caderno de literatura e cultura russa 1 - dossie puchkin

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Caderno de Literatura e Cultura Russa

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  • Caderno de Literatura e

    Cultura Russa

  • A revista Caderno de Literatura e Cultura Russa uma publicao bienal do Curso de Lngua e Literatura Russa do dlo/fflch da Universidade de So Paulo.

    direo editorial

    Arlete Orlando CavaliereElena Vssina

    Homero Freitas de AndradeNo Silva

    conselho editorial

    Aurora Fornoni Bernardini uspBoris Schnaiderman usp

    George Nivat universidade de genebraHaroldo de Campos pucJerusa Pires Ferreira puc

    Paulo Bezerra uerjYri N. Gurin ilu-moscou

    Apoio: capes

    Departamento de Letras Orientais FFLCH-USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 403 Cid. Universitria

    05508-900 So Paulo (SP) BrasilTel.: (11) 3091-4299 / Fax: 3091-4892

    e-mail: [email protected]

    USP Universidade de So Paulo

    Reitor: Adolpho Jos Melfi

    FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Diretor: Prof. Dr. Sedi Hirano

    Departamento de Letras Orientais

    Chefe: Berta Waldman

    Caderno de Literatura e Cultura Russa n. 1 So Paulo maro 2004

  • Caderno de Literatura e

    Cultura Russa

  • Editor: Plinio Martins Filho

    Direitos reservados Ateli Editorial

    Rua Manoel Pereira Leite, 15Granja Viana

    06709-280 Cotia SPTelefax: (11) 4612-9666

    [email protected]

    Printed in Brazil 2004Foi feito o depsito legal

    Copyright 2004 by autores

    Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.98. proibida a reproduo total ou parcial sem autorizao, por escrito, da editora.

    ISSN 1806-2911

  • Sumrio

    Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    Colaboradores do Caderno de Literatura e Cultura Russa . . . . . . . . . . . . . 11

    Literatura | Crtica | Traduo

    El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa Yri N. Gurin . . . . . . 15

    Dossi Pchkin (org. Homero Freitas de Andrade) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

    Nota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

    Pchkin e o Comeo da Literatura Russa Aurora Bernardini . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    Notas Margem da Lrica de Pchkin Roman Jakobson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

    Como Foi Feita uma Quadra de Pchkin Roman Jakobson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

    Notas Margem do Evguini Oniguin Roman Jakobson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

    Pchkin: A Poesia da Gramtica Haroldo de Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    Pchkin e Gonzaga. Da Sanfoninha ao Violo Boris Schnaiderman . . . . . . . . . . . . 69

    Humor e Irreverncia na Prosa de Pchkin Helena Nazario . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

    A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado na Literatura

    Russa do Comeo do Sculo XIX Iri Lotman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

    Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Pchkin Homero Freitas de Andrade . . . . 123

    Reminiscncias e Materiais Biogrficos sobre Pchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

    Pchkin em Portugus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

    Do Evguini Oniguin Aleksandr Pchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

    Romance em Cartas Aleksandr Pchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191

    Sobre Poesia Clssica e Romntica Aleksandr Pchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    8

    Esboos de um Prefcio a Boris Godunov Aleksandr Pchkin . . . . . . . . . . . . . . . 209

    ndice de Nomes e Referncias Homero Freitas de Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217

    Cultura

    Les Eurasiens hier et aujourdhui Georges Nivat . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

    A Pintura Paisagstica Russa do Sculo XIX No Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257

    Instituto de Pesquisa: Uma Forma da Arte, que nos

    Contempornea Kristina Duneva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277

    A Educao em Museus: A Exposio 500 Anos de Arte

    Russa Mozart Alberto Bonazzi da Costa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285

    A Segunda Sinfonia de Chostakvitch Euro de Barros Couto Junior . . . . . . . . . . 301

    O Teatro de Maiakvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

    Arlete Orlando Cavaliere . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315

    Herzen Ontem e Hoje Danilo Morales . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335

    Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371

    Discurso de Saudao Aurora Bernardini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383

    Tabela de Transliterao do Russo para o Portugus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    9

    O Curso de Russo do Departamento de Letras Orientais da fflch-usp inicia a publicao de seu Caderno de Literatura e Cultura Russa, revista bienal desti-nada a estudiosos, pesquisadores e ao pblico interessado em assuntos russos. Trata-se de pginas de apresentao, anlise e discusso de temticas referentes s reas de literatura, artes, filosofia e cincias humanas em geral, cujos autores so especialistas, alguns j consagrados, que vm-se dedicando incansavelmente divulgao e pesquisa desses assuntos entre ns.

    A idia deste Caderno de Literatura e Cultura Russa nasceu justamente do imperativo acadmico de ampliar e aprofundar os estudos russos no Brasil, com vistas a participar da construo de sua respectiva fortuna crtica. Ela foi tomando corpo a partir do incio das atividades de ps-graduao do Curso de Russo em 1994 e almeja colaborar no processo de formao e aperfeioamen-to de novos especialistas, pela divulgao sistemtica de trabalhos cientficos relevantes. So metas desta publicao dar continuidade aos trabalhos nesse campo do saber, iniciados com persistncia por Boris Schnaiderman, e manter seu padro de excelncia.

    O Caderno de Literatura e Cultura Russa dever contar sempre com algumas sees fixas em seu corpus: a de literatura e a de cultura russa, a de publicaes e a de pesquisas realizadas. De acordo com sua pertinncia e relevncia, outras sees podero ser eventualmente criadas para um determinado nmero da revista.

    Neste primeiro nmero, dedicado memria de Sophia Angelides e de Paulo Dal-Ri Peres saudosos professores do Curso de Russo publica-se na Seo de LiteraturaCrticaTraduo um Dossi sobre Aleksandr Pchkin, consi-derado o iniciador da literatura russa moderna. Onze ensaios e artigos escritos

    Editorial

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    10

    por estudiosos brasileiros e russos (Jakobson e Lotman) esmiam a vida, ana-lisam a obra e desvendam aspectos da criao potica de Pchkin. Compem ainda o Dossi uma srie de textos literrios e crticos do poeta, a maioria de-les especialmente traduzidos para esta edio. Um ensaio de Yri Gurin (El Modernismo brasileo como espejo de la Revolucin rusa), que, num estudo comparativo, trata das projees da Revoluo de Outubro no movimento modernista brasileiro, abre esta Seo.

    A Seo de Cultura traz a colaborao do professor Georges Nivat, da Uni-versidade de Genebra (Sua), com o artigo Os Eurasianos Ontem e Hoje. Dois outros trabalhos, de Kristina Duneva e No Silva, tratam da pintura russa dos sculos xix e xx, representada de forma expressiva na exposio 500 Anos de Arte Russa, realizada em So Paulo, em 2002, e discutida no artigo de Mozart Alberto Bonazzi da Costa. Arlete Cavaliere contribui com um texto sobre o cubofuturismo no teatro de V. Maiakvski, e Euro de Barros Couto Junior apre-senta uma conversa com a msica de vanguarda. Por ltimo, um panorama dos princpios filosficos contidos na obra de Aleksandr Herzen constitui a primeira parte de um amplo ensaio de Danilo Morales, que pretende estudar as influncias exercidas pelo pensador russo na crtica brasileira.

    Finalmente, h uma entrevista com Boris Schnaiderman, fundador do Cur-so de Russo da usp, que recupera um pouco da histria dos nossos estudos. Segue-se o discurso proferido por Aurora Bernardini, na cerimnia de outorga do ttulo de Professor Emrito a ele.

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    11

    Editorial

    Arlete Cavaliere: professora de Cultura Russa (fflch-usp), especialista em teatro e arte russa.

    Aurora Bernardini: professora titular de Literatura Russa e de Teoria Literria (fflch-usp), tradutora.

    Boris Schnaiderman: professor livredocente de Literatura Russa e de Teoria Literria (fflch-usp), fundador do Curso de Russo da usp, tradutor, ensasta e escritor.

    Danilo Morales: doutor em Teoria Literria e Literatura Comparada (fflch-usp).Denise Regina Sales: jornalista, psgraduanda em Literatura e Cultura Russa

    (fflch-usp).Euro de Barros Couto Jnior: estudioso de msica, psgraduando em Literatura

    e Cultura Russa (fflch-usp).Georges Nivat: professor da Universidade de Genebra (Sua), ensasta e tradutor. Haroldo de Campos: poeta, tradutor, ensasta e crtico literrio.Helena Nazario: professora de Literatura Russa (fflch-usp), tradutora.Homero Freitas de Andrade: professor de Literatura Russa (fflch-usp), tradutor.Iri Mikhilovitch Lotman (19221992): estudioso e terico de Literatura Russa,

    professor da Universidade de Trtu (Rssia). Kristina Duneva: psgraduanda do Instituto de Artes da Unicamp.Mozart Alberto Bonazzi da Costa: professor das Faculdades Osvaldo Cruz, escultor.No Silva: professor de Lngua Russa (fflch-usp), tradutor.Roman ssipovitch Jakobson (18961982): lingista, estudioso e terico de lite

    ratura, poeta.Yri Nikolievitch Gurin: professor do Instituto da Literatura Universal da

    Academia de Cincias da Rssia.

    Colaboradores do Caderno de Literatura e Cultura Russa

  • Literatura | Crtica |Traduo

  • Resumo: Neste ensaio so feitas aproximaes entre o modernismo russo e o brasileiro e examinam-se as projees da Revoluo de 1917 no movimento literrio brasileiro.PalavRas-chave: modernismo Russo; modernismo Brasileiro; Revoluo Russa de 1917; vanguardas literrias do sculo XX.

    Vladimir Lenin s que saba acuar frases. Len Tolstoi como espejo de la Revolucin rusa fue un artculo errneo pero metodolgicamente acertado. Bueno, preguntar asombrado el lector, y Brasil con su Modernismo, qu tiene que ver aqu Brasil? Lo que pasa es que los brasileos, aunque librados de las catstrofes histricas rusas, por poco se pierden por su idea nacional que les hizo experimentar una situacin no exenta de inters desde el punto de vista tipolgico. Y es porque Brasil, lo mismo que Rusia, a comienzos de este siglo representaba una especie de piedra de toque, una plaza de armas ideal como para comprobar en la prctica ideologemas especulativos que haba originado la vieja civilizacin euroccidental cansada ya de su propio progreso.

    A este perodo le corresponde la etapa ms fervorosa del Modernismo brasi-leo. Aunque, eso s, la epnima Semana de Arte Moderna celebrada en 1922 en So Paulo para conmemorar el bicentenario de la Independencia de Brasil, no fue comienzo ni auge del movimiento, sino un acto simblico de bautismo de una nueva realidad espiritual.

    Tipolgicamente, el Modernismo brasileo representaba una variante nacional de la esttica vanguardista, y esta definicin bastara para satisfacer el inters por el tema si no fuera por otro enfoque, cada vez ms insistente, a saber: interpretar el vanguardismo como un estilo de cultura universal que

    El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa

    Yri N. Gurin

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    16

    abarca todo un complejo de procesos espirituales, materiales, sociales y polti- cos de los primeros decenios del siglo XX. A travs de esta ptica, el Moder-nismo brasileo deviene todo un modelo, donde en condiciones experimen-talmente puras proliferaron las ideas rectoras de la esttica y la ideologa de la vanguardia universal.

