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11Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 11-13, jan./jun. 2012

Eduardo Natalino dos SANTOS. Editorial

EDITORIAL

Depois da publicação de uma sequência de três dossiês – História e futebol; Ensino de história; A imagem medieval: história e teoria –, a Revista de História apresenta aos seus leitores uma edição totalmente composta por artigos e resenhas enviados por seus colaboradores em regime de fl uxo contínuo. Esse tipo de reunião de artigos e resenhas contempla uma das mais constantes e tradicionais característi-cas deste periódico: a pluralidade de temas e períodos históricos combinada com a diversidade de abordagens historiográfi cas, provenientes dos trabalhos recentes de pesquisadores das várias regiões do Brasil e do mundo.

O artigo que abre esta edição, Situações postas à História, de François Hartog, pesquisador e professor na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, apresenta um conjunto de refl exões – emoldurado pelo debate acerca da concepção de moder-no – sobre a prática historiográfi ca e sobre a História como conceito socialmente compartilhado, privilegiando, para isso, dois momentos históricos distintos: a época atual e as décadas centrais do século XX. No artigo seguinte, José Luiz Romero y la historia del siglo XXI, Carlos Barros, pesquisador e professor na Universidad de Santiago de Compostela, analisa a obra do historiador argentino mencionado no título, mostrando como ela, movimentando-se entre a Escola dos Annales e o marxismo e qualifi cada como História total, pode ser um caso paradigmático para pensarmos desafi os historiográfi cos atuais, marcados pelo recuo do entusiasmo com as grandes escolas historiográfi cas do século XX. No terceiro artigo desta edição, Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana, Francisco Murari Pires, professor e pesquisador da própria Universidade de São Paulo, analisa a eleição e (re)construção da fi gura de Tucídides como gênio e modelo supremo do fazer historiográfi co no momento de fundação da ciência histórica, que tem nos trabalhos de Leopoldo von Ranke e Barthold Georg Niebuhr obras fundacionais.

Depois desse primeiro grupo de artigos, que versam centralmente sobre a práxis historiográfi ca moderna, temos dois artigos da área de História Medieval. O primeiro deles, Considerações sobre o trabalho na Idade Média: intelectuais medievais e

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Eduardo Natalino dos SANTOS. Editorial

Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 11-13, jan./jun. 2012

historiografi a, de Terezinha Oliveira, professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Maringá, apresenta uma refl exão sobre os modos como a historiografi a tem tratado o tema do trabalho nas pesquisas sobre esse longo período histórico. Em seguida, encontra-se o texto de Leandro Duarte Rust, intitulado Bulas inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Nele, o pesquisador e professor da Universidade Federal do Mato Grosso apresenta a tradução inédita ao português de dois documentos medievais em latim, mencionados no título do artigo, considerados como textos basilares da Inquisição. As traduções, além de apresentarem o texto original, são acompanhadas de um texto introdutório de fôlego e de apontamentos de pesquisa relacionados aos documentos em questão.

Os dois artigos seguintes abordam distintos aspectos do mundo luso-brasileiro do fi nal do século XVIII e começo do século XIX por meio de suas relações com Angola. O primeiro deles, José Pinto de Azeredo e as enfermidades de Angola: saber médico e experiências coloniais nas últimas décadas do século XVIII, de Jean Luiz Neves Abreu, professor e pesquisador na Universidade Federal de Uberlândia, analisa a obra do médico luso-brasileiro referido no título, em conjunto com outras fontes da época, para entender a relação dessa obra com a medicina praticada e teorizada nas últimas décadas do século XVIII e avançar na compreensão dos saberes médicos desse período. O segundo artigo, As “geometrias” do tráfi co: o comércio metropolitano e o tráfi co de escravo em Angola (1796-1807), de Maximiliano M. Menz, professor e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo, avalia, a partir da análise de fontes primárias de caráter serial, a dimensão da participação dos mercadores lusos e brasileiros no tráfi co de escravos de Angola, relacionando os dados analisados com o debate historiográfi co sobre a importância relativa das rotas comerciais e negócios que ligavam Brasil, Angola e Portugal.

Na sequência, tratando ainda do período que vai do fi nal do século XVIII às primeiras décadas do século XIX, o artigo Autogoverno e economia moral dos ín-dios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845), de Vânia Maria Losada Moreira, professora e pesquisadora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, aborda a aplicação da Carta Régia de 12 de maio de 1798 nas vilas indígenas do Espírito Santo para refl etir sobre a existência do autogoverno dos índios como uma forma de garantir os interesses do Estado na região em questão, que também viabilizou relações assimétricas de reciprocidade entre os indígenas e o governo da província.

O artigo seguinte, Crescimento da população cativa em uma economia agro-exportadora: Juiz de Fora (Minas Gerais), século XIX, de Jonis Freire, doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas, insere-se no debate historiográ-fi co sobre as estratégias empregadas pelos proprietários para a aquisição de suas escravarias, utilizando-se, para isso, do estudo pormenorizado de grandes famílias proprietárias de cativos da Zona da Mata Mineira. Encerrando a seção de artigos

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13Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 11-13, jan./jun. 2012

Eduardo Natalino dos SANTOS. Editorial

desta edição, está O magonismo e a Revolução Mexicana. Um balanço político e ideológico, de Fabio Luis Barbosa dos Santos, doutor em História pela Universidade de São Paulo, que analisa a trajetória do grupo político liberal mexicano nomeado no título do artigo a partir do momento de eclosão da Revolução Mexicana, em 1910, buscando entender porque tal grupo teve importância secundária na direção desse processo revolucionário.

A seção de resenhas desta edição conta com a participação de Alberto Luiz Schneider, que realiza pós-doutorado no Departamento de História da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e analisa, em seu texto, o mais recente livro do historiador Ronaldo Vainfas – Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010) –, que trata da presença holandesa e da formação de uma comunidade de judeus sefaraditas em Pernambuco. Além dessa contribuição, temos também a de Luciano Aronne de Abreu, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que resenha a recente obra de Jorge Ferreira – João Goulart: uma biografi a (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011) –, na qual se analisam a vida e a atuação política, além da memória social construída sobre esse presidente brasileiro.

Esta edição encerra-se com uma homenagem a Eni de Mesquita Samara, pro-fessora do Departamento de História da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo que faleceu em 29 de agosto de 2011 e de-dicou cerca de quarenta anos à pesquisa e à docência na área de História do Brasil, especialmente ao campo da demografi a histórica, da história da família e da história de gênero. Para apresentar as contribuições de Eni de Mesquita Samara para esses campos de estudo, contamos com os textos de dois de seus colegas de pesquisa e de docência no referido departamento: Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura e Horacio Gutiérrez. Além disso, encerra esta homenagem, uma relação dos livros escritos ou organizados por Eni de Mesquista Samara.

Com esses breves comentários, que procuraram apenas nomear os temas centrais abordados em cada artigo e resenha, entregamos aos leitores a centésima sexagésima sexta edição da Revista de História, que, por sua anunciada diversidade de temas, abordagens e procedência dos autores, coloca-se mais uma vez a serviço do debate e do diálogo historiográfi cos, permitindo ao seu leitor compor suas próprias conexões e avaliações em relação aos saberes e opiniões expressos neste diverso conjunto de textos. Boa leitura!

Eduardo Natalino dos SantosEditor

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ARTIGOS

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17Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012

SITUAÇÕES POSTAS À HISTÓRIA*

François HartogEcole des Hautes Etudes en Sciences Sociales

ResumoO objetivo principal do artigo é refl etir sobre a história como conceito e como prática, além de interrogá-la como crença socialmente compartilhada. Nessa longa história de uma crença, com seus tempos de certeza e outros de dúvida, dois momentos serão pri-vilegiados neste artigo. Em primeiro lugar, os meados do século XX, quando, logo após o fi m da Segunda Guerra Mundial, a evidência da história será rapidamente reafi rmada. Em segundo lugar, o momento atual, encarado como aquele em que a evidência se esfuma e em que a crença se fi ssura. Tratar-se-á, portanto, de refl etir sobre a resistência de um dos conceitos centrais do mundo moderno e de algumas de suas transformações.

Palavras-chavehistoriografi a • história • moderno/modernidade • prática historiográfi ca

Contato:Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - CRHBureau 544190-198 – Avenue de France75.244 – Paris – Cedex 13E-mail: [email protected]

* Tradução de Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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18 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012

SITUATIONS PUT TO HISTORY*

François HartogEcole des Hautes Etudes en Sciences Sociales

SummaryThe principal objective of this article is to consider History as a concept and as a prac-tice, as well as to examine it as a socially-shared belief. Throughout the long history of this belief, amongst times of certainty and times of doubt, two moments will be elaborated in this article: fi rstly, the mid-twentieth century, when, immediately after the end of the Second World War, evidence for History will be quickly reasserted; and, secondly, present day, seen as the time in which evidence fades, and belief is divided. Therefore, it will deal with refl ecting on the resistance of one of the central concepts of the modern world, and with some of its key transformations.

Keywordshistoriography • history • modern/modernity • the practice of historiography

Contact:Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - CRHBureau 544190-198 – Avenue de France75.244 – Paris – Cedex 13E-mail: [email protected]

* Translated to Portuguese by Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, researcher at Departamento de História of the Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas of the Universidade de São Paulo.

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19Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012

François HARTOG. Situações Postas à História.

“Um historiador que permanecesse fi xado numa meditação sobre a situação posta à história não a faria avançar muito!” Essas palavras, com sua carga irônica, são de Charles Péguy, num texto de 1906, sobre “A situação posta à história e à sociologia nos tempos modernos”.1 Poeta, fi lósofo, publicista, sem dúvida ele é o autor que, entre o caso Dreyfus e sua morte no campo de batalha em 1914, mais escreveu sobre a história e contra a história; aquela, ao menos, que triunfava então na Sorbonne e que, em sua opinião, era encarnada por um trio infernal que reunia Ernest Lavisse, Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, os mestres da história positivista que ele perseguiu com a sua condenação pública e com os seus sarcasmos. Polemista temível, por certo, Péguy é também o pensador que não cessou de refl etir sobre o conceito moderno de história, essa história dos modernos na qual ele havia reconhecido “a mestra do seu mundo”. (Eu voltarei a isso). Então, propondo-lhes refl etir sobre a situação, ou melhor, as situações postas à história hoje; será que eu posso escapar das tiradas irônicas de Péguy? Tentemo-lo, apesar de tudo.

Eis, então, aquilo sobre o que eu gostaria de refl etir com vocês: não sobre a disciplina história e seus numerosos profi ssionais espalhados pelo mundo. Quem poderia, ainda que ao preço de um trabalho imenso, arriscar-se a descrever o seu estado atual e o inventário das questões, as quais forçosamente oscilariam entre o demasiado geral e o demasiado particular, sem saber onde passa a fronteira entre o global e o local, ou, mais difícil ainda, sofrendo para apreender com alguma precisão as interações ou as reverberações entre os dois registros? Assim, para escapar a um inventário interminável, o qual, de resto, não faria avançar grande coisa a história, eu me deterei sobre a história como conceito e como prática, e interrogarei a história como crença. Se o século XIX reivindicou vaidosamente ser o século da História, não foi porque viemos então, em toda parte, a crer nela? Ela tornou-se uma crença compartilhada. Que ela fosse celebrada, temida, ou que se sonhasse escapar dela, ela impunha-se então como uma potência que arrastava tudo consigo. Qual é a situação hoje?

Ainda acreditamos nela tanto assim? Sua evidência, não foi ela questionada, desde há uns trinta anos, em diversos lugares e de diferentes maneiras? Exata-mente quando a disciplina história avançava, às vezes mesmo com velocidade, quer se tratasse do número de vagas nas universidades, do número de publicações, ou dos novos territórios abertos ou explorados? Este é o ponto que eu gostaria

1 PÉGUY, Charles. Œuvres en prose Complètes. Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1988, II, p. 494.

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20 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012

François HARTOG. Situações Postas à História.

de levantar: não estamos passando de uma evidência segura e partilhada a uma evidência questionada e fragmentada? Nessa longa história de uma crença, com seus tempos de certeza e outros de dúvida, eu me deterei, aqui, sobre dois mo-mentos. Em primeiro lugar, os meados do século XX, quando, logo após o fi m da Segunda Guerra Mundial, a evidência da história será rapidamente reafi rmada. Mas, devo acrescentar imediatamente que existia uma base sólida que, mesmo tendo sido sacudida pela Primeira Guerra Mundial, ainda estava lá. Esses anos correspondem àqueles quando foi criada a Associação que vocês celebram, hoje, o cinquentenário. Em segundo lugar, o momento atual, encarado como aquele em que a evidência se esfuma e em que a crença se fi ssura. Tratar-se-á, em suma, da resistência de um dos conceitos centrais do mundo moderno e de algumas de suas transformações.

Fundada em 1961, com o nome de Associação dos Professores de História e do Ensino Superior, dez anos mais tarde, Associação Nacional, esse agrupamento marca uma etapa importante da profi ssionalização e da institucionalização da história no Brasil. Acompanhando o rápido crescimento da universidade e da pesquisa, a associação desempenhou e desempenha uma dupla função: inter-namente, a de ser uma ágora da disciplina, uma praça pública onde se trocam notícias e onde se debate; onde novas perspectivas recebem direito de cidadania e onde orientações se desenham. Externamente, ela opera, sobretudo, como uma comporta: propostas vindas de outros lugares podem ser apresentadas, difundidas, permitindo assim iniciar todo um trabalho de apropriação e de reformulação. Claro, a questão da história, sob a forma da história do Brasil, estava colocada desde há muito tempo. Pois tudo começou com o Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro, que reteve a atenção de muitos historiadores nos últimos vinte anos, em particular do saudoso Manoel Salgado, que presidiu a ANPUH entre 2007 e 2009. Em diversas ocasiões, ele confi ou-me a que ponto essa tarefa parecia-lhe importante e quanto ela era pesada. Nós devemos ser-lhe reconhecidos por tê-la assumido com a energia, a seriedade e também o humor que o caracterizava.

Em que ponto estava a história nos anos 1950-1960?Poderíamos falar de uma evidência reencontrada e reformulada. Três nomes,

os de dois historiadores e o de um antropólogo, que estiveram e trabalharam no Brasil antes da Guerra, me permitirão tornar preciso o meu argumento. Em 1950, Fernand Braudel, entrando no Collège de France, pronuncia sua conferência inaugural, que ele intitula Posições da História [Positions de l’histoire]. Para um mundo novo, ele escreve, é necessária uma nova história, no momento mesmo

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em que “desaparece” a primeira metade do século XX. Justamente aquela que desenha em O Mediterrâneo [La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II], seu livro manifesto, publicado no ano precedente, e que logo será sintetizada no conceito de longa duração. Para tornar apreensível a in-sufi ciência do acontecimento, que brilha mas pouco ilumina, ele utiliza a imagem dos vaga-lumes que o circundaram certa noite, perto de Salvador da Bahia.2 Mais importante, todavia: no Brasil, ele teve a experiência de contemplar o Atlântico a partir de suas margens ocidentais, assim como, jovem professor na Argélia, ele teve a experiência do Mediterrâneo a partir da margem sul. Ocorreu, ali, o início de um descentramento do olhar histórico ou, ao menos, de uma história de maior alcance e preocupada com as circulações.3

Braudel sente-se ainda mais seguro do seu diagnóstico e da sua proposta porque, no ano precedente, Lucien Febvre passou-lhe o bastão em um artigo programático intitulado Em direção a uma outra história [Vers une autre histoire] e, signifi cativamente, concluído no Rio de Janeiro. Febvre encontrava-se, de fato, uma vez mais no Brasil, onde ele acabava de pronunciar uma série de conferências, particularmente em São Paulo. Essa outra história, Febvre a via afi rmar-se em três direções: a do programa braudeliano, a de uma história das civilizações atenta às diversas historicidades e a de um engajamento do historiador no seu presente. Ele a havia lançado, desde 1946, no Manifesto dos Novos Anais [Manifeste des Annales nouvelles]. O título era claro – De frente para o vento [Face au Vent] –, assim como o subtítulo: “Economias, sociedades, civilizações” [“Economies, sociétés, civilisations”]. Pretendia assinalar que, doravante, havíamos entrado num mundo “em estado de instabilidade defi nitiva”, onde as ruínas eram imensas; mas onde havia “muito mais do que ruínas, e mais grave: essa prodigiosa aceleração da velocidade que, engavetando os continentes uns sobre os outros, abolindo os oceanos, suprimindo os desertos, colocava bruscamente em contato agrupamentos humanos portadores de cargas elétricas contrárias”. A urgência, sob o risco de nada mais compreendermos do mundo globalizado de amanhã, ou já de hoje, era de olhar, não para trás, para aquilo que acabara de acontecer, mas a diante de si, para frente. “É fi ndo o mundo de ontem. Para sempre terminado. Se nós temos uma chance de escapar, nós franceses, é compreendendo, mais rapidamente e melhor que os outros, essa verdade da evidência. Abandonando o navio. Ao mar! – eu digo – e nadem com determinação.” Explicar “o mundo ao mundo”, responder

2 BRAUDEL, Fernand. Ecrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969, p. 23.3 GEMELLI, Giulana. Fernand Braudel. Paris: Odile Jacob, 1995, p. 55-64.

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às questões que se coloca o homem de hoje, tal era então a tarefa do historiador que pretendia colocar-se de frente para o vento.4 Quanto à interrogação sobre a civilização, ou melhor, sobre as civilizações, ela vinha de mais longe: dos anos 1930. De fato, é na primeira semana de Síntese, organizada em 1929 por Henri Berr, que a noção de civilização (assim como a de evolução) havia sido escrutada. Encarregado do relatório introdutório, Febvre havia conduzido a investigação até o momento em que apareceram no uso comum, ao lado de civilização (cuja noção emerge no século XVIII, na França e na Inglaterra), as civilizações.5

Febvre e Braudel haviam se encontrado em 1937 no navio que os trazia do Brasil. Dois anos antes, Claude Lévi-Strauss, no navio que o trouxe para o Rio de Janeiro, tinha se despedido do Velho Mundo e da sua “civilização estreita” que era encarnada, para ele, por uma Atena, qualifi cada de “deusa anêmica”. Aquele que ainda não era mais que um aprendiz de etnólogo escolhia assim o Selvagem: “Huronianos, Iroqueses, Caribes, Tupis, eis-me aqui!”, proferia, com uma grande eloquência que lembrava o jovem Chateaubriand desembarcando em Baltimo-re, em 1791. Ele colocava o selvagem contra o moderno, ou, mais exatamente, segundo a prática do olhar distanciado que ele reivindicará, instaurava-se um duplo questionamento de um e de outro pelo etnólogo, tornando-se estrangeiro à sua própria sociedade, permanecendo, todavia, estrangeiro à sociedade que o acolhe. Da mesma maneira, foi a partir dessa experiência de campo que ele formulará, um pouco mais tarde, a distinção, logo famosa, entre “sociedades quentes” e “sociedades frias”. Se as primeiras foram modeladas por um tempo ativo e ator, do qual, num dado momento, elas fi zeram o princípio do seu de-senvolvimento, as segundas não, ou não ainda, ou apenas parcialmente; mas é certo que todas são igualmente sociedades na história e produtoras de história, porém com modos diferentes de ser no tempo.6 Finalmente, em Raça e história [Race et histoire], publicado em 1952, ele tematiza, por sua vez, a questão das civilizações. Recusando o evolucionismo, ele convida a encarar as civilizações menos como escalonadas no tempo do que distribuídas no espaço. Assim, é lógico tornar a “categoria universal” progresso apenas “um modo particular de existência próprio à nossa sociedade”.7

4 FEBVRE, Lucien. Face au Vent, Manifeste des Annales Nouvelles. Combats pour l’histoire. Paris: Armand Colin, 1992, p. 35, 40, 41.

5 FEBVRE, Lucien. Civilisation, le mot, l’idée. Paris, 1930, p. 45. Ele voltará a essa questão no prefácio que fez ao livro de Gilberto Freyre.

6 LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale deux. Paris: Plon, 1973.7 Idem, Ibidem, p. 40-41.

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Por esses três nomes passa uma parte signifi cativa das renovações e das re-afi rmações do pós-guerra: uma atenção às civilizações e às suas especifi cidades, que carrega consigo certo relativismo; a longa duração, que Braudel vai se aplicar a promover com vistas à constituição de um mercado comum das ciências sociais que ele deseja ver se instaurar; o Selvagem, cujo papel será mais ambíguo. No quadro do estruturalismo, ele pôde ser mobilizado ou compreendido como uma alternativa à história (o selvagem promovido a modelo para as ciências sociais, como uma maneira de expulsar a história para uma França, ela mesma expulsa da História)8 ou, em sentido inverso, ele pôde servir de inspiração para uma maneira de fazer a história que, logo, iria se chamar antropologia histórica. Para Lévi-Strauss, ele possuía também, não o esqueçamos, um valor ético: afi rmar, reclamando-se de Rousseau, a igual humanidade de todos e de cada um, justa-mente quando a Europa acaba de falhar inequivocamente a este respeito.

A esses nomes convém acrescentar um quarto, o de um sociólogo ligado não ao Brasil, mas à África, Georges Ballandier, que, em 1951, introduz o conceito marcante de “situação colonial”.9 A noção de situação, ele precisava, não está vinculada unicamente ao existencialismo; ela é empregada entre os sociólogos e foi preparada pela noção de “fenômeno social total” elaborada por [Marcel] Mauss. Do que se trata? De considerar a “colônia” como uma sociedade global que implica igualmente o colonizado e o colonizador. Pois a dominação conduz “ao relacionamento de civilizações radicalmente heterogêneas: uma civiliza-ção do maquinismo, com uma economia possante, com um ritmo rápido e de origem cristã impondo-se a civilizações sem maquinismo, com uma economia ‘atrasada’, com um ritmo lento e radicalmente ‘não cristãs’”. Donde, “o caráter fundamentalmente antagônico das relações existentes entre essas duas sociedades que se explica pelo papel de instrumento ao qual está condenada a sociedade colonizada” e “a necessidade, para manter a dominação, de recorrer não apenas à ‘força’, mas igualmente a um sistema de pseudojustifi cações e de comportamen-tos estereotipados”. Assim, qualquer estudo, incluído aquele do antropólogo em busca de sociedades primitivas ou atento aos problemas do contato, deve levar em consideração essa dupla realidade e apreciar a colônia como um sistema historicamente datado e que se modifi ca rapidamente.

8 FURET, François. Les intellectuels et le structuralisme, 1967.9 BALANDIER, Georges. La Situation coloniale: Approche théorique. Cahiers internationaux de

sociologie, 110, 2001/1, p. 9-29 (republication de l’article de 1951).

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François HARTOG. Situações Postas à História.

Menos de quinze anos mais tarde, o jogo colonial estava terminado, mas, no intervalo, o conceito proposto por Ballandier tinha fornecido às ciências sociais um meio de enriquecer seu questionário e de afi nar suas análises, especialmente quando elas apelavam demasiado rapidamente ou mecanicamente à teoria marxis-ta. A partir dos anos cinquenta, igualmente, outro conceito se impõe sobre todos os demais: o de modernização.10 Colonizadores e colonizados reivindicam-no, ainda mais porque existe um modelo americano e um modelo marxista. Por sua composição, com seu sufi xo em –zação, como antes dele civilização, ele indica uma marcha em direção a. Se o civilizado é aquele que se benefi ciou do processo de civilização, o moderno é aquele que atravessou o processo de modernização. Ao fi nal da modernização (a marcha devendo ser mais ou menos longa, conforme o ponto de onde se parte), deve-se atingir a modernidade. Inteiramente voltada para o futuro, modernização é um conceito fortemente temporalizado, que no-meia um movimento de conjunto das sociedades. Ele pode operar como conceito articulador entre a história já antiga de uns e a história ainda por vir de outros. A esse respeito, ele é, entre os anos cinquenta e setenta, uma expressão clara de uma evidência reafi rmada da História, uma possante expressão da crença da qual ela se encontra sempre, e mesmo mais do que nunca, investida, e uma forte injunção à ação com vistas à transformação da sociedade.

De onde vínhamos nós? O império de uma crença, o tempo de uma crençaNos anos 1950 a História certamente já era uma velha crença que Febvre ou

Braudel se empenham em reformular em termos que eles julgam ser adaptados à nova conjuntura. Não se trata, aqui, de retraçar nem a sua formação, nem a maneira pela qual ela se impôs, mas simplesmente de sublinhar, a partir de al-guns indícios tomados de domínios diferentes, a força da evidência. Péguy, já evocado aqui, é um bom observador daquilo que ele foi o primeiro a nomear como a “situação” posta à história. Nela, ele vê “a mestra do mundo moderno”. Ciência dos modernos, fi losofi a que se ignora, ela encontra sua Bíblia, conforme ele afi rma, n’O futuro da ciência [L’avenir de la science] de [Ernest] Renan e, sob sua modéstia aparente, o historiador ambiciona, no fundo, criar o mundo pela segunda vez, ao mesmo tempo em que pretende descrevê-lo.

Um quadro – um entre tantos outros – pintado em favor da glória de Napo-leão, demonstra bem o poder e o domínio da História. Executado por Alexandre

10 COOPER, Frederick. Colonialism in Question, Theory, Knowledge, History. Berkeley: University of California Press, 2005, p. 96, 116-119.

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Véron-Bellecourt, um pintor acadêmico, é sua falta de originalidade que o torna interessante para o meu argumento. Utilizando os procedimentos da alegoria, ele tem o seguinte título: “Clio mostra às nações os fatos memoráveis de seu reino” [“Clio montre aux nations les faits mémorables de son règne”] (ver fi gura).

Vemos Clio indicando com o dedo o que ela acaba de inscrever sobre uma grande estela, a saber, os grandes feitos de Napoleão, para um grupo de homens

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com roupas mais ou menos exóticas, ali reunidos como se fossem alunos diante de uma lousa. Napoleão está presente, sob a forma de seu busto, como imperador romano, com a inscrição “Veni, vidi, vici”, que o identifi ca como um novo Cé-sar. A cena, clássica, obedece ainda aos cânones da historia magistra vitae: um exemplo de grande homem, à maneira de Plutarco. Mas há algo mais: Napoleão não é apenas um herói à antiga; ele é também a encarnação da História, ele é essa força que avança, cujos efeitos se fazem sentir até o fi m do mundo. Aquele em que Hegel acreditou reconhecer o Espírito do mundo, quando atravessava Iena a cavalo. Nas suas Memórias de além-túmulo [Mémoires d’outre-tombe], Chateaubriand dizia dele que, durante dezesseis anos, havia sido o Destino, e um Destino que não descansava jamais, correndo incessantemente para remodelar a Europa.11 Nele tornaram-se manifestos dois traços da História moderna: seu domínio sobre a sorte dos países e dos homens e sua rapidez de execução, ele que não repousa jamais. Napoleão aparece bruscamente, quando o esperávamos alhures ou mais tarde. Esses anos correspondem a um sentimento, amplamente partilhado, de uma aceleração da História. Sob o efeito de um tempo tornado ator e processo, opera-se uma sincronização do mundo: até a China. O que Véron--Bellecourt traduz por meio da composição de seu quadro. Para se escrever, a História passa dos sincronismos (indispensáveis para estabelecer o antes e o depois) à sincronização, que estabelece, segundo uma escala de tempo, o antes que, o após que, o avanço ou o atraso, e circunscreve o anacrônico.

Rapidamente, a literatura percebeu toda a importância desse novo ator e engajou-se na tarefa de dizer esse novo mundo apreendido pela História. Come-çava a grande época do romance. De Balzac a Tolstói, ele vai girar em torno da História. Segundo Milan Kundera, a escrita de Balzac parte dessa experiência da aceleração da História: “antes, se ritmo lento tornava-a quase invisível, depois ela acelerou o passo e subitamente tudo está se transformando em torno dos ho-mens durante sua vida”.12 Segue-se uma dupla tarefa para o romancista: retraçar as trajetórias aceleradas ou rompidas de personagens que sobem muito alto ou caem muito baixo, que surgem subitamente na cena mundana para em seguida desaparecerem também rapidamente. Estar atento, em seguida, ao segundo plano, que é necessário apreender, porque tampouco ele vai durar. Entramos, confor-me nota Kundera, na “época das descrições”. Há, por exemplo, esses salões de

11 CHATEAUBRIAND. Mémoires d’outre-tombe. Édition de J.-Cl. Berchet, Paris: Classiques Garnier, 1989-1998, vol I, p. 1219.

12 KUNDERA, Milan. Œuvre. Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 2011, p. 852, 953.

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província, que são os sobreviventes gastos e mais ou menos remendados de um tempo passado. Interiores, roupagens, casas, bairros, maneiras de ser e de falar fi guram como sobrevivências que logo se eclipsarão. São anacronismos. Traba-lhado pela História, o mundo de Balzac é atravessado por tempos em desacordo que se friccionam, se batem, se enfrentam.

Recuando meio século até as guerras napoleônicas, Tolstói, em Guerra e paz, medita sobre a história “enquanto nova dimensão da existência humana”. Suas conclusões são conhecidas: certamente Napoleão não faz a História (estamos bem distantes do quadro de Véron-Bellecourt); mas Koutouzov tampouco a faz, ou antes, ele a faz apenas na medida em que ele não tenta fazê-la. “A História faz-se a si mesma, obedecendo às suas próprias leis, que, no entanto, permane-cem obscuras para o homem. (...) A História, isto é, a vida inconsciente, geral, gregária da humanidade”.13 Se suprimirmos Deus, resta apenas a História diante da qual podemos ter uma atitude positiva e otimista, pessimista e negativa ou francamente niilista (ela não tem nenhum sentido). Mas, em todos os casos, sua evidência se impõe e ela é uma crença partilhada. A guerra de 1914 reforçou ainda mais sua pregnância, “Esse massacre absurdo e gigantesco”, para retomar as palavras de Kundera, “inaugurou na Europa uma nova época onde a História, autoritária e ávida, surgiu diante de um homem e tomou conta dele. É desde fora que, doravante, o homem será determinado em primeiro lugar”.14

Uma evidência questionada, uma crença gastaEssa longa duração de Braudel, representada como “essas camadas de história

lenta”, “no limite do movente”, não traduzia, com outras palavras, uma visão análoga da história? Nascido em 1902 no leste da França, Braudel enfrentou, de fato, a Primeira Guerra Mundial e viveu a Segunda como prisioneiro num Ofl ag [campo para ofi ciais], na Alemanha. Por isso, “à orgulhosa palavra unilateral de [Heinrich von] Treitschke, ‘os homens fazem a história’”, ele preferia opor “a história faz também os homens e modela seu destino”.15 Mas, se ele era reservado quanto ao fazer a história, ele não tinha a menor dúvida nem sobre a história ela mesma, nem sobre o interesse que havia em fazer a história de suas estruturas mais profundas, lá onde se atinge o mais explicativo. O que mudou entre a “situação” dos anos 1950-1960 e a de hoje? Tudo ou quase: o mundo “novo” que Braudel

13 Idem, Ibidem, p. 909.14 Idem, Ibidem, p. 1173.15 BRAUDEL, Fernand, op. cit. p. 21.

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via não existe mais. Assim como já não o fi zera no início, não me engajarei agora na elaboração de um inventário, ainda que sumário, do que desapareceu ou se transformou. Ater-me-ei ao registro que escolhi, o da história como evidência e como crença, apoiando-me em algumas palavras e conceitos. E, desde já, eu pergunto: o que aconteceu com aqueles que haviam servido como vetores da rea-fi rmação de uma evidência da história, mas mensageira de outras temporalidades?

A longa duração não possui mais o valor de uma frente pioneira; ela perma-nece, no melhor dos casos, como uma escala de análise entre outras. Quanto ao acontecimento, que Braudel situava no polo oposto, ele voltou ao primeiro plano, a ponto de já não vermos nada além dele, sendo preciso consumi-lo incessantemen-te, produzi-lo (a descrição de acontecimentos faz parte, hoje, do organograma de qualquer empresa ou instituição), suportá-lo inclusive sob a forma da catástrofe. A civilização foi carregada pelo avanço da globalização e a modernização foi rudemente maltratada. Quanto ao Selvagem, na sua acepção lévi-straussiana, como objeto “bom para ser pensado”, ele foi totalmente depreciado. Ele pertence à idade de ouro do estruturalismo, às variações eurocêntricas sobre a alteridade, enfi m, a tudo que é recusado como culturalismo. Para os adeptos dessa corrente da antropologia, convém, inclusive, se desfazer do conceito de cultura e se con-centrar sobre a contemporaneidade da situação de interlocução existente entre o etnólogo e seus “informantes”.

Civilização era um conceito futurista (vai-se em direção a ela) e um conceito normativo (há graus de civilização). Elemento central do regime moderno de historicidade, ela invocava um tempo aberto sobre o futuro e progressivo. O mesmo acontecia com o conceito de modernização, que se limitava, se assim o quisermos, ao segmento mais recente do processo de civilização, e concedia maior importância à aceleração. Ela era a forma contemporânea da civilização. Era, então, a belle-époque dos planos e da futurologia. Segundo a etimologia latina da palavra, moderno signifi ca, de fato, recente e, portanto, de agora. Entre 1950 e 1970, modernização, conceito-articulador como eu disse, foi um imperativo, uma palavra de ordem, um projeto que todo mundo podia subscrever: no Leste como no Oeste, entre os ex-colonizados assim como entre os ex-colonizadores. Mas essa unanimidade, que na verdade recobria profundos mal-entendidos, se desa-gregou. Aqui, também não posso fazer mais do que ir ao essencial. Logo, falou-se menos de modernização e mais de modernidade.16 Uma é o caminho e o passo, a outra o resultado: eis aquilo a que conduziu a modernização. Ela é o quadro que

16 Cooper, Frederick, op.cit., p. 113-149.

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podemos desenhar ou, de maneira ainda mais crítica, ela é o avesso do quadro. O inventário da modernidade, realizado (desde o exterior ou desde a periferia) pelos antigos colonizados, desemboca num questionamento da modernização: dos seus pressupostos, dos seus não-ditos, das suas destruições e dos seus crimes. Ela vê, ela diz, ela organiza o mundo desde o centro e para o seu próprio benefício.

Se voltarmos bastante no tempo, a modernidade assim questionada podia desconstruir ao mesmo tempo os conceitos de modernização e mesmo de civili-zação. Para não renunciar completamente ao conceito de modernidade, alguns se dedicaram a multiplicá-la, identifi cando “modernidades múltiplas”; outros, mais radicais, arriscaram “modernidades alternativas”. Mas, se atingimos uma propo-sição do tipo “há múltiplas maneiras de ser moderno” ou, em última instância, “cada um com a sua modernidade”, segue-se que a noção de moderno perde toda e qualquer pertinência. De que é composto o “moderno” de uma modernidade alternativa? A modernidade foi igualmente questionada a partir do “centro”, quero dizer da Europa e, mais amplamente, do Ocidente. O que se nomeou pós-modernismo começou como uma crítica do moderno e uma atualização do que havia sido o verdadeiro rosto da modernidade e seus resultados perniciosos.

Entenda-se bem: os dois lados dessa crítica, distinguidos por simples como-didade, não são dissociáveis um do outro, mesmo que seus respectivos contextos de elaboração e seus campos de aplicação não sejam estritamente os mesmos. No que concerne à carga temporal dos conceitos e, mais amplamente, à relação com o tempo, passar de modernização a modernidade e a pós-moderno é, sem se perceber, renunciar ao tempo. Modernização, como civilização, são conceitos teleológicos, o fi m a ser atingido nomeia o processo: o futuro atua. Nada parecido ocorre com modernidade, que designa o estado de moderno, moderno sendo ele mesmo tomado absolutamente. Porque moderno não foi plenamente dinâmico e futurista a não ser enquanto ele teve um face a face com quem disputar: o antigo.17

Erodida já pela crítica da modernidade, a modernização foi, mais recen-temente, marginalizada pela globalização. A palavra designa um processo: o global avança, como uma maré, até recobrir tudo. Ela tem por objetivo um mundo globalizado. Mas, à diferença dos conceitos precedentes, ele não carrega consigo nenhuma carga temporal específi ca: ele é espacial e não temporal ou destemporalizado;18 mesmo se todos concordam que a globalização não se fará

17 HARTOG, François. Anciens, Modernes, Sauvages. Paris: Seuil, 2008.18 Se se trata de reconhecer como sendo do globo, pertencimento comum ou partilhado, a palavra

cosmopolita já o dizia, em grego é verdade, mas de maneira mais política.

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em um dia, ou mesmo que ela não se concluirá jamais completamente – mas, isso é outra questão. Ela visa sempre a ser mais englobante e a se aproximar o máximo possível do tempo real: ubiquidade e instantaneidade são suas palavras de ordem. Buscando liberar-se sempre mais dos constrangimentos do espaço e do tempo, ela se desdobra numa espécie de presente permanente. O passado não vigora e tampouco o futuro: importa apenas colocar-se em situação de ser sempre mais rápido, de ser o que chega primeiro, o que reage mais rapidamente. Nessa corrida pela velocidade, são os computadores que ganham, e são os mais recentes e os mais potentes que têm a última palavra.

Do ponto de vista da história, os críticos da modernidade e o fenômeno da globalização conduziram a questionamentos e a reformulações. Para estes últi-mos, com uma bibliografi a em rápida expansão, conta-se ao menos a connected history, a shared history e a global history.19 Quanto aos questionamentos (for-mulados no cruzamento entre “centro” e “periferia”), os subaltern, em seguida os post-colonial e os cultural studies lançaram o movimento e invocaram uma provincianização da Europa, da qual o livro de Dipesh Chakrabarty tornou-se o porta-estandarte.20 Visto de outros lugares, a Europa (mas o que é essa Europa reduzida a alguns traços essenciais?) perde a excepcionalidade da qual, desde ao menos o século XVIII, ela faz, no sentido próprio do termo, seu fi lão comercial. Sobre essas bases pode se iniciar a construção de histórias alternativas ou se exprimir, às vezes, recusas da história; recusada como invenção ocidental que os colonizadores trouxeram nas suas bagagens. Delas, existem numerosas formas, mais ou menos elaboradas, mas elas possuem como traço comum querer resta-belecer, reencontrar uma continuidade com as origens desaparecidas, apagadas e, no entanto, presentes. E, hoje, reencontradas e promovidas como patrimônio. Os fundamentalismos religiosos (em particular o islamismo radical) são antes a expressão da recusa da história que é também uma adaptação à globalização. Por fi m, vindo não de um historiador, mas de um antropólogo habituado a fazer amplas comparações, foi editado um livro que empurra a questão um grau mais adiante. Com O roubo da história [Le vol de l’histoire], Jack Goody pretende, de fato, demonstrar como a Europa impôs a narrativa do seu passado ao resto do mundo.21 O argumento se desenvolve sobre um duplo registro: o de uma ampla

19 HARTOG, François. De l’histoire universelle à l’histoire globale. Le Débat.20 CHAKRABARTY, Dipesh. Provincialiser l’Europe: la pensée post-coloniale et la différence

historique. Trad. fr. Paris: Amsterdam, 2009 (ed. original: 2000).21 GOODY, Jack. Le vol de l’histoire. Comment l’Europe a imposé le récit de son passé au reste

du monde. Trad. fr. Paris: Gallimard, 2010.

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comparação entre a Ásia e a Europa e o de uma crítica de autores que não são reputados por terem sido os mais caseiros: Braudel, [Joseph] Needham, [Norbert] Elias ou [Moses] Finley. Adentrando o ateliê do historiador, Goody constata que, confi scando o tempo, o espaço, monopolizando os conceitos históricos, a Europa “falsifi cou muito” nossa compreensão da Ásia.22

Desde a publicação de O roubo da história, surgem obras que colocam não tanto a questão da existência de uma história global (tida como conquistada), mas a de saber o que pode ser uma história global da história e como fazê-la. Isto é, uma refl exão de segundo grau sobre o global. Eu penso, em particular, em Georg Iggers e Q. Edward Wang, Uma história global da historiografi a moderna [A Global History of Modern Historiography] e, mais recentemente, em Daniel Woolf, Uma história global da história [A Global History of History].23 Todas essas investigações críticas, todas essas pesquisas com vistas a outras maneiras de escrever a história pressupõem certamente que há alguma coisa que é compar-tilhada e que nós podemos chamar “história”. Nesse sentido, deve-se começar por renunciar ao conceito moderno de história; esse, justamente, que se apresentava como a História e como referência universal para se defi nir quem estava ou não estava na história e para medir a que distância tal ou tal população longínqua se situava (ainda) da história verdadeira. Vem, em seguida, um segundo momento: dar à história um sentido mais amplo, falando de consciência histórica e de cultura histórica, e, mais ainda, lembrando que não há grupo humano que tenha se desinteressado de seu passado, ou mesmo baseando-se nesse fato da natureza segundo o qual é característico do ser humano lembrar-se e comunicar-se com seus semelhantes.24 Em suma, o conceito moderno de história, baixado do pe-destal sobre o qual ele tinha se alçado, entra na fi leira para não ser mais do que um momento de uma longuíssima história dos modos de relação com o passado e dos seus usos. Em resumo, tudo isso não é o fi m da história; no máximo, é o fi m da História (entendida como esse conceito moderno)! Assim, ainda cremos na história, que, afi nal, reencontraria uma forma de evidência, menos gloriosa e imperiosa, mas ordinária e partilhada.

Então está tudo resolvido? Pressentimos que não, pois seria uma conclusão apressada. Certamente, descentrar o olhar posto sobre a história é esclarecedor,

22 Idem, Ibidem, p. 23.23 IGGERS, Georg; WANG, Q. Edward; with contributions from MUKHERJEE, Supriya. A Global

History of Modern Historiography. Harlow: Pearson Education Limited, 2008; WOOLF, Daniel. A Global History of History. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

24 WOOLF, Daniel, op.cit., p. 1-2.

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mas isso não resolve tudo. Basta trocar o sentido da palavra, abrindo bastante seu conceito para se safar? Cada um com a sua história, em suma, com todas as misturas que se desejar. De todas as maneiras, o próprio conceito moderno de história não surgiu prontinho uma bela manhã, da cabeça de um professor alemão, lá para os lados de Göttingen, no fi nal do fi nal do século XVIII; ele era o resultado de uma elaboração lenta e complexa e era inseparável de um tempo ativo e ator, marcado pela aceleração e no qual o futuro vinha ocupar o primeiro lugar. O que havia de moderno na história moderna é que ela iluminava o passado a partir do futuro e desenvolvia uma série de conceitos temporalizados, tais como os de civilização, modernização e, o primeiro de todos, revolução. Enquanto que a história antiga, aquela que derivava daquilo que eu chamo o antigo regime de historicidade, iluminava o presente pelo passado. Ela se designava, todavia, pelo nome de história. Vindo dos antigos, o nome allait de soi. Quando a história dos modernos se instalou, evidentemente ela manteve o nome, fi ngindo, porém, ser a primeira a lhe dar seu pleno sentido.

No decorrer dos últimos trinta anos a mudança mais notável foi o recuo do futuro. Falou-se de crise do futuro, do seu fechamento, enquanto, simultanea-mente, o presente tendia a ocupar todo o espaço. Essa transformação de nossas relações com o tempo desenha uma confi guração inédita que eu propus nomear presentismo. Como se o presente, o do capitalismo fi nanceiro, da revolução da informação, da globalização, absorvesse nele as categorias (tornadas mais ou menos obsoletas) do passado e do futuro. Como se, tornando-se seu próprio horizonte, ele se transformasse em um presente perpétuo. Com ele, vieram ao primeiro plano de nossos espaços públicos palavras que são também pala-vras de ordem, práticas e que se traduzem em políticas: memória, patrimônio, comemoração etc. Elas correspondem a outras tantas maneiras de convocar o passado no presente, privilegiando uma relação imediata, apelando à empa-tia e à identifi cação. Basta visitar os memoriais e outros museus de história, inaugurados em grande número nesses últimos anos, para convencer-se disso. Na linguagem comum, memória tendeu a se tornar o termo mais englobante, mais evidente, em substituição ao de história. Esse presente presentista cerca--se igualmente de noções ou de conceitos destemporalizados, tais como o de modernidade, pós-moderno, mas também globalização, ao qual seria neces-sário juntar ao menos o de identidade: o mais invocado, o mais mobilizado.

Com tais deslocamentos, e mesmo esta reviravolta, evocados aqui de manei-ra esquemática, estamos nós diante de um fenômeno duradouro ou transitório? Ninguém o sabe, nesse momento em que começamos apenas a tomar sua medida.

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33Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012

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No mínimo, nós atravessamos uma situação de passagem: o conceito moderno de história (centrado no futuro) perdeu sua efi cácia para dar sentido a um mundo que, ou se absorve inteiramente apenas no presente, ou, cada vez mais nitidamente, não sabe como regrar suas relações com um futuro, percebido como uma ameaça e uma catástrofe iminente. Um futuro não mais aberto indefi nidamente, mas um futuro mais e mais constrangido, senão fechado, particularmente devido à irrever-sibilidade gerada por várias de nossas ações. Forjada na Europa, ligada à sua ex-pansão e à sua dominação, essa História moderna (a ponto de tornar-se antiga) não deixou de reger o mundo, sob formas diversas e por meio de múltiplas interações, oscilando entre sentido, falta de sentido e ciência da História. Não acreditamos mais em tal conceito, não verdadeiramente, mas continuamos a usá-lo; ele está aí, ainda nos é familiar e um pouco obsoleto, tornado incerto, mas sempre dispo-nível, ao menos enquanto outro não vier a substituí-lo. Os políticos não hesitam em mobilizá-lo, assim como a mídia; a literatura interroga-o, e os historiadores, trabalhando-o incessantemente, acreditam ainda em seus poderes cognitivos. Nós dispomos, além disso, da velha palavra história, que, vinda da Grécia, traduzida e retraduzida em diversas línguas ao longo dos séculos, retomou o serviço, por assim dizer, para, ao redor do mundo, designar as maneiras de dar lugar, ou um lugar ao passado. A história global da história entrega-se, nesse momento, a elaborar inventários comentados. Quanto à globalização, uma última palavra: conceito mais descritivo que analítico, destemporalizado, como eu notei, ele é igualmente uma maneira de dizer que se há história, ela se produz em toda parte e em lugar algum; que o Ocidente não tem mais, em todo caso, o seu monopólio, e que a velha Europa percebe cada dia mais que ela a vê passar sob suas janelas.

Recebido: 30/08/2011 – Aprovado: 09/03/2012

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71Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012

RANKE E NIEBUHR: A APOTEOSE TUCIDIDEANA

Francisco Murari PiresUniversidade de São Paulo

ResumoPor Niebuhr mais Ranke, Wihelm Roscher e Eduard Meyer, compondo o quarteto de historiadores do século XIX que Santo Mazarino qualifi cou de “os Alemães Tucididea-nos”, a fama de Tucídides, então “idealizado como historiador perfeito”, alcançou uma espécie de apoteose, estimando-se sua história como obra extraordinária, singularmente excelsa, inigualável. Por declarações de júbilo entusiasmado quer de Niebuhr quer de Ranke, revive e renova-se por inícios do século XIX a glorifi cação fulgurante de Tu-cídides. Então, os modernos, tendo por missão fundar a ciência da história, o elegeram por modelo supremo, projetando de sua fi gura uma espécie de apoteose. Para Ranke, Tucídides, assim como Homero para a epopeia e Platão para a fi losofi a, bem pode ser considerado o gênio da história, a qual, graças a ele, alcançou a perfeição.

Palavras-chaveTucídides • Leopold von Ranke • Barthold Georg Niebuhr • heroico • gênio • historiografi a

Contato:Universidade de São PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDepartamento de HistóriaAv. Prof. Lineu Prestes, 33805508-900 – Cidade Universitária – São Paulo – SPE-mail: [email protected]

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72 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012

RANKE AND NIEBUHR: THE TUCIDIDEAN APOTHEOSIS

Francisco Murari PiresUniversidade de São Paulo

AbstractThe modern representation of Thucydides crystallized in the nineteenth century in the works of the so-called “Thucydidean’s Germans”: Barthold Georg Niebuhr, Leopold von Ranke, Wilhelm Roscher, and Eduard Meyer. Thucydides’ reputation then underwent a kind of historiographical apotheosis, his history coming to be thought of as a unique and extraordinary work. Niebuhr was emphatic in his judgment: “the fi rst real and true historian, according to our notion, was Thucydides: as he is the most perfect historian among all that have ever written, so he is at the same time the fi rst: he is the Homer of historians”. As for the subject matter of his History, Niebuhr likewise proclaimed that “the Peloponnesian War (…) is the most immortal of all wars, because it is described by the greatest of all historians that ever lived”. In a similar vein, Ranke stated that “(…) Thucydides, who is the real originator of historical writing, still cannot be surpassed (…). No one can (…) have a pretension to be a greater historian than Thucydides”.

KeywordsThucydides • Leopold von Ranke • Barthold Georg Niebuhr • hero • genius • histo-riography

Contact:Universidade de São PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDepartamento de HistóriaAv. Prof. Lineu Prestes, 33805508-900 – Cidade Universitária – São Paulo – SPE-mail: [email protected]

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73Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012

Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.

1. Leopold von RankeConta-se que Ranke mantinha em seu estúdio um herma bifronte contrapon-

do os bustos de Heródoto e Tucídides.1 Espécie de Jano historiográfi co de valor emblemático2 porque a presença escultural antiga na convivência quotidiana do historiador moderno assinalasse a dualidade de princípios fundantes: método crítico mais história universal. Imagens, pois, de suas respectivas realizações modelares: Tucídides responde pelo método, e Heródoto pela história universal.

Num dos capítulos da História Universal3, Ranke sistematizou as razões dessa imagem de confi guração modelar dual, porque Heródoto e Tucídides refe-rissem os fundamentos “opostos”, mas complementares, de “toda ciência e arte da história”, uma vez que “as tarefas que Heródoto e Tucídides respectivamente realizaram são de natureza tão diversa que elas não podiam ser executadas por um só homem, requerendo dois autores de diferente caráter e diferentes dons”.

Já as circunstâncias históricas em que compuseram suas obras indicam trajetórias de destinos políticos inversos. Heródoto era um estrangeiro vivendo exilado em Atenas, ao passo que Tucídides também o era, mas de Atenas. Inte-gração políade feliz que, no caso do halicarnássio, dispunha pendores afetivos envolvendo a composição de sua história. Marginalização políade adversa que, no caso do ateniense, ensejou desvinculação das injunções pátrias, assim favore-cendo história que melhor viabilizasse imparcialidade. Então, primeira oposição: Enquanto Heródoto, “estrangeiro em Atenas, vinculara-se aos atenienses de todo coração e com calorosa admiração”, Tucídides, “não obstante ateniense, tinha bons motivos para observar os atos de seus concidadãos sem um patriotismo unilateral”.

Também as histórias que ambos vivenciaram dispuseram diversos horizontes de experiências catalisadoras de distintas obras. O tempo de Heródoto estava dominado pelo “portentoso antagonismo entre gregos e persas”, ao passo que o de Tucídides o era pelas “lutas dos próprios gregos, entre Atenas e Esparta”. O olhar historiográfi co do primeiro, “antes de tudo um viajante” por “intenso desejo de adquirir sempre maiores conhecimentos”, tem o foco histórico, embora

1 O informe consta dos registros do Diário do próprio Ranke (Tagebücher. Aus Werk un Nachlass I, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien, 1964, p. 416).

2 Assim já o diz Girolamo Imbruglia. Tucidide nella Storiografia moderna. A cura di MONTEPAO-NE, C.; IMBRUGLIA, G.; CATARZI, M.; SILVESTRE, M.L. Napoli: Morano Editore, 1994, p. 73.

3 As citações a seguir são derivadas da versão inglesa em Universal History. The Oldest Historical Group of Nations and the Greeks. Edited by PROTHERO, G.W. New York: Harper & Brothers, 1885, p. 305-317; confira-se igualmente a tradução italiana de NAPPI, A. reproduzida por Gi-rolamo Imbruglia em Tucidide nella Storiografia moderna. Napoli, 1994, p. 107-117.

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centrado em Atenas, de “atenção voltada para o mundo”. Já o olhar historiográfi co do segundo tem o foco histórico, apesar de situado fora de Atenas, de “atenção voltada para a pólis”.

O espírito historiográfi co de Heródoto abre a perspectiva da história univer-sal.4 A unidade de sua história refl ete o tempo em que vivera: “dominado pelas relações recíprocas entre o Oriente e o mundo grego”, constituindo “as bases sobre as quais se apoiava a situação mundial daquela época”. Esse, então, o fundamento virtuoso de sua excelência historiográfi ca: “apresentar os acontecimentos em suas conexões todas” constituiu seu grandioso desígnio, “a primeira verdadeira história que já foi escrita”. Pois, “a história não poderia crescer no exclusivo âmbito inter-no do solo nacional, já que as nações se tornam cônscias de sua própria existência somente quando entram em contato umas com as outras”. “Por tal concepção grandiosa”, afi rma Ranke, “a obra de Heródoto não foi mais igualada, e menos ainda sobrepujada”. Paradigma primoroso, pois, de ideia de história universal.

Uma restrição, todavia, delimita a insufi ciência da história herodoteana, aprisionando sua realização metodológica, de modo a que não pudesse “satisfa-zer aos requisitos de uma obra histórica perfeita”. O tempo histórico para o qual ela voltava o olhar comportava apenas recordações transmitidas por tradições orais, “informes de segunda mão, desconhecendo-se autoridades confi áveis”, e assim turvando a visão dos acontecimentos, inviabilizando a “fi rmeza” de sua percepção cristalina.

A obra de Tucídides abriu a saída para essa aporia cognitiva: suprimir a distância da temporalidade historiográfi ca ao voltar o olhar para o tempo pre-sente, de modo a que a visão dos acontecimentos comportasse disponibilidade cognitiva imediata, livre dos gravames de suas intermediações memorizadoras. A circunscrição temporalmente controlada do olhar pelo fato da presença histo-riante enseja acuidade, propicia-lhe exatidão. A fundação da obra historiográfi ca requer, então, a transcrição da visão imediata, presenciada, dos acontecimentos como garantia de seus informes e relatos.5

4 Para os nexos que a elaboração da ideia de história universal mantêm com a leitura e consequen-te apreciação de Heródoto por Ranke veja-se o estudo de Girolamo Imbruglia (obra citada, p. 92-96) bem como o de Ernst Schulin (L’idea di Oriente in Hegel e Ranke. A cura di Maurizio Martiniano, Liguori Editore, 1999, p. 215-226).

5 Veja-se ainda a argumentação desenvolvida em 1848 por Ranke (Aus Werk und Nachlass. Vor-lesungseinleitungen. v. IV, herausgegeben von Volker Dotterweich und Walther Peter Fuchs, München-Wien, R. Oldenbourg Verlag, 1975, p. 206) na Introdução da primeira parte de seu curso de História Universal tendo por objeto o Mundo Antigo, na qual contrapõe, por um lado, os méritos e virtudes maiores de Tucídides (precisão e rigor de narrativa factual), contra, de outro, suas

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Espírito de seu tempo, Tucídides associa mais outras virtudes metodológi-cas. A racionalidade da Hélade clássica humaniza-lhe o olhar historiográfi co, desvencilhando a percepção dos fatos de suas visões religiosas, que ainda trava-vam a história herodoteana impregnada de teleologias divinas de conformação trágica. Tucídides afasta a história da religião porque aprofunda a percepção da natureza humana: olhar penetrante que capta no desenrolar dos acontecimentos as vicissitudes das “razões que movem os atos dos homens”. Narrando os fatos históricos, Tucídides dispõe-nos um compêndio de ética humana arrolando teores tanto virtuosos quanto viciosos, antes apontando estes males do que aqueles bens. Olhar historiográfi co de enfoque ético também solidário de defi nição metodo-lógica, a qual afi rma o primado absoluto dos fatos assim como eles ocorreram, a marcar porque com ele a história na época clássica se distingue da tragédia, razão porque Tucídides difere de Eurípides.

A virtude da imparcialidade historiográfi ca tucidideana enraíza-se em “ta-lento inato” por dom de equidade, que o imuniza contra as contaminações dos engajamentos circunstanciais: história que “não laconiza, mesmo que assegura-da pela convivência com os lacedemônios”; e história, assim também se pode subentender, que tampouco malquista Atenas, malgrado a adversidade de seu infortúnio político lá passado. Não, Tucídides “faz justiça a ambos os lados”. Precisamente porque ele “ateve-se estritamente à verdade dos simples fatos” apenas aprofundando “a investigação de suas motivações humanas”, “conferiu à história do curto período contemplado aquele apreço de lucidez perceptiva e força de vivacidade descritiva que nós maximamente admiramos”.

Na síntese de apreciações sobre a História Universal tecida em seus anos fi nais de vida, Ranke exalta, pela fi guração de modelos que conjuga Heródoto com Tucídides, a plenitude de virtudes condensadoras de seu próprio, moderno, receituário de epistemologia historiográfi ca, assim reconhecida pela projetação na leitura daqueles historiadores antigos.

Conjugação de interesses historiográfi cos da “velhice” com os da “juventude” pelo estudo dos autores antigos, assim declarado pelo próprio Ranke quando se pôs a escrever sua História Universal aos 82 anos6, mais afi nidades historiográ-fi cas tucidideanas marcam os inícios da trajetória do historiador, anos entre 1815

limitações (elegância narrativa e universalidade do tema), relativamente a Heródoto, justo porque dispunha ele de acesso presencial aos acontecimentos historiados na guerra entre Atenas e Esparta, ao passo que Heródoto, por desconhecer a língua dos povos estrangeiros retratados em sua história, teve que recorrer a relatos de segunda mão, prejudicando a justeza a que sua investigação almejava.

6 Citado por Schulin (obra citada, p. 268).

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a 1824. Estudos de fi lologia clássica, associados a horizontes de preocupações teológicas, em meios de pietismo luterano7, envolvem os anos de sua formação, desde o ginásio em Pforta, mais a estada na Universidade de Leipzig8 ao período de atividade docente no ginásio de Frankfurt an der Oder, onde lecionava língua e literatura clássica. Pelo tempo dos estudos juvenis, ano de 1813, fi rmara toda sua admiração pelos dois historiadores antigos, Heródoto e Tucídides, que, apesar de contemporâneos dos sofi stas, não se deixaram contaminar pelas “infantilidades e disparates” da arte retórica.9 Pouco depois, 1817, mais ou menos contemporâneo ao ensaio sobre Lutero, defendeu tese de láurea acadêmica10, a qual versava sobre a história de Tucídides, infelizmente perdida. Pelas rememorações ativadas nos anos 1860, porque lembrava-se de seus tempos juvenis, Ranke reconhecia que Tucídides fora “o primeiro grande historiador” que “profundamente o impres-sionara”, então “diligentemente empenhando-se em sua leitura”.11

Ecos de diálogos tucidideanos ressoam pelas refl exões com que Ranke compõe, em 1824, o Prefácio de sua primeira obra, Geschichte der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514, assim reconhecíveis lendo-se em

7 LAUE, Theodore H. von. Leopold Ranke. The Formative Years. Princeton: Princeton University Press, 1950, p. 11-12; WINES. Leopold von Ranke. The Secret of World History. New York, 1981, p. 3; HINRICHS, Carl. Ranke e la Teologia della Storia dell’età di Goethe. A cura di Rosario Diana, Napoli: Liguori Editore, 1999, p. 112.

8 O apego com que Ranke estimava, nesses anos iniciais de sua formação, a singularidade origi-nal que marcava a identidade da cultura grega clássica porque fosse, pois, ocioso reconstituir a história de eventuais influências de nexos orientais nos tempos primordiais de sua constituição, é registrado em apontamento de seu diário de 1816 (Aus Werk und Nachlass I. Tagebücher, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien, R. Oldenbourg Verlag, 1964, p. 92); confira-se: BELLA, Santi di. Leopold von Ranke. Glia anni della formazione. Rubbetino Editore, 2005, p. 67. O horizonte das leituras e interesses do jovem Ranke e sua influência na conformação de seu pensamento historiográfico é especialmente analisado por Fulvio Tessitore (RANKE. Il Lutherfragment e la Universalgeschichte. In: Lutero e l’idea di storia universale. A cura di Francesco Donadio e Fulvio Tessitore, Napoli: Guida editori, 1986, p. 180).

9 Tagebücher, p. 85.10 Confiram-se: IMBRUGLIA, op. cit., p. 81; DESIDERI, P. Scrivere gli eventi storici, in Noi e i

Greci. Torino: editado por S. Settis, 1996, p. 1003; FUCHS, Peter. Ranke, Aus Werk und Nachlass III. Frühe Schriften, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien: R. Oldenbourg Verlag, 1973, p. 33-34 e 330; e especialmente BELLA, Santi di (op. cit., p. 64-73) que analisa mais detidamente os nexos porque a concepção de história de Ranke, tendo por ponto de partida as diretrizes de filologia histórica firmadas por Gottfried Hermann, dela diverge cientificando suas insuficiências enquanto fundamento metodológico para a escrita da história.

11 DESIDERI, op. cit., p. 1003. Confiram-se ainda os apontamentos dados por Francesco Donadio (RANKE, Leopold von. Lutero e l’idea di Storia Universale. A cura di Francesco Donadio e Fulvio Tessitore, Napoli: Guida editori, 1986, p. 12) referindo-se a recordações do ano de 1863 em que Ranke identificava “os elementos fundamentais” da fermentação de sua concepção de história, associando Tucídides, Niebuhr, Lutero e Fichte, mais os de BELLA, Santi di. op. cit., p. 56.

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paralelo12 os teores do Prólogo da Guerra dos Peloponésios e Atenienses. Con-trapontos de pensamentos respeitantes à escrita da história, quer por similitudes de princípios, quer por diferenças de categorias conceituais, dadas as distintas historicidades, pontuam os textos dos dois historiadores, antigo e moderno.

A refl exão de Ranke principia fazendo divergir as proposições de sua história das recomendações ditadas tradicionalmente pelo tópos da historia magistra vitae: “À história tem sido atribuído o ofício de julgar o passado e instruir o presente em benefício dos tempos futuros. A um tal elevado ofício a presente obra não aspira; ela pretende apenas dizer [mostrar] o que realmente aconteceu [wie es eigentlich gewesen]”.13

Tal o “famigerado” lema historiográfi co, eternamente repetido como espé-cie de dístico emblemático da história rankeana, não raro “vilipendiada” por “positivista”: zeigen wie es eigentlich gewesen. Alguns entendem inclusive – é a tese proposta por K. Repgen14 – que Ranke derivara esta célebre fórmula de Tucídides, quase que uma citação, pois o historiador ateniense expressara em termos similares o princípio de narrativa factual porque ele descrevera a peste de Atenas (II.48): “ich will nur schildern, wie es war”. A autoridade de Moses I. Finley referendou a tese.15 Santo Mazzarino igualmente a sugeriu, nisto também

12 O paralelo foi já explorado por Hajo Holborn (The Science of History. In: History and the Hu-manities, New York: Doubleday & Company, 1972, p. 81-97) por argumentos diversos dos que estamos propondo.

13 Pela tradução inglesa de Roger Wines (op. cit., p. 58), apenas repondo o “sagen” (dizer) da edição original de 1824, substituído por “zeigen” (mostrar) na de 1874 (LOBO, Ana Lúcia Mandacarú; PAYEN, Pascal. La ‘Question Historique’ de ‘L’Unité’: L’Herméneutique de Droysen face à Hegel et Ranke. In: Johann Gustav Droysen. L’avènement du paradigme herméneutique dans les sciences humaines. Sous la direction de Jean-Claude Gens, Argenteuil: Le Cercle herméneutique, 2009, p. 63). Para as variantes da fórmula original nos textos posteriores de Ranke mais o destaque dado ao entendimento do “wie” da frase rankeana, vejam-se as indicações e as análises de Ana Lúcia Lobo no ensaio conjunto com Pascal Payen (op. cit., p. 59 e 62) e em seu artigo de 2007 (LOBO, Ana Lúcia Mandacarú. “Wie es eigentlich gewesen ist”, “Wie es eigentlich geschehen ist”: a percepção rankeana da história frente às vicissitudes da subjetividade em Freud. In: Antigos e Modernos: diálogos sobre a (escrita da) história. Organizado por Francisco Murari Pires. São Paulo: Alame-da-Capes-CNPq, 2009, p. 497-498). Para o entendimento do “eigentlich” rankeano confiram-se os estudos de Georg G. Iggers (The German Conception of History. The National Tradition of Historical Thought from Herder to the Present. rev. ed., Hanover, 1988, p. 54) e os comentários de Fulvio Tessitore (Teoria del Verstehen e Idea della Weltgeschichte in Ranke. In: Le Epoche della Storia Moderna. A cura di Franco Pugliese Carratelli, Napoli: Bibliopolis, 1984, p. 36-37 e 59).

14 Über Rankes Diktum von 1824: ‘bloss sagen, wie es eigentlich gewesen’. Historisches Jahrbuch. 102, 1982, p. 439-449.

15 FINLEY, Moses I. História Antiga. Testemunhos e Modelos. Tradução de Walter Lellis Siqueira, São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 64 e 151.

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seguido por Marcello Catarzi16 mais Maria Luisa Silvestre17, e ainda Anthony Grafton18, Donald R. Kelley19 mais Reinhart Koselleck20.

O fi lólogo clássico Ronald S. Stroud, em breve artigo publicado no periódico germânico Hermes de secular tradição exegética no campo dos Estudos Clássicos, contestou a suposta identifi cação tucidideana do lema de Ranke. Submetendo a tese de Repgen a acurado e minucioso exame, perscrutou a sintaxe que estrutura, quer a frase de Ranke (no alemão), quer a de Tucídides (no original grego e em seu (des)entendimento pela versão alemã que Repgen segue) para concluir que a tese de Repgen repousa apenas num mal-entendido fi lológico: o que Tucídides disse em grego referindo-se à descrição da peste de Atenas não corresponderia exatamente à ideia sobre a escrita da história que Ranke formulara em alemão.21

Já Arnaldo Momigliano apontava na fórmula de Ranke antes a herança de Luciano (Como escrever a história, 39): “Foi ele, como todos sabemos, o homem que proveu Ranke de uma antecipação de seu motto: ‘a única tarefa do historiador é contar a história como ela aconteceu’”.22 Mas, como bem o lembra Peter Burke, o tópos que essa expressão consagra difundira-se pela modernidade vindo desde o século XVI, presente quer em Johann Sleidan, em seus Comentários sobre o reinado de Carlos V (“prout quaeque res acta fuit”), quer em La Popelinière (“réciter la chose comme elle est advenue”).23 Girolamo Cotroneo, de seu lado, reconhece a presença do lema rankeano já em Francesco Robortello (De facultate historica disputatio, 1548).24 Precisamente, uma formulação similar encontra-se também em Wilhelm von Humboldt, logo na frase inaugural de seu ensaio sobre

16 CATARZI, Marcello. Tucidide nella Storiografia Moderna. op. cit., p. 126-7.17 SILVESTRE, Maria Luisa. Tucidide nella Storiografia moderna. op. cit., p. 350.18 GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Pequeno Tratado sobre a nota de rodapé.

Trad. de Enid Abreu Dobranszky, Campinas: Papirus, 1998, p. 68-69.19 KELLEY, Donald R. Fortunes of History. Historical Inquiry from Herder to Huizinga. New-

-Haven; London: Yale University Press, 2003, p. 134-135.20 KOSELLECK, Reinhart. Le concept d’histoire. In: L’expérience de l’histoire. Traduit de

l’allemand par Alexandre Escudier avec la collaboration de Diane Meur, Marie-Claire Hoock et Jochen Hoock, Paris: Gallimard; Le Seuil, 1997, p. 216.

21 STROUD, Ronald S. Wie es eigentlich gewesen and Thucydides 2.48.3. Hermes, 115, 1987, p. 381.22 MOMIGLIANO, Arnaldo. History between Medicine and Rhetoric. In: Ottavo Contributo alla

Storia degli Studi Classici e del Mondo Antico. Roma, 1987, p. 19. Em sua nota bibliográfica ao fim do ensaio, Momigliano faz referência ao artigo de Repgen.

23 BURKE, Peter. Ranke the Reactionary. In: Leopold von Ranke and the Shaping of the Historical Discipline. Edited by Georg G. Iggers and James M. Powell, Syracuse: Syracuse University Press, 1990, p. 37.

24 “... un diverso modo di sporre i fatti che potesse, pur nel rispetto della verità (“uti gestae fuerint” dice il Robortello anticipando di trecento anni la formula di Ranke”. COTRONEO, Girolamo. I trattatisti dell’Ars historica. Napoli: Giannini editore, 1971, p. 143.

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a Tarefa do Historiador, que data de 1821, apenas três anos antes da frase de Ranke: “A tarefa do historiador é apresentar o que efetivamente aconteceu (was sich wirklich zugetragen hat)”.25

Dissociando nossa refl exão de uma tal polêmica de pruridos exegéticos de reconstituição da história em termos de Quellenforschung, que antes desanda por trilhas ociosas de investigação, retomemos o texto de Ranke enveredando por outras vias os modos de operar a aproximação com as questões postas pela escrita da história tucidideana.

Por aquela, apenas aparentemente singela e modesta fórmula por que o histo-riador defi ne sinteticamente qual fosse todo o propósito do saber histórico – zeigen wie es eigentlich gewesen –, Ranke busca ancorar em bases fi rmes a vocação da história, resguardando-a contra as pretensões de voos altaneiros porque outrora a haviam desviado e, pois, perdido. O saber histórico atém-se ao horizonte cognitivo dos fatos. Não lhe respeitam, portanto, propriamente os atos do juízo que decide a axiologia da experiência legada pelo passado, para arrogar-se então o poder de direcionar o futuro humano pelas lições históricas atualizadas no presente.26 O que não deixa de lembrar a similar aparente modéstia da proclamação teleoló-gica tucidideana, que também deposita no conhecimento dos fatos a pretensão maior de valia do saber historiográfi co, sem mais outras precisas e específi cas recomendações de teor vislumbrado que não as assim ambiguamente aludidas ou senão mesmo silenciadas por sua declaração:

Mas, a quantos desejarem observar com clareza os acontecimentos ocorridos, e também os futuros que então novamente, pelo que respeita ao humano, ocorrerão tais quais e análogos, julgarem tais coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aquisição para sempre, antes do que uma récita ouvida em um concurso.27

Se apreciada na trilha dos diálogos com o tesouro clássico antigo, a refl exão de Ranke, por oposição à utilidade recomendada pela historia magistra vitae28

25 Pela tradução inglesa editada em History and Theory; HUMBOLDT, Wilhelm von. On the Historian’s Task. History and Theory, 6.1, 1967, p. 57. Confira-se também o apontamento dado por Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 49).

26 Confiram-se nesse sentido as ponderações de Koselleck respeitantes à mutação na concepção de his-tória de fins do século XVIII passando da “moralização” pelo “julgamento do historiador” para a “his-tória processo” que comporta a figuração da própria “história como tribunal” (op. cit., 1997, p. 37-40).

27 Tucídides, I.22.4.28 O apelo à fórmula retornaria anos depois quando da atuação de Ranke como redator da Historisch-

-politische Zeitschrift. KOSELLECK, Reinhart. “Historia magistra vitae”. De la dissolution du “topos” dans l’histoire moderne en mouvement. In: Le Futur Passé. Contribution à la sémantique des temps historiques. Traduit de l’allemand par Jochen Hoock et Marie-Claire Hoock, Paris:

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latina (ainda moderna até fi ns do século XVIII29), reclama um modo de autonomia cognitiva para a história que remonta, originariamente, às questões implicadas pelo ktema es aei tucidideano, dizendo que o saber histórico não sujeita sua te-leologia pelos imperativos ditados pelas vicissitudes pragmáticas do presente.30

Firmado o desígnio cognitivo por que se defi ne a escrita da história como exposição dos fatos, o primeiro passo metodológico requer o delineamento heu-rístico que repertoria o leque de registros memorizados que informam e noticiam os acontecimentos:

A base desta obra, as fontes de seus materiais, foi toda uma série de memórias, diários, cartas, memoriais de embaixadores e relatos diretos de testemunhos presenciais dos fatos historiados. Somente recorremos a outra classe de escritos nos casos em que estes apa-reciam baseados diretamente naqueles testemunhos ou acreditavam, em mais ou menos larga medida, num conhecimento original dos mesmos.31

À heurística rankeana, que se fundamenta no primado das fontes primárias enquanto instâncias discursivas por testemunhas presenciais dos acontecimentos, corresponde o imperativo da autópsia tucidideana: “Já quanto às ações praticadas na guerra, preferi registrar não a partir de informes ocasionais e nem por minha apreciação, mas sim por aquelas a que eu próprio presenciei e também junto a outros (que as presenciaram) obtendo com tanta exatidão quanto possível a respeito de cada uma”.32 A realidade dos fatos históricos deriva da atualidade

Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990, p. 47.29 Para a crise do topos da historia magistra vitae por fins do século XVIII ver: Reinhart Koselleck,

op. cit., 1990, p. 37-62 e François Hartog, Time, History and the Writing of History: the Order of Time. KVHAA Konferenser 37 (1996), p. 95-113.

30 Na preleção ao curso de História do nosso tempo desde 1815 ministrado no semestre de verão de 1845, Ranke (Lutero e l’idea di Storia Universale, op. cit., p. 214-215) reafirma, em nome de sua própria concepção de história e consoante ideal de “imparcialidade”, o lema tucidideano do ktema es aei porque o saber histórico seja projetado como “uma aquisição, um bem para sempre, independente das paixões do momento”; confira-se também RANKE, Vorlesungseileitungen, op. cit., p. 162. Para o entendimento que, em aproximando, faz antagonisar a famosa fórmula ranke-ana relativamente à concepção de história tucidideana, veja-se HOLBORN, Hajo. The Science of History. In: History and the Humanities. New York: Doubleday & Company, 1972, p. 90-91; já para o entendimento do ktema es aei tucidideano como pré-concepção da historia magistra vitae, vejam-se as reflexões por que François Hartog (Le cas grec: du ktêma à l’exemplum en passant par l’Archéologie. Extrême Orient, Extrême Occident, 19, 1997, p. 127-137) acompanha a trajetória histórica que leva daquele a esta.

31 WINES, op. cit., p. 58.32 Tucídides, I.22.1-3. A aproximação tucidideana do princípio proposto por Ranke é também

apontada por BELLA, Santi di, op. cit., p. 49.

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constitutiva de seus informes: dizem os acontecimentos quem os presenciou, deles partícipes e/ou testemunhas.

Correspondência de princípio de heurística historiográfi ca que, entretanto, busca seus fundamentos por epistemologias de concepções de temporalidades históricas, antiga-tucidideana e moderna-rankeana, ironicamente inversas. Para Tucídides, a ciência da história se dá pelo tempo presente defi nido em termos de unicidade temporal: concomitância entre tempo por que se efetivam os acon-tecimentos mesmos e tempo em que se executa a ação discursiva de seu sujeito historiante. Tempo presente que, conjugando a duração dos acontecimentos com a existência do historiador, demarca a viabilidade humana constitutiva de sua autópsia cognitiva (a possibilidade temporal de fundar os informes pelo fato da presença factual).33 Imperativo de um saber cristalino, privilegia o presente como tempo histórico contra a exclusão do passado, assim defi nido em oposição. Para Ranke, pelo contrário, o tempo histórico é pensado em termos de uma consci-ência de defasagem, distância entre o passado dos acontecimentos e o presente do sujeito historiante: é justo pelo distanciamento que se viabiliza a moderna ciência histórica.34 A epistemologia antiga, especialmente tucidideana, radicaliza a identidade presente da história, ao passo que a moderna, de herança rankeana, delimita a distância passada da história.

Repertório documental de registros memorizados dos acontecimentos demar-ca a matéria bruta da história, a ser então trabalhada criticamente pelo método investigativo, consolidado por fundamento “fi lológico”.35 Este, pelas formulações fi rmadas pelo prefácio rankeano, constitui operação de crítica histórica primor-dial para a (re)constituição dos fatos.36 Tanto que sua exposição discursiva se

33 HARTOG, François. L’oeil de Thucydide et l’histoire véritable. Poétique, 49, 1982, p. 23-25; e Idem, 1997, op. cit., p. 128-129; MURARI PIRES, Francisco. Mithistória. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 1999, p. 256-272.

34 Vejam-se especialmente as ponderações externadas na Preleção à Primeira Parte da História Universal ou História do Mundo Antigo ministrada no semestre de verão de 1848 (Vorlesun-gseinleitungen, op. cit., p. 198; RANKE. Lutero e l’idea di Storia Universale, op. cit., p. 223) bem como a citação feita por CALVEZ, Jean-Yves. Politique et histoire en Allemagne au XIXe siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 2001, p. 119. Confiram-se ainda: HOLBORN, Hajo. Introducing Thucydides. In: History and the Humanities. New York: Doubleday & Com-pany, 1972, p. 43; MAZZARINO, Santo. Il Pensiero Storico Classico. Bari: Editori Laterza, 1990, v. 3, p. 368; mais as considerações respeitantes à “Escola histórica alemã” apontadas por KOSELLECK, R. op. cit., 1990, p. 52-53.

35 O alinhamento metodológico das concepções historiográficas do jovem Ranke pela vertente da tradição filológica é marcado por Santi di Bella (op. cit., p. 17 e 34).

36 Ainda quando da elaboração da Weltgeschichte nos anos finais de sua vida, Ranke insistia na prescrição fundamental da “história investigada à luz da crítica” (confiram-se as indicações dadas

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autonomiza, corporifi cando obra refl exiva paralela: “O método de investigação e os resultados críticos serão expostos em outro livro, que entregamos à prensa juntamente com este”.37 Decisão que diz tanto da essencialidade da questão do método38 quanto, todavia, de um intrigante alheamento de seus teores no que res-peita à defi nitiva apreciação dos méritos porque se avalia o êxito de uma obra his-toriográfi ca. Trata-se agora, prossegue Ranke, de pensar antes a questão da forma:

O propósito e o assunto delineiam a forma do livro (...). A estrita apresentação dos fatos, por contingentes e não atraentes que possam ser, constitui a mais elevada lei da história. Uma segunda, no meu entender, é o desenvolvimento da unidade e progresso dos aconteci-mentos (...). Desse modo estaremos melhor habilitados para apreender a linha geral de seu desenvolvimento, os percursos que eles seguiram, e as ideias pelas quais foram motivados.39

História é a estrita exposição dos fatos, que, todavia, ganha sentido se sublimada por forma narrativa que desvende a(s) ideia(s) que determina(m) a singularidade de seu desenvolvimento, subordinando sua exposição a uma dada ordem e nexos de sentidos. Daí o dilema que impende sobre sua realização:

Finally what will be said of my treatment of particulars, which is such an essential part of the writing of history? Will it not often seem harsh, disconnected, colorless, and tiring? There are, of course, noble models both ancient and – be it remembered – modern. I have not dared to emulate them: theirs was a different world. A sublime ideal does exist: the event in its human intelligibility, its unity, and its diversity; this should be within one’s reach. I know to what extent I have fallen short of my aim. One tries, one strives, but in the end it is not attained. Let none be disheartened by this! The most important thing is always what we deal with, as Jakobi says, humanity as it is, explicable or inexplicable: the life of the individual, of generations, and of nations, and at times the hand of God above them.40

por TESSITORE, Fulvio, op. cit., 1984, p. 71).37 Trata-se do Zur Kritik neurer Geschichtsschreiber (WINES, op. cit., p. 58).38 Confiram-se nesse sentido os comentários de Santi di Bella (op. cit., p. 64) apontando a diferença

que a proposição de Ranke marca em relação à orientação até então vigente, assim consagrada por Niebuhr, a qual entrelaçava os argumentos das questões do método crítico na própria con-formação narrativa (re)constituidora dos acontecimentos.

39 WINES, op. cit., p. 58. O requisito da “forma” da história que apreenda a unidade e sentido do desenrolar dos acontecimentos consta das formulações de Humboldt em seu célebre ensaio datando de 1821 (confiram-se os comentários de KOSELLECK, op. cit., 1997, p. 36-37).

40 STERN, Fritz. The Varieties of History From Voltaire to the Present. Edited, selected and introduced by Fritz Stern, New York: Vintage Books, 1973, p. 57-58. Meus encarecidos agrade-cimentos a Ana Mandacarú Lobo, atualmente terminando Tese de Doutorado na EPHE (Paris, sob orientação de Jacques Le Rider) sobre as concepções de temporalidade histórica em Ranke,

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Os críticos modernos apontam do texto de Ranke nuances de um jogo entre “desespero” e/ou “modéstia” permeando sua retórica.41 Mas ambas, “desespero e modéstia”, no meu entender, ambíguas. É “desencorajador” na medida em que o historiador, face à obra acabada, ganha consciência de um certo fracasso, talvez afl itivo. E, todavia, “ninguém deve desencorajar, pois o mais importante sempre é aquilo de que tratamos, como disse Jakobi, a humanidade como ela é, explicável ou inexplicável: a vida do indivíduo, das gerações, dos povos, às vezes a mão de Deus sobre eles”. É “afl itivo” porque não realiza plenamente o ideal que inspirava a razão por que o trabalho fora encetado, mas que no fi m, e só no fi m, se cons-cientiza como sendo de algum modo ilusório, inalcançável, dado que o sublime é transcendente. Mas, também, não é “afl itivo”, porque só assim o é enquanto algo inconsequentemente afl itivo: uma afl ição que não deve, entretanto, causar o que é sua efetividade própria, o “desespero” que “desencoraja”! Porque, se o sujeito historiante fracassa ou fi ca aquém de seu ideal, o objeto historiado não, antes é levado a cabo, avançou-se em seu conhecimento. A missão de historiador submete os penares, as limitações e mesmo os fracassos do sujeito historiante aos valores imanentes dos destinos humanos que são por ele historiados. Pela axiologia que defi ne o valor da práxis historiográfi ca enquanto modalidade hu-mana de constituição de conhecimento, a valoração do que respeita ao sujeito, a um indivíduo historiador, é superada pela valoração do que respeita ao objeto de sua obra, ou seja, a humanidade, e mais ainda, além dela, quando apreensível, a Providência, a “mão de Deus”. Axiologia historiográfi ca que se fi rma, portanto, deslocando a questão dos valores: do âmbito do sujeito para o da obra.

E a obra resultante, assim assinalada por Ranke, é dupla: é tanto a obra acerca da unidade do objeto factual em questão quanto a obra acerca do método, ambas produtos de seu singular e individual trabalho historiante. Curiosamente, em Tucídides a retórica epistemológica do Prólogo de sua obra opera um similar deslocamento entre valoração pelo sujeito e valoração pela obra, o que também se articula, por um lado, com a questão da axiologia suposta pela obra (a unidade do objeto avaliada em sua grandeza superlativa imanente: a Guerra dos peloponésios

Droysen e Freud, e que me advertiu dos problemas intrincados da tradução desta passagem de Ranke, de que presentemente ela prepara uma tradução (o Prefácio de 1824) para o português, a partir do texto original em alemão, e que em breve será editada com comentários. No aguardo desta melhor tradução, transcrevemos acima a versão inglesa de Fritz Stern, em contraposição à de Wines que vínhamos adotando até aqui a assim marcar a questão da problemática tradução com que os intérpretes avaliam o sentido da frase rankeana.

41 KRIEGER, Leonard. Ranke. The Meaning of History. Chicago: The University of Chicago Press, 1977, p. 110; IGGERS, op. cit., p. 67.

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e atenienses), e, por outro, com a questão da “metodologia”, em especial com o que se costumou denominar, no horizonte da tradição dos estudos tucidideanos42, de o silêncio ou a elisão de sua presença narrativa enquanto sujeito da composição.

