhece;Faze que o seu furor acabe ao ver-me.

Por meio da metáfora ou da imagem dá-se vultoe cor às coisas mais abstractas, e apresentam-se osobjectos sensíveis sob traços mais enérgicos e maisgraciosos.

A metáfora personifica as paixões, dá reflexão aosanimais e sentimento e acção às coisas inanimadas:

A onda, que o trouxe, recua, aterrada.

(RACINE).

A clareza e a verdade das imagens dependem, maisou menos, das relações, que existem entre um sentimentoou uma ídeía e o objecto físico, a que se comparam.

Se, por exemplo, o génio ou a eloquêncía de umorador dissipam a obscuridade das minhas ideias, ocor-re-me que o sol produz o mesmo efeito sobre a natureza,e digo daquele orador que é um génio luminoso.

Uma imagem é forte, quando é ao mesmo tempoimagem e metáfora.

Perguntavam a Agesilau por que era que Lacede-mónia não tinha muralhas.

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266 A ARTE DE ESCREVER

E ele. mostrando os seus soldados. dizia:

Eis aqui as muralhas de Lacedemónia!

Como dissemos já. o encanto do estilo está nasimagens.

A poesia. principalmente a poesia. vive de imagens;não se concebe sem elas.

Moliêre contudo tem pouco disso; mas Racine, quesó fez teatro, cultivou muitas imagens, e Shakespeareestá cheio delas.

Vítor Hugo foi o rei da imagem, e Sully-Prudhommequase que a não conhece.

Boileau também possui essa virtude. "'11Por isso é que classificaram os poetas, talvez injus-

tamente, em poetas propriamente ditos e versífícadores.O próprio Pascal, mais prosador profundo do que

colorísta, encontrou imagens empolgantes, quando dissealgures: «Assusta-me o silêncio dos espaços infinitos»:e noutro sítio: «Os rios são caminhos que andam».

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~

\

A ARTE DE ESCREVER 267

Lição Décima Oitava

A criação das imagens

A criaçao das imagens. ~ Como se encontram e se produzemimagens. ~ Imagens de fantasia. ~ Imagens verdadeiras.

Estamos hoje em dia. de' tal forma habituados ànecessidade das imagens no estilo. que não podemospassar sem elas, e até o seu excesso nos não desagrada.

A imaginação emancipou-se.Passaram-se todas as marcas. sem olhar à qualidade.

Aceita-se tudo. admira-se tudo. contanto que seja umaimagem.

As puerilidades. que Boíleau apontava em Saint--Amand. são tidas como fantasias de génio. entre osnossos escritores contemporâneos.

A falta de gosto precipitou-nos no que se poderiachamar a anarquia da imaginação. Bastará que folheeisdois volumes de Vítor Hugo. um em verso de que jáfalámos: As Canções das Ruas e dos Bosques, e outroem prosa. intitulado William Shekespeere. Ambos sãotípicos e revelam o estado da alma. literário e imaqína-tivo, da nossa época.

Isto não impede que a leitura de Vttor Hugo sejainfinitamente proveitosa para o estudo e criação deimagens.

Como havemos de encontrar imagens. e tomá-Iassalientes. quando elas o não são?

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268 A ARTE DE ESCREVER

Vamos ver o que o trabalho e a refundição são osdois meios, afora o gênio natural. que as fazem des-cobrir.

A primeira condição da imagem, como do estilo, éser nova, com relevo, original. criada e empolgante.

É preciso evitar, a todo o custo, empregar imagensusadas, que serviram a toda a gente, como: o venenoda lisonja; o facho da discórdia; a corrente da demo-crecie: a espada da lei: a balança da justiça; os etmi-nhos da realeza; a águia de Meaux; o cisne mantuano;a pérfida Albion: a moderna Babilónia; a lusa Atenas;a tirania das paixões; os raios da eloquêncie ...

Noutros termos, é preciso renovar as imagens; semisso, o estilo não ê mais que o «vestuário de uma retô-rica, feita em pedaços, à força de ter servido a todaa gente».

Barbey d' Aurevílly, que teve o dom da imagemestonteante e fantasista, censura George Sand de sóter usado imagens antigas, e nota nas Cartas a Márcia,da autora da Indiana, este gênero de imagens, que cons-titui a feição de George Sand:

Trata-se sempre de tempestades, de ruínas que desabam, defolhas secas, que o vento da morte dispersa, da pomba que cons-trói o seu ninho solitário (para dizer: celibato), de vulcõesentreabertos do solo (para dizer: paixões acalmadas), do anjo dodestino, da lámpada da fé; do reinado da verdade que se anunciano horizonte; do vulcão, do eterno vulcão, que vomita pelas suasmil crateras lava e lodo; e finalmente do escudo, para dizer o sen-timento que defende o coração!

Pois bem! - haverá um só destes tropos decrépitos e solenesque. francamente. esteja acima do alcance de um Prudhommequalquer. que queria dizer as mesmas coisas que George Sand?

.J.

IIi'.

(BARBEY D'AUREVILLY. Les Bas Bleus, pág. 60).

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A ARTE DE ESCREVER 269Por outro lado. há imagens. que se podem rejuve-

nescer.Shakespeare disse:- «Olhai este luar. que dorme sobre este banco».

(Mercador de Veneza).Chateaubriand repetiu:- «O mar que dormia.»E Lamartine por sua vez:

Na fímbria do horizonteA Lua se balança;E sobre a verde relvaDormem seus froixos raios.

A palavra «dormir» sempre produziu imagem. etiraram dela lindos efeitos:

o largo clarão da lua.A beira da água dormente...

(V. HuGO).

E despertou os filhos que dormiam...