    Tradicionalmente la crtica brasilea examina los pormenores de cronologa, evolucin y transformacin de grupos, ideas y prcticas opuestas de Pau-Brasil y Verde-amarelo, de Antropofagia y Anta, respectivamente; las relaciones entre sus lderes etc. Pero desde este enfoque las diferencias no son ms significa-tivas que las que separaban, digamos, las asociaciones Oslini jvost (La cola del asno) y Bubnovi valet (Sota de oros) en la pintura rusa o bien a los cubofuturistas y los oberiuti en la literatura. Lo que importa en este caso es la gnesis y el sentido histrico del fenmeno. Por eso cabe empezar por las circunstancias en las que haba aparecido el Modernismo brasileo.

    A pesar de lo idntico de sus nombres, el Modernismo brasileo y el hispa noa mericano representan dos fenmenos cronolgica y esencialmente distintos. Si el hispanoamericano estaba amasado con muchos ingredientes culturales propios del fin de siglo y en lo fundamental coincida con la esttica del art nouveau, el brasileo (al menos en la literatura) rechazaba el eclecti-cismo esttico como un modo de expresin ajeno e impropio, puesto que en la historia literaria brasilea fueron precisamente los prstamos culturales los que impedan el libre desarrollo de la literatura nacional y la formacin de la identidad propia. Sin embargo, siendo dos fenmenos estticamente dife-rentes, el modernismo hispanoamericano y el brasileo son funcionalmente anlogos, porque en el proceso de la formacin de la cultura nacional de Brasil, su Modernismo jug el mismo papel estimulante que en la etapa precedente el his panoamericano con respecto a su regin, a saber: el de coadyuvar a la crista li zacin de su propia identidad.

    Sera interesante compulsar dos actitudes ante la necesidad de la autodeter-minacin cultural. Jos Enrique Rod, idelogo del modernismo hispanoa me-ricano, se quejaba de que falta tal vez, en nuestro carcter colectivo, el contorno seguro de la personalidad1, pero vea el camino hacia su recu peracin en el inminente cosmopolitismo benefactor. El Modernismo brasileo, que cons-titua su rima cultural en cuanto a la afirmacin de la identidad nacio nal, declaraba por boca de su lder Mario de Andrade una orientacin completa-mente opuesta: O brasileiro no tem carter porque no possui nem civiliza-o prpria nem conscincia tradicional. Os franceses tm carter e assim os

    1. J . E. Rod, Ariel, Montevideo, 1947, p. 115.

  • El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa

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    jorubas e os mexicanos, menos los brasileos2. De ah surga la necesidad de descobrir [...] a entidade nacional dos brasileiros, la esencia del alma colec-tiva de la nacin en su elemento natural, autctono. Somos na realidade os primitivos duma era nova, deca M. de Andrade en el programtico Prefcio interes san tsimo a su Paulicea desvairada (1921)3. A este respecto Silvio Cas-tro anota que en el movimiento modernista la categora de primitivismo coadyuva a la formacin del concepto de nacionalismo interviniendo como el centro axiolgico de la autoconciencia nacional: Na teoria modernista [...] pri mi ti vismo aquele valor normativo e metodolgico que permite a revi-so da cultura nacional a partir da total tomada de conscincia da realidade brasileira4.

    En el modernismo hispanoamericano los valores autctonos desempeaban el mismo papel de materiales de construccin que los asimilados, en tanto que Brasil aspiraba a universalizarse, a entrar no concerto das naes mediante el abrasileiramento do brasileiro (Mario de Andrade), valindose de una voz cultural propia, individual; acudiendo al potencial interior, de la propia tierra brasilea. De extrapolar la conocida antinomia rusa eslavfilos vs. occiden-talistas (en la cultura hispanoamericana: americanismo europesmo) sobre el caso brasileo, observamos que prevaleci la tendencia etnocentrista en su manifestacin ultratelrica, casi biolgica.

    El problema de la brasilidade vertebra toda la historia del Modernismo brasileo, encaminado a crear la individualidad nacional. ste era su meollo ideolgico, su sentido principal y su meta final. La dolorosa sensacin de falta de entidad, carcter e integridad plasmados en la imagen de Macunama, heri sem nenhum carter, exiga imperantemente autoidentificacin masiva con una superimagen o un mitologema etnocultural que tuviese carcter ntegro, total y comunmente vlido. El ansia de la totalizacin nacional, de la autoexpresin ntegra y terminante supona, segn se puede juzgar por las publicaciones de la revista Festa relativas al 1928, apelacin a verdadeira Tradio y fora da Terra, con la particularidad de que los conceptos de Tradicin, Tierra y Raza aparecan ntimamente ligados5.

    En el da de hoy esto ya suena cmico, pero en aquel entonces los grupos literarios opuestos expresaban sus ideales en declaraciones como stas: los bra -

    2. M. de Andrade. Prefcios para Macunama, Brasil. 1 Tempo Modernista 1917/29, Documentao. So Paulo, 1972, p. 289.

    3. M. de Andrade, Obras Completas, t. II, So Paulo, 1966, p. 29.4. S. Castro, Teoria e Poltica do Modernismo Brasileiro, Petrpolis, 1979, p. 111.5. N. P. Caccese, Festa. Contribuio para o Estudo do Modernismo, So Paulo, 1971, p. 37.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

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    si leos somos fuertes y vengativos como la tortuga jabut, decan unos. Al con- trario, decan los otros, somos pacficos y bonachones como el anta. stas y otras no menos curiosas expresiones servan para resolver el problema real-mente existencial, que trataba de vida o muerte de la nacin: Tupy or not tupy, that is the question, declaraban parafraseando la interrogacin hamletiana los autores del Manifesto Antropofgico, quienes vean en la cultura de los indios tupy uma verdadeira eucharistia: o homem commungando com a natureza6. Pero esta tendencia telrica, el apoyo en las capas primitivas, arcaicas, prerra-cionales del ser, la compenetracin con los llamados del ritmo, la sangre, la autoidentificacin con el mundo de animales y plantas constituan por igual el fondo paradigmtico del vanguardismo ruso y el europeo en general!

    Respondiendo a las leyes inmanentes del proceso autnomo de su evolucin, los modernistas brasileos reproducan el sistema universal de la potica van-guar dista en el seno de su propia cultura. El problema candente de la sociedad brasilea, el de crear conscientemente una cultura y un tipo humano nuevos, se corresponda plenamente con el ardor culturgeno de la vanguardia europea; en cualesquiera de los casos la tarea universal de conseguir la plenitud utpica del ser una nueva integridad que requera previa desintegracin y revisin del sistema axiolgico establecido se realizaba mediante recursos comunes que suponan colectivizacin, masificacin, totalizacin, primitivismo, telu rismo, elaboracin de un nuevo lenguaje cultural.

    Sera interesante recordar a este respecto el que M. de Andrade, al fami lia-ri zar se con el artculo sobre la posie russe de journe bolcheviks publicado en la revista LEsprit Nouveau, coment: Eis nosso primitivismo: trata-se de desembaraar o mecanismo da poesia e as leis exactas do lirismo para comear a nova e verdadeira potica7.

    La tarea de crear la integridad nacional y cultural, o sea una identidad, fue formulada por M. de Andrade en su famosa consigna abrasileiramento do Brasil. Se supona que el medio principal de abrasileiramento debera ser la forja de un lenguaje esencialmente nuevo: plstico (en la pintura y la arquitec-tura) y literario, al que le corresponda desempear el papel ms importante en la cohesin de la entidad nacional. Con tal propsito se emprenden tentativas de crear cierta construccin lingstica que expresara la autntica identidad brasilea. Es del todo evidente que en los experimentos literarios de aquella poca (como en Macunama, por ejemplo) se manifestaba el mismo impulso

    6. Revista de Antropofagia, Reedio de revista literria publicada em So Paulo, 1a e 2a Denties, 1928-1929, So Paulo, 1975, p. 5.

    7. Vase G. Mendona Teles, Vanguarda Europia e Modernismo Brasileiro, Petrpolis, 1985, p. 302.

  • El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa

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    de la construccin de una nueva cultura que se patentizaba en la literatura so vitica del mismo periodo en forma de zaum (lenguaje transracional), la mal llamada prosa ornamental, la potica del scaz (cuento estilizado), la orien tacin a folklorismos, localismos, neologismos y simple jerga.

    Ello no obstante, el caso brasileo sigue siendo nico en el sentido de que no representaba tan solo un acto de experimentacin lingstica, sino todo un programa en buena parte realizado de elaboracin de una lengua nacional realmente nueva y realmente total que incluyese formas de comportamiento verbal de amplias masas populares. Nada de eso sucedi en la Amrica hispnica donde la bsqueda de la identidad cultural se realizaba por otros caminos, y adems el idioma heredado de la metrpoli no haba sufrido transformaciones esenciales cosa que precisamente dificult el proceso histrico del devenir de la identidad cultural en Hispanoamrica.

    Sin embargo, la prioridad de abrasileiramento do Brasil no le pertenece al propio Modernismo, que no hizo otra cosa que expresar con vigor una exigencia espiritual que vena madurando desde hace tiempo; el verdadero autor de la idea fue el precursor ideolgico de los modernistas, el escritor y filsofo Jos Pereira da Graa Aranha, quien en 1921 fundament en su libro A Esttica da Vida, todo un programa del movimiento modernista. La filosofa de arte promovi-da por Graa Aranha fue la de accin, activismo, y estaba orientada a la crea-cin del carcter nacional, entendido como psicologa colec tiva o el alma de la raza. En realidad, todo el Modernismo fue ms bien una ideologa de accin que una esttica y una prctica artstica: toda su produccin literaria tomada en conjunto apenas basta para ilustrar mani fiestos, declaraciones y la amplia actividad poltico-social de sus adeptos. Y fue precisamente Graa Aranha el que introdujo el concepto de inte gracin en cuanto problema fundamental de la cultura nacional. En sus ideas ra di caban las tendencias funda mentales del movimiento modernista, que de constructor de la entidad nacional se transformara despus en el mecanismo de la totalizacin de la vida nacional.

    Pero tampoco Graa Aranha fue el verdadero fundador del modelo utopista brasileo. En 1922 en So Paulo vio la luz el libro de R.Teofilo O Reino de Kiato: No Pas da Verdade, escrito an en 1892. Era una obra tpicamente utopista que describa la benfica transformacin de la sociedad por un poder autoritario. La misma idea subyace en la trama del libro de G. E. Barnsley So Paulo no ano 2000, ou Regenerao Nacional: crnica da sociedade brasileira futura escrito en 19098. Lo que las dos utopas tienen de comn es la siguiente base conceptual:

    8. Debemos estos datos a T. A. del Fiorentino, Utopia e Realidade: O Brasil no Comeo do Sculo XX, So Paulo, 1979.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

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    el futuro ideal de la nacin se supone que ha de alcanzarse mediante esfuerzos man co munados de los conciudadanos que, unidos por la idea nacional, encon-tra ran la felicidad total en un rgimen de igualdad justiciera, en comunin con su tierra y naturaleza y bajo el poder autoritario de un gobernante sabio y fuerte.

