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BNDES Setorial setembro de 2016 44

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BNDES Setorial

setembro de 2016

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Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

PresidenteMaria Silvia Bastos Marques

EditorAntônio Marcos Hoelz Ambrozio

BNDES SetorialPublicação semestral editada em março e setembroDistribuição gratuita

Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, a opinião do BNDES. É permitida a reprodução parcial ou total dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte.

Av. República do Chile, 100Rio de Janeiro - RJ - CEP 20031-917

Tel.: (21) 2172-7994http://www.bndes.gov.br

ISSN 1414-9230

BNDES Setorial, n. 1, jul. 1995 - Rio de Janeiro, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 1995 - n. Semestral. ISSN 1414-9230 Periodicidade anterior: quadrimestral até o n. 3. 1. Economia - Brasil - Periódicos. 2. Desenvolvimento econômico - Brasil - Periódicos. I. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. CDD 330.05

Sumário

Reflexões críticas a partir das experiências dos Estados Unidos e da Alemanha em manufatura avançada 5Gabriel Daudt Luiz Daniel Willcox

Empresas aéreas de baixo custo 47Paulus Vinicius da Rocha Fonseca Sérgio Bittencourt Varella Gomes João Alfredo Barcellos

O desafio do envelhecimento populacional na perspectiva sistêmica da saúde 87Carla Reis Larissa Barbosa Vitor Pimentel

Impactos ambientais da suinocultura: desafios e oportunidades 125Minoru Ito Diego Guimarães Gisele Amaral

Estimativa de investimentos na capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica e da Amazônia para atendimento ao Novo Código Florestal Brasileiro 157Marcos Henrique Figueiredo Vital Martin Ingouville

Indústria de TransformaçãoBNDES Setorial 44, p. 5-45

* Economistas do Departamento de Bens de Capital, Mobilidade e Defesa, da Área de Indústria de Base do BNDES. As opiniões aqui presentes não refletem, necessariamente, a opinião do BNDES. Os autores agradecem os comentários de Ana Costa, Bruno Plattek e Thiago Miguez, bem como do editor do BNDES Setorial, isentando-os de qualquer responsabilidade pelo conteúdo do artigo.

Reflexões críticas a partir das experiências dos Estados Unidos e da Alemanha em manufatura avançada

Gabriel Daudt Luiz Daniel Willcox*

ResumoOs termos “manufatura avançada” ou “indústria 4.0” têm sido muito men-cionados pela literatura especializada e estão diretamente ligados ao futuro da manufatura. No bojo dessa discussão, entretanto, pouco se comenta que os países desenvolvidos reforçaram suas apostas na importância da indústria. Argumenta-se que as experiências em manufatura avançada perfazem um conjunto de políticas visando a primazia industrial e tecnológica em um cenário de forte concorrência. À semelhança dos estudos de experiências comparadas, colocam-se em perspectiva as incursões estadunidense e ale-mã. Com isso, busca-se destacar o desejo de criação de novos mercados e de construção de futuro, bem como ressaltar o caráter não espontâneo do avanço tecnológico. Cotejando as experiências, propõe-se uma breve reflexão sobre o que haveria de novidade nesse movimento. Por fim, assinalam-se sucintamente recomendações preliminares para o Brasil.

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IntroduçãoDurante as últimas décadas, a atividade manufatureira passou a abarcar

um conjunto de processos que envolvem em maior grau as tecnologias de informação. Nesse ambiente, haveria enorme potencial para que toda a sorte de informação gerada fosse utilizada na definição de novos processos produtivos e no aprimoramento dos existentes.

Recentemente, o tema vem sendo bastante abordado, tendo sido debati-do, por exemplo, no Fórum Econômico Mundial de 2016, cujo mote foi a “quarta revolução industrial”. No Brasil, esse movimento tem como principal veículo difusor as grandes empresas multinacionais – com destaque para as alemãs, muito presentes no país.

Mundialmente, termos como “manufatura avançada” e “indústria 4.0” são muito empregados, mas nem sempre são feitas as devidas pondera-ções.1 A despeito disso, há alta expectativa em torno de determinadas tecnologias potencialmente significativas e que poderiam transformar a indústria manufatureira.

