boris pasternak doutor jivago trad. de antónio pescada

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    oris Pasternak e em 1890 em Moscovo, numa família judia. Filho do pintor Leonid Pasternak e de uma pianista, passa a juventude numa at

    mopolita. Estuda filosofia na Alemanha, onde reside durante um ano com a família. Volta para Moscovo em 1914 e estabelece l

    o grupo futurista local. Nas suas obras poéticas de juventude, inspiradas nos movimentos de avant-garde, Pasternak ainda procu

    mas já se sente o talento musical do poeta que o afasta do simbolismo e o aproxima do futurismo. Pasternak afirma-se com o seu

    , Minha irmã a vida (1917), que circula sob a forma de manuscrito até 1922, ano em que é finalmente publicado. Nos anos 30 viv

    cil dos artistas independentes: acusado de subjectivismo – «os seus livros falam do passado e não do presente, o seu estilo é poétic

    alista» – consegue, apesar de tudo, numa espécie de exílio interno, manter a sua vida de tradutor e escritor. Em 1947, inicia uma

    rosa apaixonada com Olga Ivinskaïa, que inspirará a personagem de Lara no Doutor Jivago, obra que começa a escrever no pós-

    ublicação em finais de 1957, em Itália, da primeira edição de  Doutor Jivago, digno herdeiro da tradição clássica do romanc

    cede em pouco a decisão da Academia sueca de lhe atribuir o Prémio Nobel da Literatura, em 1958. Este acontecimento desenc

    a das autoridades soviéticas, obrigando-o a recusar o prémio para evitar, tanto para ele como para a sua família, graves sanções

    anos mais tarde, em Peredelkino, perto de Moscovo. Doutor Jivago só será finalmente publicado na União Soviética em 1988, em

    estroika .

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    or Jivagos Pasternak

    o original: Доктор Живαго

    cado em Portugal porante Editora

    w.sextanteeditora.pt

    angiacomo Feltrinelli Editore, 1957. Renovado © 1990

    08, Sextante Editora, Lda.

    gn da capa: Atelier Henrique CayatteSusana Cruz

    grafia da capa: imagem tirada do filme Doutor Jivago (1965),avid Lean © Album / Fototeca

    dição em papel: Dezembro de 2008

    ante Editora é uma chancela dao Editora, Lda.l: [email protected]

    rvados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocópação, sistema de armazenamento e disponibilização de informação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

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    dice

    RO PRIMEIRO

    I. O Expresso das cinco

    II. Uma rapariga de outro meio

    III. A árvore de Natal dos Sventitski

    IV. Aproxima-se o inevitável

    V. Adeus ao passado

    VI. Estada em Moscovo

    VII. A viagem

    RO SEGUNDO

    VIII. A chegada

    IX. Varikino

    X. Na estrada real

    XI. O exército da floresta

    XII. A sorveira gelada

    XIII. Em frente da casa das estátuas

    XIV. De novo em Varikino

    XV. Conclusão

    XVI. Epílogo

    XVII. Poemas de Iuri Jivago

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    LIVRO PRIMEIRO

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    Primeira ParteO Expresso das cinco

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    Caminhavam, caminhavam e cantavam o «Glória eterna», e quando paravam o cântico, parecia qus pés, as patas dos cavalos, o sopro do vento continuavam a cantá-lo ao mesmo ritmo.Os transeuntes abriam caminho ao cortejo, contavam as coroas, persignavam-se. Os cuegravam-se no cortejo, perguntavam: «Quem vai a enterrar?» Respondiam-lhe: «Jivago.» «Ora vsse caso compreende-se.» «Mas não é ele. É ela.» – «Tanto faz. Que Deus a tenha. Funeral rico.»Corriam os últimos minutos, contados, irreversíveis.«A terra do Senhor e o cumprimento dela, o universo e tudo o que nele vive.» O sacerdote, coto de bênção lançou uma mão-cheia de terra sobre Maria Nikoláevna. Começara a cantar «Coíritos dos justos». Iniciou-se uma azáfama medonha. Fecharam a urna, pregaram-na, começa

    scê-la.O tamborilar de uma chuva de torrões que com quatro pás encheram apressadamente a cova. Sobsceu um montículo. Um rapazinho de dez anos subiu para ele.Só num estado de embrutecimento e de insensibilidade, que surgem habitualmente no final dos grerais, poderia parecer que o rapazinho queria dizer uma palavra sobre a sepultura da mãe.

    Ergueu a cabeça e daquela elevação lançou sobre os terrenos baldios outonais e pela cúpusteiro um olhar ausente. O seu rosto de nariz arrebitado deformou-se. Esticou o pescoço. Se um o levantasse a cabeça com aquele movimento, seria evidente que ia começar a uivar. Cobrindo o

    m as mãos, o rapazinho começou a soluçar. Uma nuvem que voava ao seu encontro começou a fuas mãos e o rosto com os látegos de um frio aguaceiro.

    Um homem vestido de preto com franzidos nas mangas estreitas e justas, aproximou-se da sepa o irmão da defunta e tio do rapazinho que chorava, o sacerdote Nikolai Nikoláevitch Vedeniápiandonara o clero a seu pedido.

    2

    Passaram a noite numa das celas do mosteiro, cedido ao tio como velho conhecido. Era na véspercessão da Virgem. No dia seguinte ele e o tio deviam partir para sul, para uma distante c

    ovincial da região do Volga, onde o padre Nikolai trabalhava numa editora que publicava um ogressista local. Os bilhetes do comboio estavam comprados, as bagagens estavam emalapilhadas na cela. A estação ficava perto, e o vento trazia os silvos lamentosos das locomotivnobras, mais ao longe.Ao anoitecer arrefeceu muito. As duas janelas ao nível do chão abriam para um canto da pequena

    scuidada, com arbustos de acácias amarelas, para as poças geladas da estrada e para aquele excemitério, onde naquele dia tinham enterrado Maria Nikoláevna. A horta estava deserta

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    cepção de alguns canteiros de couves engelhadas, azuladas pelo frio. Quando o vento sopravmos das acácias desfolhadas agitavam-se como possessos e estendiam-se no caminho.Durante a noite, Iura foi acordado por uma pancada na janela. A cela escura estava iluminada po

    sobrenatural, branca e ondulante. Iura, em camisa de dormir, correu à janela e encostou o rodro frio.Lá fora não havia nem estrada, nem cemitério, nem horta. No pátio desencadeara-se a tempestadmegava de neve. Poder-se-ia pensar que a tempestade tinha reparado em Iura e, consciente de comustadora, se deliciava com a impressão que nele causava. Assobiava, uivava, e procurava pormeios atrair a atenção de Iura. Dobra após dobra, em meadas intermináveis, caía do céu sobre apano branco, envolvendo-a nas pregas de um sudário. Só a tempestade existia no mundo, sem

    e competisse com ela.O primeiro impulso de Iura, ao descer do parapeito da janela, foi o desejo de se vestir e correr p, para fazer alguma coisa. Ora o assustava pensar que as couves do mosteiro iam ficar sepultaguém as conseguia desenterrar, ora que a mãe se afundava no chão, seria impotente para resiststaria cada vez para mais fundo e mais longe dele debaixo de terra.Tudo acabou uma vez mais em lágrimas. O tio acordou. Falou-lhe de Cristo e confortou-o, dcejou, aproximou-se da janela e ficou pensativo. Começaram a vestir-se. Clareava a manhã.

    3

    Enquanto a mãe fora viva, Iura não sabia que o pai os tinha abandonado havia muito, que viajaverentes cidades da Sibéria e do estrangeiro, entregue à pândega e à devassidão, e que há

    banjara e dissipara ao vento a sua fortuna de milhões. Sempre diziam a Iura que ele estav

    ersburgo, ou numa qualquer feira, principalmente na de Irbit.Depois a mãe, que andava sempre adoentada, descobriu que estava tuberculosa. Para se tratar, pviajar para o sul de França e o norte de Itália, aonde Iura a acompanhou por duas vezes. Assi

    ordem e no meio de constantes enigmas decorreu a infância de Iura, muitas vezes entregue a estre mudavam constantemente. Habituou-se àquelas mudanças, e numa situação de confusão contísência do pai não o surpreendia.Em pequenino conhecera ainda o tempo em que o seu apelido designava uma multiplicidade dasversas coisas.

    Havia uma fábrica Jivago, um banco Jivago, edifícios Jivago, um alfinete de gravata Jivago, ao de forma circular, espécie de babá de rum, com o nome de Jivago, e em tempos em Mo

    stava gritar ao cocheiro «para Jivago!», como se dissesse «para casa do diabo!», e ele levava-nnó aos confins do mundo. Rodeava-nos um parque tranquilo. Havia gralhas empoleiradas nos ndentes de um abeto, fazendo cair deles a geada. Soava o seu crocitar retumbante, como o estalidhos de uma árvore. Dos edifícios novos na clareira corriam pelo caminho os cães de raça. Lá a

    endiam-se as luzes. Caía a tarde. De repente tudo aquilo se dissipou. Ficaram pobres.

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    ha em comum com eles.Todos eles se agarravam a um ou outro dogma e se satisfaziam com palavras e aparências, mas okolai era um sacerdote que passara pelo tosltoísmo e pela revolução e seguira em frente. Procuransamento inspirado no essencial, que mostrasse claramente o caminho discernível no seu movime mudasse alguma coisa no mundo para melhor, que fosse perceptível até para uma criança e paorante, como o clarão do relâmpago ou o ribombar do trovão. Buscava algo de novo.Iura sentia-se bem com o tio, que era parecido com a sua mãe. Tal como ela, era um homem livreconceitos contra tudo o que não fosse habitual. Tinha como ela o sentido aristocrático da iguare tudo o que vive. Tal como ela compreendia tudo à primeira vista e sabia exprimir no pritante os pensamentos da forma como lhe surgiam na cabeça, enquanto estavam vivos e não perd

    ntido.Iura gostava que o tio o levasse a Duplianka. O lugar era muito bonito e o pitoresco do sítio tafazia lembrar a mãe, que amava a natureza e muitas vezes o levava consigo a passear. Além disadável voltar a encontrar-se com Nika Dúdorov, aluno de liceu que vivia em casa de Voskobóie provavelmente o desprezava, porque era dois anos mais velho do que ele e que, ao cumprimen

    puxava o braço para baixo e inclinava a cabeça de tal modo que os cabelos lhe caíam para aando-lhe metade da cara.

    5

    — O nervo vital do problema da miséria — lia Nikolai Nikoláevitch no manuscrito corrigido.— Acho que é melhor dizer «a essência» — dizia Ivan Ivánovitch e introduzia na prova a eoposta.

    Estavam a trabalhar na penumbra do terraço envidraçado. Viam-se por ali em desordem regadros instrumentos de jardinagem. Nas costas de uma cadeira quebrada fora abandonada umapermeável. A um canto havia um par de botas de borracha cobertas de lama seca e com os brados até ao chão.— Entretanto, a estatística de mortes e nascimentos mostra — ditava Nikolai Nikoláevitch.— É preciso acrescentar «do ano findo» — dizia Ivan Ivánovitch e anotava.No terraço havia uma ligeira corrente de ar. Para evitar que as folhas voassem, tinham-se coloca

    ma delas pedaços de granito.