Também para Tucídides, como em Ranke, aquela primeira questão, a da axio-logia, tem, pela retórica do Prólogo, primado sobre a segunda, a da metodologia. A metodologia integra a refl exão do Prólogo porque é reclamada pela axiologia, porque é dela decorrente: constitui item argumentativo de fundamentação das razões por que se prova a grandeza superior da guerra a ser narrada. E é pela grandeza superlativa do objeto, que ele consagra em sua obra, que se consolida a primazia historiográfi ca de Tucídides na agonística com seus antecessores, quer poetas (Homero, pela guerra de Tróia), quer logógrafos (Heródoto, pelas guerras Medas). A valoração da obra reverbera seus efeitos glorifi cantes sobre a valoração do sujeito que a compõe.

Quanto ao procedimento de ocultamento metodológico tucidideano, ele é in-trigado pela declaração com que Tucídides encerra a exposição de seus princípios de (re)constituição dos fatos: “no que respeita às ações praticadas na guerra, peno-samente as apreendi, porque os que estiveram presentes a cada um dos aconteci-mentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme sua inclinação por um dos lados ou sua memória”.43 Esse penosamente apreendi os fatos ressoa eco paralelo à confi ssão rankeana que diz do ideal (in)alcançável: “Este ideal vale também para nós, mas sei muito bem o quão longe estou dele. Uma pessoa se esforça por alcançá-lo, aspira a ele; porém, tardiamente (no fi m: am Ende) dá-se conta de que não o conseguiu”. O paralelo assim estabelecido contrapõe, na obra do historiador apreciada em termos de seu ideal de apreensão dos fatos, por um lado, a declaração do êxito ou sucesso tucidideano, contra, de outro, o reconhecimento do fracasso ou frustração rankeana. Disparidade de cons-ciências tanto mais intrigante pelo fato de que ambos dedicaram nesse empenho historiante trabalhos igualmente ingentes. Não se trata, pois, de uma questão de diligência e método por Tucídides (daí, o ideal consumado), contra, de outro, sua falta ou negligência por Ranke (daí, o ideal frustrado)! A intriga a que este ecoamento dos dizeres dos Prólogos responde tem antes a ver com a formulação retórica por que ambos envolvem as declarações de seus respectivos prólogos.

Por Tucídides, a capacidade historiográfi ca é representada por tal excelên-cia distintiva de superioridade individual (areté) que confi gura a autoridade de

42 LORAUX, Nicole. Thucydide a écrit la Guerre du Péloponnèse. Metis, 1, 1986, p. 139-140.43 Tucídides, I.22.3. Confira-se MURARI PIRES, op. cit., p. 278.

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seu sujeito humano em padrões heroicizantes.44 O historiador alcança e realiza como obra algo que é humanamente impossível, algo que transcende o âmbito do humano, que supera suas limitações ordinárias: algo, portanto, por um lado, divino; mas, por outro, porque é consumado com difi culdades, com trabalho e penar, algo também acusado como próprio da condição humana, de que o trabalho e o penar compõem item estigmatizador. Justamente, então, obra heroica, essa ambígua categoria por que se (con)funde humano com divino.45

Ora, pelos dizeres do Prólogo de Ranke, especialmente apreciados em termos do jogo entre “modéstia” e “angústia”, similarmente se os articula numa retórica de formulação ambígua. Por um lado, considerando a obra rankeana como a obra do método – o sistema de ordenação das regras e princípios da crítica – tem-se a antípoda moderna, no horizonte histórico da “religiosidade” rankeana, do que fosse a virtude heroicizante antiga. Ao conscientizar a “angústia” e assumir a “modéstia”, Ranke fi rma plenamente o reconhecimento da humanidade de seu trabalho e de sua obra. Ele não julga o passado histórico, pois não seria esse um juízo equívoco e indevido?46 Se os humanos jamais alcançam os fatos mesmos na sua plenitude e unidade, como julgar com propriedade justiceira? O Juízo da História, se é que ele se impõe, só pode respeitar à onisciência divina47 e não às limitações cognitivas dos homens, historiadores inclusive.

Já o “zeigen wie es eigentlich gewesen” viabiliza a história enquanto práxis humana. Dessa teleologia histórica resulta a aquisição do método, o qual dispo-nibiliza o ofício historiográfi co como bem comum, a ser cultivado e exercitado (a instituição dos seminários responde por essa prática48), e mesmo preceituado como imperativo para a obra de todo historiador indistintamente49: todos seguem as

44 LORAUX, op. cit., p. 146-147 e 154-155; MURARI PIRES, Francisco. Thucydide et l’assemblée sur Pylos (IV.26-28): rhétorique de la méthode, figure de l’autorité et détours de la mémoire. Ancient History Bulletin, 17, 2003, p. 115.

45 MURARI PIRES, op. cit., p. 287-292; MURARI PIRES, op. cit., p. 114-115.46 Anos depois, em Serbien und die Türkei, Ranke afirmaria, antagonizando Hegel: “a historia

não é um tribunal” (citado por TESSITORE, Fulvio, op. cit., 1984, p. 43). E no manuscrito dos anos 1830 sobre “O caráter da ciência histórica” argumenta novamente contra tal proposição porque arruína o imperativo da imparcialidade, então proclamando que ao historiador se impõe primordialmente “compreender” antes do que “julgar”. RANKE, Leopold von. Le Epoche della Storia Moderna. A cura di Franco Pugliese Carratelli, Napoli: Bibliopolis, 1984. p. 297.

47 “Somente Deus conhece a história universal”, declararia Ranke no manuscrito dos anos 1830 Epoche della storia moderna, 1984, p. 299.

48 KRIEGER, op. cit., p. 2.49 Já apontado por CASSIRER, Ernst. The Problem of Knowledge. Philosophy, Science & History

since Hegel. Translated by William H. Woglom and Charles W. Hendel, New Haven; London: Yale University Press, 1978, p. 236.

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mesmas regras e preceitos, todos reiteram as mesmas atitudes de trabalho de crítica a confi gurar no historiador moderno, não mais a fi gura de um herói, e sim, antes, a de uma falange historiográfi ca. Todavia, todo o compêndio metodológico, por primorosas e mais completas que sejam suas virtudes de crítica historiográfi ca, não assegura, para cada historiador, que ele alcance o que de mais excelso há na obra de história, a apreensão da unidade, da ideia que conforma o sentido dos aconteci-mentos e fatos. Então, é antes pela excelência da obra efetivada, quando nela ful-guram momentos por que ganhamos (cons)ciência da “mão de Deus” na história, que melhor se aprecia a virtuosidade distintiva de seu singular sujeito historiante.50

Pela moderna concepção rankeana de história, o deslocamento da fi gura do herói antigo faz vislumbrar alguma fi guração de “genialidade” na obra do historiador51, a assim apontar, em novo âmbito histórico de pietismo religioso em que se move a refl exão do jovem Ranke52, a ambígua proximidade/distância a contrapor/conciliar a condição humana com a sublimidade divina.53

50 A importância decisiva do aspecto “criativo” (“imaginativo-intuitivo”) - “talento” algo “visio-nário” por “pressentimento” ativado por “espontânea simpatia” (RANKE, Tagebücher, op. cit., p. 120; confira-se BELLA, Santi di, op. cit., p. 34) porque, pela figuração de “genialidade” da práxis historiográfica, se aprecie a formulação excelsa do saber histórico, que nossa análise vislumbra na argumentação do prefácio de 1824, é plenamente desenvolvida para os anos de amadurecimento da “metodologia” rankeana (1828-1836, especialmente “em torno a 1830-1831 quando se intensifica o confronto de Ranke com a lógica da filosofia da história de Hegel e se detalham no plano técnico do método as razões de sua refutação”) pelas análises de Santi di Bella no capítulo final de sua obra (L’oggetività estetica dello storico, op. cit., p. 281-315). Os nexos de articulação conceitual porque assim se diz do especial procedimento de práxis historiográfica como “intuição”, “imaginação” e “divinatio” são apontados profusamente por Santi di Bella, comparecendo igualmente nas análises de Theodor von Laue (op. cit., p. 43) e de Peter Hans Reill (History and the Life-Sciences in the Early Nineteenth Century. Wilhelm von Humboldt and Leopold von Ranke. In: Leopold von Ranke and the Shaping of the Historical Discipline. Edited by Georg G. Iggers and James M. Powell. Syracuse: Syracuse University Press, 1990, p. 27-28). Uma apreciação analítica da “antecipação” desse conglomerado conceitual na abordagem da praxis historiográfica teorizada por Johann Christian Gatterer, um dos principais historiadores da Escola de Göttingen, veja-se o artigo de REILL, Peter Hans. History and Hermeneutics in the Aufklärung: The Thought of Johann Christoph Gatterer. The Journal of Modern History, 45.1, 1973, p. 41ss.

51 Para uma similar aproximação da obra historiográfica em termos da ideia de genialidade, vejam--se as expressas reflexões de Eduard Meyer em seu ensaio Sobre La Teoria y La Metodologia de La Historia, El historiador y la Historia antigua, Mexico; Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1955 (trad. de l’allemand par C. Silva), p. 14; e de DROYSEN, J. G. Istorica. Milan: Alfredo Guida, 2003, p. 151-153.

52 Neste sentido vejam-se os comentários de Iggers (op. cit., p. 76-80), de Tessitore (op. cit., 1984, p. 38-40) e de Santi di Bella (op. cit., p. 73-91).

53 Confiram-se nesse sentido as análises de Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 72s) respeitantes ao “pathos religioso da história rankena”, bem como as reflexões da obra de Carl Hinrichs (Ranke e la teologia della storia dell’età di Goethe) respeitantes à passagem da figuração prometeica da mitologia clássica à centralidade da do Cristo na Weltgeschichte de Ranke também comentadas

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2. Barthold Georg NiebuhrNa Páscoa de 1794, aos dezessete anos e meio, Niebuhr começou a frequentar

os cursos de Ciências Naturais, Filosofi a e História na universidade de Kiel.54 O direcionamento por que se encaminhavam os rumos de seu futuro profi ssional logo se descortinaram ao jovem por novembro daquele ano, então vislumbrados ao refl etir as recomendações com que o aconselhava o tutor acadêmico, Dr. Hensler, que “acalentava ideias a respeito de sua carreira, desejando que ele se tornasse um fi lósofo natural, e tomasse a história natural da Antiguidade como o objeto especial de suas investigações”. “Boa, bela e digna ocupação”, assentiu Niebuhr em carta endereçada aos pais55, sem, todavia, deixar-se seduzir pessoalmente, ao antes fi rmar a ambiguidade de sua (dis) concordância: assim o era “para os que a apreciam”. Tinha já bem claros quais eram os anseios por que estimava as vocações de seu destino:

pelo peculiar direcionamento de minha mente e talentos, acredito que a natureza pretende que eu seja um homem de letras, um historiador dos tempos antigos e modernos, um estadis-ta e talvez um homem do mundo; conquanto que este último, queira Deus, nem no sentido estrito do termo nem naquele horroroso que usualmente se lhe associa. Entrementes, meu pendor individual certamente se imporá; e, se meu nome vier a ser celebrado, gostaria de ser conhecido como um historiador e escritor político, como um antiquarianista e fi lólogo.

Não, “a história era sua vocação”.56 Apenas nessa medida Niebuhr projetava a fi nalidade porque acolhia aqueles estudos fi losófi cos sugeridos por Hensler, então conscientizando a valia de qualidades que eles prestariam à melhor realização de sua missão historiográfi ca:

Estudo as ciências de que Hensler gostaria que fossem meu propósito último meramente como meios de prover uma maior riqueza de ideias, de tornar meu coração e meu pensa-mento claros e lúcidos, ou mesmo a fi m de submeter meu pobre coração, que se entregaria a sentimentalismos e errâncias, a meu pensamento.57

por Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 76s).54 A cidade, então integrada à Dinamarca (desde 1773), passaria a domínio prussiano somente em 1866.55 Kiel, 16 de novembro de 1794. NIEBUHR, Barthold Georg. The Life and Letters of Barthold

Georg Niebuhr. 3 v., edited and translated by Susanna Winkworth, London: Chapman and Hall, 1852, v. 1, p. 47.

56 Kiel, 2 de agosto de 1794. Idem, Ibidem, v. 1, p. 42-43.57 Kiel, 16 de novembro de 1794. Idem, Ibidem, v. 1, p. 47.

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Mesmo quando tolhia seus desejos de entregar-se aos estudos históricos, pois reprimidos pelo dever dos empenhos fi losófi cos, tanto mais fi rmava a axiologia de sua estima:

Infelizmente não disponho de tempo no momento para empregar em tais [questões]. E, todavia, cada vez mais aumenta meu amor pela história, tanto que meu fervor pela leitura da história interfere em minha dedicação à fi losofi a, ao passo que nenhuma fi losofi a pode abrandar minha inclinação pela história.58

Dez anos mais tarde, maio de 1804, as feições do destino vocacional de Nie-buhr ganhavam fi sionomia cristalina: seria o historiador de Roma Antiga, êmulo moderno de Tito Lívio. Ele assim narra as descobertas então experienciadas:

(...) estava me dedicando a uma obra que me propiciou horas do mais intenso contentamen-to. Estive empenhando todos os poderes de minha mente na investigação da história romana desde seus inícios até a época da tirania, por todas as reminiscências de autores antigos que pude obter. Este trabalho me deu uma visão aprofundada e viva da antiguidade romana, como jamais tivera antes, e tal que me fez perceber, ao mesmo tempo, com clareza e vida, que as representações de todos os modernos, sem exceção, estão equivocadas, relances imperfeitos da verdade. (...) De volta a casa, retomei minhas investigações com redobrada energia, e pela primeira vez senti fortemente a consciência de que poderia produzir algo digno de estudo, fama e imortalidade, e o desejo de empreender uma tal obra. Dei início a um tratado, de descortino abrangente e de corajosa liberdade de pensamento, acerca das leis romanas respeitantes à propriedade mais a história das leis agrárias. (...) bem como uma série de ensaios sobre tópicos e períodos isolados da história antiga.59

Algum tempo depois, opção de um destino já decidido e mesmo vislumbrado seu desfecho:

Invejo-vos as lembranças de vossa viagem à Itália. É duro para mim pensar que jamais verei a terra que foi o cenário dos feitos com os quais talvez eu possa dizer que tenha maior conhecimento do que qualquer de meus contemporâneos. Estudei a história romana com todo o empenho de que minha mente tem sido capaz em seus momentos mais felizes, e acredito que possa afi rmar esse conhecimento sem vaidade. Essa história comporá também, se me puser a escrever, o objeto da maioria de minhas obras.60

58 Kiel, 30 de novembro de 1794. Idem, Ibidem, v. 1, p. 49.59 Ao Conde Adam Moltke, Copenhague, 21 de maio de 1804 (op. cit., v. 1, p. 183-184).60 Carta ao Conde Adam Moltke, Copenhague 21 novembro 1804. NIEBUHR, Barthold Georg.

Die Briefe Barthold Georg Niebuhrs. Herausgegeben von Dietrich Gerhard und William Norvin, Band I, 1776-1809, Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1926, v. 1, p. 314-319.

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A 14 de outubro de 1806 Napoleão derrotava o exército prussiano em Iena. Paralelamente em Auerstadt, outra parte do exército fora derrotada por Louis--Nicolas Davout. A 25 de outubro Bonaparte entra em Berlin, e dez dias depois as forças prussianas capitulam em Lübeck. Terminava a campanha da Prússia. No ano seguinte, a 9 de julho de 1807, o Tratado de Tilsit reestabelecia a paz. A Prússia perdera todo seu território a oeste do rio Elba, mais a parte da Polônia que ganhara recentemente. Seu território fora assim reduzido à metade, e seu exército a um quinto, não dispondo mais do que 40.000 homens. Frederico Guilherme III, rei da Prússia desde 1797, aceitou reformas que revigorassem o Estado. À sua frente estavam Karl Stein e Karl von Hardenberg. Proclamava o rei: “Devemos compensar com a força intelectual o que perdemos em poder material”.61 “A recém fundada Universidade de Berlin proveria o ponto de reunião para todos os que desejassem reconstruir o vacilante edifício do Estado prussiano”.62

Niebuhr, que desde outubro de 1806 fora integrado ao Estado prussiano63 a convite do governo “reformista nacional” conduzido pelo Barão von Stein, o acompanha ainda em sua volta no novo ministério de 1807. É por ele encarregado de transacionar os empréstimos dos capitalistas holandeses ao governo prussia-no, já em março de 1808, passando a ocupar, desde julho, o cargo de Ministro Prussiano junto à Corte holandesa.64

Em maio desse mesmo ano de 1808, em meio às atribuladas vicissitudes de suas ocupações junto às esferas governamentais65, Niebuhr não se esquecia dos antigos desejos juvenis, tristemente preteridos em prol dos encargos públicos a que se vira levado. Em uma de suas cartas, revela:

E, todavia, não fui ainda capaz de realizar minhas aspirações, vendo-me obrigado a subs-tituir as bravas tropas que tombaram por uma miserável turba; ao invés de poesia, arqueo-logia e história antiga, tive que cultivar fi nanças, gerência bancária, administração – tudo o que, cá entre nós, são (comparado com meus bravos velhos camaradas) um conjunto

61 GOOCH, George P. Historia e Historiadores en el Siglo XIX. Traducción de Ernestina de Cham-pourgín y Ramón Iglesia, Fondo de Cultura Economica, 1977, p. 24.

62 Idem, Ibidem.63 Então nomeado para a Junta de Direção do Banco de Berlim, mais Companhia Comercial de

Negócios Marítimos. WINKWORTH, Susanna. In: NIEBUHR. Life and Letters. Op. cit., 1852, v. 1, p. 164; 194.

64 Idem, Ibidem, v. 1, p. 227-8.65 Encontrando-se então em Amsterdam comissionado a transacionar empréstimos junto aos capi-

talistas holandeses.

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de miseráveis companheiros, que por vezes quase me põem louco, especialmente quando qualquer coisa me lembra fortemente de todos aqueles a quem perdi.66

Chega, nessa ocasião, a sugerir a Stein que ele bem apreciaria obter alguma “missão na Itália, a fi m de compor a História de Roma (uma continuação de Tito Lívio, do ano 588 ao 625) em meio às suas ruínas”. Todavia, recusado o pedido, resignou-se ainda a permanecer sob “o jugo” daqueles negócios.

Assim esteve por mais dois anos. Com, primeiro, a queda de von Stein em janeiro de 1809 consequente à descoberta por Napoleão de seus projetos de “libertação germânica”67 e, depois, em junho de 1810 a ascensão de Hardenberg ao poder (Primeiro Ministro sob o título de Chanceler de Estado), Niebuhr, dis-sentindo de seus programas fi nanceiros, solicitou ao Rei sua exoneração. Foi, agora, nomeado historiógrafo real em substituição a Johannes von Müller. Como, desde 25 de janeiro de 1810, era já membro da Academia de Ciências da Prússia, Niebuhr podia ministrar cursos na recém fundada Universidade de Berlin68, cuja abertura se daria, a 29 de setembro, quando da Festa de São Miguel.69

Em Niebuhr, a sedução pela história de Roma conjugava-se perfeitamente com o espírito de regeneração nacional prussiana alentado pelo projeto régio de renovação educacional. Convicto da primorosa valia ética e patriótica de espírito nacional do ensino da História Romana70 que então passa a ministrar, almejava, por suas preleções, “regenerar os jovens, para torná-los capazes de realizar grandes coisas, dispondo diante deles os nobres exemplos da Antiguidade”.71 Assim, também diria:

A triste época da humilhação prussiana infl uiu em parte na produção de minha história. Pouco mais podíamos fazer do que esperar fervorosamente por dias melhores e prepararmo-

66 Carta ao Conde Adam Moltke, Amsterdan 18 de maio de 1808. NIEBUHR, Life and Letters, op. cit., 1852, v. 1, p. 245.

67 Idem, Ibidem, p. 229.68 MOMIGLIANO, Arnaldo. Niebuhr and the Agrarian Problems of Rome. History and Theory,

21.4, 1982, p. 8.69 WINKWORTH, Susanna. In: NIEBUHR, Life and Letters. 1852, v. 1, p. 236 e 304.70 Confira-se o comentário de Dilthey sobre Niebuhr: “Egli ha inteso le antiche età di Roma sulla

base della fondamentale intuizione di uno spirito colletivo nazionale e operante nel costume, nel diritto, nella tradizione poetica della storia, il quale ha prodotto la struttura sepcifica di tale popolo”; citado por HINRICHS, Carl, op. cit., p. 116.

71 Citado por GOOCH, op. cit., p. 24.

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-nos para eles. Voltei-me para uma grande nação para fortalecer meu espírito e o de meus ouvintes. Sentíamos o mesmo que Tácito.72

Os dois primeiros cursos foram logo transformados em livro: pelos anos de 1811 e 1812 Niebuhr edita sua História de Roma (Römische Geschichte), com uma dedicatória ao Rei. O terceiro volume viria à luz alguns anos mais tarde, já então revistos e reeditados em nova versão os dois primeiros. A 8 de dezembro de 1826 quando compõe o novo Prefácio ao I volume, Niebuhr altivamente proclama: “É a obra de minha vida, que deve preservar para mim um nome não indigno do de meu pai”.73

A excelência da escrita da história, assevera Niebuhr, supõe uma conjugação de virtudes. Antes de tudo, preceitos de deveres éticos. Assim, ter “a mente livre de preconceitos”, como Perizonius74, consoante princípio inaugural de “liberda-de” intelectiva que a humanidade alcançara já com a emergência das ciências no século XVII: “espírito de enfrentamento direto dos problemas, liberdade na investigação, autonomia de entendimento, razão e julgamento”.75 E ter o “espírito (tomado por) elevada pureza”, que extravasa apenas “os verdadeiros sentimentos humanos” de um coração “sincero” e “honesto”, sem tendenciosidades, como Massillon.76 Em sua Histoire de la Minorité de Louis XIV, “a melhor obra histó-rica da literatura francesa”, conjugam-se, ao ver de Niebuhr, todos os primores dessa virtuosidade historiográfi ca:

A obra toda exibe um espírito de elevada pureza, os verdadeiros sentimentos humanos que dão vida a seus sermões, o arranjo clássico de seu pensamento, e a veracidade de um homem que está de bem consigo mesmo – seu desvencilhamento de todos os vínculos de classe e opinião, tão forte quanto era sua própria fé; seu amor pela liberdade, sua justa apreciação dos deveres deste mundo; por fi m, ele transpira em tudo o espírito primorosamente belo do ‘Petit Carème’, espírito que, em seus Discursos, ensejou aquele delineamento da época de Luís XIV que deve ter causado arrepios em seus ouvintes à medida em que o grande homem, apenas conjecturando seus sentimentos, extravasava sua própria alma.

72 Idem, Ibidem.73 NIEBUHR, Barthold Georg. The History of Rome. Translated by Julius Charles Hare and Connop

Thirlwall, Philadelphia: Lea & Blanchard, 1844, v. I, p. viii.74 NIEBUHR, Barthold Georg. Lectures on the History of Rome. Edited by Dr. Leonhard Schmitz,

London: Charles Taylor, 1898, fifth edition, p. 53.75 The history of Rome, op. cit., 1844, p. vi.76 Carta de 15 de janeiro de 1809. Life and Letters, op. cit., 1852, v. 1, p. 268.

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“Livro precioso”, verdadeira “pérola”, cuja dignidade assim primorosa o elevara à honra de ser contemplado por posição de destaque, prestigiosa, ao lado de Tucídides e Salústio.77

Ética humanitária bem assegurada por fundamento religioso cristão: “acima de tudo, consciência e candura”, pois, “cientes de que o conhecimento é fruto da piedade”, é “pela sinceridade de nossos corações, pelo conhecimento de nós mesmos e pela trilha seguida à vista de Deus”, que nos guardamos contra descair pelas seduções do falso orgulho e da vaidade a “aparentar o que não somos”, amante de lisonjas que desviam os homens e os fazem “perder a via da verdade”.78

Daí, os princípios do método, então subsumidos pelo nome de uma ciência: Filologia.79 No centro constitutivo dessa confl uência de história e fi lologia, vindo já dos séculos anteriores (XVII e XVIII), um conceito: espírito crítico. Desde fi ns do XVII, entretanto, a crítica assumira a fi gura do pirronismo, cujos ataques de ceticismo avançaram também contra os domínios da história. Roma antiga, em especial, fora atingida: “um relato do tratamento dado à história romana nos fornece um retrato da trajetória da fi lologia em geral”80, ruindo então boa parte de seu “passado”, os tempos primordiais, de que se desacreditavam as tradi-ções, meros produtos de fantasias poéticas. Niebuhr81 localiza o começo desse pirronismo com Bayle (Dictionnaire historique et critique, 1697). A urgência de consciência crítica então reclamada tinha por mira acusar os erros que a história consagrava. Princípio, portanto, de intuito já essencialmente negativo, que depois se exacerba especialmente com Louis de Beaufort (Sur l’incertitude des cinq premiers siècles de l’histoire romaine, 1738): “a alma do livro”, diz Niebuhr, “é o ceticismo”, afeito estritamente a “denegar e destruir”. Ainda por inícios do século XIX, Pierre-Charles Levesque (Doutes, conjectures et discussions sur différents points de l’histoire romaine, 1815), sentenciava o mesmo destino infausto para a história da Roma primordial, por ele agora de bom grado sepultada em razão da irrelevância mesma de sua “barbárie primitiva”.82

77 Carta ao Conde Adam Moltke, Amsterdam, de 15 de janeiro de 1809. Life and Letters, op. cit., 1852, v. 1, p. 268-269.

78 Lectures of the History of Rome, op. cit., 1898, p. 56.79 Confiram-se os apontamentos porque Niebuhr assim a destaca respeitantes a: “plêiade filológica

que assistia suas preleções, integrando, entre outros, Savigny e Schleiermacher. Carta de Berlin, 9 de novembro de 1810. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 317-318.

80 NIEBUHR, Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 52.81 Lectures on the History of Rome, op. cit., 1898, p. 53-54.82 Confira-se a passagem citada por Sophie-Anne Leterrier. Le XIXe siècle historien. Anthologie

raisonnée. Paris: Belin, 1997, p. 22: “Si la critique peut renverser, en grande partie, l’histoire des premiers siècles de Rome, que nous importe? En sacrifiant tout ce qu’elle nous enlève, n’en

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O tratamento de uma investigação crítica, enquanto razão fundamentadora do conhecimento histórico, não pode, entretanto, ser confundido, assevera Nie-buhr, com mero ceticismo, como o fazia o pirronismo histórico. Este tem em mira “apenas destruir” a história; jamais cuida de, então, a “reconstruir”. Sua perspectiva é insufi ciente, pois volta o olhar apenas para acusar o que na história é mentira, quando há que nela, antes, detetá-la não como fi m em si, mas tendo por desígnio discernir e fi rmar a verdade. Consciência crítica fi rmada pelo pirronismo, pois, deturpada, assim defi ciente, cega pela obsessão negativa de uma teleolo-gia destrutiva. “Ceticismo”, na história, sentencia Niebuhr, peca por nihilismo, “não leva a nada”, e assim “ofende” (ou injuria) o espírito humano”.83 A história de Roma antiga há, pois, que ser tratada não “ceticamente, mas criticamente”: tem por objetivo “ganhar resultados” de conhecimento “positivo”84, “defi nido e certo”, das “coisas e relações que realmente existiram”, que assim “tomem o lugar da fi cção e do falso”, fi rmando “o que deve ser acreditado contra o que dever ser rejeitado”.85

A obra de (re)composição, ou (re)construção da história antiga, se apresenta, perante a ciência do historiador, concebida por imagens da realidade fragmenta-das, ruínas de cidades destruídas ou restos de corpos mortos:

A Antiguidade pode ser comparada com uma enorme cidade em ruínas, da qual não se tem nem mesmo uma planta subsistente; na qual cada um deve encontrar seu caminho por si mesmo, e aprender a compreender o todo pelas partes, e as partes a partir de uma comparação e estudo cuidadoso, mais a devida consideração de sua relação com o todo.86

O ofício do historiador se depara com essa singular aporia de indiciar a vida antiga pela realidade presente da morte. Ao apreciar a acuidade de perícia ana-lítica com que ele operava o método fi lológico-histórico porque enfrentasse tal difi culdade, Niebuhr sentenciava: “Disseco palavras como o anatomista disseca corpos”.87 Ciência da história que consiste, pois, para Niebuhr, em elaborar, a

saurons nous pas assez sur un peuple qui ne cultivait point alors les lettres, dont les moeurs étaient dures et grossières ainsi que le langage, qui ne savait encore que se battre, et que, malgré tout l’éclat qu’il répandit par la suite, nous pouvons, relativement à cette époque, appeler barbare?”

83 Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 55-56.84 Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 53. Assim enfatizado pelos comentários de Ernst

Cassirer, op. cit., p. 229.85 Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 55-56.86 Carta a um Jovem Filólogo, verão de 1822. Life and Letters, op. cit., 1852, v. 2, p. 244.87 Citado por KRIEGER, Leonard Krieger, op. cit., p. 359, nota 2; e por GOOCH, op. cit., p. 26.

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partir da dispersão desconexa dos fragmentos subsistentes, a reconstituição de sua plena factualidade.

O exame, então, a que o historiador busca cuidadosamente submeter os restos do corpo morto da história, almeja resgatar (e, pois, fazer novamente sentir) as formas e imagens de sua realidade viva, alcançada em sua essência distintiva, a assim dissipar as nebulosidades de sua fantasmagoria subsistente na memória histórica. Numa carta, ele fi rma toda sua convicção em tal alcance de (re)viven-ciamento histórico operado pelo método por ele eleito:

Oh! o quão seria estimada a fi lologia, se as pessoas conhecessem o prazer mágico que há em viver e mover-se em meio às mais belas cenas do passado! A mera leitura compõe sua menor parte; o melhor está em sentir-se familiar a Grécia e Roma durante seus mais amplamente diversos períodos! Quero escrever história com tal vivacidade, a tanto deslocar imagens vagas por bem defi nidas, a tanto desenredar representações confusas.88

Há, então, que plenifi car de vida as imagens do passado histórico, ao que recomenda Niebuhr em carta endereçada ao Conde Adam Moltke:

A música me é, em geral, bem desagradável, uma vez que eu não consigo concentrá-la em um ponto, e tudo que é fragmentário oprime minha mente. Por isso, também, não sou um matemático, mas um historiador; pois, a partir dos aspectos singulares subsistentes, consigo compor um quadro completo e saber onde faltam grupos e como suplementá-los. Acredito que seja este também o vosso caso, e bem gostaria que pudesses, como eu, aplicar vossas refl exões sobre os acontecimentos passados, fi xar as imagens na tela, e então empregar vossa imaginação, trabalhando apenas com os verdadeiros matizes históricos, a dar-lhes co-loração. Tomai a história como vosso assunto: trata-se de objeto inesgotável, e ninguém tem ideia o quanto, aquilo que parece perdido, pode ser restaurado com a mais clara evidência.89

Conjugação de virtudes de talento historiográfi co intelectivo são, pois, solicitadas para a (re)criação das “imagens de épocas passadas”, então inteli-gentemente apreendidas90 graças à ativação concatenada de uma visão intuitiva, imaginativa porque se as reconstitui a partir de sua disposição subsistente apenas fragmentada e lacunar. Obra de “descoberta” de natureza heroica, distinguindo inteligência que resolve “os enigmas” dispostos pela história.91 E obra de afi nidade

88 Carta ao Conde Adam Moltke, 15 de agosto de 1812. The Life and Letters of Barthold George Niebuhr, op. cit., v. 1, 1852, p. 350-351.

89 Carta ao Conde Adam Moltke, Copenhague, 21 de novembro 1804. NIEBUHR. Die Briefe, op. cit., v. 1, p. 314-319.

90 Carta de Roma, véspera de Natal de 1816. Life and Letters, op.cit., v. 2, p. 70-71.91 Confiram-se: Carta de Berlin, 9 de novembro de 1810. Life and Letters, op.cit., v. 1, p. 318; Carta

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demiúrgica, que dissipa as trevas do caos dos dados dispersos, desordenados e emaranhados, graças à inteligibilidade de uma visão luminosa, imaginativa, de sua totalidade plenifi cada de vida.92 O historiador, como Niebuhr representa e concebe suas virtudes, é assimilado à fi gura do herói, ou privilegiado por poderes que “dependem de um talismã externo como a força de Sansão”93, ou dotado de dons proféticos como os de Cassandra94, a vislumbrar as revelações dos mistérios passados ou futuros, como se “tivesse sido inspirado pelos espíritos dos Antigos em recompensa por seus leais esforços em nome da memória deles”.95 Em síntese, pois, o método crítico fi lológico bem se diz, por Niebuhr, como divinatio.96 Cor-respondentemente, pela conjugação de tais nexos conceituais (ingenium e gênio; inventividade, criatividade e originalidade; imaginação, inspiração e divinatio; intuição e insight)97, a fi guração da excelência de talento historiográfi co gravita igualmente em torno da ideia moderna de gênio.

Pelo feito da obra historiográfi ca enquanto produto do ingente trabalho de (re)criação fi lológica, o historiador, ao que então dizia Niebuhr, “quase fi ca imor-tal”, não fosse o fardo de sua humanidade constitutiva por todas as limitações e correspondentes trabalhos e penares hercúleos98 que a estigmatizam: “ai de mim!, quantos impedimentos em meio do caminho!”99 Nem bem o historiador vislumbra o esplendor divino que sua obra alcança, em imediata contrapartida

de Berlin, 19 de março de 1810. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 320; Berlin, 28 de janeiro de 1812.Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 334-335; Roma, 7 dezembro 1816. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 69; Carta a Madame Hensler, Roma, 1 setembro 1818. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 157.

92 Confiram-se: Carta de 1 de julho de 1808. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 248-249; carta de Berlin, 18 de maio de 1811. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 324-325; Carta de Bonn, 20 outubro 1825. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 352-353; Carta a Perthes de Bonn, 21 junho 1826. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 359.

93 Carta de Amsterdam, 12 de dezembro de 1808. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 262-263.94 Carta a Savigny, Roma, 16 fevereiro 1817. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 88; Carta ao Conde

de Serre, Roma, 9 fevereiro 1823. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 257; e Roma, 18 março 1823. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 266.

95 Carta de Bonn, 20 dezembro 1829. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 395-396.96 O procedimento seria objeto de críticas já por seus contemporâneos que acusavam a exploração

abusiva que dele fazia uso Niebuhr (GOOCH, op. cit., p. 26-27). A presença da divinatio nas formulações conceituais de Ranke é apontada por Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 49).

97 Confiram as indicações dadas por WITTKOWER, Rudolf. Genius. Individualism in Arts and Artists. Dictionnary of the History of Ideas. Edited by Philip. P. Wiener, New York: Charles Scribner’ Sons, v. 2, 1968, p. 305-308.

98 O que reclama e exige do historiador, entende Niebuhr, todo um nexo ético de disposições de espírito heroico (zelo, dedicação, empenho, perseverança, etc.), a que Niebuhr constantemente faz referência e ressalta em seus textos: carta de Berlin 9 novembro 1810. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 317.

99 Carta de 1 de julho de 1808. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 249.

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assoma a consciência da inexorável condição humana que circunscreve seu pe-noso percurso face aos imensos esforços que tal tarefa requer. A experiência do divino, quando se é humano, tem a (in)consistência fugaz do instante.

Um poderoso recurso metodológico, especialmente associado a amplo do-mínio de conhecimentos históricos100, favorece, e mormente operacionaliza, essa reconstituição das imagens do passado histórico, de início apenas disponibilizadas em confi gurações fragmentadas e lacunares: as analogias que outras histórias conhecidas propiciam. Caso exemplar, magistralmente examinado por Arnaldo Momigliano: ager publicus e correlatas questões fundiárias da antiga história romana, especialmente as leis agrárias do período republicano, se esclarecem, e consoantemente resolvem, por Niebuhr, uma vez estabelecido seu paralelismo histórico com as situações congêneres do arcaico regime indiano, particularmente pela fi gura histórica do zamindar101, ainda vigentes por fi ns do século XVIII.102 Passara-se em Roma o que ocorria na Índia: o que foram, na origem, apenas direitos ancestrais de posse (ocupação e uso)103 das terras comunais, acabaram ilegalmente cristalizados, com o passar do tempo e a sucessão das gerações, em práticas de exploração transgressora, que confi guravam situações de propriedade privada abusiva (permanente e hereditária).

Aquelas leis da República romana não tinham, portanto, se insurgido e atentado contra a propriedade privada porque se acusasse historicamente sua ilegitimidade, como equivocada e deturpadamente o haviam explorado os revo-lucionários recentes, mas sim contra as mazelas de seus excessos desnaturadores por ambições de acumulação expropriadora. Os espectros “romanos”, despertados pelos projetos franceses de 1792-3 que reclamavam leis agrárias traduzidas por confi sco e redistribuição das propriedades104, eram assim exorcizados pela crítica histórico-fi lológica niebuhriana. Diálogo histórico do presente moderno com o

100 Confiram-se os apontamentos dados por Gooch (op. cit., p. 23) nesse sentido, particularmente destacando seu conhecimento da história e desenvolvimento constitucional britânico.

101 Zamindar, que coletava as taxas hereditárias pagas pelos camponeses como concessão de di-reitos de cultivo dos lotes de terras das aldeias, originariamente detendo essa atribuição apenas na qualidade de representante do soberano nativo, mas que acabara, na prática, com o passar do tempo, a abusivamente explorar o sistema como se fosse o proprietário.

102 MOMIGLIANO, op. cit., 1982, p. 3-15.103 Niebuhr vale-se da distinção conceitual formulada por Savigny entre possessio e propriedade.

MOMIGLIANO, op. cit., 1982, p. 13.104 “Loi agraire, égalitée réelle” constituía um dos mottos proclamado nos projetos de Babeuf em

1792, que Robespierre, entretanto, rejeitaria em termos bem ácidos, vilipendiando-o como “uma fantasmagoria criada por patifes para aterrorizar imbecís”. A “Declaração de 1793” reconheceu assim plenamente o direito de propriedade privada. MOMIGLIANO, op. cit., 1982, p. 9.

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passado arcaico, de história indiana e romana, que assim operava em consonância com a atualidade da orientação política de Niebuhr em prol da liberação dos servos na Dinamarca e na Prússia, entretanto acautelada contra sua contaminação por aquelas distorções revolucionárias.105 Niebuhr invertia, pois, o sentido da lição histórica alegadamente embutida no prestigioso precedente romano, revirando sua imagem de uma face radical revolucionária francesa para uma moderada conservadora britânica106: a Roma antiga, republicana, fundamentava antes uma ordenação embasada em uma sociedade de camponeses livres, detentores de propriedades modestas de moderada prosperidade, por cujas consoantes virtudes “romanas” de simplicidade e honestidade se ancorassem socialmente a disposi-ção patriótica de segurança e defesa nacional contra as agressões estrangeiras, justamente alertadas pela falência da velha ordem militar aristocrática prussiana quando das recentes invasões napoleônicas.107

História Antiga (Roma), nascente em tempos de historicidade burguesa libe-ral, exorciza os espectros da Revolução em França de 1789/1793.108

Similar presença fantasmagórica na História Antiga (Grécia) de Niebuhr: a Atenas de Péricles e a democracia.

A admiração de Niebuhr pela Atenas pericleana não se confunde com qualquer apego maior pelo regime democrático, a que também se a associa. Justo pelo contrário, a excelência histórica do estado ateniense resulta, para Niebuhr bem como já originariamente para Tucídides, precisamente do fato de que fosse apenas aparente e nominalmente uma “democracia”, a assim formalmente dissimular o domínio governamental de seu melhor cidadão. Tal era justa a conformação política em que se harmonizava a imperiosa autoridade de uma liderança virtu-osa com a correspondente nobreza obediente e respeitadora do povo de Atenas. “Cordialidade e natureza benigna constituíam suas características peculiares”.109 A “nobreza de seu caráter” se revela particularmente no regozijo com que aprecia e acata a genialidade da liderança, prontamente agilizando a realização de sua

105 Idem, Ibidem, p. 10.106 Idem, Ibidem, p. 13.107 Idem, Ibidem, p. 10.108 A “repugnância” de Niebuhr pela Revolução Francesa é destacada por Gooch (op. cit., p. 23),

que também aponta como os desdobramentos do processo revolucionário com a ascensão de Bonaparte conforma os juizos de valor com que Niebuhr elabora sua percepção do colapso da Grécia Antiga diante da conquista macedônia. Idem, Ibidem, p. 29.

109 Lectures of Ancient History, op. cit., v. 2, 1852, p. 77.

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orientação política, ao invés de antepor estorvos em seu caminho.110 Pois, pon-dera Niebuhr, “sempre que um homem assim [superior] aparece, o povo deve se acomodar e não opor-se a ele”.111

Enquanto Atenas dispôs de um manancial de lideres genuinamente aristocráti-cos a cidade progrediu, alcançando o apogeu com Péricles, precisamente porque sua liderança realizava exemplarmente aquela conjugação de inteligência do cérebro de direção política da cidade com o acatamento acolhedor pelo corpo da cidadania. Aos olhos de Niebuhr, a face negativa da atuação pericleana à frente do Estado ateniense concerne aos desdobramentos degenerativos ocasionados pelos vezos demagógicos de sua política instituticional, ao assim ensejar a deterioração da, apenas aparente, “democracia” de sua própria época na “anarquia” que a seguiu. Desvanecimento do Areópago mais desaparecimento dos quadros aristocráticos de composição da liderança; a democracia ateniense deparou-se com dilema terrível, “o maior infortúnio” que um estado enfrenta, entende Niebuhr, ao ver-se diante de duas alternativas de rumos, ambas ruins: ou o princípio de distinção social de privilégio político se degrada, com a riqueza preenchendo o vazio deixado pela extinção do mérito, o que constitui “a mais vulgar e miserável de todas as distinções”; ou, pelo contrário, extingue-se o próprio princípio político da distinção social, de modo que “a massa toda do povo governa soberana”. Ora, conclui Niebuhr, quando isto ocorre e tem-se uma “democracia” descontrolada, pois carente dos freios da liderança aristocrática, “nada pode ser mais miserável, como bem o exemplifi ca “o caso da Suíça”. Daí o grande infortúnio que então rondava a Grécia: “todas as constituições gregas à época da guerra do Peloponeso estavam maduras para as revoluções”.112

Os espectros da revolução, que assombraram Niebuhr do início ao fi m de sua trajetória intelectual113, (re)apareciam em suas leituras sob feições antigas. Para Niebuhr, nada certamente poderia ser pior ou mais desastroso, a ele que o espectro da revolução contemporânea desencadeada em França aterrorizava. Fundação da História Antiga se dá por exorcismos da Revolução.

110 Idem, Ibidem, p. 94.111 Idem, Ibidem, p. 115.112 Idem, Ibidem, p. 48-50.113 Desde os primeiros escritos em 1804, quando se referia à Revolução Francesa como “uma gangue

de criminosos”, até o fim da vida, por ocasião da de Julho de 1830 em episódio emblemático; comportando, algo “romanticamente”, desfechos de pathos um tanto “trágico”: foi na esteira das aflições com a nova Revolução em França, sempre ávido por buscar nos jornais as notícias de seus avanços e “imaginação exaltada receosa de deparar a repetição do terrível acontecimento, angustiado com a segurança de sua própria família” (GOOCH, op. cit., p. 30), que Niebuhr apa-nhou, de retorno da biblioteca para casa na noite de Natal fria e úmida daquele ano, “o resfriado” que o levou, desde aquela noite, ao leito que só deixaria já morto, a 1 de janeiro do ano seguinte.

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Em Niebuhr o princípio fundante da assim dita ciência da história bem se encontra delineado: capacidade cognitiva de reconstituição do passado!

Passando em revista as bases documentais respeitantes aos tempos mais antigos da Grécia (dos primórdios ao início das Olimpíadas), Niebuhr examina, entre outras fontes, Tucídides, que também consagrara em sua obra uma história daquele passado remoto.

Para Niebuhr, o primor positivo do espírito crítico tucidideano pode ser apreciado já pelos fundamentos com que ele circunscreve a realidade histórica da época mais antiga do mundo grego, dispondo o arcabouço cronológico do passado que remonta até o início das Olimpíadas, de que são precisadas as datas dos acontecimentos e dimensionados seus relacionamentos cronológicos.114 Afi r-mada a precisão da cronologia tucidideana, exemplifi cada quer na ‘Arqueologia’ (a data de invenção da trirreme) quer na exposição siciliana do livro VI (as datas de fundação das colônias), Niebuhr conjectura, por esse indiciamento, a existência de uma fonte histórica de que Tucídides (supostamente) teria derivado seus dados cronológicos: “tábuas analísticas”.115 Consistência positiva de arquitetura cronoló-gica tão fi rme e segura que deve, certamente, responder por metodologia crítica, a qual, ajuizando a “autenticidade” de (tais supostas) bases documentais, enquadra a realidade histórica dos acontecimentos em devida ordenação sequencial.116

Apreciando, por conjecturas que desdobram-se em encadeamento de outras tantas suposições a imaginar os princípios com que Tucídides operasse efi ciente metodologia de crítica factual, a circunscrever os fundamentos positivos com que restabelecesse a realidade histórica daqueles tempos da Grécia arcaica, a leitura niebuhriana consagra em Tucídides todo um nexo de virtudes historiográfi cas:

• diligência de acuidade crítica, “prudente e escrupulosa”, no ajuizamento da “autenticidade” de suas bases documentais;

• aprimorada percepção de realidade histórica, que certamente pode acolher dados cronológicos equivocados dos informes de que depende, mas que ja-mais erra por inconsciência crítica que não distinguisse dados fantasiosos117;

114 Lectures of Ancient History, op. cit., v. 1, p. 211.115 Idem, Ibidem, p. 212.116 Idem, Ibidem, p. 212. 117 Idem, Ibidem, p. 212.

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• gravidade virtuosa de aferição de realidade histórica que pode igualmente ser estimada pelo equilíbrio de escrúpulos narrativos com que ele resguarda os limites possíveis do conhecimento histórico para os tempos primitivos da Grécia, de que pouco se dispunha de informes seguros, de modo a assim não comprometer sua distintiva capacidade de ajuizamento historiográfi co: para o que antecede a Guerra de Tróia, não camufl a as incertezas; para a Guerra de Tróia, bem discerne a melhor fonte, “seguindo apenas Homero”, tanto mais que acautela a linguagem de sua narrativa por condizente resguardo de consciência crítica, remetendo o que diz a um “phaínetai”, sem “compro-meter sua distintiva convicção pessoal”; por não dispor de elementos para um juízo mais decisivo quanto à realidade desse famigerado acontecimento, compreensivelmente o enquadrou pelos ditames da (in)consciência histórica de sua época, fosse ou por comungar ou, justo pelo contrário, por discordar, do entendimento então vigente quanto à sua problemática facticidade118.

Também pela arte apurada de sua escrita, aliada à certeza positiva do conheci-mento factual, Tucídides merece a palma da historiografi a, razão porque Niebuhr o proclama “o maior historiador que jamais existiu”: o estilo de sua narrativa torna a história plena de vida.119 Graças à experiência decorrente de participação ativa na vida pública porque dominava os acontecimentos relatados em sua his-tória, os descreve tão primorosamente, por discurso em que todas as palavras são justamente sopesadas, que nos disponibiliza a visibilidade mesma de quem os presenciasse.120 Teores do relato discursivo e realidade dos acontecimentos assim se espelham correspondentemente em sua obra pela virtuosidade da narrativa.

Perversa é, então, a tradição que nos legaram os antigos que, acusando as defi ciências artísticas do livro VIII, apontavam a pretensa inferioridade de sua composição, apenas a justifi cando ou porque texto inacabado, ainda carente de apri-moramento, ou talvez mesmo porque produto de outro autor (Teopompo). Pelo con-trário, também pelo teor com que conformou essa parte fi nal da obra, Tucídides fora primoroso em arte narrativa, pois apresentou os acontecimentos justo consoante a atmosfera e imagem de sua realidade mesma: tanto manteve o estilo solene e sublime da narrativa para acompanhar a ascensão de Atenas quanto, correspondentemente, o abandonou por narrativa dura para que retratasse a brutal perda de sua grandeza

118 Idem, Ibidem, p. 212.119 Idem, Ibidem, v. 2, p. 54.120 Idem, Ibidem, p. 54.

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naquele tempo em que a cidade conhecera miséria e infortúnio.121 Bem se com-preende então, pelo contrário, a propriedade da ausência de discursos nesse livro: refl ete justamente o fato do esvaziamento da deliberação popular enquanto processo de decisão política, nesse tempo em que “a férrea necessidade do destino decreta-ra” a perda do arbítrio da cidadania sobre direcionamento dos acontecimentos.122

Os termos e parâmetros da consciência crítica de inícios do século XIX acerca da (ir)realidade histórica da Grécia primeva assim perpassam e transi-tam de Niebuhr para Tucídides, a (con)fi gurar a especular metodologia de que comunga(ria)m suas obras historiográfi cas.

3. Apoteose TucidideanaPor Niebuhr mais Ranke, Wihelm Roscher e Eduard Meyer, compondo o quar-

teto de historiadores do século XIX que Santo Mazarino qualifi cou de “os Alemães Tucidideanos”123, a fama de Tucídides, então “idealizado como historiador perfeito”124, é consagrada por uma espécie de apoteose historiográfi ca, estimando-se sua história como obra extraordinária, singularmente excelsa, inigualável.

Por declarações esparsas ao longo de sua volumosa obra mais apontamen-tos biográfi cos registrados em seu diário, dispomos de ditos signifi cativos que enfatizam toda a admiração e entusiasmo porque Ranke, desde os anos juvenis até o fi nal de sua vida, reiteradamente exaltou a fi gura do historiador ateniense. Modelo especialmente virtuoso por compêndio de saber político conformado como história, porque, ao lado de Tácito, Tucídides fi gura como “mestre da historiografi a política” por formulação “exemplar inigualável”.125 Realização narrativa impecável de fundamentação crítica de factualidade126, por permanente

121 Idem, Ibidem, v. 2 p. 54-55.122 Idem, Ibidem, p. 55.123 MAZZARINO, op. cit., p. 359-370; MONTEPAONE e outros. Tucidide nella historiografia

moderna. 1994.124 MOMIGLIANO, Arnaldo. Problèmes d’historiographie ancienne et moderne. Traduit par A.

Tachet, Paris, 1983, p. 27.125 RANKE. Tagebücher, op. cit.,1964, p. 242; e Introdução ao curso de História Moderna no

semestre de inverno de 1867-68. Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitung, vol. IV, p. 412; Lutero e l’idea di storia universale, op. cit., p. 250. Confira-se ainda o comentário externado sobre Tácito: “um dos maiores historiadores que já existiram”, entretanto não tendo alcançado em sua história de Roma “o universal”, antes apreendido propriamente pelos historiadores gregos como Apiano e Plutarco. Epoche della storia moderna, op. cit., p. 120.

126 Introdução ao curso de História Moderna sobre a ideia de História Universal no verão de 1847. Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p.187; confira-se a tradução italiana: RANKE, op. cit., 1986, p. 218.

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atenção que jamais se perde extraviada pelos desafi os das fábulas que perpas-saos informes.127 Excelência de padrão de objetividade historiográfi ca sublime, insuperável, situando ideal de imparcialidade narrativa luminar, porque todos historiadores o almejassem sem jamais igualar128. Ranke considerava-o não apenas como a origem mesma da escrita da história, mas também como seu modelo insuperável: “ninguém pode ter a pretensão de ser maior historiador do que o foi Tucídides”.129

Em termos similares aos de Ranke, já Niebuhr se pronunciara. Em Tucídides, dons de “espírito magnânimo e nobre” propiciam narrativa historiográfi ca em que refulge “o brilho fulgurante da imparcialidade”.130 Primor de justiça e correção no tratamento narrativo dos acontecimentos inabalável, que nem mesmo é afetado por extravios deformadores conexos aos dissabores e injustiças que o vitimaram pessoalmente.131 Pelo que, “se há alguma autoridade confi ável em toda a história, esse homem é Tucídides, cujas palavras podem ser incondicionalmente aceitas, ele que nada diz de que não esteja perfeitamente convencido e que é incapaz de pronunciar uma inverdade a respeito de um amigo ou de um inimigo”.132

Com Tucídides, diz ainda Niebuhr, tem-se primor de arte narrativa de fasci-nante sedução, que “gentilmente prende os leitores”, assim equiparável apenas a Tito Lívio. Entretanto, num e noutro diferenças estilísticas mesmo opostas. “Abundância e eloquência indescritível” no romano, conjugadas por “celeste sere-nidade do intelecto, nisto igual a Homero”. Já “perfeita concisão e vigor” no ate-niense, porque Tucídides se recomenda exemplarmente também pelo estilo, justo apropriado aos modernos face ao ritmo acelerado com que então pulsa o mundo.133

Por tais declarações de júbilo entusiasmado quer de Niebuhr quer de Ranke, revive e renova-se por inícios do século XIX a glorifi cação fulgurante de Tucídi-des. Então os modernos, tendo por missão fundar a ciência da história, o elegeram por modelo supremo, projetando de sua fi gura uma espécie de apoteose. Para

127 Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 189-190.128 Preleção introdutória ao curso de História Moderna ministrado no verão de 1845, em que refletia

sobre o imperativo da objetividade historiográfica. Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinlei-tungen, vol. IV, p. 162. Confira-se igualmente o comentário na Introdução ao Curso de História Moderna de 27 abril 1847. Aus Werk und Nachlass, Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 190.

129 Pela tradução inglesa de R. Wienes (op. cit., p. 163-164); confira-se igualmente a tradução es-panhola de Dalmacio Negro Pavón, Sobre las Epocas de la Historia Moderna, 1984, p. 80 e 82; e a italiana de Gabriella Valera, Le Epoche della Storia Moderna, 1984, p. 109 e 111.

130 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 420.131 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 106.132 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 103-104.133 Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 186.

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Ranke, Tucídides, assim como Homero para a epopeia e Platão para a fi losofi a, bem pode ser considerado o gênio da história, a qual, graças a ele, alcançou a perfeição.134 Niebuhr também assim o ajuiza. Do historiador, diz: “O primeiro real e verdadeiro historiador, no nosso entender, foi Tucídides: ele é o mais perfeito historiador dentre os que já escreveram (...) o primeiro, o Homero dos historiadores”.135 Para o objeto de sua história, reverberando-lhe o louvor, procla-ma: “A Guerra do Peloponeso (...) é a mais imortal de todas as obras, dado que foi descrita pelo maior historiador que jamais existiu”.136 Com e por Tucídides, “a história surge de uma só vez em sua mais alta perfeição”.137

O imortal138, o divino Tucídides, declarava Niebuhr. Objeto de veneração cultual, confessava Ranke: “um espírito portentoso, grandioso, diante de quem me ajoelho”.139

Eduard Meyer similarmente o sentencia:

(...) continua existindo, hoje como outrora, um único modo de escrever a história e de tratar os problemas históricos: aquele mesmo que o ateniense Tucídides pôs em prática pela primeira vez e promoveu o exemplo, com uma perfeição que nenhum de seus sucessores, até hoje, conseguiu sobrepujar.140

Apreciação reiterada em outro ensaio, poucos anos depois: “Quis apenas mostrar como Tucídides criou e realizou numa obra a ciência da história, e como esta obra (...) teve na literatura histórica até hoje apenas rivais do seu calibre, mas nenhum que o superasse”.141

Dentre os modernos, dizia Ranke em sua autobiografi a (1885), só Niebuhr se equiparava a Tucídides, assim tido por padrão de excelência historiográfi ca.142

134 Aus Werk und Nachlass, Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 256-257. Tradução italiana em Lutero e l’idea di storia universale, op. cit., p. 232.

135 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 1, p. 211.136 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 54. Confiram-se ainda os ajuizamentos externados

acerca dos discursos integrados por Tucídides em sua obra, Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 352.137 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 391. Confira-se ainda: Lectures on Ancient History,

op. cit., v. 1, p. 54.138 Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 105.139 Apontamento ditado em outubro de 1863 e em novembro de 1885 (SW 53/54: 26-31, 58-59:

WINES, op. cit., p. 4), citado também por Walter Peter Fuchs, (RANKE, Leopold von. Aus Werk und Nachlass III. Frühe Schriften, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien: R. Oldenbourg Verlag, 1973, p. 329).

140 El historiador y la Historia antigua, op. cit., 52-53.141 Tucidide e l’origine della Storiografia Scientifica. Ttradução italiana de Claudia Montepaone e

Marcello Catarzi. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., 1994, p. 446.142 Referido por Maria Luisa Silvestre. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., p. 350.

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Com Ranke concordava Meyer, igualmente apreciando o mérito de Niebuhr, por quem a história retomava o primor da metodologia crítica tucidideana.143 Na esteira de Niebuhr, acrescenta Meyer, viera Ranke, cuja História dos Papas aproximara a historiografi a novamente dos píncaros tucidideanos.144

4. Entre heroico e gênioDesde o princípio com Heródoto, porque o lógos se sobreponha ao mito como

fundamento discursivo de civilização, o dilema da historiografi a se confi gura: re-latos verídicos contra mentirosos, isentos contra parciais; como fi rmar a dignidade distintiva da história porque se memorizem as realidades dos feitos, das obras e dos modos com que nela agem os homens? Porque as histórias se contam tendo em vista um público a que elas se dirigem, como deve o historiador conformar modos narrativos que assegurem convicção de veracidade para as coisas que ele relata como fatos reais? Que virtudes excepcionais lhe são exigidas por reco-mendação de preceitos e deveres que consagrem a autoridade de sua narração?

Mas a apreensão da verdade do fato unívoco, adverte Tucídides, é obra pe-nosa. Reclama ingente empenho de inteligência para resolver a aporia intrínseca de sua consecução, pois, para tanto, o historiador se defronta com a dialética inconciliável dos relatos confl itantes apresentados pelos que presenciaram os acontecimentos e, consoantemente, os informaram. Supõe sujeito humano dotado de espírito superior, distinguido por excelência de plena maturidade experiente que a razão capacita, de modo a poder discernir toda a verdade que desaparece confundida por essa dialética informativa. Via de trajeto difícil, percurso penoso de ingentes trabalhos, restrito a um único caminho que conduz justo à descoberta da verdade do fato. Via de conhecimento histórico própria a um destino pessoal heroico por areté de intelecto excepcional, privilégio de um indivíduo cujo nome chancela a obra por seu primeiro termo declarativo: Tucídides de Atenas.145

143 Referido por Maria Luisa Silvestre. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., p. 346. Confiram-se: Tucidide e l’origine della Storiografia Scientifica. Tradução italiana de Claudia Montepaone e Marcello Catarzi. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., 1994, p. 435.

144 I Discorsi di Tucidide [Forschungen zur alten Geschichte]. Tradução italiana de Maria Luisa Silvestre. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., 1994, p. 398.

145 Confiram-se os argumentos por nós firmados em: MURARI PIRES, Francisco. A Retórica do Método (Tucídides, I.22 e II.35). Revista de História, 138, 1998, p. 12-15; MURARI PIRES, Francisco. Mithistória, op. cit., p. 286-291; MURARI PIRES, Francisco. O Porto de Pilos e a Baía de Navarino, Tucídides e o Coronel Leake: Akribeía antiga mais Crítica moderna e as Temporalidades da História Tucidideana. Phaos, 3, 2003, p. 107-112; MURARI PIRES, Fran-cisco. Tucídides e o (re)acerto do fato da tirania de Hípias: alcance e limites dos indiciamentos

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Similarmente o dá a entender Luciano listando o acúmulo de virtudes recla-madas por que se almeje escrever história excelente.146 Ser historiador requer tanto pessoa provida de complexo de virtudes excepcional por domínio absoluto de paixões, (res)sentimentos e (des)afetos, quanto indivíduo cuja situação no mundo pode mais propriamente ser dita inexistencial, pois intriga pertinência a um lugar, dito a-polis, que antes o desvincula do mundo humano147, situa-o fora porque acima dele, sobrepairando as histórias de seus acontecimentos, como o olhar de Zeus. Ideal que, pois, confi gura persona de qualifi cação divina, na me-dida em que se concebe sua ideia por atributos defi nidos por negação de modos e aspectos inerentemente humanos.

No horizonte de historicidade do pensamento antigo, a categoria do heroico responde por essa (con)fusão de humano com divino porque ganha inteligibili-dade a projeção de tal persona de historiador ideal. Nesse sentido, a distinção de dignidade historiográfi ca fi gurada por Tucídides aproxima-o propriamente da excelência de arte discursiva que tem por nome conceitual em Homero: Nes-tor. Especialmente na cena da querela entre Agamêmnon e Aquiles, a fi gura do venerando conselheiro atua particularmente em função judicante, pois discerne a decisão que acerta a dialética das (des)razões de duas partes em confl ito. Si-milarmente a como também o poeta memoriza na cena do escudo de Aquiles, conselheiro vale por histor.148

Na intriga dessas heranças entre epopeia e história, o historiador então fi guraria, correspondentemente a Nestor, apreciado como conselheiro cuja nar-rativa dos fatos acontecidos, assim acertados univocamente a superar a dialética

investigativos da verdade. Phaos, 6, 2006, p. 70-72; MURARI PIRES, Francisco. Tucídides: a Retórica do Método, a Figura de Autoridade e os Desvios da Memória. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (Res)Sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. São Paulo: Editora Unicamp, 2009, p. 98-101; MURARI PIRES, Francisco. Antigos e Modernos, o Fardo e o Fio. Revista de História, número especial “Antigos, Modernos, Selvagens”, 2010, p. 9-18; MURARI PIRES, Francisco. Machiavel et Thucydide: le(s) regard(s) de l’histoire et les figurations de l’historien. Cahiers de Études Anciennes, 47, 2010, Tome 2, p. 274-276.

146 Luciano, Como escrever história 41 (François Hartog, A História de Homero a Agostinho. Belo Horizonte, 2001, p. 224-231). Considerem-se ainda mais estas duas passagens: “Sobretudo, que seu pensamento se torne semelhante a um espelho impoluto, brilhante, preciso quanto a seu centro - e, qualquer que seja a forma dos fatos que recebe, assim os mostre, sem nenhuma distorção, diferença de cor ou alteração de aspecto”; “(...) de modo que se diga de ti: Aquele era seguramente um homem livre e totalmente franco, nada bajulador, nada de servil, mas verdadeiro em tudo”. Luciano, Como escrever história 50 e 61.

147 “ou animal (escravo) ou deus”, disse Aristóteles. Política, I.1253a.148 Confiram-se nossos comentários nos artigos referidos à nota 145 em que procuramos aproximar

as figurações (ditas) “metodológicas” da escrita da história tucidideana justamente das corres-pondentes figurações de atuação judicante do histor arcaico.

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confl itante dos relatos parciais e comprometidos que os relataram, responde pelo discurso sapiencial que reitera os preceitos da ordem política por singulares modos nestorianos de saber historiante, assim heroicizante.149

Na terceira edição de seu tratado Iconologia (Roma, 1603), Cesare Ripa defi ne a fi gura de Clio pela conjugação de três ícones nucleares porque se a represente imageticamente: uma coroa de louros à cabeça, uma trombeta segura pela mão direita e um livro pela esquerda, em que se registram os feitos dos homens, passados e presentes, assinalando, pois, a História, atributo dessa Musa. Mas ícone este que comporta uma precisão: o livro, é de Tucídides, por nome nele inscrito.150 A razão de tal privilégio onomástico com que se honre condignamente a história: porque Tucídides, Historiador famoso.151

Praticamente contemporânea dessa fi guração de uma Clio tucidideana por Cesare Ripa, La Popelinière fi rma, na Histoire des Histoires (Paris, 1599), simi-larmente a fama maior de Tucídides, então o intitulando Príncipe da História.152 Três décadas antes (1566), Jean Bodin também proclamara, no Methodus, que não Heródoto, mas sim Tucídides, devesse ser tido por o mais verdadeiro Pai da História.153 Três décadas depois (1629), Thomas Hobbes, em sua tradução de Tucídides, consagra fórmula de similar fama historiográfi ca, mas já por teores refl exivos mais precisamente direcionados: Tucídides, “the most politick his-torian who ever writ”.154 Por todas essas celebrações da memória de Tucídides enquanto ideal ou modelo historiográfi co, ela assim comparace em fi guração de sabedoria ajuizante, similar à heroicidade nestoriana, que resolve os confl itos e divergências porque situada acima dos partidos e facções.

Por tais projeções de excelência historiográfi ca porque o nome de Tucídi-des emblematize a escrita da história do século XVI para o XVII, a persona do

149 Para esta caracterização da figura de heroicidade com que o historiador recomenda sua obra, vejam-se os artigos citados à nota 145.

150 “Rappresentaremo Clio donzella con una ghirlanda di lauro, che con la destra mano tenghi una tromba et con la sinistra un libro che di fuora sia scritto Tucidides”. RIPA, Cesare. Iconologia, Roma, 1603, disponível em: Biblioteca Virtuale On-Line; http://bivio.signum.sns.it/.

151 “Si dipinge con il libro Tucidides, percioché attribuendosi a questa Musa l’historia, dicendo Virg. in opusc. de Musis: Clio gesta canens transacti tempora reddit. Convien che ciò si dimostri con l’opere di famoso Historico, qual fu il detto Tucidide”. Idem, Ibidem.

152 LA POPELINIÈRE. L’ Histoire des Histoires. L’Idée de l’Histoire Accomplie. Paris: Fayard, deux tomes, 1989, p. 143.

153 BODIN, Jean. Method for the Easy Comprehension of History. Translated by Beatrice Reynolds, New York: W.W. Norton & Company, 1969, p. 298.

154 HOBBES, Thomas. Hobbes’s Thucydides. Edited with an introduction by Richard Schlatter, New Brunswick: Rutgers University Press, 1975, p. 7.

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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.

historiador é apreciada por enredamentos de intrigas agonísticas com seus pares antigos. Por uma delas, que avança de La Popelinière a Hobbes, subjaz um agón com Tácito, ou mais precisamente com o tacitismo, avatar de maquiavelismo de fi ns do XVI. Por outra intriga agonística, agora de Tucídides com Heródoto, remonta-se de La Popelinière a Bodin, por meados do século. E, por Bodin, com as intrigas dessa agonística pondo em paralelo Tucídides e Políbio, o diálogo remonta a Maquiavel.

Por tais diálogos de modernos e antigos, a identidade da história ao longo do século XVI para inícios do XVII (de Maquiavel a Hobbes), ao instaurar a exemplaridade tucidideana de sua escrita155, transita os modos de seu saber dos domínios da arte retórica para os da ciência política. Em tempos inaugurais da modernidade, pelo que assim diz Maquiavel ou pelo que similarmente imagina Bruegel em Paisagem com a queda de Ícaro156, refi gura-se o heroico herdado do imaginário da Antiguidade Clássica. Por tais jogos retóricos situando nexos fi gurativos entre humano e divino, querer e poder, retomados dos antigos por-que os modernos refl etem sobre os dilemas da escrita da história, indecide-se o nexo conceitual que, dizendo da excelência superlativa do historiador, ordena a epistemologia da, ou arte, ou ciência do discurso historiográfi co, assim vacilante no trânsito entre sua apreensão pelo evanescente conceito antigo do heroico e o moderno do gênio então apenas fl orescente.157

155 Para o primeiro parâmetro (Maquiavel, inícios do XVI), confiram-se os argumentos por nós de-senvolvidos no artigo publicado em Cahiers des Études Anciennes. Machiavel et Thucydide: Le(s) regard(s) de l’histoire et les figurations de l’historien (op. cit., p. 263-281), também publicado no número especial Antigos, Modernos, Selvagens, da Revista de História (op.cit., p. 51-67). Para o segundo parâmtero (La Popelinière, fins do XVI), confiram-se as análises por nós elaboradas em MURARI PIRES, Francisco. La Popelinière et la Clio thucydidéenne: quelques propositions pour (re)penser un dialogue entre L’idée d’histoire accomplie et le ktema es aei. In: Ombres de Thucydide. La réception de l’historien depuis l’Antiquité jusqu’au début du XXe siècle. Textes réunis par Valérie Fromentin; Sophie Gotteland; Pascal Payen, Bordeaux-Paris: Diffusion De Boccard, 2010, p. 665-678.

156 MURARI PIRES, Francisco. A morte do herói(co). In: ROSENFIELD, Kathrin H. Filosofia e Literatura: o trágico. Filosofia e Política. III.1, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 102-114.

157 A questão é abordada especialmente por BRANN, Noel L. The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance. Leyden, 2002, p. 50. Confiram-se igualmente: os estudos de Gior-gio Tonelli no Dictionnary of the History of Ideas (Genius. From the Renaissance to 1770, v. 2, p. 293-297); de Rudolf Wittkower no Dictionnary of the History of Ideas (Genius. Individualism in Arts and Artists, v. 2, p. 304-307); de Rudolf and Margot Wittkower, Born under Saturn, New York, 1969; e de Raymond Klibansky, Erwin Panofsky et Fritz Saxl, Saturne et la Mélancholie, Paris, 1989.

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108 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012

Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.

Com o conceito de gênio bem fi rmado entre fi ns do século XVIII e inícios do XIX158, a moderna concepção “científi ca” de história inaugurada por Niebuhr e Ranke atualiza esse diálogo epistemológico porque o deslocamento da fi gura (antiga) do “herói” dê lugar, nos horizontes de suas respectivas sensibilidades de pietismo religioso159, à fi gura (moderna) do “gênio”160 enquanto parâmetro con-ceitual que catalisa a apreciação da excelência da práxis historiográfi ca. Por tais historicizadas fi gurações conceituais, articula-se a ideia ajuizadora da vocação do historiador consoante a ambígua afi nidade versus distância porque se representem as limitações da condição humana face ao caráter sublime da projeção divina.

Recebido: 26/10/2010 – Aprovado: 03/06/2011

158 Rudolf and Margot Wittikower, Born under Saturn, op. cit.159 Vejam-se, neste sentido, os comentários de Georg Iggers, op. cit., p. 76-80.160 Nos termos com que o “jovem Ranke” (Lutero e l’idea di Storia Universale, p. 172-173) con-

cebe a figura do “gênio” histórico em suas reflexões dos anos 1816-1817 (“o verdadeiramente grande”, “fiel à tendência da época em consonância com o gênio”, manifestação e atuação da “ideia divina” porque se define seu destino “grandioso”, desde que “purificado do egoísmo” que antes o “cegasse” de modo a “ignorar ou desprezar” tal finalidade sublime, causa de sua “ruína”), tem-se conglomerado de nexos conceituais que guarda correspondência com condizente discurso porque os Antigos conceitualizaram a figura do herói especialmente apreciada em sua dimensão “hibrística” de desfecho trágico.

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109Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO NA IDADE MÉDIA: INTELECTUAIS MEDIEVAIS

E HISTORIOGRAFIA*

Terezinha OliveiraUniversidade Estadual de Maringá

RESUMONeste artigo analisaremos o conceito e a atividade ‘trabalho’ no Ocidente medieval. Trata-se de um tema demasiado amplo e, por isso, corremos o risco de generalizar a ponto de não apreendermos seu signifi cado, ou, então, fazer um recorte singular que não possibilite apreender o processo em sua inteireza. Atentos a esses dois problemas, consideraremos o trabalho levando em consideração as diferentes formas que este assumiu nesta época.

PALAVRAS-CHAVEintelectuais • historiografi a • trabalho.

Contato:Rua Marechal Floriano Peixoto, 436, apto. 40187030-030 – Maringá – PRE-mail: [email protected]

* Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/PQII

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110 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012

CONSIDERATIONS ABOUT LABOR IN THE MIDDLE AGES: MEDIEVAL SCHOLARS

AND HISTORIOGRAPHY

Terezinha OliveiraUniversidade Estadual de Maringá

AbstractIn this article we shall analyze the concept of “labor” and of “labor activity” in the medieval western world. As this is a very broad subject, generalizing it involves the risk of not grasping its meaning, or of making otherwire a so singular clipping that grasping the whole process becomes diffi cult. Being aware of these two problems, we shall consider “labor” in the different forms it assumed at this age.

Keywordsscholars • historiography • labor

Contact:Rua Marechal Floriano Peixoto, 436, apto. 40187030-030 – Maringá – PR E-mail: [email protected]

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111Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012

Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.

O objetivo deste texto é analisar o conceito e a atividade ‘trabalho’ no Oci-dente medieval. Evidentemente, trata-se de um tema demasiado amplo e, por isso, corremos o risco de, com a intenção de compreendê-lo em todos os seus aspectos, generalizar a ponto de não apreendermos seu signifi cado para a época em tela. Ou, então, cair no extremo oposto, fazendo um recorte excessivamente singular que não possibilite apreender a organização de nenhuma forma do traba-lho. Atentos a esses dois problemas, destacamos que consideraremos o trabalho da mesma maneira que concebemos o homem medieval, ou seja, que não há um único homem para os dez séculos que sinalizam esta época, mas, diferentes ho-mens medievais. Da mesma forma, existiram diferentes modalidades do trabalho.

As vicissitudes sociais no medievo ocidental foram tão intensas que, em al-guns séculos, não se pode supor que os homens (relações sociais) que o iniciaram são idênticos aos da sua segunda metade. Como exemplos podem ser mencionados os séculos V e VI, por ocasião das incursões nômades; os séculos X e XI, quan-do da formação do sistema feudal, ou, ainda, os séculos XIII e XIV, momento em que verifi camos a organização das cidades, das corporações de ofício, das Universidades e quando são dados os primeiros passos para a constituição dos estados modernos. As mudanças ocorridas nestes séculos foram tão profundas que, ainda que os homens e, por conseguinte, suas relações continuassem me-dievais não eram mais os mesmos homens. Isso também pode ser verifi cado no que diz respeito ao trabalho.

Em geral, encontramos obras na historiografi a que consideram o trabalho camponês como a forma própria do trabalho medieval; outras consideram o comércio como a atividade central no Ocidente; outras, ainda, entendem que o trabalho do artesão era aquele que melhor caracterizava o trabalho no medievo. Nossa intenção não é, contudo, debater essas diferentes concepções, mas chamar a atenção para a permanência e concomitância dessas diversas atividades ao longo desta época. Além disso, queremos destacar outra modalidade de trabalho que existiu durante os séculos do medievo, mas que, nem sempre, é valorizada pela historiografi a. Trata-se do trabalho intelectual, muitas vezes preterido em favor do trabalho manual. A valorização de um ideário mental do homem medieval na História constitui um fato marcante a partir da Nova História, em meados da década de 1970, ao menos em termos de Brasil. Temos, então, uma valorização da mentalidade medieval, da espiritualidade, particularmente no interior da História Social, História das Mentalidades, História das Religiões, dentre outras tendências. Ainda assim, nem sempre encontramos nelas um destaque signifi ca-tivo para o trabalho intelectual.

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112 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012

Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.

A nosso ver, reside nesse ponto um dos maiores problemas para se tratar do conceito de trabalho na Idade Média ocidental. De um lado, encontramos estudiosos que, seguramente, herdeiros de uma concepção marxiana da História, consideram o trabalho ‘material’ como o único produtor e condutor dos homens e de suas relações sociais. De outro, deparamo-nos com tendências que, no afã de opor-se a uma perspectiva materialista de história, valorizam as ideias a ponto de retirar de cena o ato/agir cotidiano dos homens. Em nossa opinião, são concepções extremadas que não nos permitem compreender a própria natureza humana que, como Tomás de Aquino já afi rmara em sua Suma de Teologia no século XIII, é constituída pelo intelecto e pela matéria. Assim, trabalho material e trabalho intelectual são partes integrantes da atividade humana. Somente a partir dessa concepção poderemos compreender o homem em sua totalidade. Por conseguinte, é dessa perspectiva que consideraremos o trabalho medieval, material e intelectual.

Alertamos o leitor, portanto, que consideraremos o trabalho medieval a partir de dois enfoques que se complementam: primeiro, a concepção de homem sus-citada pelas refl exões de Tomás de Aquino; segundo, a sugerida por três autores de épocas distintas, mas que, indubitavelmente, são autoridades no campo da História: Políbios (203 a.C. – 120 a.C.), François Guizot (1787 – 1874) e Marc Bloch (1888 – 1944). Principiaremos por Políbios, buscando aprender um pouco do fazer História.

De fato, quem espera, examinando Histórias parciais, adquirir uma visão correta da História em seu conjunto está, segundo me parece, na situação de alguém que, depois de ter visto os membros esparsos de um animal antes vivo e belo, imagina haver contemplado exatamente o próprio animal cheio de energia e na plenitude de sua beleza; se alguém pudesse reconstituir instantaneamente este animal, restaurando-lhe a forma e a graça de criatura viva, e então o mos-trasse à mesma pessoa, na minha opinião, esta confessaria prontamente que antes estava muito longe da verdade e se assemelhava mais a alguém que sonhasse. Podemos de fato fazer uma ideia do todo vendo uma parte, mas nunca chegar ao conhecimento e à opiniões exatas. As Histórias parciais, portanto, contribuem muito pouco para o conhecimento do todo e para formar uma convicção quanto à sua veracidade; somente pelo estudo de todas as particularidades, semelhanças e diferenças fi camos capacitados a fazer uma apreciação geral, e assim tirar ao mesmo tempo proveito e prazer da História.1

1 POLÍBIOS. História. Brasília: UnB, 1985, p. 43-44.

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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.

A analogia do autor, comparando os acontecimentos humanos com o corpo de um animal esquartejado, é simbólica, mas, de grande profundidade. Afi nal, se não conhecemos o todo do animal e considerarmos somente seus membros separadamente, poderemos até imaginar como ele era quando vivo e inteiro, mas, isso é somente uma imagem, não o real em sua totalidade. Do seu ponto de vista, o mesmo ocorria com a História, se conhecermos somente partes de um acontecimento, e não construirmos o todo. Desse modo, não conhecemos a história, mas apenas partes de uma dada época.

A concepção de história de Guizot – professor de história moderna da Sor-bonne no século XIX, depois político da Restauração – não é, pelo menos na sua essência, diferente da maneira de Políbios concebê-la. No Terceiro Ensaio da obra Essais sur l’Histoire de France, ao tratar das razões que provocaram a queda dos merovíngios e dos carolíngios, destacou:

As causas das revoluções são sempre mais gerais do que se supõe; o espírito mais penetrante e mais vasto não o é nunca o sufi ciente para perceber desde a primeira origem e as abarcar em toda a sua extensão. E não falo aqui deste encadeamento necessário dos acontecimentos que faz com que eles nasçam constantemente uns dos outros, e que, o primeiro dia traz em seu seio o futuro inteiro. Independentemente deste laço eterno e universal de todos os fatos, é verdadeiro dizer que essas grandes vicissitudes das sociedades humanas que denominamos de revoluções, o deslocamento dos poderes sociais, a subversão das formas de governo, a queda das dinastias, datam de mais distante do que diz a história, e provêm de causas bem menos especiais do que aquela que se lhe atribui comumente. Em outras palavras, os acontecimentos são maiores do que sabem os homens, e aqueles mesmos que parecem a obra de um acidente, de um indivíduo, de interesses particulares ou que qualquer circunstância exterior, têm fontes bem mais profundas e de outro alcance.2

As palavras de Guizot nos apontam para os acontecimentos históricos de uma perspectiva de longa duração. Do seu ponto de vista, um dado acontecimento não decorre de atos súbitos e imediatos, mas, em geral, teve seu início muito tempo antes de sua eclosão. Logo, a história não poderia ser compreendida se levarmos em conta apenas a curta duração. Para o autor, os acontecimentos novos sempre trazem em seu bojo elementos das antigas relações que o fi zeram nascer. Dentro deste princípio existiria o velho no novo e a possibilidade de germes do novo nas relações sociais maduras e consolidadas. Apreende-se, dessa forma de conceber a história em Políbios e em Guizot, que nos processos de rupturas há também

2 GUIZOT, François. III Essai. Des causes de la chute des Mérovingiens et des Carlovingiens. In: Idem. Essai sur l’Histoire de França. Paris: Bonaventure et Ducessois, 1857, p. 57.

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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.

permanências. É nesse movimento de permanências e rupturas que as relações sociais e as instituições são construídas pela e na história.

A lição que retiramos desses dois autores permite-nos refl etir acerca de uma questão muito presente na historiografi a do século XX e que permanece nos dias atuais: pensar os processos históricos a partir de rupturas, ou seja, existiria sempre um novo brotando e colocando por terra o passado e, deste passado, nada deveria ser preservado. Na verdade, esta visão da história torna-se um impeditivo para se entender e construir a própria história, na medida em que perdemos sua essência: um movimento feito de mudanças e de continuidades.

Considerando da perspectiva da concepção fundada na ideia de rupturas completas, a Idade Média nos fornece pelo menos dois exemplos notáveis. O primeiro diz respeito ao nascimento da Idade Média. Comumente se considera que, por ocasião da dissolução das instituições romanas e das incursões nômades, os homens do Ocidente latino caíram em uma obscuridade intensa uma vez que a cultura, a civilização, as leis romanas teriam sucumbido junto com o Império. Todavia, isso não se verifi cou. Ao contrário, foram preservados os costumes, leis, política e saberes do mundo greco-latino. Essa preservação foi, inclusive, condição da manutenção dos homens e um elemento essencial para a constitui-ção das novas relações sociais. Nesse sentido, devemos destacar que a principal instituição medieval da Alta Idade Média nasceu precisamente das entranhas do mundo romano: a Igreja Católica.

O segundo exemplo localiza-se na passagem da Baixa Idade Média para o mundo moderno. Supôs-se, frequentemente, que a ruptura entre essas duas épocas históricas foi radical. Isto se deve ao fato de a historiografi a apoiar-se, de um modo geral, no olhar dos humanistas e renascentistas. Mas, trata-se de um olhar enviesado destes autores, porque alguns – como Erasmo, Morus, Francis Bacon – não destruíram por completo o mundo medievo. Por outro lado, conservaram um dos aspectos mais essenciais desse tempo, que era o espírito de religiosidade. Inclusive, deve-se notar, foi a partir desse espírito que fi zeram formulações basila-res para as novas relações sociais. Evidentemente combateram, incansavelmente, as instituições do medievo, especialmente a Igreja, pois, esta se constituía em obstáculo à nova ordem nascente: a Modernidade. No entanto, conservaram parte de sua mentalidade, ou seja, a concepção cristã de homem. Cabe mesmo salientar que, sob este aspecto, os autores da modernidade não foram os iniciadores dessa luta. No passado (no século XIII, Tomás de Aquino e João de Quidort; Dante, na virada do XIII; no XIV, Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham), encontramos autores que explicitaram em seus escritos, uns com mais intensidade, outros com

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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.

menos, a crítica à Igreja, particularmente, em relação ao fato de ela ser governante. Logo, os autores do XVI e XVII prosseguem, com um olhar novo, um debate já colocado na ordem do dia pelo menos quatro séculos antes.

Desse modo, o que podemos observar em Políbios, Tomás de Aquino e Gui-zot é que os problemas e os debates de um tempo presente certamente tiveram seu início em outra época que não a da sua eclosão. Todavia, é neste presente que os homens, por meio de suas relações sociais, do seu agir, se posicionam e encontram, ou não, soluções para seus embates e crises.

Assim, se podemos perceber nesses autores uma preocupação ou, mesmo, um entendimento da história a partir de processos de longa duração, no qual o conhecimento do passado torna-se vital para as relações do presente, em escritos de Marc Bloch, também aprendemos que a história se faz nesse diálogo constante entre presente e passado. De acordo com Bloch, são as inquietações com e do presente que nos tornam historiadores. Na passagem a seguir, na qual o autor narra uma conversa com Pirenne, esta ideia é explicitada.

Já contei em outro lugar o episódio: eu estava acompanhando, em Estocolmo, Henri Pirenne. Mal chegamos, ele me diz: “O que vamos ver primeiro? Parece que há uma prefeitura nova em folha. Comecemos por ela”. Depois, como se quisesse prevenir um espanto acrescentou: “Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida”. Essa faculdade de apreensão do que é vivo, eis justamente, com efeito, a qualidade mestra do historiador. Não nos deixamos enganar por certa frieza de estilo, os maiores entre nós a possuíram todos: (...) E talvez ela seja, em seu princípio, um dom das fadas, que ninguém pode pretender adquirir, se não o trouxe do berço. Nem por isso ela deixa de precisar ser constantemente exercitada e desenvolvida. Como, senão, assim como o próprio Pirenne, por um contato perpétuo com o hoje?3

Para o autor, o que transforma um estudioso da história não é o fato de conhe-cer o passado, mas inquietar-se com o presente, com o vivido do cotidiano. Ser historiador é comprometer-se com os embates de seu tempo. Bloch vai além, a nosso ver, ao afi ançar que, ainda que a qualidade de historiador possa ser trazida do ‘berço’, contudo, a pessoa somente se torna, de fato, um profi ssional do ofício de historiador se desenvolver a habilidade e sensibilidade para perceber o seu ‘hoje’.