    Ser casual que semejantes ideas utopistas hayan madurado precisamente en la sociedad brasilea? Es de recordar que en este pas la cristalizacin de la conciencia nacional se ha dificultado por una extraordinaria demora del proceso natural de la consolidacin nacional, dada la descentralizacin de su organismo social, determinada tanto por factores etnoculturales como histrico-geogrficos. Es por eso que los movimientos populares espontneos (sublevaciones en Canudos y Contestado) adquiran tintes marcadamente utpico-religiosos, y sus dirigentes tambin eran figuras de tipo mesinico: Conselheiro, Joo Maria, Jos Maria, padre Ccero. Por eso al aparecer en 1902 la obra literaria pica nacional, novela-documento, novela-investigacin, novela-experimento Os Sertes de Euclides da Cunha, que era un autntico anlogo al estado espiritual de la nacin, ya su potica y su ideologa contenan todo lo que iba a figurar tanto en el Modernismo brasileo de los 20, como en la literatura rusa de los primeros aos posrevolucionarios, o sea: el irraciona-lismo del entusiasmo colectivo y el triunfo del utopismo popular, la fe ciega en un maestro sabio y el ansia de consolidacin en un cuerpo masiforme, la identificacin de la con cien cia nacional con la tierra natal, la semejanza entre el lenguaje de la des cripcin artstica a esa misma tierra y esa misma conciencia en toda su tos que dad, brusquedad y primitivismo, afirmndose as en oposicin al mundo ordenado de la vieja civilizacin.

    Este ambiente utpico-apocalptico era una especie de magma espiritual que en la literatura rusa generaba imgenes de hroe colectivo y en la brasilea era la ms propicia para proporcionar la consolidacin del etnotipo de la nacin brasilea. La frustracin del primer conato de la construccin de un mundo nuevo en forma de comunas campesinas se compens con la aparicin de un hroe nuevo y un idioma tambin nuevo, lo que en suma significaba la creacin de una nueva entidad cultural. Es de recalcar que la tarea de crear un nuevo lenguaje fue realizada solo en dos casos: el de Brasil y el de Rusia. Lo de Brasil queda obvio; en cuanto a Rusia, aqu el hroe colectivo, creador de un mun-do sin precedentes, traa un nuevo lenguaje que evolucionara desde la zaum uto pista (que se crea el futuro idioma universal) hacia el institucionalizado news peack orweliano, o sea el artificial y momificado lenguaje sovitico, tanto en el sentido idiomtico como el cultural.

    Los paralelos aqu trazados entre la cultura rusa y la brasilea, pese a toda su disparidad fenomnica, parecen justificarse, sin embargo, por el hecho de

  • El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa

    21

    que en ambos casos se trata de culturas de tipo perifrico de una otredad civilizacional con respecto a la civilizacin burguesa euroccidental. Tanto la una como la otra corresponden a regiones con una poblacin predominante campesina, de conciencia cvica poco estructurada, pero con una idea utpica hondamente enraizada; con inmensos espacios geogrficos sin civilizar, que exigan un constante control administrativo y dominacin estatal, sin nombrar muchos otros momentos de comunidad que tampoco excluyen diferencias esenciales. La principal de estas ltimas consiste en el hecho de que el mesia-nis mo ruso era algo as como una idea supranacional, global e incluso csmica (el cosmismo filosfico ruso es un tema aparte), en tanto que la difusa imagen de brasilidade necesitaba precisamente una potente idea centrpeta, la de identidad nacional.

    A este respecto cabra recordar al filsofo ruso Nikolai A.Berdiaev quien habl sobre dos tipos de mitos nacionales que determinaban los destinos de los pueblos: mito de origen y mito de fin, o sea el escatolgico. Este ltimo caracteriza, sin lugar a dudas, la conciencia nacional y el destino histrico del pueblo ruso. En cuanto al mito nacional brasileo, este se cimentaba en la idea telrica, la raigal, aunque tambin tiende a realizarse en un ms all utpico. La diferencia sealada no invalida en absoluto el postrer desenvolvimiento del proyecto utpico segn el modelo comn. Con plena razn afirm el ya citado Silvio Castro:

    O Modernismo se estabelece assim como vanguarda completa: criao e ao. Pela feliz

    coincidncia histrico-poltica, a vanguarda brasileira a primeira entre as vanguardas

    histricas ocidentais a completar-se como movimento revolucionrio, associando o plano

    artstico ao setor da ao socio-poltica [...] Atingiam-se no Brasil, em fatos fortemente

    semelhantes [...] aquelas normas revolucionrias conquistadas e logo perdidas pelo Cubo-

    futurismo russo, depois de 19179.

    La experiencia de la vanguardia histrica o ntegra tanto rusa como la europea en general demuestra que la idea de la utopa, felicidad total en igual-dad comn estaba condenada, a fuerza de la lgica interna de su propia evolu-cin, a degenerar convirtindose en el cuerpo monoltico del Estado tota li tario. Este proceso tampoco lo evit el Modernismo brasileo. Ya en 1925 la revista Belo Horizonte hace una declaracin harto caracterstica: sentimos a necessida-de do governo ser a funo de uma vontade forte, de um esprito dominador... No momento atual, o Brasil no comporta a socializao das massas populares.

    9. S. Castro, op. cit., p. 134.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    22

    S uma personalidade inflexvel dirigida por uma boa compreenso das nossas necessidades pode resolver os problemas mximos da nacionalidade10. Hacia el ao 30 momento crucial en la historia brasilea (y no slo la brasilea) marcado por la victoria de la llamada Revolucin liberal y afirmacin del poder au to ri tario de Getulio Vargas en los textos de O. de Andrade y Plinio Salgado empiezan a figurar palabras como chefe, Enviado y aparecen ideas mesinicas. La filosofa de activismo que alimentaba el espritu del Modernismo brasileo acaba por plasmarse en la realidad poltica del cuerpo estatal.

    La categora integralismo define ya no slo posiciones de Plnio Salgado, sino de todo el movimiento modernista. As, en 1929 los antropfagos encabe-zados por O. de Andrade y que se consideraban en oposicin a los verde-ama-relos conducidos por P. Salgado hacia su Integralismo fascistoide, declaraban: Ns somos contra os fascistas de qualquer espcie e contra os bolcheviques tambm de qualquer espcie. O que em nossas realidades polticas houver de favorvel ao homem biolgico, consideramos bom. nosso11. Sin embargo, las orientaciones telrico-biolgico-intuitivas, la utopa de autoi den tificacin en el colectivismo, en la comunin total a un ideal monista, no conducen a la unin comunitaria, sino a la partidista. En 1932 P. Salgado organiza un partido profascista bajo la consigna de Activismo integralista, y O. de Andrade ingresa en el partido comunista creado en 1922. Ese contrapunto poltico dur hasta el tristemente clebre 1937 (ao tambin del mayor desenfreno del terror sta-liniano), despus de lo cual en el pas se impuso el pleno rgimen dictatorial, que oficialmente proclam a Brasil Estado nuevo.

    Estas correspondencias resultan tanto ms evidentes que el recrudecimiento del rgimen impuesto por G.Vargas se debe en buena parte a la poltica pro-vocativa de Mosc, que soaba con ver Brasil sumido en la hoguera de una insurreccin popular y convertida en el foco de la propagacin de la revolucin mundial por todo el continente latinoamericano. As, en 1931 Lus Carlos Prestes al precio de $ 20 000 (por cierto, recibido en otro tiempo del mismo Vargas) gana la aquiescencia del Komintern staliniano, que utiliza este dinero para atraerse a los que seran en un futuro buenos amigos de la Unin Sovitica en pases latinoamericanos12. Despus sigui la aventura de Komintern para organizar el levantamiento popular y el golpe de Estado en Brasil con tal de poner a su criatura Prestes a la cabeza, y la intentona exigi muchos ms recur-

    10. Vase Mendona Teles, op. cit., p. 340. 11. Revista de Antropofagia, op. cit., p. 26. 12. Vase W. Waack, Camaradas. Nos Arquivos de Moscou. A Histria Secreta de Revoluo

    Brasileira de 1935, So Paulo, 1993.

  • El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa

    23

    sos monetarios y muchas vctimas inmoladas aquende y allende del ocano por el sistema comn del terror totalitario.

    Para completar el cuadro conocido por los avatares europeos de la utopa vanguardista, metamorfoseada en el rgido mecanismo totalitario del estadis-mo, falta tan slo un detalle: el motivo de la trgica conciencia de personalidad reflexiva condenada a sacrificarse en aras de su propia idea. A este propsito cabra aducir una cita que ilustra la atmsfera de la poca.

    El rgimen cado se apoyaba en un solo pilar el individualismo. Este defina todos

    los enfoques. El individuo era el factor determinante [...] El arte dej de tomar en cuenta

    al pueblo, el colectivo y por eso no senta ligazn interna con l; mientras que la salvacin

    de la humanidad y del arte est en el colectivismo [...] Se trata de un mpetu en el que

    encuentra su expresin la maravillossima virtud del periodo de los cambios revolucio-

    narios, una virtud que permaneca callada cuando la guerra y ahora se ha convertido en

    una dominante: la del colectivismo. Es un principio que puede revestir cualquer forma:

    socialismo, unidad popular o camaradera. Pero dnse cuenta de que la cosa exigir sa-

    crificio de su parte: el relacionado con la integracin en el colectivo. Slo despus podrn

    considerarse miembros del colectivo.

    Lo ms curioso es que este fragmento relativo a 1933 est extrado de un llamado que lanzaron los caudillos nazi alemanes a los intelectuales del pas13. En el mismo ao en la Rusia sovitica el partido comunista ya no tena por qu gastar plvora en consignas: se la gastaba en millones de vctimas sacrificadas en el ara del totalitarismo.

    Este sacrificio de la individualidad ante el cuerpo totalitario lo sinti y ex-pres como nadie M. de Andrade, la personalidad ms rica, abierta y sensitiva de la plyade modernista. En una carta particular relativa al 1937 deca:

    Felicidade fenmeno puramente individual, de foro interior (a prpria dor uma

    felicidade). No pode haver felicidade coletiva...

    Felicidade pois isentar o ser individual de qualquer irracionalidade coletiva [...] A

    humanidade como coletividade a coisa mais irracional, mais basta, mais ptrida, mais

    frgil, mais incapaz, mais srdida que se pode imaginar [...] E eu sou humanidade. Com-

    partilho dessa irracionalidade, dessa podrido, dessa incapacidade, dessa estupidez, dessa

    sordidez, dessa dolorosa misria [...] No h socialismo, no h comunismo, no h fas-

    13. Vase B. Reich, Poltica y Prctica del Fascismo en las Artes, Oktiabr, n. 9, 1933, p. 184.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    24

    cismo que faa a humanidade melhorar [...] Mas sou humanidade e como tal ajo, penso,

    sofro pra com a humanidade14.

    En esta terrible sensacin existencial de su propia crucifixin entre el senti- do y la finalidad de la poca, la conciencia del intelectual brasileo es suma-mente congenial al estado de nimos de muchos contemporneos suyos fuera del Brasil.