(V. HUGo).Aprazem-se as florestas.Tenebrosas. suavesOnde o silêncio dormeNo veludo dos musgos.

(V. HuGO).

Pascal chamou ao sol «essa brilhante luz. lâmpadaeterna para iluminar o universo».

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270 A ARTE DE ESCREVER

Após ele, Lamartine disse:

Como áurea lâmpada, no azul suspensa,Vê-se a Lua, no extremo do horizonte.

E depois Leconte de Lísle:

Sozinha, a Lua pálida,Iluminando nuvens,Oscila tristemente,Como -lêmpede moma ...

É assim que cada qual pode renovar uma mesmaimagem.

Criar imagens é uma arte. A sua originalidade ea sua vivacidade dependem evidentemente da imaqina-ção pessoal de cada um; mas há uma espécie de imagens,que se podem descobrir, mais Iàcilmente do que outra.

É preciso aplicar atenção, pensar nas diversas rela-ções que os objectos podem apresentar; nas ideiasde [lenco, que lateralmente evocam; nas semelhanças,nos contrastes, nas antíteses.

Processo excelente, para encontrar imagens, é desen-volver a ídeia. exaqerá-la propositadamente.

Ernesto Dupuy fez curiosas observações sobre omanuscrito da primeira Lenda dos Séculos, de VítorHugo.

O simples aspecto dessas páginas, o estado do texto,as adições que estão à margem demonstram os processosdo poeta.

Nota-se que o seu constante cuidado era chegar àimagem forte, alargando a expressão que não era bemexpressiva.

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A ARTE DE ESCREVER 271

- Vítor Hugo escrevera primeiro:

o demônio batia em sua forja;Bramia ...

«Mas a palavra bater parece-lhe pouco expressiva.Retoma a sua ídeia, aquece-a na forja e faz saltar estasfaíscas:

E, batendo cinzel, pilão e malho,Estremecer faziaToda a horrível caverna.Os martelos, ferindo,Expediam relâmpagos,Formando tempestade.Os olhos chamejantes,

Dir-se-íarn duas brasas na cabeça.E ele bramia ...

«Em Bioer,retrato de Cíd,abstracções:

o primeiro esforço tinha produzido estequase todo feito de epítetos morais e de

Absoluto imperáveis.Poderoso, brilhante.Tendo nas mãos a lança,Penacho na cabeça ...

«o poeta sente a necessidade de alargar, esclarecere animar esta definição do herói das Espanhas, e afórmula primitiva transforma-se nesta:

Tudo quanto não fosseO comandar exércitos,Julgáveis fumo e nada,

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272 A ARTE DE ESCREVER

~

II

E vós só aceitáveisQue o Cíd heróico fosseA magistral figura.Sem chefes e sem jugo.Vós do:nináveis tudo.Altivo. lança em punho.Penacho na cabeça.

«No Ano Novo da Heqice, que desde os primeirosversos nos apresenta um retrato expressivo do profetado Islão, a fisionomia moral de Mafona cifra-se apenasem dois traços:

Ante o pilar sagrado.Rezava Iongamente

E jejuava por inaís tempo. que outrem.Nos dias de jejum.

III

«Estas refundições do pensamento não são reais.mas o manuscrito demonstra principalmente até queponto Hugo possuía o cuidado e a ciência da palavra.

«O que o poeta procura. nos seus numerosos reto-.ques, que influem nos pormenores da expressão. é orelevo. ou a cor. ou a harmonia.

«Quem tiver o ouvido exercitado na harmonia doverso, sente a diferença de sonoridade. que existe entreesta forma de alexandrino:

Mas que sabemos nós? Quem sonda o fundo às coisas?

Que sabemos nós! Quem conhece o fundo às coisas?

.e esta que substituiu a primeira:

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A ARTE DE ESCREVER 273

cHugo apaga frequentemente a palavra mais nobre:

Sonhou BOO2: que um carvalho lhe saiaDo ventre e se elevava até aos céus.

«Hugo escreveu sucessivamente as suas ilhargas.a sua ilharga. o seu ventre.

«Poderá dizer-se que aquilo não é mais que umacaracterística de escola; mas há casos, em que a simplesaparição do termo trivial transfigura o verso:

I

I1i

\

Aquela, com quem eu dormia, há muitoque abandonou meu leito,

Fugindo para vós, Senhor! E, todavia,Ainda nos sentimos ImpregnadosUm do outro, mas ela meio viva,

E eu, Senhor, meio morto.

Esta magnífica expressão - impregnados um dooutro. foi substituir esta forma trivial:

E um e outro formamos inda um par.

«Coisa curiosa I Hugo, que não é capaz ou que nãosente a necessidade de pôr diques à sua fluência, encurtacom cuidado a expressão e expulsa do seu verso ostermos de recheio.

«O famoso filólogo Darmesteter (1) observa:- «Vede o que Vítor Hugo tirou da palavra [uiva.

que efeitos inesperados ela lhe fez produzir, unicamentepela maneira como ele a incluiu na contextura da frase:

(') Vie des Mots.

18

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·..274 A ARTE DE ESCREVER

A morte, esqueleto calvo.Atrás deles caminhava.

Nas narinas dos seus cavalos fulvosDíríeís que ressoavaO Oceano ou a floresta ...

«Aqui [uivo é tomado no sentido próprio: que tempelo ruivo (falando-se de animais).

Gabam muito Eviradno.Se ele se deita e sonha,Dír-se-ía Carlos Magno,Já cabeludo e fulvo,Como se fosse um lobo,Mas lobo inofensivo.

«Aqui [uloo está entre o sentido próprio e o figurado.«Significa, acaso, o pêlo ruivo ou bravio, como o

das feras que habitam a floresta?«Finalmente, nos seguintes versos, [ulvo toma uma

acepção nova, extraordinária:

A tempestade é irmãDa [ulo« batalha.