Essa formulação é fundamental ao explicitar que os historiadores não de-veriam se debruçar sobre o passado e viver dos acontecimentos antigos. Aliás,

3 BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 65-66, grifo nosso.

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evidencia isso ao afi rmar que quem gosta de ‘coisas velhas’ é o antiquário. O historiador, por seu turno, cuidaria das coisas vivas.

Por conseguinte, é este vivo cotidiano que importa para o campo da história. Todavia, esse presente é alterado a todo instante pelas atitudes e escolhas dos homens. As pessoas mudam seus hábitos e costumes. Essas transformações são próprias da natureza social. Mas, apesar disso, os homens conservam aspectos essenciais que propiciam a permanência sua e da sociedade, que o autor defi ne como ‘fundo permanente’.

Já não pensamos hoje, realmente, como o escrevia Maquiavel, como o pensava Hume ou Bonald, que há no tempo “uma coisa, pelo menos, que é imutável: o homem”. Apren-demos que também o homem mudou muito: no seu espírito e, provavelmente, até nos mais delicados mecanismos do corpo. Como poderia ser de outro modo? Transformou-se profundamente a sua atmosfera mental; e também a sua higiene, a sua alimentação. Con-vimos, todavia, em que existe na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente. Se assim não fosse, os próprios vocábulos de “homem” e de “sociedade” não signifi cariam coisa nenhuma.4

De acordo com Bloch, as ações e relações dos homens se modifi cam sempre e velozmente. Todavia, mantêm-se no tempo as noções de homem e de história e, na medida em que são conservadas, possibilitam a permanência de estreitas relações entre passado e presente, ou entre os ‘mortos e os vivos’. Para o autor, o presente é muito efêmero e não há como negar isso. Os atos que praticamos pela manhã, na metade do dia já se constituem em passado, e não podem mais ser alterados. Entretanto, sempre preservamos o passado, seja em nossos atos, seja interferindo em nosso pensamento.

Essas formulações tiveram grande repercussão, infl uenciando, inclusive, os autores da Nova História, uma concepção de História que tem grande predileção, segundo as defi nições de tempo de Braudel, pelo tempo curto. Todavia, em Bloch, a história ainda é a da longa duração, possuindo características universalizantes.

Portanto, não há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessante-mente tem necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos. Como chamá-lo? Já disse por que o antigo nome de história me parece o mais compreensivo, o menos exclusivo, o menos carregado também das comoventes lembranças de um esforço muito mais que secular: portanto, o melhor. Propondo assim estendê-lo, contrariamente a certos preconceitos, aliás muito menos velhos do que ela, até o

4 BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1969, p. 42.

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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.

conhecimento do presente, não buscamos – será preciso defender-nos? – nenhuma reivindicação corporativa.

A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito longos para permitir, até para o mais belo gênio, uma experiência total da humanidade. O mundo atual terá sempre seus especialistas, como a idade da pedra ou a egiptologia. A ambos pede-se simplesmente para se lembrarem de que compreenderá nada senão pela metade, mesmo em seu próprio campo de estudos; e a única história verdadeira, que só pode ser feita através de ajuda mútua, é a historia universal.5

Há que se considerar, todavia, na passagem, uma mudança entre o olhar de Bloch e o dos autores anteriormente mencionados. Nele, a universalização da história pressupunha o diálogo com diversos campos do conhecimento, como a geografi a e a antropologia. Sob este aspecto, ele inaugura um tempo novo da história, dentre outras razões porque as mudanças sociais ocorridas no Ociden-te, após a primeira guerra mundial, não permitiram mais uma compreensão da história como os autores do século XIX, dentre eles Guizot, a concebiam. Os tempos eram outros e as posições diante dos problemas sociais exigiam novos olhares. Todavia, uma questão não pode ser ignorada: Bloch foi um autor da transição entre a antiga concepção de história e a nova, que estava nascendo. Sob esse aspecto, foi o liame entre as duas grandes tendências históricas dos séculos XIX e XX. Assim, não podemos afi rmar que ele é o novo, mas, também, não podemos dizer que é o velho. Seus escritos espelharam precisamente o seu tempo, um momento em que se deixava de praticar uma concepção totalizante e universalizante da história, abrindo caminho para uma nova, dominada pelo ‘presentismo’. O próprio Bloch explicitou isso.

(...) nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquelas em que vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: “Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito.6

A questão que se coloca nesta passagem é o indicador dos novos horizon-tes para a história. Para Bloch, nunca poderemos compreender completamente um acontecimento passado porque não vivenciamos o processo. Com efeito, o

5 BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, ..., op. cit., p. 67-68.6 BLOCH, Marc. Apologia da História, ou,..., op.cit., p. 60.

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episódio foi vivenciado por outros homens, com outras inquietações, por conse-guinte, distintas das nossas. Todavia, o autor também nos chamou a atenção para o fato de que os acontecimentos do presente não poderiam ser conhecidos na sua totalidade em virtude de os mesmos não estarem ainda concluídos. Contudo, ele nos aponta um caminho extremamente salutar para o ‘fazer’ da história, que é procurar conhecer, o máximo possível, o tempo vivido do acontecimento, na medida em que é dessa maneira que poderemos chegar ao conhecimento. Exa-tamente por isso indicava que conheceremos mais acerca de um tempo histórico se soubermos como os homens se relacionavam do que se soubermos a árvore genealógica do acontecimento em si.

Baseando-nos nas refl exões desses historiadores, teceremos algumas conside-rações sobre o trabalho material e intelectual em dois tempos medievos, quando de seu nascimento e quando do amadurecimento das cidades nos séculos XII e XIII.

Os poucos registros que temos sobre o trabalho na primeira Idade Média tratam diretamente das atividades no campo. Um dos historiadores do século XX que analisou o trabalho desse período foi George Duby, em duas obras clássicas: Guerreiros e Camponeses e Economia rural e vida no campo no Ocidente me-dieval. Nelas, o historiador explicitou a forma rústica e, em diversos aspectos, o domínio da natureza sobre o homem.

Um primeiro facto, bem assente: na civilização deste tempo, o campo é tudo. Vastas regiões, a Inglaterra e quase toda a Germânia, não têm uma única cidade. Mas existem noutras regiões: antigas cidades romanas, menos profundamente degradadas no sul do Ocidente, ou então pequenos burgos de comércio muito recente, acabados de nascer ao longo dos rios, que correm para os mares do Norte. Salvo algumas excepções lombardas, estas “cidades” parecem todas elas aglomerações irrisórias, que reúnem no máximo algumas centenas de habitantes permanentes e vivem profundamente ligadas ao campo. Na verdade, nem sequer se distinguem dele. Estão cercadas por vinhas, interpenetradas com os campos; cheias de animais, celeiros e rapazes nos trabalhos da terra. Todos os homens, mesmo os mais ricos, os bispos, os próprios reis, e os raros especialistas, judeus ou cristãos, que nas cidades exercem o ofício do comércio a longa distância, todos eles permanecem rurais, e sua existência é ritmada pelo ciclo das estações agrícolas, a sua subsistência depende da terra-mãe, dela retirando no imediato todos os recursos.7

7 DUBY, George. Economia rural e vida no campo no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 19-20.

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A passagem de Duby explicita que a vida, no início da Idade Média, trans-corria no campo e era daí que o homem retirava sua subsistência. As poucas cidades que permaneceram e as atividades nelas desenvolvidas somente existiam devido ao campo. Mais adiante, o historiador nos chama a atenção para o caráter rústico da vida nessa época, na medida em que as atividades eram limitadas e dependiam dos ciclos da natureza.

Mal equipados, os homens consagravam todas as forças à produção da sua própria ali-mentação; o gado grosso vinha depois. Colhiam um pouco de folhagem, mas bem pouco, o estritamente necessário para a subsistência, melhor ou pior, dos poucos animais que não tinham sido mortos no Outono, durante os meses maus em que a natureza virgem pouco oferece para o alimento dos animais. Mas na maior parte do ano, o gado alimenta-se sozinho, ao ar livre, no espaço não vedado pelas cercas. (...) Eram, pois, necessários vastos campos de pousio. E sentimos novamente porque razão cada aldeia, cada família, tinha necessidade de uma área de subsistência muito extensa, que devia incluir, além de imensas terras de pasto, um espaço arável muito superior à superfície utilizada em cada ano. Finalmente, apesar destes longos repousos, os rendimentos continuavam a ser certamente muito fracos.8

O quadro esboçado por Duby nos descreve com clareza a situação do cam-ponês: a vida era dependente diretamente do ciclo da natureza. A agricultura era de cunho familiar e a produção, em virtude dos poucos instrumentos, se restrin-gia quase à subsistência. Mesmo a criação de animais era limitada àqueles que sobrevivessem às intempéries da natureza.

Em outra obra que tratou também da primeira Idade Média, Guerreiros e Camponeses, Duby chamou a atenção para o nível tecnológico dos instrumentos de trabalho.

Como poderemos identifi car os objectos, a sua forma, o material de que eram feitos e seu grau de utilidade através destes nomes? Que informação podemos colher de palavras como aratrum, carruca, que são mencionados aqui e além, em todos os documentos escritos, sempre lacônicos, que procuram descrever o trabalho no campo naquela época? Estes dois termos, sem dúvida permutáveis, indicam simplesmente um instrumento puxado por uma parelha e usado para arar. O primeiro termo era preferido pelos escrivães mais cultos, porque provinha do vocabulário clássico; o segundo traduzia mais literalmente a linguagem popular. O termo carruca pode fazer pensar que este instrumento estava provido de rodas, mas não existe comentário que nos permita verifi car qual a acção da sua relha ou se se tornava mais efi ciente pela atrelagem de uma aiveca, isto é, se o lavrador dispunha de um verdadeiro arado, com capacidade de

8 Idem, Ibidem, p. 42-43.

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revolver e arejar completamente o solo, ou se simplesmente possuía um arado, cuja relha simétrica apenas podia abrir o sulco sem virar o torrão.9

A situação dos instrumentos técnicos não apresentava um quadro diferente do estado de sobrevivência no qual viviam os camponeses. Nem poderia ser diferente, pois a forma de vida decorria, necessariamente, do grau de civilidade atingido por esta população que estabelecia uma relação de interdependência com os instrumentos de trabalho. A descrição feita por Duby do que seria o possível arado e a charrua revela o caráter primitivo destes. Inclusive, sequer se sabe se existia a possibilidade de serem atrelados a bois ou cavalos, tal o grau limitado dos instrumentos e a fragilidade das fontes, segundo o próprio autor narrou.

Nesta mesma condição encontravam-se os utensílios domésticos.

Utensílios (utensilia): duas bacias de cobre, dois vasos de beber, dois caldeirões de cobre e outro de ferro, uma panela, um gancho de panela, um cão de chaminé, uma candeia, dois machados, uma enxó, dois verrumões, uma machadinha, um raspador, uma plaina, um formão, duas foices grandes, duas foices pequenas, duas pás com ponta de ferro. Há muitos utensílios de madeira.10

De acordo com a descrição do autor, os camponeses da primeira Idade Média viviam parcamente sob as intempéries da natureza, com rudimentares utensílios e poucos instrumentos de trabalho. Em última instância, a vida material da população, em geral, era muito simples, fosse ela a dos camponeses ou dos ricos, cristãos ou judeus. Todos tinham uma vida muito restrita. Dependiam da natureza e, por isso mesmo, dependiam uns dos outros, não podendo viver de maneira isolada. Habitavam aldeias ou pequenas comunidades, pois, os riscos das incursões de outros povos, de ataques de animais e a pobreza eminente e constante impunham relações de dependência mútua.

Se no âmbito da materialidade as condições eram frágeis e rudimentares, como nos relatou Duby, no campo da vida espiritual a realidade não era diferente. Contudo, nem por isso deixou de existir e, neste sentido, a religião cristã teve um papel fundamental.11

Sob esse aspecto, deve-se destacar a importância dos mosteiros na preservação e divulgação da cultura nessa época. Segundo Ullmann, caso não tivessem existido,

9 DUBY, George. Guerreiros e Camponeses. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 25-26.10 Idem, Ibidem, p. 27.11 Em nossa tese de doutorado analisamos, com vagar, o papel do cristianismo e da Igreja na organi-

zação da civilidade ocidental neste tempo. O título da tese é Guizot e a Idade Média: civilização

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muitas obras da Antiguidade teriam desaparecido. “Salvaram-se, assim, muitas obras, que, sem o labor persistente dos monges, para sempre teriam desaparecido. Graças a eles, sobreviveram as humanidades clássicas”.12 As palavras de nosso fi lósofo apresentam uma situação que é expressa, em geral, nos documentos da época. Cassiodoro (485 – 580), em suas Instituições13, descreveu a importância dos monges e dos mosteiros para a preservação e disseminação da cultura nesse tempo do medievo.

Quanto a mim, eu vos manifesto minha predileção: entre as tarefas que podeis realizar com esforço corporal, a dedicação dos copistas, se escrevem sem erros, é – e talvez não injustamente – o que mais me agrada. Pois, relendo as Escrituras divinas, instruem de modo salutar sua mente e copiando espalham por toda parte os preceitos do Senhor.14

De acordo com Cassiodoro, uma das mais importantes atividades laborais dos monges era o trabalho de copista, pois mantinha suas mentes sãs e, ao mesmo tempo, difundia as palavras da Sagrada Escritura.

Em um tempo em que a vida material dependia totalmente da natureza, como vimos anteriormente, o estabelecimento de uma atividade cujo fi to era a preservação da memória dos homens de outros tempos implicava na existência, ainda que de forma precária, de homens que se preocupavam com o saber, com a escrita, que pautavam suas vidas pela intenção de preservar a cultura e a ci-vilização. Em última instância, os homens do Ocidente medievo, por meio do trabalho de seus copistas, conservavam o espírito de humanitas produzido no passado.15 “(...) o pregar aos homens com a mão, abrir línguas com os dedos, dar em silêncio salvação aos mortais e – com a cana e a tinta – lutar contra as ilícitas insinuações do diabo”.16 As palavras de Cassiodoro dizem tudo sobre a

e lutas políticas. Departamento de história da UNESP, 1997.12 ULLMANN, Reinholdo Aloysio. As Universidades na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs,

2000, p. 37.13 As referências e citações que faremos neste texto foram retiradas da introdução e tradução feita

pelo professor Jean Lauand em Cassiodoro e as Institutiones: o trabalho do copista.14 CASSIODORO. Instituições. Capítulo 30. In: LAUAND, Jean Luiz. Cassiodoro e as Institutiones:

o trabalho dos copistas. Disponível em: http://www.hottopos.com. Acesso em: 18/09/2008.15 As palavras de Kant não nos deixam dúvidas quanto à importância da escrita e de quanto de

civilidade ela possui em si. “Não é fácil conceber um desenvolvimento, partindo do estado rude (daí também a dificuldade de formar uma ideia do primeiro homem); e vemos que, sempre que se partiu deste estado, o homem sempre recaiu na rudeza e novamente se levantou a partir daí. Até nos povos bastante civilizados reencontramos ausência de limites para a rudeza, o que é atestado pelos mais antigos monumentos escritos, que nos foram legados – e que grau de cultura a escrita já não supõe?” KANT, 1996, p. 21.

16 CASSIODORO, op. cit.

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importância da atividade dos copistas. O copista, sem sair do seu mosteiro, mui-tas vezes de sua cela, infundia e difundia a palavra sagrada. Aliás, é importante destacar, tendo feito o voto de silêncio, difundia-a apenas com a mão e a tinta. Com efeito, o silêncio era uma das características solicitadas e prezadas pelos monges, portanto, a escrita era, praticamente, a única forma de comunicação.

(...) Os povos ouvem e podem renunciar à sua vontade perversa e servir o Senhor com mente pura. Com seu trabalho, ele age, mesmo estando ausente.(...) Muitas coisas podem se dizer desta tão ilustre arte, mas basta chamá-los de livreiros [librarios], que se consagram à libra [balança] da justiça do Senhor.17

A atividade do copista resultou, com seu trabalho, em um bem para os ho-mens. Preservou a cultura antiga, especialmente os escritos sagrados, mas não se restringiu a isso. Difundiu o cristianismo, conservando a arte da escrita, já conquistada pelos homens há muitos séculos e desenvolveu, segundo Cassiodo-ro, uma arte nova, dentro daquele contexto de crise e de submissão à natureza no campo material, a dos livreiros. Esta nova arte, por seu turno, encontra-se vinculada ao campo espiritual.

Na primeira Idade Média é possível destacar, no âmbito do trabalho material e intelectual, estes aspectos e condições; nos séculos XII e XIII, o destaque é outro. Trata-se de um cenário distinto, especialmente em regiões como a Gália, a Bretanha e as Penínsulas Ibérica e Itálica. Nesses locais, o desenvolvimento do sistema feudal impulsionou a vida material e mental do homem medieval de forma bastante diversa daquela atestada no início do medievo.

Inúmeras são as obras historiográfi cas e documentos que revelam esse proces-so de desenvolvimento material e mental. Trata-se do momento do renascimento das cidades, do surgimento das escolas citadinas e, em seguida, das universidades. Personagens como o comerciante, o usurário, o mestre e a prostituta passam a fazer parte da nova lista do trabalho.

Pirenne (1982), em sua obra História Econômica e Social da Europa Medie-val18, destacou a fi gura dos artesãos, dos jornaleiros, ressaltou a importância dos mercadores no desenvolvimento de uma sociedade ocidental medieval bastante

17 CASSIODORO. op.cit.18 Sabemos, indubitavelmente, das severas críticas, muitas com fundamentação, feitas à tese de

Pirenne acerca de uma Idade Média fechada para as trocas comerciais entre os séculos VII e XII. Todavia, também, consideramos relevantes os estudos que este autor belga fez sobre a Idade Média e nos parece importante conservar seus ensinamentos no âmbito da história e historiografia direcionadas ao medievo.

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distinta daquela que a antecedeu. Um dos aspectos que julgamos relevantes para nossa análise reside no fato de que, segundo o autor, o mercador do século XII precisava saber ler e escrever.

O desenvolvimento dos instrumentos de crédito supõe necessariamente que os mercadores sabiam ler. A atividade comercial foi, sem dúvida alguma, a causa da criação das primeiras escolas para fi lhos de burgueses.19

Para dominar suas atividades, exigia-se dos comerciantes novas habilida-des, dentre elas, a escrita. Além desta, essa nova atividade no Ocidente exigia daqueles que a praticavam o conhecimento de línguas estrangeiras. Assim, ainda que o latim continuasse sendo a língua mais conhecida, tornava-se cada vez mais importante o conhecimento das línguas nacionais. Le Goff destacou, em Mercadores e Banqueiros20, do mesmo modo que Pirenne, algumas décadas depois, a importância da escrita e das línguas nacionais na prática do comércio. Sob este aspecto é importante destacar que, grosso modo, a historiografi a inglesa e francesa do século XX, e mesmo a historiografi a romântica francesa do século XIX – com Guizot, Michelet, Cousin, Mignet, Thierry –, insistiram na importân-cia das cidades, das atividades comerciais e artesanais para o desenvolvimento de novas modalidades do trabalho no Ocidente medieval a partir do século XII. Alertaram, ainda, que elas tiveram como resultado mudanças e um profundo desenvolvimento nas estruturas materiais das relações sociais nessa época e espaço social. Existe um elo que vincula essas interpretações: apontam o desen-volvimento das relações feudais como um fato importante para este processo de mudança no trabalho material.

Exemplo notável deste processo é fornecido por Peter Haidu, na obra Sujeito medieval/moderno, na qual apresenta as inovações na arquitetura militar como decorrências do desenvolvimento do sistema feudal e do amadurecimento do poder dos príncipes.

Nesta época, as transformações súbitas na arquitetura militar são revolucionárias. As conquistas territoriais, a manutenção de novas fronteiras, levaram a novas exigências. Augustus criou um corpo de engenheiros, desenvolveu uma nova arquitetura militar. Um documento lista mais de uma dúzia de homens, a maioria dos quais com o título de Ma-gister, tidos como encarregados da arquitetura de fortifi cações em regiões extremamente

19 PIRENNE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 129.

20 LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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dispersas. As inovações arquitetônicas do período são explicadas em parte pelo estudo de Vegetius, em parte pela análise das muralhas e fortifi cações clássicas. Essas construções faziam parte de uma política coerente de conquistas por etapas, ocupação de territórios conquistados e subsequente controle populacional. As políticas referentes aos castelos eram semelhantes em ambos os lados do Canal.21

A passagem de Haidu explicita um dado importante: as mudanças no campo, o renascimento das cidades e o fortalecimento dos poderes laicos propiciaram o ressurgimento de atividades e desenvolveram profi ssões que, até então, não eram necessárias à vida cotidiana dos homens medievais do Ocidente. A arte militar, uma das mais antigas praticadas pelos homens, precisava de novos ofícios, de arquitetos, de engenheiros para construir pontes, castelos, aprimorar caminhos. A exigência dessas novas profi ssões implicava um grau de complexidade nas atividades laborais muito diferente das exigidas na primeira Idade Média. Essa complexidade decorria, necessariamente, do desenvolvimento material e mental dos homens oriundos do sistema feudal e das cidades.

Mudança similar é detectada também no aspecto mental. Se no início da Idade Média o ensino, a produção intelectual e a escrita estavam restritos à ambiência do monastério – e nem poderia ser diferente em virtude das condições sociais daquele tempo –, o fl orescimento das novas relações distintas exigia também novos intelectuais, e eles surgiam22, em decorrência, inclusive, da permanência dos intelectuais palacianos e monásticos ao longo de todo o medievo.

Ainda que possamos indicar muitos mestres como exemplos desse novo modelo de homem de saber, ou intelectual, que proliferaram nessa época, des-tacaremos dois, por considerarmos expoentes signifi cativos de seus respectivos tempos históricos e ambiências. Trata-se de Hugo de São Vitor para o século XII, mestre da escola Vitorina, uma das mais importantes da cidade de Paris, e Tomás de Aquino, um dos maiores mestres da Universidade de Paris no século XIII.

Principiemos pelo mestre Vitorino e sua obra Didascálicon, cujo subtítulo é, sintomaticamente, Da arte de ler.

21 HAIDU, Peter. Sujeito Medieval/Moderno. Texto e governo na Idade Média. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2005, p. 271-272.

22 Quando mencionamos o surgimento de novos intelectuais não estamos afirmando que não havia mestres e alunos em tempos anteriores no Medievo ocidental, nossa ideia é justamente o oposto. Contudo, assistimos neste momento ao nascimento de mestres citadinos, que passam a viver e ser custeados no e pelo ensino.

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Aqueles que se dedicam ao saber teórico devem dispor de inteligência e de memória ao mesmo tempo, coisas que em qualquer estudo ou disciplina estão tão conexas que, se uma faltar, a outra não pode conduzir ninguém para a perfeição, da mesma forma que os lucros servem para nada se faltar o armazenamento e inutilmente constrói armazéns aquele que tem nada para guardar. O engenho descobre e a memória custodia a Sabedoria.23

Ao descrever as duas primeiras qualidades concernentes ao saber teórico no homem, a inteligência e a memória, e ao fazer uma analogia com a fi nalidade do armazenamento de produtos e do lucro, o mestre Vitorino revelou claramen-te que nas duas atividades – o estudo e a produção de alimentos – os homens deveriam estar municiados das habilidades necessárias e saber, com discerni-mento, a fi nalidade de suas ocupações. O homem não aprenderia se não usasse a inteligência e a memória do mesmo modo que a fi nalidade do comércio não se realizaria caso não houvesse produtos e locais de armazenamento. Hugo de São Vitor estabeleceu essa relação entre as duas atividades com naturalidade, pois as encarava como inerentes ao homem: ao homem eram necessários o trabalho intelectual e o material.

Em outra passagem estabeleceu idêntica relação entre o trabalho intelectual e o material “(...) a teoria racional da agricultura é coisa do fi lósofo, sua execução é coisa do camponês”.24 Fica patente que, para o mestre, havia a necessidade da aliança entre aquele que pensava o trabalho e aquele que o realizava. Explicitou, por isso, que quem investigava e melhorava as possibilidades da agricultura era o fi lósofo, mas quem a executava era o camponês. Hugo de São Vitor mostrou, assim, a divisão do trabalho.

Dando sequência às suas refl exões, ele destacou a importância do intelecto para o desenvolvimento do homem, por conseguinte, das suas atividades. Neste sentido, fez uma comparação importante entre os animais que não possuem capacidade cognitiva e os homens.

Não foi sem razão que, enquanto cada um dos seres animados possui por nascença as armas de sua própria natureza, somente o homem nasce sem armas e nu. Foi conveniente que a natureza provesse àqueles que não conseguem prover a si mesmos, enquanto ao homem foi reservada uma maior oportunidade de experimentar, ao ter que encontrar para si com a razão aquilo que aos outros é dado naturalmente.

23 HUGO DE SÃO VITOR. Didascálicon. Da arte de ler. Petrópolis: Zahar, 2001, L. III, c. 7, § 1.24 Idem, Ibidem, L. I, c. 4, § 2.

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Muito mais brilha a razão do homem inventando estas mesmas coisas, de quanto teria resplandecido se já as tivesse. Não sem razão o provérbio reza que: A fome engenhosa forjou todas as artes.25

A partir das palavras desse mestre citadino do século XII, fi ca-nos patente que os homens sobreviviam e desenvolviam suas habilidades e as mais diversas ativi-dades porque possuíam a possibilidade de usufruir de sua inteligência. Era ela que permitia que os homens criassem coisas, imitassem a natureza e a subordinassem, de acordo com suas necessidades. A frase destacada pelo autor é de fundamental importância, pois revela que o homem, diferentemente dos demais animais, não consegue prover suas necessidades e sobreviver se não usar da arte, ou seja, se não criar artes que satisfaçam as suas exigências, por meio do intelecto. Por conseguinte, em última instância, é o uso do intelecto que faz com que o homem crie instrumentos e ‘forje’ meios para suprir suas necessidades materiais básicas.

Em suma, o mestre Vitorino, na escola do século XII, ensinou e depositou no intelecto humano a possibilidade da criação das artes.

Para Tomás de Aquino – mestre da Universidade no século XIII, no texto Uni-dade do intelecto contra os averroistas –, por seu turno, o intelecto era o próprio homem “(...) ora, a operação própria do homem, enquanto é homem, consiste em pensar, pois é nisto que difere dos animais, e por isso é que Aristóteles deposita a última felicidade nessa operação”.26 Do seu ponto de vista, era o intelecto que fazia o homem se diferenciar dos demais animais e se aproximar da quase per-feição divina, na medida em que a alma pensava por meio do intelecto.

É de facto evidente que este homem em concreto pensa, pois nunca chegaríamos a procurar saber o que é o intelecto se não pensássemos; nem quando procuramos saber o que o intelecto é de nenhum princípio mais procuramos saber senão daquele pelo qual pensamos. Daí que Aristóteles diga: “Chamo intelecto àquilo pelo qual a alma pensa”. Portanto, Aristóteles conclui que se há um princípio primeiro pelo qual pensamos ele deve ser a forma do corpo, pois já tinha demonstrado antes que a forma é aquilo pelo qual em primeiro lugar alguma coisa age.27

Para o mestre Aquinate, as atividades humanas existiam e os homens podiam aprender e ensinar da mesma maneira que os anjos e Deus exatamente porque pensavam e faziam uso do pensar para tornar suas habilidades, que existiam

25 Idem, Ibidem, L. I, c. IX, §. 4, destaque do autor.26 TOMÁS DE AQUINO. A Unidade do Intelecto contra os Averroístas. Lisboa: Edições 70, c. III, § 77.27 Idem, Ibidem, c. III, § 61.

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enquanto potência, em ato. Era a capacidade do pensar que permitia a capacida-de cognitiva do homem dirigir sua ação para coisas justas ou injustas. Era esta possibilidade intelectiva que conduzia os homens à prudência, que possibilitava a existência de governos justos e equitativos. Para o mestre Tomás, o intelecto humano era o grande motor da existência dos homens.

Após essas análises dos mestres citadinos quanto à importância do desen-volvimento intelectual dos homens para a construção de novas habilidades e atitudes diante da vida contemplativa e material, retomaremos, para concluir nossas considerações, dois autores da historiografi a contemporânea que nos apontam para as mudanças que ocorreram nas cidades e que impuseram aos homens trabalhos distintos daqueles que existiam antes da ambiência citadina no Ocidente medievo.

Mariateresa F. B. Brocchieri, no artigo Intelectual, salientou o fato de que a vida na cidade criou diversas modalidades do trabalho. Dentre elas, uma, até então desconhecida como trabalho para os medievos, o ensino.

A estrutura e a vida das cidades eram, agora, regidas por um trabalho especializado e subdividido e o ensino era mais um desses trabalhos, como as actividades artesanais e comerciais. Tornava-se, portanto, necessária uma defi nição precisa do ensino, o que foi feito, mediante a indicação das tarefas, das vantagens e das áreas em que essa actividade podia ser exercida e dos tempos de trabalho do docente e do estudante.28

Na cidade, o ensino deixou de ser um dom divino e passou a ser regido como atividade dividida em tarefas, tal como as demais atividades. Com efeito, as Uni-versidades foram organizadas, no século XIII, do mesmo modo que as demais atividades artesanais, ou seja, sob a forma de corporação de ofício.

Da mesma maneira que essa autora, Le Goff já tinha chamado a atenção para essa questão na obra Intelectuais na Idade Média. O renomado medievalista francês afi rmou que: “As escolas são ofi cinas de onde se exportam as ideias, como se fossem mercadorias”.29 Mais adiante, na obra, enfatizou:

(...) o intelectual, no seu lugar, com as suas aptidões específi cas, deve colaborar no tra-balho criador que se elabora. Não tem como instrumento apenas o espírito, mas também

28 BROCCHIERI, Mariateresa Fumagalli Beonio. O Intelectual. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa: Presença, 1989, p. 128.

29 LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984, p. 66.

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os livros que são a sua ferramenta de operário. Como nos afastamos, com eles, do ensino oral da Alta Idade Média!30

O intelectual descrito por Le Goff é um profi ssional que criava e exercia sua atividade do mesmo modo que os demais profi ssionais de ofícios. Como os demais trabalhadores, possuía, também, instrumentos próprios de seu ofício, como a habilidade proveniente de seu intelecto cognitivo e o livro, que era o instrumental de seu labor. O próprio Le Goff salientou a diferença e a distância entre estes intelectuais e os primeiros mestres do medievo, os monges e copistas, como mencionamos anteriormente.

Para concluirmos, consideremos alguns aspectos que arrolamos ao longo da nossa análise. O primeiro diz respeito à importância de se considerar a história pelo caminho da longa duração e aprendermos sempre com o passado, não para o copiarmos, mas para que nos sirva de exemplo. O segundo, derivado do pri-meiro, relaciona-se com o fato de, pela longa duração, podermos compreender as mudanças que ocorreram na história e, por conseguinte, ainda que uma época permaneça por séculos, como foi a Idade Média, produziu uma diversidade imensa de homens, de relações e de profi ssões. Por fi m, o aspecto, mais importante de nossa discussão reside no fato de que o homem é um todo, formado pelo material e pelo mental. Não podemos, portanto, conceber que uma forma de trabalho é superior a outra, ou seja, é a junção do trabalho material e intelectual que constrói o homem e todas as suas artes.

Recebido: 13/04/2011 – Aprovado: 02/09/2011

30 Idem, Ibidem.

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BULAS INQUISITORIAIS: AD ABOLENDAM (1184) E

VERGENTIS IN SENIUM (1199)*

Leandro Duarte RustUniversidade Federal de Mato Grosso

ResumoNeste trabalho apresentamos numa tradução bilíngue, latim-português, dois importan-tes documentos medievais, as decretais Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Usualmente qualifi cadas como “textos fundadores da Inquisição”, essas bulas são documentos valiosos do cenário político de fi ns do século XII. A tradução, inédita em língua portuguesa, é acompanhada de breve texto introdutório e alguns aponta-mentos para pesquisa.

Palavras-Chavedocumentos medievais • bulas inquisitoriais • história política.

Contato:Universidade Federal de Mato GrossoDepartamento de HistóriaAv. Fernando Corrêa da Costa, nº 2.367 78060-900 – Cuiabá – MT E-mail: [email protected].

* Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq. Prezado leitor: todas as citações realizadas e que emergem neste texto desacompanhadas de referências integram os textos traduzidos ao final. Agradeço, imensamente, ao Professor Doutor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza pela minuciosa revisão destas traduções. Se o diabo está nos detalhes, como diz o velho ditado popular inglês, devo dizer que este pequeno trabalho foi “exorcizado” pelo professor José Antônio.

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INQUISITORIAL BULLS: AD ABOLENDAM (1184) AND

VERGENTIS IN SENIUM (1199)

Leandro Duarte RustUniversidade Federal de Mato Grosso

AbstractIn this paper we present two important medieval documents, the decretals Ad Abolen-dam (1184) and Vergentis in Senium (1199), in a bilingual edition, Latin-Portuguese. Usually described as “the founding texts of the Inquisition”, these bulls record the political scene at the end of the 12th century. Unpublished in Portuguese, the translation comes to public with a brief introductory text and some notes for historical information.

Keywordsmedieval documents • inquisitorial bulls • political history.

Contact:Universidade Federal de Mato GrossoDepartamento de HistóriaAv. Fernando Corrêa da Costa, nº 2.367 78060-900 – Cuiabá – MT E-mail: [email protected].

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

A vitória não amanheceu em triunfo. Foi o que descobriu o pontífi ce Lúcio III com o passar dos anos. Após duas longas e penosas décadas de confl ito, a paz selada entre o Papado e o Império na cidade de Veneza, nos idos de 1177, não calou as contestações lançadas contra o Trono de Pedro. Na ocasião, Frederico I fi nalmente curvou sua recusa de mais de vinte anos e reconheceu Alexandre III como legítimo papa. Mas o gesto não embalou qualquer atitude de rendição da corte teutônica. Sete anos transcorreram e o Hohenstaufen continuou a pressionar e a perturbar o Papado com demandas que sobressaltavam o espírito de Lúcio, escolhido pelos cardeais como sucessor de Alexandre.1

No Lácio, tudo em redor da Sé Romana persistia ameaçador. Os exílios de Alexandre, sucessivamente empurrado para longe pelo inclemente confl ito com o Império, abriram caminho para a afi rmação de um governo comunal almejado em Roma há décadas. Quando retornou de suas prolongadas ausências, o pon-tífi ce encontrou a “Cidade dos Apóstolos” regida por agudo anticlericalismo. Encurralado pela oposição romana, ele se viu completamente dependente daquele que fora até então o seu maior adversário, Frederico I. Para chegar à basílica de São Pedro e ao Palácio Lateranense, o séquito papal teve de ser escoltado por Cristiano, arcebispo de Mainz. A Cúria permaneceu em Roma enquanto o odiado arcebispo, homem de armas dos Hohenstaufen, fez jus à terrível reputação de “criminoso” (nefarii) e se pôs a “difundir muitos males”.2 Cristiano ateou suas tropas sobre as áreas vizinhas e aterrorizou os cinturões rurais da Cidade Eterna

1 A Paz de Veneza deixou inconclusa uma questão de primeira ordem para a política papal: a reivin-dicação imperial da herança patrimonial deixada pela Condessa Matilde, que incluía áreas extensas e estratégicas no norte peninsular. Após sua eleição em 1181, Lúcio recusou todas as ofertas para o reconhecimento da legítima posse imperial das terras matildinas, desgastando seriamente as re-lações com o monarca “Barba Ruiva”. Além disso, o entendimento entre eles era ainda dificultado pela resistência papal em consentir com as solicitações imperiais de uma ampla aprovação ponti-fícia para a investidura de bispos germânicos, ocorridas durante o cisma vivido por Alexandre III. Neste sentido, é possível afirmar que ao longo dos anos as recusas de Lúcio foram tomando a forma de uma política anti-imperial: ROBINSON, Ian Stuart. The Papacy: 1073-1198. Cambridge: Cam-bridge University Press, 1990, p. 497-503. Ver ainda: PARTNER, Peter. The Lands of St Peter: the papal state in the middle ages and the early renaissance. Londres: Methuen, 1972, p. 171-245; WA-LEY, Daniel. The Papal State in the Thirteenth Century. Londres: MacMillan & Co., 1961, p. 5-22.

2 Christianus cancellarius imperatoris Frederici, qui multa mala Tuscis intulit. ANNALES PISANI. MGH SS 19: 265. Em outras palavras, a permanência de Alexandre em Roma dependia das mesmas ações que seus partidários até então condenavam veementemente como responsáveis pelos “dias terríveis” do cisma. A Vita Alexander III Papae até então apontava a violência das campanhas imperiais empreendidas na península como o sopro de uma destruição quase inigua-lável que tornou insustentável a estadia do papa no Lácio. O texto evoca a ferocidade das tropas germânicas como causa que intimidou os espíritos até então fiéis à autoridade petrina. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 414.

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

com constantes ataques e pilhagens. Graças à proteção assim obtida, o papa pôde reunir um concílio na basílica de São João de Latrão, em março de 1179. Mas, quando as intrigas locais levaram à captura de Cristiano, lançando-o em cativeiro por longo tempo, Alexandre teve de deixar Roma uma vez mais e faleceu, em exílio, em agosto de 1181.3

O pacto de 1177 dera à luz uma paz machucada, franzina. Desde então, Lúcio via seus receios se multiplicarem, ceifando as esperanças semeadas pela reconci-liação com o Império. As incertezas ferviam o juízo daquele prelado experiente, calejado por mais de trinta anos de cardinalato. A vitória de seu antecessor era uma promessa de segurança que teimava em não concretizar-se por inteiro. Ele esperava por defi nições que pareciam desaguar na impotência. Desde a saída de Roma, a Cúria perambulava pela península: todo seu governo seria vivido no exílio, em Velletri, Anagni e, por fi m, Verona. O próprio Frederico I tirou proveito da visível dependência política da Sé Apostólica, ao transformar a estadia do Papado nesta última cidade em um conveniente confi namento. Arfando sua vul-nerabilidade, Lúcio tornou-se refém das garantias estendidas pelo imperador, que soube penhorar seu apoio como um meio de manter o séquito pontifício em Ve-rona, sob atenta vigilância e privado de livres comunicações com a Cristandade.4

Acuado naquelas cidades, o papa se viu ainda rodeado por outro perigo: a “heresia”. Dominado por paisagens dinâmicas, que sobejavam em riquezas e em circulação de homens e ideias, o norte peninsular tornou-se palco de intensas transformações sociais e projetou novos grupos laicos. O exílio forçou Lúcio a travar um face a face com a nova realidade de práticas, ideias e aspirações fomen-tadas pelos agudos contrastes sociais urbanos, comumente arredios aos preceitos hierárquicos da eclesiologia papal.5 À medida que o tempo passava tais grupos se insinuavam cada vez mais nos quadros das elites senhoriais. Enraizavam sua presença nos espaços públicos, nos postos de autoridade.6 Suas pregações e seu

3 MUNZ, Peter. Frederick Barbarossa: a study in medieval politics. Ithaca: Cornell University Press, 1969, p. 363.

4 ZERBI, Piero. Un inedito dell Archivio Vaticano e il Convegno di Verona. Aevum, n. 28, 1954, p. 470-48. Ver ainda: FIGUEIRA, Robert C. (Ed.). The Plenitude of Power: the doctrines and exercise of authority in the Middle Ages – essays in memory of Robert Louis Benson. Aldershot: Ashgate, 2006, p. 38; BOLTON, Brenda; DUGGAN, Anne J. (Org.). Adrian IV: the english pope (1154-1159). Aldershot: Ashgate, 2003, p. 135-137.

5 DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2000, p. 68-75; ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle Ages: 1000-1300. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 9-12; CAMERON, Euan. Waldenses: rejections of holy church in medieval Europe. Oxford: Blackwell, 2000, p. 37-48.

6 LANSING, Carol. Power & Purity: Cathar heresy in medieval Italy. Oxford: Oxford University

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

modo de vida deixavam em difícil situação a obediência à autoridade apostólica. Vendo-se no limiar de um nevoeiro de fraquezas, Lúcio aferrou-se à sua voz de legislador e em 4 de novembro de 1184 anunciou um conjunto de instruções contra os hereges.7 O texto, proclamado diante do plenário eclesiástico reunido em Verona, fi cou conhecido entre os historiadores como a bula Ad Abolendam. É o primeiro documento aqui traduzido em versão bilíngue.

Suas palavras depositavam nos bispos as prerrogativas de erradicação da “depravação das heresias”: tudo o que dizia respeito à missão de localizar, cor-rigir e punir os violadores da unidade cristã estaria atrelado ao juízo daqueles prelados. Duas vezes por ano caberia a eles percorrer as paróquias e desentocar “todos que não receiam sentir ou ensinar algo distinto do que a sacrossanta igreja romana prega e observa”. Segundo a bula, os procedimentos de investigação e punição pertenciam à jurisdição dos bispados. Portanto, a Ad Abolendam pode ser considerada o registro de uma característica que costumamos recobrir com esquecimento: os procedimentos judiciais (inquisitiones) estabelecidos por ela foram instituídos pelo Papado, mas estavam politicamente constituídos como uma instituição episcopal. Por conseguinte, formavam uma descentralizada e intricada rede de poderes particulares e interesses locais. Tal autonomia não desapareceria nas décadas seguintes. A história inquisitorial seguiu marcada pelas fortes tensões oriundas desta articulação de diferentes instâncias decisórias, desta junção de lideranças amiúde divergentes, como demonstraram Henry Charles Lea, Mariano Alatri, Edward Peters, James Buchanan Given e Michael Thomsett.8 Em páginas referenciais, John Tedeschi advertiu: “the Inquisition, far from being a monolithic

Press, 1998, p. 11; MILLER, Maureen Catherine. The Bishop’s Palace: architeture & authority in medieval Italy. Ithaca: Cornell University Press, 2000, p. 164-165.

7 FRIEDBERG, Emil (Ed.). Corpus Iuris Canonici: pars secunda Decretalium Collectiones. Graz: Akademische Druck-U. Verlagsanstalt, 1959, p. 780-782. E ainda: HEFELE, Charles Joseph; LECLERCQ, Henry. Histoire des Conciles aprés les documents originaux. Paris: Letouzey et Ané, 1912-1915, tomo 5/2, p. 1087-1095, p. 1116-1127; WATTERICH, Johann Matthias. (Ed.). Pontificum Romanorum Vitae qui fuerunt inde ab exeunte saeculo IX usque ad finem saeculi XIII. Leipzig: 1860-1862, vol. 2, p. 658.

8 LEA, Henry Charles. A History of the Inquisition of the Middle Ages. Londres: Harper & Bro-thers, 1887, p. 1-23; ALATRI, Mariano. Eretici e inquisitori in Italia: studi e documenti. Brindisi: Collegio San Lorenzo da Brindisi, Istituto Storico dei Cappuccini, 1987, v. 1, p. 125; PETERS, Edward. Heresy and authority in medieval Europe: documents in translation. Philadelphia: Uni-versity of Pennsylvania Press, 1980, p. 189; GIVEN, James B. Inquisition and Medieval Society: power, discipline & resistance in Languedoc. Ithaca/Londres: Cornell University Press, 1997; THOMSETT, Michael C. The Inquisition: a history. Jefferson: McFarland & Co., 2010, p. 11-16.

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structure, was an institution which experienced development and change, in terms of organization, procedures and defi nitions of the law”.9

O austero texto proclamado por Lúcio impressiona. Não sem razão; afi nal, tratava-se de um fi lho pródigo do racionalismo letrado do século XII. Herdeiro de dezenas de cânones anti-heréticos presentes no Decretum de Graciano10 e das medidas proclamadas por Alexandre III nos Concílios de Tours (1163) e de Latrão (1179),11 seu texto enrijeceu as medidas relativas à denúncia, à excomunhão e ao confi sco de bens dos “claramente surpreendidos em heresia”.

Com linguagem áspera, a bula declarou sanções não somente contra a heresia em si, mas direcionadas a um espectro maior de comportamentos dissidentes. Não bastava endireitar uns poucos espíritos desviantes. Era preciso desbaratar o nicho que os abrigava, arrancar em toda extensão as raízes de sua “insolência e falsidade”. Por isso as penas canônicas deveriam recair também sobre os “aco-lhedores e protetores, todos que de alguma forma oferecem apoio ou favor aos mencionados hereges”, e a classifi cação como herege deveria tingir todos que se negassem a jurar o que fosse exigido pelo arbítrio do bispo.

Imbuída dos rigores da razão letrada, a bula ganhou outra singularidade: ela não se limitou a identifi car os acusados de heresia de maneira genérica, referindo--se a eles como uma indistinta massa de transgressores. A Ad Abolendam os dis-tinguiu em grupos, enumerando-os nominalmente como “Cátaros, Patarinos, os Humilhados ou Pobres de Lyon, Passaginos, Josefi nos e Arnaldistas”. Ela declinou as identidades heréticas. Porém, ao embaralhá-las na mesma condenação seu texto revestiu a política papal com uma aparente coerência, fazendo ver uma rejeição

9 TEDESCHI, John. Preliminary Observations on Writing a History of the Roman Inquisition. In: CHURCH, F. F. & GEORGE, Timothy (Ed.). Continuity and Discontinuity in Church History. Leiden: Brill, 1979, p. 239.

10 Cabe ressaltar que o próprio Decretum sintetizava uma longeva trajetória de elaborações canônicas, incluindo o Decretum de Burchard de Worms, o Panormia de Ivo de Chartres, a Collectio Cano-num do cardeal Deusdedit e o texto homônimo de Anselmo de Lucca. GALLAGHER, Clarence. Canon Law and the Christian Community. Roma: Università Gregoriana Editrice, 1978, p. 185; WINROTH, Anders. The Making of Gratian’s “Decretum”. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 34-78.

11 Sobre a Assembleia Eclesiástica de Tours: CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontifi-calis 2: 407-412; FRIEDBERG, Emil (Ed.). Quinque Compilationes Antiquae. Leipzig: Bernhard Tauschnitz, 1882, p. 56. Ver ainda: SOMERVILLE, Robert. Pope Alexander III and the Council of Tours. Los Angeles: University of California Press, 1977. Sobre o Concílio de Latrão: MANSI, Jo-hannes D. (Ed.). Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio. Graz: Akademische Druck, 1961, tomo 22, col. 217-223; HEFELE, Charles Joseph; LECLERCQ, Henry. Histoire des Conciles aprés les documents originaux. Paris: Letouzey et Ané, 1912-1915, tomo 5/2, p. 1087-1095 ; FO-REVILLE, Raymonde. Lateranense I, II y III. Vitoria: Eset, 1972, p. 172-294; LONGÈRE, Jean. Le Troisième Concile de Latran (1179): sa place dans l’histoire. Paris: Études Augustiniennes, 1982.

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integral e infl exível lá onde havia constantes oscilações das atitudes perante estes mesmos grupos, por vezes tolerados e noutras até mesmo encorajados.12 Esta atenção às funções representativas dos nomes dos grupos heréticos, somada à promulgação da bula em um ambiente sinodal – como uma constituição não apenas do papa, mas do conjunto da Igreja romana, reunido em assembleia –, consolidou uma importante infl exão jurídica: impôs a plena categorização legal da heresia como crime capital e público, razão sufi ciente para legitimar diversas ações de marginalização e expropriação dos acusados, antes mesmo da formali-zação das sentenças. Como relembrou Frances Andrews, a autoridade pontifícia delineou os nomes heréticos de modo a torná-los categorias através das quais as consciências comunitárias cristãs deveriam reconhecer a identidade do desvio, do esfacelamento do pertencimento coletivo, enfi m, do alheamento à identidade religiosa então partilhada.13 Estas e outras características justifi cariam a reputação deste documento como tendo sido, à época, “the most elaborate juridical statement concerning the treatment of heretics made to that date by the Latin Church”.14

Todavia, é preciso não se deixar seduzir pela rispidez e fi rmeza da lingua-gem papal. Como indicamos nas páginas acima, a virulência das palavras de Lúcio III não deve ofuscar a preocupante realidade que enchia suas entrelinhas, impregnando-as de limitações políticas e de uma vulnerabilidade inquietante.

A Ad Abolendam ganhou contornos em meio ao cerceamento do governo papal, que só repousava quando se acomodava nas dobras da hegemonia imperial.

12 Sobre as a trajetória do conceito de “cátaros” e seu controverso emprego por parte dos historia-dores ver: MACEDO, José Rivair. Heresia, Cruzada e Inquisição na França Medieval. Porto Alegre: EDPUCRS, 2000. A Ad Abolendam é diretamente responsável por converter o nome “Patarino” em sinônimo de “Cátaro”, algo para o qual não se tem registros documentais prece-dentes. Ao fazê-lo, ela imprimiu inequívoca classificação herética a um movimento ao qual o papado esteve estritamente associado durante o século XI, inclusive como aliado imprescindível na realização da assim chamada “Reforma Papal”. HAMILTON, Janet; HAMILTON, Sarah; HAMILTON, Bernard (Eds.). Hugh Eteriano: Contra Patarenos. Leiden: Brill, 2004, p. 9-10. Sequer é preciso examinar a aplicação ou a vigência da Ad Abolendam para reconhecer, como indicou Jennifer Kolpacoff Deane, que o próprio texto da bula de 1184 acabava por implicar em repercussões diversas para os grupos mencionados, tal era o caso de, por exemplo, os “Catáros” e os “Valdenses”. Ver: DEANE, Jennifer Kolpacoff. A History of Medieval Heresy and Inqui-sition. Lanham: Rowman & Littlefield Co., 2011, p. 68. Uma opinião divergente é apresentada em: FRASSETTO, Michael. Heretic Lives: medieval heresy from Bogomil and the Cathars to Wyclif and Hus. Londres: Profile Books, 2007, p. 67-71.

13 ANDREWS, Frances. Self-representation in time of crisis: the case of early Humiliati. In: MÜL-LER, Anne; STÖBER, Karen (Eds.). Self-Representation of Medieval Religious Communities. Berlim: LIT Verlag Münster, 2009, p. 221; ANDREWS, Frances. The Early Humiliati. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 38-98.

14 PETERS, Edward. Inquisition. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1989, p. 48.

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É preciso dar ouvidos a Lúcio e à declaração, gravada no próprio documento, de que ele e seu séquito se encontravam “sustentados com a força de nosso fi lho caríssimo, Frederico, ilustre imperador dos romanos, sempre augusto”. Tais palavras foram mais do que fórmula de estilo ou deferência retórica: neste caso, elas podem ser tomadas como verdadeira avaliação política. Portanto, talvez seja o momento de dar razão a Peter Diehl e reconhecer o ríspido texto de 1184 como um “diploma imperial” tanto quanto uma bula – futuramente uma decretal – e não um documento papal em sentido estrito.15 As referências ao imperador não seriam alusões a um “auxiliar”, um mero “protetor” ou “colaborador” recrutado para aplicar as sanções estipuladas. Personifi cados na fi gura de Frederico I, os poderes seculares evocados na bula não estariam limitados ao subordinado papel de “braço secular” da abolição das heresias, como afi rmou R. H. Helmholz em estudo notável.16 A Ad Abolendam emergia da autoridade imperial, seu texto ex-pressa a interpenetração medieval dos poderes temporal e espiritual. Tratava-se, por assim dizer, de uma “bula do imperador”, não exclusivamente do pontífi ce: um “estatuto simultaneamente imperial e eclesiástico”.

Aliás, quando nos voltamos para os domínios temporais do Papado – o Pa-trimônio de São Pedro –, constatamos sua fl agrante incapacidade em fazer valer a decretal de 1184. Os sucessores de Lúcio zelaram por sua incorporação na primeira grande coletânea de decretais, conhecida como Compilatio I e composta por Bernardo de Pávia entre 1188 e 1192;17 mas seu fracasso em alojá-la nos domínios efetivos da política era retumbante, como demonstra o caso sintomático apresentado a seguir.

Entrincheirada num formidável sítio militar, Orvieto foi a primeira comuna italiana da qual se teve notícias da presença dos cátaros, expressamente conde-nados pela Ad Abolendam. Logo no início de seu pontifi cado, em abril de 1198,

15 DIEHL, Peter. Ad abolendam (X 5.7.9) and Imperial Legislation against Heresy. Bulletin of Medieval Canon Law, vol. 19, 1989, p. 1-11.

16 HELMHOLZ, R. H. The Spirit of Classical Canon Law. Athens: University of Georgia Press, 1996, p. 363. Diferentemente de Helmolz, chegamos à perspectiva de que a vinculação do docu-mento à autoridade de Frederico I, somada às circunstâncias de sua promulgação, atuaram como uma formalização da Ad Abolendam como um texto oficialmente vigente como uma lei imperial: razão pela qual recorremos à improvável expressão “diploma imperial”, embora saibamos que tal caracterização seja incompatível tanto com os princípios técnicos como com os jurídicos da usual classificação documental aplicada aos resquícios escritos do período.

17 FRIEDBERG, Emil (Ed.). Quinque Compilationes Antiquae. Leipzig: Bernhard Tauschnitz, 1882, p. 226. Ver ainda: MÜLLER, Wolfgang; SOMMAR, Mary (Eds.). Medieval Church Law and the Origins of the Western Legal Tradition. Washington: Catholic University of America Press, 2006, p. 154-158.

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Inocêncio III pôs a cidade sob interdito. Embora fosse cada vez mais frequente, a medida era drástica, pois consistia na “formalização coletiva da máxima culpa”, segundo a afortunada expressão cunhada por Peter Clarke.18 Os “ofícios divinos” deveriam cessar; missas, sermões e horas canônicas deveriam ser suspensos; os templos permaneceriam fechados; os sacramentos celebrados em segredo, quando muito.19 A punição deveria dissuadir as lideranças citadinas de sua reivindica-ção sobre Aquapendente, fortaleza estratégica para o Papado, persuadindo-as a obedecer.20 Mas a proclamação agiu em outra direção: acendeu os sentimentos de desprezo pela hierarquia clerical, minando a já tênue obediência devida pe-los habitantes ao poder eclesiástico local, malvisto por muitos como um agente dos interesses romanos. Desgastada por uma sucessão de embates envolvendo bispos, cônegos regulares, aristocratas e a própria comuna desde os anos 1150, a autoridade episcopal perdeu força, seus aliados recuaram.21 Acossado por tantos impasses, Ricardo, então bispo de Orvieto, deixou a diocese e se refugiou na Cúria. Sua ausência cedeu espaço ao “catarismo”, atraindo pregadores heréticos de loca-lidades vizinhas, como Viterbo, outra sede política do Patrimônio de São Pedro.

Com a cidade ainda sob interdito, Inocêncio enviou o senador romano Pietro Parenzo. Em fevereiro de 1199, encarregou-o de restaurar a ordem política e dar cabo dos hereges. O pontífi ce fi ava-se pelas instruções de seu antecessor, agarrava-se às orientações de Lúcio III: como rector da cidade, o enviado deveria recompor a

18 CLARKE, Peter. The Interdict in the Thirteenth Century. Oxford: Oxford University Press, 2007.19 KREHBIEL, Edward. The Interdict: its history and its operations. Washington: AHA, 1909, p.

15-74. Ver ainda o útil estudo: CONRAN, Edward J. The Interdict. Washington: The Catholic University of America, 1930.

20 Embora a fortaleza de Aquapendente tenha sido o estopim do agravamento das tensões entre a Sé Apostólica e a comuna de Orvieto, certamente, é apropriado situar a interdição imposta por Inocêncio III em quadro maior de medidas anti-heréticas pontifícias, que incluíam as decretais Mirari Cogimur et (16 de abril de 1198) Cum unus Dominus (21 de abril de 1198): POTTHAST, n. 82, 95. Ver ainda: VACANDARD, Elphège. The Inquisition: A Critical and Historical Study of the Coercive Power of the Church. Fairford: Echo Library, 2010, p. 36.

21 LAMBERT, Malcolm D. The Cathars. Oxford: Blackwell Publishing, 1998, p. 92-95; LANSING, Carol. Power & Purity: Cathar heresy in medieval Italy. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 25-41; LANSING, Carol. Passion and Order: restraint of grief in the medieval Italian communes. Ithaca: Cornell University Press, 2008, p. 25-97, 228-243; LOOS, Milan. Dualist Heresy in the Middle Ages. Praga: s/e., 1974, p. 279; WALEY, Daniel. Mediaeval Orvieto: the political history of an Italian city-state, 1157-1334. Cambridge: Cambridge University Press, 1952, p. 11-15. Como demonstrou Augustine Thompson, o “catarismo” teve ampla difusão nas comunas da Itália setentrional, indicador de que os grupos classificados como heréticos estavam efetivamente inseridos nos quadros das elites locais, implicados nas disputas sobre o controle dos espaços públicos e a constituição dos governos comunais. THOMPSON, Augustine. Cities of God: the religion of the Italian communes, 1125-1325. University Park: The Pennsylvania State University Press, 2005, p. 141-234.

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autoridade episcopal e garantir o livre curso dos procedimentos da inquisitio. Mas sua esperança logo minguou. Em maio, Parenzo foi emboscado e encerrou quatro agitados meses de governo sangrando até a morte em um casebre entrouxado junto aos portões da cidade. Embora a causa pontifícia tenha encontrado um mártir – cultuado em meio a uma generosa multiplicação de relatos sobre milagres – “this loss of authority over heresy and the evident failure of Ad Abolendam produced in Italy a state very like crisis by the end of the century”.22 O sangrento desfecho era igualmente efeito da instabilidade imperial: a repressão pontifícia à heresia carecia de seu sustentáculo político, então enfraquecido por uma inclemente guerra suces-sória, defl agrada pela morte de Henrique VI – fi lho de Frederico I – dois anos antes. Dilacerada por confl itos internos, a hegemonia imperial fraquejava, revelando-se incapaz de impulsionar seus exércitos e ministeriales para além dos Alpes, sobre a península italiana e as cidades do Patrimônio de São Pedro.

Antes mesmo do assassinato, Inocêncio descobriu-se desarmado perante a difusão das heresias no Patrimônio Petrino e, como seus antecessores, sentiu sua autoridade desnudar-se. Era preciso, uma vez mais, vestir o pesado manto das leis canônicas. Foi então, no dia 25 de março de 1199, que o papa ditou a decretal Vergentis in Senium, a segunda bula inquisitorial aqui traduzida.

Dirigida aos magistrados de Viterbo,23 outra cidade papal povoada pelo crescimento da presença catára, a nova bula tem um início peculiar. Como uma homilia, ela entoa um tom pastoral carregado de marcas da educação de Inocên-cio.24 Suas primeiras linhas concebem a proliferação das heresias como efeito do “envelhecimento do mundo”. Segundo a decretal, se a dissidência crescia, ganhando contornos ainda mais apavorantes, era por que a decrepitude humana avançara ao seu último estágio, apoderando-se por completo dos corações cris-

22 LAMBERT, Malcolm. Medieval heresy: popular movements from the Gregorian reform to the Reformation. Oxford: Blackwell Publishing, 2002, p. 90; VINCENZO, Natalini (Ed.). S. Pietro Parenzo: la leggenda scritta dal Maestro Giovanni canonico di Orvieto. Roma: Facultas Theolo-gica Pontificii Athenaei Seminarii Romani, 1936; MACCARRONE, Michele. Studi su Innocenzo III. Pádua: Antenore, 1972, p. 30-51; WAUGH, Scott; DIEHL, Peter (Eds.). Christendom and Its Discontents: exclusion, persecution, and rebellion, 1000-1500. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 22-25.

23 POTTHAST, Augustus (Ed.). Regesta Pontificum Romanorum inde ab a. post Christum natum MCXCVIII ad a. MCCCIV. Berlin: Academia Litterarum Berolinensi, 1874-1875, n. 643.

24 Toda a bula é marcada por uma linguagem pastoral característica do círculo eclesiástico formado em Paris, em redor da figura de Pedro, o Cantor. Círculo que incluía Inocêncio III e os cardeais Robert de Courson e Estevão de Langton. Ver o clássico estudo: BALDWIN, John. Masters, Princes, and Merchants: the social views of Peter the Chanter & his circle. Princeton: Princeton University Press, 1970, vol. 1.

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tãos, contaminando a todos. Pois a “semente dos iníquos recobre a colheita do Senhor” quando a fé está em frangalhos, corroída pela macabra decadência das criaturas, perdidas em seu decrépito apego às coisas vãs. A vida estaria podre e sua decomposição permitiria aos pecados e vícios se espalharem sem peia, manchan-do as almas, arrastando-as para o abismo dos erros. Estes temas, típicos de uma longínqua tradição letrada associada ao ideal do Contemptus Mundi (Desprezo pelo Mundo), estavam frescos na pena e na memória papais. Afi nal, cerca de cinco anos antes, quando era ainda um jovem cardeal, Inocêncio transpôs noites debruçado sobre aqueles pensamentos lúgubres, que reuniu no ilustre opúsculo De contemptu mundi sive de miseria conditionis humanae.25

Contudo, esse pessimismo estava longe de se resumir a uma convenção de estilos ou inspiração de fervor pastoral. Ele era alimentado por fracassos polí-ticos. A própria Vergentis registrou a inefi cácia das medidas anti-heréticas até então proclamadas pela Sé Romana. Em seu texto o papa derramou seu lamento: “diversos predecessores nossos divulgaram medidas em diferentes ocasiões, mas não a ponto de aniquilar as pestes mortíferas, sobretudo contra este câncer que se espalhou amplamente de modo oculto e que agora derrama abertamente a iniquidade de seu veneno”. A imagem do mundo sucumbindo a tantas “formas farsescas de religião” feria a consciência de Inocêncio como um espinheiro, verrumando-lhe na cabeça a dura certeza de testemunhar o ocaso da autoridade clerical. O fantasma da impotência política assombrava-o com a ideia de “ser chamado de cachorro mudo, incapaz de latir” contra as “raposas que estão des-truindo a vinha do Senhor”, segundo as palavras da própria bula.26

Tentando cravar um fi m naquela luta sem descanso, o Papado fez do novo texto uma confi rmação prática das regras estabelecidas pela Ad Abolendam e atuou como continuador direto das decisões outrora proclamadas por Lúcio III,

25 LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi sive De Miseria Conditionis Humanae. PL vol. 217, col. 703-737; ARCHTERFELDT, Johannes (Ed.). Innocentii III De Contemptus Mundi. Bonn: Eduard Weber, 1855. A tradição literária do Contemptus Mundi era constituída por um descentrado e longevo universo de escritos, em especial, oriundos dos claustros medievais. Ver: HOWARD, Donald R. The Three Temptations: medieval man in search of the World. Princeton: Princeton University Press, 1966, p. 56-160. O opúsculo de Inocêncio III alcançou grande fortuna manuscrita e tornou-se um modelo consagrado para a retórica da “tristeza do finito”, em especial para o período renascentista e as escolas neoplatônicas, como demonstra: DELUMEAU, Jean. O Pecado e o Medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003, vol. 1, p. 19-160.

26 KENDAL, Keith. ‘Mute Dogs, Unable to Bark’: Innocent III’s call to combat heresy. In: MÜL-LER, Wolfgang; SOMMAR, Mary (Eds.). Medieval Church Law and the Origins of the Legal Western Tradition. Washington: The Catholic University of America Press, 2006, p. 170-178.

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como notaram Brenda Bolton e James B. Given.27 Entretanto, a Sé Apostólica foi além. Ela reavivou uma severa categoria do antigo direito dos Césares: a noção do “crime de lesa majestade”. Na realidade, o conceito de laesum maiestas era bem conhecido pelos eclesiásticos do século XII familiarizados com os textos canônicos e as tradicionais fórmulas de glorifi cação do poder monárquico. Formulado pela Lex Quisquis, redigida por ordem dos imperado-res Honório e Acádio, em 4 de setembro de 397,28 o conceito era mencionado pelo Concílio de Calcedônia (451),29 pelos Annales Regni Francorum (863?),30 constava em notórias epístolas atribuídas ao papa João VIII (875)31 e a Fulberto de Chartres (1020?),32 no fragmento de uma constitutio do imperador Henrique

27 BOLTON, Brenda. Tradition and Temerity: papal attitudes to deviants, 1159-1216. In: BAKER, Derek (Ed.). Schism, Heresy and Religious Protest. Cambridge: Cambridge University Press, 1972, p. 79-92; GIVEN, James Buchanan. Inquisition and medieval society: power, discipline, and resistance in Languedoc. Ithaca: Cornell University Press, 1998, p. 13.

28 Como tal a noção figurava no Codex Justinianus: “Quisquis cum militibus vel privatis barbaris etiam scelestam inierit factionem aut factionis ipsius susceperit sacramenta vel dederit, de nece etiam virorum illustrium qui consiliis et consistorio nostro intersunt, senatorum etiam (nam et ipsi pars corporis nostri sunt), cuiuslibet postremo qui nobis militat cogitarit (eadem enim severitate voluntatem sceleris qua effectum puniri iura voluerunt), ipse quidem utpote maiestatis reus gladio feriatur, bonis eius omnibus fisco nostro addictis: Arcad. et Honor. aa. eutychiano pp. a 397 d. prid. non. sept. ancyrae caesario et attico conss”. In: KRUEGER, Paulus. Corpus Iuris Civilis: volumen secundum, codex. Berlim: Weidmannos, 1889, vol. 2, 9.8.5. Ainda: BAUMANN, R. A. Some Problems of the Lex Quisquis. Antichthon, vol. 1, 1967, p. 49-59.

29 Neste caso nos reportamos ao cânone 18, cujo texto proibia a realização de conjurações contra os membros da hierarquia eclesiástica: “Conjurationis vel sodalitatis crimen ab externis etiam legibus est omnino prohibitum; multo autem magis hoc in Dei Ecclesia fieri prohibere oportet. Si qui ergo Clerici vel Monachi inventi fuerint, vel conjurati, vel sodalitates comparantes, vel aliquid struentes adversus Episcopos aut Clericos proprio graduo omnino excident”. CHALCE-DONENSIS CONCILII. MANSI, Johannes D. (Ed.). Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio. Graz: Akademische Druck, 1961, tomo 7, col. 366.

30 Neste caso trata-se da descrição de um pronunciamento do papa Leão III logo após a coroação imperial de Carlos Magno: “Post paucos autem dies iussit eos, qui pontificem anno superiore de-posuerunt, exhiberi; et habita de eis questione secundum legem Romanam ut maiestatis rei capitis dampnati sunt”. ANNALES FULDENSIS SIVE ANNALES REGNI FRANCORUM ORIENTA-LIS. MGH SS rer. Germ., tomo 7, p. 15. E ainda: NOBLE, Thomas F. X. The Republic of St. Peter: the birth of the Papal State, 680-825. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1991, p. 294.

31 Trata-se da carta enviada aos habitantes de Nápoles, Salerno e Amalfi com o propósito de dissuadi--los de uma aliança com os sarracenos: “Cum enim regis rebellionibus quocumque particípio coniunguntur, pariter maiestatis criminibus obnoxii iudicantur, parique sententia condemnantur; quantum a corpore Christi probantur extranei, qui eius hostibus federati, membra ipsius tanto perniciosius lacerant, quanto5 vicinius ecclesie Dei colliminant?” JOÃO VIII. Epistola 53. MGH Epp., tomo 7, p. 306.

32 A epístola em questão é direcionada ao conde Fulque de Nera e a passagem relevante consiste em suas linhas iniciais: Tam horrendo facinore praesentiam domini regis tui dedecoravere satellites, ut mundani iudices asserant capitale te quoque reum maiestatis qui eis postea patrocinium tuum et receptacula praebuisti. FULBERTO DE CHARTRES. Epistola 95. PL vol. 141, col. 246.

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III (1052?) de grande circulação no século XI,33 além de ocupar espaço de destaque no Decretum de Ivo de Chartres (1094?)34 e no de Graciano (1140).35

Segundo Inocêncio III, os condenados por heresia deveriam ser declarados “culpados pelo delito de lesa majestade”. Eles carregariam as marcas da alta traição, que não necessitava chegar às raias da conspiração para ser revelada: a perfídia estava na sombra da infi delidade, bastava ser considerado desleal à autoridade clerical para ser culpado de contrariar a “divina majestade de Jesus Cristo”. A heresia deveria ser vista, de uma vez por todas, como “crime de deso-bediência”. Quem não estivesse de acordo com a Sé Romana não poderia ser considerado catholicus. Ao amparar-se nesta premissa, a Vergentis reascendeu um princípio presente no Dictatus Papae (1075?), de Gregório VII, relação à qual Othmar Haegeneder dedicou páginas memoráveis.36

A condenação como herege provaria a infâmia do acusado, que estaria sujeito à pena de excomunhão e ao confi sco de seu patrimônio. Seus fi lhos partilhariam o mesmo infortúnio, suportando a privação de bens e a interdição a qualquer ofício público, pois a ignomínia dos genitores estaria impregnada em suas carnes, como se a heresia fosse uma essência impura que corresse em suas veias.37 Conforme as próprias palavras papais: “segundo o juízo divino, também os fi lhos sofrem

33 O fragmento contém o que segue: “Heinricus divina pietate secundus Romanorum imperator augustus omnibus decet imperialem solertiam contemptorem suae praesentiae capitali dampnare sententia”. CONSTITUTIO DE CONTEMPTORIBUS IMPERATORIS. MGH Const., tomo 1, p. 102. Este fragmento seria veiculado por Wipo, Anselmo de Besate e Benzo de Alba, alcançando grande notoriedade entre os propagandista imperiais de fins do século XI. Ver: ROBINSON, Ian Stuart. Authority and Resistance in the Investiture Contest: the polemical literature of the late eleventh century. Nova York: Manchester University Press, 1978, p. 81-82.

34 Neste caso trata-se do capítulo 90 do décimo primeiro livro, no qual é reproduzida a epístola do papa João VIII. IVO DE CHARTRES. Decretum. PL, vol. 161, col. 775. Ver ainda: ROLKER, Christof. Canon Law and the Letters of Ivo of Chartres. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 54-57.

35 Sane quisquis hanc sanctam et uenerandam antistitis sedem pecuniae interuentu subisse, aut si quis, ut alterum ordinaret uel eligeret, aliquid accepisse detegitur, ad instar publici criminis et lesae maiestatis accusatione proposita, a gradu sacerdotis retrahatur. Nec hoc solum deinceps honore priuari, sed perpetuae quoque infamiae dampnari decernimus, ut e facinus quos par coinquinat et equat, utrosque similis pena comitetur. FRIEDBERG, Emil (Ed.). Corpus Iuris Canonici: pars prior Decretum Magistri Gratiani. Graz: Akademische Druck-U. Verlagsanstalt, 1959, parte secunda, causa XV, q. III, c. VI p. 752.

36 Tratava-se do capítulo 26 do memorandum papal ditado por Gregório, provavelmente, em 1075. DICTATUS PAPAE. MGH Epp. sel. , p. 203. Ver ainda: HAGENEDER, Othmar. Il Sole e la Luna:Papato, impero e regni nella teoria e nella prassi dei secoli XII e XIII. Milão: Vita e Pen-siero, 2000, p. 213-234.

37 CHIFFOLEAU, Jacques. Sur le crime de majesté medieval. In : GENET, Jean-Philippe (Ed.). Genèse de l’Etat moderne en Méditer ranée. Rome, Collection de l’Ecole française de Rome, 1993, p. 183-313.

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(...) por seus pais e (...) o castigo recai não apenas sobre os autores dos crimes, mas também sobre a descendência dos condenados”. A falha dos pais deixou-os desprovidos da “herança divina”: por que haveriam de manter a herança terrena?

Ratione Peccati. O herético estava poluído pelo pecado e as falhas que ha-bitavam seu peito eram altamente contagiosas. Sua “depravação” derramava-se como uma mancha de óleo sobre tudo o que ele tocava: bens, ofícios, negócios, testemunhos, escrita. Era preciso arrancá-lo do convívio cristão e purgar tudo que carregava os traços de sua nefasta presença: terras, prerrogativas, objetos, pergaminhos. Se fosse mercador, seus negócios não gerariam qualquer obrigação. Se juiz, suas sentenças seriam nulas e seu tribunal maldito de toda maneira. Caso se tratasse de um notário, os registros lavrados por ele seriam inválidos. Legis-lando “em razão do pecado”, a Vergentis coroou a heresia como causa jurídica sufi ciente para justifi car amplas intervenções nos espaços considerados públicos e nas relações de poder e autoridade. Foi o que ocorreu nos anos seguintes, quando o Papado ditou medidas de supressão da autonomia de “cidades heréticas” no interior do Patrimônio de São Pedro38 e ofereceu o amplo perdão da indulgência aos que tomaram parte da violenta conquista senhorial no Languedoc a partir de 1209, a chamada “cruzada albigense”.39

Diferentemente da Ad Abolendam, a bula inocenciana não contava com o respaldo de um plenário conciliar. Seu texto era um digno representante da tradição epistolar dos séculos XI e XII: era uma orientação conferida a um caso pontual, circunstancial. Porém, seu alcance histórico não foi menor do que o da bula promulgada por Lúcio III: ambas foram tratadas pela tradição canônica posterior como documentos igualmente fundadores, detentoras das regras a se-rem seguidas nos procedimentos públicos de repressão à heresia e à dissidência cristã. De fato, as duas bulas fi guram lado a lado nas coleções documentais que conferiram sustentação normativa e legitimidade jurisdicional às posteriores ações dos Tribunais do Santo Ofício, como demonstra a edição do Bulario de

38 WEBB, Diana. The Church and Sovereignty c.590-1918: essays in honour of Michael Wilks. Cambridge: Publ. Blackwell, 1991, p. 139-141. Ver ainda: BOLTON, Brenda. Innocent III: stu-dies on papal authority and pastoral care. Aldershot: Ashgate Publishing, 1995, n. III, p. 208; GAULIN, Jean-Louis et alii (Dir.). Villes d’Italie: textes et documents des XIIe, XIIIe et XIVe siècles. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2005, p. 136.

39 HAGENEDER, Othmar. Il Sole e la Luna... op. cit., p. 149-153. Vale aqui lembrar a célebre epístola com a qual os legados no Languedoc justficaram ao papa a elevação de Simon de Montfort a “prín-cipe” daquelas terras em razão de sua liderança na “supressão das heresias”: MILO & ARNALDO AMAURY. Epistola. PL 216: 137-141.

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la Inquisición Española hasta la muerte de Fernando el Católico, realizada por Gonzalo Martínez Díez.40

Tais características têm feito os historiadores insistirem na reputação da Ver-gentis in Senium como um feito de importância inigualável. Seu aparecimento foi “the major step in the formalization of the persecution of heretics” já realizado pelo Papado, segundo a avaliação de Edward Peters.41 Suas linhas decretaram “la fi ne del lungo periodo di disorientamento e d’indecisione da parte della gerarchia”, afi rmaram Franco Cardini e Marina Montesano.42 Recentemente Ruth Karras refe-riu-se a ela como uma das razões que fi zeram do governo de Inocêncio III um divi-sor de águas na compreensão cristã da relação entre a lei e a ilicitude.43 Opinião que parece seguir de perto a análise realizada por Laura Baietto há duas décadas: “la Vergentis segnò un momento signifi cativo nella costruzione di una societas chris-tiana intesa in senso unitario, a prescindere dalle distinzioni laico-ecclesiastico”.44 Maurice Bévenot viu na bula razão para localizar o pontifi cado inocenciano como marco fundador da Inquisição.45 Opinião assim arrematada por Kenneth Pennington: “until the persecution of heresy fell into desuetude in the eighteenth century, the law of heresy was governed by the stark provisions of Vergentis”.46

Entretanto, seria um equívoco tratar a Vergentis in Senium como uma “cria-ção papal”, o “inovador fruto” de uma racionalidade governamental estritamente pontifícia. Ao contrário do que sugeriu o seminal The Signifi cance of Innocent III’s Decretal Vergentis, publicado por Walter Ullmann na década de 1960,47 a bula inocenciana não foi um ponto de ruptura ou de “re-orientação” das práticas repres-

40 MARTÍNEZ DÍEZ, Gonzalo. Bulario de la Inquisición Española hasta la muerte de Fernando el Católico. Madrid: Editorial Complutense, 1997.

41 PETERS, Edward. Inquisition... op. cit., p. 48.42 CARDINI, Franco; MONTESANO, Marina. La Lunga Storia dell’Inquisizione: luci e ombre

della “leggenda nera”. Roma: Città Nuova, 2007, p. 19.43 KARRAS, Ruth Mazo et alii (Ed.). Law and the Illicit in medieval Europe. Philadelphia: Uni-

versity of Pennsylvania Press, 2008, p. 13.44 BAIETTO, Laura. Il Papa e le Città: papato e comuni in Italia centro-settentrionale secolo XIII.

Clio, vol. 21, 1985, p. 345-393.45 BÉVENOT, Maurice. The Inquisition and its antecedents III. Heythrop Journal, vol. 8, n. 1,

1967, p. 52-69. Ver ainda: FICHTENAU, Heinrich. Heretics and Scholars in the Middle Ages: 1000-1200. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 1998, p. 148.

46 PENNINGTON, Kenneth. “Pro Peccatis Patrum Puniri”: A Moral and Legal Problem of the Inquisition. Church History, vol. 47, 1978, p. 137-154, neste caso a citação deriva da p. 137. Ver: PENNINGTON, Kenneth; EICHBAUER, Melodie Harris (Orgs.). Law as Profession and Practice in Medieval Europe: essays in honor of James A. Brundage. Farnham: Ashgate Publishing, 2011, p. 41-48.

47 ULLMANN, Walter. The Significence of Innocent III’s Decretal Vergentis. Études d´histoire du droit canonique dédiées à Gabriel Le Bras. Paris: Sirey, 1965, vol. 1, p. 729-742.

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soras medievais. O argumento pode soar estranho, talvez absurdo ou “apologético” para alguns, mas essa bula pode ser considerada um mecanismo de refreamento da violência socialmente difundida, ao invés de um vetor de agravamento da opressão manejada pelas instituições. Vejamos um exemplo.

A fórmula do laesa maiestatis já havia sido aplicada sobre acusados de heresia antes de Inocêncio ordenar que ela fosse entregue ao pergaminho. Em outubro de 1194, Afonso II de Aragão sacou-a contra os valdenses e demais hereges durante as celebrações do sínodo de Lleida. Sem surtir o efeito dese-jado, a decisão foi confi rmada pelo sucessor no trono, Pedro II, em fevereiro de 1198, na assembleia de Gerona.48 Nas duas ocasiões, a coroa fortaleceu sua posição ordenando sanções ainda mais severas do que o Papado: as medidas já indicadas pela Ad Abolendam vieram acompanhadas de ordens de expulsão do reino, a concessão de amplos favores régios aos delatores da heresia e a ordem para que os corpos dos condenados fossem queimados (corpora eorum ignibus crementur).49 No âmbito da política papal, ações como estas eram abafadas pela ênfase depositada sobre o confi sco de patrimônio e o banimento de ofícios como punições anti-heréticas. A prioridade destas penas tornou-se empecilho prático para aplicação de sentenças letais. Como bem ressaltou Peter Clarke, no raiar do século XIII, a lei canônica não estipulava a morte para o expurgo da culpa.50 Embora evocassem as bulas papais como os textos instauradores de sua ação re-pressora, aqueles monarcas ibéricos não se limitavam a acatar suas disposições. Ao

48 GONNET, Giovani. Enchiridion Fontium Valdensium. Torre Pellice: Ed. Claudiana, 1958, vol. 1, p. 92; Edicto antiherético promulgado por el rey de Aragón Alfonso el Trovador contra valdenses, pobres de Lyon y otros herejes. In: MARQUÈS, Jaume. Alfonso II, el Casto, y la Seo de Gerona. VII Congreso de Historia de la Corona de Aragón. Barcelona: Vda. de Fidel Rodríguez, 1962, tomo II, p. 207-222; ALVIRA CABRER, Martín. Pedro el Católico, Rey de Aragón y Conde de Barcelona (1196-1213): documentos, testimonios y memoria histórica. Zaragoza: C.S.I.C., tomo I, p. 265 (Fuentes Históricas Aragonesas 52).

49 BARAUT, Cebriá. Els inicis de la inquisició a Catalunya i les seves actuacions al bisbat d´Urgell (segles XII-XIII). Urgellia: Anuari d’estudis històrics dels antics comtats de Cerdanya, Urgell i Pallars, d’Andorra i la Vall d’Aran, n. 13, 1996-1997, p. 407-438. Ver igualmente: ALVIRA CABRER, Martín. El cuerpo derrotado: cómo trataban musulmanes y cristianos a los enemigos vencidos (Península Ibérica, siglos VIII-XIII). Madrid: C.S.I.C, 2008, p. 249-256; GASCÓN CHOPO, Carles. La carta de Niquinta y la Ecclesia Aranensis: una reflexión sobre los orígenes del catarismo en Catanluña. Espacio, Tiempo y Forma, serie 3, tomo 21, 2008, p. 139-158; SMI-TH, Damian J. Innocent III and the crown of Aragon. Aldershot: Ashgate Publishing, 2004, p. 33-36; SMITH, Damian. Crusade, Heresy and Inquisition in the Lands of the Crown of Aragon, c. 1167-1276. Leiden: Brill, 2010, p. 91.

50 CLARKE, Peter. Innocen III, Canon Law and the Punishment of the Guiltness. In: MOORE, John C.; BOLTON, Brenda et alii (Ed.). Pope Innocent and His World. Aldershot: Ashgate Publishing, p. 272-285.

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contrário, eles as aplicavam de maneira autônoma, superavam-nas, excediam-nas, subordinavam-nas a dinâmicas jurídicas diversas, a realidades políticas em que o lugar de instância decisória não estava ocupado pelo poder pontifício.

O exemplo aragonês – um entre muitos possíveis – realça a descentralização medieval das práticas inquisitoriais e, simultaneamente, age como uma ferroada em nossa recorrente postura de tratar estas bulas como fontes de um sistema normativo. Afi nal, nós historiadores, teimamos em enquadrá-las neste modelo de ordem jurídica fi rmado pelo constitucionalismo do século XIX. Agimos assim toda vez que olhamos para as decretais papais e julgamos ver as linhas de forças que permitem deduzir o vasto quadro do direito daquela época, como se os com-portamentos sociais, em sua amplitude, estivessem ligados aos princípios gerais contidos nestas páginas, de onde emanaria certa unidade jurídica essencial.51 Nesta perspectiva, a Ad Abolendam e a Vergentis in Senium são encaradas como pontos aos quais a realidade deveria permanecer acorrentada. Bastaria tomar suas normas como verdadeiro farol histórico, como o vértice em função do qual os poderes medievais traçariam a extensão da legalidade e o mais-além da ilicitude.52

Tal atitude retrata a imensa dívida intelectual que temos com os constituciona-listas e sua fervorosa “paixão pelas leis”, que elevou o texto jurídico ao patamar de instituidor da vida social, exaltando-o como plataforma de fundação das condutas e decisões coletivas. Não sem razão esta imagem das leis como os eixos de grandes afrescos históricos tem nos atraído há décadas ao reconfortar nossa racionalidade científi ca: “o monismo jurídico oferece vantagens e autoriza o repouso das cer-tezas: o que pode ser mais tranquilizador que um astro único num céu fi xo?”53

Os textos aqui traduzidos pertenciam a um irredutível ambiente de pluralis-mo jurídico. As bulas apresentadas nas páginas seguintes estavam situadas nos cruzamentos de múltiplas ordens jurídicas, atravessadas por diversos parâmetros de normatização. Esses documentos da história inquisitorial não eram as chaves

51 GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 113.

52 Sob este olhar, os preceitos escritos figuram como imperativos de conduta, e qualquer desvio ou inobservância a seu respeito significaria, para os agentes históricos, violação ou grave distúrbio. Interpretação que advém de um modo de pensar proveniente do século XIX e dos códigos legais elaborados sob inspiração do positivismo jurídico. Entendimento frequentemente sugerido por estudos de grande relevância historiográfica e inegável capacidade erudita: PIERGIOVANNI, Vito. La punibilità degli innocenti nel diritto canonico dell’età classica. Milão: Giuffrè, 1971-1974, 2 vol.; PENNINGTON, Kenneth. Popes, Canonists and Texts, 1150-1550. Londres: Variorum, 1993; MAISONNEUVE, Henri. Le droit romain et la doctrine inquisitoriale. In: Études d’histoire du droit canonique dédiées à Gabriel Le Bras. Paris: Sirey, 1965, p. 931-942.