    En resumidas cuentas, es de constar que la dimensin y el contenido del proceso cultural brasileo lo ponen fuera de aquellas regularidades que se suponan comunes al mecanismo de la culturognesis en Amrica Latina. Por lo dems, en la cultura brasilea, el Modernismo en cuanto forma de la auto-creacin nacional adquiri una inusitada prolongacin temporal, salindose del marco cronolgico del periodo propiamente vanguardista para determinar el subsiguiente proceso de la cristalizacin de la conciencia nacional.

    En este aspecto es muy significativo el intento histricamente reciente de realizar la idea de la Ciudad de la Utopa en forma de la construccin de la ciudad de Brasilia (1957-1960), cuyo proyecto y el estilo arquitectnico mani-fies tan la tan caracterstica megalomana totalitaria. En este caso lo que importa es la propia semntica de la ciudad en cuanto expresin arquitectnica de la ideologa estatal. Es que el urbanismo, ms que cualquier otra de las ciencias y artes, materializa el sentido de la poltica estatal, creando smbolos ptreos de un mundo fantasmal. La gran utopa de la poca vanguardista se vislumbraba en los contornos de la ciudad ideal, templo del futuro, ciudad resplan de-ciente de Walter Gropius, Vasili Kandinski y Le Corbusier. Este ltimo, siendo como fue el arquitecto ms grande del siglo XX, resulta una figura en extremo interesante por su fusin de intenciones utopistas y totalitarias, articuladas en sus ideas urbansticas. Le Corbusier tuvo sucesores directos en Lucio Costa y Oscar Niemeyer, los que crearon o, ms bien, trataron de crear en la imagen de la nueva capital el modelo del Estado nuevo.

    De este modo, el Modernismo brasileo, al realizar prcticamente el proyecto de la Utopa vanguardista que exigi la creacin de un nuevo lenguaje cultural, puede considerarse un modelo ejemplar de la vanguardia, un experimento con- sumado que plasm los sentidos principales de este paradigma universal ge - nerado por el impulso revolucionarista. En particular, el modelo del van guar-dismo brasileo permite superar la aparente antinomia de dos manifes taciones europeas de programas vanguardistas: el universalismo del proyecto totalitario

    14. A. Saraiva, O Modernismo Brasileiro e o Modernismo Portugus, Documentos Inditos, Porto, 1986, pp. 124-125.

  • El Modernismo Brasileo como Espejo de la Revolucin Rusa

    25

    comunista y el nacionalismo del totalitarismo fascista. Universalismo y nacio-nalismo resultan ser dos factores bien correlacionados que pueden llenarse de contenidos diversos que dependen de categoras tales como individualidad, colectivismo masiforme y modos de su interrelacin.

    Por fin, la historia del Modernismo brasileo es muy significativa por haber demostrado con toda claridad el proceso de la transformacin, dentro del pa ra-dig ma vanguardista, de la conciencia de tipo abierto, es decir, el mito utpico, en la de tipo cerrado, generadora de mitologa totalitarista.

    Mas, as y todo, en el espejo brasileo no qued sino un reflejo de la Utopa hecha realidad...

    aBstRact: In this essay, approaches between the Russian and the Brazilian modernism are made and the projections of the Revolution of 1917 in the Brazilian literary movement are examined.KeywoRds: Russian modernism; Brazilian modernism; Russian Revolution of 1917; literary vanguards of the 20th century.

  • Dossi PchkinOrganizado por

    Homero Freitas de Andrade

  • Auto-retrato de Pchkin.

  • Este Dossi visa a propiciar ao pesquisador brasileiro acesso a informaes e reflexes fundamentais sobre a vida e a obra de Aleksandr Pchkin. Foram reu nidos aqui textos escritos por crticos russos (Jakobson, Lotman) e estudio-sos brasileiros, que analisam vrios aspectos da obra do escritor, bem como ressaltam o importante papel que Pchkin desempenhou na formao da literatura russa moderna.

    Compem ainda este Dossi uma cronologia detalhada da vida e da obra do poeta, uma seleta de reminiscncias de seus contemporneos e outros documentos de carter biogrfico, alm de uma bibliografia de suas obras tradu zidas e publicadas no Brasil. Em seguida, numa brevssima coletnea, so apresentadas algumas tradues para o portugus de textos do escritor: estrofes do Evguini Oniguin, um romance em cartas inacabado, esboos de um prefcio e um texto crtico-terico. Fecha o Dossi um ndice de referncias, constitudo de notas informativas sobre escritores, personalidades, peridicos e crculos literrios citados nos ensaios e demais textos.

    Homero Freitas de Andrade

    Organizador

    Nota

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    Aurora Bernardini

    Resumo: este artigo apresenta um breve histrico da literatura russa at o aparecimento de A. s. Pchkin e destaca a importncia que teve sua obra para a formao da literatura russa moderna. so tratadas ainda questes relativas vida e prxis potica do escritor, no mbito da poesia e da prosa.

    PAlAvRAs-chAve: A. s. Pchkin; literatura russa; prosa de Pchkin; poesia de Pchkin; versificao russa.

    Numa admirvel introduo a The Oxford Book of Russian Verse1, Maurice Baring sintetiza, dentro do panorama da literatura ocidental, o advento de Aleksandr Serguievitch Pchkin (1799-1837), explicando por que ele considerado por muitos estudiosos como o grande iniciador da literatura russa. claro que ela no nasceu no sculo XIX. Seu curso porm foi subterrneo, durante muito tempo, acompanhando o atormentado desenrolar da prpria histria da Rssia.

    J no sculo XI, aps a consolidao da unificao das tribos eslavas, Kev, o primeiro grande centro da cultura russa, era comparvel a qualquer outra gran-de cidade da Europa ocidental, no mesmo perodo. Comerciantes, artistas, sbios transitavam livremente de Leste a Oeste, e os manuscritos russos dessa poca competiam em p de igualdade com os melhores manuscritos do Ocidente. Quando, porm, deu-se o cisma religioso entre Roma e Bizncio (que culminou com a excomunho de Cerulrio em 1054), os eslavos de rito ortodoxo fo-ram as vtimas acidentais. Ergueu-se uma barreira entre a Rssia e o Ocidente que, reforada pela invaso dos trtaros e pelo jugo sucessivo (1240-1480),

    1. Oxford, Clarendon Press, 1958.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    32

    s comearia a ser demolida nada menos que em 1700, j no reinado de Pedro, o Grande.

    Kev foi arrasada, a Polnia separou-se do Leste, o Sul da Rssia foi aban-donado. No sculo XV, os principados sobreviventes agrupavam-se em torno de Moscou, num desesperado esforo de sobrevivncia. Obviamente, numa configurao como essa, no se podia esperar que a literatura russa conhecesse as fases que conheceu a literatura europia.

    Houve, subterrneo e rico, o filo da poesia popular, cujas manifestaes se concretizavam em obras que passavam de uma gerao outra, graas tra-dio oral. A introduo do alfabeto cirlico, levado Rssia por dois monges blgaros, Cirilo e Metdio, enviados de Bizncio para evangelizar os eslavos no ano 870, permitiu o registro de uma surpreendente obra literria. Trata-se de O Dito da Expedio de gor, um epos annimo escrito durante o sculo XII na lngua literria oficial de ento, o eslavo eclesistico, mas com fortes inter-ferncias do russo. A grande originalidade dessa obra reside na utilizao dos mtodos da poesia oral, numa pica que tem um ritmo e uma musicalidade to complexos que at hoje h estudiosos procura de influncias ou paralelos que a expliquem.

    Sempre em eslavo eclesistico, foram escritos os Anais ou Crnicas da Galcia, a civilizao russa que sobreviveu invaso trtara no Norte e no Leste, bem como as de Nvgorod e mais tarde as de Moscou, mas nem elas nem a vida dos santos ou os relatos militares dos sculos seguintes podem ser comparados ao Dito. Afora as vvidas descries da vida russa na obra do arcipreste Avvakum escritas em lngua vulgar, um russo hbrido em que se misturavam as expresses brbaras com as assimilaes estrangeiras mais variadas (a lngua russa oficial s passar a vigorar em meados de 1700, aps a compilao da primeira gra-mtica russa) nada mais h de realmente original at o advento de Pchkin. At ento, toda obra literria russa, aps a libertao do jugo trtaro, refletir a histria da tentativa paulatina de derrubar a barreira de incomunicabilidade entre a Rssia e o mundo ocidental.

    O caminho longo: a primeira prensa instalada em Moscou durante o reinado de Ivan, o Terrvel (1547-1584); Kev ressurge das runas e volta a ser um centro de atrao cultural; escolas so fundadas em Moscou; e a influncia polonesa volta a se fazer sentir. Em fins do sculo XVII, uma numerosa colnia alem se estabelece nos arredores de Moscou, trazendo consigo suas tcnicas e tradies. Durante o reinado de Pedro, o Grande (1672-1725), governante conhecedor de vrios pases europeus (Inglaterra, Alemanha, Holanda), onde estudou arte naval e militar, a influncia europia expande-se, at culminar com a hegemonia francesa, no governo de Catarina II (1729-1762), que, confor me

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    33

    sabido, manteve longa correspondncia com Voltaire e Diderot e convidou re- petidamente artistas e estudiosos da Frana a So Petersburgo, que, desde a poca de Pedro, se tornara pouco tempo aps sua fundao a capital do Imprio.

    No de estranhar que alguns entre os primeiros poetas a escrever em russo2, como Kantemir e Derjvin, o tenham feito nos moldes da versificao francesa clssica. Viveram ambos o auge da hegemonia francesa na Rssia, quando reina-va Catarina II (1729-1762). Mesmo Krylov, que publicou suas famosas fbulas em 1806, utilizando expresses dos provrbios e das ruas, acabou mantendo o esquema silbico de La Fontaine, sem acentos de intensidade capazes de organizar os versos, mas com o final do verso e do hemistquio discretamente marcados, respectivamente, pela rima e pelo acento secundrio.

    A hegemonia da influncia literria francesa ser rompida por Jukvski, que, a partir das tradues que fez de obras de Gray, Brger, Uhland, Schiller e Goethe, firmar na literatura russa o uso da mtrica baseada na sequncia de ps, sendo que sua distribuio e a distribuio dos acentos no verso sero regidas pelo esquema do metro correspondente. Em meados do sculo XVIII, Lomonssov e Trediakvski j haviam experimentado esse sistema denominado slabo-tnico3, que tem razes na metrificao greco-latina clssica e tambm usado na poesia alem e inglesa. Uma vez que em russo o acento de intensidade desempenha um papel importante, como no ingls e no alemo, era natural que esse tipo de metrificao se firmasse na Rssia como sendo o mais apropriado para sua expresso potica. Os ps usados na poesia russa so, para os metros binrios, o iambo (slaba breve, slaba longa) e o troqueu (slaba longa, slaba breve); para os metros ternrios, o dtilo (uma slaba longa e duas breves), o anapesto (duas slabas breves e uma longa) e o anfibrquio (slaba breve, slaba longa e slaba breve).