    Quando terminaram, Nikolai Nikoláevitch quis regressar a casa imediatamente.— Aproxima-se uma tempestade. Temos de nos pôr a caminho.— Nem pense nisso. Não consinto. Agora vamos tomar chá.— Tenho de voltar à cidade antes da noite.— Não vale a pena. Não quero ouvir falar disso.Do pequeno jardim vinha o fumo de um samovar aceso, que abafava o cheiro do tabacoiotrópio. Tinham trazido para ali natas, frutos silvestres e bolos de requeijão. De repente cheormação de que Pável tinha ido tomar banho, levando consigo os cavalos para o rio. N

    koláevitch teve que se resignar.— Vamos até à ravina, sentamo-nos um pouco num banco enquanto preparam o chá — propô

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    novitch.Devido à sua amizade com o ricaço Kologrívov, Ivan Ivánovitch ocupava dois quartos na cator. Esta casinha, com o seu pequeno jardim situava-se na parte mais afastada do parque comha alameda semicircular, agora coberta de erva espessa, porque já só era usada para ir despejar materiais de construção na ravina, que servia como despejo de lixo sólido. Homem de

    ançadas e milionário, simpatizante da revolução, o próprio Kologrívov encontrava-se namento no estrangeiro com a mulher. Na propriedade viviam apenas as suas duas filhas, Nádia e

    m a educadora e um pequeno número de criados.O pequeno jardim do feitor estava separado por uma espessa sebe viva de viburno de todo o reque, com os seus lagos, as clareiras e a casa senhorial. Ivan Ivánovitch e Nikolai Nikolá

    ntornaram a sebe pelo exterior, e à medida que caminhavam, a espaços regulares levantavamndos de pardais que fervilhavam nos arbustos, enchendo-os de um ruído contínuo, como se adian Ivánovitch e Nikolai Nikokláevitch fosse correndo água ao longo de uma conduta.Passaram ao lado das estufas, da casa do jardineiro e das ruínas de uma construção de alvenação desconhecida. Falavam das novas forças que surgiam na ciência e na literatura.— Aparece gente com talento — dizia Nikolai Nikoláevitch. — Mas agora está na moda orgculos e uniões de toda a espécie. O gregarismo é sempre o refúgio da mediocridade, quer se trelidade a Soloviov1, a Kant ou a Marx. Só os solitários procuram a verdade e rompem com ueles que a não amam o bastante. Há alguma coisa no mundo que mereça fidelidade? Essas coisito poucas. Penso que se deve ser fiel à imortalidade, esse outro nome da vida, um pouco mais inve-se ser fiel à imortalidade, ser fiel a Cristo! Ah, você franze o cenho, infeliz. Uma vez macebeu nada.

    — Hum, sim — resmungou Ivan Ivánovitch, um louro magro e fino como uma enguia com uma badónica que lhe dava o aspecto de um americano do tempo de Lincoln (a todo o instante agarrava-

    nhado e levava a ponta aos lábios). — Eu calo-me, é claro. Como compreende, encaro essas coineira completamente diferente. A propósito, conte-me, como foi que o passaram ao estado laicito que lhe queria perguntar. Por certo apanhou um susto. Excomungaram-no? Hem?— Para quê mudar de assunto? No entanto, porque não… Excomungar? Não, agora não fazemuve alguns dissabores, restam algumas consequências. Por exemplo, durante muito tempo não

    esso à função pública. Não me permitem viver nas capitais. Mas isso são ninharias. Voltemunto da conversa. Dizia eu que se deve ser fiel a Cristo. Explico-lhe. Você não compreende qssa ser ateu, que se possa não saber se Deus existe ou para quê, e ao mesmo tempo saber que o h

    e não na natureza mas na história, e que a história tal como hoje a entendemos foi fundada por Ce o Evangelho é o seu fundamento. E o que é a história? São os trabalhos de séculos para a consecifração da morte e a sua futura superação. Para isso se descobre a infinitude matemática e as ctromagnéticas, para isso se compõem sinfonias. Não é possível avançar nessa direcção sem umusiasmo. Para essas descobertas é necessário equipamento espiritual. Os dados desse equipamão contidos no Evangelho. Ei-los. Em primeiro lugar, o amor ao próximo, essa forma supremergia vital que enche o coração do homem e que exige uma saída e uma aplicação. E depoistes constitutivas do homem contemporâneo, sem as quais ele é impensável, concretamente a id

    erdade do indivíduo e a ideia da vida como sacrifício. Note que tudo isto é ainda hoje de

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    raordinária novidade. Não havia história neste sentido entre os antigos. Havia a imundície sangus cruéis Calígulas picados das bexigas, que nem suspeitavam como todos os escravizadoredíocres. Havia a eternidade jactanciosa e mortiça dos monumentos de bronze e das colunrmore. Só depois de Cristo os séculos e as gerações respiraram livremente. Só depois dele comea nas gerações e o homem morre não na rua junto ao muro mas na história, no auge dos seus trab

    dicados à superação da morte, morre dedicando-se a esse tema. Uf! Estou como se diz encharcaor. E para ele é como se nada fosse!— Isso é metafísica, meu caro. Foi-me proibida pelos médicos, o meu estômago não a conerir.

    — Ora, valha-o Deus. Deixemos isso. Seu felizardo! Que vista que aqui tem, uma pessoa não sea contemplar. Mas ele vive aqui e não sente.Olhar para o rio era difícil. Reflectia a luz do sol como uma lâmina metálica. De repente cobriugas. Daquela margem para a outra partia um pesado vapor carregado de cavalos, carroças, homlheres.

    — Imagine, pouco passa ainda das cinco horas — disse Ivan Ivánovitch.— Está a ver, aí vai o expresso de Sizran. Passa aqui poucos minutos depois das cinco.Ao longe, pela planície, da direita para a esquerda, seguia um pequeno comboio amarelo etemente diminuído pela distância. De repente notaram que o comboio parava. Por cima da locomuiam-se novelos brancos de vapor. Pouco depois chegaram os seus silvos de alarme.

    — É estranho — disse Voskobóinikov. — Qualquer coisa não está bem. Não há motivo para mboio pare ali no meio do pântano. Deve ter acontecido alguma coisa. Vamos tomar o chá.

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    Nika não estava no jardim nem em casa. Iura pressentia que ele se tinha escondido, porque se orrecido com eles e porque Iura não era parceiro para ele. O tio e Ivan Ivánovitch foram trabalhaerraço, deixando Iura a vaguear à volta da casa sem objectivo.O sítio era de uma beleza surpreendente! A cada minuto ouvia-se o canto de três notas dos papa-m intervalos de espera para que o som húmido, como que extraído de um pífaro, imprempletamente as cercanias. O cheiro vertical das flores, perdido no ar, estava imóvel, pregadnteiros pelo calor. Como aquilo fazia recordar Antibes2 e Bordighera! Iura voltava-se constante

    a a direita e para a esquerda. Por cima das clareiras pairava, como alucinação sonora, o fantasz da mãe, que Iura ouvia nas inflexões melódicas dos pássaros e no zumbido das abelhas. Estremodo o momento lhe parecia ouvir a mãe a chamá-lo.Caminhou até à ravina e começou a descer do bosque limpo e pouco denso que cobria o cimcosta até ao amial que lhe revestia o fundo.Ali, no meio de ramos partidos e animais mortos, havia uma penumbra húmida, as flores eram rhastes segmentadas da erva cavalinha pareciam os ceptros e bastões da sagrada escritura ilustradSentia-se cada vez mais triste. Tinha vontade de chorar. Deixou-se cair de joelhos e desfez-

    rimas.— Anjo do Senhor, meu santo guardião — rezou Iura —, fortalece o meu espírito no camin

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    dade e diz à mãezinha que eu estou bem, para que ela não se inquiete. Se há vida depois da mnhor, leva a minha mãezinha ao paraíso, onde brilham como estrelas os rostos dos santos e dos jmãezinha era tão bondosa que não é possível que fosse pecadora, tem piedade dela, Senhor, xes sofrer. Mãezinha! — chamou, numa mágoa dilacerante, como se fosse uma santa do céu

    bito, incapaz de suportar, caiu no chão desmaiado.Não ficou muito tempo sem sentidos. Quando voltou a si ouviu o tio chamá-lo lá de cima. Responmeçou a subir. De repente lembrou-se de que não tinha rezado pelo seu pai desaparecido, comsinara Maria Nikoláevna. Mas sentia-se tão bem depois do desmaio que receava perder ansação de leveza. E pensou que não aconteceria nada de grave se rezasse pelo pai de outra vez.— Ele espera — pensou. Iura não tinha nenhuma recordação dele.

    7

    Micha Gordon, aluno do segundo ano do liceu, viajava num compartimento de segunda clasmboio com o pai, o advogado Gordon, de Oremburgo. Era um rapazinho de onze anos, de

    nsativo e grandes olhos negros. O pai tinha sido transferido para Moscovo, e o rapaz mudava-s liceu moscovita. A mãe e as irmãs já lá estavam havia muito, ocupadas a preparar o apartamento

    Era o terceiro dia de viagem para o rapaz e para o pai.Diante deles, entre nuvens de poeira quente, esbranquiçada pelo sol, como cal, desfilava a Rmpos e estepes, cidades e aldeias. Pelas estradas estendiam-se filas de carroças. Desviavsadamente da estrada para os caminhos transversais, e com a velocidade furiosa do comboio pe as carroças não avançavam e que os cavalos marcavam passo.Nas grandes estações os passageiros corriam como desvairados para o bufete, e o sol poente po

    s árvores do jardim da estação iluminava-lhes as pernas e brilhava sob as rodas das carruagens.Todos os movimentos daquele mundo tomados em separado eram calculados e sóbrios, mas tomsua geral complexidade eram inconscientemente embriagados pelo fluxo de vida que a todos un

    ssoas trabalhavam e esforçavam-se, movidas pelo mecanismo das suas preocupações pessoaises mecanismos não actuariam se não tivessem como principal regulador o sentimento depreocupação superior e fundamental. Essa despreocupação tinha a sua origem num sentimen

    erligação de todas as existências humanas, na certeza da comunicação de umas para outrantimento de felicidade resultante da noção de que tudo o que acontece se concretiza não apen

    ra, onde se enterram os mortos, mas também noutro lugar qualquer, a que uns chamam o reino de ros história, ou ainda outro nome qualquer.O rapazinho constituía uma amarga e pesada excepção. A sua mola real continuava a ser um sentipreocupação, e não tinha uma ideia de segurança que o aliviasse. Sabia ter herdado esse traácter e espreitava-lhe com inquieta desconfiança as manifestações. Essa consciência afligia-o. sença humilhava-o.Desde que se lembrava, nunca deixara de se surpreender como era possível que, tendo braços e pma língua e hábitos comuns, se pudesse não ser igual a todos os outros, e além disso agradar ap

    uns e não ser amado por ninguém. Não podia compreender uma situação em que, se uma pessr do que as outras, não pudesse fazer um esforço para agradar e ser melhor. O que significa ser j

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    ra que existe isso? Qual a recompensa ou a justificação para esse desafio desarmado, que nãda além de sofrimento?Quando se dirigia ao pai em busca de uma resposta, este dizia que as suas premissasparatadas e que não se podia raciocinar assim, mas não lhe propunha nada que pela sua profundtraísse e o fizesse vergar-se em silêncio diante do inevitável.E, com a excepção apenas do pai e da mãe, Micha começou a sentir um enorme desprezo ultos, incapazes de resolverem a embrulhada que haviam criado. Estava convencido de que qse crescido desenredaria tudo isso.Agora, por exemplo, ninguém ousaria dizer que o seu pai fizera mal em ir atrás do louco quandreu para a plataforma, ou que não devia ter mandado parar o comboio quando o homem, empurigóri Ossípovitch para o lado e abrindo a porta da carruagem, se atirou do comboio para o atebeça para baixo, como os banhistas se atiram da prancha para dentro de água ao mergulhar.Mas como quem puxara o sinal de alarme não fora um qualquer mas Grigóri Ossípovitch, parecpor causa dele que o comboio continuava inexplicavelmente parado durante tanto tempo.