53 ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 159.

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lógicas da ordem legal dos séculos XII e XIII, mas algumas de suas muitas partes: fragmentos de uma época juridicamente descentrada e distante da uniformização institucional.54 No que tange ao período em questão, é preciso reconhecer que os textos canônicos, embora cristalizassem o racionalismo das universidades medie-vais, frequentemente fi guravam como confi ns da ordem jurídica existente, não como “o cerne” que a estruturava. Entre eles e a concretização da prática legal havia um longo e contraditório caminho a ser percorrido pelas elites senhoriais, impondo sobre situações idênticas àquelas mencionadas nos textos das bulas a legítima incidência de mecanismos jurídicos diferentes, díspares. Por conseguin-te, incorremos em certos abusos quando pressupomos que as relações entre as formulas textuais e a efetiva decisão jurídica estariam calcadas na linearidade ou mesmo em alguma transposição direta.

A bula de 1199 foi rapidamente difundida pela Igreja Romana, que em menos de cinco anos garantiu sua presença no Languedoc e em cortes cristãs de Aragão até a Hungria.55 Mas a política anti-herética registrada em suas linhas a precedia: o regime repressor expressado por ela jamais esteve dado na própria letra da lei, ele a ultrapassava como uma densa e dispersa nuvem de poderes locais, não como um governo unitário e coeso irradiado por um “centro” sobre o mundo cristão. Em suma, um ângulo de observação cada vez mais promissor para o estudo de documentos como a Ad Abolendam e a Vergentis in Senium parece ser o de tratá-los como mediadores sociais, que, como tal, devem ter seu signifi cado histórico avaliado à luz da incidência de diversos outros fatores juridicamente decisivos, quiçá proeminentes em relação às lógicas das práticas escriturísticas. Se ainda sentimos desconforto perante esta proposição, talvez isso se deva ao

54 MESCHINI, Marco. L’evoluzione della normativa antiereticale di Innocenzo III dalla Vergentis in Senium (1199) al IV concilio lateranense (1215). Bullettino dell’Istituto Storico Italiano per il Medio Evo, n. 106, vol. 2, 2004, p. 207-231; MESCHINI, Marco. Validità, novità e carattere della decretale “Vergentis in senium” di Innocenzo III (25 marzo 1199). Bulletin of Medieval Canon Law, n. 25, 2002/2003, p. 94-113.

55 Em 1200 a bula foi enviada a Giovanni São Paulo, cardeal presbítero de Sancta Prisca e legado no Languedoc, para instruir a luta contra os cátaros: POTTHAST, n. 1092; THOUZELLIER, Christine. Catharisme et Valdéisme em Languedoc à la fin du XIIe siècle et au début du XIIIe siècle. Paris: PUF, 1966, p. 156. Em outubro do mesmo ano seu texto foi integrado à correspon-dência destinada a Emerico, rei da Hungria, exortando-o a expulsar de suas terras o banus Culin de Bosnia, reputado como protetor dos hereges bogomilos: INNOCÊNCIO III. Epistola 3.5. PL vol. 214, col. 872. Em 1203, a bula foi endereçada à rainha Sancha de Aragão: CABRER, Martín Alvira; SMITH, Damian. Política Antiherética en la corona de Aragón: una carta inédita de Ino-cencio III a la Reina Sancha. Acta Historica Archaeologica Mediaevalia, n. 27-28, 2006, p. 65-88.

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velho hábito de permanecer impressionados pela tenebrosa grandeza histórica reputada às inquisições.

“Inquisição”. Aí está um nome refém de uma lenda negra ainda hoje alimen-tada pelo pensamento liberal.56 São poucos os que o pronunciam sem deixar a voz cair num tom tétrico ou o semblante ser carregado por um ar grave. Mais raros ainda os que deixam de sentir um respeito reverencial pelos conceitos atrelados a ele. Nós, historiadores, costumamos enxergá-lo como a marca de crimes quase impronunciáveis, uma chaga de obscurantismos, o funesto privilégio de uma herança acima de tudo católica e ibérica.57 Reconhecer e condenar esta “agência de segregação e sofrimento” fi gura em nossa cultura acadêmica como um hábito intelectual tanto quanto um dever moral.

Porém, há quase um século esta imagem enraizada tem sido alvo de valiosos esforços de revisão crítica,58 graças aos quais pudemos perceber que as inqui-sições não foram criações alheias à vida social comum, como se tivessem sido instrumentos de um terror excepcional, chamado à vida por instituições triunfan-tes e imposto “dos pináculos do poder” sobre o tecido do convívio coletivo. As práticas inquisitoriais medievais não eram tentáculos de uma esfera majestática superior, que desfi gurava as relações sociais para melhor dominá-las do alto, de fora. Não. Elas decorriam de vastos movimentos sociológicos, resultavam

56 MORENO MARTÍNEZ, Doris. La Invención de la Inquisición. Madri: Marcial Pons, 2004, p. 231-305.

57 Ver o panorama crítico de: MOLINO MARTÍNEZ, Miguel. Historia de la Leyenda Negra Hispa-noamericana. Madrid: Marcial Pons, 2004. Ver ainda: THOMAS, Werner. Los Protestantes y la Inquisición en España en tiempos de Reforma y Contrarreforma. Louvain: Presses Universitaires de Louvain, 2001, p. 6-30.

58 A extensa discussão sobre este tópico pode ser encontrada em: KAMEN, Henry. La Inquisición Española: una revisión histórica. Barcelona: Crítica, 1999; DUFOUR, Gérard. Los orígenes de la historiografía sobre la Inquisición: la obra de Juan Antonio Llorente y su evolución de 1797 a 1817. In: GONZÁLEZ TROYANO, Alberto et alii (Org.). Historia, memoria y ficción: 1750-1850. IX Encuentro de la Ilustración al Romanticismo. Cádiz: Ed. Universidad de Cádiz, 1999, p. 15-22. Para o período medieval, algumas das principais referências são: ARNOLD, John H. Inquisition and Power: catharism and the confessing subject in medieval Languedoc. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2001; ESCUDERO, José Antonio. Intolerancia e Inquisición. Madrid: Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2006; FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: EDPUC, 2003; HANAWALT, Barbara ; WALLACE, David (Eds.). Medieval Crime and Social Control. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2001; IOGNA-PRAT, Dominique. Ordonner et exclure: Cluny et la societe chretienne face a l’heresie, au judaisme et a l’islam, 1000-1150. Paris: Aubier, 1998; PETERS, Edward. Inquisition... op. cit.; PETERS, Edward. Torture. Oxford: Basil Blackwell, 1985; RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

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da interação social: para o historiador a repressão inquisitorial pressupõe uma sociedade repressora, mais do que algum gênio malévolo.59

As engrenagens repressoras da inquisitio devem ser restituídas à ordem social que as abrigava. Este parece um raciocínio elementar, verdadeiramente basilar. Parece, e é só. Pois, nós, historiadores, insistimos em recusá-lo. Quando se trata da “Inquisição”, nós persistimos na atitude (ou seria “costume”?) de vislumbrá-la em formato quase absoluto, como um círculo autônomo de poderes, fechado sobre interesses sigilosos, nicho de uma forma toda peculiar de entender o mundo. Fiéis às raízes oitocentistas de nossas ideias, nos agarramos ao hábito de ver as práticas inquisitoriais como atos de uma “Instituição Política”. Isto é, como ações de um robusto organismo de poder, diferenciado da sociedade para se tornar impetu-osamente efi caz.60 A “Inquisição Medieval” fi gura em nossas mentes como um vilão, como o algoz da “correta ordem social”, e surge, segundo a sagaz crítica de Alfredo Alvar Ezquerra, como “un instrumento impuesto por no se sabe bien quién contra el ‘pueblo’, un ente angelical que es siempre el buen salvaje”.61

Concretamente, isto implica em afi rmar que as inquisições medievais não cabem na caracterização de poderes delegados por pontífi ces. Porém, mais do que a imagem do Papado, o que esta afi rmação coloca em debate é o próprio conceito de poder. Em fenômenos como as inquisições, cujas forças e impac-tos trespassaram estruturas sociais e perduraram por séculos, teriam sido as relações de poder grandezas vetoriais? Puderam ser exercidas unilateralmente? Controladas e apontadas como setas para os confl itos e a interação sociológica? A repressão e a intolerância vivenciadas em larga escala eram efeitos de pontos de efusão do poder, como se ele emanasse de núcleos originários de coerção e de desigualdade? Nas vicissitudes de tempos violentos, o poder foi um “objeto” manipulado somente pelas instituições, que o disparavam contra o conjunto social, ditando sua direção, curso e efi cácia?

Se a resposta para perguntas como estas for “sim”, então devemos preservar a imagem das inquisições medievais como “criações pontifícias”, como instru-mentos do “governo dos papas”. Entretanto, se a Antropologia Política62 e a Nova

59 MOORE, Robert I. La Formación de una... op. cit. Ver igualmente: JOHNSTONE, Nathan. The Devil and Demonism in Early Modern England. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 1-59.

60 SHAPIRO, Ian; SKOWRONEK, Stephen; GALVIN, Daniel (Ed.). Rethinking Political Institu-tions: the art of the State. Nova York: New York University Press, 2006, p. 1-90.

61 EZQUERRA, Alfredo Alvar. La Inquisición Española. Madri: Akal, 2009, p. 4.62 CLAVERO, Bartolomé. Tantas Personas como Estados: por una antropología política de la

historia europea. Madrid: Tecnos, 1986. Ver ainda: CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o

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Ciência Política63 estiverem corretas ao problematizar o poder como fenômeno intrinsecamente dinâmico e multidirecional, como complexos domínios de tensões sociais, então será preciso – e essa é nossa opinião – deter o passo e repensar o papel do Papado medieval na movente realidade dos poderes inquisitoriais. Não se trata de eximir os governos pontifícios deste passado ou empurrá-los para o fundo de contextos que nos façam perder de vista sua condição de promotores da violência. Tampouco de agraciá-los com uma “lenda branca da Inquisição”. Trata-se, mais do que antes, de encará-los como partes dos horizontes maiores de uma história social e política da repressão. Vê-los como integrantes dos processos históricos e não como seus artífi ces soberanos, senhores dos comportamentos coletivos, instâncias capazes de reger épocas inteiras de cima, do alto de sua alegada autoridade. Em síntese, ações pontifícias como as bulas aqui traduzidas não são autoexplicativas: seus textos não foram declarações fundadoras do que se passou, nem detentores da “lógica essencial” das experiências de intolerância, exclusão e coação que compartilhamos como sociedade por obra da constituição do Ocidente e da própria Cristandade.

Se quebrarmos o encantamento deste olhar que nos remete sempre à imagem de um “self-supporting body”64 e explorarmos a constelação das forças socio-lógicas e políticas que envolviam as ações repressoras, descobriremos cenários históricos dinâmicos, amiúde muito instáveis, quiçá imprevisíveis. Movidos por esta expectativa traduzimos a Ad Abolendam e a Vergentis in Senium e as apresentamos em versão bilíngue, latim-português, pela primeira vez no Brasil: dispostas em versões mais acessíveis, que elas possam fecundar nossa compre-ensão da história inquisitorial.

Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003; CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2005; DONOVAN, James M. Legal Anthropology: an introduction. La-nham: AltaMira Press, 2008; KURTZ, Donald V. Political Anthropology: paradigms and power. Cambridge: Westview Press, 2001; LEWELLEN, Ted C. Introducción a la Antropología Política. Barcelona: Bellaterra, 2009; VINCENT, Joan (Ed.). The Anthropology of Politics: a reader in ethnography, theory and critique. Oxford: Blackwell Publishing, 2002.

63 CHARBY, Annie; CHARBY, Laurent. Le Pouvoir dans touts ses États. Paris: Imago, 2003; MCFALLS, Laurent. Construire le politique: contingence, causalité et connaissance dans la Science Politique Contemporaine. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 2006; PIERSON, Paul. Politics in Time: history, institutions, and social analysis. Nova Jersey: Princeton University Press, 2004; SFEZ, Lucien (Dir.). Science Politique et Interdisciplinarité. Paris: Publications de la Sorbonne, 2002; TOFFLER, A. Les Nouvaux Pouvoirs: savoir, richesse et violence à la veille du XXIe siècle. Paris: L.G.F., 1993; VOEGELIN, Eric. La Nouvelle Science du Politique. Paris: Seuil, 2000.

64 RAWLINGS, Helen. The Spanish Inquisition. Oxford: Blacwell, 2006, p. 21.

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1184, novembris 4. Veronae.Lucii III Constitutio Apostolica

Bula Ad AbolendamLiber Quintus. Ed.: Emil Friedberg. Corpus Iuris

Canonici. Leipzig: Bernhard Tauchnitz, 1881, vol. 2, col. 780-782. Reeditado em Graz: Akademis-

che Druck-U. Verlagsanstalt, 1959.

[1] Ad abolendam diversam haeresium pravitatem, quae in plerisque mundi partibus modernis coepit temporibus pullulare, vigore debet ecclesiasticus ex-citari, cui nimirum imperialis fortitudi-nis suffragante potentia, et haereticorum protervitas in ipsis falsitatis suae cona-tibus elidatur, et catholicae simplicitas veritatis in ecclesia sancta resplendens, eam ubique demonstret ab omni exse-cratione falsorum dogmatum expiatam.

[2] Ideoque nos carissimi filii nostri Friderici, illustris Romanorum impera-toris semper Augusti praesentia pariter et vigore suffulti, de communi fratrum nostrorum consilio, nec non aliorum pa-triarcharum archiepiscoporum multoru-mque principum, qui de diversis partibus imperii convenerunt, contra ipsos haere-ticos, quibus diversa capitula diversarum indidit professio falsitatum, praesentis decreti generali sanctione consurgimus, et omnem haeresim, quocumque nomine censeatur, per huius constitutionis seriem auctoritate apostolica condemnamus.

4 de novembro de 1184. Verona.Constituição Apostólica de Lúcio III.

Bula Ad Abolendam

[1] Para abolir a depravação pervertida das heresias que no tempo presente tem começado a pulular em várias partes do mundo, deve-se provocar o eclesiástico com vigor, através do qual, com o auxílio do poder imperial, não só seja esmagada a insolência dos hereges nos próprios esforços de sua falsidade, mas também a simplicidade da verdade católica, resplandecendo na santa igreja, mostre-a por toda parte purifi cada de toda maldição de falsos dogmas.

[2] Por isso, sustentados com a força de nosso filho caríssimo, Frederico, ilustre imperador dos romanos, sem-pre augusto, com o habitual conselho de nossos irmãos, [os cardeais], bem como de outros patriarcas, arcebispos e muitos príncipes, que vieram de ou-tras regiões longínquas do império, mediante a promulgação do presente decreto geral, nos erguemos contra os próprios hereges, cuja explicitação de falsidades pervertidas gerou propo-sições desvirtuadas e, por meio desta constituição, com a autoridade apostó-lica, condenamos toda a heresia, seja qual for o nome pelo qual é conhecida.

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[3] In primis ergo Catharos et Patarinos et eos, qui se Humiliatos vel Pauperes de Ludguno falso nomine mentiuntur, Pas-saginos, Iosephinos, Arnaldistas perpetuo decernimus anathemati subiacere.

[4] Et quoniam nonnulli, sub specie pietatis virtutum eius, iuxta quod ait Apostolus, denegantes, auctoritatem sibi vendicant praedicandi: quum idem Apostolus dicat: “quomodo praedica-bunt, nisi mittantur?” omnes, qui vel prohibiti, vel non missi, praeter auctori-tatem, ab apostolica sede vel ab episco-po loci susceptam, publice vel privatim praedicare praesumpserint.

[5] Et universos, qui de sacramento corporis et sanguinis Domini nostri Iesu Christi, vel de baptismate, seu de pec-catorum confessione, matrimonio vel reliquis ecclesiasticis sacramentis aliter sentire aut docere non metuunt, quam sacrosanta Romana ecclesia praedicat et observat, et generaliter, quoscumque eadem Romana ecclesia vel singuli episcopi per dioceses suas cum consilio clericorum, vel clerici ipsi sede vacante cum consilio, si oportuerit, vicinorum episcoporum haereticos iudicaverint, pari vinculo perpetui anathematis in-nodamus.

[3] Portanto, inicialmente determinamos que Cátaros, Patarinos, aqueles que são designados pelo falso nome de Humi-lhados ou Pobres de Lyon, Passaginos, Josefi nos e Arnaldistas sejam submeti-dos ao anátema perpétuo.

[4] E porque alguns deles, sob a aparên-cia de piedade e denegrindo a virtude, conforme diz o Apóstolo, reivindicam para si a autoridade para pregar, mesmo quando o mencionado Apóstolo disse “Como pregarão, se não foram envia-dos?”, [condenamos] todos que, proi-bidos ou não foram enviados, ousaram pregar publicamente ou em privado, sem ter recebido a autoridade da Sé Apostó-lica ou do bispo do lugar.

[5] E ligamos com o vínculo do aná-tema perpétuo todos que não temem sentir ou ensinar algo diferente do que a sacrossanta Igreja Romana prega e observa quanto aos sacramentos do Corpo e do Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, do batismo, da confi ssão dos pecados, do matrimônio ou dos demais sacramentos eclesiásticos. E em geral [ligamos com o mesmo vínculo] quem quer que tenha sido julgado herege pela mesma Igreja Romana ou por cada bispo em sua diocese, aconselhado pelos clérigos, ou pelos próprios clérigos, caso a sé episcopal esteja vacante, e, se for oportuno, aconselhado pelos bispos das dioceses vizinhas.

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[6] Receptores et defensores eorum, cunctosque pariter, qui praedictis haere-ticis ad fovendam in eis haeresis pravi-tatem patrocinium praestiterint aliquod vel favorem, sive consolati, sive cre-dentes, sive perfecti, seu quibuscunque superstitiosis nominibus nuncupentur, simili decernimus sententiae subiacere.

[7] Quia vero peccatis exigentibus quan-doque contigit, ut severitatis ecclesiasti-cae disciplinae ab his, qui virtutem eius non intelligunt, contemnatur, praesenti, nihilominus ordinatione sancimus, ut, quicunque manifeste fuerint in haeresi deprehensi, si clericus est vel cuiusli-bet religionis obumbratione fucatus, totius ecclesiastici ordinis praerogativa nudetur, et sic omni pariter offi cio et beneficio spoliatus ecclesiastico, sa-ecularis reliquatur arbitrio potestatis, animadversione debita puniendus, nisi continuo post deprehensionem erroris ad fi dei catholicae unitatem sponte re-currere, et errorem suum ad arbitrium episcopi regionis publice consenserit abiurare, et safistationem congruam exhibere. Laicus autem, quem aliqua praedictarum pestium notoria vel privata culpa resperserit, nisi, prout dicutum est, abiurata haeresi et satisfactione exhibita confestim ad fi dem confugerit orthodoxam, saecularis iudicis arbitrio reliquantur, debitam recepturus pro qualitate facinoris ultionem.

[6] Também ordenamos que se enquadrem na mesma sentença todos os seus acolhedo-res e protetores, e todos que, de alguma for-ma, oferecerem algum apoio ou ajuda aos mencionados hereges, com o propósito de fomentar sobre eles a depravação herética, [e igualmente] os consolados, ou crentes, ou perfeitos ou quaisquer outros nomes supersticiosos pelos quais são chamados.[7] Posto que, às vezes, na verdade, acon-tece que a severidade da disciplina ecle-siástica contribui em estímulos para o pecado quando é promovida pelos que não compreendem sua virtude, determinamos pela presente ordenação, quanto àqueles que manifestamente foram surpreendidos em heresia, se for clérigo ou se estiver sob a proteção de qualquer ordem religiosa, que seja despojado da prerrogativa de toda ordem eclesiástica, destituído de todo ofício e benefício eclesiástico e entregue ao julgamento do poder secular para ser punido com a pena adequada, exceto se, imediatamente após o erro ter sido des-coberto, ele retornar espontaneamente à unidade da fé católica, consentir em abjurar publicamente de seus erros perante o julgamento do bispo local e cumprir com a satisfação correspondente. Por sua vez, o leigo que tiver sido maculado com alguns dos delitos, notórios ou privados, das mencionadas pestes, deve ser condu-zido ao julgamento do juiz secular para receber a punição devida à qualidade das más ações, exceto se, conforme foi dito antes, tiver abjurado da heresia e cumprido com a satisfação correspondente, logo que regressou à fé ortodoxa.

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

[8] Qui vero inventi sola ecclesiae suspicione notabiles, nisi ad arbitrium episcopi iuxta considerationem suspi-cionis qualitatemque personae propriam innocentiam congrua purgatione mons-traverint, simili sententiae subiacebunt. Illos quosque, qui post abiurationem erroris, vel, postquam se, ut diximus, proprii antistitis examinatione purga-verint, deprehensi fuerint in abiuratam haeresim recidisse, saeculari iudicio sine ulla penitus audentia decernimus relin-quendos, bonis damnatorum clericum ecclesiis, quibus deserviebant, secun-dum sanctiones legitimas applicandis.

[9] Sane praedictam excommunicationis sententiam, cui omnes haereticos praeci-pimus subiacere, ab omnibus patriarchis, archiepiscopis et episcopis in praecipuis festivitatibus, et quoties solennitates habuerint vel quamlibet occasionem, ad gloriam Dei et reprehensionem hae-reticae pravitatis decernimus innovari, auctoritate apostolica statuentes, ut, si quis de ordine episcoporum in his negli-gens fuerit vel desidiosus inventus, per triennale spatium ab episcopali habeatur dignitate et administratione suspensus.

[8] Aqueles descobertos só pela Igreja em evidente suspeita serão submetidos à mesma sentença, exceto se apresenta-rem ao julgamento do bispo, segundo a consideração da suspeita e a qualidade da pessoa, a própria inocência, por intermé-dio da reparação adequada. Também aos que, após a abjuração do erro ou, como dissemos, após terem se purifi cado [dele] mediante o exame do próprio antístite bispo, forem surpreendidos reincidindo na heresia abjurada, determinamos que sejam entregues ao julgamento secular, sem nenhuma outra [possibilidade] de apelação, e que os bens dos condenados sejam entregues ao clérigo das igrejas aos quais serviam, segundo as sanções legítimas a serem aplicadas.

[9] Determinamos que a referida senten-ça de excomunhão, à qual devem estar submetidos todos os hereges, seja reite-rada por todos os patriarcas, arcebispos e bispos nas principais festividades e mantidas em todas as solenidades ou demais ocasiões, para a glória de Deus e a repressão da depravação herética. Se alguém da ordem dos bispos for consi-derado negligente ou ocioso quanto ao cumprimento desta constituição, por força da autoridade apostólica, ordena-mos sua suspensão da dignidade e da administração episcopal pelo espaço de três anos.

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

[10] Ad haec de episcopali consilio et suggestione culminis imperialis et principum eius adiecimus, ut quilibet archiepiscopus vel episcopus per se, vel archidiaconum, suum [sic], aut per alias honestas idoneasque personas, bis vel semel in anno propriam parochiam, in qua fama fuerit haereticos habitare, circumeat, et ibi tres vel plures boni testimonii viros, vel etiam, si expedire videbitur, totam viciniam iurare com-pellat, quod, si quis ibidem haereticos scierit vel aliquos occulta conventicula celebrantes, seu a communi conversatio-ne fi delium vita et moribus dissidentes, eos episcopo vel archidiacono studeat indicare. Episcopus autem vel archidia-conus ad praesentiam suam convocet accusatos, qui, nisi se ad eorum arbi-trium iuxta patriae consuetudinem ab obiecto reatu purgaverint, vel, si post purgationem exhibitam in pristinam relapsi fuerint perfi diam, episcoporum iudicio puniantur. Si qui vero ex eis, iurationem superstitione damnabili respuentes, iurare forte noluerint, ex hoc ipso haeretici iudicentur, et poenis, quae praenominatae sunt, percellantur.

[10] A isto, por conselho dos bispos e re-comendação do cume imperial e de seus príncipes, acrescentamos que qualquer arcebispo ou bispo, por si mesmo, ou por seu arquidiácono ou por outras pessoas honestas e idôneas, uma ou duas vezes ao ano, percorra a própria paróquia na qual tenha a notícia de que aí vivem he-reges, e aí obrigue a três ou mais homens de bem, ou ainda, se parecer proveito-so, a toda a vizinhança, a jurar que se esforçarão para indicar ao bispo ou ao arquidiácono os que se sabe são hereges ou os que celebram reuniões secretas ou os que se afastam do convívio habitual, da vida e dos costumes dos fi éis. Que o bispo ou o arquidiácono convoque os acusados à sua presença, os quais devem ser punidos segundo o julgamento dos bispos, exceto se tiverem se purifi cado da acusação imputada mediante o jul-gamento deles e segundo o costume do lugar ou, se após terem se purifi cado, forem relapsos reincidindo na perfídia anterior. Se alguns deles, movidos por superstição condenável, recusando o juramento, talvez, se negarem a prestá-lo, que sejam considerados por isto como hereges e submetidos às penas que foram relacionadas acima.

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

[11] Statuimus insuper, ut comites, ba-rones, rectores et consules civitatum et aliorum locorum, iuxta commonitionem archiepiscoporum et episcoporum, pra-estito corporaliter iuramento promittant, quod in omnibus praedictis fi deliter et effi caciter, ab eis exinde fuerint requisiti, ecclesiam contra haereticos et eorum complices adiuvabunt et studebunt bona fi de iuxta offi cium et posse suum eccle-siastica simul et imperiali statuta circa ea, quae diximus, exsecutioni mandare. Si vero id observare noluerint, honore, quem obtinent, spolientur et ad alios nullatenus assumantur, eis nihilominus excommunicatione ligandis, et terris ipsorum interdicto ecclesiae supponen-dis. Civitas autem, quae his decretali-bus institutis duxerit resistendum, vel contra commonitionem episcopi punire neglexerit resistentes, aliarum careat commercio vicitatum et episcopali se noverit dignitate privandam. Omnes etiam fautores haereticorum tanquam perpetua infamia condemnatos, ab ad-vocatione et testimonio et aliis publicis officiis decernimus repellandos. Si qui vero fuerint, qui a lege diocesanae iurisdiciones exempti, soli subiaceant sedis apostolicae potestati, nihilominus in his, quae superius sunt contra hae-reticos instituta, archiepiscoporum vel episcoporum subeant iudicium, et eis in hac parte, tanquam a sede apostolica delegatis, non obstantibus libertatis suae privilegiis, obsequantur.

[11] Além disso, determinamos que os condes, barões, rectores e cônsules das cidades e de outros lugares, conforme a admoestação dos arcebispos e bispos, mediante juramento prestado pessoal-mente, prometam auxiliar fi el e efi caz-mente a Igreja contra os hereges e seus cúmplices, em tudo que foi [aqui] men-cionado, quando forem requisitados; e de boa fé se empenharão em executar todos os estatutos eclesiásticos e imperiais que ditamos, conforme o seu ofício e poder. Mas, se não quiserem observar isto, que sejam destituídos da honra que gozam e de modo algum não obtenham outra e que sejam ligados pela excomunhão e que as terras deles estejam sob o interdito imposto pela Igreja. A cidade que resistir a cumprir estas decretais estabelecidas ou, contrariando a exortação do bispo, ne-gligenciar a punir os que se lhes opõem, estará impedida de comercializar com os vizinhos, saiba que será privada da dignidade episcopal. Também determina-mos que todos os partidários dos hereges sejam condenados em infâmia perpétua bem como sejam excluídos da assistência judiciária, de prestar testemunho e de outros ofícios públicos. Entretanto, com base na lei, se houver alguém que esteja isento da jurisdição diocesana, submeta-se apenas ao poder da Sé Apostólica, naquilo que acima foi decretado contra os hereges, todavia, esteja submisso e acate o julga-mento dos arcebispos e dos bispos e nesse aspecto, como se fossem delegados da Sé Apostólica, não obstante os privilégios de sua isenção.

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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

1199, martii 25. RomaeInnocentii III Litterae Decretales

Bula Vergentis in SeniumDie Register Innocenz’ III. 2. Pontifikatsjahr. 2. Pontifiktsjahr 1199-1200. Ed.: O. Hagene-

der, W. Maleczek and A. Strnad.Roma, 1979, n. 1, p. 3-5

[1] Vergentis in senium saeculi corrup-telam non solum sapiunt elementa cor-rupta, sed etiam dignissima creaturarum ad imaginem et similitudinem condita Creatoris, praelata privilegio dignitatis volucribus coeli et bestiis universae terrae testatur, nec tantum eo quasi defi ciente iam defi cit, sed et infi cit et in-fi citur scabra rubigine vetustatis. Peccat enim ad extremum homo miserrimus, et, qui non potuit in sui et mundi creatione in paradiso persistere, circa sui et orbis dissolutionem degenerat, et pretii suae redemptionis circa fines saeculorum oblitus, dum variis ac vanis quaestionum se nexibus ingerit, se ipsum laqueis suae fraudis innectit, et incidit in foveam, quam paravit. Ecce etenim, inimico homine messi dominicae supersemi-nante semen iniquum, segetes in zizania pullulant, vel potius polluuntur, triticum arescit, et evanescit in paleas, in fl ore tinea et vulpes in fructu demoliri vineam Domini moliuntur.

25 de março de 1199. Roma.Cartas Decretais de Inocêncio III.

Bula Vergentis in Senium

[1] A corrupção do mundo que avança para a velhice não faz apenas elementos corrompidos exalarem, mas igualmente extingue em um vazio a digníssima reu-nião dos que foram criados à imagem e à semelhança do Criador, privilégio cuja dignidade superior é testemunhada pelas aves do céu e pelos animais de toda terra, mas que deteriora e é deteriorada pela áspera inação da velhice. De fato, o mui-to miserável homem peca ao extremo, e quem não pôde, em si e na criação do mundo, permanecer no paraíso, dissemi-na a dissolução à sua volta e no mundo: esquece o preço de sua redenção levado por razões mundanas, enquanto se deixa envolver com os laços de questões va-riadas e vãs, ata a si mesmo com os nós de suas fraudes e precipita-se num fosso que ele próprio cava. Eis, com efeito, o rebento iníquo semeando para o inimigo do homem sobre a colheita do Senhor, eis que as searas germinam, ou melhor, são poluídas com cizânia, o trigo seca e evanesce em palhas, a traça e a raposa se põem em ação para destruir a fl or e o fruto da vinha do Senhor.

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[2] Nova siquidem sub novo testamen-to Achor progenies de spoliis Iericho lingulam auream palliolumque furatur, [et] Abyron, Dathan et Chore soboles detestanda novis thuribulis fermentatum thymiama novis volunt altaribus ado-lere, dum nox nocti scientiam indicat, dum caecus praebet caeco ducatum, dum haereses pullulant, et quem divinae reddit hereditatis expertem, suae cons-tituit haereticus haeresis et damnationis heredem. Hi sunt caupones, qui aquam vino commiscent, et virus draconis in aureo calice Babylonis propinant, ha-bentes, secundum Apostolum, speciem pietatis, virtutem autem eius penitus abnegantes. Licet autem contra vulpes huiusmodi parvulas, species quidem ha-bentes diversas, sed caudas ad invicem colligatas, quia de vanitate conveniunt in id ipsum, diversa praedecessorum nostrorum temporibus emanaverint instituta: nondum tamen usque adeo pestis potuit mortifi cari mortifera, quin, sicut cancer, amplius serperet in occulto, et iam in aperto suae virus iniquitatis effundat, dum palliata specie religionis et multos decipit simplices, et quosdam seducit astutos, factus magister erroris, qui non fuerat discipulus veritatis.

[2] Portanto, sob o Novo Testamento, a nova prole de Acor rouba a cunha de ouro e o manto, espólios de Jericó; Abi-rão, Datã e os detestáveis descendentes de Coré desejam adorar novos altares com novos incensos de novos turíbulos, enquanto a noite indica a sabedoria à outra noite, enquanto o cego oferece-se para guiar o cego, enquanto as heresias pululam e quem oferece a herança di-vina, desprovido dela, se torna herege, herdeiro de sua heresia e condenação. Estes são os taberneiros que misturam água com o vinho e misturam o veneno do dragão no cálice de ouro da Babilô-nia, conservando, segundo o Apóstolo, aparentando uma espécie de piedade, mas negando por completo a sua virtude. No entanto, contra tais raposinhas que, de fato, possuem diversas aparências, embora todas estejam mutuamente unidas pelas caudas, já que se reúnem levadas pela vaidade deste mesmo pro-pósito, em diferentes ocasiões, inúmeros predecessores nossos tomaram medidas, mas não ao ponto de ter podido aniquilar a peste mortífera, sobretudo contra este câncer que se espalhou amplamente de modo oculto e que, agora, abertamente derrama a iniquidade de seu veneno, enquanto, sob a forma farsesca de re-ligião engana muitos homens simples e seduz alguns astutos, transformando num mestre do erro quem não tinha sido um discípulo da verdade.

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[3] Ne autem nos, qui, licet circa horam undecimam inter operarios, immo verius super operarios vineae Domini Sabaoth sumus a patrefamilias evangelico depu-tati, et quibus ex offi cio pastorali sunt oves Christi commissae, nec capere vulpes demolientes vineam Domini, nec arcere lupos ab ovibus videamur, et ob hoc merito vocari possimus canes muti non valentes latrare, ac perdamur cum malis agricolis et mercenario compare-mur: contra defensores, receptatores, fautores et credentes haereticorum ali-quid severius duximus statuendum, ut, qui per se ad viam rectitudinis revocari non possunt, in suis tamen defensoribus, receptatoribus et fautoribus, ac etiam credentibus confundantur, et, quum se viderint ab omnibus evitari, reconciliari desiderent omnium unitati.

[3] De fato, nós, que, por assim dizer, por volta da undécima hora, como o pai de família do evangelho, fomos designados para estar entre os lavrado-res ou, melhor, na verdade, acima dos lavradores das vinhas do Senhor Deus, e a quem, por ofício pastoral, as ovelhas de Cristo foram confi adas, a fi m de que não sejamos vistos como incapazes de capturar as raposas que estão destruindo a vinha do Senhor, nem afastar os lobos das ovelhas – e por essa razão poderí-amos ser merecidamente chamados de cachorros mudos, incapazes de latir e sermos comparados a maus lavradores e a um mercenário – nós autorizamos medidas um tanto severas contra os defensores, acolhedores, colaboradores e adeptos dos hereges; para que, dessa forma, aqueles que por si não podem ser reconduzidos ao caminho da retidão, sejam, entretanto, confundidos pela con-dição de seus defensores, acolhedores, colaboradores e adeptos, e quando eles se virem, repelidos por todos, que dese-jem se reconciliar na unidade de todos.

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[4] De communi ergo fratrum nostrorum consilio, assensu quoque archiepis-coporum et episcoporum apud sedem apostolicam exsistentium, districtius inhibemus, ne quis haereticos recep-tare quomodolibet vel defensare, aut ipsis favere vel credere quoquo modo praesumat, praesenti decreto firmiter statuentes, ut, si quis aliquid horum facere praesumpserit, nisi primo se-cundove commonitus a sua super hoc curaverit praesumptione cessare, ipso iure sit factus infamis, nec ad publica officia vel consilia civitatum, nec ad eligendos aliquos ad huiusmodi, nec ad testimonium admittatur. Sit etiam intes-tabilis, nec ad hereditatis successionem accedat. Nullus praeterea ipsi cogatur super quocunque negotio responde-re. Quodsi forte iudex exstiterit, eius sententia nullam obtineat fi rmitatem, nec causae aliquae ad eius audientiam perferantur. Si fuerit advocatus, eius patrocinium nullatenus admittatur. Si tabellio, instrumenta confecta per ipsum nullius sint penitus momenti, sed cum auctore damnato damnentur. In simili-bus etiam idem praecipimus observari. Si vero clericus fuerit, ab omni offi cio et benefi cio deponatur, ut, in quo maior est culpa, gravior exerceatur vindicta.

[4] Portanto, de acordo com a sugestão consensual de nossos irmãos, [os carde-ais], e igualmente, com o assentimento dos arcebispos e bispos presentes nesta Sé Apostólica, proibimos com todo rigor que, de maneira nenhuma, ninguém se atreva, de algum modo, a acolher os hereges, defendê-los, favorecê-los ou apoiá-los; se alguém se atrever a fazer algumas dessas coisas, a não ser que se empenhe em ratifi car sua ousadia, após ser avisado pela primeira e segunda vez, mediante este decreto, por força do pró-prio direito, estabelecemos fi rmemente que seja considerado infame e não seja aceito para exercer cargos públicos ou tomar parte nos conselhos citadinos ou participar das eleições para tais cargos e tampouco seja admitido como testemu-nha. Que igualmente seja incompetente para testemunhar nem tenha direito à sucessão hereditária. Ademais, que ninguém seja obrigado a atender-lhe nas obrigações de quaisquer negócios. Caso se trate de um juiz, que sua sentença não tenha valor algum, nem causa alguma seja apresentada ao seu tribunal. Se for advogado, que de modo algum seja aceito para defender. Se for tabelião, que os documentos redigidos por ele care-çam de todo efeito e sejam condenados juntamente com seu autor já condenado. Em casos semelhantes, também orde-namos a observância do mesmo [modo de proceder]. Se for clérigo, que seja deposto de todo cargo e benefício, a fi m de que naquele em que há maior culpa, sofra uma punição mais severa.

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[5] Si quis autem tales, postquam ab ecclesia fuerint denotati, contempserit evitare, anathematis se noverit senten-tiam incurrisse. In terris vero, temporali nostrae iurisdictioni subiectis, bona haereticorum statuimus publicari, et in aliis idem praecipimus fi eri per potes-tates et principes saeculares, quos ad id exsequendum, si forte negligentes exstiterint, per censuram ecclesiasticam appellatione remota compelli volumus et mandamus. Nec ad eos bona eorum ulterius revertantur, nisi eis, ad cor revertentibus et abnegantibus haeretico-rum consortium, misereri aliquis volue-rit, ut temporalis saltem poena corripiat quem spiritualis non corrigit disciplina.

[5] Se alguém desprezar o dever de evitar o contato com tais pessoas, após terem sido declaradas culpadas pela Igreja, saiba que incorre em sentença de anátema. Nas terras submetidas a nossa jurisdição temporal, ordenamos que os bens dos hereges sejam confi scados e nos demais territórios estabelecemos que se faça o mesmo, por intermédio dos poderes e dos príncipes seculares, os quais, acaso se mostrem negligentes em executar essa ordem, queremos e orde-namos que sejam compelidos a cumpri--la, mediante castigos eclesiásticos, sem haver possibilidade de apelação. Que não sejam, posteriormente, devolvidos a tais hereges os seus bens, a não ser que alguém queira usar de misericórdia para com os que tiverem se convertido de coração e renegado a companhia dos hereges, para que, ao menos, o castigo temporal puna o que não se corrige por força das punições espirituais.

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161Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012

Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).

[6] Quum enim secundum legitimas sanctiones, reis laesae maiestates punitis capite, bona confi scentur eorum, fi liis suis vita solummodo ex misericordia conservata: quanto magis, qui aber-rantes in fi de Domini Dei fi lium Iesum Christum offendunt, a capite nostro, quod est Christus, ecclesiastica debeat districtione praecidi, et bonis tempora-libus spoliari, quum longe sit gravius aeternam quam temporalem laedere maiestatem? Nec huiusmodi severitatis censuram orthodoxorum etiam exhere-dati fi liorum quasi cuiusdam miseratio-nis praetextu debet ullatenus impedire, quum in multis casibus etiam secundum divinum iudicium fi lii pro patribus tem-poraliter puniantur, et iuxta canonicas sanctiones quandoque feratur ultio non solum in auctores scelerum, sed etiam in progeniem damnatorum.

[6] Quanto aos culpados pelo delito de lesa-majestade, que sejam punidos, em conformidade com os castigos legais, isto é, seus bens sejam confi scados, e que a vida de seus fi lhos seja poupada somente por misericórdia: ora, quanto mais os que se distanciam da fé no Se-nhor, ofendendo a Jesus Cristo, Filho de Deus, sejam separados de nossa cabeça, Cristo, por sentença eclesiástica, e des-pojados de bens temporais, pois não é mais grave ofender a majestade eterna do que a temporal? Nem de modo algum seja impedida [a aplicação] do rigor des-te castigo dos ortodoxos, sob o pretexto de certa aparência de misericórdia no tocante aos fi lhos daquele que perdeu seus bens, pois, segundo o julgamento divino, em muitas circunstâncias, tam-bém estes sofrem temporalmente por causa de seus pais e, conforme as penas canônicas, algumas vezes, o castigo recai não apenas sobre os criminosos, mas também sobre a descendência dos que foram condenados.

Recebido: 18/05/2011 – Aprovado: 09/03/2012

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163Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012

JOSÉ PINTO DE AZEREDO E AS ENFERMIDADES DE ANGOLA: SABER MÉDICO E EXPERIÊNCIAS COLONIAIS NAS

ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XVIII*

Jean Luiz Neves AbreuUniversidade Federal de Uberlândia

ResumoO artigo procura analisar a obra do médico luso-brasileiro José Pinto de Azeredo Ensaio sobre algumas enfermidades d’Angola (1799). A partir dessa obra e de outras fontes, busca-se compreender as ideias e concepções do médico sobre as doenças de Angola e de que maneira elas se relacionam com a medicina das últimas décadas do século XVIII, bem como os aspectos singulares que marcaram sua prática.

Palavras-chaveJosé Pinto de Azeredo • medicina • século XVIII

ContatoUniversidade Federal de Uberlândia – Campus Santa MônicaAv. João Naves de Ávila, 2121 Bloco H – Sala 1H4938.400-902 – Uberlândia – MGE-mail: [email protected]

* Este texto é produto de dois projetos em andamento: “Divulgação de saberes e práticas científicas na América Portuguesa – século XVIII”, (financiado pela PROPP - Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação - UFU) e “Religião, Natureza e Costumes: gestos, saberes e discursos na América Portuguesa (século XVIII)”, na qual atuo como colaborador (financiado pelo CNPq).

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164 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012

JOSÉ PINTO DE AZEREDO AND THE DISEASES OF ANGOLA: MEDICAL KNOWLEDGE AND COLONIAL EXPERIENCES IN

THE LAST DECADES OF THE XVIII CENTURY

Jean Luiz Neves AbreuUniversidade Federal de Uberlândia

AbstractThe article analyzes the work of the luso-brazilian medicine doctor José Pinto de Aze-redo Essay on some diseases of Angola (1799). From the perspective of this work and other sources, we seek to understand the ideas and conceptions of the medicine doctor about the diseases in Angola and how they are relate to medicine in the last decades of the eighteenth century, as well as the unique aspects that have marked his practice.

KeywordsJosé Pinto de Azeredo • medicine • eighteenth century.

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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.

A trajetória de José Pinto de Azeredo e as experiências coloniaisA expansão portuguesa entre os séculos XVI e XVIII foi marcada, dentre outros

aspectos, pela incorporação e difusão de conhecimentos sobre drogas e técnicas mé-dicas nos domínios ultramarinos. O saber médico oriundo das experiências coloniais circulou em compêndios de medicina e outros impressos no Império Português.1

No decorrer do século XVIII, vários médicos e cirurgiões tiveram contato com culturas e populações diversas nos domínios portugueses. As obras produzidas a partir desses encontros permitem observar, além da incorporação de saberes locais, o conhecimento acerca das enfermidades que acometiam as populações nos territórios coloniais, bem como a apropriação de várias concepções de medicina pelos médicos luso-brasileiros.

Um dos frutos dessas experiências foi o Ensaio sobre algumas enfermidades d’Angola (1799), de autoria do médico José Pinto de Azeredo. Este artigo busca compreender as formas pelas quais o médico luso-brasileiro fez uso de conheci-mentos científi cos de sua época e os articulou às suas experiências. Procura-se identifi car as principais concepções do saber médico a que ele recorreu, bem como os sentidos adquiridos por esse conhecimento.

Um dos primeiros estudos relativos à sua obra é do também médico Emílio Joaquim da Silva Maia, que em artigo publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro em 1840, traz breves referências sobre a formação de Azeredo e suas contribuições à medicina brasileira. Silva Maia destaca que o médico foi “Cavaleiro da Ordem de Cristo, Doutor em medicina pela Escola de Edimburgo, membro da sociedade Harveiana da mesma cidade, sócio da Aca-demia das ciências de Lisboa, e médico da Câmara da Sra. D. Maria Primeira”.2

Sua trajetória e obra, no entanto, carecem de ser mais bem investigadas, na medida em que as referências a elas são muitas vezes imprecisas.3 Embora não

1 WISSENBACH, Maria Cristina. Ares e azares da aventura ultramarina: matéria médica, saberes endógenos e transmissão nos circuitos luso-afro-americano. In: MEGIANI, Ana Paula; AL-GRANTI, Leila Mezan (Orgs.). O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. São Paulo: Alameda, 2010, p. 375-393; WALKER, Timothy. Acquisition and circulation of medical knowledge within the early modern portuguese colonial empire. In: SHEEHAN, Kevin et al. Science in the Spanish and Portuguese empires 1500-1800. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 247-270.

2 MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Elogio histórico do Dr. José Pinto de Azeredo. Revista Trimes-tral do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, 1840, Tomo II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 629-635.

3 Sobre a crítica a essas imprecisões ver: PINTO, Manuel Serrano et al. O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História, ciências, saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 617-673, Dez, 2005, p. 620.

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seja o objetivo aqui realizar uma biografi a do autor, alguns episódios de sua vida tiveram infl uência sobre o tratado médico acerca das enfermidades em Angola.

Nascido no Brasil, José Pinto de Azeredo estudou medicina em Edimburgo entre 1786 e 1788, com passagem em Leiden (1788). Na época, Edimburgo era um dos renomados centros de formação médica para onde se direcionavam estudantes nascidos no Brasil e em Portugal, com o apoio do Governo Portu-guês.4 A apropriação de diversas teorias médicas no Reino se deu no âmbito da Universidade de Coimbra e no contato com centros de formação europeus. Apesar de certo ecletismo presente na formação dos profi ssionais ligados à arte de curar, buscava-se um maior diálogo com o saber médico praticado na Europa e a introdução do experimentalismo na medicina.5

Além de proporcionar o contato dos estudantes com as teorias estrangeiras, essas modifi cações no ensino e o envio de estudantes para outros centros europeus visavam também contornar os problemas da assistência médica nos domínios ultramarinos. O médico português José Manoel Leitão, em seu “Suplemento à História da Cirurgia no qual trata do estado da cirurgia em Portugal”, de 1788, comenta a esse respeito que antes de Pombal não havia cirurgiões “para as ex-pedições das frotas comerciais e para o socorro das províncias, onde não havia senão barbeiros que sangravam e meros curandeiros”. Em vista disso, o consulado pombalino procurou prover os territórios sob domínio português de médicos e cirurgiões, “não só com obrigações de curar nos hospitais caritativos e militares, mas também de ensinarem anatomia”.6

A trajetória de José Pinto de Azeredo se insere, portanto, na da geração de médicos que tiveram uma formação ligada à Ilustração e que estabeleceram inter-câmbio com as universidades europeias. Além de sua passagem por Edimburgo

4 FURTADO, Júnia Ferreira. A medicina na época moderna. In: MARQUES, Rita de Cássia; GERMANO, Beatriz; STARLING, Heloisa M. Murgel (orgs.). Medicina: História em exame. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 61.

5 Diversos são os trabalhos na historiografia que abordam tais questões, dentre os quais se pode mencionar os seguintes: PITA, João Rui. Medicina, cirurgia e arte farmacêutica na reforma pom-balina da Universidade de Coimbra. In: ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O marquês de Pombal e a universidade de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 129-162; GUERRA, João Pedro Miller. A reforma pombalina dos estudos médicos. In: CARVALHO DOS SANTOS, Maria Helena. Pombal revisitado. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, Vol.1, p. 189-207; ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, 2007, p. 80-104.

6 LEITÃO, Manoel José. Tratado completo de anatomia e cirurgia com um resumo da historia da anatomia e Cirurgia seus progressos e estado dela em Portugal offerecido à Real Junta do Proto-Medicato. Lisboa: Antonio Gomes, 1788, p. 362-365.

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e Leiden, onde defendeu trabalhos importantes – a exemplo da elaboração de ensaio sobre as substâncias capazes de agir sobre cálculos urinários e do ensaio sobre a gota, ambos em 1788 –, o exercício da medicina na América Portuguesa e Angola é outro ponto a ser destacado.

Em 1789 ele foi autorizado a exercer medicina em Portugal e nos domínios ultramarinos e nomeado por D. Maria I como físico-mor de Luanda (Angola), com as obrigações de “curar, além do Corpo Militar daquele Reino, os doentes de Hospital da dita Cidade”.7 Em meados de 1789, Azeredo regressou ao Brasil onde iniciou a prática de medicina e atividades clínicas no Rio de Janeiro, Per-nambuco e na Bahia. Do Brasil retornou para Angola, com chegada provável a Luanda em Setembro de 1790. Aí exerceu prática clínica no Hospital Real, lecionando “aula de medicina” a partir do ano seguinte. Azeredo voltaria para Lisboa em 1797, onde viveu até sua morte, em 1810.8

Nessa trajetória por Luanda e pela América Portuguesa, José Pinto de Azeredo pôde extrair várias experiências. Em 1790 publicou um artigo no Jornal Enciclopédico, intitulado Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro, no qual analisava as condições do ar daquela cidade e colocava em prática vários conhecimentos de química. Em Lisboa, escreveu vários manuscritos que não foram impressos, a exemplo de Isagoge Pathologica do Corpo Humano (1802), Curtas Reflexões sobre Algumas Enfermida-des Endêmicas do Rio de Janeiro no Fim do Século Passado (manuscrito posterior a 1800); Coleção de Observações Clínicas (posterior a 1803).9

Em seus manuscritos fi ca evidente o desejo de ser reconhecido como médico e como vassalo real. As homenagens prestadas à Rainha D. Maria I e ao Príncipe D. João confi rmam o fato de que o conhecimento era importante moeda de troca naquele contexto. Conforme observa Ronald Raminelli, no império luso a produ-ção do conhecimento científi co dependia do Estado, que investia na formação dos quadros profi ssionais e depois os inseria nos quadros da administração colonial

7 Patente de S. Mag. de em que faz Mr.ce ao Doutor José Pinto de Azeredo de Físico Mor deste Reino de Angola – Reproduzida em: Arquivos de Angola, v. IV, n. 41 a 48, p. 149-50, Luanda, 1938. A ortografia foi atualizada na citação.

8 As informações biográficas e a trajetória de José Pinto de Azeredo encontram-se detalhadas no artigo O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro, sem que aqui seja necessários repeti-las. Cf. PINTO, Manuel Serrano, op. cit., p. 617-638.

9 A referência completa desses manuscritos se encontra no site da Biblioteca Nacional de Lisboa. Disponível em: http://purl.pt/index/geral/aut/PT/152878.html, acessado em 19/04/2011.

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e metropolitana. Atuando a serviço do Estado, os homens de letras buscavam como contrapartida benefícios e reconhecimento.10

Na Oração de sapiência, Azeredo rendia homenagens à Rainha, afi rmando ocupar o “lugar de um vassalo agradecido, sendo ao menos por esta causa digno de benévola atenção”.11 Foi igualmente como fi el vassalo que, anos depois, publicou Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola dedicados ao sereníssimo senhor D. João Príncipe do Brasil, em cuja dedicatória afi rma ser a obra animada pela proteção de D. João, enaltecido como mecenas e protetor das ciências.

O médico recorreu ao mecenato régio em outras ocasiões. Na tentativa de fazer imprimir seu manuscrito Coleção de observações clínicas, expunha as razões pelas quais sua obra era merecedora de reconhecimento apresentando o seu conhecimento como tributo à Coroa portuguesa:

pelo alto patrocino que mereceram de Vossa Alteza Real os meus Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, me animo a procurar segunda vez a Vossa Alteza Real para proteger a estes meus Escritos. Eles não serão menos felizes do que foram os primeiros se tiverem a fortuna de alcançar um igual acolhimento. Porém, eu não posso duvidar dele quando vejo que Vossa Alteza Real que só respira os desejos de felicitar os seus Povos, me tem elegido entre tantos médicos beneméritos para ser o que cuide na saúde da Tropa. Este meu trabalho, Senhor, é todo feito a benefi cio da mesma Tropa: digne-se, pois, Vossa Alteza Real de aceitar a oferta dele como um verdadeiro tributo do meu agradecimento.12

A despeito de não ter obtido sucesso com a impressão desse e outros ma-nuscritos, em consideração aos serviços prestados em Angola, José Pinto de Azeredo foi nomeado médico da Real Câmera13 obtendo o prestígio almejado e tornando-se um profi ssional renomado em Portugal. Além disso, como já foi mencionado, tornou-se Cavaleiro da Ordem de Cristo e fez parte do círculo de letrados da Academia das Ciências de Lisboa.

Nesse sentido, a publicação do compêndio sobre as doenças em Angola assumiu um papel estratégico de valorização de suas atividades. A narrativa do médico assume um tom que não disfarça seu narcisismo.14 Embora não atribuísse

10 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governos a distância. São Paulo: Alameda, 2008, p. 137.

11 AZEREDO, José Pinto de. Oração de sapiencia feita, e recitada no dia 11 de Setembro de 1791. Manuscrito, Biblioteca Nacional de Lisboa, fl. 03.

12 AZEREDO, José Pinto de. Collecção de observaçoens clinicas. Manuscrito, depois de 1803, Biblioteca Nacional de Lisboa, fl. 01.

13 MAIA, Emílio Joaquim da Silva, op. cit., p. 629-635.14 MARQUES, Manuel Silvério. A febre, a fibra e o espasmo. In: COUTO, Jorge. et al. Arte médi-

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vantagem à sua ciência, nem aos seus talentos e sim “aos progressos da medici-na”, Azeredo enaltecia o fato de que, graças à sua autoridade de físico-mor em Angola, conseguiu combater os métodos de cura que existiam há anos no país e traziam inúmeros prejuízos à vida humana, bem como instruir os novos estudantes a seguir seus procedimentos, evitando a mortalidade dos enfermos. 15 A partir dessas posições, defendia a contribuição de sua obra para o Estado Português e, ao mesmo tempo, situava seu desempenho como superior ao de seus antecessores.

Se por um lado, a lógica das mercês infl ui na produção do tratado, devendo-se relativizar a efi cácia dos procedimentos proclamados pelo médico; por outro, não se pode deixar de enfatizar os signifi cados que assumem esse testemunho, ao permitir reconstituir aspectos da produção do saber médico a partir de uma trajetória individual no Império Português.

As enfermidades de Angola: entre teorias e experiênciasCom exceção do artigo publicado no Jornal Enciclopédico, dos escritos de

José Pinto de Azeredo, o tratado sobre as enfermidades de Angola foi a única obra impressa de que se tem conhecimento. O médico pretendia que seu tratado pudesse trazer informações que viessem a ser úteis para o Governo português, não se prestando somente a reconstituir as condições físicas e mórbidas daquela região. A produção de conhecimentos sobre o império português, nas últimas décadas do setecentos, por funcionários régios e viajantes era essencial para atender às diretrizes da expansão colonial. Estabelecendo redes de conhecimento, os homens de ciência apropriavam-se e manipulavam conceitos do Iluminismo incorporando-os à realidade vivenciada em territórios coloniais.16

José Pinto de Azeredo pode ser visto como um típico letrado luso-brasileiro da época, ao realizar uma leitura específi ca do conhecimento científi co indissociável da realidade colonial. As experiências em Angola e na América Portuguesa se incorporam ao repertório de conhecimentos do autor. No prefácio do compên-

ca e imagem do corpo: de Hipócrates ao final do século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2010, p. 7. Disponível em: http://www.centrodefilosofia.com/uploads/pdfs/membros/desideromurcho/Febre.pdf, acessado em 26/10/2011.

15 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola dedicados ao Sere-nissimo Senhor D. João Principe do Brazil. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1799, p. VII-X.

16 Para essas questões ver: KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circu-lação de informação (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos. v. 11, suplemento 1, 2004, p. 109-129; DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império Português em finais do Setecentos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. VIII, suplemento, 2001, p. 823-838.

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dio, notava que as “febres de Angola são da mesma natureza daquelas que se observam nos outros países situados na zona tórrida”, à semelhança do que havia constatado no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.

Nos dois primeiros capítulos do livro, “Ensaios sobre as febres d’Angola” e “Ensaios sobre as febres intermitentes”, José Pinto de Azeredo descreve a história, os principais sintomas das febres, as alterações nos órgãos do corpo humano, as teorias sobre as causas da enfermidade e as terapêuticas mais propícias para os casos existentes. Procedimento semelhante é adotado nos dois capítulos seguintes sobre as disenterias e os tétanos, nos quais se descrevem as causas, os sintomas, a história das doenças e os principais métodos de cura utilizados.

Ao discorrer acerca das doenças de Angola, o autor faz uma distinção entre causas “próximas” – relativas às mudanças no organismo – e “remotas” – ligadas aos fatores externos, como o clima, as condições de higiene, dentre outras. Suas referências demonstram que estava atualizado das teorias existentes, fazendo referência a descobertas em diversas áreas.17

Dentre o conjunto de conceitos dos quais lança mão para expor a etiologia das febres, Azeredo destaca os princípios de Cullen, que havia sido seu professor e a quem considerava “pai da medicina moderna”.18 Incorporando os princípios da escola de “economia animal” – voltada para o estudo do papel do sistema nervoso na constituição das doenças, à qual se vinculava o nome de Cullen19 –, o médico afi rmava que em todas as febres, fossem nervosas ou infl amatórias, era possível observar espasmo na superfície do corpo provocado pela alteração das fi bras, levando à sua debilidade “por uma lei geral da economia animal”.20

Do mesmo modo, Azeredo concede importância aos estudos anatômicos como parte imprescindível de sua formação. Ao investigar as causas das disenterias, afi r-ma que nada “há que mais possa dar uma luz mais clara, e uma ideia mais perfeita da causa próxima da disenteria do que são as dissecações de cadáveres”.21 Não sem razão o médico dedicou vários manuscritos à anatomia, a exemplo de Estudos anatômicos22, onde fazia uma descrição minuciosa das principais partes do corpo humano e suas funções, e outro sobre anatomia dos ossos e vasos linfáticos, no

17 MARQUES, Manuel Silvério, op. cit., p. 3.18 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola... op. cit., p. 32.19 PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record,

2004, p. 90.20 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola... op. cit., p. 34.21 Idem, Ibidem, p. 106.22 AZEREDO, José Pinto de. Estudos Anatômicos. Manuscrito, Biblioteca Nacional de Portugal,

s.d. (antes de 1807).

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qual trata da osteologia, defi nida como a ciência que “ensina o estado natural dos ossos”.23 Na Oração da sapiência, recitada em 1791, reafi rmava o papel da anato-mia como ciência que abria “a porta para a verdadeira indagação da natureza”.24

Tais aspectos colocam a obra de Azeredo em sintonia com o conhecimento médico praticado na Europa no século das Luzes. A despeito das resistências culturais existentes na Europa em relação à anatomia, as dissecações ganhavam cada vez mais relevância para o estabelecimento das causas das enfermidades. O saber anatômico se torna uma via privilegiada para o conhecimento da natureza do corpo humano e dos progressos da arte de curar.25

As referências às diversas teorias sobre as causas das enfermidades são indi-cativas de como os avanços na medicina exerceram infl uência em sua obra. Entre-tanto, Azeredo não se restringiu simplesmente a compilar as teorias e reproduzi-las em seus estudos. Posicionando-se de maneira crítica em relação ao saber médico vigente, defendia que “observação laboriosa, e constante é a única que nos ensina a buscar os meios mais adequados, e prontos para atacar as enfermidades”.26

Ao tratar dos ciclos das febres, contrapunha-se, por exemplo, às teorias dos médicos que esperavam pelos dias críticos para aplicar medicamentos aos do-entes. Neste sentido, afi rmava que o próprio Cullen havia caído no erro dos dias críticos: “A invenção dos dias críticos fez com que o professor, esperando pela crise, deixe de continuar com os remédios necessários naquela mesma ocasião”.27 Referindo-se às causas do tétano, enfatizava o fato de que a maioria dos escritores deixava “em silêncio sua causa próxima” e o método que utilizavam, longe de ser estabelecido no plano científi co, era todo empírico. Daí a importância das experiências, exames e hipóteses para se chegar ao conhecimento e apartar os obstáculos aos progressos da medicina.28

Em um de seus manuscritos, José Pinto de Azeredo ressaltava ter sido a prática prolongada em diversos hospitais militares que o capacitou para expor a público suas observações. No contato com os doentes pôde descobrir fenômenos que não encontrou em “escrito algum”, pondo em prática certos preceitos antigos que eram

23 AZEREDO, José Pinto de. Anatomia dos ossos, e vasos lymphaticos do corpo humano. Manus-crito, Lisboa, 1791, fl. 01.

24 AZEREDO, José Pinto. Oração de sapiencia feita, e recitada no dia 11 de Setembro de 1791. Manuscrito, Biblioteca Nacional de Portugal, 1791, fl. 05.

25 BRETON, David Le. La chair à vif: usages médicaux et mondains du corps humain. Paris: Métailié, 1993, p. 99.

26 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola... op. cit., p. 4.27 Idem, Ibidem, p. 27.28 Idem, Ibidem, p. 135-136.

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desprezados e abandonando “outros modernos que não fazem as vantagens que prometem os últimos descobrimentos fi siológicos e químicos”.29 Deve-se observar que a própria obra sobre as enfermidades em Angola é resultado das observações que fez enquanto físico-mor no hospital. Foi exercendo suas atividades, enquanto médico e professor de “aula de medicina”, que ele pode acompanhar de perto o desenvolvimento das enfermidades e seus sintomas.

O hospital representou signifi cativas mudanças no exercício da medicina. A partir do século XVIII esse espaço proporcionou, nas palavras de Michel Foucault, “um olhar da sensibilidade concreta, um olhar que vai de corpo em corpo” permitindo que a teoria se desvanecesse no leito dos doentes, cedendo lugar à experiência.30 Além disso, conforme observou Roberto Passos Nogueira, essa instituição contribuiu para transformações da própria organização social da medicina. Se desde a Idade Média a arte médica esteve vinculada ao sistema de corporações, que opunha a formação do médico (físico) e do cirurgião – cabendo ao primeiro a supremacia do conhecimento obtido pelo intelecto e ao segundo as operações manuais e externas –, o hospital representou o ponto de convergência entre o saber teórico dos físicos e o saber técnico dos cirurgiões, ao equiparar as competências desses saberes em um espaço que exigia trabalho colaborativo.31

A partir daí, o próprio médico passou a incorporar conhecimentos que antes eram restritos aos cirurgiões e a reconhecer a importância das técnicas cirúrgicas para o diagnóstico das doenças. A medicina e a cirurgia passaram a fi gurar como especialidades médicas na medida em que a formação dessas categorias técnicas--profi ssionais pressupunha uma prévia formação comum, incluindo a anatomia, a fi siologia, a patologia, dentre outras disciplinas.32

Enquanto a homogeneização da medicina e da cirurgia se estabeleceu em universidades europeias desde meados do século XVIII, em Portugal foi somente após a aprovação dos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 que a for-mação dos médicos passou a incorporar esses preceitos. No texto dos Estatutos

29 AZEREDO, José Pinto de. Collecção de observaçoens clinicas. Manuscrito, op. cit., fl. 01.30 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 137.31 NOGUEIRA, Roberto Passos. Do físico ao médico moderno: a formação social da prática médica.

São Paulo: UNESP, 2007, p. 71-79. A divisão entre medicina e cirurgia presente até meados do século XVIII na Europa equivalia à divisão entre a ciência e a técnica; atividades intelectuais e atividades práticas. A aproximação entre médicos e cirurgiões foi importante para avanços da técnica médica e para o conhecimento do corpo e das doenças a partir dos estudos anatômicos. Para essa discussão ver também: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002, p. 64-72.

32 NOGUEIRA, Roberto Passos, op. cit., p. 87.

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considerava-se ter sido o divórcio entre a medicina e cirurgia “prejudicial aos progressos da arte de curar e funesto à vida dos homens não sendo possível que seja bom médico, quem não for ao mesmo tempo cirurgião”, e determinava-se que “sejam todos os médicos ao mesmo tempo cirurgiões”.33

A despeito da existência de diferenças entre cirurgiões e médicos ainda presen-tes nos Estatutos, almejava-se para os médicos uma formação mais abrangente, que iria ser completada pelos hospitais. A esse respeito, Jorge Crespo comenta que no contexto português o hospital se constituiu como o “lugar privilegiado da aquisição da experiência médica científi ca, o espaço onde surgia a oportunidade mais fecunda da aproximação com a diversidade das doenças e das misérias da comunidade”.34

A formação de José Pinto de Azeredo e sua atuação em Angola convergem para esses aspectos que defi niriam o exercício da medicina a partir do século XVIII, fun-dados no estreitamento entre teoria e empiria, atributos exercitados no contato co-tidiano com os enfermos nos leitos dos hospitais. Mas para estabelecer as possíveis causas das moléstias, o médico deveria também observar a natureza e os costumes.

Natureza e costumesNo Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola há várias passagens

relativas ao clima, à geografi a e às condições de vida. O compêndio fornece informações que permitem reconstituir as condições de vida dos habitantes em Angola, os alimentos mais comuns, as práticas de cura utilizadas pelos empíricos. Analisando as “causas remotas” das febres, Azeredo afi rmava que não podia deixar de se ocupar de uma descrição do país:

O seu terreno, as suas águas, as suas plantas, a sua atmosfera, os seus ventos, os seus cos-tumes, os seus alimentos oferecerão talvez a um espírito indagador interessantes notícias, pelas quais ele descubra os meios mais efi cazes de prevenir, e de remediar tantos males.35

O médico atenta principalmente para as condições físicas e ambientais encon-tradas em Angola. A respeito da hidrografi a, destaca as características dos manan-ciais de água do país, informando que o rio Bengo fornecia água com qualidade péssima aos habitantes, por ser um “veículo de carne humana corrupta”, já que os habitantes tinham o hábito de lançar nele vários despojos. Devido às condições

33 Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. Livro III, Cursos das Sciencias nauturaes e filosóficas. Coimbra, 1972, Edição Fac-Símile, p. 20.

34 CRESPO, Jorge. A história do corpo. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 99.35 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 36.

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climáticas pouco favoráveis, como a raridade das chuvas, salientava a utilidade das poucas árvores e dos vegetais existentes, pois forneciam “ar puro para o homem respirar e viver”. Daí a importância da conservação das fl orestas capazes de ofere-cer “quantidade de resinas e bálsamos odoríferos” corretivos da corrupção do ar. Sublinhava igualmente a importância de algumas espécies vegetais para o sustento e conservação da saúde, fornecendo remédio para o escorbuto, o “mal de Luanda”.36

Para Azeredo o sol era um dos principais motivos responsáveis por tornar o clima “pestífero”. Sob ele caía o homem mais forte e robusto, como os ofi ciais mi-litares, que antes de chegar a Angola tinham perfeita saúde. Nesse sentido, salien-tava a difi culdade de aclimatação dos europeus. Embora a doença pudesse atingir qualquer pessoa, atingia com mais frequência e intensidade os que chegavam à costa da África e não se acostumavam ao sol, os quais, “pelo costume que trazem dos outros climas benignos, são atacados com maior força, e com maior perigo”.37

As exalações das águas do rio Bengo no tempo das chuvas possuíam semelhante efeito nocivo à saúde, consideradas como um “veneno para o corpo”, por tornar o “ar crasso, pestilento e incapaz de respirar”.38 Ao lado das intempéries climáticas, o médico discorria sobre outros motivos que concorriam para a impureza da atmosfera, como imensa quantidade de es-cravos que se acumulavam nas casas dos comerciantes até serem transpor-tados para o Brasil, as casas de palha que com as chuvas apodreciam e os cadáveres que fi cavam enterrados nas igrejas, “indubitáveis motivos de mil doenças”. Tais condições deveriam ser objeto de estudos e “desvelos daqueles que vigiavam o bem público” para a conservação da saúde nas povoações.39

A associação entre a qualidade do ar e as enfermidades já havia sido objeto da refl exão de José Pinto de Azeredo no artigo, publicado no Jornal Enciclo-pédico, sobre a qualidade do ar no Rio de Janeiro. Ao longo de sua análise, postulava que em decorrência das descobertas da ciência moderna e da química tornava-se possível examinar mais profundamente a atmosfera, distinguin-do a qualidade de três tipos de ar e seus efeitos diversos no organismo: o ar puro, o ar fi xo e o ar mophete, de natureza praticamente desconhecida. Após medir a quantidade de cada um desses “ares” no Rio de Janeiro, constatou que a atmosfera da cidade continha menos ar puro e fi xo e mais ar mophete que na Europa. Argumentava ser talvez aquele ar, “atraindo os vapores maus

36 Idem, Ibidem, p. 37-44.37 Idem, Ibidem, p. 5.38 Idem, Ibidem, p. 46-49.39 Idem, Ibidem, p. 51.

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das lagoas, e águas encharcadas ainda servindo de alimentos a certos insetos que atacam o nosso corpo (...), a causa condutora das enfermidades”.40 As conclusões a que chega, apesar do emprego de métodos modernos, rendem-se aos pontos de vista mais tradicionais sobre a insalubridade do clima tropical.41

Tendo por base tais pressupostos, Azeredo estabelecia um diálogo com vários textos de medicina publicados em Portugal nas últimas décadas do século XVIII. O médico português Francisco José de Almeida, por exemplo, sustentava opinião semelhante sobre a infl uência da atmosfera na boa saúde do corpo: “na atmosfera bebemos a saúde e a doença; as epidemias aqui se fomentam, e se propagam”. Não era preciso mais do que “ela estar encerrada por algum tempo para perder a sua elasticidade, ensopando-se talvez em vapores estranhos”. Desaconselhava, nesse sentido, a circulação das pessoas em locais fechados, já que neles todos os animais se “abafam, entristecem e adoecem em um lugar fechado”.42

Se em Portugal a qualidade da atmosfera trazia danos à saúde, as condições naturais das regiões tropicais tornavam ainda mais suscetíveis as doenças de colonos e escravos. No Tratado da conservação da saúde dos povos (1756), o médico português Antônio Ribeiro Sanches não apenas enfatizava o calor contínuo de regiões como o Brasil e a Costa da Mina, como observava que em Portugal e em Angola, onde inundam tantos rios, e em toda a América, “depois das inundações, logo que as matérias das enxurradas começam a apodrecer, o ar infecta-se e produz semelhante podridão nos corpos: manifesta-se por toda a sorte de febres podres, e, sobretudo, por disenterias”.43

40 Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro, feito por José Pinto de Azeredo, doutor em medicina pela Universidade de Leyde, físico-mor, e professor de medicina do Reino de Angola. Jornal enciclopédico. Artigo I: História Natural fysica e química. Lisboa, Março, 1790, p. 259-285. Para um exame detalhado das teorias sobre o ar atmosférico consultar: PINTO, Manuel Serrano et. al., op. cit.

41 O texto sobre a qualidade do ar do Rio de Janeiro foi analisado por Lorelai Kury, que também faz menção ao fato de o autor se vincular ao determinismo climático acerca dos trópicos, típico da literatura do século XVIII. Entretanto, a autora observa que na passagem para o século XIX é possível notar um confronto entre esses pontos de vista, pelo menos no tocante ao Rio de Janeiro. KURY, Lorelai. Rio de Janeiro: a cidade e os médicos no período joanino. In: FLECK, Eliane Cristina Deckmann; SCOTT, Ana Silva Volpi. A corte no Brasil: População e sociedade no Brasil e em Portugal no início do século XIX. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2008, p. 119-134.

42 ALMEIDA, Francisco José de. Tratado de educação fysica dos meninos para uso da nação Portuguesa. Lisboa: Officina da Academia Real de Ciências, 1791, p. 19-21.

43 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Tratado da conservação da saúde dos povos obra útil, e igualmente necessária aos magistrados, capitães generais, capitães do mar, e guerra, prelados, abadessas, médicos e pais de família com um apêndice, considerações sobre os terremotos, com a notícia dos mais consideráveis de que faz menção a história, e dos últimos que se sentiram na Europa desde I de Novembro de 1755. Lisboa: Officina Joseph Filipe, 1757, p. 46.

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Dessa maneira, as percepções desses doutores se rendem ao pessimismo climático vigente no pensamento naturalista e médico desse período acerca dos trópicos. Conforme observa David Arnold, a “invenção dos trópicos” a partir da expansão ultramarina trouxe, ao lado da visão paradisíaca, representações negativas que se convertem em lugares comuns na literatura de viagem do século XVIII. A literatura sobre a África Ocidental e o Caribe reforçou as imagens do clima inclemente e das enfermidades que acometiam os colonos de forma violenta. Exemplo disso é o Treatise on tropical diseases and on the climate of the West Indies (1787), de autoria de Benjamin Moseley, no qual se considerava que a tran-sição dos climas temperados para os quentes era doentia para natureza humana.44

A concepção de que o clima agia sobre o organismo humano ganhou força pelas doutrinas médicas em voga. Tendo por base a concepção hipocrática da infl uência dos ares e lugares sobre a saúde e os temperamentos, forjou-se o con-ceito de “constituição epidêmica”, em que o estudo da doença não se centraria no indivíduo, mas na investigação de um conjunto de dados. O médico inglês Sy-denham foi um dos precursores do pensamento classifi catório das enfermidades, defi nindo uma abordagem histórica e geográfi ca da doença a partir do estudo das condições naturais, como a qualidade dos solos, climas e as estações de chuva. Base do neo-hipocratismo, as análises das doenças envolviam as topografi as (a situação dos lugares, o terreno, a água, o ar, a sociedade, os temperamentos dos habitantes), observações meteorológicas, análise das epidemias, doenças reinantes e descrição dos casos extraordinários.45

Atrelada às infl uências climáticas sobre a constituição das enfermidades estava a dos “miasmas”, termo que designava a infecção do ar por gases ou vapores pútridos. Partia-se do princípio de que o ar entrava “na própria tessitura dos organismos vivos” e agia de múltiplas maneiras sobre esses, “por simples contato com a pele ou com a membrana pulmonar, por substituições através dos poros, por ingestão direta ou indireta”.46

Como é possível observar, José Pinto de Azeredo se mostrava tributário dessas concepções e as incorporou em seu livro. O conhecimento dessas teorias se efetivou não apenas pela sua formação em Edimburgo ou a experiência na América Portuguesa e Angola. O contato com a literatura produzida sobre os

44 ARNOLD, David. La natureza como problema histórico. El médio, La cultura y La expansión de Europa. México: Fundo de Cultura Económica, 2000, p. 138-139.

45 FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 23-26.46 CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove.

São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 19.

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trópicos exerceu igual importância em suas formulações, dentre as quais citava a obra de John Hunter, Observations on the Diseases of the Army in Jamaica, de 1788. Tais elementos demonstram os caminhos por que a literatura científi ca do período chegava às mãos dos médicos em Portugal, indicando os processos pelos quais o saber médico europeu se difundiu nos domínios portugueses.

Além das condições atmosféricas e climáticas, Azeredo se detém na descrição dos costumes dos habitantes de Angola. Para o médico, o comportamento da po-pulação e suas crenças contribuíam para a intensidade das febres. Dentre esses, reprovava os hábitos de cura dos africanos, afi rmando que: nas “suas moléstias [eles] não querem professores, nem tomam remédio de botica, porque só têm fé nos seus medicamentos”, administrados por “feiticeiros” ou “curadores”. Lamen-tava ainda o fato de alguns brancos e europeus acreditarem na virtude dos remé-dios vendidos por “empíricos negros”. Recorrer a tais artifícios era fruto da igno-rância, e razão de muitas desgraças que tornavam moléstias benignas mortais.47

As posições de repúdio aos curandeiros e feiticeiros por parte de Azeredo exprimem uma atitude comum aos médicos ilustrados em Portugal. Tema recor-rente na medicina europeia, a rivalidade entre os representantes da arte ofi cial de curar e as práticas informais ganha uma nova dimensão no século XVIII. Como analisa Márcia Moisés Ribeiro, nesse contexto, assiste-se a um movimento de racionalização contra as práticas mágicas e seus praticantes, desdobramento da mentalidade ilustrada e das reformas da medicina em Portugal.48

Para além de recorrerem às práticas informais de cura, Azeredo descreve outros hábitos de igual modo reprováveis. É o caso da tradição de carpir os mortos, “origem de excessos, de irreligião, e de enfermidades” para a qual, nem a pregação da Igreja, nem o braço secular eram sufi cientes para colocar término. O médico repreendia o fato de que o costume entre os angolanos de conservar o corpo do cadáver a fi m de prestar-lhe homenagem era sempre acompanhado de muito vinho, alo (bebida fermentada feita de milho), e aguardente do Brasil, levando ao uso imoderado dos “licores espirituosos” e propiciando as “moléstias endêmicas do clima”.

O autor correlacionava as febres também ao comportamento sexual, observan-do: “um só ato venéreo em África produz tanta debilidade, quanto pode induzir uma larga sangria”. Para justifi car tal posição recorria a argumentos científi cos

47 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit.,p. 53.48 RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e demônios: demonologia e exorcismo no mundo luso-

-brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 172-178.

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de que o excesso das atividades sexuais enfraquecia os nervos e a relaxação dos órgãos não sustentavam o “peso da máquina” do corpo humano. Descrevia ainda os hábitos alimentares e de higiene, mencionando como o “abuso das pesadas ceias”, a “falta de limpeza do corpo e pouco asseio nos vestidos” infl uíam em muito para as moléstias. Dentre os alimentos mais comuns menciona a quicoanga, que era a mandioca apodrecida debaixo d’água chamada no Brasil de Pubá49, e os matetes, papas ralas feitas de fubá ou farinha de milho. Considerava defi ci-tário o regime dietético dos negros, pois estes se sustentavam com muito pouco alimento e no tempo das secas comiam insetos, gafanhotos e outros animais.50

Ao lado do exame dos sintomas, dos exames anatômicos, os hábitos de vida forneciam um importante caminho para os médicos chegarem às causas das en-fermidades. Na conjuntura em que José Pinto de Azeredo publicou seu tratado, compêndios de medicina que circularam na Europa e no mundo ibérico se vol-tavam para a normatização dos hábitos cotidianos e para a higiene, destinados a instruir as famílias sobre como conservar a saúde, o que enfatiza a associação entre as enfermidades e os comportamentos alimentares e higiênicos das populações.51

Outro aspecto a ser sublinhado diz respeito ao fato de José Pinto de Azeredo se ater principalmente à descrição dos costumes e hábitos dos negros, dando ênfase às precárias condições em que viviam. As informações sobre as doenças provenientes da África constituíram um tema relevante da medicina em Portu-gal, presente em compêndios de matéria médica no decorrer do setecentos que contribuíram para demarcar a etiologia das moléstias, suas causas, bem como as terapêuticas úteis aos senhores de escravos para males como o escorbuto.52 Nas

49 O militar Elias Alexandre da Silva Corrêa, que viveu em Angola no século XVIII, em sua História de Angola, também menciona a quicoanga, afirmando que os negros a preferiam à farinha. Cf. PEREIRA, Magnus. Rede de mercês e carreira: o “desterro d’Angola” de um militar luso-brasileiro (1782-1789). História. Questões e Debates, v. 45, 2007, p. 97-128, p. 121.

50 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 54-60.51 Para essa questão na medicina europeia ver: PORTER, Roy. The popularization of medicine,

1650-1850. Londres: Routledge, 1992. No caso do mundo ibérico e do contexto luso-brasileiro ver, entre outros: PERUGA, Mónica Bolufer. “Ciência de la salud” y “Ciencia de las costumbres”: higienismo y educación en el siglo XVIII. Revista de Ciencias Sociales, n. 20, 2000, p. 25-50; ABREU, Jean Luiz Neves. Higiene e conservação da saúde no pensamento médico luso-brasileiro do século XVIII. Asclepio, Madrid, v. 62, 2010, p. 225-250; MARQUES, Vera Regina Beltrão. Instruir para fazer a ciência chegar ao povo no Setecentos. Varia história, n. 32, 2004, p. 37-47.

52 Para as informações sobre as doenças africanas nos tratados de medicina luso-brasileiros e seus significados ver: FURTADO, Júnia Ferreira. A medicina no império marítimo português. op. cit., p. 104-105; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cirurgiões do Atlântico Sul - conhecimento médico e terapêutica nos circuito do tráfico e da escravidão (séculos XVII-XIX). Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. Campinas: ANPUH/SP-UNICAMP, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom, p. 1-10.

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últimas décadas do século XVIII, como bem lembra Rafael de Bivar Marquese, o saber médico passou a ser “visto como um instrumento fundamental ao desen-volvimento colonial, dada a percepção dos impactos que as doenças tropicais causavam na população branca e escrava”.53 No contexto luso-brasileiro, as doenças dos escravos passaram a merecer mais atenção e a fi gurar como objeto de diversos textos produzidos por letrados luso-brasileiros, além da tradução de tratados estrangeiros que versavam sobre o assunto.54 O Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola se insere, portanto, nesse movimento de inovação da medicina em Portugal, como também está atrelado às questões específi cas asso-ciadas à produção do conhecimento, caso das enfermidades dos negros.

O universo da curaApós proceder ao exame das causas das moléstias, Azeredo propõe diversas

terapias para as febres, disenterias e tétanos. Neste ponto, o autor transita entre as práticas reconhecidas pela tradição e as conclusões obtidas a partir da observação. Ao se referir à cura das febres, afi rmava que sempre respeitara a autoridade de alguns autores, mas nunca havia se fi ado nela: “O curativo das febres que apre-sento, as observações sobre a aplicação dos remédios, as experiências sobre o bom êxito deles, são resultados da minha diligência, e do meu estudo”.55

A posição de Azeredo acerca das práticas de cura reafi rma o princípio de que na medicina exercida nos domínios ultramarinos portugueses a observação empírica foi componente importante para o conhecimento de enfermidades pouco conhecidas na Europa e cujas causas e tratamentos eram desconhecidos. No movimento denominado por Luiz Felipe de Alencastro de “união microbiana do mundo”, enquanto os europeus disseminaram a varíola, a rubéola e doenças venéreas, os africanos transmitiram aos portos europeus moléstias como a dra-cunculose (fi lariose do aparelho circulatório, conjuntivo e das cavidades serosas), causando a elefantíase, dentre outras enfermidades.56 Em contato com condições geográfi cas e climáticas diferentes e doenças pouco conhecidas em Portugal,

53 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1680. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 96.

54 Essa questão foi desenvolvida em ABREU, Jean Luiz Neves. A Colônia enferma e a saúde dos povos: a medicina das ‘luzes’ e as informações sobre as enfermidades da América portuguesa. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, jul.-set. 2007, p. 761-778,

55 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 61.56 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São

Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 128.