«Eis como Vítor Hugo chega a dar à palavra [uivotodo o horror grandioso das forças misteriosas.»

Quando lemos em Lamartine:«Os leitos múrmuros dos regatos», as ondas «har-

moniosas», são imagens criadas, para que nada nosprepara, nem nos faz supô-Ias.

Assim Vítor Hugo. descrevendo o céu ao fim do dia,diz que. de espaço a espaço, se vê um clarão ~omo se«algum gigante dos ares houvesse desembainhado a suaespada».

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A ARTE DE ESCREVER 275

o mesmo poeta. descrevendo as noites de Junho.tão puras e tão claras:

A alvorada. esperando a sua hora.Parece andar vagueando.

Toda a noite. por baixo do horizonte.

Eis aqui imagens. que se podiam chamar essencial-mente imagens de imaginação. que surpreendem pelo seuimprevisto. de uma qualidade que sentimos difícil encon-trar por nós próprios. que revelam o génio. e de quese não pode ensinar a arte.

Mas a aplicação do espírito. o esforço do trabalho,podem fazer-nos descobrir certas imagens.

Uma imagem é uma relação de comparação e essarelação varia infinitamente, conforme o cérebro quepensa e os olhos que vêem.

É preciso pois ler os escritores imaginosos, emboratenham só esse mérito.

À força de compreendermos as suas metáforas.encontramos em nós próprios o mesmo género ou apro-ximações.

Pode suceder que não deis muito, no primeiro esegundo jactos; e então podereis refundir o vosso tra-balho, reflectir, comparar e distribuir.

Se pinto um raio no outono e se comparo os olmei-ros, envoltos em bruma. a «lustres de igreja em diasde semana», será isto uma linda imagem. do génerodaquelas que se podem encontrar com talento e dis-posição imaginativas.

Talvez me tenha lembrado, sem dar por isso, doque diz Chateaubriand, quando compara o pôr do sol

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276 A ARTE DE ESCREVER

ao «lustre, que se desce, quando está concluído oespectáculo».

Um dos frutos da leitura bem feita é ministrar, portransposição, coisas similares às quais ajuntamos algumacoisa nova.

A Lua abre. na onda.O seu leque de prata.

(V. Huoo).

Eis aqui uma imagem, que poderia ocorrer a muitospoetas, e Herédía recordou-se talvez dela, quandoescreveu. acerca do pôr do sol. uns versos, que lhesão aliás tão pessoais:

O sol.,;Fecha as varetas de ouroDo seu leque vermelho.

Assim como num poeta. Vítor Hugo principalmente.uma imagem traz outra, assim pela leitura a imagemdo outro desperta as nossas. ~.

O que constitui a má qualidade das imagens é oseu carácter fantasista e exagerado.

O sol inflamando as evaporações da cidade. parecia oscilarlentamente num fluido de ouro, como pêndulo do relógio dosséculos.

(CHATEAUBRlAI':D) .

As vezes. uma alta coluna se mostrava só, de pé. num deserto.como um grande pensamento se eleva, com intervalos, numa almaque o tempo e a desgraça devastaram.

(CHATEAUBRlAND) .

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A .ARTE DE ESCREVER 277

Eis aqui a comparação, ou antes a imagem de Ian-tasía, a imagem bela; não se baseia na realidade dascoisas, é um pouco fictícia; e só fracamente se relacionacom a semelhança aparente.

Seduz e surpreende, mas é por esse caminho que secai no preciosismo, no requintado.

Pelo contrário, eu diria:

Avista o Nílo onduloso e claro, sob a alvura da Lua. comouma serpente no meio das areias.

(GUSTAVO FLAuBERT, A Tentação).

Ou então, para descrever o rugido do leão, com-para-o a «um longo mugido, forte e cavernoso, como oruído da água num aqueduto» (Flaubert).

E ali temos dois exemplos de imagens verdadeiras:nem o tempo nem a moda poderão influir sobre eles;e não serão excedidos, porque dão sensações exactas.

La-Fontaíne faz que a andorinha diga aos seusfilhinhos descrevendo as sementeiras:

Vedes aquela mão, que caminha nos ares?

Há aqui uma imagem verdadeira, a visão do gestodo semeador, visto por baixo, num campo.

Assim como este pôr do sol. no mar, que desdobrao astro:

Sobre as ondas profundas,Sobre as ondas vermelhas,Como dois reis amigos

Foram vistos dois sóis aproximar-se,Um em frente do outro!

(V. HuGO).

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278 A ARTE DE ESCREVER

1Em resumo, dois conselhos se devem observar, na

arte de criar imagens.Primeiro, ser exigente com a qualidade da imagem,

para evitar o preciosismo e o mau gosto.Em segundo lugar, habituarmo-nos a conservar

apenas as imagens verdadeiras. isto é, as metáforas.que em vez de provocar a imaginação, se impõem a ela.

A leitura de Chateaubriand, de Bernardim deSaínt-Píerre, de Vítor Hugo, de Leconte de Lísle, será,a tal respeito, altamente proveitosa.

Lição Décima Nona

o diálogo

Do diálogo. - A arte do diálogo. - O diálogo escrito e o diálogofalado. - O diálogo literário. - O diálogo convencíonalv-->Deverá fazer-se diálogo fotográfico? - O diálogo falado everdadeiro. - Diálogo justo. - Octávío FeuilIet. - Diálogo do .JI.

autor. - Sardou, Augier. - Como escrever bom diálogo.-O bom e o mau diálogo.

A questão do diálogo ocupa, na arte de escrever,quase tão amplo lugar, como a descrição.