    Ninguém sabia ao certo a razão da demora. Uns diziam que a paragem brusca tinha avariado os treumáticos, outros que o comboio estava parado numa subida íngreme que a locomotiva não consncer sem impulso. Circulava uma terceira opinião segundo a qual sendo o suicida uma personaportante, o seu advogado, que viajava com ele no comboio, exigiu que da estação mais prólogrívovka, chamassem algumas testemunhas para a elaboração de um auto. E para isso o ajudaquinista subira ao poste telegráfico. A dresina já vinha por certo a caminho.Na carruagem cheirava um pouco às retretes, cujo fedor procuravam disfarçar com água de colóeirava também a frangos assados, um cheiro já levemente passado, embrulhados em papel rduroso. Umas senhoras grisalhas de Petersburgo continuavam a empoar-se e a limpar as mãos cços, a conversar com vozes estridentes, todas elas com aspecto de ciganas ardentes pela combi

    fumo da locomotiva com a gordura da cosmética. Quando passavam diante da porta do compartis Gordon, cobrindo os ombros angulosos com as capinhas e aproveitando a estreiteza do como motivo de garridice, parecia a Micha que elas murmuravam, ou, visto que tinham os rados, deviam murmurar: «Ah, vejam por favor, que sensibilidade a nossa! Nós somos espmos cultas! Isto é de mais para nós!»O corpo do suicida jazia na erva junto do aterro. Um fio de sangue coagulado como uma marca egrecia na testa e nos olhos, parecendo marcar aquele rosto com uma cruz. O sangue não parece, saído do seu corpo, mas um apêndice alheio, um emplastro, um salpico de lama seca ou uma

    mida de bétula.O grupo de curiosos compadecidos em volto do corpo renovava-se continuamente. De pé ao ladoeu amigo e vizinho de compartimento, um advogado corpulento e altivo, animal de raça com

    misa alagada em suor, sufocava de calor e abanava-se com o chapéu mole. A todas as perpondia secamente entre dentes, encolhendo os ombros e sem sequer se voltar: «Era um alcoólicompreendem? Isto é a mais típica consequência do delirium tremens.»Uma mulher magra, de vestido de lã e com um lenço de malha na cabeça, aproximou-se do corptrês vezes. Era a velha Tiverzina, viúva e mãe de maquinistas, que viajava gratuitamente com

    ras em terceira classe, com bilhetes de favor. Tranquilas, com os lenços puxados para a testa, a

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    lheres seguiam-na em silêncio, como duas freiras atrás da abadessa. O grupo infundia respeito. afastavam à sua passagem.O marido de Tiverzina morrera queimado num desastre ferroviário. Ela parava a alguns passdáver, de modo a poder vê-lo por entre a multidão, e suspirando parecia fazer uma comparação. al tem o seu destino — parecia dizer. — Uns morrem pela vontade de Deus, e a este, para o qvia de dar: morrer de vida rica e de perda do juízo.»Todos os passageiros do comboio foram ver o corpo, e só voltavam para os compartimentoeio de serem roubados.Quando desciam para a via, se descontraíam, apanhavam flores e davam uma pequena volta, ham a impressão de que aquele lugar surgira apenas graças à paragem, e que o prado pantanoso cus cômoros, o largo rio e a bonita casa com uma igreja na alta margem oposta não existiriamndo se não tivesse acontecido o desastre.Até o sol, que também parecia um elemento daquele lugar, continuava a iluminar timidamente to aos carris, aproximando-se dela como que a medo, como uma vaca saída de uma manad

    stasse ali perto se aproximaria e ficaria a olhar as pessoas.Micha estava emocionado com a ocorrência, e nos primeiros momentos chorou de compaixãodo. Durante a longa viagem o suicida entrara várias vezes no compartimento deles e durante

    nversara com o seu pai. Dizia que encontrava alívio para a alma na decência moral deles e nmpreensão do mundo, e interrogava Grigóri Ossípovitch acerca de várias subtilezas jurídestões intrincadas a propósito de letras de câmbio e doações, falências e fraudes. «A séripreendia-se ele com as respostas de Gordon. — O senhor parece dispor de umas leis mais clemmeu advogado tem outros elementos. Encara essas coisas de um modo muito mais sombrio.»De cada vez que aquele homem nervoso se acalmava, o seu advogado e vizinho de compartiha da primeira classe buscá-lo e conduzia-o à carruagem-restaurante para beber champanhe. Er

    vogado corpulento, insolente, muito bem barbeado e ajanotado, que estava agora de pé ao ladáver, sem mostrar qualquer surpresa. Era impossível evitar a impressão de que o estado de agnstante do seu cliente era de algum modo vantajoso para ele.O pai de Micha dissera-lhe que aquele era um conhecido ricaço, bom homem mas extravagaio irresponsável. Sem se embaraçar com a presença do rapazinho, falava do seu filho, da idacha, e da defunta mulher, depois passava à sua segunda família, que também abandonara.

    mbrava-se de outra coisa qualquer, empalidecia de horror, e começava a divagar e a perder o ias.

    Manifestava por Micha um carinho inexplicável, provavelmente um reflexo e que talvez não lhestinado. Dava-lhe frequentemente presentes, para o que saía nas maiores estações e salões da prisse, onde havia quiosques de livros e se vendiam brinquedos e curiosidades regionais.Bebia continuamente e queixava-se de que não dormia havia três meses, e quando ficava sóbrio,e por pouco tempo, sofria tormentos inimagináveis para qualquer pessoa normal.Um momento antes do fim entrou a correr no compartimento deles, agarrou Grigóri Ossípovtico e queria dizer qualquer coisa, mas não conseguiu e, correndo para a plataforma, atirou-

    mboio.

    Micha observava a pequena colecção de minerais dos Urales numa caixinha de madeira — ú

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    sente do defunto. De repente, tudo à sua volta se moveu. Pela outra linha aproximava-se a drla desceram um inspector com penacho no boné, um médico e dois polícias. Ouviram-se ticas e frias. Fizeram perguntas, tomaram notas. O condutor e os polícias, tropeçando e escorreareia, trouxeram com dificuldade o corpo pelo aterro acima. Uma camponesa começou a grit

    ssageiros foram convidados a subir para as carruagens e ouviu-se um silvo. O comboio pôs-vimento.

    8

    «Outra vez este peganhento!» — pensou Nika com irritação e pôs-se a caminhar pelo quarto. As s convidados aproximavam-se. A retirada estava cortada. Havia duas camas no quarto, skobóinikov e a dele, Nika. Sem pensar muito, escondeu-se debaixo da segunda. Ouvia-os a procchamá-lo, no seu e nos outros quartos, surpreendidos com o seu desaparecimento. Depois entrar

    arto de dormir.— Que se há-de fazer — disse Vedeniápin —, vai dar uma volta, Iura, talvez mais tarde encon

    companheiro e possam brincar.Durante algum tempo falaram das agitações universitárias em Petersburgo e em Moscovo, retendorante vinte minutos naquele esconderijo absurdo e humilhante. Finalmente saíram para o terraçoiu a janela de mansinho, subiu ao parapeito e saiu para o parque.

    Não se sentia bem naquele dia e na noite anterior não dormira. Tinha mais de treze anos e estavaser criança. Passou toda a noite sem dormir e ao amanhecer saiu de casa. Nascia o sol, e o terreque, húmido de orvalho, estava coberto pela longa sombra das árvores. A sombra não era negracor de feltro molhado. A fragrância inebriante parecia vir precisamente daquela sombra húmi

    ão, com longas faixas de luz que pareciam os dedos de uma menina.De repente um fio prateado de mercúrio, como as gotas de orvalho na erva, correu a alguns pe. O fio corria, corria, sem que a terra o absorvesse. Inesperadamente, com um movimento brusaltou para o lado e desapareceu. Era uma cobra-de-vidro. Nika estremeceu.

    Era um rapazinho estranho. Quando estava excitado falava sozinho em voz alta. Imitava a mãe nopensão para os assuntos elevados e os paradoxos.«Que belo é o mundo!» — pensou. «Mas porque é que isso magoa sempre? Deus existe, sem das se existe, então sou eu! Posso mandar nele» — pensou, olhando um álamo tremedor de bai

    ma (as suas folhas húmidas e cintilantes pareciam recortadas de folha de flandres). — «Podenar-lhe» — e numa louca tensão das suas forças, não murmurou, mas com todo o seu ser, com a carne e todo o seu sangue, desejou e pensou:«Pára» — e logo a árvore ficou obedientemente imóvel. Nika riu-se de alegria e correu ao rio

    mar banho.O seu pai, o terrorista Dementi Dúdorov, cumpria uma pena de trabalhos forçados, depois de lo comutada por indulto imperial a pena de morte por enforcamento a que tinha sido condenado. Aa princesa georgiana da família dos Erístov, era uma beldade estouvada e ainda jovem, eterna

    aixonada por alguma coisa — as rebeliões, os rebeldes, as teorias extremistas, os artistas famosbres falhados.