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os ofi ciais de medicina tiveram que buscar formas de combater as doenças que acometiam colonos e escravos, as quais não eram redutíveis às teorias existentes, incapazes de darem conta da diversidade de fatores relacionados às enfermidades em locais como a África e a América Portuguesa.57

Em contato com as práticas de cura utilizadas na época em que esteve em Angola, Azeredo expunha as controvérsias existentes em torno da aplicação de alguns medicamentos e sua efi cácia. No caso da disenteria, conforme apontava, não havia consenso sobre o uso do ópio, afi rmando que enquanto Sydenham confi ava toda a cura na sua utilização, outros o condenavam totalmente. Para ele, os efeitos benéfi cos do ópio eram enganosos, pois passado seus primeiros efeitos, as dores logo retornavam.58

Azeredo censurava de semelhante maneira a utilização dos remédios caseiros prescritos pelos empíricos e curandeiros, tidos como responsáveis pelas muitas causas de morte no caso das febres. Em várias passagens enfatizava a necessidade de bastante cautela no uso de sangrias, uma das práticas mais comuns para a cura de muitas doenças, tanto no universo da medicina popular quanto da erudita.59 A respeito da sangria afi rmava: a “lanceta tem sido de bem funestas consequências, sendo governada por aqueles que só têm lido as obras de Sydenham. Eu tenho aprendido que a perda de uma pequena quantidade de sangue senão faz logo um evidente mal também nunca faz benefício algum”.60 No tratamento da disenteria, confessou ter “feito sangrar algumas vezes”, embora nunca considerasse que essa trouxesse algum benefício. Avaliava que esse procedimento não convinha em muitas moléstias, sendo a disenteria uma delas.61 Mesma opinião exprimia em

57 Sobre esse aspecto consultar, entre outros: FURTADO, Júnia Ferreira. A medicina no império marítimo português. In: MARQUES, Rita de Cássia; GERMANO, Beatriz; STARLING, Heloisa M. Murgel (Orgs.). Medicina: História em exame. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 92-93. RI-BEIRO, Márcia M. Nem nobre, nem mecâncico... a trajetória social de um cirurgião na América portuguesa do século XVIII. Almanack Braziliense, v. 2, 2005, p. 64-75. Disponível em: www.almanack.usp.br; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Gomes Ferreira e os símplices da terra: experiências sociais dos cirurgiões no Brasil-Colônia In: FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Fundação Oswaldo Cruz, 2002, p. 107-149.

58 Idem, Ibidem, p. 118.59 Sobre a prática da sangria no universo da medicina europeia e em particular na portuguesa ver:

SANTOS, Georgina Silva dos. A arte de sangrar na Lisboa do Antigo Regime. Tempo, Rio de Janeiro, n. 19, jul. 2005, p. 43-60; CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994, p. 83-84.

60 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 79.61 Idem, Ibidem, p. 125.

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relação ao tétano. Neste caso, as sangrias eram sempre nocivas, embora algumas vezes a constituição do enfermo parecesse indicar a necessidade delas.62

Desse modo, o médico não se limitava à aplicação às cegas de determinadas terapias; mesmo procedimento adotado em relação às teorias. Se a utilização das fl ebotomias decerto continuou a fazer parte do repertório da medicina praticada nos domínios ultramarinos portugueses, vários cirurgiões e médicos procuravam utilizá-la em casos específi cos de modo a não extenuar mais o corpo dos enfer-mos. Opinião similar à de José Pinto de Azeredo era a do cirurgião José Antônio Mendes. No seu Governo dos mineiros (1770), escrito a partir das experiências médicas na Capitania das Minas, condenava os excessos das sangrias, observando que essas deviam ser reguladas “conforme as forças, e a fereza do mal o pedem, e também a idade e temperamento”.63

Recriminando os remédios caseiros e aconselhando o uso moderado das san-grias, Azeredo lançava mão de vários componentes da farmacopeia portuguesa. É o caso da Água de Inglaterra, que ele utilizava em razão de ser feita com uma quina melhor do que a de Angola.64 Com o intuito de evitar falsifi cações, por decreto real de 1799, o controle sobre a fabricação desse remédio destinado às armadas e domí-nios ultramarinos passou a ser efetuado pela Junta do Protomedicato, sendo produ-zido nos dispensários farmacêuticos escolhidos para essa fi nalidade.65 O preparado feito à base da quina teve amplo emprego no combate às febres, tanto em Portugal quanto em suas colônias. Timothy Walker chama atenção para o fato de que a utilização da quina foi imprescindível à expansão ultramarina portuguesa, com-batendo enfermidades e impedindo a morte de militares e funcionários coloniais na África. Da Amazônia, no Brasil, foram transplantadas árvores para São Tomé, onde se produzia toneladas de quina enviadas através dos domínios coloniais.66

62 Idem, Ibidem, p. 144.63 MENDES, José Antônio. Governo dos mineiros, mui necessários aos que vivem distantes de

professores seis, oito, dez e mais léguas, padecendo por esta causa os seus domésticos e escravos queixas, que pela dilaçam dos remédios se fazem incuráveis, e as mais das vezes mortais. Lisboa: Officina de Antônio Rodrigues Galhardo, 1770, p. 65. Sobre a trajetória de José Antônio Mendes consultar: RIBEIRO, Márcia Moisés. Nem nobre, nem mecânico..., op. cit.

64 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit.,65.65 MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil Setecen-

tista. Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp; Centro de Memória-Unicamp, 1999, p. 238-239.66 WALKER, Timothy, op. cit., p. 267. Sobre a ampla utilização da quina na farmácia nos domínios

portugueses ver também: PITA, João Rui. Mar, farmácia e medicamentos: algumas notas de interesse histórico farmacêutico. In: IX Curso de Verão do ICEA, 2007, p. 1-8. Disponível em: http://www.icea.pt/Actas/ActasiX/Jo%C3%A3o_Rui_Pita.pdf. Acesso em 02/06/2001.

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Apesar de reconhecer a efi cácia dessa droga medicinal, Azeredo sublinhava que algumas febres intermitentes resistiam a ela. Além disso, as difi culdades em obter a quina levaram o médico a buscar alternativas capazes de substituir a matéria prima do medicamento para combater os sintomas da doença. A partir de suas experiências, encontrou na “noz vômica” uma “virtude igual, ou talvez superior à da quina”. A descoberta era motivo de orgulho. Nesse sentido, obser-vava que depois de ter comprovado seus efeitos benéfi cos no hospital “todos os mais professores começaram a receitá-la por necessidade”.67

Além da “noz vômica”, Azeredo recorria ao arsênico branco, substância que, se aplicada com prudência, se mostrava como uma das mais efi cazes. Entretanto, pela resistência que a doença oferecia a esses remédios, ele se viu obrigado a colocar em prática “infi nitos remédios”, vindo depois de frustradas tentativas a encontrar um com reconhecido efeito, a “casca externa do coco” encontrado em Angola e preparada em cozimento.68

Nas outras enfermidades de Angola Azeredo agia de maneira semelhante em relação às febres, alternando a aplicação de remédios tradicionais com os desco-bertos por ele. No caso das disenterias, ministrava a ipecacuanha ou o ruibarbo misturado à quina, bem como a “tintura das cantáridas” , substância responsável por não só remover as dores como diminuir a infl amação do intestino.69

Da utilização desse amplo receituário se depreende que o médico não apenas salientava o valor de suas descobertas, como incorporava as formulações comuns na medicina portuguesa, compostas por ervas, raízes e substâncias de origem ani-mal – como é o caso da mencionada “tintura de cantárida”, obtida de um besouro e utilizada em regiões como a Capitania das Minas.70 A atitude de Azeredo o apro-xima de outros cirurgiões e físicos que se viam obrigados a recorrerem à “botica da natureza” para suprir a ausência de medicamentos disponíveis nas regiões distantes de Portugal e se adequarem às necessidades das doenças endêmicas.71

Ao longo do século XVIII se intensifi cou a utilização de drogas e medicamen-tos de várias regiões do Império Português. Esse processo de trocas comerciais e incorporação das drogas, obtidas do mundo natural, no receituário lusitano não

67 AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 90.68 Idem, Ibidem, p. 92.69 Idem, Ibidem, p. 121.70 Sobre a utilização dos remédios obtidos da fauna em Minas Gerais ver: SOUZA, Rafael de

Freitas e. Medicina e fauna silvestre em Minas Gerais no século XVIII. Varia História, v. 24, n. 39, 2008, p. 273-291.

71 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 3ª ed., 1994. Tais questões são abordadas no capítulo “Botica da natureza”, p. 74-89.

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183Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012

Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.

estava dissociado do culto racionalizado da exploração da natureza, possibilitado pelos avanços científi cos na metrópole portuguesa.72

* *

A leitura do Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola permite abordar algumas características do saber médico em fi ns do século XVIII, fruto tanto do contato com a ciência das Luzes quanto das experiências em regiões do império Português. Com base nesse tratado e outras fontes foi possível identifi car algu-mas das concepções teóricas que exerceram infl uência na obra de José Pinto de Azeredo e como ele as articulava às suas observações tecidas a partir de sua estadia na América Portuguesa e em Angola. Além disso, cabe perceber como algumas dessas concepções encontravam respaldo na medicina luso-brasileira da época. Não deixa de ser signifi cativo observar também a forma como o mé-dico lida com o conhecimento à sua disposição, ao indicar como esse em muitas ocasiões se mostrou limitado para os casos com os quais se deparou. A despeito do recurso às teorias existentes na medicina, essa atitude é um traço revelador da originalidade de sua obra, levando mais uma vez a rever a ideia da constituição do saber científi co luso-brasileiro como mera repetição do praticado nos centros considerados mais avançados da Europa.

Embora pelas fontes consultadas não seja possível saber o impacto da obra de José Pinto de Azeredo na medicina portuguesa, ela permite identifi car certos elementos do saber médico praticado no Império Português, produto não só dos contatos com a medicina europeia, mas também de um saber moldado pelas expe-riências coloniais. O exame das trajetórias individuais, como a que se pretendeu realizar no âmbito desse artigo, pode fornecer subsídios para a compreensão de como os letrados se apropriavam do conhecimento das Luzes e, ao mesmo tempo, procuravam produzir um saber que fosse capaz de lidar com a realidade colonial. As obras de José Pinto de Azeredo ainda estão por merecer outros es-tudos e podem desvelar diversas questões que não foram analisadas neste artigo.

Recebido: 08/07/2011 – Aprovado: 02/12/2011

72 Ver a respeito o estudo de MARQUES, Vera Regina Beltrão, op. cit.; principalmente o capítulo “A natureza decifrada”, p. 97-154.

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185Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

AS “GEOMETRIAS” DO TRÁFICO: O COMÉRCIO METROPOLITANO E O

TRÁFICO DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1796-1807)

Maximiliano M. MenzUniversidade Federal de São Paulo, jovem pesquisador da Fundação

de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

ResumoO artigo apresenta uma análise comparada dos registros alfandegários de Portugal e Angola entre 1796 e 1807 e demonstra que a metrópole portuguesa era responsável por mais da metade do fi nanciamento do tráfi co em Angola neste período. Além disso, discute aspectos relacionados ao fi nanciamento do resgate e do transporte de escravos, reavaliando a participação dos mercadores coloniais no negócio.

Palavras-chavetráfi co triangular • fi nanciamento • transporte • escravos.

Contato:Universidade Federal de São PauloEscola de Filosofia, Letras e Ciências HumanasEstrada do Caminho Velho, 333 – Bairro dos Pimentas 07252-312 – Guarulhos – SP E-mail: [email protected]

* Pesquisa realizada com apoio da Fapesp. O autor agradece a Gustavo Acioli Lopes e Natalia Tamone pela indicação de alguns importantes documentos para a elaboração do artigo, a Gui-lherme Conigiero pela elaboração dos mapas e a Diego Cambraia Martins por ter auxiliado na organização das planilhas.

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186 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

THE “GEOMETRIES” OF TRADE: METROPOLITAN COMMERCE AND

SLAVE TRADE IN ANGOLA (1796-1807)*

Maximiliano M. MenzUniversidade Federal de São Paulo, scholar-holder of

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

AbstractThe article presents a comparative analysis of customs records of Portugal and Angola between 1796 and 1807 and shows that the metropolis was responsible for more than half of the fi nancing of slave trade in Angola during this period. In addition, it discusses issues related to the fi nancing of ranson and transportation of slaves, reviewing the participation of colonial merchants in the business.

KeywordsTriangular trade • fi nancing • transport • slaves.

Contact:Universidade Federal de São PauloEscola de Filosofia, Letras e Ciências HumanasEstrada do Caminho Velho, 333 – Bairro dos Pimentas 07252-312 – Guarulhos – SPE-mail: [email protected]

* Research with support of Fapesp. The autor thanks Gustavo Acioli Lopes and Natalia Tamone for the indication of some importante documents for the preparation of the article, Guilherme Conigiero for the preparation os maps and Diego Cambraia Martins for helping in the organization of spreadsheets.

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187Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

Nos últimos vinte anos, consolidou-se um verdadeiro consenso historiográfi co em torno da ideia de que o tráfi co de escravos era controlado pelos mercadores residentes no Brasil, ao menos desde o século XVIII. O consenso foi gerado a partir da publicação dos trabalhos de Manolo Florentino e Luiz Felipe Alencastro e vem sendo reproduzido por autores como Antonio Jucá Sampaio, Roquinaldo Ferreira e Alexandre Ribeiro.

Existem, é claro, nuances nestas interpretações e diferenças no que diz res-peito ao recorte geográfi co e temporal que a tese abrangeria: Manolo Florentino afi rma que os mercadores “cariocas” dominariam o tráfi co de escravos desde o início do século XVIII, tese baseada na extrapolação de seus dados pós 1808 e em alguns testemunhos qualitativos.1

Já para Luiz Felipe Alencastro, a presença “brasílica” teria sido estabelecida desde a segunda metade do século XVII, depois das guerras luso-holandesas, com o estabelecimento de governadores brasílicos em Angola. A preeminência do Rio de Janeiro só teria se estabelecido a partir do século XVIII, graças à utilização da jeribita no tráfi co de escravos. Esta última afi rmação assenta-se sobre um cálculo de José Curto, segundo o qual as exportações de jeribita pagariam 25% dos es-cravos adquiridos pela América Portuguesa no mesmo século. Acrescenta a isto o estudo quantitativo de Corcino Santos, onde consta que apenas 15% dos navios negreiros aportados em Luanda no século XVIII haviam partido de Lisboa.2

Jucá de Sampaio, por sua vez, manifestou dúvidas em relação ao predomínio “carioca” no início do século, mas não concedeu aos arcaicos mercadores metro-politanos uma participação no tráfi co, preferindo sugerir a ação de contrabandistas estrangeiros em Angola para criticar a “miragem do exclusivo metropolitano”. Roquinaldo Ferreira considerou que a cachaça e os têxteis asiáticos teriam sido a chave para o controle colonial do resgate em Benguela e Angola, demarcando apenas uma mudança no centro de gravidade americano, da Bahia para o Rio de Janeiro, durante o século XVIII. Finalmente, Alexandre Ribeiro reproduziu a tese de Manolo Florentino para a Bahia, sem aprofundar este debate específi co, tendo em vista que o escopo de sua pesquisa era principalmente quantifi car as importações de escravos.3

1 FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 177-184.2 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São

Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 248-251, 28-29, 323-324. 3 Cf. SAMPAIO, Antonio C. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias sociais e conjunturas

econômicas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001, p. 148-184. FERREIRA, Roquinaldo. Transforming Atlantic Slaving: Trade, warfare and territorial control in Angola,

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188 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

Apesar dos méritos desta historiografi a, é curioso notar que o consenso constituiu-se sobre frágeis evidências quantitativas. Os números de Alencastro e as extrapolações de Florentino são pouco consistentes, enquanto que Ferreira e Sampaio não apresentam nenhuma evidência serial, mas apenas testemunhos indiretos, passíveis de diferentes interpretações, e algumas negociações isoladas, baseadas em micro biografi as de trafi cantes.4

O consenso também choca-se com a interpretação dos historiadores norte-americanos Herbert Klein e Joseph Miller. Klein, ainda nos anos 70, notava a participação dos mercadores residentes no Brasil no transporte de escravos, mas realçava o papel dos capitalistas de Lisboa no fi nanciamento. Já Miller, a maior autoridade sobre o tráfi co em Angola, propõe uma visão bastante diferente das conjunturas do tráfi co: de acordo com ele, durante o século XVII, o tráfi co era controlado pelos governadores de Angola, demarcando a simbiose entre os confl itos militares no sertão e a captura dos cativos. A repressão da monarquia à participação dos governadores no comércio e a relativa desaceleração nos con-fl itos entre os colonizadores e os reinos africanos do interior deram lugar a um resgate de escravos regulado mais pelo comércio, operado pelos mercadores de Luanda, do que pela captura direta. A partir dos anos de 1720-1730, portanto, o fi nanciamento do comércio de escravos passou a ser dominado pelos homens de negócio de Lisboa que se sucediam no contrato do estanco do marfi m e da cobrança de impostos sobre a exportação de escravos.

Ainda segundo J. Miller, esta situação teria mudado na década de 1780 quando os mercadores do Brasil, que até então se dedicavam ao comércio de cachaça e ao transporte de escravos, abocanharam uma maior parte do negócio graças à retração dos capitais lisboetas, que sucedeu à crise do ouro, e ao acesso de mercadorias europeias de resgate fornecidas por contrabandistas ingleses. No entanto, é notável que o professor norte-americano, apesar conhecer de modo bastante profundo as fontes originais e os registros da alfândega de Luanda, tenha apresentado poucos dados quantitativos em sua obra máxima, Way of Death; apenas em artigos anteriores foi publicada parte destes números.5

1650-1800. PhD Dissertation, University of California, 2003. RIBEIRO, Alexandre Vieira. O trá-fico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2005.

4 Cf. ainda LOPES, Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias: Uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro em Angola e na Costa da Mina (século XVIII). Afro-Ásia, nº 37, 2008.

5 Cf. KLEIN, Herbert. The portuguese slave trade from Angola in 18th century. In: Idem, The Middle Passage. Princeton: Princeton University Press, 1978, p. 23-50. MILLER, Joseph. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Winscosin: Universisty of

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189Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

Além dos livros pioneiros de Herbert Klein e Joseph Miller, alguns poucos trabalhos mais recentes têm contribuído para problematizar o consenso. Daniel Domingues da Silva demonstrou que o tráfi co para o Maranhão na segunda metade do século XVIII era controlado pelos grandes capitalistas da praça de Lisboa, ligados às Companhias Pombalinas. O estudo não questiona as teses dominantes; pelo contrário, procura argumentar que depois de 1788 os negociantes coloniais dominariam o tráfi co para aquela região. Mesmo assim, é um trabalho importante, pois sugere outras vias de interpretação a respeito do comércio de escravos.6

Neste sentido, é de fundamental importância a tese de Gustavo Acioli Lopes Negócio da Costa da Mina, pois questiona a interpretação tradicional sobre o tráfi co na Costa da Mina, mostrando que, para além do tabaco, os mercadores da Bahia e de Pernambuco carregavam também ouro, trocado por têxteis nas feitorias europeias da Costa da África. Ademais, demonstra com fontes portu-guesas que embarcações metropolitanas também resgatavam escravos na África Ocidental durante a primeira metade do século XVIII. Vale mencionar ainda o artigo que escrevi com Gustavo Acioli Lopes no qual apresentamos elementos de prova que permitem relativizar a interpretação canônica sobre o tráfi co na Costa da Mina e Angola7.

Dadas as frágeis evidências seriais apresentadas originalmente por Floren-tino e Alencastro, é preciso perguntar os fundamentos do consenso. Arrisco-me a sugerir alguns: em primeiro lugar, a obra de Joseph Miller nunca foi traduzida ao grande público brasileiro e a ausência de dados quantitativos em seu livro

Winscosin Press, 1988. MILLER, Joseph. Imports at Luanda, Angola 1785-1823. In: PASCH, G.; JONES, A. Figuring African Trade. Berlin: Reimer, 1986. MILLER, Joseph. Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830. In: LOVEJOY, Paul (Ed.). Africans in Bondage. Studies in slavery and slave trade. Winscosin: African Studies Program, University of Winscosin, 1986.

6 SILVA, Daniel Domingues da. The Atlantic Slave Trade to Maranhão, 1680-1846. Volume, Routes and Organization. Slavery & Abolition, v. 29, n. 4, 2008, p. 477-501. O argumento sobre o do-mínio dos mercadores das praças brasileiras após 1788 é negativo: mesmo notando um domínio avassalador das rotas triangulares, ainda depois de 1788, o autor ressalta que apenas três dos proprietários de embarcações podem ser encontrados na lista dos grandes capitalistas de Lisboa organizada por Jorge Pedreira; conclui então que “provavelmente mercadores residentes em São Luís ou outros portos brasileiros aumentaram o controle sobre o carregamento de escravos para o Maranhão”. (p. 489, trad. minha). No entanto, a ausência destes proprietários na lista de Pedreira pode significar simplesmente uma mudança no grupo mercantil lisboeta, com a saída dos grandes capitalistas e a entrada de pequenos comerciantes. Vale dizer, aliás, que estas deduções sobre os proprietários de embarcações são sujeitas a dúvidas (ver nota 22).

7 LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760). Tese de Doutorado, USP, 2008; LOPES, Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias:..., op. cit.

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que, de modo explícito, afrontassem a tese dominante pode ter estimulado o seu esquecimento.

Além disso, as tradições historiográfi cas do fi nal da década de 80 podem ter facilitado a aceitação do consenso. A interpretação do domínio do tráfi co por parte dos mercadores coloniais encontra raízes nas obras de Affonso de Taunay, Pierre Verger e Mauricio Goulart, que apontavam para a existência de um comércio direto entre o Brasil e a África, destacando o comércio luso-brasileiro em relação às demais carreiras negreiras supostamente triangulares. A ideia combinava-se de modo harmônico com a tese de um mercado interno colonial ou então com a inversão de polos entre metrópole e colônia que confi guraria a crise do Antigo Sistema Colonial. Finalmente, o domínio brasileiro sobre o tráfi co iluminaria a importância deste negócio durante o Primeiro Reinado e explicaria, em grande parte, os debates políticos em torno do tema no século XIX.

Por último, apesar de o consenso não ser baseado em dados seriais, foi a partir desta tese que foram produzidos diversos estudos quantitativos que, aparente-mente, confi rmaram a ideia do domínio do “capital mercantil residente” sobre o tráfi co. Destaco o material do Transatlantic Slave Trade Database, constituído a partir do registro massivo de viagens negreiras para o qual contribuíram os estudiosos brasileiros. Esta base de dados demonstra que 91% dos escravos embarcados em Luanda entre 1701 e 1807 teriam sido transportados por navios originados em portos brasileiros.8

O presente artigo, porém, questiona o consenso historiográfi co: através da análise comparada dos registros alfandegários de Portugal e Angola entre 1796 e 1807, procura-se demonstrar que a metrópole portuguesa era responsável por mais da metade do fi nanciamento do tráfi co em Angola, fornecendo a maior parte das mercadorias utilizadas no resgate neste período.

A preocupação em quantifi car a participação metropolitana no tráfi co e a crítica à corrente historiográfi ca dominante pode parecer ociosa e até mesmo anacrônica atualmente. Afi nal, como mostram os trabalhos mais atuais a respeito das comunidades mercantis no Império português, o estágio no Brasil costumava

8 Variáveis utilizadas para a pesquisa na base de dados: principal local de desembarque (Brasil), local onde a viagem começou (Brasil e/ou Portugal); bandeira da embarcação (portuguesa); principal ponto de compra dos escravos (Luanda). O total de viagens iniciadas em Portugal foi de 129. O total de viagens iniciadas no Brasil foi de 1.722. (http://www.slavevoyages.org/; consultado em 07/01/2010). Note-se que os dados do database não são completos: em meu levantamento nos arquivos de Lisboa levantei 205 passaportes de embarcações reinóis com destino a Angola entre 1757 e 1807, ver as fontes da tabela 9, no apêndice.

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ser passageiro para os mercadores das praças brasileiras, fortemente articulados com os homens de negócio de Lisboa; trocando em miúdos, o capital mercantil colonial não era residente e nem autônomo num sentido estrito.9 Pretendo argu-mentar que o problema da participação metropolitana no tráfi co deve ser colocado de modo diferente, portanto. Ao invés de buscarmos hierarquias pessoais nas trajetórias de homens de negócio, é preciso reconstituir as funções econômicas de cada região do Império articuladas pelo comércio de escravos, de modo a revelar as hierarquias espaciais, defi nidas pelos tipos de mercadorias utilizadas para o resgate e pelos fl uxos fi nanceiros do negócio.

Para tanto, apresentarei cálculos a respeito da participação relativa das mercadorias metropolitanas no comércio angolano. Em seguida, analisarei as principais mercadorias utilizadas pelos trafi cantes lisboetas. Na terceira parte do artigo reconstituirei algumas das rotas dos navios metropolitanos, retomando a tese do tráfi co triangular; tal análise, no entanto, deve ser cotejada com os dados das balanças comerciais e dos mapas de exportação e importação que permitem certas aproximações a uma contabilidade do comércio do Atlântico Português. A última parte será uma discussão, ainda que não exaustiva, a respeito do papel das embarcações “brasílicas” no tráfi co. Na conclusão, pretendo sugerir quais as consequências historiográfi cas que podem ser retiradas a partir deste estudo e novas hipóteses para trabalhos futuros.

As fontes deste artigo são, em primeiro lugar, as balanças de comércio por-tuguesas, no intervalo entre 1796 e 1807. Como já é bem sabido, estas balanças de comércio não apenas demonstravam os valores das exportações e importações portuguesas, como também discriminavam as quantidades e os tipos de merca-dorias exportadas e importadas por Portugal, tornando-se, portanto, uma fonte obrigatória para o estudo da economia portuguesa nessa passagem de século. Apesar de as fontes terem sido aproveitadas numa grande quantidade de textos a respeito do comércio de Portugal com o Brasil ou com a Europa, praticamente foram ignoradas nos trabalhos a respeito do tráfi co de escravos.

As razões para o subaproveitamento destas fontes são muitas: em primeiro lugar, e por motivos óbvios, o tráfi co de escravos propriamente dito não era re-gistrado pelas balanças portuguesas. Além disso, como demonstrarei ao longo do

9 Cf. PEDREIRA, Jorge. Brasil, fronteira de Portugal. Negócio, emigração e mobilidade social (séculos XVII e XVIII). In: CUNHA, Mafalda (Coord.). Do Brasil à Metró-pole, efeitos sociais (séculos XVII-XVIII). Anais da Universidade de Évora, n. 8 e 9, 1998/1999, p. 47-72; e PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do setecentos. Tese de Doutorado, UFF, 2009.

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texto, o próprio comércio português na África no fi nal do século XVIII e início do XIX era insignifi cante frente ao comércio com o Brasil. Finalmente, foi só nos últimos 20 anos que os temas relacionados com o comércio de escravos no Brasil ganharam relevância na historiografi a e pelas já referidas teses que procuraram realçar os vínculos diretos entre o Brasil e as possessões portuguesas na África. Supôs-se implicitamente, portanto, que as balanças teriam pouco o que dizer a respeito do tráfi co de escravos.

Além das balanças de comércio existem registros alfandegários do porto de Luanda em séries relativamente completas ao menos desde 1785. Estas séries são o resultado do esforço de reorganização Imperial empreendido pelos secretários de Marinha e Ultramar ao menos desde Martinho de Mello e Castro; o centro lisboeta procurou estimular a produção de dados demográfi cos, econômicos e naturais que permitissem conhecer as condições dos domínios portugueses do Ultramar. Ao contrário das balanças, estes números foram bem explorados pelos estudos de J. Miller e J. Curto sobre o tráfi co e, sendo assim, aproveitarei os dados publicados por estes autores para comparar com os dados copilados nos arquivos portugueses.10

Completam as fontes quantitativas os mapas de exportação e importação dos portos da Bahia e do Rio de Janeiro. A série baiana é completa (1797-1807) e fi ável, enquanto que os mapas do Rio fornecem alguns dados úteis, mas, como será discutido no momento apropriado, não permitem calcular défi cits e superávits.

Para redigir o artigo consultei ainda alguns documentos qualitativos que pude acessar em arquivos brasileiros e portugueses: destaco as correspondências dos governadores de Angola, D. Francisco Inocencio Coutinho e D. Miguel Antonio de Mello, que revelam as particularidades do negócio.

1. Estimativa da participação metropolitana no tráfico (1796-1807)Qual era a participação metropolitana no tráfi co? Para responder a esta per-

gunta é preciso superar as limitações das fontes, pois os registros de Luanda não apresentam o porto de origem das cargas, mas sim os lugares de produção das diferentes mercadorias. Assim, estas estão divididas por quatro classes de origem:

10 MILLER, Joseph. Imports at Luanda…, op. cit.; MILLER, Joseph, Way of Death:…, op. cit.; CURTO, José C. Álcool e Escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central e Ocidental. Trad. Márcia Lameirinhas, Lisboa: Vulgata, 2002.

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Fazendas e gêneros da Cultura e Indústria de Portugal que tiveram despacho na alfândega desta cidade, Fazendas e gêneros da Cultura e Indústria da América Portuguesa, Fazendas e gêneros da cultura e indústria da Ásia, Fazendas e gêneros da cultura e indústria das Nações da Europa que Sua Majestade Permite entrada nos seus domínios.11

Portanto, para estimar a participação relativa dos capitais lisboetas é neces-sário cruzar os registros da alfândega de Luanda com as balanças comerciais portuguesas. Existem dois métodos de cruzar estes registros: o primeiro é calcu-lar a parte que as exportações desde Portugal ocuparam nas importações gerais registradas em Luanda, ao menos quando estes registros existem. O segundo método é calcular o “poder de compra” das exportações portuguesas frente ao valor dos escravos exportados a partir de Luanda.

Os dois métodos possuem inconveniências; no primeiro caso, as balanças portuguesas apresentam preços evidentemente inferiores aos praticados no mer-cado angolano, pois ao preço no momento da exportação seria necessário incluir os custos de transação. Mas as diferenças entre pesos, medidas, qualidades e classifi cações nos dois registros não permitem um cálculo seguro a respeito desta variação. Apenas no caso das pipas de vinho foi possível fazer uma compara-ção segura e os preços de Angola são entre 26% e 81% mais caros do que em Portugal.12 Ademais, a contabilidade da Companhia de Pernambuco, referente às décadas de 1760 e 1770 estimava uma lucratividade entre 40% e 25% sobre as vendas de mercadorias enviadas de Lisboa para Angola.13

É verdade, porém, que alguns produtos registraram preços mais baixos em Angola do que em Lisboa. Estas exceções aconselham a não exagerar as dife-renças de preços, pois era próprio do negócio com escravos trocar um conjunto de mercadorias pela compra de um grupo de escravos, a perda com um produto poderia ser compensada pela alta margem de outro. Em todo o caso, parece óbvio que Lisboa vendia barato e Luanda comprava caro. Mesmo assim, abstenho-me de qualquer correção, já que a variação de preços entre os dois mercados é uma margem de segurança para o meu argumento.

11 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), Divisão de Manuscritos, 15,3,33. Manolo Florentino utilizou parte destes dados, mas parece que ele não se deu conta desta particularidade da fonte. Cf. FLORENTINO, Manolo. Tráfico Atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, Brasil, c. 1790-ca. 1830. História Questões & Debates, Curitiba, n. 51, 2009, p. 69-119, aqui, p. 87-88.

12 Ver fontes da tabela 1.13 Arquivos Nacionais Torre do Tombo (ANTT), Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba

(CGPP), Junta de Lisboa, Livros de Demonstrações, Livros 394 e 395.

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Outra incongruência é a distância entre a intenção de venda na metrópole e o gesto na capital de Angola: algumas embarcações podem ter vendido parte da carga em diversos portos africanos, apesar de terem declarado apenas Luanda como destino, superestimando as exportações metropolitanas. Esta distorção se manifesta de modo mais claro quando são desagregadas as categorias de produto: assim, em 1799 e 1804 os valores dos têxteis asiáticos exportados por Portugal superam as importações registradas em Luanda; o mesmo ocorre com o volume de pipas de vinho em 1805.14 Tudo indica que este problema é causado pela conjuntura: no período analisado os mercadores portugueses passaram a enviar algumas embarcações para os portos ao norte de Luanda, as balanças registraram estas cargas como exportações para “Angola”, mas estas, naturalmente, não eram detectadas pela alfândega de Luanda. Para superar as dúvidas suscitadas por esta distorção, forneço ainda um terceiro método de calcular a participação lisboeta que utiliza fontes diferentes e que estabelece cargas médias para as embarcações originadas no Brasil e em Portugal (ver apêndice).

O mesmo problema com relação ao preço das mercadorias portuguesas existe quando comparo o valor das exportações de Portugal para Angola com o mon-tante de escravos exportados. Deste ponto de vista, o cálculo subestima o “poder de compra” das exportações portuguesas. Não obstante, Angola não exportava apenas pessoas: marfi m e cera eram as mercadorias preferidas pelas embarcações que retornavam diretamente à metrópole e compunham 12% das exportações de Luanda entre 1785 e 1794; deste lado, portanto, o cálculo superestima o poder de compra das exportações portuguesas.15

Além disso, há um defeito na defi nição dos preços dos escravos utilizados, pois eles não são correntes, mas médias decenais estimadas por J. Miller. Com-parando as médias de Miller com alguns valores registrados na alfândega de Luanda constata-se que podem existir diferenças positivas e negativas, ainda que para o período entre 1796-1807 os preços da alfândega geralmente superam as médias de Miller; mesmo assim, optei pela série do professor norte-americano porque permite um cálculo completo para o período.

14 É preciso ainda considerar a assincronia entre as partidas do Tejo e as chegadas em Luanda. Em geral, as embarcações portuguesas que faziam comércio na África eram em pequeno número, mas eram de grande tonelagem e carregavam cargas expressivas, assim um veleiro que porventura partisse de Lisboa no final de um ano e chegasse em Angola no início do outro ano provocaria fortes distorções entre os registros portugueses e angolanos. Por isto, acredito que a análise deve ser sempre no agregado, pois o estudo sobre anos isolados não autoriza nenhum tipo de conclusão.

15 SANTOS, Cocino. O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993, p. 156.

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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

Tudo isto considerado, acredito que os dois cálculos resultam numa aproxi-mação, no agregado, da participação metropolitana no fi nanciamento do resgate de cativos em Luanda. O “valor real” talvez esteja em algum lugar entre as duas estimativas que apresento aqui; ideia que é reforçada pelo cálculo de segurança que apresento em apêndice.

Tabela 1: participação metropolitana no financiamento do tráfico de escravos (em réis)

AnoA B C

A/B A/Cexportações portuguesas

importações angolanas totais

exportações de escravos

1796 147.576.210 621.834.000 24%1797 126.063.218 549.427.000 23%1798 202.270.993 355.565.753 643.184.000 57% 31%1799 427.829.486 581.280.590 512.034.000 74% 84%1800 444.749.540 494.710.000 90%1801 665.781.400 618.540.000 108%1802 531.446.477 998.801.831 730.658.000 53% 73%1803 480.789.012 995.372.678 874.862.000 48% 55%1804 586.978.155 988.522.000 823.378.000 59% 71%1805 548.620.485 1.063.412.000 949.953.000 52% 58%1806 597.642.320 931.165.000 64%1807 486.255.200 741.272.000 66%

Fontes: A) Exportações portuguesas: 1798: AHMOP, Superintendência Geral dos Contraban-dos 5-1, 5-2, 3. Balanças do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios. 1796-1797, 1799-1807. INEL, Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios e Nações estrangeiras. B) Importações angolanas: 1798 e 1799 AHU, Angola, Avulsos, cx. 89, doc. 79, cx. 93A, doc. 48. 1802-1803, cx. 106, doc. 5, cx. 109, doc. 54. 1804-1805: MILLER, Joseph. Imports at Luanda, Angola 1785-1823. In: PASCH, G.; JONES, A. Figuring African Trade. Berlin: Reimer, 1986, p. 228. C) Exportações de escravos: O número de escravos exportados foi retirado de CURTO, José C. Álcool e Escravos...., op. cit., quadros IV e VIII e multiplicado pelos preços médios de J. Miller. Para o período entre 1796 e 1807 utilizei o preço médio da década de 1800, pois era mais próximo aos dados da alfândega de Luanda. MILLER, Joseph. Slave Prices in..., op. cit., p. 67.

A série sugere que entre 1796 e 1807, e mais particularmente entre 1798 e 1807 a metrópole dominava amplamente o fi nanciamento do tráfi co. No agrega-do, entre 1796 e 1807 as exportações portuguesas equivaleram a perto de 60% das exportações de escravos e, para os anos em que foi possível comparar, as primeiras foram 56% das importações totais de Angola. O cálculo de segurança

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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

no apêndice apresenta uma participação de 54% da metrópole nas importações totais de Luanda.

2. As mercadorias do tráficoAs balanças de comércio lisboetas permitem ainda discutir as classes de

mercadorias exportadas para Angola. Há, neste sentido, um total domínio de produtos manufaturados: 86% das exportações entre 1796 e 1807 eram produtos manufaturados, com especial relevância nos têxteis. Destes, os mais importantes tinham origem asiática (56%), em segundo lugar vinham os lanifícios (15%), muito provavelmente de procedência inglesa em razão do tratado de Methuen. Já os produtos classifi cados como de fábricas nacionais eram apenas 6%; ou seja, apesar da tendência positiva na produção manufatureira lusitana no período, Portugal não foi capaz de substituir exportações no tráfi co de escravos. Trata-se de um vivo contraste com o tráfi co inglês, onde as manufaturas de produção nacional gradualmente substituíram os panos de algodão asiáticos.16

As exportações de mantimentos portugueses, por causa do vinho, ainda su-peravam ligeiramente os produtos das fábricas. Bem entendido que não devemos tomar estes dados pelo seu valor de face, pois, como já argumentou Valentim Alexandre, nem todos os mantimentos registrados nas balanças eram de produ-ção nacional portuguesa, enquanto que as categorias “linifícios”, “lanifícios” e “metais” não se resumiam a reexportações. Aqui a classifi cação dos registros de Luanda é mais útil, no intervalo de 1795-1797 os têxteis eram 51% dos produtos portugueses importados, os manufaturados vários eram 10% e os produtos ligados à agricultura eram 39%.

Mas, a verdade é que o mercado angolano era realmente irrelevante para as manufaturas portuguesas. Basta comparar os valores das exportações metro-politanas de fazendas produzidas nas fábricas nacionais para Angola (em torno de 340 contos) e para o Brasil (37.480 contos) no período entre 1796 e 1807.17 Tampouco tinha importância para a atividade agrícola, pois entre 1796 e 1800

16 Sobre o surto manufatureiro português do final do século XVIII, ver: ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo: Ática, 1980; ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império: Questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Edições Afrontamento, 1993; ALEXANDRE, Valentim. Um momento crucial do subdesenvol-vimento português: efeitos económicos da perda do Império Brasileiro, Ler História, n. 7, 1986, p. 3-45; PEDREIRA, Jorge. Estrutura Industrial e Mercado Colonial Portugal e Brasil (1780-1830). Lisboa: Difel, 1994.

17 Para os valores das exportações das fábricas para o Brasil, ver NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1995, 6ª ed., tabela 29.

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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

as exportações de vinho para a colônia africana equivaliam a aproximadamente 0,34% das exportações do produto para a Europa.18 No apêndice, apresento ainda uma descrição geral dos valores e das classes de produtos exportados de Portugal para Angola.

A classifi cação do produto sobre a superfície do mercado não permite chegar a grandes conclusões sobre a relação entre o comércio de escravos e os setores da economia portuguesa, pois pouco diz a respeito do seu modo de produção: os manufaturados nacionais exportados por Portugal poderiam ser produzidos de modo artesanal, ou em manufaturas tecnicamente avançadas. Mesmo assim, o caso angolano demonstra que as vantagens comparativas de Portugal, no interior do seu sistema Atlântico, eram as atividades de transformação e não os produtos agrícolas.

A importância dos têxteis asiáticos joga luz sobre outra característica do tráfi co metropolitano. Como se observa pela tabela abaixo, grande parte deste tipo de manufatura – 76% pelo cálculo defeituoso que proponho – utilizada no resgate em Angola vinha em navios originados em Portugal; assim, a tese que afi rma o domínio dos mercadores brasílicos sobre o comércio de têxteis em Angola é completamente incorreta no que diz respeito ao período estudado.

Tabela 2Têxteis asiáticos. exportações de Portugal para Luanda e

importações totais de Luanda (em réis)

ano exp. Portugal imp. Luanda col.2/ col.3

(1) (2) (3) (4)

1798 114.081.500 134.953.123 85%1799 298.220.000 256.018.715 116%1802 205.701.980 368.555.845 56%1803 240.878.320 323.574.100 74%1804 260.541.020 237.245.280 110%1805 293.632.460 522.135.292 56%

total 1.298.973.780 1.707.529.232 76%

Fontes: Ver tabela1. A importação total de produtos asiáticos nos anos de 1804 e 1805 foi calculada a partir das porcentagens publicadas por MILLER, Joseph. Imports at Luanda..., op. cit., p. 229.

18 Fonte: MACEDO, Jorge. Problemas de História da Indústria Portuguesa no século XVIII. Lisboa: Querco, 1982, 2ª ed., p. 196; CURTO, José C. Álcool e escravos..., op. cit., Quadro XIII e INEL, Balanças de Comércio.

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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

O comércio de reexportações que era operado a partir de Lisboa só era pos-sível graças ao regime de exclusivo e às restrições do tráfego direto entre as pos-sessões coloniais; mais do que miragem, o exclusivo era o principal mecanismo pelo qual os mercadores metropolitanos podiam ainda controlar o fi nanciamento do resgate em Luanda, pois lhes permitia fornecer, com concorrência limitada, produtos asiáticos e da Europa do norte. Portanto, a vantagem econômica de Lisboa refl etia a vantagem política de ser o centro do Império.19

3. As geometrias do tráficoMas, afi nal, qual era o traçado das rotas das embarcações que conectavam

Portugal a Angola? Apesar do banco de dados Slave Trade Database registrar, na maior parte das vezes, apenas o destino brasileiro das embarcações luso-brasileiras, o estudo serial dos historiadores portugueses Eduardo Frutuoso, Paulo Guinote e Antonio Lopes – sobre a entrada de navios oriundos do Brasil no porto de Lisboa – permite fl agrar parte das embarcações em seu retorno ao Tejo.

É presumível que as embarcações que faziam rotas triangulares eram de propriedade de transportadores reinóis. Algumas delas até poderiam pertencer a mercadores de Luanda ou então a sociedades mistas entre diferentes portos; isto, porém, não quer dizer nada, pois não apenas a propriedade de uma embarcação poderia ser extremamente pulverizada, como também os proprietários do casco e das mercadorias difi cilmente se confundiam.20

19 O que contrasta com o negócio na Costa da Mina onde o resgate era livre, de modo que os comer-ciantes portugueses só podiam oferecer o tabaco (ou ouro) para competir com os mercadores da Europa, traduzindo-se numa vantagem aos homens de negócio residentes na colônia. Cf. LOPES, Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias..., op. cit.; LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina..., op. cit.

20 Em 1811 Manuel Pinto Coelho relatava que dos proprietários das embarcações que faziam tráfico em Angola, seis pertenciam à praça de Luanda, seis à praça do Rio de Janeiro, um era de Pernambuco e dois da Bahia. (IHGB, DL 1132.5, Manuel Pinto Coelho, 10/04/1811). Trata-se, porém, do período pós 1808. Sobre a característica do negócio de transporte de mercadorias Cf. DAVIS, Ralph. The Rise of the English Shipping Industry. London: MacMillan, 1962; COSTA, Leonor. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, 1580-1663. Lisboa: CNCDP, 2002. Note que os dois autores afirmam que no tráfico a propriedade da carga e da embarcação se confundiam, mas isto não ocorria no comércio luso-brasileiro de escravos do final do século XVIII.

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200 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

A tabela 3 é o resultado do cruzamento destas duas bases de dados; as colunas 1, 2, 3, 4 e 6 têm origem no Database, já as colunas 5, 7 e 8 foram retiradas do estudo dos pesquisadores portugueses. Não se trata de um levantamento exaustivo, pois registra apenas as embarcações em que constavam os mesmos mestres nas duas bases de dados. Ademais a tabela inclui apenas as naves que mantiveram uma rota estrita, passando por Luanda e necessariamente terminando a viagem na capital portuguesa. Perdem-se, por este recorte, as embarcações que podem ter preferido um porto português diferente como ponto de retorno; outro proble-ma é que esta descrição uniformiza viagens que podem ter sido mais erráticas, incluindo partidas em um porto americano ou africano.

Desse modo, entre as 40 viagens registradas no Database que seguiram a rota Portugal-Luanda-Brasil no período de 1796-1807, encontramos 18 que terminaram o percurso em Lisboa com o mesmo mestre. Os destinos das 22 viagens restantes podem ter sido os mais diversos: a troca do mestre, o retorno a outro porto português, a demora demasiada no Brasil, o estabelecimento de uma rota diferente (Brasil-Portugal-Luanda-Brasil ou então Portugal-Luanda-Brasil-Luanda), a venda da embarcação no Atlântico-sul, a perda do navio por acidente, etc.

A primeira conclusão é que apesar da frequência ser baixa, as rotas trian-gulares ocorreram, incluindo o retorno com cargas de produtos coloniais para Portugal. A tabela demonstra ainda que o tráfi co triangular estava conectado principalmente às regiões de Pernambuco, Grão Pará e Maranhão. Esta parece ser uma tendência geral do tráfi co metropolitano durante o período, pois as 40 viagens triangulares registradas no Database carregaram escravos principalmente para a região da Amazônia e para Pernambuco (tabela 4).

Tabela 4: escravos embarcados em Angola por destino

Região navios portugueses total %

Amazônia 6.811 12.163 56%

Bahia 2.019 26.106 8%

Pernambuco 8.334 31.346 27%

Sudeste Brasil 5.333 74.118 7%

Fonte: ver nota 10.

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201Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012

Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

A distribuição das rotas pode ser interpretada pela exclusão: as comunidades mercantis das praças de Bahia e do Rio, bem estabelecidas no tráfi co, domina-riam o transporte de escravos em suas regiões, mas é importante considerar uma continuidade dos capitais lisboetas ligados às antigas companhias pombalinas. Esta distribuição também pode sugerir que os trafi cantes metropolitanos atuavam nos mercados mais dinâmicos que, entre 1796 e 1807, atravessavam uma forte expansão nas exportações, principalmente por causa do algodão.21

No total, a participação metropolitana no carregamento de escravos para a colônia entre 1796 e 1807 foi insignifi cante. Segundo o Transatlantic Slave Trade Database as embarcações que haviam partido do Brasil continuavam a dominar de modo amplo o mercado de fretes dos escravos: 84% dos cativos embarca-dos em Luanda navegaram em embarcações que tinham origem em portos do Brasil.22 Número que contrasta explicitamente com os dados da tabela 1, pois a alta participação metropolitana no mercado angolano de importações deveria ter alguma correspondência no mercado de exportações de escravos.

Mas não era o que ocorria: dividindo o valor das exportações portuguesas que constam nas Balanças de Comércio pelo número de barcos originados em Portugal que deram entrada em Luanda, sabemos que o valor médio das cargas dos navios metropolitanos era de 73 contos de réis, o que permitiria comprar aproximadamente 1.211 escravos em Luanda; contudo, estes navios carregavam para o Brasil, em média, apenas 562 escravos de acordo com o Database.23

A Balança de Comércio entre Portugal e Angola aparentemente aprofunda o paradoxo, pois enquanto Portugal exportou mercadorias no valor de 5.246.002.496 réis, importou apenas 77.091.026 réis, basicamente cera e marfi m. Portugal, por-tanto, acumulou um saldo positivo absurdo (e, por conseguinte, Angola um saldo negativo) de 5.168.911.470 réis. A análise desagregada mostra que a tendência de saldos positivos para a metrópole manteve-se de modo uniforme entre todo o período estudado. Ou seja, não era com exportações ou remessa direta de moeda que Angola equilibrava seu saldo com Portugal.

21 Sobre a expansão exportadora nestas regiões e o papel do algodão ver ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no comércio colonial. op. cit.; PALACIOS, Guillermo. Cultivadores Libres, Estado y Crisis de la Esclavitud en Brasil en la Época de la Revolución Industrial. Ciudad de Mexico: FCE, 1998.

22 Não é possível concluir nada desta variação de 91% no século XVIII para 84% no período de 1796-1807, pois as fontes do Database são demasiadamente aleatórias.

23 Fontes: exportações portuguesas, números e preços de escravos ver fontes da tabela 1. Números de escravos carregados pelas embarcações originadas em Portugal, ver nota 10.

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Tabela 5: balança comercial entre Portugal e Angola (em réis)

ano exportação importação saldos

1796 147.576.210 16.408.250 131.167.9601797 126.063.218 0 126.063.2181798 202.270.993 20.481.250 181.789.7431799 427.829.486 7.155.000 420.674.4861800 444.749.540 4.728.600 440.020.9401801 665.781.400 0 665.781.4001802 531.446.477 10.942.125 520.504.3521803 480.789.012 2.336.000 478.453.0121804 586.978.155 7.307.800 579.670.3551805 548.620.485 3.241.000 545.379.4851806 597.642.320 2.149.001 595.493.3191807 486.255.200 2.342.000 483.913.200

total 5246002496 77.091.026 5.168.911.470

Fontes: INEL, Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios e Nações estrangeiras (1796-1807); e AHMOP, Superintendência Geral dos Contrabandos 5-1, 5-2, 3.

Ora, desde David Ricardo sabe-se que as balanças de pagamentos em eco-nomias baseadas em moeda metálica tendem a se equilibrar no médio prazo. Portanto, supõe-se que Angola deveria necessariamente obter saldos positivos sobre o seu outro parceiro comercial tradicional, o Brasil. E, de fato, se ob-servarmos a balança geral de Angola, baseada nos registros alfandegários de Luanda, constata-se que a tendência geral do comércio angolano era positiva; ou seja, dada a tendência negativa do comércio angolano com a metrópole, tais superávits só poderiam ser sustentados com saldos altíssimos sobre o Brasil (ver ainda a tabela 7).

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Tabela 6: exportações e importações (totais) de Angola de acordo com os registros de Luanda (réis)

ano exportação importação saldos

1785-1794 6.225.789.268 4.868.872.930 1.356.916.338 1795-1797 2.088.558.375 1.773.005.010 315.553.365 1798 674.669.580 355.565.753 319.103.827 1799 828.057.880 581.280.590 246.777.290 1802 833.815.280 998.801.831 (164.986.551)1803 987.685.500 995.372.678 (7.687.178)1804 985.587.000 988.522.000 (2.935.000)1805 1.076.159.000 1.063.412.000 12.747.000 1808 831.244.660 825.226.958 6.017.702 1809 791.645.780 588.991.753 202.654.027

Total 15.323.212.323 13.039.051.503 2.284.160.820

Fontes: 1785-1794, dados totais copilados por Corcino Santos. O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993, p. 156. 1795-1797, BNRJ, 15,3,33. 1798 e 1799, AHU, Angola, Avulsos, cx. 89, doc. 79, cx. 93A, doc. 48. 1802-1803, cx. 106, doc. 5, cx. 109, doc. 54. 1804-1805: MILLER, Joseph. Imports at Luanda…, op. cit., p. 228. 1808-1809, Arquivo Nacional (AN), Real Junta de Comércio (RJC), cx. 448, pct. 1.

Mesmo assim, a demonstração dos superávits sobre o Brasil não basta para resolver a questão, pois como já sabemos as embarcações originadas na metró-pole carregavam uma parte pequena dos escravos exportados. Era necessário, portanto, existir algum mecanismo fi nanceiro que permitisse transferir o saldo positivo angolano com o Brasil para Portugal, de maneira a equilibrar a balança comercial de Angola com a Metrópole.

Como pioneiramente destacou Joseph Miller, as importações angolanas desde Lisboa eram saldadas por letras, pois os homens de negócio de Lisboa preferiam evitar o risco das perdas na middle passage.24 Assim, os mercadores de Luanda lançavam em seu nome letras para serem sacadas sobre os homens de negócio residentes no Brasil, sobre o produto da venda de seus escravos. As letras po-deriam ser trocadas no Brasil por ouro ou mercadorias; através deste negócio, o valor das mercadorias para o resgate na Costa da África transformava-se em

24 MILLER, Joseph. Way of Death..., op. cit., p. 299-301, 537. Diversos documentos coevos com-provam esta prática para o pagamento dos contratadores: ver, por exemplo, BNRJ, I-32,34,032 nº 001; AHU, Avulsos, Pernambuco, doc. 8074, cx. 104, 18/03/1764.

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remessas líquidas de ouro para Portugal ou então em outros produtos coloniais como açúcar, algodão e tabaco.

Pelos números reunidos até aqui é possível estimar que apenas 28% das exportações portuguesas para Angola, entre 1796 e 1807, foram pagas imedia-tamente com mercadorias (escravos enviados para o Brasil em embarcações portuguesas, mais a cera e o marfi m exportados para Portugal), o restante foi pago com letras.25 Por conseguinte, grande número dos escravos carregados por embarcações originárias dos portos do Brasil foi adquirido no sertão africano graças às mercadorias fornecidas pelos mercadores metropolitanos. Vale dizer que, mesmo nas rotas triangulares completas, as letras podem ter sido utilizadas para pagamento dos escravos, pois não é improvável que os escravos e as cargas de re-torno para Portugal estivessem sendo carregados em frete pelos navios negreiros.26

O triângulo fi nanceiro do tráfi co angolano manifesta-se também na balança comercial entre Portugal e o Brasil, especialmente se desagregada por região. Enquanto que no Rio de Janeiro as remessas de ouro e prata para o Reino superavam os saldos (negativos) desta praça, nas regiões norte os superávits comerciais obtidos sobre a metrópole eram muito superiores à quantidade de moeda que efetivamente vinha de Portugal. Na capital do Brasil, a exportação do ouro-mercadoria para Portugal saldava de uma só vez os défi cits do Rio com Angola e de Angola com o Reino. Nas regiões ao norte eram os produtos como açúcar e algodão que geravam um superávit sobre Portugal que, no entanto, não era saldado apenas com moedas, mas também com escravos (ver mapas).27

25 Valor dos escravos exportados em embarcações portuguesas (22.497 segundo o Database) estimado em 1.372.317.000 réis, utilizando os mesmos critérios de cálculo da tabela 1. Para os demais valores e fontes ver tabela 5. É verdade, porém, que os números do Database estão incompletos, por isto a porcentagem do pagamento com mercadorias deve ter sido ligeiramente maior.

26 O mesmo costumava ocorrer com o tráfico de escravos inglês. Cf. MINCHINTON, Walter E. The Triangular Trade Revisited. In: GEMERY, Henry A.; HOGENDORN, Jan S. (Eds.). The Uncommon Market. Essays in the Economic History of Atlantic Slave Trade. Nova York: Aca-demic Press, 1979, p. 343.

27 Para os dados da balança entre Portugal e o Brasil ver ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no comércio colonial. op. cit. No entanto, utilizo o método de Valentim Alexandre para calcular déficits e superávits. ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império..., op. cit.

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Todavia, é importante esclarecer alguns pontos sobre a organização fi nan-ceira do negócio de escravos no fi nal do século XVIII, de modo a destacar esta conjuntura das demais.

Na década de 1760 as operações de crédito eram controladas pelos arrema-tadores lisboetas do contrato da cobrança de impostos sobre as exportações de escravos desde Luanda e do monopólio do marfi m. Os contratadores também controlavam o meio circulante da capital angolana, fornecendo créditos, as livranças, que eram utilizadas como papel moeda pela população da capital e pelos mercadores de escravos que trocavam letras seguras sobre o Brasil por este papel moeda.

As referências documentais a respeito do controle exercido por estes fi nancis-tas sobre o comércio de escravos são muitas: em 1758 o Alvará de 11 de janeiro atacava os monopólios de “certas e determinadas pessoas” sobre o comércio angolano.28 Em 1769 seria a vez da Mesa de Inspeção da Bahia se referir “(...) à iniquidade do monopólio dos contratadores e administradores das Rendas Reais de Angola”.29

Por sua vez, o governador de Angola D. Francisco de Souza Coutinho afi r-mava que

(...) a íntima e estreita união que a Administração deste contrato formou desde o princípio com os povos, faz com que ela infl ua bastante na causa pública, porque nem os povos podem comerciar sem o contrato, nem este lucrar sem o trabalho e os suores do povo (...).30

Neste sentido, acusava particularmente o contratador Domingos Dias por for-necer crédito aos mercadores angolanos, exigindo o pagamento em ouro no Brasil. Também uma longa memória anônima afi rmava que os contratadores monopo-lizavam o resgate, fornecendo crédito a apenas duas casas de negócio, de Tomé da Silva Coutinho e Manoel da Silva, ligadas aos administradores do contrato:

Foi tão grande este monopólio que desde o ano de 1763 até o 1768 só aquelas duas casas vendiam fazendas para os sertões e deles recebiam remessas de cera, marfi m e escravos,

28 Alvará de 11 de janeiro de 1758 em Ius Lusitaniae - Fontes Históricas do Direito Português. Disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt ; consultado em 16/04/2010.

29 AHU, Avulsos, Coleção Castro de Almeida (CA)-Bahia, doc. 8123, cx. 44, 20/12/1769.30 Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Correspondência de D. Francisco de Souza Coutinho,

Coleção Lamego, Códice 82, doc. 426, 20/08/1768.

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de tal sorte que tinham este comércio como fechado em todo o tempo do governador D. Antonio de Vasconcelos.31

Também a Companhia de Pernambuco era uma forte operadora no comércio de escravos em Angola, sendo responsável pela exportação de 26% dos cativos enquanto durou seu monopólio.32

Mas o fi m do contrato no ano de 1770 interrompeu este tipo de articulação fi nanceira. Ao receber a notícia do fi m do contrato, D. Francisco de Souza Couti-nho manifestava o receio de que o comércio fosse afetado pela falta de fi nancia-mento. Por isto, esperava que a Junta de Comércio de Lisboa e as Companhias de Comércio “(...) devem dar uma regular navegação das fazendas próprias ao resgate de escravos, ou a certa e segura escala das Naus da Índia, porque de outra maneira perecerá o comércio”.33

Enviava ainda um cálculo da Junta de Fazenda de Angola sobre a quantidade de mercadorias necessárias para fazer o resgate que permite demostrar o domínio avassalador dos capitais lisboetas. Segundo os membros da Junta, o produto anual das embarcações com origem nos portos brasileiros era de 160 contos (28%), restando aí 404 contos que deveriam ser completados por embarcações vindas de Lisboa.34

No entanto, apenas dois anos depois as naus das Índias foram proibidas de desembarcar mercadorias no porto de Luanda sob a justifi cativa de que este ne-gócio “(...) estabelecido por meio do interposto de Angola, um comércio geral e navegação entre a Ásia, África e América, com total exclusão destes Reinos (...)”.35 Ademais, cinco anos depois, as Companhias de Comércio perderam os seus privilégios, o que pode ter provocado, junto com o fi m do contrato, uma retração dos capitais lisboetas. Como já foi dito, a opinião de Joseph Miller é que a partir de 1780 ocorreu uma forte penetração dos mercadores do Brasil no comércio angolano, facilitada pela retirada dos homens de negócio metropolitanos.36

31 BNRJ, Divisão de Manuscritos, I-32,34,032, nº 001. 32 Cf. MENZ, Maximiliano M. A Companhia de Pernambuco e o funcionamento do tráfico de

escravos em Angola. (artigo inédito), 2011.33 IEB, Coleção Lamego, Códice 82, doc., Francisco Inocencio Coutinho, 03/02/1770.34 AHU, cx. 54, doc. 28, Avulsos, Angola, 03/06/1770. Anexada à correspondência de D. Francisco

de Souza Coutinho.35 Alvará de 19 de junho de 1772, em Ius Lusitaniae - Fontes Históricas do Direito Português,

disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt ; consultado em 08/04/2009.36 “The Brazilians found the field in Africa wide open, in part because Lisbon merchants effectively

withdrew from the Angola trade after the death of the king Dom José I and dismissal of his chief minister, the Marquis of Pombal (…)”. MILLER, Joseph. Way of Death..., op. cit., p. 491-492.

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De fato, os testemunhos de Martinho de Mello e Castro e mais tarde do governador de Angola, o Barão de Mossâmedes, apontam nesta direção. Marti-nho de Mello relacionava a “decadência” do comércio reinol ao crescimento do contrabando francês, à vantagem dos produtos brasileiros e ao comércio direto da Ásia com Brasil e Angola. Os números de passaportes retirados em Lisboa para viagens a Angola confi rmam a retração metropolitana na década de 1770.37

Por outro lado, existem indícios, ainda que pouco claros, de uma transfor-mação na composição das cargas com o decorrente crescimento da participação brasílica no fornecimento de mercadorias; como dizia o Barão de Mossâmedes, “as embarcações da carreira da América que têm aqui a predileção dos naturais e que trazem com o primeiro gênero de negócio de resgate a jeribita sortida com toda a casta de fazendas”.38

No entanto, dois anos mais tarde, o mesmo Môssamedes escrevia:

Se acha esta praça muito desanimada, pelas péssimas vendas de todo o Brasil e empate de cabeças no Rio de Janeiro, aonde sempre tiveram o maior consumo e se remetiam as letras ou efeitos, terminando o giro com os dinheiros de risco, com a realizar-se tudo na Metrópole.39

Afi nal, não se tratou de uma retração defi nitiva; na década de 1780 e início da de 1790 as saídas de embarcações metropolitanas oscilam bastante, até que, no fi nal do século XVIII, estas voltaram a frequentar o porto de Luanda de modo mais amiúde. O domínio metropolitano sobre o crédito neste período é confi rma-do pelo governador de Angola D. Miguel Antonio de Mello, que fez o seguinte comentário a respeito da comunidade mercantil de Luanda:

À exceção de três ou quatro negociantes, todos os mais desta praça possuem tão pequeno cabedal próprio, que para sustentarem o comércio que fazem e entretem recorrem ao meio de mandarem tomar na de Lisboa dinheiro a risco e com bom prêmio, com os quais compram fazendas que para aqui conduzem, ou mandam vir obrigando-se a pagar dentro de certo tempo a seus credores o principal e juros.40

37 AHU, Avulsos, Angola, cx. 62, doc. 57, minuta de Martinho de Mello e Castro, 22/06/1779 e AHU, CU, Códices (passaportes), 774, 775, 776, 777, 778, 779, 780, 781, 782, 783, 784, 785, 786, 787.

38 AHU, Avulsos, Angola, cx. 71, doc. 52, Barão de Mossâmedes, 15/10/1786.39 AHU, Avulsos, Angola, cx. 73, doc. 16, Barão de Mossâmedes, 15/03/1788.40 BNRJ-22,2,50, Ofícios do Governador de Angola, Miguel Antonio de Mello, 30/01/1801.

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Creio que a explicação para esta nova conjuntura está na retirada dos navios franceses que faziam uma forte concorrência na África Centro-Ocidental, nas oportunidades de comércio com os espanhóis e na recuperação dos preços dos escravos no Brasil. Assim, em minha opinião, e ao contrário do que afi rma Miller, a retração lisboeta foi apenas passageira.

Seja como for, o crédito continuava tendo uma origem principal: a capital do Império. Mas esta dependência fi nanceira do tráfi co quanto ao crédito lisboeta estava articulada institucionalmente de um modo diferente ao da década de 1760, dado o fi m do contrato sobre o imposto de exportação de escravos. Problema a ser discutido em outro lugar: a correspondência do governador de Angola, nos últimos anos do século XVIII, indica que a Junta de Fazenda da colônia africana ocupou o lugar dos contratadores, fornecendo letras a serem descontadas sobre as Mesas de Inspeção das praças brasileiras.41

4. O Brasil e o tráficoEm 1758 o governador da capitania de Pernambuco, Luis Diogo Lobo da

Silva, escreveu para a Corte relatando a fi scalização feita aos navios negreiros quanto da sua lotação. Comentando o hábito dos capitães de navio de superlotar as embarcações, acrescentou a importante refl exão:

(...) atendendo a pouca utilidade que fazem nos gêneros que remetem para Angola, pela excessiva quantidade jeribitas que nela introduzem, lhes fi ca sendo o frete de seis mil réis limitado a poderem conservar as embarcações pelas despesas que fazem, o que parece justo que S. Maj. atenda aumentando-lhes o que o mesmo Snr. julgar conforme nas presentes circunstâncias, ou regulando em Angola os preços dos ditos escravos (...).42

O comércio de jeribitas e o frete eram as principais fontes de renda dos mercadores daquela praça que atuavam no tráfi co de escravos. Sobre as cachaças muito já se escreveu; sabe-se que era o principal produto de origem brasileira utilizado no tráfi co em Angola e, portanto, a mercadoria mais importante no ramo “brasílico” do tráfi co; acrescentarei ainda mais algumas considerações a este respeito logo em seguida.43 No entanto, poucos têm abordado o fretamento

41 BNRJ-22,2,50, Seção de Manuscritos, Ofícios do Governador de Angola, Miguel Antonio de Mello, 24/07/1800.

42 AHU, Avulsos, Pernambuco, doc. 7129, cx. 89, Luis Diogo Lobo da Silva, 12/11/1758.43 Ver CURTO, José C. Álcool e escravos..., op. cit.; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos

viventes..., op. cit. Para uma crítica a respeito da sobrevalorização da jeribita nas importações totais angolanas, ver LOPES, Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias..., op. cit.

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dos escravos por parte das embarcações com origem nos portos do Brasil. Para o consenso trata-se de um falso problema, pois cargas e embarcações são tratadas indiscriminadamente como propriedade da mesma pessoa, em geral dos merca-dores das praças brasileiras.44

Mas é justamente o fretamento que permite compreender a discrepância entre o domínio metropolitano sobre as importações angolanas e a baixa frequência das embarcações reinóis no carregamento de escravos. De fato, segundo J. Miller a maior parte dos escravos carregados ao Brasil pertencia a mercadores de Luanda que pagavam o frete aos capitães das embarcações brasileiras – e as importações de mercadorias do Reino – com o produto da venda destes cativos no litoral americano.45

Os números dos mapas de exportação e importação das praças da Bahia con-fi rmam o fretamento. É importante, porém, fazer algumas ressalvas: os referidos mapas são bem menos completos que os registros portugueses ou seus similares angolanos; trata-se apenas de uma descrição bem geral dos produtos exportados. As mercadorias da terra, cachaça e açúcar, estão relativamente bem discriminadas; geralmente também consta uma coluna de “mercadorias europeias”, ou então “mercadorias de Portugal” ou apenas “mercadorias”.

Um último problema em relação aos dados da alfândega da Bahia, apesar de algumas vezes constar apenas Angola em mapas isolados (por exemplo, os de 1797, 1798 e 1799), as entradas e saídas de embarcação e os “Mapas Gerais”, que sumariam exportações e importações da Bahia entre 1798 e 1807, indicam a inclusão de Benguela neste registro.46

Por último, remeto o leitor às ressalvas feitas em relação aos dados de Lisboa, pois os problemas dos preços e da incerteza quanto ao destino fi nal das merca-dorias também se verifi cam nos mapas de exportação do Brasil.

44 Inclusive Manolo Florentino conclui pelo domínio dos mercadores “cariocas” sobre o tráfico a partir da declaração dos consignatários das cargas no porto do Rio de Janeiro, que constam nos jornais após 1808.

45 MILLER, Joseph. Way of Death…, op. cit., passim.46 Mas no ano de 1797 seguramente só foi registrado comércio com Angola.

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Tabela 7: comércio da Bahia com Angola e Benguela (réis)

ano exportações importações

1797 19.488.760 67.400.000 -35.911.2401798 47.000.000 216.880.000 -169.880.0001799 62.674.640 132.480.000 -69.805.3601800 32.400.000 198.800.000 -166.400.0001801 30.716.000 146.960.000 -116.244.0001802 41.100.520 315.080.000 -273.979.4801803 46.073.980 287.040.000 -240.966.0201804 73.600.500 209.440.000 -135.839.5001805 57.892.800 195.600.000 -137.707.2001806 36.093.900 33.704.000 2.389.9001807 67.021.200 175.920.000 -108.898.800

total 526062300 1979304000 -1.453.241.700

Fontes: 1797, Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Registro da Correspondência Expedida para o Rei; 1794-1797, Vol. 138. 28/02/1798. 1798-1807, BNRJ, Seção de Manuscritos, I-17,12,4, nº 2.

A primeira e mais óbvia conclusão é que a Bahia acumula défi cits com as praças luso-africanas; 1806 é o único ano “fora da curva”, possivelmente pelo fi m da paz de Amiens. Nas contas agregadas do tráfi co, a balança de comércio negativa da Bahia conecta-se perfeitamente com a balança de comércio positiva de Portugal sobre Angola e o comércio angolano superavitário em geral (ver tabelas 5 e 6).

Pode-se argumentar, entretanto, que os défi cits baianos são falsos, pois não estão contabilizadas as diferenças de preços e os custos de operação. No ano de 1797 constam ainda 12 contos de réis de “promptifi cação do transporte e benefício”.47 Ou seja, o autor do mapa calculava que os custos, os lucros e, muito provavelmente, os fretes de retorno gerariam um valor 62% superior ao expor-tado. Já na nota ao mapa de 1798 afi rmava o escrivão que “Estes gêneros devem produzir pelas suas vendas ao menos 40% para salvar seguros de mar, corsários, fretes avultados e algum benefício (...)”.48 Mesmo assim, se somados qualquer um destes valores às exportações, os défi cits permanecem expressivos.

47 APEB, Registro da Correspondência Expedida para o Rei, 1794-1797, Vol. 138. Descontei estes 12 contos das exportações para uniformizar os valores.

48 AHU, Avulsos, CA, Bahia, docs. 18375-18379, 25/08/1798.

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Portanto, estes défi cits comprovam o desenho fi nanceiro do tráfi co de Angola proposto aqui e, dada a baixa frequência das rotas triangulares que tinham a Bahia como escala (ver tabela 4), apontam para a importância da prática de fretamento dos escravos. Fortalecem ainda a minha hipótese que os mercadores de Lisboa dominavam o fi nanciamento do resgate de escravos em Luanda, afi nal, estes défi cits, sem a decorrente remessa de moeda49, só podem ser explicados se consi-derarmos que a Bahia pagava parte da importação de escravos não com a remessa de produtos para a África, mas enviando moeda ou mercadorias para o Reino.50

É notável também o padrão das exportações baianas para Angola e para Benguela: dos seis anos em que foi possível consultar os mapas individualizados, apenas em 1798 constatam-se exportações vigorosas de produtos da terra, espe-cialmente a cachaça. Nos outros anos há um total domínio das mercadorias de origem europeia. No fi nal do século XVIII, portanto, as exportações da Bahia para a África Centro-Ocidental era principalmente um negócio de reexportações.

Vale aqui uma comparação com o Rio de Janeiro: os mapas da capital do Brasil são visivelmente incompletos, pois geralmente constam apenas as exportações de produtos da terra.51 Ademais, apenas os volumes foram discriminados por portos, enquanto que os valores foram agregados em cada classe de mercadoria. Foi ne-cessário, portanto, calcular o valor de cada conjunto de mercadorias exportadas para Angola para então somar o total.52 Assoma-se a isto mais uma incongruência, como já havia notado J. Miller, muitos dos alimentos registrados como exporta-ção no Rio de Janeiro eram, na verdade, utilizados para alimentar a escravaria no retorno e por isto não constavam sua entrada na Alfândega de Luanda.53

49 E nos mapas da Bahia estão registradas remessas de moeda para o Rio Grande que permitiram saldar com folga os déficits em transações com mercadorias.

50 Mais curiosa ainda é a balança de comércio com Costa da Mina na qual, apesar do decantado papel do tabaco, os défictis são ainda mais absurdos. Na soma dos anos entre 1798 e 1807, o déficit foi de mais de 3.030 contos de réis. Na falta de outra explicação, tudo indica que os mercadores da Bahia remetiam muita moeda para a Costa da Mina. Os mapas, portanto, comprovam a tese de Gustavo Acioli de que uma parte expressiva dos escravos era comprada com ouro naquela zona (cf. Negócio da Costa da Mina..., op. cit.). Assim as pequenas importações de ouro registradas nos mapas devem ser apenas o resto dessas negociações.

51 A única exceção foi o ano de 1798, quando foi incluída a exportação de vinho e vinagre, presume-se de origem portuguesa.

52 Por exemplo, em 1804 consta o volume do açúcar exportado para Angola (1.052 arrobas), o volume total exportado para todas as praças (442.863 arrobas) e o seu valor total (1.160.813.040 réis). Tive então de deduzir o preço médio da cada produto, no caso do açúcar (2.621 réis), para então calcular o valor exportado para Angola (2.757.456 réis em açúcar).

53 MILLER, Joseph. Imports at Luanda…, op. cit.

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Tabela 8: exportações de produtos da terra do Rio de Janeiro para Angola (réis)

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Fontes: 1796, AHU, RJ, cx. 160, doc. 12025; 1798, AHU, RJ, cx. 171, doc. 12689; 1803, AHU, RJ, cx. 225, doc. 15540; 1804, BNRJ, I-32, 14, 5, nº 13.

A tabela 8 revela a importância em termos absolutos dos gêneros da terra para o tráfi co operado a partir do Rio de Janeiro. É possível, porém, fazer uma esti-mativa bastante grosseira do peso relativo dos produtos da terra nas carregações da capital do Brasil: cruzando as exportações baianas para Angola e Benguela com o número de navios negreiros que partiram do porto nordestino, chega-se a uma carga média de 12.554.181 réis. Supondo que no Rio de Janeiro a carga média das embarcações era igual a da Bahia, é possível estimar que os produtos da terra (coluna d) eram em torno de 47 e 71% das exportações da capital do Brasil para o porto africano. Esta maior participação de produtos americanos no comércio entre o Rio de Janeiro e Angola refl ete o papel desempenhado pela cachaça, representando sempre mais da metade das mercadorias da terra e em torno de 36 e 59% do total das exportações do Rio para Luanda.

Sobre o papel dos fretes no carregamento de escravos para o Rio de Janeiro não é possível concluir nada com os dados bastante defeituosos que possuo. Não obstante, existem indícios já apontados que também o Rio de Janeiro acumulava défi cits com Angola (tabela 5); estes défi cits representam os escravos importados pelo Rio, cobertos pelas exportações portuguesas e pagos, portanto, com letras ou moeda na capital do Brasil. Como também para o Rio de Janeiro as rotas triangulares eram incomuns, é provável que uma parte dos escravos tenha sido carregada em frete para este porto.

As vantagens comparativas dos mercadores do Brasil estavam, portanto, no fornecimento de aguardente, principalmente do Rio de Janeiro, e na posse de uma marinha mercante competitiva. No que diz respeito ao fornecimento de manufa-turados, competiam apenas na margem, aproveitando-se das oscilações da nave-gação metropolitana. Acredito que isto explica particularmente porque no ano de 1796 as exportações de produtos da terra do Rio de Janeiro foram relativamente

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baixas, pois neste mesmo ano Lisboa remeteu cargas insignifi cantes para Angola (ver tabelas 1 e 8).

ConclusãoAs estimativas e os cálculos apresentados aqui não deixam margem a dúvidas:

entre 1796 e 1807 Portugal forneceu a maior parte das mercadorias utilizadas para o resgate de cativos em Angola. O fi nanciamento do tráfi co de escravos, apesar de ter um pequeno peso relativo no conjunto do comércio português no Atlântico, garantia saldos expressivos que compensavam o negócio com o Brasil, especialmente no norte-nordeste, onde as exportações de produtos tropicais ordi-nariamente superavam as importações de mercadorias europeias. Deste modo, os portos metropolitanos restringiam a remessa de moeda para a América, problema que não era menor na era do mercantilismo, não por causa de uma obsessão irra-cional por ouro e prata, mas porque os metais preciosos serviam como capital de giro e eram utilizados no comércio asiático.54 Circuito fechado, o fl uxo de moedas era parcialmente controlado pelos agentes metropolitanos graças ao tráfi co em Angola; a moeda garantia o acesso à rota do Cabo e aos têxteis da Índia; estes, por sua vez, eram fundamentais para o tráfi co em Angola.

Configura-se assim um tipo de hierarquia espacial baseada no crédito, em mercadorias e rotas mercantis e organizada politicamente pelo exclusivo metropolitano. É notável que em Portugal o tráfi co não tenha, a primeira vista, infl uenciado as atividades de transformação na economia metropolitana, apesar do surto industrial que se verifi cou no período. Angola era irrelevante enquanto mercado para as manufaturas portuguesas, não produzindo o tipo de externalida-des positivas que o tráfi co de escravos provocou na economia inglesa do século XVIII.55 Há um ponto, porém, que merece ser ainda mais investigado: a relação entre o tráfi co triangular no sentido estrito e o comércio e transporte de algodão nas capitanias do Maranhão, Grão-Pará e Pernambuco, principais destinos das embarcações que faziam esta rota. É possível, portanto, que exista um polo de

54 Cf. WILSON, Charles. ‘Mercantilism’: some vicissitudes of an Idea. The Economic History Review, New Series, v. 10, n. 2, 1957.

55 Cf. INIKORI, Joseph. African and the Industrial Revolution in England: A study in international trade and economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Ver ainda: DARITY Jr., Wiliam. British Industries and the West Indies Plantations. In: INIKORI, Joseph; ENGERMAN, Stanley (Eds.). The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Pe-oples in Africa, the Americas, and Europe. Durham/London: Duke University Press, 1992, p. 247-279. BLACKBURN, Robin. The Making of New World Slavery. London/New York: Verso, 1997.

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contato entre escravidão e industrialização no sistema Atlântico português a ser desvendado.

Neste sentido, concordo com Fernando Novais que o exclusivo metropolitano era uma das “peças fundamentais” do sistema, mas ao invés de enfocar o problema dos sobre-lucros, considero que era pelo exclusivo que Portugal conseguia certo controle sobre os fl uxos mercantis do Atlântico português durante o século XVIII.56

Ademais, este estudo confi rma que a conjuntura do Atlântico Português du-rante o fi nal do século XVIII e os primeiros anos do século XIX foi positiva. Até aí nenhuma novidade, pois desde o fi nal dos anos 70 autores das mais variadas matizes historiográfi cas vêm reiterando esta ideia. Mas, em minha opinião, os números aqui apresentados obrigam a repensar a proposição de que esta expan-são gerou uma inversão de polos entre metrópole e colônia, pois a participação metropolitana no tráfi co é visivelmente positiva durante o período. Além disso, como foi sugerido, todo o debate sobre défi cits e superávits precisa ser revisto à luz da balança de comércio entre Portugal, Brasil e Angola.57

O controle dos mercadores “brasílicos” sobre o tráfi co de escravos em Angola só pôde ocorrer de modo duradouro depois de 1808. Com o fi m do exclusivo metropolitano os homens de negócio das praças do Brasil acessaram livremente, e a preços competitivos, as cargas de manufaturados europeus e asiáticos. Também a vinda da família Real ao Brasil foi decisiva, pois provocou um curto no circuito típico dos homens de negócio; com a corte no Rio de Janeiro era possível acessar localmente os privilégios e os aparelhos do Estado que favoreciam aos grandes negociantes.58 No que diz respeito ao tráfi co, portanto, o ano de1808 deve ser visto pela descontinuidade.

Finalmente, é possível reconhecer algum fundamento na tese do domínio do “capital mercantil residente” sobre o tráfi co. No entanto, o conceito é claramente inapropriado pelas razões já apontadas; é necessário, portanto, descolar a residên-cia provisória das pessoas do fl uxo muito mais sinuoso do capital mercantil.

No fi nal do século XVIII, na Bahia e em Pernambuco os homens de negócio que residiam na colônia controlavam de modo esmagador o tráfi co na Costa da Mina, e é possível que os mercadores do Rio de Janeiro fi zessem a maior parte do tráfi co de Benguela com capitais próprios. Os comerciantes coloniais também eram responsáveis pela revenda dos cativos nos mercados americanos do interior,

56 Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e o Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. op. cit., p. 72.57 Estou pensando aqui no célebre debate entre Fernando Novais, Valentim Alexandre, Jobson

Arruda e Jorge Pedreira.58 Devo esta ideia a um comentário feito pelo Prof. Jorge Pedreira em sala de aula.

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como Minas Gerais, ou então no Rio da Prata; negócios que seguramente movi-mentavam grandes capitais.59

Em todo o caso, deve-se ainda quantifi car de modo mais preciso o comércio direto entre Brasil e África para chegarmos a alguma grandeza de valor a respeito da participação relativa dos mercadores “brasílicos” no tráfi co. A tese também deve ser testada no tempo e no espaço, posto que a organização fi nanceira do resgate parece ter variado nas diferentes conjunturas e feitorias africanas. Ou seja, mais do que repetir o consenso, temos de problematizá-lo.

APÊNDICE

a) O terceiro método de calcular a participação relativa da metrópole no forne-cimento de mercadorias para o resgate é pelo número de embarcações que deram entrada no porto de Luanda. O primeiro passo foi calcular a carga média das embarcações que saíram da Bahia para Angola e Benguela durante os nove anos para os quais encontrei os registros de exportação e de embarcações (12.554.181 réis); em seguida, extrapolei estes números para todas as naves que deram entrada em Luanda com origem nos portos do Brasil. Seguindo o mesmo procedimento para Portugal, calculei a carga média das embar-cações metropolitanas dividindo as exportações portuguesas pelo total de embarcações que tiraram passaporte (72) para os diferentes portos de Angola (72.861.145 réis). Em seguida, multipliquei o número de embarcações que efetivamente entraram no porto de Luanda, segundo os dados do Database (53), pela carga média. Este cálculo, portanto, evita o problema relativo à indefi nição dos portos onde as mercadorias eram vendidas realmente.

Vale dizer, porém, que o resultado superestima as cargas de origem brasileira, tendo em vista que as exportações para Benguela estão separadas nas Balanças de Comércio portuguesas, enquanto que nos dados da Bahia estas exportações foram somadas às exportações que tinham Luanda como destino.

59 VERGER, Pierre F. Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 1987, original de 1968, pas-sim. LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina..., op. cit., passim. Sobre Benguela, ver MILLER, Joseph. Way of Death..., op. cit., p. 468-504. Sobre a revenda de escravos, além do próprio Miller, ver RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador. op. cit.

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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.

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Recebido: 09/08/2010 – Aprovado: 14/10/2011

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223Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012

AUTOGOVERNO E ECONOMIA MORAL DOS ÍNDIOS: LIBERDADE, TERRITORIALIDADE E TRABALHO

(ESPÍRITO SANTO, 1798-1845)*

Vânia Maria Losada MoreiraUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Resumo O objetivo deste artigo é analisar a aplicação da Carta Régia de 12 de maio de 1798 nas vilas e lugares indígenas do Espírito Santo e, por conseguinte, o autogoverno dos índios que, do ponto de vista legal, esteve em vigor no Brasil entre 1798 e 1845. O sistema do autogoverno aplicado às povoações de índios visava, em primeiro lugar, garantir os interesses do Estado, mas também viabilizou o desenvolvimento de relações assimétricas de reciprocidade entre eles e os governantes da província.

Palavras-chaveíndios • autogoverno • trabalho.

ContatoRua Vinícius de Moraes, n. 281 – apto. 10122411-010 – Rio de Janeiro – RJE-mail: [email protected]

* O artigo é baseado em pesquisa que contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.

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224 Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012

INDIAN’S SELF-GOVERNMENT AND MORAL ECONOMY: LIBERTY, TERRITORIALITY AND LABOR

(ESPÍRITO SANTO, 1798-1845)*

Vânia Maria Losada MoreiraUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro

AbstractThe purpose of this paper is to analyze the enforcement of the Royal Edict of March 12th 1798 in the Indian villages and territories of Espírito Santo, and therefore the Indian’s self-government which, according to a legal standpoint, took place in Brazil between 1798 and 1845. The self-governing system enforced to Indian population aimed fi rstly to warrant the State interests, but it has also made possible the development of asymmetric relations of reciprocity between them and the province governments.