Assim, seria útil dar um passo atrás e fazer uma reflexão crítica a respeito do tema manufatura avançada. Tal exercício de reflexão nos parece natural, já que esse tema encontra-se imbricado aos esforços nacionais de diversos países desenvolvidos para revitalização de suas indústrias e a busca pela liderança tecnológica mundial.

Chama-se a atenção para o fato de que as experiências em manufatura avançada constituem um conjunto de políticas visando a retomada da primazia industrial em um ambiente de acirrada concorrência global. A manufatura avançada pode ser vista como o arcabouço que traduz essa percepção e dá origem a políticas a partir das especificidades e dos pro-blemas de cada país.

Para fins de organização, além desta introdução, este artigo apresenta mais quatro seções. Na segunda seção discute-se a abordagem mais difundida sobre a “quarta revolução industrial” e o futuro da atividade manufatureira para, em seguida, argumentar-se que ela aparenta ser parcial ou incompleta. Adiante, na terceira seção, afirma-se que a questão da manufatura avançada deve ser discutida sob uma perspectiva mais ampla de política industrial.

1 Deutsche Bank (2014) e Loural (2014), por exemplo, apontam a falta de clareza de definição e de consenso sobre esse tema – sobre o que se trata, sobre o objeto etc.

Indústria de Transformação

7Na quarta seção, serão analisados os planos dos Estados Unidos da América (EUA) e da Alemanha para o fortalecimento de sua indústria manufatureira e o desenvolvimento de uma manufatura avançada. Por fim, na última seção, são cotejadas ambas as experiências e proposta uma breve reflexão sobre o que seria novidade nesse movimento recente. Além disso, essa última seção contém algumas indicações iniciais, caso o Brasil venha a ensaiar uma incursão no tema.

O futuro da manufatura e o bazar de tecnologiasTradicionalmente, a literatura especializada enfatiza que o mundo está

diante de uma nova revolução industrial, supostamente em curso e em ritmo mais rápido que as anteriores. Essa revolução se configuraria como uma nova era em que a grande protagonista é a internet contribuindo para a convergência de diversas tecnologias, agora sendo introduzida na indústria e adaptada às máquinas e equipamentos.

Os elementos fundamentais seriam a fusão do mundo virtual e real; a utilização de sistemas ciberfísicos (unidades de produção com represen-tação virtual, permitindo maiores níveis de automação); e a flexibilidade da cadeia produtiva com informação disponível em tempo real para for-necedores e clientes.2

Uma implicação relevante seria que, à medida que a base digital é incorporada ao chão de fábrica, torna-se possível que a produção se dê de forma mais individualizada e flexível e também menos intensiva em trabalho (com utilização de novos materiais e de novos processos e com o uso mais disseminado de robôs). Assim, a manufatura deixa de ser de massa e torna-se mais customizada. Costuma-se, ainda, exaltar os benefícios quanto ao emprego e à produtividade, na medida em que as novas técnicas produtivas serão mais automatizadas e irão requerer trabalhadores mais qualificados.3

Essa interpretação insere-se na discussão mais ampla sobre o futuro da atividade manufatureira. Podem ser apontados como trabalhos repre-

2 Ver Schwab (2016). Ademais, a revista britânica The Economist tornou-se referência ao produzir uma matéria especial sobre a nova revolução e algumas de suas implicações (THE ECONOMIST, 2012).3 Essa visão prevalece, muito embora haja uma longa controvérsia na literatura econômica sobre a relação entre tecnologia e emprego. Recentemente, Frey e Osborne (2013) apontaram um alto potencial de geração de desemprego.

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sentativos o relatório publicado em 2012 pela McKinsey (MGI, 2012), denominado Manufacturing the future: the next era of global growth and innovation, e o artigo de 2015 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, 2015), intitulado Enabling the next production revolution: issues paper. Ambos procuram situar o processo de transformação da atividade manufatureira em um contexto de mudanças na economia global, destacando os condicionantes impostos pelas mudanças em curso e suas implicações para as economias avançadas, bem como suas consequências para a atividade manufatureira.

MGI (2012, p. 9) anuncia a chegada de “an exciting new era of global manufacturing (…) – driven by shifts in demand and by innovations in materials, processes, information technology and operations”. De forma um pouco mais cautelosa, OECD (2015) aponta a mesma direção:

There is a growing debate that the world is on the brink of similar industrial revolution(s) and a reshuffling of production will take place in the next 10 to 15 years. It is argued that a number of cutting-edge technologies like nanotechnology, biotechnology, ICT, etc. will provide (partial) solutions for the challenges created by global megatrends in demographics, globalisation and sustainability (OECD, 2015, p. 10, grifos nossos).