Não é raro introduzirem-se numa narrativa perso-nagens que falam; o movimento de uma acção dependedisso, às vezes completamente.

Pode-se até tratar um assunto exclusivamente emdiálogos, sem obrigação de fazer teatro.

A arte do diálogo merece, pois, algumas reflexões

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___ o -A ARTE DE ESCREVER 279

.-

gerais. à míngua de estudo profundo. que nos levariamuito' longe e se referiria sobretudo à arte dramática.

Não há nada mais difícil. do que o diàlogo!O bom diálogo é a última coisa que se aprende; é

quase um dom.Exige qualidades de movimento. de rapidez. de

elegância concisa e impulsiva. que constituem precisa-mente a vocação dramática.

Há duas espécies de diálogos: um literário. Iraseado,arquítectado, próprio do livro; e outro que é a repro-dução fotográfica da palavra falada. na sua concisãoimprevista. elíptico, febril. saltitante ...

Ora. nada é mais difícil que a arte de equilibrarestes dois extremos. visto que há romancistas. quepatentearam excelentemente o som da palavra falada.como Flaubert, Daudet, Goncourt, e nunca foram bemsucedidos no teatro. em que aliás triunfou Scribe,Feuillet, Sardou, Dumas filho. Augier.

Há. para isto. razões de execução. que seria curiosoestudar numa obra especial.

Neste momento. só examinaremos os meios a empre-gar. para atingir a boa qualidade do diálogo.

Em geral. o diálogo não pode ter a vivacidade. avida. a ilusão do verdadeiro. se estiver escrito no pró-prio estilo da narrativa.

São precisas outras frases. diferentes das frases deum livro ou de um trecho literário; frases concebidas deoutra forma. mais curtas. mais ofegantes. mais incisivas.

É necessário que cada personagem diga poucascoisas ao mesmo tempo. pela razão de que, numa con-versação. cada um quer falar e não ouve. durante muitotempo. o seu interlocutor.

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280 A ARTE DE ESCREVER

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.Salvo as tiradas voluntárias e preparadas, a res-posta rápida é que constitui o interesse de um díâloqo.

Mesmo concedendo algumas linhas a cada perso-nagem. a qualidade das frases é que determinará omovimento e o atractivo do diálogo.

Nada é pior nem mais oposto ao verdadeiro diálogo.que os supostos Diálogos dos Mortos, de FonteneIlee de Fênelon.

É retórica fria e ínexpressiva, uma seqüência defrases literàriamente escritas. postas na boca de certaspersonagens convencionais.

Já se sabe que isto é um género. uma série de Iraq-mentes demonstrativos. que nada têm de comum coma conversação falada; forma antiga de composição. quepermite desenvolver uma tese. expondo-se razões a favore contra.

Tais são os Diálogos de Platâo e o Tratado dosDeveres, de Cícero; os Diálogos sobre a Eloquéncie,de Fênelon: os Entretenimentos sobre a Pluralidade dosMundos, de FonteneIle; os Entretenimentos Metafísicos,de Malebranche; Os Serões de Sen-Petersburqo, deJOSé de Maistre.

Estas espécies de trabalhos podem abranqer-se soba denominação geral de diálogos filosóficos. à imitaçãodos famosos Diálogos de Lucíano, que tinha. a mais,a réplica temível e o relevo da graça.

Vejamos esta passagem de um diálogo de Fénelon:

Bordão ~ Sinto-me vitorioso de um inimigo. que me ultra-[ou: vingo-me dele; expulso-o do Mílanês. Faço sentir a toda aFrança quanto ela é infeliz em me ter perdido. levando-me a taisextremos; dizes tu que isto é para lamentar?

Bayard ~ Sim: devemos sempre lamentar aqueles que vão

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A ARTE DE ESCREVER 281

contra os seus deveres; mais vale morrer. combatendo pela pátria.que vencê-Ia e triunfar dela. Ah! que horrível glória a de destruiro seu próprio país!

Boedão - Mas a minha pátria foi ingrata depois de tantosserviços que lhe prestei. A Rainha fez que me tratassem indigna-mente. por um despeito de amor! O Rei. por fraqueza para comela. fez-me injustiça enorme. despojando-me dos meus bens; atéme tirarem os criados. Matignon e Argougesl Para salvar a vida,fui obrigado a fugir quase só. Que querias tu que fizesse?

Bayard - Que sofrêsseis toda a espécie de males. antes quefaltar aos vossos deveres para com a França e a grandeza davossa casa! Se a perseguição era bastante violenta. retirásseís-vos:mas mais valia ser pobre, obscuro, inútil para tudo, que tomararmas contra nós. A vossa glória chegaria ao cúmulo, na pobrezae no mais miserável exílio.

Bordão - Mas. não vês tu que a vingança se aliou à ambiçãopara me lançar em tal extremidade? Eu quis que o Rei se arre-pendesse de me ter tratado tão mal.

É isto O contrário do verdadeiro diálogo dramático.Falta-lhe vida, movimento.

Desembaraçai a frase da sua estrutura escrita. edai-lhe o aspecto que ela tem na conversação.

Vamos ver um diálogo. que possui o tom da própriarealidade. e que é extraído da Eoenqeliste, de AfonsoDaudet.

A senhora Antheman, a Evangelista. arrebatou ajovem Lina a sua mãe.

A mãe procura a filha, lamenta-se, faz pesquisaspor toda a parte.