Keywordsindians • self-government • labor

Contact:Rua Vinícius de Moraes, n. 281, ap. 10122411-010 – Rio de Janeiro – RJE-mail: [email protected]

* This article is found in a research that counted with financial support of the Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.

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225Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012

Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.

Ao assumir a governança da capitania do Espírito Santo em 1800, Antônio Peres da Silva Pontes tinha ordens expressas para abrir o rio Doce à navegação e ao povoamento. Para orientá-lo nesse assunto, foi-lhe enviado o Aviso de 29 de agosto de 1798 – expedido por D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro e secretário de Estado e dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos – orientando-o para que fosse observada na capitania a Carta Régia de 12 de maio de 1798, que abolia o Diretório dos Índios e ditava outras providências.1 Seguindo as orientações desse texto legal, que mandava, dentre outras coisas, alistar os índios em “corpos efetivos de índios”, uma das primeiras medidas de Silva Pontes foi a criação, em 4 de abril de 1800, de um “corpo de pedestres” composto fun-damentalmente de “índios civilizados” residentes nas vilas e povoados locais.2 Além disso, localizou e distribuiu seu efetivo nos quartéis e destacamentos dos sertões que faziam a proteção contra as incursões do “gentio inimigo”, isto é, dos índios botocudos que viviam em guerra contra os luso-brasileiros da capitania.

Pouco depois, em 1806, o então governador da capitania Manoel Vieira de Albuquerque Tovar desrespeitava abertamente a Carta Régia de 1798 nomeando para Diretor dos Índios do Espírito Santo Bonifácio José Ribeiro, gerando, por isso mesmo, descontentamento. Houve “representações contra o ato”3 e, embo-ra não esteja claro quem são os autores dessas representações, sabe-se que as reclamações eram contra a nomeação de um Diretor de Índios. Isso, pois, con-trariava o espírito da lei de 1798, que preconizava textualmente o fi m da tutela dos diretores de índios, segundo o argumento de que os índios eram iguais em direitos e obrigações aos outros vassalos da Coroa.

O sistema de Diretório reintroduzido na capitania não se deu ao acaso, pois se relacionava com o processo de conquista das terras do vale do rio Doce aos índios que hostilizavam a expansão luso-brasileira. Dois anos depois, aliás, foi

1 Cópia da Carta Régia de 12 de maio de 1798 sobre a civilização dos índios, enviada a Antônio Peres da Silva Pontes, em 29 de agosto de 1798. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. Notas e apontamentos e notícias para a história da província do Espírito Santo. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, tomo XIX, n. 22, 1856, p. 161-335, p. 313-325.

2 RUBIM, Francisco Alberto. Memoria para servir à história até o anno de 1817, e breve notícia estatística da Capitania do Espírito Santo, porção integrante do Reino do Brasil, escripta em 1818, e publicada em 1840 por um capixaba. Lisboa: Imprensa Nevesiana, 1840, p. 12. Sobre o alistamento dos índios nas milícias e em corpos efetivos de índios, tal como orientava a Carta Régia de 12 de maio de 1798, ver SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na colônia. Sertões do Grão-Pará, c.1755-c.1823. Tese de Doutorado, História, Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 225.

3 DAEMON, Bazílio Carvalho. História e estatística do Espírito Santo. Vitória: Typographia Espírito Santense, 1879, p. 207.

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decretada a guerra ofensiva contra os botocudos de Minas Gerais e do Espírito Santo, por meio da Carta Régia de 13 de maio de 1808, assinada pelo príncipe-regente D. João, recém-desembarcado no Rio de Janeiro.4 A conexão entre o retorno ao sistema do Diretório e a existência de população indígena indepen-dente e refratária à presença luso-brasileira é particularmente forte no Espírito Santo, pois, logo após a Independência, em 1824, uma portaria regulamentando o aldeamento dos índios botocudos no Espírito Santo recriou a fi gura do Dire-tor de Índio no texto legal, mostrando efetivamente que o Diretório dos Índios permanecia como uma referência importante, principalmente para governar populações autóctones recém-conquistadas.5

Quanto aos índios que viviam nas vilas e povoações do Espírito Santo, classifi cados pelas autoridades locais como “índios civilizados”, “súditos” ou “vassalos”, as evidências mostram que eles foram governados de modo bem diverso do que foi aplicado aos índios botocudos do rio Doce. Após a Carta Régia de 12 de maio de 1798, eles continuaram submetidos ao governo de suas respectivas vilas, onde poderiam exercer os cargos civis e militares, tornando-se livres da tutela dos diretores.

O objetivo deste artigo é analisar a aplicação da Carta Régia de 1798 nas vilas e lugares indígenas do Espírito Santo e, por conseguinte, o ainda pouco conhecido autogoverno dos índios que, juridicamente, esteve em vigor entre 1798 e 1845. Para subsidiar a análise desse problema, foi compulsada a correspondên-cia ofi cial entre os presidentes da província do Espírito Santo e as autoridades civis e militares das vilas indígenas do Espírito Santo no período entre 1828 e 1853. Foram também consultadas outras fontes de naturezas diversas, como leis, memórias, estimativas estatísticas e relatos de época.

Tradição tutelar e autogoverno dos índiosNova Almeida era, no início da década de 1820, uma vila de maioria indíge-

na; se estimava existir 516 pessoas entre brancos, pardos livres, pardos cativos,

4 Cópia da Carta Régia de 13 de maio de 1808, enviada a Manoel Vieira da Silva e Tovar de Albu-querque, em 21 de maio de 1808. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. op. cit., p. 325-331. Sobre a guerra contra os botocudos no território do Espírito Santo, ver MOREIRA, Vânia Maria Losada. 1808: a guerra contra os botocudos e a recomposição do império português nos trópicos. In: CARDOSO, José Luís; MONTEIRO, Nuno Gonçalo; SERRÃO, José Vicente (Orgs.). Por-tugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2010, p. 391-414.

5 Regulamento para a civilização dos índios Botocudos nas margens do rio Doce. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. op. cit., p. 161-335, p. 221-223.

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pretos livres e pretos cativos para 3011 índios.6 No entanto, na correspondência entre os presidentes da província e as autoridades civis e militares da vila, no período entre 1828 e 1853, em 85 ofícios onde os índios são textualmente citados, inexiste correspondência endereçada a supostos “diretores de índios”, e tampouco qualquer menção a eles, por pontual que seja.7 Isto sugere que, neste período, os índios da vila não possuíam diretores e nem estavam sob a jurisdição dos dire-tores de índios que atuavam entre os botocudos do rio Doce espírito-santense, pelo menos enquanto estivessem residindo na vila ou nos seus povoados anexos. Outras fontes coevas fortalecem, aliás, esta interpretação, pois em 1854 os índios de Santa Cruz, antigo povoado de Aldeia Velha, anexo à vila de Nova Almeida, registraram pessoalmente suas terras junto ao vigário, segundo o entendimento, tanto do vigário como do presidente da província, de que eles não tinham e tam-pouco precisavam de diretores ou tutores para registrar suas terras.8

Na longa duração da história brasileira, contudo, a relação entre índios e colonizadores foi frequentemente mediada por ideias e práticas tutelares. Nos aldeamentos coloniais, por exemplo, foi comum a tutela exercida pelos padres ,tanto no âmbito religioso como no temporal. A administração particular dos índios, que tanto caracterizou a vida colonial de São Paulo, é outro exemplo de tutela exercida, contudo, pelos moradores.9 Assim, apesar das variações históri-cas, a tutela foi uma prática muito presente na experiência social da população indígena e justifi cada segundo o argumento de que eles não eram plenamente “civilizados” e, por isso, ainda incapazes de governarem a si próprios. Também foi um dos instrumentos legais mais utilizados para controlar e explorar o tra-balho dos índios.

6 VASCONCELLOS, Ignacio Accioli de. Memoria statistica da província do Espirito Santo escrita no anno de 1828. Vitória: Arquivo Público Estadual, 1978, p. 35.

7 As 85 correspondências foram encontradas nos seguintes livros: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (doravante APEES), Série 751, Livro 171 – “Este livro há de servir para o registro da correspondência deste governo com as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida”; APEES, Série 751, Livro 172 – “Este livro há de servir para o registro da correspondência deste governo com as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida”; APEES, Série 751, Livro 181 – “Há de servir este livro para o registro da correspondência com as câmaras municipais das vilas da Serra, Nova Almeida, Linhares, Barra de São Matheus, e São Matheus”; APEES, Série 751, Livro 182 – “Servirá este livro para o registro da correspondência com todas as câmaras municipais do Norte da Província”.

8 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Nem selvagens nem cidadãos: os índios da vila de Nova Almeida e a usurpação de suas terras durante o século XIX. Dimensões. Vitória, v. 14, 2002, p. 151-167, p. 162.

9 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 129.

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As reformas pombalinas, realizadas durante o governo de D. José I, coloca-ram em xeque a tradição tutelar. A Lei das Liberdades, de 6 de junho de 1755, declarou a plena liberdade dos índios com relação às suas pessoas, aos seus bens e ao seu comércio e, por meio do Alvará de 7 de junho de 1755, foi instituído o autogoverno nas vilas e povoados indígenas, estimulando e dando preferência a eles, ademais, na ocupação dos cargos de vereadores e ofi ciais da justiça.10 Mas a nova orientação durou pouco e sequer foi plenamente implementada, pois, em outra lei, de 3 de maio de 1757, lastimava-se a inaptidão dos índios para exercerem plenamente o governo de si mesmos em suas vilas e povoados e criou-se a fi gura dos “diretores de índios”, que deveriam controlá-los enquanto não fossem considerados capazes.11 Na opinião de alguns autores, apesar de os índios permanecerem tendo a preferência na ocupação dos cargos da Repú-blica, a fi gura dos diretores de índios comprometeu, na prática, o princípio do autogoverno.12 Esta interpretação, contudo, é controversa, pois, como estudos mais recentes têm demonstrado, à luz da documentação primária fi ca claro que várias lideranças indígenas e pajés tiveram ação e infl uência duradoura em suas comunidades e, mais ainda, não raras vezes desfrutaram até mesmo de maior poder que os diretores.13

Apesar da controvérsia, o fato é que a Carta Régia de 12 de maio de 1798 suspendeu o sistema de Diretório e inaugurou um período bastante atípico na história dos índios e do indigenismo no Brasil, pois os índios das vilas e povoados fi caram legalmente livres de qualquer tutela sobre suas pessoas. Manuela Car-neiro da Cunha, uma das mais balizadas especialistas sobre índios e legislação indigenista do século XIX, tem duas opiniões sobre o período entre a suspensão do Diretório dos Índios, pela Carta Régia de 1798, e a promulgação, em 1845, pelo governo de D. Pedro II, do Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios, quando novamente foi instituída a fi gura tutelar do diretor de índios.

10 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. op. cit., p. 133.11 Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto sua

majestade não mandar o contrário (Apêndice). In: ALMEIDA, Rita Heloisa de. O diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997.

12 Sobre este debate, entre outros, vale consultar SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. op. cit., p. 250. SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande. Campinas: Pontes, 2005, p. 17. SOMMER, Barbara Ann. Negotiated Settlements: Native Amazonians and Portuguese Policy in Pará, Brazil, 1758-1798. New Mexico: University of New Mexico, 2000, p. 314-315.

13 SOMMER, Barbara Ann. op. cit., p. 230.

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De um lado, ela sustenta que o interregno caracterizou-se por um “vazio legal”, quando na ausência de uma legislação mais geral sobre como governar os índios, leis e regulamentos pontuais foram lançados para resolver uma miríade de casos e situações específi cas. Mais ainda, pelo mesmo motivo, o Diretório dos Índios, apesar de ter sido suspenso, terminou fi cando ofi ciosamente em vigor em algumas províncias.14 De outro, defi ne o período entre 1798 e 1845 como uma temporalidade caracterizada, em princípio, pelo “autogoverno” dos índios.15 Mas, como esclarece a autora, o sistema do autogoverno não se aplicava aos índios dos sertões, que viviam em suas tribos e de acordo com seus próprios costumes. Para essa categoria de índio, ainda tida como incapaz de governar a si própria pela legislação de 1798, foi reservado o privilégio de órfãos. Por isso, quando descidos dos sertões, eles poderiam ser contratados por particulares que, em contrapartida, deveriam pagar-lhes salários e cuidar de sua educação, catequese e “civilização”.16

No âmbito do Espírito Santo, cujos sertões limítrofes eram povoados por muitos índios considerados “gentios”, “selvagens”, “inimigos” ou simplesmente “botocudos”, vários indígenas ingressaram na província tutelados por moradores de acordo com o princípio orfanológico. De um lado, porque, como se viu, a legislação de 1798 estendia aos índios recém-egressos dos sertões o privilégio de órfão. De outro, porque, em 1831, a Lei de 27 de outubro, que aboliu ofi cial-mente a guerra joanina contra os botocudos do rio Doce, concedeu a liberdade a todos os índios que se mantinham no cativeiro, estendendo-lhes, além disso, a condição de órfãos, segundo regras semelhantes ao disposto na legislação de 1798.17 Os índios tutelados de acordo com a legislação orfanológica eram um seguimento relativamente importante da sociedade local e sua presença foi, aliás, bem registrada pela crônica do artista plástico François Biard, que morou por alguns meses no Espírito Santo, durante o ano de 1858. De acordo com ele, era costume da terra denominar os índios que estavam sob a tutela de algum mora-dor, de acordo com a legislação orfanológica, como índios que tinham “dono”, “amo” ou “patrão”.18

14 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; Fapesp, 1992, p. 133-154, p. 138.

15 Idem, Ibidem, p. 152.16 Idem, Ibidem, p. 147.17 Idem, Ibidem, p. 148.18 MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação: trabalho indígena e fronteiras

étnicas no Espírito Santo, (1822-1860). Anos 90, Porto Alegre, v. 17, 2010, p. 13-54, p. 30.

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Índios que tinham “dono” conviviam lado a lado, no Espírito Santo, com outros que eram considerados livres e que viviam com suas famílias e grupos nos povoados e vilas da província, de forma muito mais autônoma e de acordo com os princípios do autogoverno. Entenda-se por autogoverno dos índios a extinção da tutela dos diretores, pela Carta Régia de 12 de maio de 1798, e a subordinação deles ao governo da Câmara e às demais instituições das vilas e lugares, como, por exemplo, as ordenanças. O sistema de autogoverno dos índios visava, em primeiro lugar, garantir os interesses do Estado, presentes, de forma bem resumida, na ideia de transformar os índios em “súditos úteis”, por meio do trabalho prestado ao Estado, aos particulares, a si mesmos e às suas famílias. Trata-se também, como se verá mais adiante, de um sistema político que, no Espírito Santo, abriu espaços para o exercício da política indígena, expressa na defesa de sua liberdade e terri-torialidade contra os outros moradores da província que, na primeira metade do século XIX, cobiçavam suas terras e muito frequentemente também seu trabalho.

Autogoverno do ponto de vista do Estado: o trabalho dos índiosEditada em um período de importantes mudanças, quando Portugal transitava

do Antigo Regime para a ordem liberal, a Carta Régia de 12 de maio de 1798 apresenta elementos tanto do pensamento político e social corporativista como individualista, e pode ser interpretada, por isso mesmo, segundo pontos de vista diversos.19 Para Patrícia Sampaio, por exemplo, o principal traço dessa legislação é “a acentuação de um processo de individuação dos índios aldeados”20, que deixaram de ser percebidos como grupos e passaram a ser diluídos no ambiente das vilas e lugares, onde fi cariam sujeitos ao governo das Câmaras, tal como acontecia com os demais vassalos.

Outro modo de interpretar a carta régia é vê-la como uma medida de justiça e reparação que, ao extinguir o Diretório, devolvia aos índios o “governo econô-mico de suas povoações”21, retomando os princípios estabelecidos nas leis de 6 e 7 de junho de 1755. Deste ângulo, a lei terminava não apenas por salientar que

19 Sobre os paradigmas corporativista e individualista na tradição portuguesa, ver HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. O Antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 121-156.

20 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. op. cit., p. 236.21 Cópia da Carta Régia de 12 de maio de 1798 sobre a civilização dos índios, enviada a Antônio

Peres da Silva Pontes, em 29 de agosto de 1798. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. op. cit., p. 313-325.

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os índios eram uma parte da monarquia, mas também permitia, potencialmente, a diferenciação deles e de suas povoações e vilas com relação às demais partes do corpo social, segundo o entendimento de que se deveria respeitar as formas locais de organizar a vida cotidiana, econômica e social.22

Parece-me claro que – dependendo da mentalidade do intérprete (governa-dores, vereadores, índios e padres, entre outros), de seus interesses e do contexto social – a lei podia ser usada tanto para assegurar a tradição, garantindo a con-tinuidade do Antigo Regime nos trópicos23, como para moldar novas práticas e novos direitos vinculados aos princípios liberais e individualistas. Isto em um momento histórico-social no qual também o Brasil passava por profundas transformações, sendo a mais visível o processo de Independência e o paulatino avanço do liberalismo, principalmente depois do fi m do tráfi co de escravos e da promulgação da Lei de Terras de 1850.

Seguindo a linha de que a Carta Régia de 12 de maio de 1798 foi uma me-dida de reparação e de retorno aos princípios mais importantes das leis de 6 e 7 de junho de 1755, pode-se interpretar a instituição do autogoverno nas vilas e lugares indígenas mais como uma decisão política ainda pautada no modelo corporativo de organização e gestão social, que prevalecia no Antigo Regime português, do que no ideário liberal e individualista, que crescia nos dois lados do Atlântico, pouco a pouco. De acordo com António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, no modelo corporativo

cada corpo social, como cada órgão corporal, tem a sua função (offi cium), de modo que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que possa a desempenhar (...). A esta ideia de autonomia funcional dos corpos anda ligada, como se vê, a ideia de autogoverno (...).24

22 Sobre o sentido e a abrangência da autonomia das comunidades no pensamento político português, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os conselhos e as comunidades. In: MATTOSO, José (Dir.). His-tória de Portugal. O antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 303-331, p. 316.

23 Sobre a produção e reprodução social, no âmbito colonial, segundo as regras econômicas, políticas e simbólicas de Antigo Regime, ver FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 21.

24 HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. op.cit, p. 123-4.

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A principal função (offi cium) dos índios era trabalhar para o Estado, para particulares e para si próprios e suas famílias. A autonomia que receberam e que lhes permitia o exercício do “governo econômico de suas povoações” – como afi rmava a Carta Régia de 1798, podendo gerir, sem a tutela de diretores, a vida cotidiana e social de suas povoações – pressupunha, como contrapartida necessá-ria, o correto exercício de suas funções. No Espírito Santo, as evidências apontam para a existência de um rígido sistema de captação da mão de obra indígena nas vilas e lugares baseado nos princípios políticos e organizacionais da Carta Régia de 12 de maio de 1798, controlado no topo pelos governantes da província. Em relação aos índios de Nova Almeida, por exemplo, escreveu Saint-Hilaire:

A mão de ferro dos Governadores da Província do Espírito Santo agravou seus infortúnios. Todos os meses se tiravam dentre eles (1818) certo número de índios, casados ou não, para pô-los a trabalhar na estrada de Minas, no Hospital de Vila da Vitória, na nova Vila de Viana ou Santo Agostinho, etc.; eram mal alimentados; durante muito tempo não lhes foi dado salário algum e, na época de minha viagem, somente depois de dois meses é que se come-çava a juntar à sua alimentação uma retribuição de dois vinténs, ou cinco soldos por dia.25

Ainda segundo Saint-Hilaire, em Nova Almeida, para se garantir o uso do trabalho dos índios, alguns dos escolhidos eram presos na cadeia da vila até o dia da partida.26 Depois da Independência, esse sistema de trabalho também aparece com muita nitidez na correspondência ofi cial, mantida no período entre 1828 e 1853, entre os presidentes da província do Espírito Santo e as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida. Em dezembro de 1829, por exemplo, o Vis-conde da Praia Grande, presidente da província, escreveu ao Sr. José Ribeiro, uma autoridade da vila cuja função não foi indicada na correspondência, reclamando que ainda não havia sido “remetido os quatro Índios para o serviço Nacional, e Imperial como lhe foi ordenado no mês passado”.27 Na verdade, na série de 85 correspondências, onde os índios são mencionados textualmente, o assunto mais abordado foi sobre o trabalho dos índios, perfazendo 58,8% do total dos temas tratados na série. Mais ainda, dentro do assunto trabalho, a solicitação de índios para prestar o “serviço nacional e imperial” ou para render outros índios

25 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo. São Paulo: Itatiaia, 1974, p. 69.26 Idem, Ibidem, p. 105.27 APEES, Série 751, Livro 171, 02/12/1829, p. 30. Nesta e nas próximas citações, a ortografia foi

atualizada, sendo mantido o estilo no uso das letras em maiúscula e a pontuação.

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que estavam trabalhando foi, de longe, a ocorrência mais frequente, perfazendo 71% do total.28

A comunicação ofi cial entre as autoridades da vila e a presidência da pro-víncia ainda demonstra dois pontos importantes: primeiro, que a autoridade da vila mais acionada pelos presidentes de província, em relação ao tema trabalho, era o capitão-mor das ordenanças, pois era ele quem controlava a mão de obra indígena, selecionando e enviando aos governos da província os trabalhadores requisitados. Vale citar, a título de exemplo, a correspondência expedida pelo presidente provincial Ignácio Acciolli de Vasconcelos, em agosto de 1829, ao capitão das ordenanças da vila de Nova Almeida, na qual fi ca bastante claro que os índios estavam organizados em “batalhões”, que eram destacados para prestar serviços em diferentes localidades da província, incluindo a capital:

Ao Capitão das ordenanças Ilmo. Francisco Ramos para continuar a mandar os Índios que forem requisitados pelo diretor dos Aldeamentos do Rio Doce. A vista do que vossa mercê [ilegível] no seu ofício, que a falta de tropa que há tem [sido] ocasionada por serem chamados para o serviço imperial na povoação de Linhares alguns Índios, o mesmo motivo [ilegível] ainda, porém em breve [esse problema de falta de tropa] desaparecerá com a chegada do batalhão número 12 que se espera todos os dias de Nova Almeida, e Aldeia Velha, por que estes [índios do batalhão 12 se] destacam para esta cidade [de Vitória] para diferentes serviços. É mister portanto que vossa mercê com aquele zelo, que lhe deve ser próprio faça marchar para aquela povoação ao menos doze Índios.29

O segundo ponto importante a ser frisado é que a extinção das ordenanças, em 1831 pelo novo regime imperial, desorganizou o sistema de captação de trabalho indígena que até então estava em funcionamento. Não apenas desapareceram os ofícios dirigidos ao capitão-mor das ordenanças solicitando índios para o trabalho “nacional e imperial”, como também decresceram vertiginosamente os pedidos de trabalhadores indígenas por meio da organização política da vila.30 Isto não signifi ca que os índios, enquanto “indivíduos”, “brasileiros”, “cidadãos”, “tra-balhadores”, “caboclos”, “lavradores” ou “vadios” deixaram de prestar serviço ao Estado. Mas, não é demais frisar que a extinção das ordenanças serve como um marco, sinalizando o fi m de um logo período histórico caracterizado pelas formas coloniais de governança, de classifi cação social e de gestão da força de

28 Para uma abordagem mais detalhada dessa documentação, ver MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação ..., op. cit., p. 49.

29 APEES, Série 751, Livro 171, 18/08/1829, p. 27. 30 MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação ... op. cit., p. 31.

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trabalho de homens e mulheres livres classifi cados, até então, primordialmente como “índios” no cenário regional.

Requisitados principalmente para servir à Coroa, o trabalho obrigatório dos índios fi cou conhecido localmente como “serviço do rei” e, depois da Indepen-dência, como “serviço nacional e imperial”. Implicava um enorme sacrifício individual e coletivo, pois um número signifi cativo de índios era retirado de seus povoados, por muitos meses, às vezes anos, em detrimento do bem-estar de suas famílias e comunidades. Saint-Hilaire admirou-se, aliás, com a aquiescência dos índios das vilas do Espírito Santo à exploração de sua força de trabalho, julgando que isso ocorria em razão da tirania dos governantes e da passividade dos índios, que não tinham outra alternativa viável de vida, segundo ele supunha:

Falando dos árduos trabalhos a que os condenara o governador da Província, os índios de Vila Nova [de Almeida] não deixam escapar um murmúrio; o serviço do Rei exige – essas palavras, pronunciavam-nas do mesmo modo que um fatalista teria podido dizer: tal é a sentença do destino.31

Escapou à Saint-Hilaire, contudo, a estreita conexão entre o árduo trabalho que os índios prestavam sob a rubrica “serviço do rei” e a possibilidade de eles viverem, em suas vilas, de acordo com os princípios do autogoverno, isto é, sem a interferência direta de “diretores”, “donos” ou “patrões”, podendo gerir com mais autonomia a organização social, política e econômica de suas comunidades. Vistos isoladamente, o trabalho (ou a função social dos índios) e o autogoverno (a auto-nomia para exercer esta função) acabam sendo pouco compreendidos no contexto da época. Henry Koster, viajando pelo Ceará, em fi ns de 1810, considerou risível a participação dos índios na governança local, supondo, além disso, que o exercício de funções políticas pelos índios não passava de um artifício para trapaceá-los:

Cada aldeia possui dois Juízes Ordinários com função anual. Um juiz é branco e o outro indígena, e é lógico supor que o primeiro tem, realmente, o comando. (...) Os indígenas têm também seus Capitães-Mores, cujo título é vitalício e dá algum poder sobre seus companheiros, mas como não há salário, o Capitão-Mor indígena é muito ridicularizado pelos brancos e, com efeito, um ofi cial meio nu, com sua bengala de castão de ouro na mão é um personagem que desperta o riso aos nervos mais rijos.32

31 SAINT-HILAIRE, Auguste de, op. cit., p. 71. 32 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Mas-

sangana, 2002, v. 2, p. 224-225.

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Nas povoações de maioria indígena do Espírito Santo, como Benevente (antiga missão de Reritiba) e Nova Almeida (antiga missão dos Reis Magos), o funcionamento do autogoverno e do sistema de trabalho a ele associado não pode ser satisfatoriamente explicado pelos artifícios da violência, do engodo ou de uma suposta passividade dos índios, apesar desses argumentos terem sido apontados por alguns dos contemporâneos para explicar a participação dos índios em uma ordem social bastante opressora. Afi nal, a subalternidade social dos índios não é condição sufi ciente para negar a eles a condição de atores de sua própria história, por mais que essa história seja a história do oprimido. Também não é condição su-fi ciente para caracterizar o autogoverno nas vilas e lugares indígenas apenas como um simulacro, supondo que eles, no exercício dos poderes municipais (vereadores e juízes) e de outros cargos da República (capitães-mores de ordenança, etc), eram apenas iludidos pelas pompas dos cargos civis e militares do mundo colonial e pós-colonial. Ao contrário, pesquisas recentes têm demonstrado que, desde a vigência do Diretório, criou-se ou fortaleceu-se uma elite indígena no interior da lógica da governança colonial que não apenas respondia aos interesses da política indigenis-ta luso-brasileira, mas também às expectativas dos índios e da política indígena.33

Autogoverno do ponto de vista dos índios: autonomia e territorialidade Informações deixadas por viajantes que passaram pelo Espírito Santo na se-

gunda década do século XIX, como Auguste de Saint-Hilaire e o bispo visitador do Rio de Janeiro, D. José Caetano da Silva Coutinho, são bastante explícitas em atestar que os índios ocupavam, no início do Oitocentos, senão todos, pelo menos uma parte dos postos civis e militares nas vilas indígenas de Nova Almei-da e Benevente.34 Em 1812, o bispo D. José Caetano defi niu Benevente e Nova Almeida como “distritos indígenas” e, ao se referir a Benevente, comentou:

33 Entre outros, ver ROCHA, Rafael. Os oficiais índios na Amazônia pombalina. Sociedade, hie-rarquia e resistência (1751-1798). Dissertação de Mestrado, História, Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, 2009. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo, op. cit, p. 250. COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na América a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1750-1798). Tese de Doutorado, História Social, Departamento de História da Universidade de São Paulo, 2005, p. 208-221.

34 SAINT-HILAIRE, Auguste de, op. cit., p. 65; COUTINHO, D. José Caetano da Silva. Aponta-mentos secretos sobre a visita de 1811 e 1812. Vista de 1819-1820. In: NEVES, Luiz Guilherme Santos (Org.). O Espírito Santo em princípio do século XIX. Apontamentos feitos pelo bispo do Rio de Janeiro à capitania do Espírito Santo nos anos de 1812 e 1819. Vitória: Estação Capixaba e Cultural–ES, 2002, p. 43-155, p. 87.

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Esta terra tem muita semelhança com Mangaratiba, até por ser uma freguesia mista de muitos brancos em um distrito de índios; mas pareceu-me ter mais casas e mais gente, e ser mais bonita que Mangaratiba; se bem que a proibição da exportação de madeiras tem atrasado muito o comércio, que só versa em algodões e mantimentos; e só há dois senhores de engenho, e pouco ricos.35

Enquanto Benevente foi considerada como uma vila “mista” de índios e brancos, D. Caetano calculou, na mesma visitação de 1812, a existência de pouco mais de 3.000 índios na vila de Nova Almeida, sem contar os brancos e pretos.36 Nova Almeida possuía, contudo, uma câmara de “índios puros”, isto é, todos os vereadores e juízes eram índios:

Cheguei às onze horas na Vila Nova [de Almeida], onde me esperavam os bons índios com foguetes, arcos triunfais, e arquiteturas de ramagens, e outras demonstrações de alegria e devoção. Cuidei que me não deixassem entrar para casa ao apear, e que me comessem as mãos com beijos. Reservei a minha entrada para as ave-marias, à qual me assistiu a Câmara toda composta de índios puros com suas varas, ajoelhando e fazendo tudo o mais com profunda humildade até o fi m, e até me virem acompanhar ao meu aposento dentro do mesmo convento dos jesuítas.37

Na segunda visitação de 1819, contudo, D. Caetano da Silva Coutinho comentou uma mudança signifi cativa na governança da vila de Nova Almeida: “Nota Bene: esta vila já não é de índios puros, como em 1812, porque os dois juízes e alguns vereadores são portugueses”.38 Não se deve estranhar, contudo, essa mudança, pois a Carta Régia de 12 de maio de 1798 fl exibilizou a diretriz segundo a qual se deveria dar preferência aos índios nos postos da República, deixando claro, contudo, que eles continuavam aptos ao exercício destes cargos, além de continuar apoiando a mistura de índios e não índios nas antigas missões transformadas em vilas pela política pombalina.

A participação dos índios na governança local, longe de ter sido apenas um simulacro, tal como supunha Henry Koster, em relação ao Ceará, foi um expediente político de relativa efi cácia para os índios. Permitiu, por exemplo, a tramitação de suas reivindicações e de seus interesses nos canais políticos da província. Na série de 85 correspondências entre os presidentes da província

35 COUTINHO, D. José Caetano da Silva , op. cit., p. 47.36 Idem, Ibidem, p. 87-88.37 Idem, Ibidem, p. 87.38 Idem, Ibidem, p. 92.

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do Espírito Santo e as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida mantidas no período entre 1828 e 1853, onde os índios são textualmente citados, foram encontradas 19 ocorrências de queixas de índios, principalmente contra três situações: as tentativas de esbulho de suas terras, as violências físicas per-petradas por moradores e os sequestros de seus fi lhos pelas autoridades locais, que os distribuíam a terceiros.39

Em dezembro de 1829, por exemplo, o Visconde de Praia Grande questionou o juiz de paz porque ele ainda não havia se pronunciado sobre a “queixa da Índia Sebastiana de Jesus”.40 A reclamação de Sebastiana devia-se ao fato de o juiz de paz estar tirando do poder das índias seus “fi lhos menores”. O Visconde de Praia Grande, em outro ofício, perguntava ao juiz que “destino” ele estava dando às crianças.41 Por falta de fontes, não foi possível apurar o resultado fi nal desta contenda entre Sebastiana e o juiz de paz. Mas, alguns anos depois, em 1838, foi o “índio José Bernardino” quem fez requerimento semelhante ao presidente provincial.42 Desta vez, contudo, foi possível apurar a decisão do presidente, que expressamente advertiu o juiz de paz “que não [se] pode nem [se] deve tirar os indígenas do poder dos pais, ou daquele que os tenham criado para dá-los a ter-ceira pessoa não havendo melhoramento de condição, como no caso presente”.43

No âmbito do Espírito Santo, o sequestro das crianças indígenas está relacio-nado com as tentativas de captar-se mão de obra nas vilas por meio da legislação orfanológica. A tutela orfanológica, presente nas legislações de 1798 e de 1831, direcionava-se, como vimos, aos índios recém-egressos dos sertões e, teorica-mente, não se aplicava aos índios moradores das vilas e povoados. Apesar disso, as tentativas de captar a mão de obra nas vilas indígenas do Espírito Santo por meio da tutela orfanológica, subtraindo as crianças de seus pais e entregando-as a terceiros, parece ter sido frequente. Também parece ter sido frequente a resistência dos índios a esta prática, como atesta, aliás, suas representações aos presidentes da província pedindo de volta os seus fi lhos.

Os sequestros de crianças índias são episódios esclarecedores sobre a condição indígena no Espírito Santo da primeira metade do Oitocentos, pois demonstram que as fronteiras entre “índios livres” e “índios tutelados” eram móveis, tênues e mantidas muitas vezes devido à luta e ao interesse dos próprios índios. Afi nal,

39 MOREIRA, Vânia Maria Losada, A serviço do Império e da nação ..., p. 32-35.40 APEES, Série 751, Livro 171, 23/12/1829, p. 32.41 APEES, Série 751, Livro 171, 15/12/1829, p. 31.42 APEES, Série 751, Livro 172, 23/08/1838, p. 144.43 Idem, Ibidem.

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muitos índios dos sertões poderiam ingressar nas vilas de índios e alcançar, por esse meio, a condição de índios livres, enquanto outros, ao contrário, poderiam cair na rede da tutela orfanológica e tornar-se índios que tinham “amo”, “dono” ou “patrão”. Além disso, as reclamações dos índios contra os sequestros das crianças, o esbulho de suas terras e os atos de violência física praticados contra eles são episódios que apontam para a relativa efi cácia política do sistema do autogoverno para os índios, pois os presidentes da província tenderam a apoiar os índios em suas representações e queixas.44

Alguns exemplos envolvendo os confl itos de terra podem esclarecer esse ponto. Em maio de 1839, um ofício encaminhado pelo Palácio do Governo ordenou ao juiz de paz da vila que tomasse providências para que Francisco Moraes assinasse “termo de não perturbar os Índios na posse de seus sítios e lavouras como tem violentamente praticado”, devido ao requerimento impetrado por Manoel Joaquim e outros índios da vila.45 Do mesmo modo, em 1840, outro ofício expedido pelo Palácio do Governo informava ao juiz de órfão do termo de Nova Almeida sobre uma “representação dos Índios” e sobre a decisão do presidente da província que ordenava ao mesmo juiz que, na qualidade de “con-servador dos mesmos Índios deve dar as providencias necessárias para que eles sejam sustentados em seus direitos e na posse de seus bens, não permitindo que sejam incomodados”.46

Em 1842, novamente os índios eram contemplados pela decisão presidencial. Desta vez, a representação foi realizada pelos índios Miguel da Silva e Antônio das Neves, “que se queixam das violências, [e] arbitrariedades contra eles praticados por Victorino Jose Pinto o qual confi ado na proteção de algumas autoridades” estava esbulhando suas terras.47 Em resposta, foi ordenado não só que “o dito Victorino Jose Pinto” assinasse “termo de não incomodar mais os Índios no gozo de suas terras cominando-lhe uma pena de prisão, e de multa”, como também o juiz de paz foi alertado de que seria responsabilizado “por qualquer omissão no cumprimento dessas ordens, e qualquer acontecimento que de alguma forma afaste a tranquilidade Pública”.48

Importante esclarecer, contudo, as razões que levavam os governantes da província a apoiarem os índios de Nova Almeida contra os “brancos” que, pouco

44 MOREIRA, Vânia Maria Losada, A serviço do Império e da nação ..., op.cit., p. 34.45 APEES, Série 751, Livro 172, 07/05/1839, p. 23.46 APEES, Série 751, Livro 172, 13/04/1840, p. 44.47 APEES, Série 751, Livro 172, 19/08/1842, p. 82.48 APEES, Série 751, Livro 172, 19/08/1842, p. 82.

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a pouco, avolumavam-se na região. Pelo menos até meados da década de 1840, as evidências históricas sugerem que os índios de Nova Almeida eram importantes prestadores de serviço civil e militar ao Estado, especialmente ao governo da província, e, em contrapartida, obtinham de seus presidentes certa garantia em relação à liberdade e à territorialidade conquistadas historicamente. Sobre isso, não é demais lembrar que a antiga missão dos Reis Magos, depois transforma-daem vila de Nova Almeida, foi um lugar estratégico a partir do qual se fazia a defesa da costa contra incursões estrangeiras e da capitania contra os ataques dos índios inimigos dos sertões, durante boa parte de sua história. O interesse dos governos do Espírito Santo em manter os índios vivendo em Nova Almeida não se esgotava, portanto, no fato de usarem frequentemente aquela mão de obra para tarefas civis, pois os índios também desempenhavam um importante papel na estratégia de segurança da população regional, que continuou sofrendo com os ataques dos índios botocudos dos sertões, por boa parte do século XIX.49

Resumindo, no Espírito Santo, o sistema de exploração do trabalho indígena esteve ancorado, depois da Carta Régia de 1798, nos princípios do autogover-no. Funcionava bastante bem porque supunha, em contrapartida, relações de reciprocidade entre os índios, ou parte deles, e os governantes da província. Importante frisar, contudo, que relações de reciprocidade não excluem hierar-quia, desigualdade e exploração. Assim, governadores e depois presidentes da província se mostraram atentos ao que se pode qualifi car de “economia moral” dos índios – na acepção que E. P. Thompson emprestou a esse conceito, entendido como um sistema de normas costumeiras e reciprocidades, que incluem direitos e obrigações sociais de ambos os lados da relação política, e que servem para legitimar a ação de grupos ou de indivíduos que se compreendem agindo em favor de costumes tradicionais.50 Em outras palavras, se a função precípua dos índios era trabalhar para si, para os moradores e para o Estado, há que se lembrar que entre os seus principais direitos e expectativas estava a própria liberdade e a dos fi lhos e a posse pacífi ca das terras que ocupavam. As rebeliões de índios no Espírito Santo, raras, diga-se de passagem, ilustram, por isso mesmo, o ar-gumento aqui formulado.

49 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre vilas e sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-1840). Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Em Linea], Debates 2011. Puesto em línea el 31 de enero 2011. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/60746, p. 8.

50 THOMPSON, Edward Palmer. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Idem. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia da Letras, 1998, p. 150-202, p. 152.

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Em 1831, José Francisco Andrade e Almeida Monjardim, em exercício no cargo de presidente da província, mandou o capitão-mor das ordenanças da vila de Nova Almeida tomar providências contra os índios que “espalham boatos ameaçadores e aterradores de lançarem fora os brancos (...) fazendo conhecer a esta gente ignorante que serão castigados (...) no rigor das leis”.51 Além disso, o presidente ainda recomendou ao capitão-mor que empenhasse todo o seu “zelo para dissuadi-los e informá-los a respeito das leis e das autoridades constituídas”.52 Em outro documento enviado ao capitão-mor, solicita que se mande o juiz pro-ceder a uma “inquisição” sobre o caso e, mais ainda, que fossem processados os cabeças da rebelião dos índios.53

Pelas poucas indicações presentes na documentação, a ameaça de rebelião dos índios de Nova Almeida provavelmente se relacionava com o progressivo avanço dos “brancos” sobre suas terras. Importante notar, contudo, que embora não se possa afi rmar, com segurança, os motivos da revolta, está absolutamente evidente que, no limite, a rebelião armada era uma alternativa de ação pensada e ventilada pelos próprios índios e levada sempre bem a sério pelas autoridades provinciais, que não se descuidavam em apurar e reprimir esse tipo de ameaça à ordem es-tabelecida. O que a documentação nos permite ver, portanto, não é um índio ou uma comunidade indígena passiva e sem alternativas de vida, tal como Saint-Hilaire descreveu os índios de Nova Almeida, pois eles reclamavam, negociavam e até mesmo ameaçavam uma ação armada contra os “brancos” da província.

O perigo de rebelião dos índios não estava, de fato, descartado, pois dois anos depois estourou uma revolta, não em Nova Almeida, mas em Piúma, um povo-ado indígena próximo a Benevente, a antiga missão jesuítica de Nossa Senhora de Reritiba. Nesta, em 1833, o capitão-mor Francisco Xavier Pinto Saraiva foi assassinado “(...) por um grupo de mais de 100 homens, quase todos índios, que atacaram reunidos e arrombaram a casa, matando-o barbaramente, saqueando o que encontraram e depois retirando-se para Piúma, onde se conservam armados”.54 Pouco tempo depois, em 1834, muitos índios se reuniram novamente na povoação de Piúma e ameaçaram atacar a vila de Benevente.

A documentação coligida sobre esse episódio não esclarece a razão do “ajunta-mento tumultuoso”, mas sabe-se “que muitos Índios [ilegível] estão [se] reunindo na povoação de Piúma, com o intento de acometerem a Vila [de Benevente],

51 APEES. Série 751, Livro 171, 11/11/1831, p. 52.52 Idem, Ibidem.53 Idem, Ibidem, p. 52v.54 DAEMON, Bazilio Carvalho, op. cit., p. 294.

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publicando ademais que querem o antigo estado de coisas (...)”.55 Reivindicar o “antigo estado de coisas” é presumir direitos com base no costume e, no caso dos índios, a lei e o costume garantiam dois direitos fundamentais no começo do Oitocentos: o usufruto das terras que ocupavam e a liberdade. Há de se frisar, no entanto, que a liberdade dos índios nunca foi a de não trabalhar ou do ócio. Por isso, o mais provável é que a revolta de Piúma tenha sido provocada pelo avanço dos “brancos” sobre as terras dos índios ou pela tentativa de modifi car as regras costumeiras, ou que se acreditava ser costumeiras, e que organizavam o trabalho que recaia sobre os índios do povoado.

Em outras palavras, o serviço prestado pelos índios ao “Império e à nação” representava, sempre, um enorme sacrifício para eles, suas famílias e seus povoados. Mas, apesar disso, não há menções na documentação que atestem, com segurança, movimentos coletivos contra o trabalho prestado para o Estado. Tampouco as queixas e reclamações dos índios que aparecem na documentação são contra o trabalho prestado ao Estado, pois, como foi visto, os temas das re-clamações eram especialmente três: invasão de terra pelos “brancos”, sequestro dos fi lhos e violência física.56 Isso não signifi ca que, depois de recrutados e de estarem efetivamente prestando o serviço nacional, todos os índios permane-cessem fi éis ao seu posto, pois são numerosas as notícias de fugas de índios da Diretoria do Rio Doce, por exemplo, onde muitos prestavam o serviço nacional e imperial, bem como os requerimentos formais de índios solicitando o retorno para suas famílias e moradias, geralmente segundo a justifi cativa de que já haviam cumprido o seu tempo de serviço.57

Mais ainda, as fontes atestam que para escapar do “serviço nacional e impe-rial”, os índios residentes nas vilas ainda usavam de outro artifício. Por exemplo, sobre a rebelião de Piúma, sabe-se também que o presidente da província fi cou intrigado com as informações cedidas pelo juiz de paz sobre aquele “ajuntamento tumultuoso” de índios “malvados”. Afi nal, escreveu o presidente, “como será possível haverem mais de quinhentos Índios armados, onde as relações estatísticas apenas apresentaram cento e setenta e três varões de 10 a 60 anos”.58

55 APEES. Série 751, Livro 163 A, 1/4/1834, p. 57.56 MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação ..., op.cit., p. 32.57 MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização

do rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação de Mestrado, Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo, 2007.

58 APEES. Série 751, Livro 163 A, 11/04/1834, p. 30.

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Do estranhamento do presidente só se pode tirar duas conclusões: ou o juiz de paz exagerou o número de índios que se encontravam armados em Piúma; ou, o que é bem mais provável, os índios fugiam do controle dos alistamentos ofi cias para, dentre outros motivos, também escaparem do serviço nacional e imperial, pois existiam mais índios rebelados em Piúma do que varões alistados nas estatísticas ofi ciais. Em outras palavras, as fugas do posto de serviço eram o último recurso para certos índios, já que parte deles escapava do serviço obriga-tório antes mesmo de ser recrutado, tornando-se invisível nas estatísticas ofi ciais.

No atual desenvolvimento da pesquisa sobre a vila indígena de Nova Al-meida e dos povoados e lugares indígenas que lhe fi cavam anexos, ainda não estão claras as regras costumeiras que estabeleciam quem entrava nas listas dos recrutamentos e quem não entrava, nem as relações de poder que mediavam a seleção de alguns índios e a exclusão de outros. Mas, que isso era objeto de disputas e de tensões entre os próprios índios, não resta dívida, tal como o atesta a preocupação do vice-presidente José Francisco de Andrade e Almeida Monjar-din com esse assunto. Assim, em 19/8/1830, ele mandou ao capitão-mor da vila a ordem expressa de que, sendo ele “capitão-mor dos mesmos índios”, deveria zelar para que “quando lhe exigir gente, seja sempre recolhido de todos aqueles lugares [i.e., Nova Almeida e Aldeia Velha], porquanto, todos devem concorrer para o serviço público”, acrescentando ainda não ser justo que só o distrito das Águas desse seus índios.59

Considerações finaisA aplicação da Carta Régia de 12 de maio de 1798, no Espírito Santo, é

um testemunho de que, nessa região, a lei foi usada principalmente para que o Estado pudesse obter o trabalho indígena, civil e militar, mesmo depois da Inde-pendência, segundo os costumes do Antigo Regime nos trópicos. O autogoverno dos índios era, porém, uma instituição que estava caindo em desuso durante o regime imperial. Por um lado, porque os visitantes que passaram pelo Espírito Santo testemunharam que os índios foram perdendo, pouco a pouco, os postos de vereadores e de juízes ordinários nas Câmaras para os “brancos”. Por outro, porque, com a extinção das ordenanças em 1831, esvaziava-se de conteúdo formal e legal um dos últimos bastiões do poder institucional dos índios, isto é, o cargo de capitão-mor. Varria-se do cenário institucional das vilas de maioria

59 APEES. Série 751, Livro 171, 19/08/1830, p. 40.

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indígena, portanto, os últimos vestígios da antiga forma colonial de gestão dos índios e de seu trabalho.

Neste quadro de profundas mudanças sociais e políticas, a economia moral dos índios, baseada na relativa autonomia econômica e social das famílias e dos grupos que viviam em terras próprias dentro da província, fi cou bastante afetada. A ameaça de rebelião em Nova Almeida, em 1831, e a efetiva rebelião dos índios de Piúma, 1833-1834, são testemunhos eloquentes desse processo. Afi nal, seja qual for a hipótese que se mobilize para se explicar a rebelião dos índios de Pi-úma, o fato é que eles mataram o antigo capitão-mor, ameaçaram invadir a vila de Benevente e reivindicaram o retorno ao “antigo estado de coisas”.

Recebido: 17/03/2011– Aprovado: 09/03/2012

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CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO CATIVAEM UMA ECONOMIA AGROEXPORTADORA:

JUIZ DE FORA (MINAS GERAIS), SÉCULO XIX*

Jonis FreireDoutor em História pela Universidade Estadual de Campinas e

Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Salgado de Oliveira

ResumoEste artigo aborda as possibilidades de manutenção e/ou ampliação da posse de cati-vos, seja por meio do tráfi co ou da reprodução natural, em posses pertencentes a três grandes famílias proprietárias de cativos da Zona da Mata Mineira – Dias Tostes, Paula Lima e Barbosa Lage. Por meio do intercruzamento de fontes variadas concernentes àquelas famílias, conclui-se que as duas opções para o aumento do número de cativos – reprodução natural e tráfi co de escravos – parecem não ter sido excludentes, mas sim complementares. A opção por uma ou outra dependeu, sobremaneira, do período de formação das posses, da maior ou menor proximidade com o tráfi co transatlântico e também do raciocínio econômico empreendido pelos senhores na busca pelo melhor “modelo” para a manutenção e/ou ampliação de suas posses em escravos.

Palavras-chavetráfi co de escravos • reprodução natural • Minas Gerais – século XIX

Contato:R. Cabuçu, 76, ap. 402. 20710-300 – Rio de Janeiro – RJE-mail: [email protected]

* Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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CAPTIVE POPULATION GROWTH IN AGRO-EXPORTING ECONOMY:

MINAS GERAIS, IN THE NINETEENTH CENTURY

Jonis FreirePhD in History for the Universidade Estadual de Campinas

AbstractThis article discusses the possibilities of maintenance and/or expansion of possession of captives, whether by means of trade or of natural reproduction in properties belon-ging to three families of captive owners of Zona da Mata Mineira – Dias Tostes, Paula Lima and Barbosa Lage. Through intercrossing of a variety of sources concerning those families, it is concluded that the two options for increasing the number of capti-ves – natural reproduction and the slave trade – seem to have been not exclusive, but complementary. The choice of one or another has depended, above all, upon training period of the captives, the greater or lesser proximity to the transatlantic trade and also upon the economic reasoning undertaken by there in search for the best pattern for the maintenance and/or expansion of their slaves possessions.

Keywordsslave trade • natural reproduction • Minas Gerais - nineteenth century

Contato:R. Cabuçu, 76, ap. 402. 20710-300 – Rio de Janeiro - RJE-mail: [email protected]

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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.

Hipóteses sobre o crescimento da população cativa no BrasilQuestão importante com relação ao escravismo brasileiro é a relativa ao cres-

cimento da sua população. Qual ou quais as formas encontradas pelos senhores de escravos para a manutenção e/ou a ampliação de suas posses? Nesse sentido, procuraremos compreender, neste artigo, como se deu o aumento da população cativa em três propriedades de Juiz de Fora no século XIX. Tal análise nos possibilita uma visão das estratégias utilizadas pelos proprietários no tocante à aquisição de suas escravarias.

Os debates historiográfi cos acerca do aumento da população cativa estão centrados basicamente em duas abordagens distintas. Uma das perspectivas analíticas sobre a manutenção/ampliação dos escravos é a que busca no tráfi co (externo ou interno) a resposta para o aumento da mão de obra.1 Outra vertente sobre o crescimento da população é a da reprodução natural.

Segundo alguns estudiosos, o aumento do contingente escravo, por meio do nascimento, permitiria uma possível manutenção e/ou ampliação da mão de obra nas propriedades senhoriais.2 Este é um tema bastante discutido na historio-

1 Cf., entre outros, MOTTA, José Flávio; MARCONDES, Renato Leite. O comércio de escravos no vale do Paraíba paulista: Guaratinguetá e Silveiras na década de 1870. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 30, n.2, 2000, p. 267-299; SLENES, Robert W. The Brazilian Internal Slave Tra-de, 1850-1888: Regional economies, slave experience and the politics of a peculiar market. In: JOHNSON, Walter (Org.). Domestic Passages: Internal Slave Trades in the Americas, 1808-1888. New Haven: Yale University Press, 2005; Idem. The demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Tese de Doutoramento. Stanford University, 1976; KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 17, n. 2, maio/ago 1987, p. 129-149; FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, século XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2000. MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além, o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1861-1887). Tese de Livre Docência. Universidade de São Paulo, 2010.

2 PAIVA, Clotilde A.; LIBBY, Douglas C. Caminhos alternativos: escravidão e reprodução em Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 25, n. 2, maio/ago 1995, p. 203-233; GUTIÉRREZ, Horacio. Demografia escrava numa economia não-exportadora: Paraná, 1800-1830. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, maio/ago 1987, p. 297-314; SANTOS, Jonas Rafael dos. Senhores e escravos: a estrutura da posse de escravos em Mogi das Cruzes no início do século XIX. Estudos de História, Franca, v. 9, n. 2, 2002, p. 235-253; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1994; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais no século XIX. População e família, São Paulo, v. 1, n. 1, jan./jun. 1988, p. 211-234; BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru: EDUSC, 2004. Algumas críticas sobre o trabalho de Bergad, feitas por Libby, podem ser vistas

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grafi a e sua análise torna-se fundamental. Se houve, por parte dos senhores, um incentivo aos nascimentos, isso talvez indique não uma minimização do peso da escravidão, mas sim a existência de possibilidades encontradas pelos cativos para satisfazerem seus anseios dentro das limitações impostas pelo sistema escravista.

O Brasil é notadamente reconhecido como tendo sido o locus para onde foi levado o maior contingente dos escravos transportados do continente africano. A historiografi a sobre esse tema, desde muito tempo, se debruça, dentre outros as-pectos, sobre as possibilidades encontradas pelos proprietários brasileiros no que diz respeito à aquisição de sua mão de obra escrava, as rotas e o volume do tráfi co.3

Parece-nos inquestionável a afi rmação de que os proprietários brasileiros se utilizaram, durante vários anos, do tráfi co intercontinental, com o intuito de adquirir mão de obra farta e relativamente barata. As estimativas sobre a quan-tidade de africanos trazidos para o Brasil são muitas. Eduardo França Paiva, por exemplo, baseando-se em diversos autores, aponta a percentagem de 38% deles em direção ao Brasil, entre os séculos XVI e XIX. O tráfi co intercontinental foi, sem dúvida, um dos pilares do sistema escravista brasileiro. Tendo perdurado até o ano de 1850, foi por meio dele que se garantiu o abastecimento da Colônia e, depois, do Império, até pelo menos esse ano, constituindo-se o tráfi co atlântico “em variável fundamental para a reprodução física da mão de obra cativa”.4

David Eltis, em estudo sobre o tráfi co transatlântico de escravos para as Américas, percebeu, primeiramente, que os portugueses foram os principais co-merciantes a partir da África. Entre aqueles com nacionalidades conhecidas e que se aventuraram nesse tipo de comércio, foram eles os responsáveis pela aquisição dos maiores volumes de mão de obra escrava. De acordo com os seus cálculos, entre os anos de 1519 e 1867, 5.074.900 africanos fi zeram parte do comércio transatlântico, tendo os portugueses à frente dos negócios. Isso correspondeu a 45,9% do total de indivíduos comercializados entre aqueles anos. Em segundo lugar, vinham os Ingleses, com 28,1%, e os Franceses, com 13,2%. Segundo

em uma resenha no American Historical Review, v. 107, n. 1, 2002, p. 258-9. E também em LIBBY, Douglas Cole. Minas na mira dos Brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de Higgins e Bergad. In: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues (Org.). História Quantitativa e Serial: um balanço. Belo Horizonte: ANPUH-MG, 2001; NOGUERÓL, Luiz Paulo Ferreira de. Economia escra-vista e preços de escravos em Minas Gerais: o caso de Sabará entre 1850 e 1887. Dissertação de Mestrado, UFMG/CEDEPLAR, 1997; TEIXEIRA, Heloisa Maria. Reprodução e famílias escravas de Mariana (1850-1888). Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2001. MATTOS DE CASTRO, Hebe Maria. Ao sul da história. São Paulo: Brasiliense, 1987.

3 SLENES, Robert W. The demography and economics…, op. cit. 1976; KLEIN, Herbert S., op. cit.; FLORENTINO, Manolo, op. cit.; RODRIGUES, Jaime, op. cit.

4 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Apud FLORENTINO, Manolo, op. cit., p. 27.

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Eltis, durante esse mesmo período, a maior parte dos cativos despachados para as Américas era da região da África Centro-ocidental – portos de Malembo, Loango, Cabinda, Ambriz e Benguela – 44,2% (4.887,500 escravos) –, seguidos pelos da Baía do Benin e da Baía de Biafra com, respectivamente, 18,4% (2.034,600) e 13,7% (1.517, 900).5

Com relação ao volume de cativos chegados às diversas regiões das Améri-cas, por meio do tráfi co transatlântico, o Brasil se sobressaiu como o local para onde foram enviadas as maiores levas de africanos. Nesse aspecto, a região Sudeste se destacou. Conforme os dados de Eltis, o Nordeste brasileiro, junta-mente com a Bahia e o Sudeste foram responsáveis por 40,6% dos 9.599.000 africanos trafi cados para as Américas, entre os séculos XVI e XIX. O Sudeste do Brasil foi a região que recebeu a maior quantidade de cativos, tanto em números absolutos quanto relativos: foram 2.017.900, o que equivalia a 21,0% do total. Sobretudo, entre os anos de 1801-1850, ocorreram os maiores desembarques no Sudeste brasileiro, ou seja, 1.145.100 – 56,7% dos desembarcados nesta região. Em anos precedentes (1519-1800), as cifras chegaram a 869.300 (43,1%) e, em anos posteriores, o número caiu vertiginosamente, chegando, entre 1851-1867, a 0,2%, o que correspondia a 3.600 africanos.6

Minas Gerais é, segundo os pesquisadores, a maior possuidora de escravos no século XIX. Conforme estimativas de Eduardo França Paiva, desde o século XVIII, a Capitania contava com um alto número de cativos. Segundo sua análise em tes-tamentos e inventários, para as Comarcas do Rio das Mortes e do Rio das Velhas, eram cerca de 2/3 de africanos e 1/3 de crioulos, sendo que estes últimos possuíam uma composição sexual mais equilibrada àquela época, com uma supremacia mas-culina. Com relação às procedências dos que foram trazidos para Minas Gerais, o autor indicou que a maioria deles era oriunda da Costa da Mina e de Angola.7

Vários são os debates travados com a intenção de lançar luzes acerca dessa questão, tentando responder à seguinte pergunta: Como foi que a Província mi-neira conseguiu obter esse grande percentual? O diálogo gerado entre Roberto Martins e Robert Slenes sobre essa questão, bem como os trabalhos de Francisco

5 ELTIS, David. The volume and structure of the transatlantic slave trade: a reassessment. William and Mary Quaterly, 3d Series, Volume 58, Number I, January 2001, Tabelas I e II.

6 Idem, Ibidem, Tabela III.7 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789.

Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 118.

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Vidal Luna e Wilson Cano, são interessantes e ainda norteiam as discussões sobre o crescimento da população cativa mineira.8

Até o fi nal da década de 1970, havia um consenso, entre os historiadores, de que a economia de Minas no Oitocentos foi caracterizada por uma estagnação secular, que teve início no terceiro quartel do século XVIII, quando a produção aurífera declinou vertiginosamente. Segundo essa visão “convencional”, o fator econômico primordial da Capitania deixou de existir, e a região passou por uma prolongada fase de involução, que resultou em regressão para a economia, baseada numa agropecuária de subsistência.9

Na sequência desse raciocínio, também se pensava que o enorme contin-gente de escravos, que o ciclo do ouro havia legado às gerações seguintes, teria, gradualmente, diminuído, em função do desgaste natural. Esses cativos teriam servido, ainda, como uma importante fonte de mão de obra para a expansão da cafeicultura pelo Vale do Paraíba, por São Paulo e por uma reduzida área da própria Província de Minas.10

Mais recentemente, os trabalhos sobre a economia mineira do século XIX destacaram a importância da Zona da Mata, porque esta concentrava, até 1888, a maior parte do trabalho escravo e também a maior densidade demográfi ca da Província. Em alguns desses estudos, já começavam a surgir problemas para os que assinalavam a estrutura econômica homogênea da região.

Roberto Martins demonstrou que a maioria das propriedades com escravos, em Minas, se fundamentava numa agricultura de subsistência de baixo grau de mercantilização.11 A economia provincial, para ele, era formada, basicamente, por

8 CANO, Wilson; LUNA, Francisco Vidal. A reprodução natural de escravos em Minas Gerais (século XIX): uma hipótese. Cadernos IFCH-UNICAMP, v. 10, out 1983, p. 1-14; MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não--exportadora. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, jan/abr 1983, p. 181-209; SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos, v. 18, n. 3, 1988.

9 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969, 7ª ed., p. 91-3.10 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à Colônia. São Paulo: DIFEL, 1966, p. 42-6.11 MARTINS, Roberto Borges. Growing in silence: the slave economic of nineteenth century Minas

Gerais (Brazil). Tese de Doutorado, University Vanderbilt, 1980; Idem. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportadora. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, jan/abr 1983, p. 181-209; conferir também MARTINS FILHO, Amílcar; MARTINS, Roberto Borges. Slavery in a non-export economy: nineteenth century Minas Gerais revisited. Hispanic American Historical Review, v. 63, n. 3, 1983, p. 537-68. MARTINS, R. B.; MARTINS, Maria do Carmo Salazar. RBEP, v. 58, jan 1984, p. 105-20. Para uma discussão bibliográfica sobre a relação entre atividades exportadoras e de subsistência, conferir LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. São Paulo: Símbolo, 1979, p. 33-37; MARTINS, R. B. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte, 1980, p. 4-5. O “fator Wakefield” é tratado por

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unidades agrícolas diversifi cadas internamente – fazendas, sítios e roças – cuja produção se destinava ao autoconsumo e à venda em mercados locais. Martins negou que a cafeicultura pudesse ter funcionado como polo de atração de traba-lhadores escravos. De fato, do fi m ou, pelo menos, da decadência da atividade mineradora ao surgimento do café, na Província, como produto importante, ti-nham transcorrido algumas décadas. Por outro lado, Minas Gerais não fora uma grande exportadora de escravos, ao contrário, teria participado grandemente do tráfi co internacional e, depois, sido um expressivo lugar de destino dos africanos do comércio interprovincial. Ainda segundo o autor, Minas “teria sido um con-siderável importador líquido de escravos, mesmo com uma população estável ou naturalmente crescente”.12

Em síntese, Roberto Martins destacou que a maioria dos escravos se radicava numa agricultura de subsistência, que as unidades agrícolas eram diversifi cadas internamente e que o café não foi polo de atração para cativos. A abundância de terras apropriáveis signifi cou que continuariam sendo eles os únicos recursos disponíveis para os agricultores da região, e para outros, que não quiseram ga-nhar a vida pelo próprio suor. Esses argumentos foram novamente ressaltados por Martins, em artigo, no qual concluiu que, entre os anos de 1800 e 1852, a Província mineira teria absorvido 19% do total de escravos oriundos do tráfi co atlântico para o Brasil, importando cerca de 320 mil pessoas.13

Contrariamente, Robert Slenes, dialogando com os estudos de Martins feitos na década de oitenta, notou que o desligamento da economia escravista mineira de agroexportação não era tão completo como afi rmava o autor. Isto porque, direta ou indiretamente, determinados setores dessa economia, considerados dinâmicos,

WINCH, Donald. Classical political economy and the colonies. Cambridge: Harvard University Press, 1965, p. 90-104; NEIBOER, H. J. Slavery as an industrial system. Nova York: Burt Franklin, 1971, p. 417-22.

12 Para Roberto Martins, Minas apresentava taxas negativas de crescimento natural, desta forma, as importações seriam as únicas responsáveis pelo aumento da população escrava. O autor só detectou duas regiões que fugiam a esse aspecto, o Sul dos Estados Unidos e Barbados. Martins explica o apego de Minas à escravidão pela reformulação parcial do “fator Wakefield”, segundo o qual a escravidão era implantada em regiões caracterizadas por abundância de terras cultiváveis e facilmente apropriáveis por qualquer homem livre, desde que fosse possível produzir mercadorias de valor relativamente alto no mercado internacional. Para o autor, Minas Gerais representou um caso em que o componente de produção para exportação não foi necessário à permanência de um regime escravista; o essencial foi a existência de recursos abundantes e a constante dis-ponibilidade de terras. MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX..., op. cit., p. 187.

13 MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In: SZMRECSÁNYI, Tamás; LAPA, José Roberto do Amaral. História econômica da independência ao império. São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 103.

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participavam do complexo, gerando, desse modo, divisas para a Província. Além disso, segundo Slenes, há um problema na exposição de Martins: determinar a origem da disponibilidade de capitais para custear as grandes importações de es-cravos por uma economia tão pouco mercantilizada. Como explicar que essa eco-nomia de subsistência gerou recursos para maciças importações de escravos, e que, a partir de 1850, passaram a ter uma tendência sempre crescente nos seus preços?14

Nesse debate, a própria diversidade econômica da Província de Minas obsta a ge-neralizações. Se havia grandes extensões territoriais, onde predominava a pecuária de corte com baixa utilização de mão de obra escrava, havia também uma pequena porção do território mineiro em que se praticava a cafeicultura nos padrões clássicos.

A incômoda combinação de um baixo grau de mercantilização e pesadas importações de cativos também preocupou Francisco Vidal Luna e Wilson Cano, para quem, no baixo grau de mercantilização, reside a explicação do imenso número de escravos. De acordo com os autores a violenta diminuição da taxa de exploração e o relaxamento dos costumes (mestiçagem e casamentos) permitiram o crescimento demográfi co.15

Sobre esses problemas, Douglas Libby ofereceu outras explicações. Em primeiro lugar, defendeu que as atividades de transformação nos “setores dinâmicos” libe-raram a Província de certas importações custosas, permitindo um ganho adicional. Concordando com Luna e Cano, quanto às causas das taxas positivas de crescimento da população mancípia, Libby acrescentou que o apego à escravidão se deveu a um complexo histórico, que foi a transformação de um determinado regime escravista regional. A diversifi cação da economia mineira e a importância do setor da agricul-tura de subsistência, mercantilizada ou não, bem como o desenvolvimento de uma protoindústria constituíram não uma mera resposta à independência econômica do campesinato, como quer Martins, e sim uma reação secular, específi ca da organização econômica e social escravista de Minas, à crise que lhe tirou a razão de ser original. A esse processo Libby chama “economia de acomodação”.16

14 SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes..., op. cit.15 LUNA, Francisco Vidal; CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. Cadernos IFCH/

UNICAMP, v. 10, out 1983, p. 1-14.16 LIBBY assinala a anterioridade desta posição em Celso Furtado. LIBBY, Douglas Cole. Trans-

formação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. O autor tem também em conta a crítica do censo de 1872, feita por PAIVA, Clotilde Andrade; MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisão crítica do recenseamento de 1872. Anais do Segundo Seminário sobre Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1983, p. 149-63.

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Ainda a esse respeito, Clotilde Paiva e Douglas Libby questionam a noção, para eles convencional, da dependência do tráfi co negreiro internacional para manter ou aumentar as populações escravas. Segundo esses pesquisadores, o tráfi co de escravos e a sua reprodução natural não são mutuamente excludentes. Analisando Minas Gerais, tanto antes como após o término do tráfi co negreiro internacional, os autores argumentam que a orientação da economia mineira para o mercado interno favorecia o crescimento reprodutivo natural. Essa reprodução acontecia, mesmo levando-se em conta os efeitos adversos do comércio atlântico.

Paiva e Libby utilizam-se de Listas Nominativas e constatam que, na década de 1830, a população escrava de Minas Gerais se sustentava, em parte, por meio da reprodução natural, e, mais, que uma geração após o término do tráfi co se encontrava plenamente reprodutiva.

O fl uxo de escravos para Minas deve ter fi cado bastante reduzido durante as últimas dé-cadas do século XVIII e a primeira década do XIX. Se esta hipótese é correta, signifi caria que a população escrava experimentou um hiato de quase duas gerações durante o qual as infl uências ‘negativas’ do tráfi co negreiro internacional fi caram bastante diminuídas. Neste caso, avanços em direção à reprodução natural deveriam ter ocorrido e teriam consequências importantes quando do novo aumento do volume de entradas de africanos. Uma grande e relativamente estável população crioula estaria se reproduzindo e, até um certo tempo, poderia ter absorvido uma parcela do novo contingente africano nos padrões de reprodução ou, ao menos, ter resistido à ‘investida’ dos recém-chegados.17

Luiz Paulo Nogueról, em estudo sobre a localidade mineira de Sabará, de 1850 a 1887, identifi cou que em uma região, com um mercado menos dinâmico, houve a possibilidade de obtenção de taxas de crescimento natural positivas, agregadas à importação de africanos. Embora se atenha ao caso de Sabará, aventou a pos-sibilidade de que esse podia ser um fenômeno mineiro e não apenas sabarense. Em sua argumentação, para comprovar as estratégias de reprodução natural em Sabará, utiliza-se, sobretudo, de duas conclusões para reforçar tal hipótese, que residiam nos preços das escravas e dos recém-nascidos de ambos os sexos. Na primeira delas, alegou que, naquela localidade, após a Lei do Ventre Livre, houve uma queda nos preços das cativas, “o que atribuímos à eliminação dos ganhos com a procriação de escravos”.18 A segunda se baseou nos preços dos recém-

17 PAIVA, Clotilde A.; LIBBY, Douglas C., Caminhos alternativos..., op. cit., p. 213.18 NOGUERÓL, Luiz Paulo Ferreira de. Economia escravista..., op. cit., p. 101. O pesquisador se

baseou na metodologia empregada por Fogel e Engerman em seus estudos sobre os preços de cativos no Sul dos Estados Unidos. “(...) optamos por verificar a hipótese de que os escravos recém-

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-nascidos, que se mostraram positivos entre os anos de 1850 e 1872, deixando de sê-lo a partir de 1873. “Isto porque a libertação aos 21 anos de idade dos fi lhos das escravas, a partir de 1872, impediria a amortização completa dos investimen-tos realizados em crianças”.19 Em suma, o pesquisador defendeu a ideia de que

(...) predominavam em Minas Gerais regiões que, nos termos de Barros de Castro, eram residuais ou membros efetivos da cadeia, o que permite a coexistência de um mercado interno menos dinâmico com uma dependência demográfi ca menor com relação à repro-dução local da força-de-trabalho.20

Horácio Gutiérrez, estudando a demografi a escrava no Paraná, entre 1800 e 1830, sugeriu que o estudo de regiões não ligadas à economia de exportação permite vislumbrar dois movimentos demográfi cos na população escrava: o pri-meiro, típico das regiões de grande lavoura, o segundo mais próximo das regiões econômicas não exportadoras. Neste último a reprodução demográfi ca se daria sem que o recurso ao tráfi co fosse decisivo, hipótese compartilhada por Jonas Rafael dos Santos, que, em seu estudo sobre Mogi das Cruzes (SP) no princípio do XIX, afi rma existir uma associação entre reprodução natural e economia vol-tada para o mercado interno.21 Carlos Bacellar e Ana Silvia Scott concluíram que

A relação entre fatores econômicos e a escravidão fi ca patente ao surpreendermos a presença da criança no interior dos plantéis. Nas vilas de subsistência e abastecimento interno, as crianças, até 7 anos de idade, representavam de 18 a 20% do total dos cativos, isto é, por volta de 1/5 do grupo. Para a região canavieira, esta proporção cai para uma faixa entre 9 e 12%.22

Tarcísio Botelho encontrou evidências do processo de reprodução natural entre os escravos, em Montes Claros, norte de Minas Gerais, ao longo do século XIX. Em uma economia baseada na pecuária e voltada para o mercado interno,

-nascidos em Minas Gerais obtinham preços relativos maiores do que zero, o que seria condição necessária, porém não suficiente, para que houvesse estímulos, ou se encontrasse desimpedida a procriação dos cativos. Se os preços desta classe de escravos não fossem significativamente diferentes de zero, então haveria razões econômicas para que os escravistas dificultassem ao máximo as gestações e uniões entre os escravos” (p. 1).

19 Idem, Ibidem.20 Idem, Ibidem, p. 49.21 GUTIÈRREZ, Horácio. Demografia escrava..., op. cit.; SANTOS, Jonas Rafael dos. Senhores e

escravos:..., op. cit.22 BACELLAR, Carlos de Almeida; SCOTT, Ana Silvia Volpi. Sobreviver na senzala: estudo da

composição e continuidade das grandes escravarias paulistas, 1798-1818. In: NADALIN, Sérgio Odilon; et. alii (Coords.). História e população: estudos sobre a América Latina. São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990, p. 214.

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desenvolveram-se, segundo ele, as possibilidades para a ocorrência de processos de reprodução natural. Em suma, o autor constatou que a localidade conseguiu preservar e mesmo expandir seu contingente cativo ao longo do Oitocentos.23 Botelho cita o seguinte:

A nosso ver, fi ca claro que, do ponto de vista senhorial, a reprodução natural é uma compo-nente que entra positivamente em seus cálculos econômicos. Muitos a adotam como estraté-gia única de manutenção e ampliação do plantel. Outros, mesmo lançando mão do mercado, não desprezam sua importância. (...) parece signifi car também a manutenção da família escrava. Constantemente preservada, vemos casos de gerações que se sucedem dentro de um mesmo plantel, trazendo à vida dos cativos nela integrados um grande fator de estabilidade.24

Na Província de São Paulo, Herbert Klein e Francisco Vidal Luna, em tra-balho sobre a sociedade e a economia escravista daquela região entre os anos de 1750 e 1850, atentaram para a importância do café como “mola” impulsionadora do crescimento da população escrava. Para atender à demanda cada vez maior por mão de obra, a solução foi o tráfi co de escravos, vindos da África, e que se tornaram maioria. De acordo com os pesquisadores,

Em razão da idade e sexo desses imigrantes, a população cativa local não apresentava con-dições de se sustentar por crescimento natural. O crescimento da população escrava ocorria essencialmente por um grande afl uxo de africanos. Estes constituíam entre 60% e 70% da força de trabalho cativa ocupada na cafeicultura. Mesmo nas atividades não-agrícolas, em fi ns da década de 1820, os africanos compunham metade da força de trabalho.25

Juliana Garavazo também apontou para a reprodução natural como possi-bilidade de aumento da população cativa de Batatais (SP), na segunda metade do Oitocentos. Verifi cou-se, naquela localidade, uma signifi cativa participação de cativos menores de quinze anos, e, ainda, um menor desequilíbrio sexual na população escrava.

(...) notou-se uma tendência no sentido da maior proporção de escravos brasileiros à medida que se distanciava da data de proibição da entrada de escravos trazidos da África em território brasileiro (...), apesar dos africanos estarem presentes em pequeno número mesmo nas primeiras décadas subsequentes a tal medida (anos 1850 e 1860), atingindo, respectivamente, 24,2% e 31,0% do total. Neste caso, pode-se sugerir que os proprietá-

23 BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias:..., op. cit.24 Idem, Ibidem, p. 232.25 LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Evolução da Sociedade e Economia Escravistas de

São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 93.

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rios batataenses não recorreram sistematicamente ao mercado de escravos africanos para formação de seus plantéis enquanto este tipo de transação ainda era legal.26

Esse parece ter sido o panorama do tráfi co até a primeira metade do século XIX. Na segunda metade, ele ganhou outras “feições”. Houve a necessidade de obter mão de obra para as regiões onde havia um maior dinamismo econômico, principalmente as vinculadas a produtos que pudessem reverter lucros, utilizando--se do trabalho cativo, como por exemplo, o café. Dessa forma, os senhores de escravos e os trafi cantes passaram a utilizar, com mais vigor, os tráfi cos inter-provinciais, intraprovinciais e/ou locais para a aquisição do produto, como foi o caso das Províncias do Rio de Janeiro, de São Paulo e Minas Gerais.27

Vale salientar que muito dessa proeminência se deveu a crises enfrentadas por outras Províncias do Império, o que possibilitou a transferência de cativos em direção às áreas deles necessitadas.28 A partir de então, os senhores tiveram de utilizar outros mecanismos, visando novas aquisições. Sem se desconsiderar o contrabando, ganhou mais dinamismo, sobretudo a partir da segunda metade do XIX, a opção pelo tráfi co, fosse ele interprovincial, intraprovincial ou local. Sobre o período após 1850, Hebe Mattos esclareceu que, “(...) desde 1850, com a extinção do tráfi co africano, a propriedade escrava – antes amplamente disseminada entre a população livre – passa a concentrar-se, por causa da alta do preço do cativo, nas mãos de grandes senhores das províncias cafeeiras”.29

26 GARAVAZO, Juliana. Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista: Batatais, 1851-1887. Disser-tação de Mestrado, História Econômica, FFLCH, USP, 2006, p. 155.

27 Cf., entre outros, SLENES, Robert W. The demography and economics…, op. cit.; COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à Colônia, op. cit. O tráfico interno já existia em período anterior, contudo, era reduzido, e contou primeiro com a mão de obra da população nativa. “Quando o tráfico africano terminou, uma sociedade complacente ajustou-se à nova realidade com um vasto e espontâneo aumento no movimento interno dos escravos, consequência da procura constante de mais escravos na região do café e de atitudes imutáveis no que se refere à própria instituição da escravatura”. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 64.

28 CONRAD, Robert. Os últimos anos..., op. cit.29 MATTOS, Hebe Maria. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: ALENCASTRO,

Luiz Felipe de. História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia da Letras, 7ª reimpressão, 2004, p. 343. De acordo com Herbert Klein, Kátia Mattoso e Stanley Engermann: “O aumento brusco dos preços de escravos no Brasil não deve ser atribuído apenas ao fim do tráfico, mas também, e ainda mais importante, àquelas forças que aceleraram a demanda por mercadorias produzidas por escravos e com isso aceleraram a demanda por escravos. A expansão econômica europeia dos anos 50 em geral afetou os preços de escravos em todas as Américas”. MATTOSO, Kátia Queiroz; KLEIN, Herbert; ENGERMAN, Stanley L. Notas sobre as tendências e padrões dos preços de alforria na Bahia, 1819-1888. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 68.

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Com relação à Província mineira, é interessante notar o alerta de Tarcísio Botelho: “(...) é necessário perceber melhor as possíveis diferenças entre as várias regiões mineiras, de modo a relativizar o peso seja do tráfi co seja da reprodução natural na recomposição e/ou expansão das escravarias”.30

No caso da Província do Rio de Janeiro, Ricardo Salles, baseando-se princi-palmente no Relatório do Presidente dessa Província, de 1851, chegou à hipótese de que houve

(...) dois processos distintos, ainda que interligados, na dinâmica demográfi ca da popu-lação escrava, uma africana e outra crioula. A primeira, predominante e determinante, a segunda, subordinada. Uma encobrindo a outra. A africana, masculina, adulta, com maior proporção de homens, dependente da alimentação do tráfi co para sua reprodução. A crioula, mais equilibrada do ponto de vista sexual e etário, a longo prazo apresentando condições potenciais de reprodução natural positiva.31

O município de Juiz de Fora, objeto de estudo neste artigo, foi detentor do maior contingente de cativos no correr do século XIX na Província de Minas Gerais, e essa característica ajuda a tecer novas considerações em relação a esse debate.32 A análise das escravarias das três famílias senhoriais, encabeçadas por Antonio Dias Tostes, Comendador Francisco de Paula Lima e Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage, que consideramos representativas no tocante aos grandes proprietários da Mata Mineira, nos possibilita detectar quais as estraté-gias adotadas por eles para a composição de suas escravarias. Permite também demonstrar quais as opções (tráfi co e/ou reprodução natural) de que se valeram as ditas famílias para a manutenção e/ou a ampliação de suas posses.

Segundo Ângelo Alves Carrara, a Zona da Mata Mineira era, àquela época, uma área contígua ao Vale do Paraíba Fluminense,33 próxima ao porto do Rio de Janeiro, de onde eram escoadas as levas de escravos chegados do continente

30 BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias:..., op. cit., p. 232.31 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração

do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 171.32 A esse respeito, entre outros, ver ANDRADE, Rômulo Garcia de. Limites impostos pela escra-

vidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX. Tese de Doutorado, USP, 1995; GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – MG, 1828-1928). São Paulo; Juiz de Fora: Annablume; Funalfa Edições, 2006; LACERDA, Antonio Henrique Duarte. Os padrões de alforrias em um município cafeeiro em expansão: Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-1888. São Paulo: Fapeb; Annablume, 2006.

33 CARRARA, Angelo Alves. A Zona da Mata de Minas Gerais: diversidade econômica e continu-ísmo (1839-1909). Dissertação de Mestrado. História, Universidade Federal Fluminense, 1993.

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africano. A análise dessa região – não só por sua importância econômica e de-mográfi ca, mas também pela geográfi ca, que, sem dúvida, contribuiu para suprir as posses de escravos encontradas naquela área – permite perceber de que forma o tráfi co infl uiu na composição das propriedades da localidade e – por que não dizer – da província mineira como um todo.

O tráfi co de escravos está entre os motivos que explicam o grande contin-gente deles na província mineira durante o século XIX, oriundos, num primeiro momento, do continente africano e, depois, do tráfi co nacional interno. Segundo França Paiva,

O tráfi co africano abastecia todas as categorias, mas nas maiores, além dos cativos impor-tados, houve uma grande quantidade de nascimentos. Isto aponta para uma prática comum de formação de famílias dentro das posses de cada senhor e para a reprodução natural da mão de obra como importante estratégia de renovação e ampliação dos contingentes de indivíduos mancípios.34

Claro está que as duas possibilidades, reprodução natural e tráfi co, podem não ter sido excludentes, mas complementares, e é isto também que o artigo pretende averiguar.

Reprodução natural e/ou tráfico de escravos?De acordo com os Livros de Registro de Batismo, que se encontram na Ca-

tedral e na Cúria Metropolitana de Juiz de Fora, o Capitão Antonio Dias Tostes35

34 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural..., op. cit., p. 147.35 Antonio Dias Tostes, então com 55 anos de idade, era de longe o maior possuidor de cativos

daquela localidade, de acordo com o recenseamento de 1831. A maioria esmagadora destes foi descrita como africano/africana e representava o maior número dos cativos existentes naquele fogo – 126. Em seguida vinham os descritos como crioulos, num total de 19, o recenseador incluiu nesse grupo dois escravos descritos como pardos. Esses números absolutos demonstram a grande supremacia de homens e mulheres africanos em relação aos crioulos e pardos. Nessa propriedade havia uma maioria de cativos do sexo masculino, tanto entre africanos quanto entre crioulos, 73,0% e 57,9%, respectivamente. No entanto, é preciso ressaltar que os africanos eram quase três vezes mais do que suas parceiras de mesma origem. As cativas africanas (27,0%), embora possuíssem um percentual menor do que as crioulas (42,1%) eram em números absolutos mais representativas do que estas últimas. Esse fogo contava ainda com duas cativas designadas como pardas, que representavam a totalidade dos descritos como pardos. Na faixa de 1-14 anos, encontram-se 35 cativos, vinte e três escravos africanos, 65,7%; oito crioulos, 28,6% e as duas pardas, 5,7%. Na segunda faixa etária (15 – 40 anos), e a que abrigava o maior número dos cativos de Antonio Dias Tostes àquela época (105), estão inclusos 99 africanos, 94,3%, e seis crioulos 5,7%. Finalmente a última (41 + anos), e a que contempla o menor número de cativos (07), possuía quatro africanos, 57,1% e três crioulos, 42,9%. É nesta faixa etária onde se encontravam os libertos Antonia crioula e Ambrosio africano. Cf. FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira

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levou ao batismo, entre os anos de 1818 e 1832, 10 cativos nascidos em suas posses, sendo 6 meninos e 4 meninas. Não encontramos sua primeira esposa, Dona Anna Maria do Sacramento, fazendo o mesmo. Porém, sua segunda espo-sa, Dona Guilhermina Celestina da Natividade, levou 1 escravo e 5 escravas ao batismo, na década de 1850.

O Capitão Tostes parece não se ter valido da reprodução natural de escravos para ampliar sua posse, já que, nas Listas de 1831, a maioria dos componentes do plantel era proveniente da África e estava na faixa acima dos quinze anos. Havia um número não desprezível de crianças (1 – 14 anos) que era, no ano do recenseamento, de 35. O conhecimento de 10 nascimentos deixa antever que tal propriedade contou com muitas crianças cativas, naquela faixa etária (20 ao todo), oriundas do continente africano, quem sabe, trazidas para cá até com algum de seus pais. Essa hipótese reforça a percepção de que Antonio Dias Tostes procurava ampliar e manter sua posse por meio da compra de indivíduos provenientes do tráfi co internacional, na primeira metade do século XIX.