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    Adorava Nika e do seu nome, Innokenti, fazia um montão de diminutivos incrivelmente tersurdos, como Inotchek ou Notchenka, e levara-o a Tíflis para o mostrar à sua família. O que ali mpressionou foi uma enorme árvore que havia no pátio da casa onde ficaram. Era um qualquer gpical desajeitado. Com as suas folhas que pareciam orelhas de elefante, a árvore abrigava o páu meridional abrasador. Nika não conseguia habituar-se à ideia de que aquela árvore era uma plo um animal.Para o rapaz era perigoso usar o terrível apelido do pai. Ivan Ivánovitch, com o assentimento delaktiónovna, preparava-se para dirigir ao imperador um pedido para usar o apelido da mãe.Enquanto estava deitado debaixo da cama, indignado com o curso dos acontecimentos no mnsara nisso, entre muitas outras coisas. Quem era Voskobóinikov para levar assim tão longe erferência? Pois havia de lhe ensinar!E aquela Nádia! Lá porque tinha quinze anos, queria isso dizer que tinha o direito de empinar o nar com ele como se fosse pequenino? Havia de lhe mostrar! «Odeio-a» — repetiu várias vezensigo. — «Hei-de matá-la! Levo-a a passear de barco e afogo-a.»A mamã também era fresca. É claro que lhe mentira a ele e a Voskobóinikov, quando partira. Nda para o Cáucaso, mas simplesmente mudara de comboio no entroncamento seguinte para nretinha-se tranquilamente a disparar contra a polícia em Petersburgo, na companhia dos estudantinha que ficar a apodrecer em vida naquele estúpido buraco. Mas havia de os enganar a

    ogava Nádia, abandonava o liceu e fugia para junto do pai, para levantar uma rebelião na SibériaA margem do lago estava coberta de nenúfares. O barco penetrou naquele matagal com um ruídos espaços entre a folhagem a água do lago surgia como o sumo da melancia surge na cala triangulO rapaz e a rapariga começaram a colher nenúfares. Ambos agarraram o mesmo caule, resiststico como borracha, que os fez aproximarem-se. As suas cabeças chocaram. O barco foi puxad

    margem como por um gancho. Os caules emaranhavam-se e encurtavam, as flores brancas com o

    cor viva, como gema de ovo com sangue, submergiam e emergiam a escorrer água.Nádia e Nika continuavam a colher flores, inclinando o barco cada vez mais e quase deitados lo na borda adornada.— Estou farto da escola — disse Nika. — É tempo de começar a viver, sair pelo mundo, gada.— Pois eu queria precisamente pedir-te que me explicasses as equações do segundo grau. Sca em álgebra que por pouco não tive que repetir o exame.A estas palavras, Nika sentiu uma espécie de alfinetadas. Pois claro, ela punha-o no seu

    ordando-lhe como era ainda pequeno. Equações do segundo grau! E eles que ainda nem teirado a álgebra.Sem mostrar como estava ressentido, perguntou-lhe com fingida indiferença, compreendensmo instante como isso era tolo:— Com quem te vais casar quando fores crescida?— Oh, isso ainda está tão longe! Provavelmente com ninguém. Por enquanto não pensei nisso.— Não penses, por favor, que isso me interessa muito.— Então porque é que perguntas?

    — Tu és parva.

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    Começaram a altercar. Nika lembrou-se da sua misoginia dessa manhã. Ameaçou Nádia de que ntinuasse a dizer disparates, a afogava.— Experimenta — disse Nádia.Ele agarrou-a pelo tronco. Começaram a lutar. Desequilibraram-se e caíram à água.Ambos sabiam nadar, mas os lírios de água enleavam-se-lhes nos braços e nas pernas, e aindham pé. Finalmente, patinhando no lodo, chegaram à margem. A água escorria-lhes dos sapatossos. Nika estava especialmente cansado.

    Se aquilo tivesse acontecido ainda recentemente, por exemplo na Primavera passada, numa sitmo aquela, sentados lado a lado e encharcados depois de semelhante aventura, teriam forçosatado, praguejado e desatado às gargalhadas.Mas agora estavam calados e mal respiravam, esmagados pelo absurdo do que acontecera. ava revoltada e ruminava em silêncio a sua indignação. Nika sentia todo o corpo dorido, comessem espancado com um varapau nos braços e nas pernas e lhe tivessem quebrado as costela

    m Nádia, em voz baixa, como uma pessoa adulta, disse: «Seu doido!» — e ele, também comulto, disse: «Desculpa.»Puseram-se a caminho de casa, deixando atrás de si um rasto molhado, como duas barricuadeiro. O seu caminho seguia por uma encosta poeirenta, pejada de cobras, perto do lugar ondeha visto de manhã uma cobra-de-vidro.Nika recordou a sua mágica exaltação durante a noite, o amanhecer e a sua omnipotência nessa mando pelo seu arbítrio comandara a natureza. O que lhe havia de ordenar agora? — pensou. sejava ele mais do que tudo? Imaginou que aquilo que mais desejava era voltar a cair no lagdia e muito daria naquele momento para saber se isso aconteceria alguma vez ou não.

    adimir Soloviov (1853-1900): filósofo religioso e poeta russo.ntibes: Cidade e estância balnear francesa. Bordighera: estância balnear de Itália.

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    Segunda ParteUma rapariga de outro meio

    1

    A guerra com o Japão ainda não tinha acabado quando inesperadamente outros acontecimeneram esquecer. As vagas da revolução percorriam a Rússia, cada uma mais alta e extraordináe a anterior.Por essa altura chegou a Moscovo, vinda dos Urales, a viúva de um engenheiro belga, ela mesmncesa russificada, Amália Karlovna Guichard, com dois filhos. Um rapaz, Rodion, e uma raprissa. Ao filho incorporou-o no corpo de cadetes, e a filha meteu-a no liceu feminino, por casuamesmo liceu e na mesma classe em que estava Nádia Kologrívova.

    Madame Guichard tinha herdado do marido algumas economias em títulos que dantes subiam ora começavam a descer. Para atalhar o definhamento dos seus meios e não ficar sentada de b

    zados, madame Guichard comprou aos herdeiros a casa de costura Levítskaia, um pequeno nes proximidades do arco do Triunfo, com o direito de conservar a antiga firma, a sua clientela e todistas e aprendizas.Madame Guichard tomou essa iniciativa a conselho do advogado Komarovski, amigo do seu mau próprio arrimo, homem de negócios de sangue frio, que conhecia a vida dos negócios na Rússiadedos das suas mãos. Trocara correspondência com ele acerca da sua mudança, ele esperaraação e conduzira-a através de toda a Moscovo para o hotel Montenegro, na Travessa dos Armde alugou um quarto para ela. Fora ele que a convencera a incorporar Ródia no corpo de cad

    ra no liceu, que recomendou, e enquanto gracejava distraidamente com o rapaz, lançava à raparigares tais que a faziam corar.

    2

    Viveram cerca de um mês no Montenegro, antes de se mudarem para o pequeno apartamento dvisões, perto do atelier.

    Era uma das zonas mais horríveis de Moscovo, cheia de cocheiros e espeluncas, ruas inregues à depravação, tugúrios de «criaturas perdidas».Os filhos não ficaram surpreendidos com a sujidade dos quartos, os percevejos, a indigêncbiliário. Depois da morte do pai, a mãe vivia no pavor constante da miséria. Ródia e

    ostumaram-se a ouvir dizer que estavam à beira da ruína. Compreendiam que não eram crianças ds sentiam profundamente diante dos ricos o mesmo acanhamento que os internados nos orfanatos.Um exemplo vivo desse pavor era-lhes dado pela mãe. Amália Karlovna era uma loura rechontrinta e cinco anos, atreita a ataques do coração que alternavam com acessos de estupidez

    rrivelmente cobarde e tinha um medo mortal dos homens. Precisamente por medo e por confusãnstantemente nos braços deles.

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    No Montenegro ocupavam o quarto número vinte e três, e no número vinte e quatro vivia, dendação do hotel, o violoncelista Tichkévitch, um bonacheirão suado e calvo que usava chinóando queria convencer alguém juntava as mãos como se rezasse e as levava ao peito, puxava a ca trás, rolando os olhos com ar inspirado, quando tocava num salão ou actuava em concramente estava em casa e passava dias inteiros no Teatro Bolchoi ou no Conservatório. Os vizvaram conhecimento. Favores recíprocos aproximaram-nos.Visto que a presença dos filhos constrangia por vezes Amália Karlovna durante as visitmarovski, Tichkévitch, ao sair, passou a deixar-lhe a chave do seu quarto para receber o seu amiEm breve madame Guichard se habituou de tal modo ao altruísmo dele que algumas vezes lhe foorta lavada em lágrimas, pedindo-lhe protecção contra o seu protector.

    3

    O prédio era de um só piso, perto da esquina com a rua Tverskaia.Sentia-se a proximidade do caminho-de-ferro de Brest. Ao lado começavam os terrenos da es

    m os apartamentos dos funcionários, o depósito de locomotivas e os armazéns.Ali morava Ólia Diómina, uma rapariga inteligente, sobrinha de um funcionário da estaçrcadorias de Moscovo.Era uma aprendiza muito dotada. Já a antiga patroa a distinguira e agora também a nova comeorecê-la. Ólia Diómina gostava muito de Lara.

    Tudo continuava como no tempo de Levitskaia. As máquinas de costura giravam freneticamenteção dos pés ou das mãos das costureiras fatigadas. Alguém cosia em silêncio, sentada em cima dsa, com um amplo movimento do braço com a agulha e a linha comprida. O chão estava cobe

    alhos. Era preciso falar em voz muito alta a fim de cobrir o ruído das máquinas de costura e osdulados de Kirill Modestovitch, um canário numa gaiola pendurada no arco da janela, cujo nomesegredo que a antiga dona levara consigo para a sepultura.

    Na sala de recepção, as clientes formavam um quadro vivo em volta de uma mesa com revistas. ntadas ou debruçadas sobre a mesa nas poses que viam nas ilustrações, observavam os mocutiam os feitios. A outra mesa, no lugar da directora, estava sentada a assistente de Amália Kar

    mestra de corte Faina Silantievna Fetissova, uma mulher ossuda com verrugas nas cavidades dto flácido. Segurava uma boquilha de osso com um cigarro entre os dentes amarelos, semicerran

    o amarelento e, expelindo uma torrente de fumo amarelo pela boca e pelo nariz, escrevia num camedidas, os números dos recibos, os endereços e os pedidos das clientes que se comprimiata.

    No atelier, Amália Karlovna era uma novata e inexperiente. Não se sentia como patroa em ntido. Mas o pessoal era honesto e ela podia confiar em Fetissova. No entanto, os temposnturbados. Amália Karlovna receava pensar no futuro. Sentia-se dominada pelo desespero, tudo apava das mãos.

    Komarovski visitava-os muitas vezes. Quando Viktor Ippólitovitch atravessava toda a ofici

    igir-se para os aposentos, assustando de passagem as elegantes meio despidas que ao vê-lo apescondiam atrás do biombo e dali respondiam jocosamente aos seus gracejos atrevidos, as costu

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    iam nas costas dele comentários reprovadores e trocistas: «Aí está», «o querido de Amáliafalo», «o flagelo das mulheres».Objecto de ódio ainda maior era o seu buldogue Jack , que ele por vezes levava pela trela e xava com arrancos tão impetuosos que Komarovski se desequilibrava e seguia atrás do cão, de bendidos, como um cego atrás do seu guia.Uma vez, na Primavera, Jack  agarrou a perna de Lara e rasgou-lhe a meia.— Hei-de matá-lo, aquele demónio — rouquejou infantilmente Ólia Diómina ao ouvido de Lara.— Sim, na verdade é um cão repugnante. Mas como é que fazes isso, tolinha?— Fala baixo, não grites, eu ensino-te. Vês aqueles ovos de Páscoa em pedra? Pois a vossa mã

    m na cómoda…— Pois sim, de mármore, de vidro.— Pois, ora aí está. Inclina-te, que eu digo-te ao ouvido. É preciso agarrar num, untá-lo com touvai pelo toucinho, engole-o, o cão tinhoso, enfarta-se, o demónio, e acabou-se! De patas para o

    dro!Lara ria-se e pensava com inveja: esta rapariguinha vive na pobreza, trabalha. Os filhos doenvolvem-se cedo. E vê lá, quanto ainda tem de ingénuo, de infantil. Os ovos, o Jack , onde vai b

    o? «Porque tenho eu este destino — pensava Lara — que tudo vejo e tudo me aflige?»