Ainda que esse processo traga oportunidades para empresas e países, isso se dará em um ambiente de transformações. Há algumas notadamente relevantes que, segundo MGI (2012), seriam estruturais:

i. maior orientação da demanda para os países em desenvolvimento em razão, principalmente, da aceleração do crescimento destes;

ii. proliferação de produtos para atender à fragmentada demanda dos consumidores;

iii. aumento da importância dos serviços de alto valor agregado;

iv. maior pressão sobre a oferta de recursos naturais, que poderá se estender para diversas regiões do mundo; e

v. cadeias produtivas e processos mais eficientes e sustentáveis.

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9A mudança nos padrões e a fragmentação na demanda são relevantes, pois se presume que os novos mercados trazem consumidores que exigem produtos bastante diferentes para satisfazer suas preferências, o que força os produtores a oferecer uma variedade maior de produtos. Ao mesmo tempo, em mercados estabelecidos também há demanda por maior variedade de produtos com ciclos mais rápidos, reforçando a tendência à fragmentação.

Ademais, há uma tendência para a agregação de serviços aos produtos. As empresas passariam a produzir um “pacote” em que o serviço está presente de forma indissociável do produto. Há avanços especialmente em tecnologias da informação e comunicação (TIC), materiais avançados e robótica, que permitirão produção em escala variável e maior eficiência no uso de insumos e recursos. Segundo MGI (2012), essa tendência modificará as bases pelas quais as empresas buscarão novos mercados e expandirão sua produção e suas atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D).

Dado o caráter normativo do referido relatório, há uma série de recomen-dações tanto para as estratégias a serem adotadas pelas empresas manufa-tureiras quanto para as políticas públicas a serem seguidas. O conjunto de elementos trazidos por MGI (2012) pode ser representado esquematicamente pela Figura 1.

Figura 1 | Diversos fatores que influenciam o futuro da manufatura

Regulação:

- Segurança, qualidade e sustentabilidade- Proteção à propriedade intelectual

Tecnologia e inovação:

- Novos materiais e TI- Design de produtos- “Imperativo verde”

Demanda:

- Mudança da demanda global (emergentes)- Fragmentação da demanda e customização

- Modelos intensivos em serviços- Mudança demográfica e pegada ambiental

Oferta:- Mudança nos custos relativos do trabalho

- Escassez de talentos- Preço das commodities

- Custos de energia e transporte

Fonte: Adaptado de MGI (2012).

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Esses elementos modificarão a forma de organização da atividade ma-nufatureira e os avanços tecnológicos serão fundamentais. De acordo com MGI (2012, p. 84):

Advances in lightweight materials, additive manufacturing,4 frugal innovation, and the so-called circular economy (i.e., recovering and recycling materials used in finished products) will change how manufacturers use metals and other materials and raise resource productivity and efficiency. Finally, innovation is enabling information-driven intelligence in both products and processes. Big data, advanced analytics, social technologies, and use of intelligent devices to monitor production machinery, supply chains and products in use (also known as the “Internet of Things”) are bringing intelligence to how products are designed, built and used.

Shipp et al. (2012) e De Weck et al. (2013) são alguns dos autores que procuram elencar quais as áreas tecnológicas mais promissoras relacionadas à manufatura avançada, bem como identificar as tecnologias que poderiam ser consideradas estratégicas (doravante denominadas de tecnologias habi-litadoras). A hierarquia dessas tecnologias de acordo com De Weck et al. (2013) pode ser visualizada no Gráfico 1.5

O fato é que todas as tecnologias indicadas “have been around for a while” (OECD, 2015, p. 10), mas só recentemente foi observada sua apli-cação mais ampla. A competitividade das empresas e das economias e sua inserção produtiva no futuro dependeriam de forma crescente da aplicação das tecnologias avançadas de produto e processo.