    Foi justamente Aleksandr Pchkin quem consagrou esse novo modelo, le- vado adiante por seus sucessores at a poca contempornea, amalgamando a

    2. A poesia erudita, at ento, era escrita em eslavo ou eslavo eclesistico. Fora importada dos Blcs no comeo do sculo XI e transpunha para o eslavo versos literrios gregos da pica bizantina, cujo nico princpio de versificao parece ter sido um nmero fixo de slabas. Sua segunda forma, j no comeo do sculo XVII, apresentando a rima como nico trao que a separa da prosa (e no mais um determinado nmero de slabas), aos poucos desaparece do uso literrio para ser assimilada pelo uso popular, desempenhando o papel de poesia no-cantada.

    A poesia silbica propriamente dita apareceu na Rssia via Polnia e Ucrnia em meados do sculo XVIII (nmero de slabas fixo em cada verso, presena de uma cesura e de rima obrigatoriamente feminina, sem regras de distribuio de acentos). Pouco natural para o russo, tornava montona a cadncia da lngua, e foi de durao efmera, desaparecendo pouco depois.

    3. Assim chamado, porque cada p formado por grupos convencionados de slabas lon- gas e breves.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    34

    herana do passado (diferente da tradio inglesa e alem), inspirando-se, em algumas de suas composies, nos poemas picos e nas canes da poesia po-pular medieval russa4 e inovando ele mesmo, ao introduzir alteraes no metro nos momentos de grande intensidade do sentido.

    Assim, por exemplo, no poema O Anjo (1827), construdo sobre quiasmos, em que o poeta contrape o anjo meigo que reluz cabisbaixo, s portas do den, e o demnio sombrio e rebelde que sobrevoa o abismo dos infernos, magistral a inverso mtrica que ocorre no incio da segunda estrofe, no verso que qualifica o demnio como esprito da negao e esprito da dvida, como que saudando o heri ativo do poema.

    Dos metros binrios, o imbico o mais corrente em russo, sendo que re-presenta 84% da produo potica de Pchkin. Em tetrmetros imbicos ele comps a maioria de seus versos, reservando o pentmetro para o Boris Go-dunov e para as pequenas tragdias: Mozart e Salieri, Festim durante a Peste, O Cavaleiro Avaro e O Convidado de Pedra5.

    A palavra em russo no pode ter mais do que um acento tnico, por isso po-dem ocorrer slabas longas no-acentuadas. Alm disso, como licena potica, o acento tnico pode, s vezes, ser deslocado na palavra. Como conseqncia, no obrigatrio em russo, num metro escolhido, um nmero estvel de acentos6. Do tetrmetro imbico, por exemplo, que canonicamente deveria ter quatro acentos tnicos, Pchkin usa seis combinaes (nos metros binrios , po- rm, obrigatrio note-se o acento tnico na ltima slaba do verso)7.

    4. Eles eram cantados e sua estrutura rtmica era fundada sobre grupos de acentos e apenas compreensvel quando entendida em termos de sua funo musical.

    5. Tambm o metro trocaico foi utilizado por Pchkin (10,6% de seus versos), em particular o tetrmetro trocaico, justamente nos poemas que imitam ou retomam a poesia popular. Os metros ternrios representam 1,5% da produo potica puchkiniana. Neles o esquema mtrico mais rgido (a realizao rtmica praticamente coincide, sem variaes, com a grade mtrica), sendo portanto as slabas acentuadas a ossatura imutvel do verso. Eles se prestam particular-mente composio de baladas e romanas. Para outras estatsticas e explicaes prosdicas detalhadas cf. (O Livro da Rima Russa), Moscou, Ed. Literatura, 1982.

    6. Em La Versification Russe (Paris, Librairie des Cinq Continents, 1958, p. 57; traduo francesa de Russian Versification, Oxford, Clarendon Press, 1956), comentando o acento no verso russo, B. Unbegaum afirma: esta variabilidade do acento que cria o ritmo de um verso russo e lhe confere sua individualidade. Cabe a cada poeta encontrar, nas molduras de um dado metro, o ritmo mais apropriado s circunstncias. parte a questo do lxico e da eufonia, l que reside em grande parte a arte da versificao russa.

    7. Um exemplo disso pode ser observado no seguinte esquema fornecido por B. Unbegaum (cf. La Versification Russe, cit., p. 37):

    /4 acentos/; /3 acentos/;

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    35

    A propsito dos versos de Pchkin considera-se que:

    A beleza e a harmonia so puramente verbais, repousando sobre um acordo perfeito

    do ritmo e da sintaxe e sobre um sistema extremamente sutil daquilo que se poderia

    chamar de aliterao, se lcito usar este termo para designar um procedimento to rico

    quanto variado8.

    Em termos de evoluo literria, a obra do grande poeta representou o fe-nmeno que Iri Tyninov, um dos tericos mais afiados do Formalismo russo, chama de deslocamento do sistema, ou seja, a construo de um novo modelo (gnero) no qual so utilizados elementos dos velhos sistemas, interpretados porm de maneira diferente:

    Tentemos, por exemplo, dar a definio do conceito de poema, isto , o conceito de

    gnero. Qualquer tentativa de uma nica definio esttica est fadada ao fracasso. Basta

    ver a literatura russa para se convencer disso. O carter revolucionrio do poema de

    Pchkin Ruslan e Liudmila estava no fato de tratar-se de um no-poema. (O mesmo se

    dava com O Prisioneiro do Cucaso.) Quem estava pretendendo tomar o lugar do poema

    herico? O leve conto maravilhoso (skazka) do sculo XVIII, sem, por sinal, tentar justificar

    esta sua leveza. A crtica sentiu nisso um desvio do sistema, mas, na verdade, tratava-se

    de um deslocamento do sistema. O mesmo acontecia em relao aos elementos isolados

    do poema [...]. Pchkin mudou intencionalmente o significado do heri e os crticos,

    acostumados com o heri elevado, falaram em rebaixamento. Em Os Ciganos, uma

    dama notou que em todo o poema s havia um nico indivduo honesto e este era o urso9.

    Para situar melhor os elementos formadores da prxis potica de Pchkin, no que se refere transcriao de modelos e formas da literatura europia, vale relatar uma profecia atribuda a Pedro, o Grande, certamente o vulto hist-rico mais admirado pelo poeta. Em discurso durante um banquete em come- morao da paz de Nystadt, o monarca teria dito que os historiadores conside-

    /3 acentos/; /3 acentos/; /2 acentos/; /2 acentos/. (Traduo literal: Batia inclemente a chuva janela / margem de ondas deserta / Fender

    uma janela para a Europa / E a chama azul do ponche / A agulha do Almirantado / Sauda- va com desenvoltura).

    8. Cf. D. S. Mirsky, Histoire de la Littrature Russe, Paris, Fayard, 1969, p.105.9. Cf. Texte der Russichen Formalisten, Band I, Mnchen, Fink Verlag, 1969.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    36

    ravam a Grcia o bero de todas as cincias, tendo elas depois migrado da Grcia para a Itlia e para o resto da Europa, parando na Polnia, sem atingir a Rssia. Porm completara o czar haveria de chegar o dia em que a arte, a cincia e a cultura viriam da Inglaterra, Frana, Itlia e Alemanha para a Rssia, seriam transformadas e da acabariam voltando para a Grcia, num movimento semelhante ao da circulao do sangue.

    O carter proftico dessa anedota duplo: por um lado, observou-se que, realmente, a Rssia, sempre que as linhas de comunicao o permitiram, as-similou vorazmente a cultura ocidental e a devolveu ao mundo diferente de como a tinha recebido. Por outro, por uma dessas coincidncias histricas que s possvel explicar a posteriori, a poesia russa (e a msica russa tambm, segundo M. Baring), a despeito de qualquer outra influncia mais ou menos sensvel, tem at its best as mesmas caractersticas da poesia grega. Esta tambm a opinio do historiador da literatura russa, D. S. Mirsky:

    No se trata de uma beleza de ornamento, mas de uma beleza de estrutura, uma beleza

    de harmonia e de simplicidade... A poesia grega estaturia no sentido em que depende

    essencialmente de sua estrutura orgnica: isto no significa absolutamente que seja fria,

    rgida, ou sem cor... Ela tem a mesma simplicidade e o mesmo despojamento de uma

    escultura grega. O poeta tem algo a dizer e o diz no estilo mais apropriado e da forma

    melhor e mais verdadeira possvel. Se voc gostar, gostou...10

    justamente o que acontece com Pchkin, como bem notou M. Baring:

    O senso de equilbrio e proporo em que a palavra e o som se fundem lembra ao

    leitor, quando l Pchkin, a arte grega, e lhe d a impresso de estar lendo um clssico11.

    Aclamado incondicionalmente pelo pblico que o tornou, at hoje, o poeta mais popular da Rssia, to logo se afastou dos esquemas e dos temas conven-cionais, passou a ser massacrado pela crtica e perseguido pela censura at o fim de sua curta vida, que vamos acompanhar sucintamente.

    Na poca em que Pchkin nasceu (1799), o czar que reinava sobre a Rssia ainda era Paulo I, o filho insano de Catarina II, que viria a ser morto dois anos

    10. Cf. Mirsky, Histoire de la Littrature Russe, Paris, Fayard, 1969, p.53.11. Cf. M. Baring, introduo a The Oxford Book of Russian Verse (cit., 1958, p. XXII).

    Quanto ao conceito de clssico, verdade que quem diz clssico na Rssia diz realista, como muito bem observou Leo Schalfman em seu artigo sobre Pchkin (Jornal do Brasil, 23/1/93), e tambm verdade que quem fala na poesia de Pchkin tem em mente ao mesmo tempo os ideais de seletividade, familiaridade e simplicidade.

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    37

    depois numa conspirao palaciana, da qual tomaria secretamente parte seu filho e sucessor, Alexandre I. Moscou havia se tornado o centro da vida intelec-tual e artstica do pas. A alta sociedade, que em So Petersburgo gravitava em volta da Corte, em Moscou, via de regra, entediava-se. Os jovens promissores liam os imitadores russos de Parny, Rousseau, Racine, Voltaire, enquanto as jovens (e as velhas) suspiravam com os romances sentimentais que apareciam aos montes, todos iguais e de qualidade duvidosa12. A mesmice dominava tam-bm o cotidiano. De manh, praticavam equitao e, noite, em dias certos da semana, quando no havia baile ou carteado, freqentavam os sales. Os chefes de famlia cuidavam da administrao de suas propriedades rurais, onde a famlia passava temporadas anuais, juntamente com numerosa criadagem, parentes, servos e agregados. O povo, como sempre, sofria.

    Foi nesse meio que nasceu Pchkin, numa casa da rua Alemanha, destruda pelo incndio de 1812. O pai, jovem oficial da guarda, revelou-se mau admi-nistrador, colrico, medroso, atormentado pelas dvidas. A me, neta de Ibraim Hannibal, o famoso Negro de Pedro, o Grande13, bonita, ftil e nervosa, no soube ser boa me nem boa companheira.