    4

    «Para ele a mamã é — como se diz… Ele é o… da mamã, aquilo… São palavras feias, não eti-las. Nesse caso porque é que ele olha para mim com aqueles olhos? Pois se eu sou filha dela

    Lara tinha pouco mais de dezasseis anos, mas era uma rapariga completamente formada. Dava

    zassete anos e até mais. Era de uma inteligência clara e de carácter fácil. Era muito bonita.Ela e Ródia compreendiam que na vida teriam que conquistar tudo com o seu próprio esforçntrário dos ociosos e dos abastados, eles não tinham tempo para se entregarem a curiosimaturas e às teorizações acerca de coisas que na prática ainda não lhes diziam respeito.

    pérfluo é sórdido. Lara era o ser mais puro do mundo.Irmão e irmã sabiam o preço de tudo e apreciavam aquilo que tinham conseguido. Para abrir camvida, era preciso ser tido em boa conta. Lara era estudiosa, não por um desejo abstrac

    nhecimento mas porque para ser isenta do pagamento das propinas era necessário ser boa aluna,

    o exigia-se que estudasse bem. Assim como estudava bem, Lara sem dificuldade lavava a dava na oficina e fazia recados à mãe. Movimentava-se em silêncio e com graça, e tudo nelaperceptível rapidez dos movimentos, a figura, a voz, os olhos cinzentos e os cabelos louros mbinava harmoniosamente.Era um domingo de meados de Junho. Nos dias feriados podia-se ficar na cama até mais tardeava deitada de costas, com os braços cruzados debaixo da cabeça.No atelier reinava o silêncio. A janela para a rua estava aberta. Lara ouvia ao longe uma rueche que passava do pavimento empedrado para os carris do trólei e o rude matraquear era subst

    o suave deslizar das rodas como sobre manteiga. «Preciso de dormir mais um pouco», pensmor da cidade acalmava, como uma canção de embalar.

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    Sentia agora a sua estatura e a sua posição na cama em dois pontos — a saliência do seu oquerdo e o dedo grande do pé direito. Era o ombro e o pé, e tudo o resto — mais ou menos ela prua alma ou a sua substância, harmoniosamente inserida nos seus contornos, ansiando pelo futuro.«Preciso de adormecer», pensou e evocou o lado ensolarado da rua dos Abegões àquela hoheiros dos estabelecimentos de carruagens com enormes viaturas para venda no solo muitorido, as lanternas de vidro facetado, os ursos empalhados, a vida dos ricos. E um pouco mais abaginava Lara, os exercícios dos dragões na parada do quartel de Znamenski, os solenes cavaltesias, andando em círculos, os saltos da corrida na sela cavalgando a passo, a trote, a galope

    cas escancaradas das amas-secas com as crianças, e das amas de leite, encostadas em fila no laa da vedação do quartel. E mais abaixo ainda, pensava Lara, a rua Petrovka. «Então, Lara, de onm esses pensamentos? Eu só lhe quero mostrar o meu apartamento. Tanto mais que é aqui perto.»Era o dia do onomástico de Olga, a filha pequena de uns amigos dele, da rua dos Abegões. Os aebravam a ocasião — danças, champanhe. Ele convidou a mamã, mas ela não podia, não estavsaúde. A mamã disse: «Leve a Lara. Está sempre a dizer-me para olhar pela Lara. (“Amália, olhra”) Pois olhe agora você por ela.» E ele olhou por ela, não haja dúvida! Ha, ha, ha!Que coisa louca é a valsa! Andamos à roda, à roda, sem pensar em nada. Enquanto a músicasa-se uma eternidade, como a vida nos romances. Mas assim que param de tocar, há uma sensaç

    sconforto, como se nos tivessem despejado água fria por cima ou nos tivessem surpreendidoém disso, essas liberdades admitidas a outros, por jactância, para mostrar que já se é crescida.Ela nunca podia ter imaginado que ele dançava tão bem. Que mãos inteligentes, com que seguranarrava a cintura! Mas nunca mais permitiria a ninguém que a beijasse daquele modo. Nunca ppor que houvesse tanto impudor concentrado nos lábios de alguém, quando tão longamente coladus.Acabar com essas tolices. De uma vez para sempre. Deixar de se fazer de ingénua, de ser tími

    xar os olhos. Isso acabaria mal. Estava mesmo ao lado de uma temível linha divisória. Mais umcai-se no abismo. Tinha de esquecer as danças, não pensar nisso. Nelas está todo o mal. Ngonha de recusar. Inventar que não sabia dançar ou que tinha partido uma perna.

    5

    No Outono houve agitações no centro ferroviário de Moscovo. O caminho-de-ferro Moscovo-K

    rou em greve. A ele devia juntar-se a linha Moscovo-Brest. A decisão da greve tinha sido apros o comité de greve não tinha chegado a acordo sobre a data. Toda a gente na linha sabia da gr

    peravam apenas o pretexto para que ela se desencadeasse espontaneamente.Era uma manhã fria e nublada do princípio de Outubro. Nesse dia deviam pagar os salários darante muito tempo não vieram quaisquer notícias do departamento de contabilidade. Depois chegritório um rapaz com uma lista, a folha de pagamentos e um monte de cadernetas de tra

    nfiscadas para aplicação de multas. Começou o pagamento. Pela interminável faixa de terrenoe separava a estação, as oficinas, o depósito de locomotivas e as linhas dos edifícios de made

    ministração estendeu-se a fila dos condutores, agulheiros, serralheiros e seus ajudantes, das mue lavavam as carruagens, à espera do pagamento.

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    Cheirava ao começo do Inverno citadino, pelas folhas de ácer espezinhadas, a neve fundida, a fus locomotivas e o pão quente de centeio, que se cozia na cave do bufete da estação e acabava ado do forno. Chegavam e partiam comboios. Ali os formavam e separavam, agitando bandeoladas e desenroladas. Soavam em todos os tons as cornetas dos guardas, os apitos dos atrela

    s vagões, os silvos das locomotivas. Colunas de fumo elevavam-se para o céu em espirais infcomotivas acesas, preparadas para sair, esperavam, queimando as frias nuvens de Inverno cvens escaldantes do vapor.O chefe de zona, Fuflíguin, engenheiro das vias de comunicação, e Pável Ferapóntovitch Anponsável das vias da estação, caminhavam para um lado e para o outro ao longo da via. Aediava os serviços de reparações com queixas sobre a qualidade do material que lhe mandavamovação das vias. O aço não era suficientemente resistente. Os carris não resistiam à prova de flefractura e segundo as previsões de Antípov haviam de rachar com o gelo. A administração mosindiferente às queixas de Pável Ferapóntovitch. Alguém andava a governar-se com aquilo.Fuflíguin vestia uma peliça cara, desabotoada, com as insígnias, e por baixo dela um fato cieviote novinho em folha. Caminhava com cuidado pelo aterro, olhando embevecido a linha das l

    casaco, a correcção dos vincos das calças e a forma elegante dos seus sapatos. As palavrtípov entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe pelo outro. Fuflíguin pensava nos seus pruntos, puxava o relógio a cada minuto e olhava-o, com pressa de sair dali.— É verdade, é verdade, meu caro — interrompeu ele com impaciência. — Mas isso é só nas ncipais ou em alguns pontos das linhas de tráfego directo, onde há grande movimento. Mas lemb

    que tens no teu sector? Vias secundárias, linhas mortas, bardana e urtigas e, quando muito, triaggões vazios e desvios para as pequenas locomotivas de manobra. E ele não está contente! Perdzo! Aqui não só estes, mas até carris de madeira serviam.Fuflíguin olhou para o relógio, fechou-lhe a tampa e pôs-se a sondar a distância, onde o caminh

    ro se aproximava da estrada. Na curva da estrada apareceu uma carruagem. Era a equipageflíguin. A mulher vinha ter com ele. O cocheiro deteve os cavalos quase junto à linha, sempre a e a sossegá-los numa débil voz feminina, como uma ama a falar a crianças agitadas — os c

    ustavam-se com o caminho-de-ferro. A um canto da carruagem, negligentemente reclinadmofadas, estava sentada uma linda mulher.— Bem, meu caro, fica para a próxima vez — disse o chefe de zona e agitou a mão —, não

    mpo para os teus carris. Há assuntos mais importantes.O casal partiu.

    6

    Três ou quatro horas depois, perto do crepúsculo, no campo, afastadas da estrada, surgiram combaixo do chão duas figuras até então invisíveis à superfície, e, olhando frequentemente parastaram-se depressa. Eram Antípov e Tivérzin.— Vamos depressa — disse Tivérzin. — Não me preocupo com os espiões que nos possam

    s aquela lengalenga vai acabar, eles saem do buraco e alcançam-nos. E eu não os posso verastar assim as coisas, não valia a pena começar. Para isto não vale a pena ter um comité e brinca

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    fogo, e esconder-se debaixo do chão! E tu também me saíste fresco, a apoiar essa confuskoláevski.— A minha Daria adoeceu com febre tifóide. Tive que levá-la ao hospital. Enquanto não fiz isse cabeça para mais nada.— Diz-se que pagam hoje os salários. Vou ao escritório. Se não fosse dia de pagamento, juro pore me marimbava para vocês todos e, sem esperar um minuto, acabava eu mesmo com esta indolên— De que maneira, se posso perguntar?— É coisa simples. Descer às caldeiras, apitar e acabou-se.Despediram-se e foi cada um para seu lado.Tivérzin seguiu pela linha em direcção à cidade. Pelo caminho encontrou homens que vinhaeber o salário no escritório. Eram muitos. Pelo olhar concluiu que na estação quase toda a genteebido.Começava a anoitecer. No espaço aberto ao lado do escritório juntavam-se operários sem trabminados pelas luzes do edifício. À entrada da praceta estava estacionada a carruagem de Fuflígulher dele estava ali sentada na mesma pose anterior, como se desde manhã não tivesse saí

    uipagem. Estava à espera do marido, que tinha ido ao escritório receber o dinheiro.De súbito começou a cair uma neve misturada com chuva. O cocheiro desceu da boleia e comeantar a capota de couro. Enquanto ele, apoiando um pé na traseira, desapertava as fivelaistiam, Fuglíguina admirava a massa aguada prateada que se fundia à luz dos candeeiros do escrnçava um olhar fixo e sonhador por cima da multidão dos trabalhadores como a sugerir que, emnecessidade, aquele olhar poderia ver através deles como através do nevoeiro ou do chuvisco.Tivérzin captou por acaso aquela expressão. Ficou chocado. Passou sem cumprimentá-la e decis tarde receber o ordenado, para não se encontrar no escritório com o marido dela. Seguiu po mais escuro das oficinas, onde se via o círculo negro da placa giratória e o depósi

    omotivas.— Tivérzin! Kiprian! — chamaram-no algumas vozes do escuro. Diante das oficinas havia um mgente. Lá dentro alguém gritava e ouvia-se o choro de uma criança. — Kiprian Savélievitch, acuazinho — disse uma mulher entre a multidão.Como era costume, o velho contramestre Piotr Khudoléiev espancava a sua vítima, o pequeno apsupka.Khudoléiev nem sempre fora um carrasco de aprendizes, um bêbedo e um brigão. Houvera tempe as filhas dos comerciantes e dos popes dos arredores industriais de Moscovo lançavam o

    ares ao jovem operário galhardo. Mas a mãe de Tivérzin, que nessa época frequentava a escocese e que ele cortejava, recusou-o e casou-se com o seu camarada, o maquinista Savéli Nik

    vérzin.Cinco anos depois de ela ter enviuvado, pela morte horrível de Savéli Nikititch (queimado emm desastre ferroviário muito falado na época), Piotr Petrovitch renovou as suas tentativas, e dearfa Gavrílovna o recusou. Desde então Khudoléiev começou a beber e a meter-se em brigas, ajuntas com o mundo inteiro, culpado, achava ele, dos seus infortúnios.Iussupka era filho do porteiro Guimazetdin, do prédio onde morava Tivérzin. Este tomara o rapaz

    a protecção nas oficinas, o que excitava ainda mais a aversão de Khudoléiev por ele.