Sabedor do caso, o velho sacerdote Aussandon contaa sua indignação a sua mulher, Bonne:

- «Orgulho, não há senão o orgulho naquela mulher! Nemcoração. nem entranhas... A peste anglicana tudo lhe devorou ..•tão fria e gelada! Olha. como este mármore ... »

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282 A ARTE DE ESCREVER

o velho deão. sentado diante da chaminé. bateu violentamenteno fogão com as tenazes. que Bonne, silenciosa. lhe tirou dasmãos. Ele não deu por isso. tão animado estava. e continuou anarrativa da sua visita ao palácio de Antheman:

- «Supliquei. ameacei. procurei chamá-Ia à razão..; Nadaobtive. serão frases de sermão. a insipidez da fé. a utilidade dosgrandes exemplos ... S que ela fala bem. a mestiça ...• muito sota-que de Canaan ... Mas eloquente. convencída ... Não me admiro deque houvesse transtornado aquela cabecinha ... Olha o que ela fez deCrouzat!. .. Ah! mas também. disse-lhe tudo que eu pensava dela.s

E levantou-se. caminhando. com grandes passadas ...- «Finalmente. quem é a senhora? Em nome de que autori-

dade fala?.. Não é Deus que a conduz ... Nas suas acções, nãovejo senão a sua alma ruim e fria. que parece aborrecer a vida eprocurar sempre alguma coisa para vingar.

- O marido estava presente? - perguntou a velha. espan-tada. - E ele não dizia nada? ..

- Nem uma palavra... Apenas um sorriso contrafeito. eaqueles olhos. que queimam. como uma lente ao sol...

_ Mas. senta-te., , estás num tal estado!. ..»De pé. por detrás da cadeira. onde descansava finalmente o

seu grande homem. a senhora Aussandon enxugava-lhe a fronte.inteligente. ampla e cheia; tirava-lhe o agasalho que ele tinhaao pescoço. e que conservava. desde que entrou.

- Ora. vamos. afliges-te de mais ...- Por que não? Tão grande desgraça. tal injustiça ... Faz-me

pena aquele pobre Loire.- Oh! esse ... - disse ela. com um gesto de rancor contra o

homem que tinham. por um momento. preferido a seu filho.- Mas a mãe! aquela mãe. que nem sequer pode saber onde

está sua filha... Supõe-te em frente daquela mulher e do seusilêncio. que a cobardia dos homens autoriza ... ; que fazias tu1

- «Eu? Comia-lhe a cabeça '»Isso foi dito com tão terrível gesto do queixo para a frente.

que o deão pôs-se a rir; e animado pela cólera de sua mulher:- «Ohl mas não acabaram aínda comigo... Nada me impe-

dirá de falar. de os denunciar à consciência pública ... ainda queeu tenha de perder o meu lugar ... »

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-A ARTE DE ESCREVER 283

Palavra desastrada, que de repente acordou a dona da casapara a gravidade das circunstâncias; ah! ah! desde que corriaperigo o seu lugar ...

- «Vais dar-me o prazer de estar sossegado ... Ouves, Alberto?- Bonne! Bonne!. .. - suplicou o pobre Alberto,Bonne nada queria escutar. Ainda se fossem sós, poderiam

arriscar a partida.Mas havia filhos; Luis, que ia passar a subchefe; a colocação

de Frederíco, o mais velho ...Poderosa, como era aquela gente, bastaria que fizesse um

sinal..;- E o meu dever? .. - murmurou o deão, que afrouxava.- Já o fizeste, e até de mais! Julgas acaso que os Anthemans

te perdoarão as palavras duras, que Ihes dirigiste hoje? Oraouve ... »

Tomou-lhe as mãos e convenceu-o com razões.Naquela idade, gostaria ele de correr aventuras? ..Ele dizia sempre: no alto da colina... no alto da colina ...

Mas devia recordar-se bem do trabalho que haviam tido parasubir ... E aos setenta e cinco anos cair sobre os joelhos, era duro!

- Bonne ...Era a última resistência pela honra; pois que os argumentos

de sua mulher acabavam de confirmar os dos seus colegas ...

Eis aqui verdadeiro diálogo falado e não diálogoescrito.

Não esqueçamos, contudo, que há na fotografiapura e simples da conversação um escolho a evitar:é a rudeza e a vulgaridade; acaba-se por não ser elo-quente, à força de ser terra-terra.

São exemplos os diálogos de Henrique Monnier,conversações vulgares, sobre qualquer assunto, e quenão têm outro valor, senão o da reprodução fiel do calãovulgar.

Numa palavra, nada de construções fraseadas, nadade rodeios afectados, nem de molde literário.

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284 A ARTE DE ESCREVER

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Soltai a frase, deíxaí-lhe a espontaneidade, o portevivo, a oportunidade do momento, a crítica e o impre ...visto da réplica; o diálogo entretanto deve ser dirigidocom tacto, sabendo ainda a estilo, não estilo narrado,expositivo e aplicado, mas estilo discreto, uma intençãode eloquência; cumpre que se sintam as rédeas, sem quese veja a mão.

Os diálogos dos romances de Octávio Feuillet sãomodelos, sob este ponto de vista.

Devem-se ler constantemente.Eis aqui um exemplo. tirado, ao acaso, de um dos

seus livros menos célebres.A senhora Rias recebe a visita de sua prima, a

senhora Estrêny, que procurara, embora baldadamente,atrair a si o senhor Rias.

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A conversação estendeu-se largamente sobre assuntos vul-gares; depois, fez-se silêncio. apenas interrompido pelo crepitarda lenha do fogão e pelos suspiros da Duquesa.

- Estás incomodada? - perguntou secamente a senhora Rias.sem erguer os olhos do seu bordado.