    Durante sua infncia, entregue aos cuidados de preceptores improvisados que s conseguem fazer com que ele aprenda o francs, o jovem Pchkin torna-se desobediente, caprichoso, precoce. Abandona, embora com carinho, as histrias maravilhosas que lhe contam a av Hannibal e a bab, Arina Rodi-novna, e devora os livros da biblioteca do pai: Plutarco, Homero, La Fon taine, Molire, Corneille, Racine, Beaumarchais, Parny, Diderot, Voltaire14. Comea a escrever versos em francs. Aos doze anos, quando est para ser enviado a um colgio de religiosos para completar sua educao, consegue ingressar, graas interferncia de influentes amigos da famlia, no recm-criado Liceu de Tzrs-koie Sel, prximo de So Petersburgo, cuja sede encontrava-se numa das de- pendncias da prpria residncia de vero dos czares.

    12. Veja-se no conto A Dama de Espadas, a causticidade com que Pchkin satiriza essa ambincia:

    Paul! gritou a condessa de trs dos biombos. Manda-me algum romance que ainda no li, mas, por favor, que no seja dos novos.

    Como assim, grandmaman? Quero dizer: um romance em que o heri no estrangule o pai, nem a me e em que

    no haja afogados. Eu tenho um medo terrvel de afogados. Tais romances no existem mais. No quer algum russo? Mas existem romances russos? Manda-me um, meu caro, manda-me, por favor! (trad.

    Boris Schnaiderman, A Dama de Espadas, So Paulo, Editora 34, 1999, p. 176).13. Leia-se o conto homnimo, publicado na j citada coletnea A Dama de Espadas.14. Trata-se de originais e tradues francesas.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    38

    O Liceu, com nmero reduzido de vagas, recebia jovens destinados aos mais altos cargos do Estado e escolhidos entre as melhores famlias. ali que Pchkin permanecer at os dezoito anos. apaixonante imaginar a evoluo de sua personalidade nessa poca de aprendizado, que talvez tenha sido a mais feliz de sua vida. Os professores, dessa vez no improvisados, alimentam-lhe o estro potico. Um deles leva-o a compor suas Reminiscncias de Tzrskoie Sel para o exame de 1814, um trabalho potico que, embora seguindo as pegadas de Derjvin e de Jukvski, j demonstra a felicidade com que Pchkin harmoniza ritmos, sons e sentido e, publicado por uma das mais importantes revistas da poca, consagra-o como fenmeno aos quinze anos.

    Em Tzrskoie Sel travar as amizades que lhe sero de conforto e de est-mulo durante a vida inteira e far sua iniciao poltica e sentimental. Em 1817, ter escrito cento e vinte trabalhos, em verso ou em prosa, dominando todos os gneros conhecidos e comeando a transgredi-los.

    Saindo do Liceu com o cargo de adido ao Ministrio do Exterior e o soldo anual de setecentos rublos, comea a levar em So Petersburgo uma vida de dissipao. No dizer de seus bigrafos, era ativo, rpido, negligente, insolente, atrevido e ftil, queria conhecer todos os homens clebres, possuir todas as mulheres disponveis, ouvir todas as vozes famosas e elevar a si mesmo ao mais alto nvel como poeta15.

    Sua popularidade era preocupante e a censura do czar no o perdia de vista. Devido interceptao de uma carta pessoal em que se declarava ateu e pu-blicao de sua Ode Liberdade, que desagradou particularmente a Alexandre I por conter aluses ao assassnio de seu pai (mas, na verdade, para evitar que os versos ousados de Pchkin, repetidos por todos, fomentassem uma suble-vao), em 1820 ele foi removido primeiro para o Sul da Rssia e depois para outras regies (Kichiniov, Odessa, Mikhilovskoie) at a morte do prprio Alexandre I, em 1825.

    O exlio e o deslocamento tero repercusses inevitveis na natureza e na intensidade de sua produo. Se Tzrskoie Sel representa a poca neoclssica de sua obra, o Cucaso, o Mar Negro e os desertos da Bessarbia servem de ambincia a seus poemas romnticos, meridionais. Alm dos j citados por Ty ninov, A Fonte de Bakhtchissarai foi um sucesso to grande que rendeu ao poeta milhares de rublos em direitos autorais que ele, pela primeira vez na Rssia, passou a exigir dos editores. Apenas a crtica continuava no querendo entender o carter inovador de suas obras e a pedir-lhe odes que celebrassem feitos nacionais. Escreve ele a um amigo em 1824:

    15. Cf. Histoire de la Littrature Russe, cit., p. 17.

  • Pchkin e o Comeo da Literatura Russa

    39

    A crtica confunde inspirao e entusiasmo A inspirao uma disposio do esp-

    rito para captar vivamente as impresses e para melhor compreender as idias... preciso

    inspirao tanto em geometria quanto em poesia. O entusiasmo exclui a tranqilidade,

    que uma condio indispensvel da criao artstica. O entusiasmo no pressupe o

    trabalho da razo, que distribui as partes no interesse do todo. O entusiasmo efmero,

    descontnuo, incapaz, portanto, de produzir uma obra verdadeiramente grande e perfeita.

    Homero incomparavelmente maior que Pndaro. A ode est nas esferas mais baixas da

    criao artstica. A ode exclui o trabalho contnuo, sem o qual no h nada de grande

    nesse mundo.

    Ironicamente, foi sua condio de desterrado que o salvou de se ver en-volvido diretamente na conspirao dos dezembristas, que pretendia acabar com o czarismo e que levou a maioria de seus ex-colegas de Liceu forca ou Sibria. O sucessor de Alexandre I, seu filho Nicolau I, acedeu aos pedidos do poeta e permitiu-lhe voltar capital, mas submeteu-o, at o fim de seus dias, a uma censura incessante, exercida por ele mesmo e pelo terrvel Benkendorf, chefe da polcia secreta.

    Por essa poca, Pchkin j havia iniciado sua obra mais conhecida, o ro-mance em versos Evguini Oniguin, que levaria oito anos para concluir e que marcaria o apogeu daquele inconfundvel realismo de que falava Baring, e da volta daquele antigo filo de poesia popular que no mais abandonar. Ao mesmo tempo, porm, ele continuava compondo outros poemas, longos ou curtos, sempre de primeira grandeza. Entre eles, a tragdia Boris Godunov, O Conde Nlin, Poltava, A Tempestade, O Profeta. Pouco antes de se casar (1830), recolheu-se propriedade paterna em Boldino, onde trabalhou febrilmente. Em menos de trs meses escreveu mais de 30 poemas e as j citadas pequenas tragdias, que revelam o artista no apogeu de sua arte. Pouco depois, escreveu duas obras-primas: O Conto do Czar Saltan e O Cavaleiro de Bronze.

    Na dcada de 1830, Pchkin passa a se dedicar mais sistematicamente prosa. Trata-se de uma prosa sbria e essencial, de uma vivacidade inimitvel. Basta ver o juzo que dela faz Liev Tolsti, em carta a um amigo quarenta anos aps a morte de Pchkin:

    H muito que voc no l a prosa de Pchkin?... Comece lendo todos os Contos de

    Bilkin. Eles devem ser estudados e todo escritor deve estud-los... Por que esse estudo

    importante? O campo da arte infinito como o da vida; mas todos os temas estilsticos

    sempre foram distribudos de acordo com uma determinada hierarquia; ora, misturar os

    mais baixos com os mais altos ou tomar o mais baixo pelo mais alto um dos erros que

    mais acontecem. Nos grandes artistas, em Pchkin, esta harmoniosa regularidade na dis-

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    40

    tribuio dos temas levada perfeio... A leitura de Homero e de Pchkin restringe o

    campo e, se estimula ao trabalho, o faz no sentido certo, sem erro nenhum.

    A natureza inquieta e vacilante do sol da poesia russa, como seria cogno-mi nado, impeliu-o a um casamento infeliz que lhe consumiu as poucas posses e as energias vitais, levando-o a procurar a soluo dos contnuos impasses num duelo em que se viu envolvido, vindo a falecer com a idade de 38 anos. No fora isso, alm do ciclo de Histrias do Falecido Ivan Petrvitch Bilkin16 (1830), do romance A Filha do Capito17 (1836), dos contos A Dama de Espadas, Dubrvski e Kirdjali, e de outras obras em prosa (e poesia) que viesse a escre-ver, ele certamente teria terminado os romances O Negro de Pedro, o Grande e Romance em Cartas.

    AbstRAct: this essay presents a brief history of Russian literature up to the works of A. s. Pushkin, pointing out their importance in the formation of modern Russian literature. Ques-tions about the theory and practise of his poetics (in poetry and prose) are also analysed.

    KeywoRds: A. s. Pushkin; Russian literature; Pushkins prose and poetry; Russian versification.

    16. A maioria dos contos do ciclo foram traduzidos para o portugus por Boris Schnai der-man no volume A Dama de Espadas (So Paulo, Editora 34, 1999), do qual ainda fazem parte o conto que d nome coletnea, alm de O Negro de Pedro, o Grande, Dubrvski e Kirdjali.

    17. Traduo brasileira de Helena Nazario (So Paulo, Perspectiva, 1980).

  • Notas Margem daLrica de Pchkin1

    Roman Jakobson

    Resumo: Neste ensaio, que tem por base um estudo comparativo entre a poesia pica e a lrica de Pchkin, so analisados os elementos e tcnicas de composio da lrica puchki-niana. so comentados tambm os aspectos da poesia lrica de Pchkin que encontram suas razes na tradio potica russa, bem como aqueles de carter inovador.

    PalavRas-chave: a. Pchkin; lrica de Pchkin; poesia russa do sculo XIX.

    A poesia lrica de Pchkin, de todos os gneros literrios por ele praticados, continua sendo a menos estudada. H muitas razes para isso. Identific-las aqui implica chamar a ateno para as caractersticas fundamentais do trabalho lrico do poeta; este o nico objetivo das anotaes que vm a seguir. Se no dada poesia lrica de Pchkin a merecida ateno, por ser habitualmente considerada uma digresso em relao ao restante de sua obra criadora uma inovao menor na histria da arte verbal russa, e um impulso menos forte para sua evoluo posterior.

    1. ( , Moscou, Pro gress, 1987, pp. 213-218) foi escrito em tcheco e publicado pela primeira vez na revista Okraj (Praga, 1937). A traduo baseou-se nas verses russa e francesa (Russie folie posie, org. T. Todorov, Paris, Seuil, 1986). Na traduo francesa, sob o ttulo geral de Pouchkine (trad. Nancy Huston, pp. 107-121), foram reunidos o presente ensaio (I. La posie lyrique, pp. 107-114), seguido do ensaio Notas Margem do Evguini Oniguin (II. Eugne Onguine, pp. 114-121), ambos publicados originalmente em separado.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

    42

    Certamente, em sua primeira fase, a chamada fase do liceu2, Pchkin qua- se exclusivamente um poeta lrico; mas no trabalho de sua maturidade este gnero ocupa de fato, e de modo sempre mais evidente medida que o tem-po passa, um lugar secundrio, cedendo o papel principal ora a poemas bem longos do tipo pico, ora a experincias no campo do drama e, mais tarde, da prosa. Sua tendncia progressiva , se no dominar, ao menos atenuar e delimitar o elemento lrico; assim A Dama de Espadas, Oniguin, Godunov etc. surtem o efeito de dissimular o relevo lrico do mundo potico de Pchkin para o observador que considera retrospectivamente seu trabalho e s v nele picos alts simos e isolados, ao invs de toda a cadeia contnua. verdade que, ao longo de seu desenvolvimento criador, Pchkin rejeitou o lirismo, e que em seus textos picos ele muitas vezes suprimiu conscientemente as ressurgncias lricas, cortando e substituindo as passagens lricas por reticncias; mas no resta dvida de que a obra toda provm da, e que cada uma de suas composies picas tem origem num esboo lrico. E isso vlido no s do ponto de vista da oficina de Pchkin, das condies histricas preexistentes ao apareci mento de suas obras-primas, mas tambm do ponto de vista do contexto literrio que foi, simultaneamente, uma de suas componentes ativas. O poeta, ao rejeitar por completo o lirismo propriamente dito, contava com um leitor capaz de perceber esse processo e de compreender exatamente aquilo que tinha sido rejeitado. A poesia lrica de Pchkin , antes de mais nada, uma chave indis pensvel para a compreenso de seu simbolismo, que ser bem mais complexo e velado nas obras picas. E o poema lrico o nico gnero literrio que Pchkin cultivou durante toda sua vida desde a adolescncia at os ltimos dias; de modo que ele constitui uma espcie de cimento de toda sua obra.