4 Nota dos autores: A manufatura aditiva (bastante conhecida pelas impressoras 3D) engloba uma variedade de técnicas de produção visando à fabricação pela adição de materiais camada a camada, diferente do tradicional processo por subtração de materiais. Ela produz materiais a par-tir de modelos digitais, dispensando o uso de moldes e permitindo a fabricação de produtos com geometrias complexas. Sua utilização também reduz perdas e desperdícios de materiais. Parece haver potencial para alterar a forma como os produtos são projetados, tornando possível uma “customização em massa”.5 Os autores procuram investigar quais tecnologias poderiam ser consideradas mais promissoras levando em conta um horizonte de dez a 15 anos. Eles entrevistaram uma série de pesquisadores, que hierarquizaram as 24 tecnologias levantadas. A maioria delas procura prover aumentos de eficiência e redução de trabalho manual. Outras áreas listadas como relevantes foram o desenvolvimento de novos materiais mais leves e o de sensores avançados.

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11Gráfico 1 | Ranking de áreas tecnológicas

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σ=1.09 σ=1.08 σ=1.35

Fonte: Adaptado de De Weck et al. (2013).Nota: Foram conferidas notas que variavam de um a cinco (sendo cinco a mais promissora). A barra horizontal mostra a nota média recebida; a barra vertical mostra +/- 1 desvio-padrão (σ) em relação à média. As seis tecnologias mais à esquerda no gráfico possuem nota média acima de 4,4 e, em geral, menor desvio-padrão.

Do ponto de vista microeconômico, as empresas terão de implementar novos modelos de negócio para aproveitar as inúmeras oportunidades que podem ser oferecidas pelas novas tecnologias. As empresas estariam aptas a responder de forma rápida às demandas dos consumidores e às condições de oferta de insumos. Isso seria possível porque a produção digital permitiria uma organização mais flexível da produção e porque os ciclos de design de produtos se reduziriam.6

A tônica trazida por diversos autores, como Schwab (2016), é que está em curso uma grande onda de avanço tecnológico e de transformações sistêmicas

6 A título de exemplo, normalmente faz-se alusão ao uso de impressoras 3D em segmentos da eco-nomia. Ao utilizar essas impressoras, as empresas poderão fabricar produtos rapidamente a partir de uma diversidade de materiais – variando de titânio à cartilagem – e de especificações detalhadas, mas que podem ser mais facilmente alteradas. Dessa forma, por exemplo, um protótipo poderia ser rapi-damente produzido e entregue ao cliente, que poderá dar seu feedback ao fabricante, que por sua vez alterará as especificações do protótipo e o “imprimirá” novamente para o cliente. Ver Cohen, Sargeant e Somers (2014).

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profundas.7 Tratar-se-ia de uma onda inexorável e impactante de geração de emprego, valor da produção, alteração de processos etc.

A apresentação convencional, tal qual a de MGI (2012), identifica, cor-retamente, a presença de uma série de tendências globais e tem o mérito de reafirmar a importância da indústria para o desenvolvimento de longo prazo. Contudo, parece equivocada, entre outras coisas, ao interpretar a forma pela qual as nações se posicionam e absorvem o progresso tecnológico. A visão subjacente parte da ideia de que o avanço tecnológico ocorre exogenamen-te, como se houvesse um “bazar” – na expressão utilizada por Sinn (2006) para descrever o posicionamento da indústria alemã dentro da Europa – de tecnologias disponíveis e que bastaria que as firmas optassem pela forma de incorporá-las a seus processos produtivos.

Neste artigo, defende-se a ideia de que o progresso tecnológico se incorpora a produtos e processos específicos e/ou para resolver desafios específicos. Deve-se ter clareza de que o processo de incorporação está longe de ser algo espontâneo; são estimulados por políticas que conjugam demanda efetiva com instrumentos de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico.

É preciso atentar para o fato de que as experiências existentes de pro-gramas em manufatura avançada têm origem em países desenvolvidos e configuram-se como estratégias que ganharam força a partir de 2010-2011. Essas estratégias ainda não foram plenamente implantadas ou tiveram seus efeitos sentidos e abarcam áreas a serem desenvolvidas em um prazo de pelo menos 15 a vinte anos.

Nas próximas seções serão abordadas as duas principais iniciativas in-ternacionais em curso para implementação da manufatura avançada, quais sejam: a dos EUA e a da Alemanha. O assunto vem sendo discutido em profundidade, levando ao redesenho das estratégias de políticas públicas para a indústria desses países. Antes de tudo, é importante entender as razões conceituais que levaram países centrais a redescobrir a importância da atividade manufatureira e da adoção explícita de políticas industriais e tecnológicas.