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    — Como é que tu seguras na lima, asiático? — berrava Khudoléiev, arrastando Iussupka pelos caagredindo-o na nuca. — É assim que se desbasta o metal? Estou-te a perguntar, vais-me estrabalho, seu mula de olhos tortos?— Ai! Tiozinho, não volto a fazer, ai, não volto!— Já lhe disseram mil vezes: primeiro ajusta o mandril, depois fixa o bloco, mas não, tem quemo lhe apetece. Por pouco não partia o eixo, o filho da puta.— Eu não toquei no eixo, juro, não toquei.— Porque é que tiranizas o rapaz? — perguntou Tivérzin, depois de abrir caminho entre a multid— Não te metas onde não és chamado — cortou Khudoléiev.— Pergunto-te, porque é que tiranizas o rapaz?— E eu digo-te, vai andando com Deus, social-comandante. Matá-lo ainda era pouco, este miser pouco não me partia o eixo. Havia de me beijar as mãos por tê-lo deixado vivo, este diabo zalhe puxei as orelhas e os cabelos.— E achas que por isso se lhe deve arrancar a cabeça, tio Khudoléiev? Devias ter vergonha. Umerário, já com os cabelos brancos, e não ganhou juízo.— Segue o teu caminho, já te disse, segue o teu caminho enquanto estás inteiro. A dar-me lento contigo, alma de cão! Foste feito no meio dos carris, alma de peixe, nas barbas do teu pai. Ee também a conheço bem, a gata escanzelada, de saia arregaçada!Tudo o que aconteceu a seguir não durou mais de um minuto. Ambos agarraram na primeira coio à mão na bancada, onde havia ferramentas pesadas e peças de ferro, e ter-se-iam morto um aonesse momento as pessoas não acorressem a separá-los. Khudoléiev e Tivérzin estavam face a fabeças esticadas quase a tocarem-se, lívidos e com os olhos raiados de sangue. Estavam tão irre nem conseguiam proferir palavra. Tinham-nos firmemente seguros, com os braços atrás das cr momentos, concentrando forças, eles procuraram soltar-se, contorcendo os corpos e arras

    nsigo os camaradas que os agarravam. Os colchetes e botões das roupas voaram, os blusõesmisas deslizaram, deixando-lhes os ombros nus. O barulho desordenado à sua volta não cessava.— O formão! Tira-lhe o formão, senão ele racha-lhe a cabeça. Calma, calma, tio Piotr, arrancaraço! Vamos ficar assim a dançar com eles? É separá-los, fechá-los à chave e acabou-se.De repente, com um esforço sobre-humano, Tivérzin sacudiu o grupo que o agarrava e, soltanes, com o impulso chegou à porta. Foram atrás dele para o agarrar, mas percebendo qucionava voltar, deixaram-no ir. Foi rodeado pela humidade outonal, a noite, a escuridão.— Queremos o bem deles e espetam-nos uma faca nas costelas — resmungou, sem saber para o

    m para quê.Aquele mundo de infâmia e falsidade em que uma senhora bem alimentada tinha a impertinênar para os palermas dos trabalhadores, e um alcoólico vítima daquela ordem tinha prazer em inseus semelhantes, aquele mundo era-lhe agora mais odioso do que nunca. Caminhava apressado,a pressa dos seus passos pudesse aproximar o tempo em que tudo no mundo seria razoámonioso, como estava agora na sua cabeça febril. Sabia que as lutas dos últimos dias, as perturb

    s linhas, os discursos nas assembleias e a decisão de fazer greve, por enquanto ainda não aplicadulada, eram fases separadas desse longo caminho que ainda tinham de percorrer.

    Mas naquele momento a sua agitação era tal que desejava percorrer toda essa distância de um

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    m parar para tomar fôlego. Não fazia ideia para onde caminhava, a passos muito largos, mas as piam muito bem para onde o levavam.

    Durante muito tempo, Tivérzin nem suspeitava que, depois da sua saída com Antípov do subterha sido decidido na reunião iniciar a greve naquela mesma noite. Os membros do comité distribmesmo as tarefas, decidindo para onde iria cada um, quem e onde devia ser chamado. Quan

    cina de reparação de locomotivas se elevou o sinal, primeiro roufenho, mas pouco a pouco maisegular, como se surgisse do fundo da alma de Tivérzin, já uma multidão vinda do depósomotivas e da estação de mercadorias avançava em direcção à cidade, misturando-se com umaltidão que abandonou o trabalho ao silvo emitido por Tivérzin na casa das caldeiras.Durante muitos anos Tivérzin pensou que naquela noite só ele tinha feito parar o trabalhvimento na linha. Só mais tarde, quando o julgaram num conjunto de processos e a incitação à

    o figurava nos pontos de acusação, o desenganaram desse erro.As pessoas acorriam, a perguntar:— Que apitos são estes? Para onde chamam o pessoal? — E do escuro respondiam:— Tu não és surdo. Estás a ouvir o alarme. É um incêndio.— E onde é o fogo?— Se tocam o alarme é porque há um incêndio.Batiam portas, outras pessoas saíam. Ouviam-se outras vozes.— Olhem para este, um incêndio! Ignorante! Não dêem ouvidos a esse parvo. Isto é pencadearam a greve, percebeste? Acabou-se a mangação, pomos fim à escravidão. Vamos emaziada.

    Juntava-se cada vez mais gente. O caminho-de-ferro estava em greve.

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    Tivérzin chegou a casa três dias mais tarde, a tiritar de frio, a cair de sono e com a barba por fazte anterior caíra uma forte geada, invulgar para aquela época, e ele estava vestido com rouptono. Ao portão encontrou-se com o porteiro Guimazetdin.— Obrigado, senhor Tivérzin — começou ele. — Defendeste o Iussup, hei-de rezar a Deus por ti— O que é que te deu, Guimazetdin, porque me tratas por senhor? Deixa-te disso. Fala depressa,o que está.

    — Porquê gelo, vais-te aquecer, Savélievitch. Ontem trouxemos da estação de mercadorias paraezinha, Marfa Gavrílovna, um telheiro cheio de lenha, só de bétula, boa lenha, seca.— Obrigado, Guimazetdin. Se me queres dizer mais alguma coisa, fala depressa, por favor,ado, compreendes?— Queria dizer-te, não fiques em casa esta noite, Savélievitch, precisas de te esconder. A pdou a perguntar quem é que cá vem. Eu disse, não vem ninguém. Vem o ajudante, disse eu, vem locomotivas, do caminho-de-ferro. Mas gente estranha, ninguém!

    O prédio onde Tivérzin, solteiro, vivia com a mãe e com o irmão mais novo, casado, pertencia à

    Santíssima Trindade. O prédio era ocupado por uma parte do clero da paróquia, duas cooperativndedores de hortaliças e carnes, vendedores ambulantes na cidade, mas principalmente por peq

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    cionários do caminho-de-ferro Moscovo-Brest.Era um prédio de alvenaria com galerias de madeira, rodeadas de todos os lados por um pátio suvimentado. Para as galerias subia-se por umas escadas de madeira sujas e escorregadias,eirava a gatos e a couves fermentadas. Nos patamares havia latrinas e despensas fechadas a cadeaO irmão de Tivérzin, mobilizado para a guerra como soldado, tinha sido ferido perto de Vafaava em tratamento no hospital de Krasnoiarsk, para onde tinham viajado a mulher e as duas fi

    m de o trazerem para casa. Os descendentes dos ferroviários Tivérzin estavam sempre dispojar por toda a Rússia com um passe oficial. Presentemente, o apartamento estava vazio e silenle viviam apenas a mãe e o filho.O apartamento ficava no primeiro andar. Diante da porta de entrada havia um tonel de água qularmente abastecido por um aguadeiro. Quando Kiprian Savélievitch subia para o seu andar, e a tampa do tonel estava afastada para o lado e que o púcaro metálico estava colado à camada de se formara à superfície.— Só pode ter sido o Prov — pensou Tivérzin, sorrindo. — Bebe sem parar e não mata a sede.fogo nas entranhas.

    Prov Afanássievitch Sokolov, o sacristão, um homem de boa presença e ainda novo, era um pstado de Marfa Gavrílovna.Kiprian Savélievitch soltou o púcaro da camada de gelo no tonel e puxou o manípulo da camp

    ma nuvem de ar quente e agradável veio ao seu encontro.— Fez um belo lume, mãezinha. Aqui está quente e agradável.A mãe lançou-lhe os braços ao pescoço, abraçou-o e começou a chorar. Ele acariciou-lhe a cerou um pouco e depois afastou-a suavemente.

    — Quem não se atreve nada alcança, mãezinha — disse em voz baixa. — A minha linha está paroscovo até Varsóvia.

    — Bem sei. E é por isso que choro. Vais acabar mal. Devias ir-te embora, Kuprinka, para qute.

    — O seu amiguinho ia-me partindo a cabeça, o seu amável galanteador Piotr Petrov.Disse isto com intenção de a fazer rir, mas ela não percebeu o gracejo e respondeu, muito séria:— Fazes mal em troçar dele, Kuprinka. Devias era ter pena dele. É um infeliz, uma alma perdida— Prenderam o Pachka Antípov. O Pável Ferapóntovitch. Vieram de noite, fizeram uma iraram tudo. De manhã levaram-no. E Daria está com o tifo, no hospital. O pequeno Pavluch

    da na escola técnica, ficou sozinho em casa com uma tia surda. Além disso querem despejá-

    artamento. Acho que devemos trazer o rapazinho para nossa casa. O que veio o Prov cá fazer?— Como é que sabes?— Vejo que o tonel estava destapado com o púcaro em cima. Disse a mim mesmo que era de cerov sem fundo a encharcar-se em água.— Tu és muito esperto, Kuprinka. Tens razão. Foi o Prov, o Prov Afanássievitch. Veio pedirprestada, e eu dei-lhe. Ai que parva, qual lenha! Já me esquecia da novidade que ele trouxe. Sa

    ar assinou um manifesto para mudar tudo, não fazer mal a ninguém, dar a terra aos mujiques e nte vai ser igual aos nobres. A lei foi assinada, que é que tu pensas, só falta publicá-la. O s

    viou um novo pedido, para introduzir no serviço da igreja uma nova oração de graças, não sei b

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    ovuchka disse, mas eu esqueci-me.