    A poesia lrica de Pchkin apresenta vrios pontos de semelhana com de-terminados desenvolvimentos anteriores da poesia russa. o que sem dvida alguma levou Pchkin a comear pela poesia lrica a recorrer a ela durante os tempos do liceu e a abandon-la mais tarde; em outras palavras, o fato de Pchkin ter estreado justamente sob o signo do lirismo est ligado riqueza da tradio lrica russa. O perodo que vai do incio do sculo XVIII ao final do XIX o da grande ecloso da poesia lrica na Rssia. Pchkin, poeta lrico, o herdeiro do classicismo russo em toda sua variedade. E o que mais particular-mente o influenciou foram as formas ditas baixas dessa literatura clssica, as que pertencem esfera da poesia ligeira, assim como as tentativas de sobre-pujar as normas clssicas, tentativas intimamente ligadas a essas formas mais

    2. A produo potica de Pchkin referente aos anos em que estudou no Liceu de Tzrskoie Sel e freqentou o crculo Arzams (1811-1817).

  • Notas Margem da Lrica de Pchkin

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    baixas. Nem para o drama, nem para a epopia, nem para a prosa Pchkin teve modelos russos to marcantes e to diversificados como o eram Gavrila Derjvin, Konstantin Btiuchkov e Vassli Jukvski para a poesia lrica. Pchkin liga-se a seus eminentes predecessores por seu modo de conceber e de elaborar gneros lricos individuais. claro que o jovem Pchkin apreendeu bastante da poesia lrica estrangeira, sobretudo dos escritores franceses dos sculos XVII e XVIII, bem como, um pouco mais tarde, da nova poesia lrica inglesa; mas nunca teria podido fazer emprstimos eficazes dessas correntes sem uma tradio local muito desenvolvida. Se, em sua poesia lrica, Pchkin foi menos pioneiro e inventor de novas formas literrias do que viria a ser mais tarde no drama histrico ou na epopia, essa poesia, no entanto, a sntese da evoluo centenria da poesia clssica russa; ela a consagra ao esgotar suas possibilidades de criao. Nem a poesia lrica romntica e meldica (Baratnski, Lirmon tov, Tittchev) cuja evoluo os simbolistas3 deveriam perfazer nem a poesia lrica de ressonncias pardicas do realista Nekrssov precisavam passar por Pchkin, ao passo que o Oniguin, O Cavaleiro de Bronze, Godunov e os textos em prosa do poeta tornaram-se passagens obrigatrias na histria da literatura russa e prepararam o caminho para novas conquistas artsticas.

    Entretanto, se a poesia lrica de Pchkin causa perplexidade aos historiadores de literatura no simplesmente por ela no ter deixado herdeiros; devido surpreendente estranheza de suas tcnicas formais. Os procedimentos lricos de Pchkin distanciam-se a tal ponto das idias correntes sobre a composio de um poema lrico que, como tais, eles constituem um dos problemas mais difceis de resolver, exigindo da parte de um leitor contemporneo que dese-jasse assimilar plenamente um poema de Pchkin um abandono consciente dos critrios habituais. Permitido tal abandono, descobre-se no somente um mundo singular de valores artsticos, mas tambm e o que muito mais im-portante se levado a perceber o mundo da poesia lrica que habitamos como apenas um entre todos os mundos lricos possveis, e suas fronteiras como algo passvel de ser ampliado.

    Uma confrontao entre dois mundos poticos, como aquela que propo-mos aqui ao leitor, definitivamente a premissa criadora da poesia lrica de Pchkin: o Classicismo iluminado pelo Romantismo. O Classicismo de um poeta que permanece fiel tradio mas que ao mesmo tempo conhece, compreende, aprecia as conquistas do Romantismo e as experimenta funda-

    3. O simbolismo manifestou-se na Rssia de 1890 a 1910, sendo responsvel por todo um processo de renovao da poesia lrica, aps quase sessenta anos de domnio da prosa na literatura russa.

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

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    mentalmente diferente do Classicismo pr-romntico, assim como os romn- ticos colocados numa ambincia realista (Baudelaire, Lautramont, Dostoivski) distinguem-se com muita nitidez dos romnticos como tais.

    O encanto da simplicidade despojada, diz Pchkin, continua sendo inin-teligvel para ns, de modo que at da prosa exigimos ornamentos surrados, e teimamos em no compreender uma poesia livre dos ornamentos poticos convencionais4. este o n da potica de Pchkin: isso que imprime a seu trabalho lrico um cunho raro, to particular, e que complica imensamente sua anlise, pois no h matria mais difcil de analisar que uma forma simples que beira o ascetismo, sobretudo se a conhecemos de cor desde a infncia. Profundamente estranho poesia lrica de Pchkin o dualismo entre a nar-rativa e os floreios narrativos, ou a oposio dos objetos e das imagens, de uma categoria do real e de uma categoria figurada. (Significaes lexicais s quais o poema atribui um sentido objetivo pertenceriam primeira categoria: , por assim dizer, o contedo da mensagem lrica; tropos, evocando objetos que no esto realmente implicados no contedo material, mas que lhe so associados por semelhana, por contraste ou por contigidade, pertenceriam segunda categoria.) A relao entre essas duas categorias varia de acordo com as escolas poticas; a fronteira entre as duas pode, por exemplo, ser obliterada de modo que as palavras oscilem de uma para outra. Porm Pchkin, partindo do lrico para o pico, rejeita por assim dizer os tropos autnomos ou, antes, ele os projeta sobre uma realidade potica de modo tal que os objetos que formam o contedo de um poema permanecem de fato diretamente ligados uns aos outros por estreitas relaes de contigidade, de semelhana e de oposio. Assim, as relaes metafricas e metonmicas acham-se reificadas, entrando diretamente no contedo do poema para se tornar seu assunto, sua intriga dramtica. Uma viagem, uma vista panormica, uma sucesso temporal, por exemplo, constituem motivos tpicos para cadeias de imagens contguas nos poemas de Pchkin.

    O gosto de Pchkin pela preciso, pelo despojamento e pelo valor infor-mativo da palavra potica diferencia no geral sua poesia lrica do lirismo romntico. Seu modo de narrar sbrio, sem paixo ou clera; nem em seu vocabulrio nem na sintaxe ele recorre ao estratagema do discurso emo-ti vo e expressivo. Quanto pontuao, evita ao mximo as reticncias, os pon tos de exclamao e mesmo os de interrogao, e observa escrupulosa-mente os limites das significaes lexicais. Seus eptetos so precisos e sem-

    4. Cf. N. V. Bogoslvski (org.), (Pchkin sobre a Literatura), Moscou-Leningrado, Academia de Cincias, 1934, p. 153 (N. do A.).

  • Notas Margem da Lrica de Pchkin

    45

    pre motivados tematica mente; sua textura sonora e suas entonaes esto intimamente ligadas ao sentido; a tendncia para uma melodia e uma ornamentao autnomas estranha a seu lirismo. As estrofes de Pchkin so bem ordenadas e flexveis, o que permite a nfase no aspecto semntico. Uma valorizao surpreendente das oposies gramaticais, sobretudo entre as formas verbais e pronominais, est associada a uma ateno aguda para com o sentido. Os contrastes, as afinidades, as contigidades de tempo e de nmero desempenham um papel absolutamente primordial na composio de alguns poemas; realados por uma oposio entre categorias gramaticais, eles adquirem a eficcia de imagens poticas; a variao controlada das figuras gramaticais torna-se desse modo um meio de densa dramatizao. Dificil-mente se encontraria um exemplo potico mais perfeito da explorao das possibilidades da morfologia! Para obter maior carga semntica das palavras e sua diferenciao mais sutil, Pchkin aproveita-se em larga medida, e com grande eficcia, da particular riqueza estilstica que a lngua russa oferece, graas interpenetrao de elementos locais e de elementos do eslavo, de tradies espiritualistas e laicas, de modos de falar populares de gria e folclricos e aristocrticos afrancesados. Muito consciente dos recursos que essa estra tificao lingstica proporciona, ele declara: Na qualidade de matria para a arte verbal, a lngua eslavo-russa apresenta uma vantagem indiscutvel sobre todas as lnguas europias: seu destino foi surpreendente-mente feliz. Entretanto, esse carter feliz da lngua russa retardou a difuso no Exterior da obra de Pchkin, to fortemente ligada lngua, e sobretudo a difuso de sua poesia lrica, de todas a mais vinculada aos valores lingsti-cos. Esta apresenta penosas dificuldades tanto para o tradutor, cuja lngua carea de uma estratificao estilstica to rica do vocabulrio, como para o leitor no iniciado nas infinitas nuances do russo.

    Fala-se muito do realismo de Pchkin, mas na verdade os traos mais ca-ractersticos da literatura e das artes visuais do perodo realista a saber, a presena de detalhes suprfluos de um ponto de vista temtico, a tentativa de desenhar e colorir de modo to minucioso quanto possvel todo objeto descri-to esses traos so ambos estranhos poesia lrica e imagtica de Pchkin. As imagens poticas que ele utiliza so despojadas e esto mais prximas do desenho que da pintura.