- Por que me perguntas tu isso?- Não fazes senão suspirar ...- Símv.., não me sinto bem... e depois tenho vontade de

chorar ...- Por que é que tens vontade de chorar? ..- Que queres? .. sempre a mesma coisa? ..- Que coisa?- Sou tão infeliz com o meu marido!- E esperavas, então, ser mais feliz com o meu? - disse a

senhora Rias, erguendo subitamente a cabeça e olhando de frentepara a Duquesa.

A senhora Estrény, após alguns segundos de muda confusão.deixou-se cair aos pés de sua prima e, envolvida nas suas amplasroupagens, rompeu em soluços e murmurou:

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A ARTE DE ESCREVER 285

-- Que pensarás tu de mim?-- Penso que não és boa amiga ...• eis o que eu penso.-- Asseguro-te que sim. asseguro-te ... Foi um momento de

loucura... eu tinha-te inveja... invejava a tua felicidade. con-fesso ...• mas fui tão castigada. tão humilhada! Eu vi bem queteu marido me não amava!

-- Suponho que não sou eu quem te deve consolar dissoI-- Tranquilíza-te ... , ele só te ama a ti!- Não é por tua vontade. francamente!. .. Vamos, levanta-te.

Sabina... Disse-te o que sentia no coração; não falemos maisem tal.

-- Afligi-te muito. Maria? r: disse a Duquesa. cujas lágrimasredobraram.

- Muito! - respondeu Maria. que principiava a enterne-cer-se também.

- Minha pobre querida!- Eu tinha tanta confiança em ti! - tornou a senhora Rias

com voz sufocada,- Meu Deus. meu Deus! disse a Duquesa.E o fim desta cena perdeu-se num ruído confuso de lágrimas

e de beijos.Quando o senhor Rias regressou à noite para casa. encontrou

sua mulher bordando com frenesi.E exclamou:- Céus! minha filha! que vejo! que estás fazendo?-- Bordo um cabeção para minha mãe ...- Ah! é um cabeção ... para tua mãe? está bem... é muito

bonito... Como tu sabes fazer coisas tão bonitas! ignorava estatua habílidade...., mas. vejamos.... está já muito adiantado ...Trabalhaste nele todo o dia?

- Todo o dia.- Como! nem saíste?-Não.-- Não foste ao Petít-Saínt-Thomas?-Não.- Nem ao Louvre?-Não.- Mas então. é o fim do mundo! - disse o senhor Rias.

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286 A ARTE DE ESCREVER

pagando a sua mulher um beijo, que lhe pareceu delicioso. Mastambém te não deverás enclausurar! deves tomar ar ... E ficasteaqui sozinha todo o dia?

- Esteve cá a Duquesa, - respondeu Maria, num tom negli-gente.

- Ah! deveras? a Duquesa veio? Ah! deveras? .. Pois muitobem... e corno se despediram?

- Como de costume ...- Prudente mulherzinha! disse Leonel, beijando-a de novo.- O que é, ê que ambas chorámos um pouco ...- Oh! sim... devia ser isso.

Os autores realistas acusam o diálogo do teatro deser literário, fictício, convencional.

Há verdade nesta consura; mas os diálogos de auto-res dramáticos. como Sardou, Dumas filho, Augier,Paílleron, Halévy, têm outra coisa, afora o lado mun-dano, calculado, fictício. Têm o movimento, a vida, olance que se precipita e que produz a ilusão.

Mas é realmente verdade que o diálogo dos nossosautores dramáticos contemporâneos muitas vezes não ésenão um diálogo de teatro, em que a réplica se dáem vista do efeito, em que a resposta é produzida pelaúltima palavra do interlocutor e não pela verdade dapersonagem e da lógica dos sentimentos; é um diálogo,cujo laço não está senão no espírito, e só se dirige aoespírito.

Esta espécie de diálogo, diálogo com fogo de arti-fício, veio, em linha recta, de Beaumarchais e brilhanas peças de Dumas filho e de Sardou.

Bastará relerdes os actos principais das suas maisbrilhantes peças, o primeiro acto da Pernanda, porexemplo, ou o do Amigo das Mulheres: e continuamentesentireis o autor por detrás das personagens.

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A ARTE DE ESCREVER 287

Ê uma espécie de aparato, que agrada pela suasonoridade, mas que nada tem de profundo nem dehumano; e todavia é diálogo vivíssimo.

Só em Molíere é que se encontra o diálogo em estadode réplica verdadeira, humana, eterna, de todos ostempos, sem palavras do autor.

Abri-o ao acaso.O que as personagens dizem saí-lhes do fundo dos

seus seres e dos seus pensamentos.Não ouvem o que se lhes diz e não respondem aos

seus interlocutores.Seguem as suas ídeías com uma inconsciência, que

nos faz esquecer totalmente de Molíêre. Ê a obra dogénio.

Em suma, para o bom êxito do diálogo, é precisotrabalhá-lo o mais possível; cortar todas as excres-cências: atender à concisão; variar o arredondamentoda frase; perguntar como se diria aquilo em voz alta,vazar as frases no molde falado.

Se não há vocação para o diálogo, certa disposição:', para relevo das réplicas, e para o espírito cênico, qua-

lidades impreteríveis no autor dramático, é inútil fazerteatro.

Mas, com trabalho e aptidões regulares, podeisaprender a dialogar suficientemente para escreverromances ou novelas. Para isso, devereis ler muitosdiálogos de teatro e peças de bons autores, Labicheprincipalmente, que é maravilhoso em rapidez e natu-ralidade.

O estilo da conversação é conciso. Não nos esque-çamos disto.

Em geral, o desejo de brilhar prejudica o verda-

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.-288 A ARTE DE ESCREVER

deiro diálogo; não nos podemos decidir a interromperuma personagem, detê-Ia nas suas réplicas naturais.e o bom gosto é prejudicado.