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    Pacha Antípov, filho de Pável Ferapóntovitch que tinha sido preso, e de Daria Filimónovna, que spitalizada, foi viver com os Tivérzin. Era um rapazinho asseado, de feições regulares, catanho-claros penteados com risca ao meio. Penteava-os frequentemente com uma escova e endir

    nstantemente o blusão e o cinto com fivela do uniforme da escola. Pacha ria facilmente até às lágra muito observador. Arremedava com grande semelhança e comicidade tudo quanto via e ouvia.Pouco depois do manifesto de dezassete de Outubro, projectava-se uma grande manifestação dertas de Tver até às de Kaluga. Era uma iniciativa no género de muita gente a mandar, cada qual a a o seu lado. Algumas organizações revolucionárias que tinham aderido à iniciativa discordre si e uma após outra desistiram. Mas quando souberam que na manhã indicada as pessoas ssmo assim à rua, enviaram à pressa os seus representantes à manifestação.Apesar dos esforços e da oposição de Kiprian Savélievitch, Marfa Gavrílovna foi à manifestaçã

    legre e comunicativo Pacha.Era um dia seco e gelado do princípio de Novembro, com um céu tranquilo cor de chumbo e os flocos de neve que quase se podiam contar, que serpenteavam longamente, evasivos, anrem no chão e desaparecerem depois, numa poeira cinzenta e macia, nos buracos do pavimenltidão descia a rua, numa verdadeira confusão, rostos, rostos e mais rostos, casacos de Inrados de algodão, gorros de pele de carneiro, velhos, raparigas das escolas e crianças, ferroviárforme, operários do parque de carros eléctricos e da estação telefónica, de botas altas e blusõ

    bedal, alunos de liceu e estudantes universitários.

    Durante algum tempo cantaram a Varsoviana, Ó vítimas caídas, a  Marselhesa, mas de repemem que caminhava às arrecuas à frente do cortejo e agitando o braço com o gorro apertado naigia o canto, pôs o gorro na cabeça, parou de cantar e, voltando as costas ao cortejo, avançou e escutar de que falavam os outros organizadores que seguiam ao seu lado. O canto desafierrompeu-se. Agora ouvia-se o ranger dos passos da imensa multidão no pavimento gelado.Alguns simpatizantes informaram os organizadores da marcha de que mais adiante estavam os coespreita dos manifestantes. A informação sobre a emboscada viera por telefone de uma farxima.

    — E que tem isso? — diziam os organizadores. — Nesse caso, o mais importante é manter o so e não perder a cabeça. É preciso ocupar imediatamente o primeiro edifício público que encontcaminho, informar as pessoas do perigo que nos ameaça e dispersar um a um.Discutiu-se sobre qual o edifício para onde seria melhor ir. Uns propunham a Associaçã

    mpregados do Comércio, outros a Escola Técnica Superior, outros ainda a Escola de Correspondrangeiros.Enquanto estavam a discutir surgiu lá adiante o canto de um edifício público. Nele estava tatalado um estabelecimento de ensino, que servia de refúgio tão bem como qualquer outr

    ncionados.Quando os manifestantes chegaram junto deles, os dirigentes subiram para o patamar da escada

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    micírculo e por sinais detiveram a frente da manifestação. As portas de entrada abriram-se e ttejo, peliça após peliça e gorro atrás de gorro, começou a entrar para o vestíbulo da escola e a sadaria principal.

    — Para a aula magna, para a aula magna! — gritavam de trás algumas vozes, mas a muntinuava a avançar, espalhando-se pelos corredores e pelas salas de aula.Quando por fim se conseguiu reunir o povo, e todos se sentaram nas cadeiras, os dirigentes tenersas vezes informar a assembleia acerca da cilada que os esperava lá à frente, mas ninguutava. A paragem e a mudança para um recinto fechado foram entendidas como o convite pa

    mício improvisado, que na verdade logo começou.Depois da longa caminhada a cantar, as pessoas queriam sentar-se um pouco em silêncio, e que ros se esforçassem por eles e pusessem a garganta à prova. Por comparação com a priisfação do descanso, eram insignificantes as diferenças entre os oradores, solidários uns com os

    quase tudo. Por isso o maior êxito coube ao pior orador, que não cansou os ouvintes ccessidade de o seguirem. Cada palavra sua era acompanhada por uma gritaria de aprovação. Ninimportava que o seu discurso fosse abafado pelo barulho dos aplausos. Apressavam-se a concm ele por impaciência, gritavam «vergonha», elaboraram um telegrama de protesto e de rensados de ouvir a sua voz monótona, levantaram-se todos e, esquecendo por completo o orador,ás de gorro e fila atrás de fila, desceram em tumulto as escadas e saíram para a rua. O domeçou.Enquanto decorria o comício, na rua começara a nevar. O pavimento estava branco. A neve caíaz mais densa.Quando os dragões atacaram, num primeiro momento as últimas filas não deram por isso. De s da frente chegou um clamor que crescia, como quando a multidão grita «hurra». Os grit

    ocorro!» e «Assassinos!» e muitos outros fundiam-se em algo indistinguível. Quase nesse m

    tante, na onda desses sons, por uma passagem estreita aberta na multidão, impetuosamente e semssaram os focinhos e crinas dos cavalos e os cavaleiros a agitar os sabres.O meio pelotão passou a galope, voltou-se, reagrupou-se e atacou a cauda da manifestação. Comssacre.Alguns minutos depois a rua estava quase deserta. As pessoas fugiam para as ruelas laterais. Aa menos densa. A tarde era seca, como um desenho a carvão. E de repente o sol, que se punhas prédios, surgiu a uma esquina e parecia apontar com um dedo tudo o que na rua era vermelretes vermelhos dos dragões, o pano vermelho de uma bandeira caída, os rastos de sangue, o

    melhos e manchas que se estendiam na neve.Um homem com o crânio fendido arrastava-se, gemendo, pela margem do pavimento. Do lado deham em fila, a passo, alguns dragões a cavalo. Voltavam do extremo da rua, aonde os levseguição. Quase debaixo das patas dos cavalos, Marfa Gavrílovna agitava-se e gritava para t: «Pacha! Patúlia!»

    Ele caminhara sempre com ela, divertindo-a, imitando com muito talento o último orador, e de reapareceu na confusão quando os dragões atacaram.

    No aperto, a própria Marfa Gavrílovna tinha apanhado uma chicotada nas costas, e embora o

    olchoado de algodão do seu casaco lhe permitisse quase não sentir a pancada, ela praguej

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    eaçava com o punho os cavaleiros que se afastavam, indignada por terem ousado agredi-la ccote, a ela, uma velha, diante de toda a gente honrada.Marfa Gavrílovna lançava olhares ansiosos para os dois lados da rua. De repente avistou por sazinho no passeio oposto, numa reentrância entre uma mercearia e a saliência de uma casa partpedra, onde se juntava um grupo de basbaques acidentais.Para ali os tinha empurrado, com a garupa e os flancos do cavalo, um dragão que subira psseio. Divertido com o medo deles e cortando-lhes a saída, executava diante do nariz deles voltuetas de picadeiro, fazia recuar o cavalo devagar, como no circo, empinava-o. De repente viunte os seus camaradas que voltavam a passo, meteu esporas e em dois ou três saltos ocupou o seufila ao lado deles.As pessoas comprimidas no recanto dispersaram. Pacha, que antes receava erguer a voz, correu ó. Enquanto voltavam para casa, Marfa Gavrílovna continuava a resmungar:— Malditos assassinos, facínoras malvados! As pessoas alegram-se por o czar ter dado a liberds não suportam isso. Têm que estragar tudo, virar todas as palavras do avesso.Estava furiosa contra os dragões, contra todo o mundo à sua volta e naquele momento até contraóprio filho. Nos momentos de arrebatamento parecia-lhe que tudo o que estava a acontecer eras camaradas de Kuprinka, a quem ela chamava falhados e trapalhões.— Víboras pérfidas! O que é que eles querem, esses possessos? Não se percebe! Só ladrar eparates. E aquele falador, como é que tu o imitavas, Pachenka? Mostra, meu querido, mostra. Amorro de riso! É isso mesmo, sem tirar nem pôr. Tru-ru-ru-ru. Ah, tu, besouro zumbidor!Em casa cobriu o filho de recriminações, que já não tinha idade para que um qualquer palevalo lhe viesse dar vergastadas no traseiro.— Mas que é isso, mãezinha! Como se eu fosse um cavaleiro cossaco ou chefe de polícia.

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    Nikolai Nikoláevitch estava de pé à janela quando apareceram os fugitivos. Percebeu quenifestantes e durante algum tempo ficou a olhar ao longe, a ver se distinguia entre os que dispera ou alguém mais. Mas não viu ninguém conhecido, apenas por um momento lhe pareceu ver idamente aquele (esquecera-se do nome dele), o filho de Dúdorov, um temerário a quem ainentemente haviam extraído uma bala do ombro esquerdo e que de novo se andava a meter ond

    via.Nikolai Nikoláevitch chegara ali no Outono, vindo de Petersburgo. Não tinha casa em Moscovoeria ir para um hotel. Instalara-se em casa dos Sventitski, seus parentes afastados. Cederam-lbinete num canto do andar superior.Aquela ala de dois andares, demasiado grande para o casal Sventitski, que não tinha filhos, tinhgada havia muito pelos velhos Sventitski aos príncipes Dolgoruki. A propriedade dos Dolgoruks pátios, um jardim e uma grande quantidade de construções de diversos estilos espalsordenadamente, dava para três ruelas diferentes e mantinha o nome antigo de cidade dos Moagei

    Apesar das suas quatro janelas, o gabinete era bastante escuro. Estava atulhado de livros, petes e gravuras. Tinha uma varanda, que contornava em semicírculo aquele ângulo da casa. A

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    rta envidraçada para a varanda estava hermeticamente calafetada para o Inverno.Através das duas janelas e das vidraças da porta da varanda avistava-se a ruela em toda a sua exum caminho de trenós que passava ao longe, as casinhas desalinhadas e as vedações tortas. Do j

    ojectavam-se umas sombras violáceas. As árvores espreitavam para o quarto como se quisusar no soalho os seus ramos carregados de geada, que pareciam pingos lilases de estidificada.Nikolai Nikoláevitch olhava para a ruela e lembrava-se do Inverno anterior em Petersburgpon1, de Gorki, da visita de Witte, dos novos escritores em voga. Viera para ali fugido desse rebim de, no silêncio e na calma da antiga capital, escrever o livro que trazia em mente. Mas qual! fogo para cair no braseiro. Todos os dias conferências e relatórios, não lhe davam tempo para pa no Instituto Superior Feminino, ora na Sociedade Filosófico-religiosa, ora na Cruz Vermelha, ondo do Comité de Greve. Devia era ir para a Suíça, para os confins de um cantão florestal. A pridade sobre um lago, o céu e as montanhas, o ar retumbante, alerta, que a tudo faz eco.Nikolai Nikoláevitch afastou-se da janela. Apetecia-lhe ir visitar alguém ou simplesmente sair

    sem objectivo. Mas lembrou-se de que Vivolotchnov havia de vir procurá-lo para tratar dunto dos tolstoiistas2, e não podia ausentar-se. Começou a caminhar pelo quarto. Os seus pensamtaram-se para o sobrinho.