7 A teoria mais geral subjacente às abordagens convencionais pode ser relacionada à new growth theory presente, por exemplo, em Tassey (2005).

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13Precisamos falar sobre política industrialHá algum tempo que o interesse pelo tema “política industrial” voltou a

ter importância, especialmente após a crise de 2008. Esse movimento reflete as mudanças na natureza global da produção manufatureira. De acordo com O’Sullivan et al. (2013), tais mudanças incluem a diminuição da parcela da atividade manufatureira dos países da OCDE, o aumento da concorrência das economias emergentes (principalmente asiáticas), a crescente comple-xidade e importância das chamadas cadeias globais de valor e o acelerado ritmo de mudança tecnológica.8

Obviamente, cada país tem suas idiossincrasias e passa por uma experiência particular, mas uma dinâmica essencial que molda o atual contexto em que se dão as políticas industriais é a crescente fragmentação da produção.9 Em que pese esse cenário, a preocupação geral para com a indústria manufatureira não é nova; historicamente, várias foram as tentativas de desenvolvimento industrial, dada sua centralidade para o desenvolvimento de longo prazo.

Não são poucos os analistas que advogam que o mundo – em particular, as economias desenvolvidas – entrou em uma fase pós-industrial e que seria mais vantajoso vender serviços e se tornar uma economia do conhecimento em vez de fabricar “coisas”.10 Embora a transição para uma economia de ser-viços seja atraente, a completa substituição não parece possível. Entretanto, a perda de tecido industrial nos países desenvolvidos tem sido acompanhada de questionamentos à visão sobre economias orientadas por serviços.

(...) [A]s fontes mais importantes da demanda desses serviços de alta produtividade são as empresas de manufatura. Então, sem um setor de manufatura forte, é impossível desenvolver serviços de alta produtivida-de. Esse é o motivo de nenhum país ter se tornado rico apenas apoiado em seu setor de serviços (CHANG, 2009, p. 209).

Tradicionalmente, os argumentos que costumam ser apresentados a res-peito do setor manufatureiro destacam a sua importância para o crescimento

8 Apesar de os tópicos levantados serem semelhantes aos de MGI (2012), a visão subjacente não é a mesma.9 Ver, entre outros, Baldwin (2013) e Milberg e Winkler (2013).10 Tome-se como exemplo a afirmação de Larry Summers, principal conselheiro econômico do presidente dos EUA em 2009-2010: “America’s role is to feed a global economy that’s increasingly based on knowledge and services rather than on making stuff” (GERTNER, 2011).

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econômico, para o crescimento da produtividade e também do emprego na manufatura.11 O setor manufatureiro é visto como a principal fonte de ganhos de produtividade do sistema.

Muitos economistas, como Rosenberg (1963), sustentam que o setor manufatureiro, em especial o segmento de bens de capital, tem sido um learning centre ou um grande difusor de inovações em termos tecnológicos. Além disso, como ressaltado na literatura, o setor manufatureiro impulsiona a demanda por atividades de alta produtividade em outros setores além do industrial. Ainda, a indústria tem uma relevância adicional, na medida em que o setor é importante para a evolução do saldo comercial do país e con-tribui para aliviar possíveis restrições externas, seja gerando exportações, seja diminuindo importações potenciais.

Baily e Bosworth (2014) argumentam que a existência de um forte setor manufatureiro doméstico confere proteção ao país relativamente às possíveis rupturas políticas e à segurança nacional.12

O que em geral não costuma ser enfatizado é que existem sinergias que são potencializadas pela proximidade entre atividades de “chão de fábrica” e outras ditas mais nobres, como as de engenharia. Contrastado com a rea-lidade atual em que diversas firmas fizeram o offshoring de suas atividades de fabricação, alguns autores concluem que esse novo ambiente fragiliza a situação do país. De acordo com Pisano e Shih (2009, p. 115):

In making their decisions to outsource, executives were heeding the advice du jour of business gurus and Wall Street: Focus on your core competences, off-load your low-value-added activities, and redeploy the savings to innovation, the true source of your competitive advantage.