A facilidade, com que o público aplaude as tiradas.as argúcias de espírito, fez das nossas comédias fogosde artifício, deslumbrantíssimos, mas que se apagamcom as luzes da ribalta.

Lição Vigésima

Do estilo epistolar -o estilo epistolar. ~ As cartas de mulher. ~ A carta é uma sen-sação individual. ~ Escrever como se fala. ~ Conselhos gerais.

Não nos deteremos muito, falando do estilo epistolare da carta.

Nenhum assunto, como este, torna inútil qualquerdesenvolvimento, pela razão de que se exprime semprebem o que se sente, e de que uma carta é, em geral.uma coisa que se sente, porque é pessoal.

E a prova é que as mulheres escrevem admíràvel-mente cartas.

La-Bruyêre disse:- «Este sexo vai mais longe do que nós nesse

género de escrever. As mulheres, ao pegar na pena,encontram rodeios e expressões, que muitas vezes, emnós, são efeitos de um longo e aturado trabalho; sãofelizes na escolha dos termos, e colocam-nos com tal'propriedade, que, por mais conhecidos que sejam, têm

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--.-

A ARTE DE ESCREVER 289o encanto da novidade e parecem feitos apenas para ouso que elas lhes dão. Só elas têm o privilégio de fazerler. numa só palavra. um sentimento completo. e derepresentar delicadamente um pensamento. que é deli-cada; possuem um inigualável encadeamento de frases.que se seguem naturalmente e que são apenas ligadaspelo sentido. Se as mulheres fossem sempre correctas,ousaríamos dizer que as cartas de algumas delas seriamtalvez o que temos de mais bem escrito.»

La-Bruyêre, ao escrever estas linhas. não pensavaevidentemente em Madame· de Sêvíqné, visto que ascartas dessa dama foram publica das muito tempodepois da morte de La-Bruyêre. Pensava nas mulheresem geral.

Aqueles que tiverem entre mãos muitas correspon-dências femininas sabem que as mulheres. seja qual fora sua classe e condição. escrevem cartas superiormente.

Há centenas de mulheres. cujas cartas mereceriamser impressas e admirariam o público.

Li algumas. escritas por mulheres do povo. que eramcheias de naturalidade e aticismo.

É inútil ensinar-se às mulheres o estilo epistolar;sabem-no por instinto e elas é que no-lo poderiamensinar.

Quanto aos homens. têm menos delicadeza e natu-ralidade; mas pede dizer-se que cada um sabe escre-ver uma carta. cujo assunto sentiu.

É inútil ensinar a escrever uma carta. sobre umassunto que se não sente.

Primeiro. está o sentimento.Concebe-se o ensino do estilo. em geral. uma

demonstração da arte de escrever. tratando-se de uma

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290 A ARTE DE ESCREVER

descrição. de- um artigo. de um livro; mas a carta. nouso ordinário. não é um gênero voluntário. um trabalhoque se escolha.

É uma obrigação.Há uma missiva qualquer a enviar. há uma corres-

pondência a fazer. segundo os acasos da vida. ou por-que sucede isto ou aquilo.

Numa palavra. o fim. o assunto. as razões. as cir-cunstâncias da carta são eminentemente individuais.

Nestas condições. toda a gente vê o que tem defazer.

Há apenas um conselho a seguir: ler muitos mede-los. A simples leitura das cartas ensina a escrevê-Ias.

Demais, existem bons Manuais de arte epístolar,destinados a mostrar o tom. as fórmulas. o cerimonial.relativo aos diversos gêneros de cartas.

Sendo a carta uma ccnversação por escrito exigeas qualidades da boa conversação. e a naturalidadeacima de tudo.

Deverá ser espontânea. ingênua. não estudada. anão ser que seja o contrário por sistema. como as car-tas de Voíture e de Balzac, denominados os grandesepistológrafos da França.

Esses escreviam de propósito sobre ninharias paraostentação do seu espírito e distracção da alta sociedade.Faziam assaltos de galantaria. de afectação. E mesmoentão as suas cartas eram uma espé-cie de conversaçãoescrita. visto que era pouco mais ou menos assim quese falava nos salões do palácio de Rambouíllet, em queo preciosismo substituíra a simplicidade.

Evitai. pois. nas vossas cartas. o trabalho. o esforço.a ciência do estilo.

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A ARTE DE ESCREVER 291

Expressai-vos simplesmente.Deve-se escrever como se fala, quando se fala bem;

é preciso mesmo escrever um pouco melhor do que sefala, visto que há tempo para se pôr em ordem o quese diz.

A Sévigné escrevia à filha:- «Dizes-me complacentemente que supões tirar-me

alguma coisa. polindo as tuas cartas. Não lhes toques;convertê-Ias-ias em .peças de eloquência. Essa puranaturalidade. de que me falas. é precisamente o queé belo e que exclusivamente agrada.

«Sê tu e não sejas cutra; a tua carta deverá abrir-mea tua alma e não a tua biblioteca. Por mim. escreveriaaté amanhã; os meus pensamentos. a minha pena e aminha tinta. tudo voa.»

Nada desagrada tanto como a vontade de quererbrilhar.

As cartas não devem ser carregadas de ornatos;basta que sejam correctas, escritas sem preocupação deperíodos sonoros. com a espontaneidade do coração.

Recordo-me de que eu e os meus rivais. quando estive emParis, éramos todos pouca coisa, grandes compositores de bagate-las, que pesávamos gravemente ovos de mosca em balanças deteia de aranha.

(VOLTAIRE).