Entre a Lista de 1831 e a partilha dos bens de D. Anna Maria do Sacramento, em 183736, houve um acréscimo no número de crianças, o que fi ca perceptível com os 14 recém-nascidos (menores de 1 ano) de que pudemos ver o registro, embora não a tenhamos encontrado levando nenhum ao batismo. Entretanto, parece que ela continuou contando com a compra de escravos, provenientes do tráfi co, já que sua força de trabalho entre os jovens/adultos aumentou. Mesmo se conside-rarmos que a faixa das crianças – que, em 1831, era de 35 cativos e, em 1837, de 30 – tenha contribuído para esse aumento, ainda assim houve crescimento,

oitocentista. Tese de Doutorado, História, Universidade Estadual de Campinas, 2009, p. 68.36 No ano de 1837 ocorreu a partilha dos bens da primeira esposa de Antonio Dias Tostes, Dona

Anna Maria do Sacramento. Quanto à origem dos cativos, esta fonte demonstra que a grande maioria da escravaria dessa família continuava a ser composta por africanos, 108, os crioulos eram 33. Mesmo entre aqueles dos quais não foi possível conhecer a origem, os homens suplan-tam as mulheres, sendo 28 homens, 63,6% e 16 mulheres, 36,4%. Os africanos que eram quase três vezes mais do que as africanas em 1831, já em 1837 eles haviam alcançado esta cifra. Os crioulos e crioulas que se equilibravam no ano do recenseamento, tinham agora uma supremacia dos homens, respectivamente, 66,7% e 33,3%. Com relação a faixa etária, entre 1831 e 1837, um aumento entre os cativos por nós considerados como jovens/adultos e uma diminuição nos denominados como crianças. Sem deixar de lado outras possíveis variáveis, para uma explicação a essas oscilações como a fuga, morte, venda de escravos, talvez isso possa ter acontecido pelo fato de essas crianças terem atingido os quinze anos de idade, levando-os a compor a faixa dos jovens. Os idosos permaneceram em mesmo número. Entretanto, se agregarmos às crianças os recém-nascidos, verificamos que aquela escravaria possivelmente contou no intervalo de tempo entre as duas fontes com um aumento de sua posse por meio do nascimento de cativos. Todavia, seria necessário o conhecimento das taxas de natalidade e mortalidade geral, para saber qual a taxa de aumento dessa população por meio da reprodução natural. Idem, Ibidem, p. 69.

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em virtude da compra de africanos. Do ponto de vista da lógica senhorial dessa família, parece claro que a mão de obra cativa se tornou maior por importação.

De acordo com os passaportes e os despachos emitidos na primeira metade do Oitocentos, pela Intendência de Polícia da Corte, Tostes levou para Minas Gerais 96 escravos.37 Em 24 de janeiro de 1829, comprou 22; no ano de 1830, foram outras três remessas, duas em janeiro e uma em abril, respectivamente, de 20, 20 e 34, todos escravos novos, conforme consta das fontes.38 Sem dúvida, a família Tostes utilizou como estratégia de manutenção e/ou ampliação de suas posses o re-curso do tráfi co atlântico, por meio da compra na Corte, constituindo-se, conforme demonstrou Fabio W. Pinheiro, como uma das famílias da Mata Mineira que mais se utilizou desse tipo de reposição da mão de obra cativa. De acordo com Pinheiro:

Minas Gerais entre 1809 e 1830 foi o principal destino dos escravos, onde 40% das almas despachadas do Rio de Janeiro se dirigiram para este território, enquanto na província fl uminense este índice foi de 36%. Mais do que isso, verifi camos também que dos escravos remetidos 97,8% eram africanos novos, se mostrando, assim, como um precioso indício da forte vinculação entre o tráfi co Atlântico e a economia mineira.39

Outro daqueles grandes proprietários, o Comendador Francisco de Paula Lima40, levou ao sacramento do batismo, entre os anos de 1841 e 1862, 7 cativos. Nove anos se passaram e só mais tarde, precisamente em 1871, sua viúva levou 1 escravo para ser batizado. Os dados disponíveis mostram certo incremento da comunidade cativa, sobretudo enquanto o Comendador estava vivo. No entanto, entre a sua morte, em 1865, e a de sua viúva, em 1877, esse aumento, se ocorreu,

37 Para um conhecimento a respeito dessa documentação, bem como das possibilidades e das “ar-madilhas” oriundas dessas fontes, conferir: FRAGOSO, João Luis; FERREIRA, Roberto Guedes. Alegrias e Artimanhas de uma fonte seriada, despacho de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819-1833. Seminário de História Quantitativa e Serial no Brasil: um balanço. Ouro Preto: ANPUH-MG, 2001.

38 Respectivamente, Códice 421, v. 21, p. 255v; Códice 424, v. 04, p. 27; Códice 424, v. 04, p. 28; Có-dice 424, v. 04, p. 114. Arquivo Nacional (disponível no bando de dados do IPEA, em CD-ROM).

39 PINHEIRO, Fabio Wilson Amaral. O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis mineiros, Zona da Mata (c.1809 – c.1830). Dissertação de Mestrado, História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 148-149.

40 O Comendador Francisco de Paula Lima, patriarca da família Paula Lima, falecido no dia 26 de novembro de 1865, possuiu uma propriedade majoritariamente masculina, onde os homens so-mavam 68,1% da posse e as mulheres 31,4%. Para um indivíduo, 0,5%, não foi possível conhecer o sexo. Nesta posse também houve uma maior concentração de cativos entre os jovens/adultos (15-40 anos), com 136 escravos. Logo depois, vinham os 35 idosos, seguidos por 29 crianças e apenas 01 recém-nascido. Os escravos descritos como crioulos eram 19, dois deles procedentes da Bahia. FREIRE, Jonis. Escravidão e família..., op. cit., p. 76.

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foi por meio de outras estratégias de manutenção e/ou ampliação de suas posses de cativos, já que, D. Francisca Benedicta de Miranda Lima levou apenas 1 escravo ao batismo.41 Talvez a explicação para tal hiato tenha ocorrido por dois motivos que, diga-se de passagem, podem não ser excludentes. Primeiro, pode ter havido nascimento de crianças no interior daquela propriedade, não tendo havido tempo de tais batismos serem lavrados nos Livros de Registro, devido à morte precoce daqueles infantes. Pode também ter acontecido outro evento, qual seja, o batismo de crianças cativas pertencentes aos herdeiros, depois da partilha dos bens do Comendador, e, a partir de então, o pároco anotava como sendo eles os proprietários de tais inocentes. Outra hipótese diz respeito aos ingênuos nascidos pós-1871, que, segundo a Lei do Ventre Livre, eram livres e, portanto, não teriam sido batizados como pertencentes àqueles indivíduos.

41 No ano de 1877, aos 27 dias do mês de outubro, faleceu a viúva do Comendador Francisco de Paula Lima, Dona Francisca Benedicta de Miranda Lima. De acordo com o inventário da mesma, esta senhora possuía à época 130 cativos, o documento listou ainda, nove ingênuos. Passados onze anos, desde o inventário do Comendador, percebemos um decréscimo no número de escravos, o que não é de se espantar se consideramos que neste intervalo de tempo houve a partilha dos bens daquele senhor, inclusive os escravos, no ano de 1866. Logicamente podem ter existido outros fatores que levaram a essa baixa no número de cativos, como vendas, óbitos e dívidas. Ainda po-demos encontrar mais homens do que mulheres escravas, todavia, apesar da diferença, os números tendem mais a se equilibrar. Houve uma diminuição no número total de homens com relação às mulheres. Enquanto estes diminuíram, mais ou menos em torno de 10%, estas aumentaram na mesma proporção. As alterações das percentagens nas três faixas etárias se deveram, dentre outros motivos, pela própria variação de tempo, ou seja, houve ali uma mudança dos cativos em suas faixas de idade. Muitos dos cativos que conseguiram sobreviver e estavam, por exemplo, na faixa dos recém-nascidos em 1866, com o passar dos anos passaram a integrar a faixa das crianças, enquanto que os desta faixa eram em 1877 jovens/adultos, e assim sucessivamente. Tanto no inven-tário do Comendador Francisco de Paula Lima, quanto no de sua esposa, D. Francisca Benedicta de Miranda Lima, um pequeno percentual de africanos com procedência conhecida. Parece que a posse de escravos envelheceu, entretanto, este envelhecimento deve ser matizado, pois as crianças nascidas após a Lei do Ventre Livre de 1871, nove ingênuos, que a partir de então eram livres, não foram computadas. A análise das duas Tabelas parece corroborar essa “passagem” entre as faixas. Em 1866 eram 32 crianças e um recém-nascido, 16,1% do total de escravos, já em 1877 esse número caiu para nove, 7%. Isso fica ainda mais perceptível nas faixas dos jovens/adultos e na dos idosos. Enquanto a primeira possuía 136 cativos, 66,6%, passou a contar em 1877, com 57 escravos, 43,9%; a segunda teve sua percentagem aumentada, de 35 idosos 17,7%, abarcou em 1877, 59 cativos, 45,4%, passando a contar com a maior percentagem do total de cativos neste ano. No período em que a mão de obra escrava sofreu um aumento no preço dos cativos, sobretudo pelo fim do tráfico internacional, seria inviável, pelo menos do ponto de vista econômico, que depois da morte do Comendador, sua esposa ou herdeiros tivessem investido seus capitais em cativos com idades acima dos quarenta anos. Esta mudança pode demonstrar uma manutenção da comunidade escrava. Muitos dos cativos que habitaram a posse do Comendador durante seu ciclo de vida, inclusive suas famílias, devem ter continuado nesta propriedade até o momento da morte de D. Francisca Benedicta de Miranda Lima, ou quem sabe até mais. Idem, Ibidem, p. 77-78.

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Situação completamente diferente ocorreu com a propriedade do Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage.42 Entretanto, antes de entrarmos na análise de suas estratégias, é necessário que façamos algumas ressalvas a respeito desse senhor. Quando analisávamos os Livros de Registros Paroquiais de Batismo da Freguesia de Simão Pereira, deparamo-nos com o registro de vários cativos, cujo proprietário era Manoel Ignácio Barbosa ou, às vezes, Manoel Ignácio de Barbosa. Inicialmen-te, acreditamos que poderia ser um fi lho do Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage ou outro indivíduo qualquer, parente ou não dele. Entretanto, no decorrer do le-vantamento dos dados, mais e mais nos convencíamos de que era a mesma pessoa.

Isso ocorreu por vários motivos, primeiro, porque todas as grafi as diziam res-peito a um indivíduo residente na Freguesia de Simão Pereira, local de moradia do Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, o que pode ser comprovado nos autos de seu inventário. Posteriormente, conseguimos encontrar Manoel Ignácio Barbosa, levando fi lhos à pia batismal com sua esposa, D. Florisbella Francisca de Assis Barbosa, foi esse o caso de seu fi lho Manoel Ignácio Barbosa Junior, batizado na Matriz de Nossa Senhora de Simão Pereira, fi lho legítimo do casal. A esposa tinha o mesmo nome da cônjuge do Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage, inventa-riante de seu marido, chamada Dona Florisbella Francisca de Assis Barbosa Lage.

Ao que parece, o Capitão e sua esposa, em algum momento de sua história de vida, devem ter somado a seus nomes o sobrenome Lage, ou, quem sabe, esse sempre existiu e foi “esquecido” pelos responsáveis pela feitura dos assentos

42 Outra das posses de escravos pesquisadas, qual seja a do Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage, era composta, segundo seu inventário, em sua maioria por homens, 64,4%, as mulheres constituíam 35,6% de sua propriedade. Sobre a origem dos escravos pertencentes ao Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, para um grande número não foi possível determinar esta variável. Para aqueles onde conseguimos averiguar esta informação observamos que os homens foram, em sua maioria, classificados como crioulos, num total de 31 indivíduos, que corresponde a 26,3%. Os designados como africanos totalizavam 30 indivíduos, 25,4% do total da posse. As mulheres da mesma forma, em sua maior parte foram designadas como crioulas, 20 ou 16,9%, as africanas eram 03, e representavam 2,5% do total de 118 cativos. Os cativos para os quais esta informação não consta perfaziam 34 escravos 28,8%. Dezoito anos após o fim efetivo do tráfico de escravos para o Brasil, a grande maioria dos cativos dessa posse, onde foi possível se saber a origem, era composta por escravos nascidos no Brasil (43,2%). Quando averiguamos o sexo e a faixa etária onde se encontravam os cativos verificamos uma distribuição sempre maior dos homens em todas as faixas etárias, com exceção dos recém-nascidos que eram 03 meninos e 03 meninas. Na faixa das crianças havia 15 homens e 12 mulheres; na dos jovens/adultos, 37 homens e 21 mulheres; entre os adultos, respectivamente, 20 e 06. Havia ainda 01 homem sem idade conhecida. Os africanos foram designados apenas como de nação, portanto, não pudemos traçar qual a procedência destes indivíduos. O conhecimento deste aspecto foi possível para apenas três cativos do sexo masculino dois deles designados como carioca e o outro como pernambucano, provavelmente oriundos do tráfico interprovincial. Idem, Ibidem, p. 80-81.

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paroquiais. Essa última hipótese parece-nos mais plausível, pois, voltando ao inventário desse senhor, temos a oportunidade de saber que era fi lho legítimo do Furriel Domingos Antonio Barbosa Lage e de Dona Rosa Maria de Jesus. Aliás, no ano de 1830, Manoel Ignácio Barbosa, juntamente com sua esposa Florisbella Barbosa, levou sua fi lha legítima, de nome Maria, ao batismo, e o padrinho foi registrado como Domingos Antonio Lage, provavelmente, o furriel, pai do Ca-pitão Manoel, que também teve parte de seu nome “esquecido”. Outra hipótese que pode ser levantada é a de que, na verdade, a ausência do sobrenome “Lage” nunca foi esquecida. Manoel Ignácio Barbosa, ou Barbosa Lage, era um senhor importante naquela localidade, que, futuramente, viria a obter a patente de capitão. Talvez pelo fato de ser tão conhecido e importante pudesse “prescindir” de seu sobrenome. Seu poderio econômico, político e fi nanceiro deveria dispensá-lo, pelo menos naquela região, de seu nome e sobrenome.

Outra questão importante diz respeito ao desaparecimento do Capitão Ma-noel Ignácio de Barbosa Lage e das outras variações onomásticas descritas após o mês de março de 1868. Lembremo-nos de que o Capitão faleceu no dia 3 do dito mês e ano. A partir de então, encontramos escravos sendo batizados pelos herdeiros do Capitão e por sua viúva, D. Florisbella. Esses aspectos podem-se caracterizar como indícios fortes de que tais variações diziam respeito à mesma pessoa. Consideramos, então, que o Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage foi nomeado de três formas diferentes. Portanto, reputamos todas as variações como sendo representativas de um mesmo indivíduo.

Pois bem, se nosso raciocínio, baseado em tais evidências, está correto, o Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage levou ao sacramento do batismo um im-pressionante número de crianças escravas. De acordo com os registros paroquiais foram 62 inocentes, o que corresponderia a 52,5% do total de 118, descritos em seu inventário, caso todos ainda se encontrassem vivos e naquela posse. Existiu, ainda, 1 escravo adulto que foi levado à pia batismal.

Embora houvesse um alto percentual de cativos com origem não descrita, acreditamos que deviam ser escravos nascidos no Brasil. O impacto da reprodução natural pode ser reforçado na análise da propriedade que possuía, entre os recém--nascidos e as crianças, um total de 33 escravos, todos eles crioulos, ou seja, mais da metade do número levado ao batismo. Havia 01 cativo do sexo masculino sem idade conhecida. Tratava-se de Andalixto crioulo, fi lho de Prudência e Antonio Pedreiro, ou seja, mais um nascido naquela propriedade. Não seria impossível pensar que o restante dessas crianças estivesse, agora, entre jovens/adultos

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daquela posse. Vale destacar que as três variações do nome do Capitão Manoel iam levando escravos ao sacramento do batismo entre os anos de 1818 e 1868.

A partir dessa última data, encontramos 3 inocentes recebendo aquele sacra-mento católico, entre 1868 e 1870, constando como pertencentes aos herdeiros do Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage. Entre 1869 e 1878, foram 8 descritos como pertencentes à viúva, Dona Florisbella Francisca de Assis Barbosa Lage. Quatro desses nasceram depois da Lei do Ventre Livre.

Como já dissemos, é impressionante o número de cativos levados ao sacra-mento do batismo por essa família. Somando-se todos, temos 73 crianças sendo batizadas. Parece que os Barbosa Lage utilizaram, em suas posses, processos de reprodução natural, o que causou um enorme impacto na manutenção e/ou na ampliação delas.

Conseguimos conhecer os pais e/ou as mães de 37 daquelas crianças. Muitos deles possuíam fi lhos crioulos, que devem ter nascido dentro da propriedade. Dessa maneira, podemos encontrar Antonio pedreiro e Prudência com seus 6 fi lhos; Nicolao crioulo e Theodora, com 5 crianças; Matheos de Nação e Clemên-cia, com 4; Racheo de Nação e Minelvina parda: cada uma com 3 fi lhos. Com 2 crianças descritas como seus fi lhos, encontramos ainda Catharina e Bartholomeo, Fidelis de Nação e Margarida [ininteligível?] de Nação e Roza, Silvério de Nação e Juliana, e Joaquina de Nação. Os outros cativos aparecem registrados juntos, cada um com apenas um rebento mencionado. Eram eles: Adão de Nação e Flora, Jerônimo crioulo e Lusia, Bernardino de Nação e Maximiana, Felippe carioca e Custódia, Heliodoro e Delphina, Lino de Nação e Constança. Se nossas hipóteses realmente estão corretas, parece que aquela posse contou com uma comunidade escrava bem enraizada e, quem sabe, baseada em relações de afetividade, amizade e solidariedade bastante fortes, com famílias preservadas, possibilitando àqueles indivíduos certa estabilidade.

A análise dos Livros de Notas e Escrituras Públicas permitiu averiguar como se deu a manutenção e/ou a ampliação dos cativos daquelas famílias, bem como qual ou quais os sentidos do tráfi co, os setores da economia que demandavam aquela mão de obra, além de dados, como sexo, origem, idade, preço dos cativos, etc. Esse corpus documental foi de vital importância para o estudo do potencial escravista de uma determinada região e época.

Nesse aspecto, é interessante salientar que os Paula Lima foram os que mais se desfi zeram de seus ativos em escravos. Os fi lhos do Comendador, ao que parece, não foram bons administradores de seus bens. Os encontramos levando muitos cativos à venda, inclusive, sob força de hipoteca e dívida. Nem o Comendador

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nem sua esposa venderam escravos, ao contrário, utilizaram o recurso da com-pra ou da cobrança de dívidas para o incremento de suas posses. Adquiriram, respectivamente, 17 e 13 cativos, em sua maioria homens.

O Capitão Manoel Ignácio obteve 5 escravos e não se desfez de nenhum. Talvez esse pequeno número, comprado por ele se justifi que pelo fato de ter podido contar, em sua propriedade, com o crescimento natural de escravos. Surpreendente é a aquisição de grande número deles por parte de seu fi lho, Dr. Antero José Lage Barboza, que obteve um total de 97, sendo 60 homens, 35 mulheres e 2, cujo registro do sexo não encontramos.

Nos Livros de Notas e Escrituras Públicas43 que pesquisamos, entre os anos de 1857 e 1886, foram encontrados 627 cativos comercializados por aquelas três famílias senhoriais, por meio de compras e vendas, hipotecas, penhor, dívidas, doação e procuração44 (Tabela 1).

Tabela 1 – Sexo e faixa etária dos escravos que foram parte de algum tipo de transação comercial feita pelos Dias Tostes, pelos Paula Lima e pelos Barbosa Lage, em Juiz de Fora, 1857-1886

SexoFaixa etária

Masculino % Feminino % Não Consta % Total %

Recém-nascido 01 0,2 01 0,4 - - 02 0,31-14 anos 56 14,1 32 14,0 - - 88 14,015-40 anos 237 59,9 139 60,4 01 100 377 60,141+ anos 61 15,4 17 7,4 - - 78 12,5

Não Consta 41 10,4 41 17,8 - - 82 13,1

Total 396 100 230 100 01 100 627 100

Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.

Esses cativos eram, em sua maioria, do sexo masculino (396). Existiram ainda 230 escravas. De 1 cativo não foi possível saber o sexo. Mais uma vez, nota-se a preferência pelos escravos do sexo masculino nas transações comer-ciais, ocorridas em Juiz de Fora. A soma dos cativos transacionados por aquelas

43 Foram pesquisados os Livros de Escrituras do Primeiro Ofício de Notas (1852-1889), inclusive os dos distritos pertencentes àquele município e também os do Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora (1856-1888). Cabe ressaltar que esses livros só trazem informações a partir da segunda metade do século XIX. Todos se encontram sob a guarda do AHCJF.

44 Essas são as transações comerciais mais comuns; cabe ressaltar que, na maioria das vezes, elas vêm descritas de maneiras diversas, como, por exemplo, Escritura de dívida obrigação e hipoteca especial, ou Escritura de doação como adiantamento de legítima, etc.

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famílias permite perceber que, de maneira geral, se continuava a dar preferência aos escravos entre 15-40 anos, fossem eles homens ou mulheres. Encontra-se também nessa faixa o cativo cujo sexo não foi possível conhecer. Seus valores percentuais foram, respectivamente, 59,9% e 60,4%. Apesar de haver maior percentagem em relação aos homens, as mulheres negociadas naquele período foram 139, enquanto os escravos somavam 237. É interessante verifi car que as mulheres com idades conhecidas tiveram, na faixa entre 1-14 anos, a segunda maior percentagem, 14,0%.45 Pode ser que, no momento dessas transações, os compradores tenham preferido adquirir essas “meninas” com potencial repro-dutivo maior do que as que tinham acima de 41 anos. Da mesma forma, esse potencial reprodutivo, que elevava o preço da escrava, pode ter levado aqueles que delas se desfi zeram, por venda, dívida, etc., a negociá-las mais do que as da faixa das idosas. Outra explicação residiria no fato de que essas mulheres, assim como os homens, trabalhavam no eito, o que pode ser comprovado por meio do conhecimento das ocupações desempenhadas por elas (Tabela 2).

45 O decreto 1.695 de 15/09/1869, em seu artigo 2º determinava: “em todas as vendas de escravos, ou sejam particulares ou judiciais, é proibido, sob pena de nulidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos” (Coleção das Leis do Império do Brasil). Algumas dessas “meninas” foram negociadas após essa data, o que talvez demonstre certa ineficácia da lei. Nos registros de compra e venda das mesmas não há menção a quaisquer tipos de relações familiares. Sobre essas questões: MOTTA, José Flavio. Jovens & Coisas: tran-sações envolvendo escravos de 9 a 17 anos de idade (Província de São Paulo, 1861-1887). In: SOARES, Marcio de Souza; FERREIRA, Roberto G.; FARIA, Sheila. S. C. I Colóquio Nacional Ordem e Ruptura em Debate: escravidão e alforria. UFF, 2011.

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Tabela 2 – Ocupação dos escravos negociados pelos Dias Tostes, pelos Paula Lima e pelos Barbosa Lage, em Juiz de Fora, 1857-1886

Ocupações Homens % Mulheres % Total %

Roceiro 16 30,8 11 29,0 27 30,0Serviço da lavoura 17 32,7 06 15,7 23 25,6

Serviço da roça 11 21,1 03 7,9 14 15,5Serviço doméstico - - 09 23,6 09 10,0

Alfaiate 03 5,8 - - 03 3,4Cozinheira - - 03 7,9 03 3,4

Copeiro 02 3,8 - - 02 2,2Costureira - - 02 5,3 02 2,2Fiandeira - - 02 5,3 02 2,2Lavadeira - - 02 5,3 02 2,2Pedreiro 02 3,8 - - 02 2,2Ferreiro 01 2,0 - - 01 1,1

Total 52 100 38 100 90 100

Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.

No que diz respeito às ocupações dos escravos negociados, para a maioria não havia essa informação. Seriam escravos sem “habilidade”? Talvez sim. Todavia, deviam, na verdade, ser cativos do “trabalho da roça/lavoura”, que cultivavam o café e, portanto, não era necessário ter seu ofício descrito. Entretanto, para aqueles de que foi possível conhecer essa variável, a maioria foi descrita como “roceiro” e a “serviço da lavoura”, seguida por aqueles designados como do “serviço da roça”.

Embora a amostragem seja restrita, por essas designações podemos perceber que a localidade ainda estava vinculada às atividades agrícolas. Com certeza, ligadas ao seu produto principal de exportação – café – e, para tanto, visava à aquisição de mão de obra em idade produtiva e que pudesse ser utilizada na la-voura cafeeira. Essas três categorias de ocupação incluíam 64 indivíduos, 71,1% de todos os escravos com ofício mencionado. A diferença entre roceiro e serviço de lavoura estava ligada à atividade produtiva desempenhada, que parecia estar associada a algum produto de exportação; melhor dizendo, a alguma atividade ligada à terra, que permitia altos lucros, como, por exemplo, o café. Já o ofício de roceiro vinculava-se às atividades mais relacionadas à lavoura de alimentos,

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já que se trata daquele “que faz e planta roçados, comumente de mandioca, e legumes; e difere do lavrador de canas, tabaco, algodão anil”.46

De acordo com Rômulo Andrade, na segunda metade do século XIX houve, naquela localidade, que, segundo ele, se expandia tanto na área urbana quanto na rural, maior utilização de cativos, oriundos do tráfi co interno, nos serviços do campo. Nessas transações,

Os cativos negociados eram, em sua maioria, jovens: 83 por cento tinha idade inferior a 35 anos. Portanto, o que se queria deles, era principalmente a plena capacidade produtiva. As ocupações que exerciam nem sempre eram determinantes na hora da efetivação dos negócios, pois 40 por cento dos registros sequer mencionam essa informação, talvez porque o direcionamento maior dessa mão de obra fosse a lavoura de café. De qualquer forma, o leque de atividades exercidas pelos cativos era múltiplo: lavradores/roceiros eram os mais frequentes, seguidos pelos empregados em serviços domésticos e cozinheiros. Os restantes se dividiam entre ofícios mais especializados, havendo, mesmo aqueles desti-nados a ‘qualquer trabalho’.47

Outra ocupação genérica muito citada foi o “serviço doméstico”, com 9 cativas. Se considerarmos que alfaiate, cozinheira, copeiro, costureira, fi andeira e lavadeira eram atividades ligadas ao serviço doméstico, esse tipo de trabalho aumenta bastante, atingindo um percentual de 25,6%. Outros trabalhadores espe-cializados, como pedreiro e ferreiro (3,3%), também foram encontrados entre os cativos. É interessante notar a divisão entre as ocupações exercidas por homens e mulheres escravos. Com exceção das ligadas à roça ou à lavoura, que abrigavam ambos, as demais eram desempenhadas por um ou outro sexo, havendo destaque para as mulheres. Dezoito delas exerceram algum tipo de ocupação que não foi descrita para os homens. O inverso ocorreu com 8 homens.

Apenas 87 escravos, que foram alvo de trocas, vendas, dívidas, penhor, tive-ram seu valor descrito. Os preços variaram entre os vinte e cinco mil réis (25$000), como foi avaliado Pedro, crioulo de 2 meses de idade, vendido ao genro de Anto-nio Dias Tostes, o senhor Manoel Vidal Lage Barbosa. Dois contos e quinhentos mil réis (2:500$000) foram pagos por Marcelino Dias Tostes a Francisco Araújo Lopes, morador no Pará, na Província de Minas Gerais, por cada um dos seguin-

46 SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da Língua Portuguesa. 6. ed. Lisboa: Typ. de Antonio Jose da Rocha, 1858, p. 264 e 745.

47 ANDRADE, Rômulo Garcia de. Limites impostos..., op. cit., p. 90. O autor ressaltou ainda a importância do aluguel de escravos, sobretudo pelas mulheres que exerciam tarefas relaciona-das aos serviços domésticos (mucamas, cozinheiras, etc.), embora os cativos do serviço do eito também fossem alugados principalmente na época da colheita.

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tes cativos: Joaquim Nunes, preto, solteiro, de 40 anos, com ofício de pedreiro; Joaquim Bernardo, preto, também solteiro, de 32 anos de idade, descrito como roceiro, e por Manoel, preto, solteiro de 32 anos. Embora o número de cativos, com o valor descrito, seja pequeno, cabe tentar uma aproximação mesmo que superfi cial acerca dos preços praticados pelos envolvidos nessas transações, que tiveram, como objeto de variados intercursos, a mão de obra escrava (Tabela 3).

Tabela 3 – Preços médios dos escravos em geral e segundo o sexo, dos Dias Tostes, dos Paula Lima e dos Barbosa Lage, Juiz de Fora, 1857-1886

Sexo Número de escravos Preço médio (em réis)

Homens 51 1:376$000

Mulheres 36 1:043$000

Homens e Mulheres 87 1:239$000

Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.

A média dos preços dos cativos, homens e mulheres, era de um conto duzentos e trinta e nove mil réis (1:239$000). Os homens tiveram preços médios superiores ao das mulheres, respectivamente, um conto trezentos e setenta e seis mil réis (1:376$000) e um conto quarenta e três mil réis (1:043$000), cifras abaixo das encontradas por José Flavio Motta, em Constituição (Piracicaba-SP), nas décadas de 1860 e 1870. Segundo o pesquisador: “Houve, pois, um comportamento dis-tinto dos preços médios reais de homens e mulheres ao longo do tempo. De fato, as escravas sofreram contínua desvalorização”.48 Infelizmente, não foi possível proceder como Motta, e tentar acompanhar a variação na média dos preços dos escravos jovens/adultos, entre quinze e quarenta anos. A fonte, muitas vezes, não especifi ca o preço dos cativos e/ou suas idades, o que nos impediu de perceber variações nesses preços, ao longo da segunda metade do século XIX. Se tivés-semos tido esta oportunidade, talvez pudéssemos comprovar a tese de Slenes, já que os livros que investigamos, como expusemos anteriormente, abrangem o período por ele pesquisado, tal como escreveu:

48 MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos em Cons-tituição (Piracicaba), 1861-1880. Revista Brasileira de História, v. 26, n. 52, 2006, p. 41.

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(...) se os cativos, via de regra, eram já mais caros no Sudeste cafeeiro nos anos de 1858 e 1859, eles passaram a ser, na maior parte dos casos, signifi cativamente ainda mais caros em fi ns do decênio de 1870 e em inícios da década de 1880. Para tanto contribuíram a dinâmica diferenciada das atividades de exportação nas distintas províncias e as secas sofridas pelo Nordeste entre 1877 e 1880.49

A informação sobre os escravos permitiu-nos perceber que a maioria era composta por mão de obra do sexo masculino, independente da origem que lhes era atribuída. Sobressaíram-se os crioulos, num total de 137 (77,4%), logo em seguida vieram os descritos como africanos, com 40 cativos (22,6%). A distri-buição das origens de acordo com o sexo demonstra que havia: 90 crioulos e 47 crioulas, (respectivamente, 74,4% e 83,9%). Trinta e um homens (25,6%) e 9 mulheres (16,1%) eram africanos. Essa estrutura não causa estranheza, por se tratar de um período no qual o tráfi co de cativos, provenientes da África, se havia fechado, consequentemente, alterando as feições do escravismo, no que diz respeito à origem dos indivíduos comercializados (Tabela 4).

Tabela 4 – Sexo e origem dos escravos que fizeram parte de algum tipo de transação comercial, Juiz de Fora, 1857-1886

SexoOrigem Masculino % Feminino % Total %

Crioulo 90 74,4 47 83,9 137 77,4Africano 31 25,6 09 16,1 40 22,6

Total 121 100 56 100 177 100

Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.

Como foi exposto na Tabela 1, e reforçado nas Tabelas seguintes, os homens foram a maioria dos cativos comercializados naquele período. Por meio do conhecimento das províncias, onde foram matriculados, pudemos estabelecer quais suas procedências. Isso nos possibilitou também averiguar qual a nova “modalidade” de tráfi co de que se valeram os Dias Tostes, os Paula Lima e os Barbosa Lage na manutenção de suas posses. Embora os escravos tenham sido alvo de vários tipos de comércio, seja por compra e venda, troca, penhor, etc., foi

49 SLENES, Robert W. The demography and economics…, op. cit., 1976, p. 183.

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por meio do tráfi co que passaram a fazer parte da propriedade de seus senhores. Só posteriormente foram alvo das ditas transações.

Ao analisarmos a Tabela 5, podemos averiguar que aqueles senhores envolvi-dos em algum tipo de comércio utilizaram principalmente o tráfi co intraprovincial para a aquisição de sua mão de obra.

Foram 274 escravos oriundos da própria província mineira, uma maioria esmagadora, que perfaz a percentagem de 83,2%, maior que a soma de todas as outras procedências conhecidas, cifras que se repetiram com relação ao sexo. Todos os homens e mulheres com procedência conhecida (respectivamente, 79,9% e 89,1%) eram oriundos de Minas Gerais. Os cativos provenientes do tráfi co interprovincial perfi zeram um total de 49 (15,0%). Dentre eles, com exceção dos provenientes de Pernambuco e Goiás, as outras províncias mantiveram a tendência de contribuir com mais homens do que mulheres. Havia ainda os de procedência africana. Eram 6, 5 homens e 1 mulher, que, a priori, provieram do tráfi co intercontinental e, mais uma vez, foram alvo de algum tipo de transação comercial (1,8%). Essa supremacia masculina, uma vez mais, parece demonstrar que a localidade ainda vivenciava um período de desenvolvimento baseado na plantation do café, que demandava trabalhadores escravos, sobretudo do sexo masculino. Como bem lembrou Motta, esses escravos “constituir-se-iam nas ‘peças’ preferidas no comércio de cativos, sejam os importados da África, sejam os oriundos do tráfi co interno”.50

50 MOTTA, José Flavio, op. cit., 1999, p. 299.

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Tabela 5 – Sexo dos cativos comprados e vendidos pelos Dias Tostes, pelos Paula Lima e pelos Barbosa Lage, de acordo com a procedência e a província onde foram matriculados, Juiz de Fora, 1857-1886

SexoProvíncia/procedência

Masculino % Feminino % Total %

SudesteMinas Gerais 167 79,9 107 89,1 274 83,2Rio de Janeiro 07 3,3 01 0,9 08 2,4Espírito Santo 03 1,5 - - 03 1,0

Nordeste

Ceará 10 4,8 02 1,6 12 3,6Bahia 10 4,8 02 1,6 12 3,6Alagoas 03 1,5 01 0,9 04 1,3Pernambuco 01 0,5 03 2,5 04 1,3Piauí - - 01 0,9 01 0,3Paraíba do Norte 01 0,5 - - 01 0,3Paraíba 01 0,5 - - 01 0,3Maranhão 01 0,5 - - 01 0,3

Centro-Oeste Goiás - - 02 1,6 02 0,6

África

Cabinda 02 0,9 - - 02 0,6Congo 02 0,9 - - 02 0,6Rebolo 01 0,5 - - 01 0,3Benguela - - 01 0,9 01 0,3

Total 209 100 120 100 329 100

Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.

Os cativos, vindos de outras partes do Império, variaram entre no mínimo 1 e no máximo 12. Pois bem, se os agruparmos por regiões, excetuando-se a Pro-víncia de Minas Gerais, percebemos que a maioria era proveniente do Nordeste brasileiro, 12 do Ceará, o mesmo número da Bahia, de Alagoas e Pernambuco, cada um com 4, enquanto as Províncias do Piauí, da Paraíba do Norte, da Pa-raíba e do Maranhão participaram com 1 escravo cada, totalizando, então, 36. O segundo maior contingente foi proveniente da região Sudeste: do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, respectivamente, 8 e 3. Por fi m, temos 2 indivíduos provenientes de Goiás, que se localiza no Centro-Oeste. No que diz respeito à aquisição de cativos, os oriundos da região Nordeste representaram 11%. Muito provavelmente, houve uma conjunção de fatores, como sugere Slenes. O primeiro teria sido a própria dinâmica das regiões exportadoras de café do Centro-Sul, que continuavam a demandar mão de obra em suas lavouras, e que, agora, só poderia ser adquirida por meio do tráfi co nacional. O segundo teria sido a crise enfrentada

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pelos proprietários de cativos do Nordeste brasileiro, principalmente com a seca que assolou aquela região na segunda metade do século XIX.51

Cláudio Heleno Machado, em seu estudo sobre a mesma localidade, valendo--se da análise de farta documentação, afi rma que

O tráfi co interprovincial (...) teve tanta signifi cação que em Juiz de Fora encontravam-se escravos procedentes, praticamente, de todo o território nacional, pelo menos onde havia mão de obra cativa que pudesse ser transferida. (...) Destacam-se nas transferências para Juiz de Fora, nesta modalidade do tráfi co interno, as regiões do Nordeste e o próprio Centro--Sul: 61,57 e 33,21%, respectivamente. Embora com parcelas ínfi mas, as regiões Oeste e Sul do país também contribuíram com transferências de escravos para Juiz de Fora: 3,36 e 1,86% do total apurado por este estudo, também respectivamente.52

A análise mais detida da província/procedência permite observar quais as localidades (cidade, vila, distrito, etc.) em que foram matriculados os cativos. Conseguimos conhecer esse aspecto para 321 deles (51,2%), que fi zeram parte das transações comerciais envolvendo os Dias Tostes, os Paula Lima e os Barbosa Lage, entre 1857 e 1886.

Dos 49 escravos provenientes do tráfi co interprovincial, foi possível saber o local de matrícula de 46. Do Nordeste vieram 32, a maioria proveniente do Ceará. Foram 12 os negociados dessa província, 3 matriculados em Maranguape e outros 2 em Ipui; para outros 4 não foi possível saber o local da matrícula.53 Existiu ainda 1 cativo descrito apenas como matriculado no Ceará. Os 2 restantes se distribuíram igualmente entre Lavras e Sobral. O segundo maior contingente negociado por aquelas famílias era proveniente da Bahia, totalizando 9 indivíduos: Santo Antonio da Barra forneceu 3, Campo Largo 2, e Maragogipe, Remanso,

51 Sobre os problemas enfrentados pelo Nordeste e o aumento do fluxo de cativos daquela região com destino às de produção cafeeira, conferir, entre outros, CONRAD, Robert. Os últimos anos..., op. cit. Segundo Peter Eisenberg, “O tráfico interprovincial chegou ao auge na década de 1870 em virtude das severas secas nordestinas que forçaram a liquidação dos ativos fixos, como os escravos. O total de escravos embarcados para o sul, após 1876, foi tão elevado que as províncias compradoras – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – impuseram elevados tributos à importação de escravos, em 1880 e 1881. (...) Os tributos acabaram com o tráfico interprovincial de escravos”. EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro; Campinas: Paz e Terra; Universidade Estadual de Campinas, 1977, p. 175-177.

52 MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno de escravos estabelecidos na direção de um mu-nicípio da região cafeeira de Minas Gerais: Juiz de Fora, na Zona da Mata (segunda metade do século XIX). Monografia do Curso de especialização em História do Brasil. Universidade Federal de Juiz de Fora, 1998, p. 66.

53 Para 2 desses 4 cativos só conseguimos saber parte do nome do local (Joa?).

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Carinhanha e Feira de Santana 1 escravo cada; para os outros 3 não conseguimos obter essa informação. A Província de Pernambuco forneceu 2 escravos, matri-culados no Recife, 1 em Limoeiro e outro em Oiricury. Quatro outras províncias nordestinas negociaram escravos em Juiz de Fora. Alagoas forneceu 4 cativos, divididos entre Afonso, Maceió, Paulo Affonso e Santo Antonio. O Maranhão contou com 1 indivíduo matriculado na alfândega dessa província. O Piauí con-tou com o mesmo número de escravos, matriculados em Valença, assim como o matriculado em Souza, na Parahyba do Norte.

O Sudeste – ou o Centro-Sul – participou com 11 escravos, distribuídos entre a Corte e as Províncias do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. A primeira teve 7 matriculados. A segunda negociou 1 escravo oriundo de Campos e a terceira outros 3, vindos de Serra. Por fi m, encontramos 2 matriculados em Catalão, Goi-ás. Existiu ainda mais 1, cuja província ou local de matrícula esta ininteligível.

Robert Slenes, em estudo sobre o tráfi co interno de escravos, detectou que o número de trafi cados para o centro-sul do Brasil, entre meados dos anos de 1850 e 1881, em transferências inter-regionais, esteve por volta de 222.500 indivíduos, uma média de 7.200 por ano, para todo aquele período.54

Como já pudemos observar anteriormente, a grande maioria dos cativos que foi alvo de algum tipo de transação comercial, segundo as fontes, estava matriculada na província mineira e, nesse aspecto, algumas considerações são interessantes (Tabela 6).

54 SLENES, Robert. The Brazilian Internal Slave Trade…, op. cit. p. 331. Richard Graham percebeu que o tráfico interno de escravos e os escravos tiveram importante papel no fim da escravidão. GRAHAM, Richard. Another Middle Passage? The Internal Slave Trade in Brazil. In: JOHNSON, Walter (Org.). Domestic Passages..., op. cit.

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Tabela 6 – Localidade da matrícula dos cativos dos Dias Tostes, dos Paula Lima e dos Barbosa Lage, oriundos do tráfico intraprovincial e local, Juiz de Fora, 1857-1886

Tipo de tráfi co Número de cativos negociados %Intraprovincial/Local*Regiões/Municípios

Zona da MataMar de Hespanha 06 2,2Ponte Nova 04 1,5Juiz de Fora 213 77,8Subtotal 223 81,5

Jequitinhonha Mucuri-DoceGrão Mogol 06 2,2Diamantina 05 1,9Arrasuahy 04 1,5Minas Novas 02 0,7Subtotal 17 6,3

Metalúrgica MantiqueiraAbaeté 03 1.1Queluz 03 1,1Arassandy 01 0,3Barbacena 02 0,8Sete Lagoas 03 1,1Sabará 02 0,8Santa Luzia 01 0,3Subtotal 15 5,5

OestePará 10 3,6Tamanduá 01 0,3Subtotal 11 3,9

Alto ParanaíbaAraxá 05 1,9Subtotal 05 1,9

São Francisco Montes-ClarosJanuária 01 0,3Montes Claros da Formiga 01 0,3Subtotal 02 0,6

SulPouso Alegre 01 0,3Subtotal 01 0,3Total de escravos negociados 274 100%

Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.

*O tráfi co local é aquele que ocorre dentro dos limites do município de Juiz de Fora. Optamos por deixá--lo junto à região, Zona da Mata.

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Por meio da Tabela acima, podemos perceber que, dos 274 cativos prove-nientes da própria província mineira, cuja procedência foi possível conhecer, 61 (22,3%) eram oriundos do tráfi co intraprovincial (entre Juiz de Fora e outros municípios mineiros), os outros 213 (77,7%), do tráfi co local interno, dentro dos limites do município de Juiz de Fora. O tráfi co intraprovincial, sobretudo aquele oriundo do comércio local de escravos provenientes da própria Zona da Mata e em específi co de Juiz de Fora, foi o responsável pela esmagadora maioria dos escravos negociados.55

Fica patente a preferência dos envolvidos naquelas transações, em primeiro lugar, por escravos oriundos do próprio município e, em seguida, por aqueles vindos das demais regiões mineiras. Essa mesma constatação foi feita por Cláu-dio Heleno Machado. O pesquisador concluiu que os escravos negociados pelos senhores, na mesma localidade, eram oriundos do tráfi co local, intraprovincial e, por último, do interprovincial.56

Ainda de acordo com a Tabela 6 e tomando por base os modelos expostos por Roberto Martins e Douglas Libby – em que eles estabeleceram uma divisão dos distritos mineiros de acordo com a distribuição da propriedade de escravos –, é possível perceber que localidades vinham perdendo cativos para a Zona da Mata Mineira e, em específi co, para o município de Juiz de Fora.57 Essa mesma tendência foi percebida por Garavazo, em seu já citado estudo sobre Batatais. Naquela região, verifi cou-se o caráter local do comércio de escravos, sobretudo pelo conhecimento do lugar de moradia de compradores, vendedores e também dos procuradores, bem como por meio do conhecimento da naturalidade dos cativos e dos ingênuos transacionados.

Verifi cou-se que 88,4% das pessoas que compraram cativos e ingênuos e 80,9% daquelas que venderam residiam em Batatais (na cidade ou no termo). Em apenas quarenta transações (12,5% do total) o vendedor foi representado por um procurador, número que se igualou

55 Sobre a importância dos tráficos local e intraprovincial de escravos conferir os importantes trabalhos de: MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além,..., op.cit. MARTINS, Ismênia de Lima. Problemas da extinção do tráfico africano na província do Rio de Janeiro. Uma tentativa de análise das dificuldades de reposição de mão de obra na grande lavoura fluminense. Tese de Doutorado. FFLCH, USP, 1973.

56 MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno de escravos..., op. cit.57 LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho..., op. cit., p. 33; MARTINS, Roberto Borges.

Minas Gerais, século XIX:..., op. cit.

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a tão somente trinta e dois (10,0%) no caso dos compradores. E, ainda mais, verifi cou-se que sessenta e um, destes setenta e dois procuradores, moravam em Batatais.58

Os escravos negociados dentro dos limites mineiros eram de quase todas as regiões, com exceção do Triângulo e de Paracatu. Muitos deles vinham de áreas onde não havia concentração de algum produto que pudesse ser responsável pela manutenção ou, até mesmo, pela ampliação de suas posses de escravos, regiões que, em sua maioria, se caracterizavam pela pequena propriedade, mais sujeita às oscilações do mercado. Essa parece ser a ex-plicação para o número de cativos das regiões de Jequitinhona e Mucuri--Doce (6,3%). O mesmo raciocínio vale para São Francisco – Montes Claros contribuiu com 0,6%.59 As regiões Metalúrgica Mantiqueira (5,5%), Oeste (3,9%), Alto Paranaíba (1,9%) e Sul (0,3%) devem ter contribuído para o in-cremento da mão de obra escrava, também pelos mesmos motivos (Mapa 1).

Num primeiro momento, o número de cativos negociado com a Zona da Mata causa estranheza, já que essa seria a região possuidora do maior contingente deles, devido à alta concentração das posses e também porque, àquela época, tinha um produto importante que demandava força de trabalho, portanto, estaria sendo recebedora e não distribuidora de escravos. A Tabela 6 nos permite conhecer as duas localidades da Mata Mineira que negociaram cativos com aquelas famílias que lá habitavam. Cabe, neste momento, ressaltar que Mar de Hespanha e Ponte Nova eram muito diferentes, do ponto de vista econômico e demográfi co.

Mar de Hespanha, localizada na Zona da Mata Sul, foi um importante centro cafeicultor, durante todo o período, e seria de se esperar que estivesse ganhando e não perdendo cativos. Em uma análise mais detida a respeito dos tipos de negócios que geraram aquela transferência, podemos averiguar que, dos 6 indi-víduos negociados, apenas 1 o foi por meio de compra e venda, os outros 5 eram oriundos de uma escritura pública de dívida, obrigação e hipoteca, ou seja, quase a totalidade deles só foi comercializada porque deve ter havido, por parte de seu proprietário, quem sabe, um mau gerenciamento dos negócios. Dessa forma, a transferência se deu por motivos outros que não a incapacidade da região para manter seus cativos.60 Já Ponte Nova se enquadraria no que chamamos de Zona

58 GARAVAZO, Juliana. Riqueza e escravidão..., op. cit., p. 238.59 Sobre algumas características do norte mineiro àquela época, conferir a dissertação de BOTELHO,

Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias:..., op. cit.60 Segundo Cláudio Heleno Machado, os municípios da Mata foram muito menos afetados por

transferências de cativos para Juiz de Fora, pois a região concentrava os principais municípios

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da Mata Norte, compunha a parte mais pobre daquela região, com características completamente diferentes das outras duas. Pensamos que esses contrastes, dentro da Zona da Mata, explicam esse perfi l dos escravos negociados por tal área.

O que pudemos vislumbrar, até aqui, é que as famílias dos Dias Tostes, dos Paula Lima e dos Barbosa Lage se valeram de processos diferenciados em relação à manutenção e/ou ampliação de suas posses de escravos, mesmo porque atra-vessaram diferentes conjunturas, com peculiaridades distintas, o que, certamente, contribuiu para a diversidade de suas estratégias. As duas primeiras fi zeram uso de processos de compra de cativos no comércio interno, embora os Dias Tostes tenham participado muito mais do tráfi co internacional. Entretanto, tudo indica que essa não foi a atitude tomada pelo Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, que parece ter-se utilizado da reprodução natural para incrementar seu contingente cativo.

Talvez tenha contribuído para as especifi cidades de cada dono de terras o instante de formação das suas propriedades, ou seja, o momento anterior ou pos-terior ao fi m do tráfi co, que levou a um rearranjo no que diz respeito à aquisição e à relação com a mão de obra cativa. De acordo com Isabel Reis, em estudo sobre a família negra na Bahia, entre os anos de 1850 e 1888,

Não há divergências sobre o fato de que depois da supressão do comércio transatlântico de escravizados, os proprietários brasileiros fi caram mais atentos no sentido de preservar os cativos e seus descendentes. Há uma propensão a se acreditar que principalmente a partir da lei de 1850, se verifi cou até mesmo um maior incentivo aos casamentos e à procriação entre eles.61

Cabe ressaltar que o aumento do contingente cativo desses senhores, por meio das várias modalidades de tráfi co, bem como da reprodução natural, se fez presente em suas propriedades. O que acima concluímos diz respeito à principal prática utilizada por eles e, de maneira alguma, ignoram-se as possibilidades da ocorrência daqueles dois processos (reprodução natural e tráfi co), que poderiam possibilitar a manutenção e/ou a ampliação do número de escravos.

Conclui-se que as duas opções para o aumento do número de cativos parecem não ter sido excludentes na referida localidade, mas sim complementares. A opção por uma ou outra dependeu, sobremaneira, do período de formação das posses, da maior ou menor proximidade do tráfi co transatlântico e também do raciocínio

cafeeiros da província, sendo responsáveis também por importantes concentrações de mão de obra escrava. MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno de escravos..., op. cit.

61 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado, História, Universidade Estadual de Campinas, 2007, p. 43.

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econômico empreendido pelos senhores na busca pelo melhor “modelo” para a manutenção e/ou a ampliação de suas propriedades.

De qualquer maneira, predominou muito a importação de escravos como modo de reprodução/ampliação da mão de obra. O Capitão Lage foi um exemplo entre os grandes possuidores de escravos, que parece ter utilizado a reprodução natural, e, mesmo entre eles, é caso único. Entre pequenos e médios proprietários – em que parecia haver menos estabilidade da comunidade escrava – deveria ser maior ainda a importância da importação de cativos.

Mapa 1 – Porcentagem dos cativos pertencentes aos Dias Tostes, aos Paula Lima e aos Barbosa Lage, oriundos do tráfico intraprovincial e local, segundo a região, Juiz de Fora, 1857-1886

Fonte: Elaborado pelo Prof. Dr. Luiz Fernando Saraiva (UFRB) a partir de LIBBY, 1988. I Sul; II Mata; III Triângulo; IV Alto Parnaíba; V Oeste; VI Metalúrgica-Mantiqueira; VII Jequitinhonha-Mucuri-Doce; VIII Paracatu; IX São Francisco-Montes Claros.

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Recebido: 09/06/2011 – Aprovado: 09/03/2012

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285Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012

O MAGONISMO E A REVOLUÇÃO MEXICANA:UM BALANÇO POLÍTICO E IDEOLÓGICO*

Fabio Luis Barbosa dos SantosDoutor em História pela Universidade de São Paulo

ResumoEste artigo analisa a trajetória política do magonismo – facção que encarnava a crítica radical ao porfi riato no período pré-revolucionário – a partir da eclosão da Revolução Mexicana em 1910. Ao relacionarmos sua evolução ideológica com a derrota progres-siva dos revolucionários nos campos de batalha, analisamos o destino magonista sob o ângulo dos constrangimentos sofridos pela revolução-democrática nacional no México.

Palavras-chaveliberalismo mexicano • magonismo • Revolução Mexicana

Contato:Praça Guido Cagnacci, 2305444-060 – São Paulo – SPE-mail: [email protected]

* Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

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MAGONISM AND THE MEXICAN REVOLUTION:A POLITICAL AND IDEOLOGICAL EVALUATION*

Fabio Luis Barbosa dos SantosPhD in History – Universidade de São Paulo

AbstractThis article focuses the political development of magonismo – the most radical oppo-sition to the Porfi rio Díaz regime – from the onset of the Mexican Revolution in 1910. As we relate its ideological evolution to the defeats suffered by the revolutionaries in battlefi eld, its outcome is analysed under the light of the constraints faced by the national democratic revolution in Mexico.

Keywordsmexican liberalism • magonism • Mexican Revolution

Contact:Praça Guido Cagnacci, 2305444-060 – São Paulo – SPE-mail: [email protected]

* Scholarship-holder of Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.

IntroduçãoEste artigo realiza um balanço político e ideológico do magonismo, facção

mais radical dos liberais mexicanos que se organizaram nos primeiros anos do século XX para combater a ditadura de Porfi rio Díaz no México, no poder desde 1876. A questão subjacente é compreender por que a organização política que encarnava a oposição radical à ditadura foi incapaz de assumir a direção do processo quando a revolução que fomentou durante anos fi nalmente eclodiu.

A reivindicação posterior de Ricardo Flores Magón (1874-1922) pelo movi-mento anarquista convidou a leituras simplistas da sua trajetória,1 ignorando sua fi delidade absoluta ao programa do Partido Liberal, de 1906 até sofrer derrotas decisivas nos campos da batalha revolucionária.2 Este programa propõe um pro-jeto de democratização radical da sociedade mexicana nos marcos do capitalismo e será apontado por muitos autores como um dos antecedentes emblemáticos da constituição mexicana de 1917.3 A despeito da radicalização ideológica de muitos

1 A reivindicação seminal é: SANTILLAN, Diego Abad de. Ricardo Flores Magón. El Apóstol de la Revolución Social Mexicana. Cidade do México: CEHSMO, 1978. Também: TURNER, Ethel Duffy. Ricardo Flores Magón y el Partido Liberal Mexicano. Cidade do México: Comi-sión Editorial Nacional, 1984. Esta abordagem redutora predomina nos trabalhos que abordam Flores Magón e também nas análises da revolução mexicana que o mencionam. Por exemplo: BLANQUEL, Eduardo. Ricardo Flores Magón. Cidade do México: Editorial Terra Nova, 1985. CÓRDOVA, Arnaldo. La ideología de la Revolución Mexicana. La formación del nuevo regi-men. 23ª reimpressão. Cidade do México: Era, 1973. Exceções recentes são: no primeiro caso, TORRES PARÉS, Javier. La Revolución sin frontera. Cidade do México: UNAM, 1990. No segundo: KATZ, Friederich. The life and times of Pancho Villa. Palo Alto: Stanford University Press, 1998. Como o nosso objetivo é explicitar a insuficiência do rótulo anarquista para explicar a trajetória de Flores Magón, nosso foco não será as influências libertárias que sofreu, tratadas pela bibibliografia mencionada.

2 Outro equívoco dominante é interpretar Flores Magón e o PLM como precursores da revolução mexicana, abordagem que desconsidera a derrota militar e política sofrida na revolução. O trabalho fundamental nesta linha é o livro precursor de COCKROFT, James D. Precursores intelectuales de la Revolución Mexicana (1900-1913). Traducción de María Eunice Barrales. Cidade do México: Siglo XXI, 1985. A tese de Blanquel, republicada recentemente em livro, revela esta leitura em seu título: El pensamiento político de Ricardo Flores Magón, precursor de la Revolución Mexicana. Em: BLANQUEL, Eduardo. Ricardo Flores Magón y la Revolución Mexicana y otros ensayos históricos. Prólogo, selección y edición Josefina Mac Gregor. Cidade do México: Colegio de México, 2008. Os ensaios de Armando Bartra contestam esta visão: BAR-TRA, Armando. La revolución mexicana en la perspectiva del magonismo. In: GILLY, Adolfo (Org.). Interpretaciones de la Revolución Mexicana. Cidade do México: UNAM, Editorial Nueva Imagen, 1980. Também sua introdução a: Regeneración (1900-1918). La corriente más radical de la revolución mexicana a través de su periódico de combate. Cidade do México: Era, 1977.

3 DÍAZ, Lilia (selección y traducción). Planes políticos y otros documentos. Fuentes para la historia de la Revolución Mexicana. Prólogo de Manuel González Ramirez. Cidade do México: FCE, 1954. Sobre a relação com a constituição de 1917: SILVA HERZOG, Jesus. Breve Historia de la Revolución Mexicana. 2 tomos. 15ª reimpressión. Cidade do México: FCE, 1995.

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membros da Junta Liberal no exílio, a percepção que tinham do modesto acúmulo político da classe trabalhadora mexicana determinou a subordinação das suas convicções pessoais ao cálculo das potencialidades políticas franqueadas pela conjuntura, proporcionando o cultivo de possibilidades várias, desde a aliança com os setores anti-porfi ristas das classes dominantes até a ruptura irreversível nos campos de batalha.4

Este percurso é evidenciado por meio do cotejo do movimento ideológico do partido com os acontecimentos chaves que determinaram a sua derrota no início da revolução. Tal cotejo foi viabilizado pela recente publicação dos primeiros tomos das obras completas de Ricardo Flores Magón e pela disponibilização da coleção completa dos exemplares do periódico Regeneración, em CD-ROM, principal veículo da articulação política liberal.5 Esse exercício comparativo revela que o fracasso magonista não deve ser debitado ao anarquismo, mas está referido à intransigência dos setores anti-porfi ristas das classes dominantes, que se negavam a incorporar as demandas sociais da revolução e atuavam com de-terminação infl exível para conter as pressões democratizadoras do processo. Em suma, este trabalho propõe um reenquadramento da análise do magonismo sob o ângulo dos constrangimentos que a revolução democrática-nacional encontrou para afi rmar-se como via histórica para o capitalismo mexicano.

É somente no contexto da derrota das forças liberais no campo de batalha, coetânea ao avanço da rebelião camponesa, que Ricardo Flores Magón reorienta as consignas liberais em um sentido anticapitalista. Em outras palavras, é diante da incapacidade da classe dominante dividida de integrar as demandas sociais como caminho para a paz nacional que os liberais radicalizam suas bandeiras. Na medida em que é desencadeada pela derrota militar, a radicalização ideológica corresponde a uma progressiva impotência política dos magonistas. Em contra-dição com a racionalidade política prevalente no período pré-revolucionário,

4 O refinamento da visão política de Ricardo Flores Magón escapa aos trabalhos recentes de me-xicanistas a que tivemos acesso. WARD, Albro S. Always a rebel. Ricardo Flores Magón and the Mexican Revolution. Fort Worth: Texas Christian University Press, 1992. MACLACHLAN, Colin. Anarchism and the Mexican Revolution – the political trials of Ricardo Flores Magón in the United States. Berkeley: University of California Press, 1991. RAAT, Dirk W. Los revoltosos. Rebeldes mexicanos en los Estados Unidos (1903-1923). México: FCE, 1993. BLAISDELL, Lowell L. La revolución del desierto. Baja California, 1911. México: SEP, 1993.

5 FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras Completas – Vol. I – Correspondencia (1898-1918). Vol. II – Correspondencia 2 (1919-1922). Vol. III – Regeneración (1900-1901) primera parte. Vol. IV – Regeneración (1900-1901) segunda parte. Vol. V – Artículos Políticos Seudónimos. In-troducción, compilación y notas, Jacinto Barrera Bassols. Cidade do México: Conaculta, 2001. Também: Regeneración. Edição completa em CD-Rom. BASRRERA BASSOLS, Jacinto (org.).

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Flores Magón aposta no instinto das massas, enaltece a iniciativa popular es-pontânea e, ao mesmo tempo, enfatiza os vínculos entre o processo mexicano e a inexorabilidade da revolução mundial, apelando a um sentido teleológico da história ausente até então. Em síntese, o líder mexicano opera uma aproxima-ção entre natureza e história que resulta em um esvaziamento da política, o que termina por reforçar as debilidades do campo popular da revolução com o qual se identifi ca e é derrotado.

Inicialmente, o artigo situa a formação e atuação da Junta Liberal no exílio no período da ditadura encabeçada por Porfi rio Díaz. Em seguida, acompanhamos a fortuna política dos magonistas ao longo da revolução, concedendo especial importância ao processo que conduz à ruptura com os maderistas, fator decisivo para a radicalização das consignas liberais explicitada no manifesto de setembro de 1911. Por fi m, esboçamos um balanço político e ideológico do conjunto da trajetória magonista.

Magonismo e PorfiriatoA conjunção entre a expansão da demanda mundial por produtos primários

e o imperativo da estabilidade institucional como premissa para o investimento capitalista está na raiz da longa supremacia política de Porfi rio Díaz (1876-1911), a qual projetou o México em um período de acelerado crescimento econômico, que se estenderia até a revolução. A consolidação do Estado mexicano esteve associada ao papel que assumiu como mediador entre os negócios do capital internacional e os requisitos sociais e políticos necessários para a sua penetração, estabelecendo uma realidade na qual o investimento internacional e a Pax Por-fi riana se retroalimentavam.6

Embora no plano econômico verifi que-se uma continuidade entre o desígnio da reforma e a modernização realizada pelo Porfi riato, a chamada “pacifi cação” que lhe serviu de alicerce assentou-se na mutilação da dimensão social e política do programa liberal. Em um regime onde a modernização do país foi afi rmada

6 Nos baseamos em: KATZ, Friederich. The liberal republic and the Porfiriato. 1876-1910. In: BETHELL, Leslie (Ed.). Mexico since independence. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. KATZ, Friederich (compilador). Revuelta, rebelión y revolución. La lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX. 2 tomos. Cidade do México: Era, 1990. CARR, Barry. El movimiento obrero y la política en México. 1910/1929. Cidade do México: Era, 1981. COSÍO VILLEGAS, Daniel (Cood.). Historia General de México. 2 tomos. Cidade do México: El Colegio de Mexico, 1976. COSÍO VILLEGAS, Daniel (Coord.) Historia Moderna de México. El Porfiriato, vida economica. 2 tomos. Cidade do México: Hermes, 1965.

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como razão de Estado, o imperativo da ordem justifi cou a determinação em silenciar qualquer foco de distúrbio social, seja de caráter caudilhesco, étnico ou de classe. Assim, o desenvolvimento econômico superfi cial dissimulava o acirramento das contradições sociais que a sua rigidez política encetava e que terminaria explodindo de forma espetacular.

A crônica convencional do desabamento do Porfi riato se inicia nos primeiros anos do século XX, tendo como ponto de partida a reunião convocada pelo Círculo Liberal Ponciano Arriaga na cidade de San Luis Potosí, em 1901, quando se aglutinaram entidades politicamente afi ns de diversas partes do país. Este encontro serviu de impulso original para a articulação do Partido Liberal Mexicano, que em pouco tempo seria liderado por Ricardo Flores Magón, na época coeditor do recém-fundado periódico Regeneración (1900-1918).

Inicialmente inspirado pelas divisas anticlericais e legalistas herdadas da Reforma liberal de meados do século XIX, os liberais mexicanos radicalizaram progressivamente suas posições diante da perseguição implacável da ditadura. Depois de sofrer seguidas vezes com a prisão e o fechamento do jornal, Flores Magón teve proibida pelo governo a publicação de qualquer escrito seu. Nesta circunstância refugiou-se nos Estados Unidos (1904), de onde assumiu a liderança da Junta Liberal no exílio. Convencido de que estavam fechadas as vias para a mudança social dentro da ordem, o Partido conspirou incansavelmente para derrubar a ditadura pela via revolucionária, envolvendo-se com as principais agitações operárias da época e iniciando, por duas vezes, um levante armado no norte do país, de modo a consolidar uma reputação de oposição radical ao Porfi riato no período pré-revolucionário.

Neste contexto, com o objetivo de prover a conspiração anti-porfi rista de um horizonte ideológico, perfi lou-se nos escritos de Ricardo Flores Magón o que podemos qualifi car como um pensamento distintivamente magonista7. Ao distanciar-se do legalismo que marca a reivindicação do liberalismo mexicano do século XIX, Flores Magón produzirá, à frente da Junta Liberal, um discurso caracterizado pela progressiva incorporação da temática social e pelo seu corres-pondente direcionamento aos trabalhadores. Não obstante a sua progressiva ra-dicalização, nossa hipótese é que Magón preservará uma coerência fundamental, lastreada na herança ideológica do liberalismo mexicano e conjugada a uma

7 Embora Ricardo Flores Magón e seus partidários se identifiquem como liberais, portanto, genuínos seguidores da tradição juarista, e não como “magonistas,” o termo delimita com maior precisão a especificidade das ideias veiculadas pelo partido e seu líder a partir de então.

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visão de mundo de inspiração positivista. Essa coerência centra-se no tema da liberdade, que articulará uma convergência fundamental entre natureza humana e história, cujas decorrências políticas se explicitarão no processo revolucionário.

O eixo principal da sua radicalização será a evolução da própria noção de liberdade: entendida como mera liberdade política nos anos iniciais do periódico Regeneración, a incorporação da temática social dilata progressivamente o seu conteúdo, desaguando na noção de liberdade econômica. Inicialmente vinculada aos objetivos políticos liberais de maneira associada e subalterna, as consignas relacionadas às relações de produção gradualmente se diferenciam até se afi rma-rem como o foco do projeto magonista na sua última fase. Os documentos que balizam esta evolução são o célebre programa promulgado pela Junta Organiza-dora do Partido Liberal no exílio em 1906 e o manifesto difundido em setembro de 1911, quase um ano após a eclosão da revolução, quando o foco da denúncia magonista se deslocará para a superação da propriedade privada.

O programa promulgado pela Junta Liberal em 1º de julho de 1906 é um documento célebre na análise posterior da Revolução Mexicana, considerado por muitos autores como o antecedente ideológico por excelência da constitui-ção de 1917. Embora provavelmente não tenha sido redigido apenas por Flores Magón, servirá como referência precípua de toda ação subsequente do partido até a revolução.

Uma costura dos temas clássicos do liberalismo mexicano, como liberdades civis e anticlericalismo, com uma detalhada agenda de reformas sociais que objetiva integrar os trabalhadores urbanos e rurais, é apresentada no programa. Com este objetivo, avança uma série de propostas destinadas a melhorar as condições de trabalho na indústria e um projeto de reforma agrária centrado na desapropriação do latifúndio improdutivo. Contempla ainda propostas de cunho nacionalista (como limitações à propriedade e ao emprego de estrangeiros), uma reforma tributária, a proteção da raza indígena e o estabelecimento de lazos de unión con los países latinoamericanos. Em suma, é um projeto nacional orientado ao estabelecimento do capitalismo autodeterminado por meio da integração da população através do trabalho.8

8 Na sua exposição, lê-se: “Cuando los millones de parias que hoy vegetan en el hambre y la des-nudez coman menos mal, usen ropa y calzado y dejen de tener petate todo por ajuar, la demanda de mil géneros y objetos que hoy es insignificante aumentará en proporciones colosales, y la industria, la agricultura, el comercio, todo será materialmente empujado a desarrollarse en una escala que jamás alcanzaría mientras subsistieran las actuales condiciones de miseria general”. Plan del Partido Liberal. In: DÍAZ. Lilia (selección y traducción).Planes políticos y otros do-

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Embora a convicção de membros da junta no exílio evolua para posições anticapitalistas, a fi delidade política ao programa liberal está assentada em um diagnóstico onde o ceticismo em relação ao espaço para a reforma no regime porfi rista é contrabalançado por uma percepção modesta das possibilidades de ação política dos trabalhadores mexicanos. A exitosa combinação de cooptação e repressão, realizada pelo porfi riato em um contexto de acelerado crescimento econômico, convergiu para minimizar os nexos de continuidade entre as lutas trabalhistas desencadeadas no contexto da Reforma, ainda fortemente marcadas pela tradição mutualista, e o desabrochar das lutas operárias segundo um padrão moderno no século XX, condenando os trabalhadores mexicanos a um inci-piente acúmulo político e ideológico.9 Nessa circunstância, o objetivo de classe assumido pela Junta Liberal é superar o paternalismo como padrão dominante nas relações de trabalho mexicanas, seja no campo, de onde provem a maior parte do contingente operário, seja na cidade, onde persiste o legado mutualista. Objetivo, cujo fi m é elevar o potencial de reivindicação da classe trabalhadora aos patamares mínimos de organicidade e combatividade necessários para a conquista de direitos elementares. Nessa perspectiva, o horizonte imediato da luta de classes no México confi gura-se como a superação do legado porfi rista, tendo como referência política o capitalismo autodeterminado:

Es preciso que dejen de creer que su situación miserable se debe a la fatalidad y que si sufren se debe a que no les tocó en suerte nacer en telas de seda. El que trabaja tiene derecho a que le pague bien, a que no se le robe en las tiendas de raya, a ocupar un lugar decente en la sociedad. Nuestros obreros deben tomar ejemplo de los obreros yanquis que han sabido hacerse respetar, por lo que gozan un bienestar con que aquí no se sueña.10

Ao propor uma atualização do pensamento radical mexicano através da dilatação da agenda liberal, avançando a centralidade da questão do trabalho como via de superação do atraso mexicano, Flores Magón pretende sintonizar

cumentos. Fuentes para la historia de la Revolución Mexicana. Prólogo de Manuel González Ramirez. Cidade do México: FCE, 1954.

9 Ver: CARR, Barry. El movimiento obrero y la política en México, 1910-1929. Cidade do México: Era, 1981. CANTÚ, Gastón García. El socialismo en México – siglo XIX. Cidade do México: Era, 1986. HART, Jonh. Anarchism and the Mexican working class (1860-1931). Austin: Uni-versity of Texas press, 1971. Este autor usa critérios problemáticos para reconstruir uma tradição anarquista mexicana, reivindicando para isso autores que na obra percursora de Gastón Garcia Cantú aparecem referidos ao socialismo e que por vezes se identificam como tal.

10 Artigo em: El Colmillo Público, 11/03/1906. In: FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras comple-tas Volumen V. Artículos Políticos Seudónimos. BARRERA BASSOLS, Jacinto (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta, 2001, p. 254.

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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.

os problemas nacionais com o sentido da história universal contemporânea, que aponta para a concretização do preceito intelectualmente aceito da igualdade entre os homens. Nessa perspectiva, o diagnóstico revolucionário e o programa da Junta Liberal situam-se na interligação entre as possibilidades e os limites da conjuntura mexicana e as grandes questões do tempo: considerando a ausência de espaço para a reforma dentro da ordem, é necessário realizar uma revolução mexicana que promova a integração da classe trabalhadora, a fi m de gerar as condições para o seu progressivo protagonismo em sintonia com o movimento geral da história universal.

Consciente das limitações da classe trabalhadora mexicana, a Junta liderada por Flores Magón persistirá fi el ao programa democrático nacional do partido, subordinando convicções pessoais e rótulos ideológicos aos desígnios da luta política até a frustração da aliança com setores anti-porfi ristas das elites nos campos da batalha revolucionária.11 É somente quando a marcha da revolução evidencia a intransigência social dos maderistas, ao mesmo tempo que revela a irresistível radicalização da luta popular no campo, que os liberais serão cons-trangidos a reavaliar as possibilidades políticas do momento histórico, a elas ajustando o seu programa.

Magonismo e a revolução mexicanaComo se sabe, em um primeiro momento, a convocação ao levante armado

realizada por Madero, a partir dos Estados Unidos, provocou uma resposta irregular e pouco promissora em território mexicano. Do lado dos magonistas, decididos a aproveitar a agitação e somar forças ao levante sem abrir mão da sua autonomia, a Junta reconhece que os núcleos ainda não estavam prontos para tomar as armas, embora incentive os preparativos para esta fi nalidade.12

A explosão do confronto em Chihuahua no fi m de 1910, que rapidamente transbordou o controle da junta maderista, estimulou outros levantes que logo

11 Mesmo posteriormente quando a revolução se radicaliza e a Junta reorienta suas consignas na dire-ção da expropriação da propriedade privada, a definição ideológica aparece subordinada ao conte-údo da luta: “Es por el llamado pueblo bajo por el que lucho. Que esto sea socialismo, que esto sea anarquismo, no me importan las denominaciones”. FLORES MAGÓN, Ricardo. Carta a Luis Rivas Iruz (3/6/1911). In: Obras Completas – Vol. I. Correspondencia (1898-1918). BARRERA BAS-SOLS, Jacinto (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta, 2001, p. 592.

12 Nas vésperas do ano novo, Regeneración publica: “La Junta trabaja con toda actividad por completar la organización de los grupos que han de rebelarse en México en un momento dado”. Regeneración, número 17, 24/12/1910. Edição digital completa.

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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.

incendiariam o país.13 Diversos grupos liberais se alçaram em armas nesta região, mas sofreram uma perda importante quando seu principal dirigente, Práxedis Guerrero, perdeu a vida, na tomada do povoado de Janos em 30 de dezembro. Impelida pelas circunstâncias, a Junta publicou na semana seguinte suas Instruc-ciones Generales a los Revolucionarios, exortando os grupos liberais ainda não sublevados a aderir imediatamente à luta.

Nesse cenário, Madero relutou em atravessar a fronteira mexicana, e encarar o confronto em uma região que não era reduto seu, para liderar politicamente uma guerra que não comandava: Pascual Orozco e Pancho Villa emergiam como lideranças indiscutíveis, mas de subordinação duvidosa. Empurrado por uma ordem de prisão emitida nos Estados Unidos, Madero retornou ao México em fevereiro de 1911 e precisou usar de toda habilidade para costurar sua liderança sobre os grupos rebelados. Esta manobra teve como premissa a cooptação ou o desbaratamento dos grupos levantados sob a bandeira liberal. O primeiro a ser preso foi Prisciliano Silva, líder de um núcleo rebelde no povoado tomado de Guadalupe, para onde já se dirigira Madero. Silva recusou-se a reconhecer o mando maderista, ainda que antes tivesse atendido a um apelo de cooperação militar. Como resposta, em 25 de fevereiro de 1911, o Regeneración denuncia Madero como traidor, fechando as possibilidades de colaboração na luta.14

Para prosseguir na delicada tarefa de neutralização dos liberais, Madero se viu impossibilitado de recorrer a Orozco, principal liderança militar então, mas que tinha vínculos pregressos com os magonistas e já se recusara a desarmá-los. O cumprimento dessa missão selaria a fi delidade de Villa, que até então não tinha atuação política, com Madero. Em contrapartida, despertou-se o ódio dos liberais pelo caudilho de Durango, o que teve consequências dramáticas para o alinhamento

13 Na bibliografia da crônica dos eventos, o enorme livro de Alan Knight faz um esforço de amealhar a miríade de episódios e motivações regionais, étnicas e de classe que compuseram o processo revo-lucionário em um país escassamente integrado e dá uma boa ideia da sua complexidade, embora de outro lado careça de um referencial interpretativo capaz de conferir sentido ao conjunto impressio-nante de informações que reúne. KNIGHT, Alan. The Mexican Revolution. 2 tomos. Lincoln: Uni-versity of Nebraska Press, 1990. Para uma síntese dos debates sobre o caráter da revolução, ver do mesmo autor: Interpretaciones recientes de la Revolución Mexicana. Revista Secuencia, Cidade do México: Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora, núm. 13, ene.-abr., 1989, p. 23-43.

14 Como decorrência, o texto das instrucciones generales a los revolucionarios é alterado. No ponto 11, onde se lia: “La causa del Partido Liberal es distinta de la causa maderista, por ser la liberal la causa de los pobres; pero en caso dado, ya sea para la resistencia como para el ataque, pueden com-binarse ambas fuerzas y permanecer combinadas por todo el tiempo que dure tal necesidad”. Agora se escreve: “En ningún caso deberán combinarse las fuerzas liberales con las fuerzas maderistas”.

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de forças no futuro do processo: somente em 1916, passado o ápice do impulso revolucionário, os magonistas deixariam de tratar Villa como um bandido.15

A ruptura da possibilidade de aliança supra-classista com o setor anti-porfi rista das elites representado pelo maderismo, aliada à generalização do enfrentamento no campo protagonizado pela miríade de forças populares, resultou em uma gui-nada ideológica nas páginas de Regeneración: a denúncia social é dirigida cada vez mais diretamente contra a propriedade privada e o capitalismo16, respondendo, de um lado, a uma aceleração do processo revolucionário e, de outro, ao desígnio de diferenciação em relação ao maderismo, cujo prestígio cresce a despeito dos seus propósitos sociais acanhados. Constrangido a se posicionar em relação às negociações de Madero com Díaz, Flores Magón expressa pela primeira vez com clareza o desígnio de expropriação imediata das forças produtivas – e não só da terra: “La Junta contestó que no ha tomado parte en ésas negociaciones ni está por la paz, á menos que se acepten todas las demandas del Partido Liberal Mexicano comenzando por la expropiación de la tierra y de los útiles de trabajo para que tome posesión de todo ello el pueblo (...)”.17

A trajetória de Madero chega a seu ápice em maio de 1911, quando as forças combinadas de Villa e Orozco tomam Ciudad Juárez a despeito de ordens con-trárias do seu líder político, precipitando a queda de Porfi rio Díaz e a assinatura do tratado de paz nesta cidade. O ditador deixa o país rumo ao exílio francês, e no começo de junho Madero entra triunfante na Cidade do México. O partido Antireeleccionista convoca eleições para outubro, entende que a revolução está encerrada e assume a tarefa de concluir a pacifi cação do país: “Madero had considered Porfi rio Díaz as his primary enemy, and once Díaz was gone, he felt he could now turn his energies toward combating the radical revolutionaries”.18

15 Sobre as relações entre Madero, Villa e os liberais ver: KATZ, Friederich. The life and times of Pancho Villa. Palo Alto: Stanford University Press, California, 1998.

16 Uma busca por palavras na versão digitalizada de Regeneración confirma esta afirmação: a consigna Tierra y Libertad se generaliza a partir de março de 1911, número 26; o termo expro-piación, a partir do número 29; propriedad individual observa-se a partir do número 33, de abril; proletário, embora ocorra anteriormente, se afirma como tratamento vocativo; propiedad privada se generaliza a partir do número 50, agosto 1911, conjuntamente com comunismo; capitalismo recorre a partir do número 20. Regeneración. Edição digital completa em CD Rom.

17 Artigo: NO QUEREMOS UNA PAZ INFAME. “La Prensa Unida preguntó – hoy (31 de Marzo) a la Junta Organizadora del Partido Liberal Mexicano si habia tomado parte en las conferencias de paz celebradas entre representantes de Porfirio Díaz y de Francisco I. Madero”. E segue a citação acima. Regeneración (1/4/1911). Em: edição digital completa em CD Rom.

18 KATZ, Friederich. The life and times of Pancho Villa. Palo Alto: Stanford University Press, 1998, p. 130.

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Embora as forças identifi cadas com os liberais não fossem o contingente radical mais beligerante em uma circunstância onde os zapatistas, por exem-plo, já estavam rebelados em Morelos, o novo presidente não poupou esforços para submetê-los, recorrendo à cooptação ou ao esmagamento. Menos de uma semana depois da entrada triunfal de Madero na capital, a Junta Liberal recebeu na Califórnia a visita de Juan Sarabia, mártir liberal recém-egresso do infame presídio de San Juan de Ulúa, e Jesus Flores Magón, irmão mais velho do líder liberal. Sua missão, que não teve sucesso, era conseguir a adesão dos magonistas ao novo regime. A intransigência da Junta foi premiada com a prisão de seus líderes, Flores Magón inclusive, pela polícia dos Estados Unidos no dia seguinte, sob a acusação de infringir as leis de neutralidade.

Um mês depois, o conjunto de liberais que romperam com a Junta no exílio e optaram pelo apoio crítico a Madero organizaram a dissidência através da Junta Iniciadora de la Reorganización del Partido Liberal na Ci-dade do México, dando início à publicação de um periódico de vida curta, também chamado Regeneración.19 Esse movimento corresponde à ruptura dos socialistas dos Estados Unidos com os magonistas pelo mesmo moti-vo, inaugurando uma polêmica acerca do caráter da Revolução Mexicana.

Onde a cooptação foi insufi ciente para submeter os focos de rebeldia, Madero não vacilou em empregar o exército federal na sua repressão. Do lado magonista, embora em muitos casos seja difícil precisar a fi liação partidária dos bandos levantados, é plausível que durante 1911 houvesse grupos identifi cados com o liberalismo em armas em todo o país.

No entanto, a ação mais espetacular impulsionada pela Junta acontecia no remoto território de Baja California, na fronteira com os Estados Unidos na costa oeste. Ali, uma força estimada em 220 homens, liderada por mexicanos e integrada por radicais e simpatizantes de múltiplas nacionalidades, muitos deles fi liados à IWW (Industrial Workers of the World), lançou um assalto no fi nal de janeiro de 1911 e tomou a cidade de Mexicali. Em fevereiro seria tomada Algodones,

19 Muitos quadros liberais dissidentes desenvolverão uma intensa atividade política nos anos seguintes, principalmente no interior do movimento operário mexicano, que transcenderá o pe-ríodo revolucionário. Alguns se juntarão ao zapatismo enquanto outros seguirão carreira política, participando da Assembleia Constituinte em 1917 e/ou assumindo cargos públicos nos governos sucessivos. Um grupo de dissidentes se aproximou do pequeno recém-formado Partido Socialista, desenvolvendo atividades significativas no movimento operário mexicano e participando da fundação da Casa del Obrero Mundial. Parte do PS desaguaria na fundação do Partido Comu-nista Mexicano em 1919. Ver: TORRES PARÉS, Javier. La revolución sin fronteras. Cidade do México: UNAM, 1990, p. 139-142.

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em março Tecate e em maio, nos mesmos dias do assalto a Ciudad Juarez em Chihuahua, Tijuana. Ao que tudo indica, a intenção dos liberais era estabelecer uma espécie de território livre que pudesse servir de base e retaguarda para a expansão do movimento armado.

Mas o projeto não vai adiante: abalado por dissidências internas, deserções para o maderismo e uma campanha difamatória bi-nacional que acusa propósitos fi libusteiros à iniciativa, a região é gradualmente recuperada a partir de 22 de junho quando as forças federais, respondendo agora a Francisco Madero, retomam Tijuana com o apoio explícito do governo dos Estados Unidos, que permite o deslocamento de tropas através do seu território.20

Simultaneamente à derrota militar, a esperança dos magonistas se deslocou para o movimento operário, que, dando vazão às represadas reivindicações dos trabalhadores urbanos, estava em vigoroso ascenso em todo o país desde a queda da ditadura.21 Os magonistas estimulam entusiasticamente as greves, insistindo na necessidade de transcender a sua modalidade pacífi ca, limitada a frear a pro-dução, e partir para a expropriação dos meios de produção com o objetivo de consolidar a liberdade econômica. O caráter econômico da revolução em curso é defendido na manchete da edição de 8 de julho:“La Revolución economica en México – la huelga general en casi todo el país”.22

Ao apontar para a dimensão econômica da revolução, os magonistas enfati-zam a tendência ao enfrentamento direto e imediato do capitalismo. Com isso, o alcance do processo mexicano transcenderia as fronteiras nacionais, assumindo a vanguarda mundial no enfrentamento deste sistema. A causa mexicana per-tence então à classe trabalhadora mundial. Nessa circunstância, Flores Magón intensifi ca a mobilização da solidariedade internacional de classe e é levado a

20 Neste mesmo período, os maderistas acordam uma trégua com os zapatistas em Morelos, rompida em agosto quando o general Huerta ataca e aniquila as forças desarmadas de Zapata. Como se sabe, esse exército federal não foi desmontado por Madero e dará o golpe liderado pelo próprio Huerta, que culminará no assassinato de Madero em fevereiro de 1913. A rede de espionagem internacional montada por Creel também foi utilizada por Madero. Ver: RAAT, Dirk. Los revol-tosos. Rebeldes mexicanos en los Estados Unidos (1903-1923). Cidade do México: FCE, 1993.