No entanto, a separação de determinadas atividades acaba minando a própria capacidade inovativa do país. O processo de desenvolvimento tec-nológico e de inovação está fortemente associado ao processo de produção, e a proximidade das equipes de desenvolvimento em relação ao “chão de fábrica” é extremamente importante para o processo inovativo.

11 Isso costuma ser sumarizado nas chamadas três leis de Kaldor – ver, por exemplo, Kaldor (1981).12 Segundo os autores: “Overreliance on imports and substantial manufacturing trade deficits increase Americans’ vulnerability to everything from exchange rate fluctuations to trade embargoes to supply disruptions from natural disasters” (BAILY; BOSWORTH, 2014, p. 19).

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15Esses autores denominam essas capacitações coletivas de industrial commons, o que pode incluir o know-how relacionado a P&D, engenharia e competências relacionadas às tecnologias específicas.13 É possível que isso esteja de certa forma incorporado a um grande número de empresas, universidades e outras instituições.14

Tal constatação vem sendo discutida em profundidade nas economias avançadas, e as estratégias das políticas públicas para a indústria vêm sendo redesenhadas a partir desse contexto, sob denominações como manufatura avançada, manufatura digital, entre outras. Como mencionado por Andreoni e Gregory (2013, p. 35): “The crisis situation has led many analysts to ask: ‘Has off-shoring gone too far?’ and, more importantly, ‘Does manufacturing still matter for the wealth of advanced nations?’”.

As duas principais experiências internacionaisÉ importante investigar e compreender as políticas dos países líderes

no tema, que têm preocupações quanto à recuperação e transformação de suas estruturas manufatureiras. As experiências ora analisadas tiveram ori-gem na vontade de implantar um conjunto de políticas que devolvessem a esses países a liderança industrial. Uma análise a partir dessa perspectiva é interessante, pois explicita que os diversos desenvolvimentos tecnológicos não consistem em tendências “exógenas”. Pelo contrário, eles se benefi-ciam, entre outras coisas, de programas específicos, elaborados por países avançados que buscam meios de estimular o desenvolvimento industrial, principalmente por causa da perda de participação de suas indústrias no valor adicionado industrial global.

A manufatura avançada dos EUAUm breve contexto geral e os commons

Desde os tempos de Alexander Hamilton – e sua proposição acerca da indústria nascente –, o governo estadunidense tem papel substancial na política industrial, comercial e tecnológica. Os EUA sempre utilizaram um

13 Por exemplo, certos materiais avançados são commons para uma diversidade de indústrias, como a aeroespacial e a de dispositivos médicos; a biotecnologia é um common para medicamentos, mas também para a agricultura.14 Para aprofundamentos no tema, ver Pisano e Shih (2012).

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amplo espectro de políticas, sendo especialmente reconhecidos por seu apoio ao complexo industrial de defesa.

Ao longo da história estadunidense foi desenvolvida uma infraestrutura institucional que estimula o desenvolvimento de inovações tecnológicas, conjugando o estímulo à P&D com diversas outras medidas, inclusive po-líticas comerciais, exigência de conteúdo local e compras públicas.15

O sistema de inovação estadunidense é muitas vezes apontado como um dos principais responsáveis pela força industrial do país. Esse sistema foi tradicionalmente articulado em torno de uma ampla rede de universi-dades de pesquisa e laboratórios nacionais, bem como agências públicas e departamentos como os de defesa, saúde, energia, agricultura, entre outros.

Entretanto, nas décadas mais recentes, a manufatura como parcela do produto interno bruto (PIB) e do emprego vem declinando nos segmentos tanto de baixa quanto de alta intensidade tecnológica.16 A queda do emprego não está relacionada apenas à produção; também existem preocupações de que os EUA estejam perdendo a liderança no emprego relacionado a P&D.