    Quando partira do lugarejo da região do Volga para se instalar em Petersburgo, levara Iuraoscovo, para junto dos parentes, Vedeniápin, Ostromislenski, Seliávin, Mikhaeli, Sventitski e Groprincípio instalaram Iura em casa do velho Ostromislenski, um trapalhão e tagarela a que

    miliares chamavam simplesmente Fedka. Fedka coabitava às ocultas com a sua educanda Mótiao considerava-se um detractor das bases da sociedade e um defensor de ideias. Não justificnfiança nele depositada e até se mostrara desonesto, gastando em seu proveito o dinheiro destinatento de Iura. Este foi transferido para a família dos professores Gromeko, onde se encontrava

    a.Em casa dos Gromeko, Iura estava rodeado da mais invejável e propícia das atmosferas. «Têm apécie de triunvirato» — pensava Nikolai Nikoláevitch: Iura, o seu colega de classe no liceu, Gorilha do dona da casa, Tónia Gromeko. Essa tripla aliança alimentava-se da leitura de O Sentior e da Sonata a Kreutzer e dedicava-se à pregação da castidade. A adolescência tinha de passa a exaltação da pureza. Mas eles exageram, vão muito além do razoável.

    São uns terríveis excêntricos e infantis. Ao domínio dos sentidos, que tanto os preocupa, chulgaridade» e usam essa expressão a propósito e a despropósito. Uma infeliz escolha de pa

    ulgaridade» é para eles a voz do instinto, a literatura pornográfica, a exploração da mulher, e o o mundo físico. Coram e empalidecem quando proferem essa palavra!Se eu vivesse em Moscovo — pensava Nikolai Nikoláevitch — não deixaria que isso fosse tão pudor é necessário, dentro de certos limites…— Ah, Nil Feoktistovitch! Faça favor de entrar — exclamou ele e foi ao encontro do visitante.

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    Entrou no quarto um homem gordo com uma camisa cinzenta, apertada por um cinto largo. Trazia

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    feltro, e as calças faziam balão nos joelhos. Parecia ser um homem bonacheirão que andava um nuvens. Sobre o nariz dançava-lhe furiosamente um par de lunetas preso por uma fita preta.

    Começando a tirar o abafo no vestíbulo, não levou a tarefa até ao fim. Não tirou o cachecol, cujaa arrastar pelo chão e continuou com o chapéu redondo de feltro na mão. Esses objectos embaraç

    os movimentos e impediram-no não só de apertar a mão a Nikolai Nikoláevitch, mas até de pra palavra de saudação, de cumprimentá-lo.

    — Um-m-m — resmungou, desnorteado, olhando para todos os cantos.— Coloque isso onde quiser — disse Nikolai Nikoláevitch, restituindo a Vivolotchnov o doavra e o autodomínio.Era um daqueles discípulos de Lev Nikoláevitch Tolstoi em cujas cabeças as ideias do génionca conhecera sossego, assentaram para gozar um longo repouso sem nuvens e degeneemediavelmente.Vivolotchnov vinha pedir a Nikolai Nikoláevitch que falasse numa qualquer escola a favoportados políticos.— Eu já lá fiz uma conferência.— A favor dos deportados?— Sim.— É preciso fazê-lo de novo.Nikolai Nikoláevitch resistiu um pouco mas acabou por concordar. O tema da visita estava esgokolai Nikoláevitch não reteve Nil Feoktistovitch. Este podia levantar-se e sair. Mas Vivolothava deselegante sair assim tão depressa. À despedida era preciso dizer alguma coisa anisenvolta. Iniciou-se uma conversa tensa e desagradável.— Tornou-se decadente? Cedeu ao misticismo?— Porque diz isso?

    — Um homem que se perde. Lembra-se da assembleia do zemstvo3?— É claro. Trabalhámos juntos nas eleições.— Defendemos as escolas rurais e os seminários de professores. Lembra-se?— Claro que me lembro. Foram uns combates acalorados. Você depois dedicou-se, ao que parúde pública e ao bem-estar social. Não é verdade?— Durante algum tempo.— Pois sim. E agora esses faunos e nenúfares, efebos e «seremos como o sol». Não acredito, nematem. Que um homem inteligente com sentido de humor e o seu conhecimento do povo… Deix

    r favor… Ou talvez eu esteja a ser intrometido… alguma coisa secreta?— Para quê lançar palavras ao acaso, sem pensar? O que é que estamos a discutir? Você não comeus pensamentos.— A Rússia precisa de escolas e de hospitais, e não de faunos nem de nenúfares.— Ninguém diz o contrário.— O mujique não tem que vestir e está inchado da fome…A conversa avançava assim, com estes saltos. Percebendo de antemão a inutilidade dessas tentakolai Nikoláevitch começou a explicar o que o aproximava de alguns dos escritores simbolis

    pois passou a falar de Tolstoi.

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    — Até certo ponto, concordo consigo. Mas Lev Nikoláevitch diz que quanto mais o homnsagra à beleza mais se afasta do bem.— E você pensa o contrário? O mundo será salvo pela beleza, pelos dramas de mistério, por Ro

    Dostoievski?— Espere, eu mesmo lhe digo o que penso. Penso que se a besta adormecida no homem pudesida pela ameaça, da prisão ou do castigo eterno, tanto faz, o emblema supremo da humanidadedomador de circo com um azorrague na mão, e não um pregador que se sacrificou. Mas a que

    cisamente que o homem ao longo dos séculos se ergueu acima do animal não pela vergasta masica: a força irresistível da verdade desarmada, o atractivo do seu exemplo. Até aqui consider

    e o mais importante nos Evangelhos eram as sentenças e regras morais contidas nos mandamentoa mim o mais importante é o que Cristo diz nas parábolas tiradas da vida, ao explicar a verdadequotidiano. Na base de tudo isso está a ideia de que a comunicação entre os mortais é imortal ea é simbólica, porque tem um sentido.— Não percebi nada. Você devia escrever um livro sobre isso.Quando Vivolotchnov saiu, Nikolai Nikoláevitch foi dominado por uma enorme irritação. Eioso consigo mesmo por ter revelado ao tolo do Vivolotchnov uma parte das ideias que lhe eramas, sem causar nele a mínima impressão. Como por vezes acontece, o enfado de Nikolai Nikoládou subitamente de objecto. Esqueceu completamente Vivolotchnov, como se ele nunca tstido. Lembrou-se de um outro incidente. Não mantinha um diário, mas uma ou duas vezes porevia num grosso caderno alguns pensamentos que mais o tocavam. Pegou no caderno e pôrever numa caligrafia larga e legível. Eis o que ele escreveu.

    «Estive todo o dia fora de mim por causa daquela estúpida Schlesinger. Chega aqui de manhãntada até à hora do almoço e durante duas horas atormenta-me com a leitura daquele galimatiato em verso do simbolista A. Para a sinfonia cosmogónica do compositor B., com os espírito

    netas, vozes dos quatro elementos e assim por diante. Suportei, suportei, mas depois disse qudia mais e pedi-lhe que me poupasse.«De repente percebi tudo. Percebi porque é que isto é sempre tão terrivelmente insuportável esmo no Fausto. É um interesse afectado, falso. O homem contemporâneo não tem essas exigêando o dominam os enigmas do universo, absorve-se no estudo da física e não nos hexâmetsíodo.«Mas a questão não está apenas no arcaísmo das formas, no seu anacronismo. A questão não ee esses espíritos do fogo e da água voltam a confundir e obscurecer aquilo que foi clara

    senredado pela ciência. A questão é que esse género contradiz todo o espírito da arte contemporâa essência, os seus motivos.«Essas cosmogonias eram naturais no mundo antigo, tão escassamente povoado pelo homem, qda não ofuscava a natureza. Vagueavam ainda por ele os mamutes e estavam ainda frescordações dos dinossauros e dos dragões. A natureza impunha-se tão claramente aos olhos do homtava-lhe ao pescoço de modo tão feroz e tão palpável, que talvez na verdade tudo estivesse eio de deuses. Eram as primeiras páginas da crónica da humanidade, apenas começavam.«Esse mundo antigo acabou em Roma com o sobrepovoamento. Roma era uma feira da ladra de d

    prestados e de povos conquistados, amontoado em dois pisos, na terra e no céu, uma imu

  • 8/18/2019 Boris Pasternak Doutor Jivago Trad. de António Pescada

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    olada em volta de si mesma por um triplo nó, como uma oclusão dos intestinos. Dácios, hérulosmatas, hiperbóreos, pesadas rodas sem raios, olhos cobertos de gordura, bestialidade, duplos quxes alimentados com as carnes de escravos instruídos, imperadores analfabetos. Havia mais pemundo do que nunca, que sofriam amontoadas nas passagens do Coliseu.«E eis que nesse amontoado insípido de mármore e de ouro chega aquele galileu leve e vestido dntuadamente humano, intencionalmente provinciano, e a partir desse momento acabaram-se os podeuses e começou o homem, o homem carpinteiro, o homem agricultor, o homem pastor comanho de ovelhas ao pôr-do-sol, um homem sem ponta de orgulho, um homem gratamente celebraas as canções de embalar e por todos os quadros das galerias do mundo.»

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    As ruas paralelas da Petrovka davam a impressão de um recanto de Petersburgo em Mosconformidade dos prédios de ambos os lados da rua, o bom gosto das entradas monumentais, a livra de leitura, o instituto de cartografia, a excelente tabacaria, o excelente restaurante, e diante de

    ndeeiros a gás com globos de vidro fosco sobre suportes maciços.No Inverno este lugar tornava-se sombrio e inacessível. Vivia ali gente séria e respeitável, que eofissões liberais e ganhava muito bem.Ali tinha Viktor Ippólitovitch Komarovski o seu luxuoso apartamento de solteiro, no primeiro m uma ampla escada com corrimãos de carvalho maciço. Emma Ernestovna, a sua governanes, a castelã do seu calmo retiro, cuidava atentamente de tudo sem se imiscuir, geria a casa, silenvisível, e ele pagava-lhe com cavalheiresco reconhecimento, natural em semelhante cavalheiro,portava a presença no apartamento de hóspedes e visitantes incompatíveis com o seu mundo tra

    velha donzela. Reinava ali uma paz de mosteiro — cortinas fechadas, nem um grão de poeira, is pequena mancha, como numa sala de operações.Aos domingos, antes do almoço, Viktor Ippólitovitch tinha o costume de passear com o seu bula Petrovka e pela Kuznetski, e a uma das esquinas saía para se lhes juntar Konstantin Illariónanidi, actor e jogador de cartas inveterado.

    Desciam juntos a polir calçadas, trocavam pequenas anedotas e comentários tão breves, insignificheios de tanto desprezo por tudo neste mundo que sem qualquer dano poderiam substituir avras por simples rosnidos, só para encherem os dois passeios da Kuznetski com as suas voz

    xo, sonoras e desc