Contava-se, ontem à mesa, que Arlequim há dias, em Paris,trazia uma grande pedra debaixo da capa. Perguntaram-lhe o quequeria ele fazer daquela pedra, e ele respondeu que era uma amos-tra de uma casa, que queria vender. Ri-me. Se julgares, minhafilha, que esta invenção é boa para venderes a tua propriedade,poderás aproveitá-Ia.

(SÉVIGNÉ) •

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,...

292 A ARTE DE ESCREVER

Quando diziamos às vezes: «Não há nada que mais arruinedo que a falta do dinheiro». bem sabiamos o que dizíamos.

(SÉVIGNÉ).

A eloquência, ainda a mais sublime. pode encon-trar-se em cartas.

A Sévíqné rivaliza. por vezes. com Bossuet.Vamos ver uma carta. em que ela. entre outras

coisas. conta a Coulanges a morte de Louvois.Dír-se-ía uma página do ilustre e grande bispo:

Sinto-me tão atordoada com a morte repentina de Louvoís,que nem sei como começar a falar-vos dela. Ei-Io, pois. morto.aquele grande Ministro. aquele homem. tão eminente. queocupava tão grande lugar. e cujo eu. diz o Sr. Nícole, era o centrode tantas coisas! Quantos negócios. quantos planos. quantossegredos. quantos interesses a deslindar! Ouantas guerras come-çadas, quantas intrigas. que belos golpes de xadrez a dar e a acon-selhar! Ah meu Deus! dai-me algum tempo! gostava tanto dedar um xeque ao Duque de Sabóia e um mate ao Príncipe deOrenqe! Mas não! não terei um só momento! Que pensar de tãoestranho acidente? Nada, na verdade: é preciso reflectirmos nogobinete. Eis o segundo ministro. que vedes morrer. desde queestais em Roma. Nada é mais diferente que a morte deles. masnada é mais igual que a sua fortuna c os cem milhões de cadeiasque os prendiam à terra.

..••..

.i...

A grande máxima que se deve fixar. aquela em queresumiremos os nossos conselhos epistolares. é quedevemos deixar ir a pena e exprimir sem afectação oque se sente.

Ao pegarmos na pena para escrever a alguém. jádevemos saber o que queremos dizer.

Quanto à maneira de exprimir tudo isto. não vos

.. - ...

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A ARTE DE ESCREVER 293

ocupeis de tal, dizeí-o em voz alta. e a expressão che-gará por si.

Sobretudo não vos incomodeis para entrar destra-mente no vosso assunto.

O começo de uma carta deve ser rápido e sem pre-paração.

Sévigné é informada de que sua filha correu perigoe diz:

- «Ah! minha filha! que carta! Que pintura tufazes do estado em que te viste!»

É preciso também que' os finais de cartas sejamsimples. sem esforço.

A Sévigné nunca se embaraçou para concluir:- «Adeus. minha muito querida e encantadora filha;

não acho ninguém que não suponha que tens razão parame amar. sabida a maneira como eu te amo.»

Ou então:- «Adeus. beijo-te; mas. quando poderei eu bei-

jar-te de mais perto? A vida é tão curta! Ah! mas nãopensemos nisso: agora são as tuas cartas que euespero com impaciência.»

A propósito de cartas. esta frase de Buffon é maisverdadeira que nunca:

- «O estilo é o homem.»Em resumo. é preciso ler muitas cartas. para apren-

der a escrevê-Ias.Tratámos sumàriamente da doutrina destes dois

últimos capítulos. Mais de espaço nos ocupamos dela.no livro A Formação do estilo, pela assimilação dosautores.

FIM

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INDICE

o dom de escrever. .Os Manuais de LiteraturaA leituraDo estiloA originalidade do estiloA concisão do estiloA harmonia do estilo .A harmonia das frases

.\ A invenção .A-dispOSiÇãOA elocução .Processo das refundíçõesDa narraçãoDa descrição . . . .A observação directa .A observação índírectaAs imagens. . _ . .A criação das imagensO diálogo ...Do estilo epistolar .

Pãg.

71322415692

119137155166172190207217229237255267278288

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IESTA OBRA ACABOU DE SE lMPRI~llR

ÉM JULHO DE 1958, NAS OFICINAS

DA IMPRENSA PORTUGUESA-

RIJA FORMOSA, I08-Ir6 -- PORTO

Page 295: ALBALAT, Antonio. A Arte de Escrever ensinada em vinte lições

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Oro 'Jo:;é' Joaquim N~ne~ - '), • ' '~C'

·h . Crestomatíâ Arcaica-4.a edíção=-e l volu....•... '! Gramática Histórica da Língua Portuguesa' -

e Morfologia)--5.a edição revista e .-] volume.·'···.

J. Leite de Vasconcelos"Da Importância do Latim -,. 2.a edição - 1

,....:Rodrigo. de' Sã Nogueira'

Subsídios -para o estudo das consequêncías d- , logia erit 'portnguês -) vçlume. .

:·Crít~ca Etim6Iógi'ca'~ l:.y~!~nfe. .Estudos sobre as oiromatopéías r-] volume.Questões 'de linquaqem-e-S volumes,As onomatopeias e o problema da origem d

guagem -1 volume. . •• !

O Problema da Sílaba - 1 .volume.Tentativa de explicação' dos fenômenos

em português _2;a edição -1 volume. '.•Dicionário de verbos. porsuqueses conjuga

2~a edição •..:...; 1 volume., r • " !' ..

A.. EpifâniQ -da Silva DiasSintaxe Hístôrrea- Portuguesa - 3.a edição, t

pelo Dr. R. de Sa Nogueira, compreenum índice analítico, alfabético e muito'cíoso--d volume.

Introdução à Filologia - Tradução de Gi\,Carlo Rossi - 1 volume.

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Júlio Mort;~~. .._ .

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'Giulio Bertoni

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