    Ao projetar imagens heterogneas sobre um mesmo plano, Pchkin anula a hierarquia entre elas. As experincias subjetivas so relatadas num estilo obje-tivo, de modo a se aproximarem das imagens da ao; com isso, o heri lrico nos poemas de Pchkin perde sua posio central e dominante. A emoo no passa de um entre outros objetos de representao potica; desse modo, a

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

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    poesia lrica de Pchkin s vezes um discurso sobre a emoo, porm nunca um discurso emotivo. Os crticos tm por hbito estabelecer uma equi-valncia rigorosa entre a potica de um poeta e sua viso de mundo. Nesse discurso que tenta passar uma impresso de neutralidade, nessa eqidistncia de todas as imagens o que permite a Pchkin comparar o papel do poeta ao do eco reverberando todos os sons pretendeu-se ver a prova de uma atitude de aprovao generalizada de Pchkin em relao ao mundo embora saibamos que sua verdadeira atitude pessoal era absolutamente outra. Todo leitor atento fica assombrado diante da riqueza de imagens heterogneas que habitam em p de igualdade o mundo potico de Pchkin; um grande nmero de objetos se interpenetram; o mesmo objeto representado sob enfoques diferentes. A polissemia de uma obra provm necessariamente da ausncia de uma hierarquia. Toda imagem contestada, diz um crtico, imagem nenhu-ma pode ser interpretada de modo conclusivo a partir de um nico ponto de vista; toda interpretao abre caminho para uma outra, e nenhuma pode ser aceita como definitiva5. Entretanto, este crtico engana-se quando, a partir da polissemia de uma obra potica, ele tira concluses a respeito da indeciso pessoal, da va cilao e da indefinio ideolgica do autor. A ambigidade, ou, mais precisamente, a multiplicidade de sentidos, uma das componentes b-sicas das obras poticas de Pchkin, e seria evidentemente ftil procurar num eco uma ideologia unificada. De resto, por essa razo que se pode desembo-car em julgamentos infinitamente contraditrios sobre as opinies polticas, filosficas ou religiosas do escritor a partir de suas obras poticas; e nenhuma tentativa de ultrapassar essas contradies, apelando ao estatuto extraclasses do autor, ou ao fato de que ele se teria emancipado de seu meio, pode salvar a situao. Os crticos ora condenam as incoerncias ideolgicas das obras de Pchkin, ora tentam de um modo ou de outro perdoar nelas a fraqueza, mas eles no se do conta de que foi exatamente esta pluralidade semntica deslumbrante que conferiu ao poeta seu lugar entre os eleitos, transcendendo sua poca e sua nao. Toda gerao, toda classe, toda faco ideolgica projeta sua prpria escala de valores sobre um trabalho que em si no comporta juzo de valor.

    O erudito, para quem cada estrofe da poesia lrica de Pchkin um docu-mento em si e que nela procura idias contraditrias, acredita detectar uma ruptura ideolgica em 18256 e fala da revolta do poeta, seguida de sua capitu-

    5. Cf. D. Mirsky, (O Problema de Pchkin), (Herana Literria), 16-18, 1934, p. 102 (N. do A.).

    6. Ano da Revolta Dezembrista.

  • Notas Margem da Lrica de Pchkin

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    lao. E, no entanto, o leitor, para quem Pchkin uma fonte inesgotvel, sabe muito bem que o conjunto de sua obra indissolvel, e que sobretudo sua poesia, desde os poemas de estria do liceu at os derradeiros esboos, possui um simbolismo incrivelmente homogneo. De resto, impossvel, por assim dizer, falar de formas menores em Pchkin, pois esses pequenos fragmentos se fundem numa obra lrica monoltica, em cujas ltimas pginas encontramos a recorrncia, o desenvolvimento e o esvanecimento de imagens que nela j apareciam desde o primeiro momento. Sem a conscincia dessa totalidade impossvel compreender plenamente a poesia lrica de Pchkin.

    Certas imagens encontram-se to intimamente ligadas entre si que basta uma delas aparecer num poema para que um segundo elo da corrente venha forosa-mente ao esprito. Desse modo, os temas da servido, da revolta e da liberdade esto invariavelmente ligados a imagens de ondas, inundaes, barrancos, uma priso, uma jaula, Pedro, o Grande, e Napoleo; e isso tambm vlido quando o assunto verdadeiro de um poema no vem explicitado, ou quando o autor o suprime devido censura (em O Prisioneiro do Cucaso, por exemplo). A pro-psito, no se deve desprezar o fato de que uma censura importuna e implacvel constitui um elemento essencial da histria da literatura russa (isso tambm se aplica, e em grau bastante elevado, poca de Pchkin); a capacidade de ler nas entrelinhas torna-se desde ento excepcionalmente aguda no pblico, e o poeta recorre s aluses, s omisses, ou para usar a expresso russa linguagem esopiana. Justamente por serem as relaes entre as imagens sempre muito estveis que o leitor consegue perceber com particular intensidade as diversas variaes s quais elas foram submetidas. No plano da composio, isso nos faz lembrar a comdia clssica (commedia dellarte), na qual as possibilidades de improvisao adquirem maior relevo na medida em que atuam sobre um fundo de componentes fixas. Assim, diferentes oposies de imagens o re-pouso e o movimento, o livre-arbtrio e a coao, a vida e a morte reaparecem a todo instante na poesia lrica de Pchkin, e, no entanto, as relaes entre os membros de cada uma de suas oposies no deixam de nos encantar e de nos surpreender por suas transformaes constantes e caprichosas. Tais relaes se refletem na grande mobilidade do mito do qual o prprio Pchkin objeto, o qual arden temente celebrado por um poeta (Dos toivski) como encarnao eterna da humildade, e por um outro (Valiri Brissov), a par de outras tantas justificativas, como smbolo eterno da revoluo. justamente essa inexaurvel tenso interna que se chama comumente de imortalidade do poeta.

    abstRact: In this essay that has for its base a comparative study of the epic poetry and the lyrics of Pushkin, the elements and techniques of composition are analysed. the aspects of

  • Caderno de Literatura e Cultura Russa

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    Pushkins lyric poetry that find their roots in Russian poetic tradition as well as those of innovative character are also commented upon.

    KeywoRds: a. s. Pushkin; Pushkin lyric; Russian poetry of the 19th century.

    Traduo e Notas

    Homero Freitas de Andrade

  • Como Foi Feita umaQuadra de Pchkin1

    Roman Jakobson

    Resumo: Neste artigo, o estudioso R. Jakobson faz uma anlise estrutural do poema O Ouro e o Sabre, de Pchkin, a partir do exame dos elementos fonolgicos, sintticos e se-mnticos que o compem.

    PalavRas-chave: a. s. Pchkin; poesia de Pchkin.

    , ; , . , ; , .

    Transliterao:ZLOTO I BULATVsi moi, skazalo zlato;Vsi moi, skazal bulat.Vsi kupli, skazalo zlato;Vsi vozm, skazal bulat.

    Traduo:O OURO E O SABRE

    Tudo meu, disse o oiro2;

    1. Este artigo (La facture dun quatrain de Pouchkine) foi traduzido da revista Potique, n. 34, avril 1978, Paris, Seuil, 1978.

    2. Na traduo do poema, a opo pela forma oiro, registrada como variante de ouro nos dicionrios brasileiros, justifica-se como tentativa de recuperar o zlato (forma antiga e poti- ca) do original e manter o contraste entre este e o zloto (ouro) do ttulo.

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    Tudo meu, disse o sabre.Tudo comprarei, disse o oiro;

    Tudo tomarei, disse o sabre.

    Este poema, que Pchkin publicou no jornal O Mensageiro de Moscou de 1827, compreende quatro tetrmetros trocaicos, com rima feminina nos versos mpares e masculina nos pares. Cada verso interseccionado em dois he mis-tquios por uma cesura entre a terce ira e a quarta slabas. Cada hemis t quio contm duas palavras e cada verso, quatro, cujos acentos recaem sobre as quatro slabas mpares do verso. A quadra engloba duas frases, constitudas cada uma de um dstico e marcadas, no final, por um ponto. A pontuao do autor indica a hierarquia das subdivises sintticas: ponto-e-vrgulas separam os versos de cada dstico e, no interior de cada verso, a vrgula mais o hfen entre seus dois hemistquios, que encerram, cada um por sua vez, uma orao.

    O discurso direto predomina na primeira orao de cada verso; a terceira palavra designa o ato da fala enquanto a quarta designa o sujeito falante. A diferena entre as duas oraes, a dico do poeta, de um lado, e a de seus he-ris, de outro, ressaltada pelo contraste das vogais acentuadas. As oito vogais fechadas do primeiro hemistquio dos quatro versos seis // e dois // so completamente opostas, por sua tonalidade sombria, ao som explosivo dos oito // do segundo hemistquio. Observa-se ainda que no primeiro hemistquio a vogal pr-tnica /a/ alterna-se com /o/ (cf. /mai/, /vazm/3), enquanto no segundo a vogal pr-tnica /a/ est em alternncia com // (cf. /skazal/, /skazalo/). O carter lbial das nove consoantes (das quais sete so iniciais) no primeiro hemistquio, em confronto com as dez sibilantes (das quais seis so iniciais) do segundo hemistquio refora o contraste.

    Cada verso remete a trs categorias morfolgicas diferentes: a primeira palavra de cada verso um pronome, a terceira um verbo e a quarta um substantivo. Quanto segunda palavra do verso, pertence a duas categorias mor fo l gicas diferentes: nos dois versos do dstico inicial, trata-se de um pro-nome, em consonncia com a palavra anterior; nos versos do segundo dstico, trata-se de um verbo, em consonncia com a palavra posterior.

    As dezesseis palavras da quadra esto todas no singular, os seis pronomes encontram-se todos flexionados no neutro, as seis formas verbais so todas pes-soais. Os substantivos zlato (oiro) e bulat (sabre) so inanimados: os nomes desses dois metais, sujeitos falantes metonmicos, so substitudos o primeiro pela conotao de ricao e o segundo pela de guerreiro atravs da eloqncia.

    3. Em russo o /o/ tono pronunciado como /a/ fechado.

  • Como Foi Feita uma Quadra de Pchkin

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    No que se refere ao lxico, as palavras mpares dos versos so estveis ao longo de toda a quadra: vsi (tudo) e skazalo (disse), ao passo que a funo sinttica da palavra vsi varia de um dstico para o outro: enquanto nos dois primeiros versos esse pronome desempenha a funo de sujeito, nos dois l-timos versos da quadra torna-se objeto direto. Quanto s palavras pares dos versos, essas so mais estveis na funo sinttica que desempenham. Assim, a quarta palavra zlato nos versos mpares, bulat nos versos pares sujeito gramatical em todos os versos da quadra. A segunda palavra moi (pronome no primeiro dstico), kupli e vozm (verbos no segundo dstico) funciona sempre como predicado e refere-se primeira pessoa. o ltimo dstico, com seus contrastes lexicais entre as palavras pares dos dois ltimos versos, que refora a ao da quadra.

    No interior de cada um desses dois pares, os antnimos revelam certa afini-dade em sua estrutura fonolgica: a ordem similar das consoantes e das vogais liga os verbos kupli e vozm; o mesmo grupo /-lt/ com a nica oclusiva dental do poema, aproxima as razes nominais zlt e bulat. Nos versos mpares, as duas palavras do segundo hemistquio skazalo zlato encontram-se amalgamadas por toda uma srie de sons semelhantes (/a z l a z l /), enquanto na orao skazal bulat a ligao entre as duas palavras reduz-se dupla vizinhana dos fonemas // e /l/. A correspondncia /l/ /l/ recorrente nos hemistquios finais de cada um dos quatro versos.

    A categoria dos gneros das palavras constitui elemento pertinente de cons-truo da quadra. O feminino est ausente no poema e o papel dos gneros limita-se oposio entre masculino e neutro, do mesmo modo que a distin-o entre as pessoas verbais reduz-se oposio entre a primeira e a terceira pessoa. As categorias verbais que participam do processo do enunciado esto representadas no poema por uma nica oposio entre o pretrito e o presente perfectivo4. O verso inicial diferencia-se de todos os demais pelo