21 “Al propagarse por la República la noticia de la rebelión maderista, se formó de modo inmediato una gran variedad de sindicatos y agrupaciones obreras cuya ideología iba desde el mutualismo tradicional hasta el anarcosindicalismo”. CARR, Barry. El movimiento obrero y la política en México. 1910/1929. Cidade do México: Era, 1981, p. 45. “En junio de 1911 se inició una ola de huelgas que barrió todo el país, exigiéndose grandes aumentos de salarios, la reducción de la jornada de trabajo y la abolición de algunas prácticas administrativas hostiles a los obreros”. Idem, Ibidem.

22 Regeneración, n. 45 (8/7/1911). Edição digital completa.

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desafi ar teoricamente a leitura dos socialistas dos Estados Unidos, os quais, em sintonia com os liberais dissidentes que apoiam o maderismo, entendem que a Revolução Mexicana está encerrada. Nessa tarefa, Flores Magón precisa enfren-tar o etnocentrismo do movimento operário internacional e provar que o povo mexicano rebelado, apesar do atraso civilizatório a que a ditadura o confi nou, está em condições de proceder à luta anticapitalista. Em outras palavras, precisa enfrentar o desafi o teórico de fundamentar a revolução em um país agrário, tornando positiva a especifi cidade mexicana.

Esta tarefa é realizada através de um duplo movimento. De um lado, Magón reafi rma a natureza anti-autoritária dos homens em geral e dos mexicanos em particular, dadas as circunstâncias repressoras em que vivem. Consequência desta aproximação entre rebeldia e natureza humana é a afi rmação da primazia da ação sobre a liderança e a ilustração:

Para la toma de posesión de la tierra y de los instrumentos de trabajo en México no se ha necesitado de “leaders”, de “amigos” de la clase trabajadora, ni han hecho falta – “decretos paternales”,”leyes sabias” ni nada de eso. La acción lo ha hecho y lo está haciendo todo.23

Este movimento contradiz a visão liberal prevalente nos anos pré-revolu-cionários, segundo a qual o partido deveria cumprir um papel fundamental para canalizar as energias rebeldes latentes.24

De outro lado, Magón procede a uma valorização do legado indígena para a formação mexicana: ao identifi car uma prática comunista nas formas pré-colom-bianas de organização da produção no campo mexicano, ele recusa a associação de índios e camponeses com o atraso, apontando um potencial progressista nos modos de vida ancestrais. Por trás desta reivindicação política está um movimen-to ideológico de aproximação entre a natureza humana e o comunismo. Diante destes argumentos, a conclusão se impõe: “Se ve, pues, que el pueblo mexicano

23 El pueblo mexicano es apto para el comunismo. Regeneración, n. 53 (2/9/1911). Edição digital completa em CD Rom.

24 “Pero si este movimiento espontáneo, producido por el instinto de la propia conservación, es inconsciente para la masa obrera mexicana, en general no lo es para una minoría selecta de la clase trabajadora de nuestro país, verdadero núcleo del gran organismo que resolverá el proble-ma social en un porvenir cercano”. En pos de la libertad. Regeneración, novembro de 1910. In: BARTRA, Armando (Prólogo, seleción y notas). Regeneración, 1900-1918. La corriente más radical de la revolución mexicana de 1910 a 1918 através de su periódico de combate. Cidade do México: Era, 1977, p. 246.

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es apto para llegar al comunismo, porque lo ha practicado, al menos em parte, desde hace siglos”.25

Esta posição se cristaliza no manifesto publicado pela Junta Liberal em 23 de setembro de 1911, o qual procura superar o programa de 1906, propondo o enfrentamento imediato da propriedade privada.

La Junta Organizadora del Partido Liberal mexicano ve con simpatia vuestros esfuerzos para poner em práctica los altos ideales de emancipcaión política, econômica y social, cuyo império sobre la tierra ponderá fi n a esa ua bastante larga contienda del hombre contra el hombre, que tiene su origen en la desigualdad de fortunas que nace del principio de la propiedad privada.26

A radicalização programática da Junta corresponde à progressiva frustração da liderança militar liberal. Diante da impotência para conduzir o movimento no seu primeiro ano, confrontada com a ascensão de Madero, a generalização da guerra camponesa e as hesitações e contradições do movimento urbano, a Junta não re-vigora esforços no sentido de constituir uma direção política nacional alternativa ao maderismo e seus congêneres. Em vez disso, centra progressivamente suas esperanças na realização instintiva das aspirações anticapitalistas dos trabalha-dores: “El pueblo mexicano odia, por instinto a la Autoridad y a la burguesía”.27 Nessa perspectiva, o êxito da luta depende não de uma direção efi caz, mas da emancipação de individualidades oprimidas. É o indivíduo consciente, e não o partido, que se opõe à massa passiva, dependente da ação de um chefe: “No hay que ser masa: hay que ser conjunto de individualidades pensantes”.28

Assim como a rebeldia é individualizada, a implementação da sociedade sem autoridade é fragmentada, delegada à miríade de focos de insubordinação espalhados pelo país, que procedem de forma imediata à sua realização. Como consequência, estão ausentes os problemas da centralização do poder revolucio-nário, do Estado e da transição à sociedade sem classes.

É nesta perspectiva que se entende a relutância de Flores Magón em trans-ladar-se para território revolucionário. Vista do ângulo da inexorabilidade da revolução, certamente favorecido pela sequência dos eventos onde sucessivos

25 El pueblo mexicano es apto para el comunismo. Regeneración, n. 53 (2/9/1911). Edição digital completa em CD Rom.

26 Manifiesto del 23 de septiembre de 1911. Regeneración. Edição digital completa em CD Rom. 27 FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras Completas – Vol. I. Correspondencia (1898-1918). BAR-

RERA BASSOLS, Jacinto (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta, 2001, p. 636.

28 Los Jefes. Regeneración (15/6/1912). Edição digital completa em CD Rom.

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governos tombaram, Flores Magón enxerga no processo mexicano um capítulo extraordinário do enfrentamento mundial entre o trabalho e o capital, atribuindo papel fundamental à solidariedade internacional das classes trabalhadoras, a qual tem como papel precípuo frear o intervencionismo dos Estados Unidos, principal ameaça ao fl uxo espontâneo da insurreição. Avalia que o melhor serviço que pode prestar à causa não é a sua condução, que de todo modo não é factível postular, mas auxiliar na proteção necessária para que os acontecimentos sigam seu curso. Daí a recusa da Junta em transladar as ofi cinas de Regeneración para Morelos, a convite de Zapata.29

No entanto, esta opção deve ser vista à luz da derrota militar inicial dos liberais, uma vez que fazia parte dos planos originais da Junta transferir-se para território mexicano. Além disso, Flores Magón não alimentava ilusões acerca das possibilidades de mobilização do povo dos Estados Unidos, e logo se defrontou com a incompreensão de correligionários no próprio movimento anarquista inter-nacional. Nesse contexto, a infl exão do seu pensamento aparece como uma respos-ta ideológica coerente diante dos constrangimentos apresentados pela conjuntura.

Do ponto de vista político, a mobilização da solidariedade internacional contra o intervencionismo estadunidense ganha uma importância central. A abordagem da questão por Magón é feita sob o ângulo a partir do qual ele sempre denunciou a ascendente participação econômica dos Estados Unidos no México: embora refi ra-se à ação dos monopólios, à cooperação entre os estados na repressão à oposição, à exploração dos trabalhadores mexicanos nos Estados Unidos e à relação deste país com a situação dos trabalhadores nacionais, Mágon nunca articulou tais problemas em uma visão estrutural dos nexos entre imperialismo e dependência. Sua denúncia da penetração do capital estadunidense esteve sempre relacionada ao risco concreto da invasão militar: “Muchos creían inofensiva la invasión del capital americano, sin sospechar que cada dólar invertido en nuestro

29 A ruptura de Zapata com Madero favoreceu uma intensificação da relação com os liberais a partir de 1912: um enviado magonista de nome José Guerra sugeriu mudar o lema Justicia, Libertad y Ley para Tierra y Libertad, adotado pelo exército suriano. Regeneración publicou manifestos zapatistas e os defendeu em polêmicas internacionais. Flores Magón menciona o convite a transladar-se em um artigo em 1915: “La gran fábrica de papel de San Rafael, de la que eran accionistas principales Porfirio Díaz, José Sánchez Ramos y otros “científicos”, se encuentra em poder de los zapatistas, y Emiliano Zapata ofreció a Antonio de P. Araujo poner a disposición de Regeneración todo el papel que se necesitara, em caso de que el periódico se publicase en território controlado por las fuerzas surianas”. Contra el Zapatismo. Regeneración, n 209 (23/10/1915). In: BARTRA, Armando. (Prólogo, seleción y notas). Regeneración, 1900-1918. La corriente más radical de la revolución mexicana de 1910 a 1918 através de su peródico de combate. Cidade do México: Era, 1977, p. 360.

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país está apoyado por una bayoneta sajona pronta a derramar sangre mexicana al primer síntoma de peligro”.30

A internacionalização do enfoque revolucionário, que corresponde à radi-calização anticapitalista do discurso magonista, provoca o recrudescimento da perseguição política das autoridades dos Estados Unidos. Além do crescente envolvimento deste país com o confl ito mexicano, a convergência da propaganda liberal com o radicalismo dos trabalhadores nacionais leva o governo dos Estados Unidos a assumir a perseguição liberal por conta própria. Como resultado, Flo-res Magón é preso duas vezes em 1911 por períodos curtos, e no ano seguinte é condenado por violação das leis de neutralidade em função do episódio da Baja California, fi cando encarcerado até janeiro de 1914.

Neste meio tempo o comandante liberal Jesús Maria Rangel, preso pelas tropas maderistas em 1911, obteve a liberdade com a derrubada de Madero em fevereiro de 1913. Logo depois de entrevistar-se com Zapata, com o objetivo de coordenar esforços militares, rumou ao Texas onde organizou uma pequena milícia que foi surpreendida por forças dos Estados Unidos antes de atravessar a fronteira. Os liberais capturados foram sentenciados a altíssimas penas, o que gerou uma vigorosa, embora infrutífera, campanha em favor da libertação dos “mártires do Texas”. Foi a última tentativa de uma iniciativa militar explicitamen-te sob a bandeira liberal. Embora em junho de 1914, novamente em liberdade, Flores Magón tenha enumerado um conjunto de forças liberais em batalha, é difícil saber a quem elas realmente obedeciam, sendo improvável que fossem fi éis a qualquer comando unifi cado.31

Ainda que o poder de mobilização magonista decline defi nitivamente a partir de 1914, o acirramento da perseguição aos movimentos de esquerda nos Estados

30 FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras Completas – Vol. I. Correspondencia (1898-1918). BAR-RERA BASSOLS, Jacinto. (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta, 2001, p. 339.

31 Torres Parés descreve os esforços conduzidos por Jesús Rangel. Em seguida pondera: “El balance de la situación de las fuerzas liberales realizado por Ricardo Flores Magón en junio de 1914 no necesariamente representa um recuento exacto de su capacidad militar. Es en realidad uma valo-ración de carácter político (...)” TORRES PARÉS. La Revolución sin frontera. Cidade do México: UNAM, 1990, p. 185. Em outro lugar, este autor sugere: “(...) pertinente abordar la crítica del pensamiento magonista desde la perspectiva de su función política, es decir, entendida como un “fermento”, como una “incitación a la acción”, y no solo desde el punto de vista de la precisión de sus datos”. Embora seja evidente que o pensamento magonista obedeça ao imperativo da ação política, a sua evolução segue uma coerência interna lastreada em uma visão de mundo própria e na avaliação da conjuntura, que deve ser explicitada para que se proceda à crítica, sem necessidade de recorrer a uma explicação apoiada em Georges Sorel (1847-1922), como sugere Torres Parés.

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Unidos diante da Grande Guerra e da revolução bolchevique atingiu os líderes liberais.32 Magón é preso novamente em fevereiro de 1916 por seis meses, junto com seu irmão Enrique. Em 1918, é condenado por violação às leis de espiona-gem em função de um manifesto que assinara, o que lhe impõe uma sentença de 20 anos de prisão e multa de U$ 5000. Com 45 anos, a saúde comprometida por múltiplas complicações que certamente se agravariam no cárcere, quase cego, o líder liberal interpretou corretamente esta sentença como uma prisão perpétua.

Morreu em novembro de 1921, provavelmente assassinado na prisão. Seu corpo foi imediatamente solicitado pelo congresso mexicano, inefi caz até então para pressionar pela sua libertação em vida,33 e trazido para o país por intermédio dos trabalhadores ferroviários. Sua fi gura começava a ser reivindicada ideologica-mente pelo Estado, em uma operação de incorporação e neutralização ideológica dos adeptos irredutíveis da causa popular na Revolução Mexicana derrotada.34

Balanço político e ideológicoA implacável perseguição engendrada pela ditadura contra os liberais mexi-

canos, no país e no exílio, limitou o êxito de suas tentativas de liderar a revolta anti-porfi rista. Quando a luta armada afi nal desencadeou-se, logo fi cou evidente a incompatibilidade entre o conteúdo democrático da revolução defendida pelos liberais e a luta política empreendida pelo maderismo. Uma vez derrubada a di-tadura, as forças triunfantes voltaram-se para a contenção dos setores populares, segundo um padrão que prevaleceria ao longo do processo. As sucessivas derrotas das tentativas de conter a pressão popular revolucionária são testemunho da for-midável energia política mobilizada, ao mesmo tempo que explicitam a rigidez dos constrangimentos sob os quais operava a classe dominante, dividida e incapaz de integrar as demandas sociais como caminho para a paz nacional. Diante desta disjuntiva, o magonismo radicalizou suas consignas, explicitando uma permeabi-

32 O refluxo do ímpeto popular da revolução não arrefeceu o otimismo dos artigos em Regeneración, compensado por uma crescente esperança na radicalização da conjuntura mundial. Neste período, Magón reforça a orientação pedagógica dos seus escritos: publica curtas parábolas destinadas aos trabalhadores e elabora duas peças de teatro.

33 Enquanto esteve preso, declinou oferta do governo dos Estados Unidos para ser libertado mediante uma confissão de arrependimento, ao mesmo tempo em que viu a justiça negar sistematicamente qualquer atenuante à sua condição carcerária, apesar da piora dramática do seu estado de saúde. Re-cusou também uma pensão vitalícia oferecida pelo governo mexicano recém-egresso da revolução.

34 Magón foi sepultado no Panteon Francés (cemitério no sul da capital). Em 1937 o governo Cárdenas, principal responsável pela reivindicação de Pancho Villa, iniciou gestão para trasladar seus restos mortais para a Rotonda de los Hombres Ilustres, no Panteón de Dolores.

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lidade ideológica que permitiu novas respostas teóricas ao movimento da conjun-tura, de modo a revelar-se, ao mesmo tempo, como virtude e debilidade política.

A resposta magonista à prova revolucionária revelou uma fi na sensibilidade para a dinâmica da luta de classes no México. Na medida em que se evidenciou a intransigência social das classes dominantes e o potencial subversivo da luta no campo, Flores Magón assumiu o desafi o de fundamentar a revolução anti-capitalista em um país agrário. Sua argumentação segue um duplo movimento: por um lado, valoriza a tendência anti-autoritária, que interpreta como instintiva aos homens; por outro lado, reivindica o legado das instituições indígenas para a formação mexicana, identifi cando-as com um passado comunista de potencial progressista.

A consequência deste movimento teórico é um rebaixamento do imperativo da direção política em nome de uma valorização da iniciativa instintiva das massas, em oposição à racionalidade política anteriormente afi rmada por Flores Magón. Nessa perspectiva, a função da minoria consciente se dilui diante do espetáculo irresistível do fl uxo da ação humana liberado. Uma vez removidos os impedimentos históricos de caráter autoritário, a natureza humana, boa e solidária, se imporá.35

Na raiz do esvaziamento das mediações entre natureza e história está uma correspondência entre instinto e liberdade, plena de consequências políticas: a noção de que a remoção dos entraves históricos conduz ao fl uxo da natureza humana implica na prescindência de qualquer modalidade de centralização do poder, interpretada como contraditória ao caráter natural, instintivo e solidário da liberdade. Daí a ausência de uma teoria da transição, do Estado, e de um trabalho de direção revolucionária.36

35 Esta convergência entre natureza e história que se explicita no curso da revolução e conduz à subordinação do movimento à ação, aponta para uma influência positivista na visão de mundo magonista, no sentido de uma tendência a naturalizar as dinâmicas sociais e os processos da história em oposição a uma abordagem dialética destes fenômenos. A marca do positivismo em sua formação é enfatizada por Blanquel: “Flores Magón se formó pues en el positivismo, es decir, en el cuerpo de ideas que adaptadas a la realidad mexicana, fuero en soporte de la cultura y también, en buena parte, del quehacer social y político del México porfiriano”. BLANQUEL, Eduardo. Ricardo Flores Magón. Cidade do México: Editorial Terra Nova, 1985, p. 23. Eviden-temente, Flores Magón não comunga do sentido político do pensamento positivo, situando-se nas antípodas de qualquer apologia da ordem. Sobre a oposição entre positivismo e dialética ver: MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeio: Paz e Terra, 2ª edição, 1978, p. 302.

36 “Sin embargo, la problemática del pensamiento anarquista se hace patente cuando se analiza la conceptualización del tránsito desde la realidad sojuzgada del presente al futuro de libertad. Como este futuro es un futuro de relaciones sociales sin ninguna institucionalización y sin autoridad, el anarquista no puede pensar el tránsito al futuro en términos mediatizados; entre el presente

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Como resultado, à medida que o Partido Liberal é derrotado militarmente, ao tempo em que a revolução camponesa experimenta um ascenso fulminante, em lugar de requalifi car os desafi os da vanguarda revolucionária, Flores Magón interpreta positivamente as possibilidades da ação espontânea. Paradoxalmente, no momento em que a revolução ascende, o partido tem debilitadas suas possi-bilidades organizativas. Isso se deve primordialmente à derrota militar, mas é reforçado pela avaliação de que a revolução deve prescindir de chefes, o que, em nome da superestimação dos impulsos revolucionários, encolhe o terreno da ação política dirigida. Em uma palavra, a política cede terreno para a natureza.

Do ponto de vista do pensamento histórico, este encolhimento da política tem por consequência um acento na inexorabilidade da revolução mundial. Ao enfa-tizar os vínculos do processo mexicano com o movimento da história universal, que estaria destinado a superar o capitalismo, seu enfoque da revolução passa a ter uma angulação mundial, assentado em uma teleologia antes ausente, quando seus artigos estavam rigorosamente enquadrados pelo dinamismo da conjuntura mexicana imediata. Ao estreitamento do pensamento político corresponde um alargamento da teleologia histórica.

Em suma, quando a revolução é detonada, observa-se um encolhimento do espaço e da necessidade de atuação política em nome de uma prevalência das determinações da natureza: o instinto e a teleologia entram no lugar da vanguarda e do partido. A consequência programática é a ausência de um projeto nacional mediado pelo Estado e a aposta no enfrentamento direto e localizado da pro-priedade privada: o horizonte magonista é o de uma federação supranacional de produtores solidários. Seu projeto conjuga diretamente o local, que remete ao passado das tradições comunais indígenas, com as tendências anticapitalistas do proletariado mundial: “Flores Magón, sin abandonar el siglo XIX, se incorporo de lleno en el siglo XX”.37

Ao abandonar o projeto nacional em nome de uma naturalização do curso da história – ancorado em uma valorização dos instintos populares desencade-ados pela revolução, minimizando a importância das tarefas organizativas e de

y el futuro hay un abismo sin ningún puente institucional”. HINKELAMMERT, Franz. Crítica de la razón utópica. Edição virtual disponível no sítio: www.pensamientocritico.info.libros. De outro lado, o maderismo e os exércitos sucessivos que combateram reivindicando o seu legado não sofreram essa limitação, balizando a sua ação pelo mínimo denominador comum entre a reforma política e a contenção da rebeldia popular, o que lhes permitiu concessões demagógicas e alianças espúrias funcionais em nome de um projeto de poder. A liderança de tipo caudilhesco se mostrou eficaz para gerar coesão política e motivar a adesão popular.

37 TORRES PARÉS, Javier. La Revolución sin frontera. Cidade do México: UNAM, 1990, p. 173.

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direção –, os magonistas inadvertidamente reforçaram a principal debilidade do campo popular na revolução: sua incapacidade de superar o regionalismo em nome de um projeto de nação, em meio a uma guerra camponesa prolongada.38

Esta carência se evidenciou de forma dramática em dezembro de 1914 quando o chamado Exército Constitucionalista, liderado por Venustiano Carranza, estava acuado em Veracruz e o movimento popular atingiu seu ápice, emblematicamente registrado na fotografi a de Pancho Villa sentado ao lado de Emiliano Zapata na cadeira presidencial. O triunfo momentâneo em armas, no entanto, não se traduziu na consumação da reivindicação dos de baixo. Na raiz desse fracasso encontram-se a impossibilidade dos zapatistas de avançarem para além das co-munas agrárias de Morelos, bem como a incapacidade de Villa de superar uma visão regionalista, marcada pelo ódio às oligarquias, a resistência à centralização e o desprezo pela democracia. Apesar das limitações militares que derrotariam a División Del Norte no ano seguinte, do ponto de vista político, as forças villistas e zapatistas se revelaram incapazes de articular uma alternativa sólida de poder nacional, e o governo estabelecido a partir da convenção de Aguascalientes rapidamente naufragou. A ausência no plano ideológico de um projeto nacional defi nido correspondeu, em termos políticos, à incapacidade de constituir uma alternativa de poder autônoma e viável de alcance nacional.39

O magonismo foi incapaz política e ideologicamente de contribuir para superar esta lacuna. Por outro lado, a falta de rigidez teórica de um pensamento que advogava a primazia da ação favoreceu uma sensibilidade avessa a todo dogmatismo e atenta aos movimentos da conjuntura. Isto possibilitou a Flores Magón manter à frente de Regeneración uma crítica vigorosa e lúcida tanto antes quanto durante o processo revolucionário, denunciando as manobras contra--revolucionárias até a extinção fi nal do periódico em 1918. Esta sensibilidade

38 Na visão de Bartra, neste contexto o desafio enfrentado pelo PLM a partir de 1911 seria “organizar y dirigir el campesinato, no como um partido distinto sino como la fuerza mayoritaria del propio partido proletário... Ante una revolución que no podía resolverse más que como una guerra popular y prolongada en el campo, la única alternativa viable era del tipo de la que implantó, muchos años después, el Partido Comunista Chino”. BARTRA, Armando. La revolución mexicana de 1910 en la perspectiva del magonismo. In: GILLY, Adolfo (Org.). Interpretaciones de la Revolución Mexicana. Cidade do México: UNAM, Editorial Nueva Imagen, 1980, p. 107.

39 O “Programa de reformas político-sociales de la revolución aprobado por la soberana convención revolucionaria” divulgado pelos zapatistas desde Morelos em 18 de abril de 1916 é um notável esforço para responder a este desafio em um momento em que o campo popular já perdera a iniciativa revolucionária. In: DÍAZ, Lilia (selección y traducción). Planes políticos y otros do-cumentos. Fuentes para la historia de la Revolución Mexicana. Prólogo de Manuel González Ramirez. Cidade do México: FCE, 1954, p. 123-8.

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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.

permitiu ao líder liberal reconhecer o protagonismo camponês no processo, apoiá-lo entusiasticamente e ser com ele derrotado.

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RESENHAS

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Resenha: VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Alberto Luiz Schneider1

Pós-doutorando no Departamento de História, Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Ventura e desventura dos judeus portugueses no Nordeste do BrasilO mais recente livro do historiador Ronaldo Vainfas – autor de obras como

Heresias dos Índios e Trópico dos Pecados – é um instigante exercício intelectual de História. Afi nal, história não se confunde com o passado em si. Trata-se, como nos lembra Reinhat Koselleck, de uma narrativa impregnada pelo presente, um tempo marcado pela tensão entre o “espaço de experiência” (passado) e o “ho-rizonte de expectativas” (futuro) – uma tensão que é inerente ao conhecimento historiográfi co.2

A presença holandesa em Pernambuco – e junto dela a formação de uma comunidade de judeus sefarditas – é um antigo topos da historiografi a brasileira, presente já na História Geral do Brasil (1854-57) e na História das Lutas con-tra os Holandeses no Brasil desde 1624 a 1654 (1871), de Francisco Adolfo de Varnhagen. Ronaldo Vainfas, portanto, revisita um velho tema à luz do moderno ferramental historiográfi co.

Perseguidos pela Inquisição na Espanha e Portugal – onde acabaram expulsos ou convertidos à força – muitos dos judeus ibéricos, já na condição de cristãos-

1 Doutor em História pela Unicamp, com pós-doutorado no Departamento de Português e Estudos Brasileiros do King’s College London. É autor de Silvio Romero: Hermeneuta do Brasil (Anna-blume, 2005). Foi professor convidado do Departamento de Português da Tokyo University of Foreign Studies.

2 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

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Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.

-novos, convergiram à Holanda, notadamente Amsterdã, desde o fi nal do século XVI, mas principalmente a partir das primeiras décadas do século XVII – quando “retornaram” ao judaísmo, gozando da relativa liberdade religiosa dos Países Baixos. No ano 1609 – ainda no período da União Ibérica (1580-1640) – após longa guerra entre a Espanha dos Habsburgos e as nascentes Províncias Unidas dos Países Baixos (então pertencentes à Coroa espanhola), chegou-se à paz pro-visória. No entanto, as hostilidades ibérico-holandesas haveriam de continuar.

Os holandeses desafi avam o poderio português no Oriente havia décadas. A fundação da Companhia das Índias Ocidentais, em 1621, foi um passo a mais na luta holandesa pelo açúcar produzido na América portuguesa. Depois de tentar tomar Salvador da Bahia, em 1624, Pernambuco cai em mãos batavas, em 1630. Junto aos holandeses, vieram os judeus sefarditas, com o apoio da Companhia das Índias Ocidentais, que sabia bem da funcionalidade desses homens e da utilidade de seus capitais.

É no interior dessa quadratura histórica que transcorrerá a leitura de Ronaldo Vainfas, interessado em narrar a vida e a morte do que chamou de Jerusalém Colonial.

Fronteiras culturais, religiosas e linguísticasNos Países Baixos, embora predominasse a liberdade religiosa, o “calvinismo

era a religião ofi cial e fundamento da identidade política”.3 Os calvinistas não rara-mente admoestavam os judeus e principalmente os católicos, mas não havia nada semelhante à Inquisição. Os interesses comerciais e a tolerância religiosa criaram as condições para que ali se estruturasse uma comunidade de judeus sefarditas.

Tratava-se de uma comunidade nova, singular, cujo rabinato era rigorosís-simo, não apenas quanto ao rito judaico. Os sefarditas que acorriam a Amsterdã eram quase sempre cristãos-novos, que viviam publicamente como católicos, praticando o judaísmo no ambiente doméstico. Muitas das famílias viviam havia duas ou três gerações como católicas, portanto, não praticavam a circuncisão, não dominavam o hebraico e não conheciam os livros sagrados, pois não tinham uma vida comunitária disciplinada pela sinagoga. Logo, não se pode falar, a rigor, de uma volta ao judaísmo, mas sim de uma conversão à religião que seus pais e avós foram obrigados a abandonar. A comunidade era particularmente ortodoxa quanto às práticas religiosas, talvez em decorrência da insegurança quanto à

3 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 23.

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Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.

consistência do judaísmo que praticavam. Vainfas se apropria do conceito de “judeu-novo”, cunhado pelo historiador Yosef Kaplan, para exprimir as ambi-valências, dualidades e inseguranças – e até mesmo os excessos de radicalismo – da comunidade sefardita de Amsterdã:

Mas é claro que os protagonistas dessa metamorfose identitária não se viam como ‘judeus novos’, senão como judeus que, à custa de muito esforço, tentavam resgatar uma identidade sufocada pelo catolicismo inquisitorial (...). O pressuposto de um judaísmo inquebrantável na alma e na progênie de cada cristão-novo era o núcleo ideológico da comunidade.4

Os sefarditas, ou “judeus-novos” de Amsterdã, se sentiam profundamente diferentes dos ashkenazim – judeus das regiões centrais da Europa, cujo idioma era o iídiche – ao ponto de recusarem casamentos com os “tudescos” ou “pola-cos”. O modelo de matrimônio era uma questão importante para o grupo, pois dele dependia a reprodução e o projeto de perpetuação da comunidade. O típico homem da nação era necessariamente português ou espanhol e desse grupo cul-tural deveriam sair os cônjuges ideais. Não havia qualquer problema se fossem cristãos-novos, desde que ibéricos e dispostos a “voltar” ao judaísmo. Vainfas lembra que “o afl uxo cada vez maior de ashkenazim de origem alemã e polonesa (...), a maioria deles muito pobres, se tornou motivo de preocupação central das autoridades sefarditas. (...) Os sefardins portugueses se esforçaram ao máximo para se distinguir dos recém-chegados do centro-leste da Europa”.5

Em Amsterdã, o português era a língua de casa, mas não da sinagoga. Os serviços religiosos eram ou em castelhano ou em hebraico, uma língua que poucos judeus conheciam bem, a exceção de alguns “judeus-velhos”, antigos sefardi-tas que haviam migrado para a Itália ou o Marrocos. O castelhano era a língua mais empregada nos rituais religiosos, ao menos na primeira metade do XVII, pois, explica Vainfas, “a primeira Bíblia judaica, restrita ao Antigo Testamento, havia sido publicada em espanhol ou ladino (versão sefardi do castelhano) e dela foram extraídos os trechos para compor diversas orações cotidianas”.6 Os judeus de Amsterdã, portanto, viviam entre quatro línguas: português em casa e holandês na rua; hebraico e castelhano na Sinagoga. Viviam também entre vários mundos. O da cultura ibérica e o da religião judaica. Mas viviam na Holanda, entre a maioria calvinista.

4 Idem, Ibidem, p. 58.5 Idem, Ibidem, p. 53.6 Idem, Ibidem, p. 65.

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Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.

A Nova HolandaEntre os 18 navios que partiram de Amsterdã, em 1634, rumo ao Recife, um

deles, chamado As três torres, era chefi ado por Moisés Cohen – cujo nome cristão era Diogo Peixoto. Essa é apenas umas das evidências levantadas por Ronaldo Vainfas para sustentar a tese de que os judeus portugueses, de fato, “auxiliaram os holandeses na conquista do nordeste açucareiro”.7 A maioria dos judeus no Brasil holandês se dedicava ao comércio, embora houvesse senhores de engenhos e lavradores. Uns poucos mercadores de grosso trato ganharam verdadeiras for-tunas e, muitos outros, ganharam a vida mercadejando no território conquistado pela Companhia das Índias Ocidentais. Os primeiros comerciavam principalmente escravos e açúcar, participando ativamente do nascente capitalismo comercial. Os outros se entregavam ao pequeno comércio.

O sucesso comercial de uns e outros – mais dos grandes do que dos pequenos – decorria menos da “ganância” e da “usura” sempre atribuída aos judeus, como queriam os pequenos comerciantes fl amengos, calvinistas, ou os cristãos-velhos luso-brasileiros. A experiência histórica dos sefarditas tornou-os, pelo menos, bilíngues. Os pequenos comerciantes neerlandeses não falavam português, o que era evidentemente uma desvantagem, como atesta um documento do Presbitério do Recife – abordado por Gonsalves de Mello em Tempo dos Flamengos e citado por Vainfas: “grande razão da preferência que os judeus têm sobre os nossos, nesse particular, é que eles usam a mesma língua dos naturais da terra”.8 Os cristãos--velhos, reinóis ou naturais da terra, em geral plantadores de cana-de-açúcar, não falavam holandês, o que também difi cultava os negócios. O bilinguismo e a rede comercial dos sefarditas foi-lhes um ativo comercial valiosíssimo, sugere Vainfas. Embora o autor, talvez, exagere na importância comercial do biliguismo dos sefarditas e minimize o alcance das complexas redes comerciais, redes que, no mundo ibérico, estavam profundamente vinculadas ao comércio transatlântico de escravos negros, como bem demonstrou Luiz Felipe de Alencastro no Trato dos viventes9 – autor não contemplado na bibliografi a do livro em questão.

O livro de Vainfas amarra várias pontas da história da Europa moderna (os confl itos religiosos, a expansão comercial, as disputas geopolíticas) e da América

7 Idem, Ibidem, p. 93.8 VAINFAS, Ronaldo, p. 201. Apud MELLO, J. A. Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência

da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. Recife: Massangana, 1987, 3ª ed. aum., p. 268-9; (original de 1947).

9 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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portuguesa (o açúcar e a escravidão, as disputas luso-holandesas, a Inquisição) dos primeiros dois séculos da experiência colonial. Contudo, Jerusalém Colonial fortaleceria sua intervenção historiográfi ca se conferisse mais ênfase à centrali-dade da escravidão na interpretação da condição colonial. Diz Laura de Mello e Souza: “Leis, relações de produção, hierarquia social, confl itualidade, exercício do poder, tudo teve, no Brasil, que se medir com o escravismo”.10 Judeus ibéricos, embora violentamente perseguidos pela Inquisição, partilharam da experiência colonial e alguns mercadores de grosso trato estavam profundamente enredados no comércio de escravos. Não que Vainfas não tangencie ou mesmo aborde o problema, mas os leitores sairiam enriquecidos se o autor valorizasse a especi-fi cidade escravista da América açucareira que, segundo Laura

não residiu na assimilação pura e simples do mundo do Antigo Regime, mas na sua recriação perversa, alimentada pelo tráfi co, pelo trabalho escravo de negros africanos, pela introdu-ção, na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural e não institucional: o escravismo.11

A leitura dos meandros identitários da comunidade sefardita é a melhor parte do livro. No Recife, a congregação Zur Israel, embora não tão ortodoxa como a Maghen Abraham, era restrita do ponto de vista cultural, chegando a não admitir a presença de cristãos-novos, a menos que estivessem em trânsito ao judaísmo. Vainfas salienta que os sefarditas, além de barrar os ashkenazim (alguns poucos deles viviam no Brasil holandês), também proibiam a circuncisão de mulatos e não admitiam casamentos com mulheres de cor, mesmo que convertidas. Lem-bremos que os sefarditas, a despeito de serem judeus, eram ibéricos.

Com a Insurreição Pernambucana – sobretudo a partir de 1649, quando os holandeses foram derrotados em Guararapes – muitos judeus portugueses começaram a retornar a Amsterdã. Durante a longa guerra de restauração, que terminará apenas em 1654, muitos judeus caíram em mãos das tropas lideradas por João Fernandes Vieira, o líder da guerra contra os batavos (e os judeus). O destino foi-lhes particularmente duro. Ou foram executados sumariamente ou encaminhados à Inquisição. Muitos cristãos-novos pernambucanos, que haviam

10 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 57.

11 SOUZA, Laura de Mello, op. cit., p. 68. A autora, nas passagens citadas, está a criticar determina-dos paradigmas assumidos por António Manuel Hespanha que, aplicados acriticamente à América portuguesa, acabam por minimizar o papel da escravidão. A historiadora, no entanto, reconhece as contribuições do historiador português. A obra de Ronaldo Vainfas não parte das premissas de Hespanha, nem se filia ao campo conceitual por ele proposto. Porém, a centralidade da escravidão na América portuguesa, que Laura remarca, é importante ao historiográfico contemporâneo.

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se convertido ao judaísmo nos tempos de Nassau, começaram rapidamente a retornar ao catolicismo. Afi nal, a iminente vitória luso-brasileira só deixava-lhes duas saídas, ou voltavam ao catolicismo, ou deixavam a terra onde viviam, alguns deles havia várias gerações.

É neste momento que a Inquisição atua poderosamente, como ressalta Vainfas, ao realizar um minucioso estudo de caso contemplando uma série de personagens que haviam vivido entre o judaísmo e o cristianismo. O autor narra, entre outras, a experiência de três cativos judeus, capturados pelos insurgentes pernambucanos quando da queda do Forte Maurício, em Penedo. Todos eles haviam nascido cristãos e adotado a lei de Moisés, religião de seus antepassados:

Gabriel Mendes viveu até os 10 anos como menino cristão, João Nunes foi católico até os 16 ou 17 anos e mesmo Diogo Henriques, criado no judaísmo de La Bastide, recebeu ins-trução católica na infância. Todos transformaram-se em judeus convictos. Judeus-novos.12

Eram homens de formação religiosa dupla, católica e judaica, originários de famílias criptojudias, que haviam passado ao judaísmo quando as circunstâncias concretas o permitiram. “Nossos cativos do Forte Maurício, agora reduzidos a três réus, uma vez provado seu batismo católico,13 viram-se na inglória tarefa de reconhecer que o judaísmo era uma heresia da qual queriam afastar-se”.14

Pesava contra os judeus portugueses um enorme ressentimento por parte dos cristãos-velhos da terra, pois eles haviam sido identifi cados como aliados dos holandeses e frequentemente acusados de espiões. Se em 1645 havia apro-ximadamente 5 mil judeus no Brasil holandês, em 1654 – quando da rendição fi nal dos batavos – havia apenas 600, uma vez que a maioria já tinha voltado para a Europa ou buscado outro destino nas Américas, em especial nas ilhas do Caribe, onde foram, junto com os holandeses, dando sequência à aliança dos sefarditas com a Companhia das Índias Ocidentais. Corre no Brasil a lenda de que os judeus de Pernambuco foram para Nova York ou mesmo “fundaram” (sic) a cidade. Deixemos Vainfas falar:

Um grupo de 23 judeus portugueses, entre homens, mulheres e crianças, foi para a América do Norte, havendo registro, datado de setembro de 1654, da presença deles em Nova Ams-terdã. Existe um senso comum, no Brasil, de que os judeus expulsos do Recife fundaram a

12 VAINFAS, Ronaldo, op.cit., p. 242.13 Se tivessem nascido judeus estariam fora da jurisdição da Inquisição. Mas, como nasceram ca-

tólicos e adotaram o judaísmo (de seus ancestrais), haviam caído em apostasia e, portanto, eram considerados hereges.

14 VAINFAS, Ronaldo, op.cit., p. 243.

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futura Nova York. É inexato. Nova York só recebeu esse nome em 1664, quando os ingleses escorraçaram os holandeses da ilha de Manhattan. (...) Na realidade, os judeus do Recife fundaram, isso sim, a primeira comunidade judaica na América do Norte, que mais tarde integrou-se às redes sefarditas antilhanas, sobretudo no século XVIII.15

Concepção e composição Em termos teóricos e metodológicos, Jerusalém Colonial é o que poderí-

amos chamar, talvez com certo exagero, de “história total”, pois a composição do argumento explora questões econômicas, como as redes comerciais do ca-pitalismo mercantil do século XVII, e questões políticas, como as vicissitudes das monarquias ibéricas relativas à política de limpeza de sangue, ou ainda a relativa tolerância das Províncias Unidas. Explora, porém, com particular ênfase questões culturais, ou antropológicas, como as metamorfoses identitárias dos se-farditas, circulando entre o judaísmo e o cristianismo, segundo as possibilidades e circunstâncias.

No debate com a historiografi a brasileira, o historiador pernambucano Gon-salves de Mello16 – autor dos clássicos Tempo dos Flamengos (1947), a grande obra sobre o período holandês no Brasil, e Gente da nação (1989), sobre judeus e cristãos-novos em Pernambuco – é uma das referências centrais. Outra inter-locutora das mais importantes é Anita Novinsky17 – autora do estudo seminal Cristãos-novos na Bahia. Aliás, Jerusalém colonial é dedicado “à memória do historiador José Antônio Gonsalves de Mello” e “para minha mestra, Anita No-vinsky”. No entanto, na construção dos argumentos e no diálogo historiográfi co, a infl uência de Gonsalves de Mello é infi nitamente maior.

Vale destacar, também, a obra erudita do romeno Elias Lipiner, que havia morado no Brasil, antes de se transferir para Israel, em 1968. Lipiner18 foi um dos maiores conhecedores da documentação sefardita, embora Vainfas discorde de algumas de suas interpretações, sobretudo na análise de Isaac de Castro,

15 Idem, Ibidem, p. 357-8.16 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Influência da ocupação holandesa

na vida e na cultura do norte do Brasil. Recife: Massangana, 1987, 3ª ed. aum., original de 1947; Gente da nação. Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: Massangana, 1996, 2ª ed.; João Fernandes Vieira: Mestre de campo do Terço de Infantaria de Pernambuco. Lisboa: Centro de Estudos do Atlântico, 2000, original de 1956.

17 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972.18 LIPINER, Elias. Izaque de Castro: o mancebo que veio preso do Brasil. Recife: Massangana,

1992, original de 1957; Baptizados em pé. Lisboa: Vega, 1998.

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mártir judeu queimado vivo pela Inquisição, em Lisboa, em 1647. O historiador e erudito português João Lúcio de Azevedo19 também serve como interlocutor de primeira grandeza.

Entre os historiadores mais recentes, Vainfas debate tanto com a historiografi a especializada nos sefarditas quanto naquela dedicada ao período holandês no Nor-deste do Brasil. Evaldo Cabral de Mello,20 herdeiro e continuador de Gonsalves de Mello, é uma das presenças mais constantes, sobretudo nos últimos capítulos, onde Vainfas trata da derrota holandesa para as forças luso-brasileiras. O britânico Jonathan Israel21 – considerado o principal historiador acerca do papel dos judeus na era moderna – é constantemente referenciado, tendo sido fundamental para traçar o papel dos judeus sefarditas nos Países Baixos. Israel, porém, contempla apenas lateralmente o caso dos judeus portugueses no Brasil holandês. O histo-riador Bruno Feitler22 foi uma das referências no debate em torno da Inquisição portuguesa e a questão judaica. A historiadora norte-americana Miriam Bodian23 foi importante para mapear as circunstâncias dos judeus portugueses a caminho da “Jerusalém do Norte”, ou seja, Amsterdã. Yosef Kaplan,24 argentino radicado em Israel, é um dos autores mais importantes para a obra de Ronaldo Vainfas, na medida em que explora a identidade dos judeus sefarditas, muitos dos quais acabaram por imigrar para o Recife. Kaplan é criador do conceito de “judeus--novos”, percepção capital na construção de Jerusalém Colonial. Chama a aten-

19 AZEVEDO, João Lúcio. História dos cristãos-novos portugueses. Lisboa: Clássica, 1989; original de 1922; História de António Vieira. São Paulo: Alameda, 2008, original de 1918-1921.

20 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, 2ª ed. rev. e aum.; Olinda Restaurada. Guerra e açúcar no nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 2ª ed. rev. e aum.; O negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste. São Paulo: Editora 34, 2002; Nassau. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

21 ISRAEL, Jonathan. The Dutch Republic. Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford: Oxford University Press, 1995; Diaspora within Diaspora. Jews, Cripto-Jews, and the Word Maritime Empire, 1540-1740. Leiden: Brill, 2002; European Jewry in the Age of Mercantilism, 1550-1750. Oxford: Oxford University Press, 2003.

22 FEITLER, Bruno. Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil. Leuven: Leuven University Press, 2003.

23 BODIAN, Miriam. Hebrews of the Portuguese Nation. Conversos and Community in Early Modern Amsterdam. Indianapolis: Indiana University Press, 1999.

24 KAPLAN, Yosef. Judíos Nuevos en Amsterdam. Estudio sobre la historia social y intelectual del judaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa Editorial, 1996. Obs.: No livro, falha na revisão: o en (esp.) passou por em (port.), na nota 16 da p. 83. From Forced Conversion to a Return to Judaism. Studia Rosenthalaliana. Amsterdam University Library, v. XV, 1, 1981, p. 37-51.

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ção a ausência de contribuições mais recentes, como os importantes aportes do historiador italiano, especialista na Inquisição portuguesa, Giuseppe Marcocci.25

Além dos contornos historiográfi cos, o autor levantou a documentação in-quisitorial portuguesa com as atas das duas congregações judaicas do Recife: a Zur Israel e a Magen Abraham. As fontes normativas das comunidades religiosas (inclusive dos calvinistas do Recife) são exploradas, com destaque para as atas e os regulamentos tanto do Sínodo da Igreja Reformada, como das referidas congregações judaicas de Pernambuco. Não menos importantes são os cronistas portugueses e neerlandeses, ou a correspondência de personagens daquele tempo, como o padre António Vieira, que o autor conhece em profundidade.26

Ronaldo Vainfas – historiador experiente nas questões relativas ao Brasil colonial e à Europa moderna – soube combinar a historiografi a acerca dos sefar-ditas com a dos holandeses no Brasil, ao que juntou sua própria erudição sobre a Inquisição portuguesa, gerando um livro de história cultural, porém atento aos infl uxos políticos e econômicos, no qual a singularidade dos personagens não impede uma perspectiva de síntese. É sempre possível estabelecer reparos e ques-tionar opções, mas não se pode negar ao livro profundidade e fl uidez do texto, ao mesmo tempo complexo e simples, permitindo várias camadas de apropriação.

Recebido: 31/03/2011 – Aprovado: 04/11/2011

25 MARCOCCI, Giuseppe. La coscienza di un impero. Politica, teologia e diritto nel Portogallo del Cinquecento. Pisa: Scuola Normale Superiore, 2008;“Catequização pelo medo”? Inquisitori, vescovi e confessori di fronte ai nuovi cristiani nel Portogallo del Cinquecento. In: Le inquisizioni cristiane e gli Ebrei. Roma: Atti dei Convegni Lincei, 2003; Custodi dell’ortodossia. Inquisizione e Chiesa nel Portogallo del Cinquecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004; Inquisição, jesuítas e cristãos-novos em Portugal no século XVI. Revista de História das Ideias, n. 25, 2004.

26 Ronaldo Vainfas acaba de lançar uma biografia de padre António Vieira para a coleção Perfis Brasileiros, pela Companhia das Letras.

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323Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 323-330, jan./jun. 2012

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografi a. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Luciano Aronne de Abreu Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

“João Goulart: uma biografia”: reflexões sobre a obra de Jorge Ferreira

O que restou da imagem de João Belchior Marques Goulart, de 1964 até os dias atuais, não passou de “memória, esquecimento e silêncio”, dada a difi culdade de se lidar com as ambiguidades humanas, como a de se admitir, por exemplo, “que um empresário rural pode, sim, ser também o político que prega, com sin-ceridade, a reforma agrária”.1 Com esta afi rmação, que se refere ao título de um clássico estudo de Michel Pollack, Jorge Ferreira conclui sua excelente biografi a de João Goulart, que restituiu a esse personagem o que, até então, as memórias a seu respeito lhe haviam sonegado: sua história.

De um modo geral, como já havia sido demonstrado por Marieta de Moraes Ferreira, em estudo justamente intitulado “João Goulart: entre a memória e a história”, as visões elaboradas a seu respeito foram predominantemente negativas, seja entre as chamadas forças conservadoras ou entre os diferentes segmentos de ‘esquerda’, conforme defi nidos pela autora. Para os primeiros, de forma con-traditória, Jango era apresentado ora como um líder comunista, que pretendia implantar no país uma república sindicalista, ora como um político demagogo que, por ser estancieiro, não estaria de fato comprometido com as reformas do país; em outras ocasiões, de forma não menos contraditória, Jango era defi nido como um caudilho autoritário, ou, então, como um presidente fraco, incompetente e despreparado para o exercício de suas funções. Entre os segundos, ainda que

1 FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 690.

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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.

alguns representantes dos chamados segmentos de ‘esquerda’ reconheçam suas qualidades de negociador e conciliador, predomina a ideia de que Jango teria sido o maior responsável pela derrota diante dos militares, dada sua incapacidade de agregar e neutralizar os grupos mais radicais e de bem avaliar a conjuntura política do país. A esse respeito, em sua avaliação, Marieta de Moraes Ferreira diz que

o silêncio sobre a trajetória de Jango ao lado de Getúlio e sobre seu aprendizado junto às principais lideranças políticas do país, quer como presidente do PTB quer como Ministro, nos acordos políticos sindicais e partidários, nas campanhas eleitorais e no exercício da vice-presidência, desconsidera uma experiência política de mais de 10 anos, como teste-munha e ator dos principais eventos da história do país.2

Em outras palavras, pode-se dizer que, embora a memória faça parte da história, esta não pode fi car restrita àquela e, portanto, faltava ainda aos histo-riadores avançarem mais decididamente do plano da memória para a história de João Goulart, de suas relações e atuação política em um dos mais importantes e conturbados períodos históricos do Brasil contemporâneo. E esta foi, sem dúvi-da, a grande contribuição da extensa e muito bem fundamentada obra de Jorge Ferreira sobre Jango, cujo avanço em direção à história pode ser claramente percebido, por exemplo, pela constante preocupação do autor em fundamentar suas afi rmações em variadas fontes documentais, desde arquivos pessoais e jornais de diferentes regiões do país, passando por fotografi as e incluindo ainda depoimentos de pessoas que estiveram, direta ou indiretamente, envolvidas com os acontecimentos narrados. Ao contrário, portanto, de negar a memória existente sobre Jango, seja ela positiva ou negativa, Ferreira a incorporou à sua história desse personagem, como complemento ou contraponto às visões expressas por suas outras fontes. Outro passo decisivo em direção à história se deu por sua rigorosa crítica das fontes, em conformidade com os atuais debates teóricos e metodológicos do campo historiográfi co. São exemplares, nesse sentido, suas discussões a respeito do próprio gênero biográfi co, da narrativa histórica, das relações entre indivíduo e sociedade e da própria historiografi a existente sobre Goulart e sua época. Em síntese, ainda que a neutralidade seja inacessível ao historiador, pode-se dizer que a variedade de fontes e o rigor do método permi-tiram a Jorge Ferreira manter um maior distanciamento em relação ao seu objeto e, ao contrário das obras até então existentes sobre João Goulart, construir este

2 FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 24.

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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.

personagem em sua própria historicidade e complexidade, desde sua infância no Rio Grande do Sul até a morte no exílio.

Nesse sentido, como já referido, deve-se ressaltar que não se trata de uma biografi a tradicional, destinada a exaltar ou a denegrir a imagem de um indivíduo descolado de seu contexto, mas de um estudo que dialoga constantemente com as mais recentes concepções teóricas e metodológicas do campo historiográfi co. Dessa forma, a trajetória política de João Goulart é analisada como parte do que o autor identifi cou como “geração da década de 50”, que partilhou ideias, crenças e representações, e “acreditou no nacionalismo, na defesa da soberania nacional, nas reformas das estruturas econômicas, na ampliação dos direitos so-ciais dos trabalhadores do campo e da cidade, entre outras demandas materiais e simbólicas (...)”.3 Assim, lembrando que a oposição entre indivíduo e sociedade é uma falsa questão, Jorge Ferreira diz que “a trajetória política de João Goulart exemplifi ca, para o historiador, a possibilidade de caminhar entre o individual e o coletivo com o objetivo de compreender as crenças, os anseios e as perspectivas das sociedades no passado”.4

Nesses termos, Jorge Ferreira se propôs a compreender não apenas a expe-riência política de mais de 10 anos de Jango, conforme sugerido por Marieta de Moraes Ferreira, mas um período de tempo que vai além da própria vida do seu personagem, iniciando seu primeiro capítulo com referências ao quadro político gaúcho da Primeira República e concluindo sua história com refl exões e especu-lações sobre a morte e a memória recente de Jango.

Tal obra, com mais de 700 páginas, foi dividida em 13 capítulos, antecedidos de uma introdução e sucedidos pelas Palavras Finais do autor, por uma extensa lista de fontes e referências bibliográfi cas e por um índice onomástico. Na in-trodução, além da sua clara defi nição teórico-metodológica e da indicação das diferentes tipologias de fontes utilizadas na pesquisa, destaca-se também a ampla revisão e crítica da historiografi a já produzida sobre Jango, com a qual, como já referido, Jorge Ferreira irá sempre dialogar daí por diante. Os capítulos 1 e 2 se referem ainda à etapa de vida de Jango no Rio Grande do Sul. O primeiro, no contexto da Primeira República, destaca aspectos da sua formação pessoal, sua amizade com Manoel Antônio Vargas, o Maneco, seu gosto pela vida do campo e sua habilidade para os negócios, além das relações políticas de seu pai, Vicente Goulart. Já o segundo, durante o período de “exílio” de Getúlio Vargas em São

3 FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 15.4 Idem, Ibidem, p. 16.

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Borja, destaca o que seria o início da formação política de Jango, como “apren-diz de feiticeiro” e principal articulador da candidatura de Vargas à Presidência da República. Os capítulos 3 e 4, relativos ao segundo período presidencial de Getúlio Vargas, destacam a atuação de Jango como Ministro do Trabalho, sua aproximação com o movimento sindical e sua projeção como principal líder da nova geração trabalhista, bem como apresentam uma ótima síntese da crise que levou ao suicídio de Vargas, das resistências à candidatura de Juscelino Kubitschek e da aproximação de setores militares ao trabalhismo, tendo Gou-lart à frente. Nos capítulos seguintes, 5 e 6, Jorge Ferreira narra com precisão a atuação de Jango como vice-presidente de Kubitschek e de Jânio Quadros, sua atuação como mediador entre o governo e os sindicatos, as divisões internas e disputas pela liderança do PTB, a renúncia de Jânio Quadros e a Campanha da Legalidade, que garantiria sua posse como Presidente da República. A seguir, os capítulos de 7 a 10 se referem ao período governamental de João Goulart como Presidente da República, desde sua posse num regime parlamentar até sua queda por um golpe militar. Além de uma ampla descrição do panorama social e cultural da época, destacam-se também nestes capítulos uma minuciosa análise do debate político e de sua crescente radicalização, os diferentes projetos de reformas então existentes, a posição mediadora de Jango e a posterior radi-calização do seu discurso, culminando com sua deposição pelas forças civis e militares conservadoras. Por fi m, os capítulos de 11 a 13 se referem ao exílio de João Goulart, primeiro no Uruguai e depois na Argentina. Nestes, destacam-se suas referências ao drama pessoal e familiar de Jango, seus lucrativos negócios e muitos contatos políticos, sempre com a esperança de retornar ao Brasil, até sua morte, em dezembro de 1976.

Dessa história, ainda que o autor se preocupe sempre em apontar não exata-mente as incoerências, mas as ambiguidades do seu biografado, que diz serem inerentes a qualquer ser humano, pode-se perceber na obra de Jorge Ferreira a emergência de uma visão mais positiva que negativa de João Goulart, ao contrário das memórias já referidas a seu respeito. Em alguns momentos, já que “ao historia-dor foi negada a neutralidade”5, pode-se até mesmo perceber certo encantamento do autor por seu personagem, sem, no entanto, comprometer a objetividade de sua análise e a grande relevância de seu estudo para a historiografi a. De forma literária, por exemplo, o autor inicialmente descreve a beleza da paisagem da região de São Borja e diz que seus moradores, “como é de praxe no Rio Grande

5 Idem, Ibidem, p. 18.

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do Sul, são simpáticos e acolhedores, mas também observadores e argutos em seus julgamentos, sabendo impor distância quando a julgam necessária”.6 Ora, ainda que isso não seja dito explicitamente pelo autor, pode-se supor, pelo con-junto de sua obra, que essas mesmas características idealizadas do gaúcho seriam também extensíveis a João Goulart.

Em outros momentos, pode-se perceber algumas pequenas imprecisões factuais na extensa narrativa de Jorge Ferreira, o que mais uma vez em nada compromete a clareza e a relevância de sua análise histórica, de longa duração, da trajetória política de Goulart. Ao se referir, por exemplo, à origem do PTB do Rio Grande do Sul, o autor diz que este foi fundado “exclusivamente por ativistas sindicais, na maioria presidentes de sindicatos, institucionalizando partidariamente o trabalhismo”7; algumas páginas adiante, entretanto, cita o clássico estudo de Miguel Bodea sobre essa temática, para quem esse partido teria se constituído no Estado a partir de três vertentes principais: a sindicalista, a doutrinário-pasqualinista e a pragmático-getulista.8 Nesse mesmo sentido, outro exemplo seria sua afi rmação de que o então governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, logo após o golpe militar de 1964, teria se refugiado na cidade de Santa Maria para se proteger de uma possível reação trabalhista que então se articulava em Porto Alegre.9 Na verdade, tendo sido Santa Maria uma importante base de apoio militar à causa da Legalidade, em 1961, a cidade escolhida para o refúgio do governador foi Passo Fundo.

Dito isso, pode-se afi rmar que Jorge Ferreira nos apresenta em sua história um João Goulart essencialmente nacionalista e democrático, com grande capa-cidade de articulação e negociação políticas, se constituindo então no principal herdeiro e renovador do trabalhismo varguista. Mas, como já referimos, João Goulart nos é apresentado a partir das ambiguidades próprias de sua personali-dade e de sua época, e não de supostas coerências ou contradições observadas ao longo de sua vida.

Em seu nacionalismo, Jango defendeu não apenas a adoção de amplas re-formas sociais no Brasil, como a ampliação dos direitos trabalhistas e a reforma agrária, mas também o controle do capital estrangeiro, a ampliação dos mercados externos do país e sua maior aproximação com as demais nações da América Latina, dando seguimento à política externa independente de Jânio Quadros. A

6 Idem, Ibidem, p. 25. 7 Idem, Ibidem, p. 54.8 Idem, Ibidem, p. 57. 9 Idem, Ibidem, p. 505.

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partir de fi ns dos anos 50, na ótica de Jango e do PTB, pode-se dizer que as mu-danças sociais acima citadas (e outras) só ocorreriam quando o Brasil alcançasse sua verdadeira autonomia e liberdade econômica. De um lado, tais concepções e práticas políticas a elas relacionadas permitiram a Jango se aproximar de dife-rentes movimentos sociais e sindicais, da ala nacionalista das Forças Armadas e se impor como a principal liderança do trabalhismo pós-Vargas. De outro lado, contudo, estas mesmas questões acirraram as oposições liberais (nacionais e internacionais) ao seu governo, taxado de comunista por sua proximidade com os sindicatos e por seu não alinhamento automático, em tempos de Guerra Fria, com os Estados Unidos. De igual forma, portanto, essas mesmas questões se constituíram na “força” e na “fraqueza” do governo de Jango, tanto garantindo sua posse na Presidência e se constituindo em sua principal base de apoio político, quanto o levando à queda e ao exílio, em 1964.

Já o seu caráter democrático se manifestaria não apenas pelas reiteradas recusas de Jango às tentações golpistas, mas também por suas habilidades de articulador e negociador político. Segundo Jorge Ferreira, em pelo menos duas ocasiões Jango teria claramente se recusado a implantar no país um regime au-toritário: a primeira, contrariando sugestão do general Amauri Kruel, que, logo após a Campanha da Legalidade, desejava fechar o Congresso Nacional, restituir os poderes presidenciais de Goulart e decretar as reformas de base10; a segunda, desarticulando trama liderada por Brizola e pelos generais Jair Dantas Ribeiro e Osvino Ferreira Alves, meses antes do plebiscito sobre o parlamentarismo que seria marcado para o dia 6 de janeiro de 1963.11

Por sua vez, também as habilidades de articulação e negociação política de Jango podem ser apontadas, ao mesmo tempo, como uma espécie de “força” e “fraqueza” de seu governo, fatores importantes para se compreender sua ascen-são e queda política no Brasil de meados do século passado. De um lado, Jorge Ferreira destaca o papel central desempenhado por Goulart na articulação da candidatura de Vargas à Presidência da República, em 1951, na liderança do PTB ao longo daquela década, nas negociações com os sindicatos como Ministro do Trabalho, como vice-presidente de JK e mesmo durante seu próprio mandato presidencial, nas tentativas de seu governo de conciliar os interesses de PTB, PSD e UDN e evitar a crescente radicalização política do país e, durante seu exílio, nos contatos que manteve com líderes políticos de diferentes tendências,

10 Idem, Ibidem, p. 268-269.11 Idem, Ibidem, p. 308-309.

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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.

admitindo até mesmo aproximar-se de JK e de seu maior opositor, Carlos La-cerda, para formar a chamada Frente Ampla (1967), em defesa da democracia no Brasil. De outro lado, porém, suas práticas de conciliação e negociação com outros partidos e de aproximação com os sindicatos deram origem a disputas entre os próprios trabalhistas, culminando na dissidência de Fernando Ferrari e na divisão interna do PTB entre os grupos de João Goulart e de Leonel Brizola, sendo este último adepto não de uma política de conciliação, mas de confronto com as oposições.

Tais disputas talvez nos ofereçam o exemplo mais nítido das ambiguidades a que se refere Jorge Ferreira, próprias de Jango e de sua época: a ala brizolista do trabalhismo, ao radicalizar seus discursos e ações, deu à política de conciliação do governo um sentido negativo, sinônimo de fraqueza e indecisão do Presidente, imagem que mais tarde se perpetuaria nas memórias a respeito de Goulart; ao mesmo tempo, forneceu também às oposições argumentos para acusar este mes-mo governo por seu suposto radicalismo comunista e golpista. De igual forma, a insistência de Jango em preservar sua política de conciliação e manter-se fi el aos seus aliados de esquerda levou seu governo a perder apoio de ambos os lados, restando-lhe como alternativa fi nal justamente a radicalização que levaria à sua queda e, ao mesmo tempo, reforçaria sua paradoxal imagem de homem fraco, indeciso e comunista.

Ao contrário das simplifi cações da memória, portanto, Jorge Ferreira nos apre-senta em sua obra um João Goulart histórico, inserido em seu contexto pessoal, social, cultural, político e econômico, analisado em todas as suas complexidades e ambiguidades. Não exatamente fraco ou forte, indeciso ou conciliador, populista ou comunista. Talvez um pouco disso tudo, mas, sobretudo, um homem do seu tempo, cuja compreensão nos ajuda também a compreender um longo e impor-tante período de nossa história recente. Enfi m, mais do que desvendar fontes ou fatos nunca antes imaginados pelos historiadores, talvez a principal contribuição desta importante obra de Ferreira seja exatamente sua análise crítica e rigorosa de um conjunto amplo e variado de fontes, que nos permitiram conhecer o per-sonagem João Goulart a partir das ambiguidades e complexidades próprias de sua personalidade e de sua época.

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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.

Referências bibliográficasBODEA, Miguel. Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:

UFRGS, 1992.FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografi a. Rio de Janeiro: Civilização Bra-

sileira, 2011.FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista: getulismo, PTB e cultura popular

(1945-64). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a história. Rio

de Janeiro: FGV, 2006.TENDLER, Sílvio. Jango: como, quando e porque se depõe um presidente. Porto

Alegre: L&PM, 1984.VILLA, Marco Antônio. Jango: um perfi l. São Paulo: Globo, 2003.

Recebido: 03/10/2011 – Aprovado: 02/12/2011

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UMA HISTORIADORA ENTRE A FAMÍLIA, AS MULHERES E AS CRIANÇAS NO SÉCULO XIX:

ENI DE MESQUITA SAMARA

Esmeralda Blanco B. de MouraUniversidade de São Paulo

Ao encerrar a introdução de As mulheres, o poder e a família. São Paulo, século XIX, Eni de Mesquita Samara deixou registrado à própria família, ao esposo Eduardo e aos fi lhos Dudu e Lívia, o agradecimento pela “relação intensa, misto de gratidão e de culpa”. Defi ne, então, a família, como seu “reduto primeiro”, de quem entende haver roubado “muitos momentos de convivência” em virtude do trabalho, no caso, sua tese de doutorado1.

A palavra culpa muitas vezes compareceu às conversas informais – senão às discussões – que compartilhávamos no Centro de Estudos de Demografi a Histó-rica da América Latina-CEDHAL, nas demais instâncias de nossa Faculdade, em outros espaços próprios ao debate acadêmico, seminários, simpósios, congressos. Afi nal, éramos ambas mulheres às voltas com a história das mulheres, portanto com nossa própria história, sempre prontas a trazer para o primeiro plano de nossas preocupações a condição feminina no tempo pretérito e em nosso próprio tempo, sempre prontas a refl etir sobre nós mesmas, sobre nosso envolvimento com o trabalho e o sentimento de culpa que, fruto de uma dentre tantas outras construções culturais quanto às mulheres, por vezes nos divertia, não sem insistir em nos acompanhar. Sentimento, alimentado pela percepção de que fazíamos parte de uma geração de mulheres que, defi nitivamente, para se sentirem inteiras,

1 SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo, Século XIX. São Paulo: Marco Zero; Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989, p. 14.

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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.

completas, precisavam administrar o fato de que, contraditoriamente, deveriam ser mulheres divididas entre a casa e o trabalho.

Aos poucos, à medida que a pesquisa avançava, que nos tornávamos “íntimas” das mulheres que nos haviam precedido na história, devido, talvez à maturidade, talvez à percepção de que afi nal tudo havia se encaminhado bem para nossas famílias e nosso trabalho, o sentimento de culpa passou a ser substituído pela sensação de que valera a pena dar a conhecer a história de nossas mulheres nos mais distintos momentos e espaços em que haviam transitado.

Creio que são necessárias algumas palavras sobre o quanto a história das mulheres e, com ela, a história da família, das crianças, os estudos de gênero, tornaram-se centrais nas tendências historiográfi cas inauguradas nos últimos vinte e cinco anos do século XX, justamente na confl uência com a proclamação do ano de 1975 pela ONU como Ano Internacional da Mulher e da constância das comemorações, a partir desse momento, do Dia Internacional da Mulher. No ano seguinte, a afi rmação de June Hahner soaria como estímulo e desafi o: “A história da mulher no Brasil, tal como a das mulheres em vários outros países, ainda está por ser escrita”.2

Nesse momento, dedicava-me à pesquisa sobre as mulheres e as crianças operárias nos primórdios da República3 e Eni Samara voltava-se para as Casas Grandes e para o “papel fundamental” da família na sociedade colonial.4 Sua escolha recaíra, assim como minha própria escolha, sobre a cidade de São Paulo, pois esse cenário lhe pareceu, no transcorrer do século XIX, “um campo fecundo de investigação, com uma sociedade complexa e em transformação”.5

As conclusões a que chega são bem sistematizadas por Maria Stela Bresciani na contracapa de As mulheres, o poder e a família:

2 HAHNER, June E. A mulher no Brasil: textos coligidos e anotados por June E.Hahner. Tradução de Eduardo F. Alves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 9.

3 Vide MOURA, Esmeralda Blanco B. de. Mulheres e menores no trabalho industrial em São Paulo: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis: Vozes, 1982.

4 SAMARA, Eni de Mesquita, op.cit.5 Idem, Ibidem, p. 16 e 10.

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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.

Famílias patriarcais e sua extensa rede de dependentes confi rmam uma tendência herdada dos tempos coloniais, mas surpreendentemente não constituem a forma predominante de organização familiar.6

Na base dessa assertiva, a desconstrução, como aponta Bresciani, de “modelos rígidos consagrados pela literatura sobre a sociedade brasileira”7 e a preocupa-ção de Samara com a possível variedade de estruturas familiares no tempo e no espaço, sem invalidar modelos como o de Gilberto Freyre8, mas trazendo à tona outra percepção: a de que não seria possível falar em um padrão único quanto à família paulista. Se o modelo patriarcal de família aplicava-se, por exemplo, aos detentores da riqueza e do poder, percebia-se, em São Paulo, nas várias freguesias – Penha, Nossa Senhora do Ó, Santa Efi gênia, ao Sul e ao Norte da Sé – um universo de contrastes na estrutura familiar alinhado aos vários setores de atividade econômica; percebia-se, ainda, uma miríade de categorias de do-micílio – singulares, desconexos, nucleares, extensos, aumentados, fraternos –, unidades familiares em que Samara foi buscar informações valiosas: quem as chefi ava, se constituíam famílias legalizadas ou não, quais os fundamentos das relações que abrigavam, o parentesco, os vínculos estabelecidos pelo trabalho. Desse modo, confere visibilidade, também, às uniões ilícitas – para os padrões da religião e da legislação da época – formadas entre moradores locais à sombra do concubinato e à revelia da ideia de casamento.

No interior desse estudo sobressaem as mulheres, a função específi ca do casamento numa sociedade em que eram poucas as opções que lhes restavam, em que sua imagem estava associada aos papéis de esposa e mãe, mas em que Samara pôde perceber, como ressalta, “certo exagero dos estudiosos e romancistas ao estabelecerem o estereótipo do marido dominador e da mulher submissa”. Paulatinamente, a análise a faz aportar no que denomina “área de infl uência fe-minina”, pois se vê diante de uma documentação que lhe sugere “novas imagens da mulher na família e na sociedade, com uma participação mais ativa, embora o seu papel fosse limitado, face à manutenção dos privilégios masculinos”.9

Sua análise confere, portanto, outra dinâmica a esse contexto, pois, ao lado das mulheres que fi cavam em casa e que, no interior das quatro paredes do lar,

6 BRESCIANI, Maria Stela. Contracapa. In: SAMARA, Eni de Mesquita, op.cit.7 Idem, Ibidem.8 A referência de Samara à clássica obra de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala: formação da

família brasileira sob o regime da economia patriarcal corresponde, no caso, à 9ª edição em 2 volumes publicada no Rio de Janeiro, em 1977 , pela editora José Olympio.

9 SAMARA, Eni de Mesquita, op.cit., p. 105, 110 e 106.

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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.

talvez fossem submissas – revela mulheres empenhadas na defesa dos próprios direitos no âmbito da sociedade conjugal, assim como revela, sobretudo nas camadas mais empobrecidas da população, mulheres absorvidas pelo trabalho, na chefi a dos próprios domicílios, a gerir o orçamento doméstico, a cuidar dos fi lhos ilegítimos.

Impossível dar conta da densidade dessa análise que a coloca em contato com homens e mulheres, casados, solteiros, vivendo em concubinato, unidos em casamento legítimo, dispostos a desfazer os laços conjugais, às voltas com a partilha de bens; que a coloca em contato com brancos, negros, mestiços, com a população livre e também cativa, que a coloca em contato com as crianças. Em relação aos pequenos, mostra-se sensibilizada quanto à alta mortalidade infantil, recorrente ao longo da história brasileira, não só na sociedade paulista, a abranger crianças de todas as condições econômicas, legítimas e ilegítimas, escravas ou não, crianças de todas as idades, nem sempre na primeira infância:

Os números são realmente surpreendentes e a morte tão frequente parece ter sido encarada como um acontecimento quase natural. (...) Sob esse aspecto, a religião era o consolo dos pais, ajudando na compreensão dessa fatalidade que atingia os fi lhos de ricos e de pobres. 10

Muito poderia ser dito, ainda, no que tange a essa análise, mas nada melhor para introduzir a menção à colaboração de Eni Samara aos estudos de gênero, do que a frase com que encerra As mulheres, o poder e a família:

Os processos de divórcio revelam uma nova dimensão das relações do casal. As queixas das esposas quanto às sevícias e ao adultério e as próprias aspirações face ao casamento e à vida conjugal divergiam do estereótipo de submissão e reclusão.11

A historiadora ampliara consideravelmente a visibilidade social da mulher e, no passo seguinte, aportaria nos estudos de gênero, dimensão latente na obra a que fi z referência até o momento, insinuada no âmbito da historicidade das relações entre homens e mulheres.

O relacional de gênero tornar-se-ia “tema preferencial de expressiva pro-dução historiográfi ca”, palavras da historiadora Ismênia de Lima Martins na apresentação da obra Gênero em debate: trajetória e perspectivas na historio-grafi a contemporânea, que Samara escreve em parceria com Raquel Soihet e

10 Idem, Ibidem, p. 50.11 Idem, Ibidem, p. 174.

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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.

Maria Izilda S. de Matos.12 Parte considerável da obra de Samara insere-se nessa produção historiográfi ca, cujo fundamento ultrapassa as diferenças biológicas entre homens e mulheres, para apreender a subjetividade inerente às construções culturais quanto ao feminino e ao masculino.

Nos estudos de gênero, a historiadora não se manteve restrita à situação das mulheres brasileiras, mas ampliou esse escopo, com fi ns comparativos, à trajetória das mulheres latino-americanas, atenta à pluralidade, do que resultou a organização da obra As idéias e os números do gênero: Argentina, Brasil e Chile no século XIX.13 Contudo, melhor do que resumir sua perspectiva de análise é remeter às suas próprias palavras na Apresentação de O discurso e a construção da identidade de gênero na América Latina, título do capítulo que integra a obra anteriormente citada, Gênero em debate:

Pensar em Gênero e Identidade conjuntamente signifi ca discutir um tema [complexo, bem como, elaborar] as relações entre os sexos, na sua perspectiva cultural, e os seus signifi cados específi cos para a América Latina, o que, em síntese, pressupõe uma refl exão sobre a “diferença”, nas práticas cotidianas, na elaboração do discurso, no processo de socialização e na construção da identidade social de gênero.14

Refl exão que, no entendimento da autora, deve articular gênero a variáveis, tais como etnia e classe social, e ser capaz, também, de demonstrar sensibilidade para apreender e compreender as semelhanças.

Ao incorporar os estudos de gênero a sua investigação, a historiadora de-senvolve uma análise com fundamento na discussão teórica da relação gênero e trabalho, dimensão que, com base nos dados demográfi cos sobre a população brasileira, explora comparativamente quanto a São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Ceará, regiões distintas entre si em termos econômicos, alicerçadas, respecti-vamente, na exportação do café, na lavoura de subsistência destinada a abastecer as cidades, na produção de gêneros tropicais – algodão, cacau, tabaco – para o mercado externo. Preocupada em desvendar questões atinentes à mão-de-obra feminina, oportunidades e mercado de trabalho no Brasil do século XIX, volta-se para sua presença no quadro de transição para o assalariamento, convicta de que

12 MARTINS, Ismênia de Lima Martins. Apresentação. In: MATOS, Maria Izilda S. de; SOLER, Maria Angélica (Orgs.). Gênero em debate: trajetória e perspectivas na historiografia contem-porânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 7.

13 SAMARA, Eni de Mesquita (Org.). As idéias e os números do gênero: Argentina, Brasil e Chile no século XIX. São Paulo: Hucitec; CEDHAL; FFLCH-USP; Fundação VITAE, 1997.

14 SAMARA, Eni de Mesquita. O discurso e a construção da identidade de gênero na América Latina. In: MATOS, Maria Izilda S. de; SOLER, Maria Angélica (Orgs.), op.cit., p. 13.

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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.

“o destino de muitas mulheres no Brasil, contrariando um modelo de ociosidade descrito pela historiografi a” se cumprira às voltas com a necessidade de “prover o próprio sustento e o de sua família”.15

Resta pontuar o quanto o conjunto de sua obra está fundamentado em inegável diversidade de fontes, manuscritas ou não, na leitura atenta da historiografi a e em discussão teórica sempre criteriosa e atualizada que, em seus estudos, cumpre seu verdadeiro papel, o de unifi car a análise, o de lhe imprimir coerência.

Eni de Mesquita Samara e eu fomos colegas de Graduação, de Pós-Graduação e como docentes no Departamento de História da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Compartilhamos encontros acadêmicos no Brasil e no exterior, bancas de Mestrado e de Doutorado, cursos no Museu Paulista da mesma Universidade durante sua gestão, a organização de eventos acadêmicos e cursos no CEDHAL, assim como a direção deste centro de estudos, a edição da Revista População e Família, coletâneas de artigos. Além disso, compartilhamos a pesquisa em História da Família, das Mulheres, das Crianças e em História de São Paulo. A proximidade profi ssional, mas acima de tudo a afi nidade temática, o olhar constantemente voltado para a mulher entre a casa e o trabalho, entre os cuidados com as crianças e o desempenho nas ativi-dades produtivas, transformou-se em amizade.

Para fi nalizar, devo pontuar que compartilhávamos, também, o entusiasmo quando nos víamos diante de novas possibilidades e perspectivas de análise e muitas convicções. Dentre elas, a de que fazer História da Família, das Mulheres, das Crianças, voltar-se para os estudos de gênero, não é fazer uma história de menor signifi cado. Essa foi uma das lutas que empreendemos juntas, sentido em que o CEDHAL foi nossa trincheira, convictas de que toda essa história não é uma história vã, mas uma história que foi gestada em meio às tensões de nosso próprio tempo, indicativas, no último quartel do século XX, de que era hora de trazer, para o primeiro plano, temas e sujeitos históricos até então praticamente ausentes do debate historiográfi co.16 Pode-se dizer portanto, que toda essa história nasceu de um compromisso e como tal se mantém.:

15 SAMARA, Eni de Mesquita (Org.). As idéias e os números do gênero: Argentina, Brasil e Chile no século XIX, op.cit., 1997, p. 26.

16 Vide MOURA, Esmeralda Blanco B. de. Por que as crianças?. In: MOURA, Esmeralda Blanco B. de; CARVALHO, Carlos Henrique de; ARAÚJO, José Carlos Souza (Org.). A infância na modernidade: entre a educação e o trabalho. Uberlândia: EDUFU, 2007.

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ENI DE MESQUITA SAMARA E A PESQUISA HISTÓRICA1

Horacio GutiérrezUniversidade de São Paulo

Eni de Mesquita Samara foi uma historiadora de corpo e alma. Meu conhe-cimento de seu trabalho remonta à década de 1980, quando eu realizava minha dissertação de mestrado e participava no Seminário de História da Família, uma instância de debates com apresentação de textos que ela dirigia com Iraci Costa, professora da Faculdade de Economia da USP. Posteriormente, na década de 1990, tive o privilégio de ser seu aluno de doutorado, além de seu colaborador no Centro de Estudos de Demografi a Histórica da América Latina (CEDHAL) e, fi nalmente, nos anos 2000, pude compartilhar de seu convívio como colega no Departamento de História da USP. Interessava-se por temas que a mim também cativaram, e chegamos inclusive a escrever textos em coautoria. Contudo, mais do que as lembranças do convívio universitário, ou o depoimento sobre a infl uência que ela exercera em mim, gostaria de fazer uma brevíssima refl exão a respeito da impor-tância de seu trabalho de pesquisadora, particularmente em duas áreas da História com as quais sempre se identifi cou: a história demográfi ca e a história econômica.

A dimensão da atividade acadêmica de Eni foi plural e abrangeu a pesquisa histórica com fontes manuscritas desde os inícios, mas também, de modo continu-ado, incluiu a docência, orientação de alunos, extensão e atuações marcantes em sociedades científi cas e no âmbito da gestão universitária. Centramo-nos aqui apenas em sua contribuição como historiadora e, em particular, em um aspecto notório,

1 Texto lido em evento realizado no Departamento de História da Universidade de São Paulo em abril de 2012, em homenagem à professora Eni de Mesquita Samara.

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Horacio GUTIÉRREZ. Eni de Mesquita Samara e a Pesquisa Histórica

conforme julgamos: sua relação com a história demográfi ca, a história econômica e as metodologias escolhidas para aproximar ambas as áreas e delas se aproximar.

Olhando sua produção acadêmica numa visão de conjunto, veem-se alguns eixos temáticos ou áreas de interesse que emergem de modo recorrente: os excluídos, as minorias, as populações subalternas, como mulheres, escravos, agregados, e sua relação com os grupos de poder. A intenção dessas pesquisas foi dar visibilidade a segmentos pouco valorizados pela historiografi a anterior, mas também entender seu papel nos processos econômicos e sociais, resgatando historiografi camente, quando pertinente, o seu protagonismo nesses processos. O foco ao estudar as populações esquecidas tencionou revelar suas práticas familiares, relações de parentesco formais e informais, inserção nos espaços econômicos locais e regionais; descobrir as estratégias de sobrevivência criadas por esses segmentos, confrontando os resultados com as explicações derivadas de modelos analíticos usualmente empregados pela historiografi a tradicional, para então desconstruir generalizações feitas indevidamente, a seu ver, por essa historiografi a. Os períodos preferidos em suas pesquisas foram os séculos XVII, XVIII e XIX, analisando diversas regiões do Brasil, particularmente a capitania e província de São Paulo, recortes presentes em sua dissertação de mestrado (defendida em 1975) e em sua tese de doutorado (1980). Mas conforme avançava em suas pesquisas, o espaço de análise abriu-se para a América Latina como um todo, de cuja historiografi a incorporou hipóteses, temas e fontes, estabelecendo um diálogo que manteria até o fi nal.

A história econômica deve a Eni o exame minucioso de temas como a produção e circulação da riqueza colonial entre as diversas camadas sociais e, através dela, o desvendamento de estruturas de poder e de sujeição; a participa-ção feminina nos mercados de trabalho e a conquista gradual do espaço público pelas mulheres, pontuando, entretanto, as diferenças de classe social existentes no mundo das mulheres, fazendo com que seus ideários variassem e até pudessem se chocar entre si. Atenção particular mereceu também de Eni o estudo das heranças e partilhas de bens e seu papel econômico na chefi a de domicílios e na autonomia que ela permitira, em muitos casos, às proprietárias viúvas ao longo da história.

Com relação à história demográfi ca, outra de suas áreas favoritas de pesquisa, seu papel foi pioneiro, fazendo parte de um potente grupo de pesquisadores que na década de 1980 consolidou a história da população no Brasil. A intenção dessas pesquisas foi buscar padrões de comportamento, regularidades que permitissem compreender a formação, evolução e signifi cado das estruturas demográfi cas e econômicas de sociedades do passado. Cabe aqui, sob essa perspectiva, lembrar

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Horacio GUTIÉRREZ. Eni de Mesquita Samara e a Pesquisa Histórica

seus trabalhos baseados em inventários e testamentos, com a fi nalidade central de identifi car estratifi cações sociais e sua mudança no tempo, mas igualmente para reconstituir perfi s biográfi cos exemplares. O foco demográfi co guiou-a também em direção a estudos sobre migrações nacionais e internacionais, e por essa via a busca de padrões e rotas de assentamento das populações selecionadas. Mas seguramente o ponto alto de seus trabalhos demográfi cos refere-se à análise de estruturas familiares e domiciliares, levantando nesse campo novas evidências e construindo novas interpretações, como por exemplo, o predomínio da família nuclear no universo colonial paulista. A perspectiva demográfi ca foi, no entanto, muito além: permitiu a Eni adentrar em cheio no mundo das famílias e das mulhe-res, desvendando as estratégias presentes no casamento e no celibato, examinando os divórcios e as separações, os mecanismos de sustento familiar assim como o de preservação dos patrimônios, os preconceitos contra a mulher trabalhadora e a sua luta pela cidadania; enfi m, permitindo conhecer as mentalidades e os valores dominantes em sociedades arraigadamente patriarcais e machistas, e com ampla infl uência, na esfera privada e pública, da Igreja Católica.

Como Eni conciliou suas pesquisas econômicas e demográfi cas, como as enlaçou? Além de buscar enfrentá-las com preocupações teóricas compatíveis, a nosso ver há um nexo não menos relevante, e diz respeito ao uso de metodologias quantitativas. Seu gosto para lidar com fontes primárias passíveis de quantifi cação, assim como sua desenvoltura para adotar, na interpretação dos dados, indicadores e métodos retirados da economia e da estatística descritiva, permitiram a Eni transitar com bastante desembaraço tanto pela história demográfi ca como pela econômica. Isto, ressalte-se, numa conjuntura como a das décadas de 1970 e 1980, quando tais metodologias apenas emergiam e eram, por isso mesmo, muito debatidas ou, mais ainda, questionadas em sua legitimidade para ser aplicadas à pesquisa histórica. Essa forma de fazer história, no entanto, consolidou-se, naturalizando-se e se tornando rotina bem sucedida. Historiadores das gerações seguintes, entre os quais me incluo, usam agora a quantifi cação livremente, sem ter que pedir desculpas. Muito disso deve ser creditado às pesquisas pioneiras, como as de Eni e sua geração. Assim, seu pioneirismo e suas contribuições não se restringem apenas aos estudos de gênero – importantíssimos – ou à história da fa-mília – valiosíssima –, mas também, em nossa opinião, às metodologias utilizadas.