Recentemente, um conjunto de artigos acadêmicos e documentos oficiais de governo foram produzidos a respeito da preocupação estadunidense com as implicações da perda de tecido industrial. Muitos deles sugerem que a liderança histórica dos EUA na manufatura encontra-se ameaçada e que um reflexo desse movimento pode ser visto na balança comercial do país.17 A balança comercial de bens manufaturados de alta tecnologia encontra-se deficitária, tendo saído de um superávit histórico nos anos 1990 e chegado a um déficit na casa dos US$ 100 bilhões em 2011. Em 2003, os EUA per-

15 Segundo Andreoni (2016), parte do sucesso de hoje se deve a uma sequência de apoios ao longo dos diversos ciclos de transformação da economia estadunidense. Além das políticas de compras dos diversos departamentos federais, programas como o Small Business Investment Company (SBIC) e o Small Business Innovation Research and Technology Transfer (SBIR) vêm sendo mantidos há décadas e combinam empréstimos, grants, garantias de compras públicas com o produto em estágio pré-comercial, etc., visando apoiar empresas de pequeno porte e OEMs e suportar o scale-up de sistemas ou componentes. Isso ocorre a despeito do orçamento instável, da relativa falta de coordenação entre diferentes atores e políticas e dos seguidos cortes de orçamento em diversos programas pelo Congresso americano.16 De forma ilustrativa, a manufatura declinou de aproximadamente 25% do PIB em 1960 para 12% em 2010. Medido em relação ao emprego, a parcela da manufatura no PIB passou de aproximadamente 25% do PIB em 1960 para menos de 10% no ano de 2010. Ademais, a queda do número absoluto de empregos é algo sem precedentes (ver BAILY; BOSWORTH, 2014).17 Vale notar que a manutenção de déficits permanentes não se configura como um problema macroeconômico para os EUA. Como esse país detém a moeda mundial, ele tem a capacidade de financiar seus déficits em sua própria moeda (ver, por exemplo, SERRANO, 2008).

Indústria de Transformação

17deram o posto de maior exportador mundial para a Alemanha e, a partir de 2009, a China superou ambos em valor exportado (PCAST, 2011).

Além disso, os EUA vêm perdendo para o exterior atividades de P&D ligadas de alguma forma à manufatura. Há anos que os gastos das firmas estadunidenses com P&D feitos fora dos EUA cresceram a uma taxa três vezes superior aos gastos domésticos.18

Nesse sentido, tratando do contexto dos EUA, Pisano e Shih (2009) chamam a atenção para o fato de que, além das tarefas de menor valor agre-gado, como alguns processos mais simples de montagem, atividades mais relevantes também foram transferidas para outros países. Como resultado, os EUA estão enfrentando uma perda de conhecimento acumulado e de tarefas que requerem mão de obra qualificada, necessários para produzir diversos produtos de ponta criados pelo país.19

O offshoring não apenas causa danos às próprias firmas que o fizeram, mas também prejudica as capacitações das demais firmas, como os forne-cedores de materiais, ferramentas, componentes etc. É importante estar geograficamente próximo dos commons, na medida em que eles são uma fonte de vantagens competitivas.

Ao que parece, esse processo está em curso nos setores de alta tecnologia dos EUA. De acordo com Tassey (2010), exemplos podem ser encontrados na indústria de computadores pessoais, semicondutores, displays eletrônicos e outros. Como destacado em PCAST (2011, p. 11-12):

Proximity is important in fostering innovation. When different aspects of manufacturing – from R&D to production to customer delivery – are located in the same region, they breed efficiencies in knowledge transfer that allow new technologies to develop and businesses to innovate. Historically, the co-location of manufacturing and product design has been vital. Close, rapid feedback between design and production allows ideas and prototypes to be quickly tested and scaled up, and

18 Entre os anos de 1999 e 2007, os gastos com P&D realizados fora dos EUA por empresas manufatureiras americanas cresceram 191%, enquanto domesticamente a taxa de crescimento foi de 67% (ver TASSEY, 2010).19 Exemplo disso é a indústria de software: inicialmente, muitas empresas enviaram para a Índia apenas as tarefas mais simples (como escrever determinados códigos básicos), com o objetivo de reduzir os custos de desenvolvimento de software. Mas, com o tempo, empresas indianas desenvolveram capacitações relacionadas à engenharia de software e, hoje, já podem dar conta de tarefas muito mais complexas.

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allows production needs and processes to inform design. Innovation is also aided by interaction between engineers and people working in fabrication. This is because much of the knowledge underlying emerging technologies is tacit, scholars point out, requiring person-to-person contact for efficient information transfer.

Ademais, Pisano e Shih (2009) desconstroem a visão de que a migração de certas atividades para fora de países desenvolvidos é apenas parte de um processo natural e que permite que os recursos sejam realocados para outras atividades de maior valor agregado. O perigo reside em extremar o argu-mento e ignorar o fato de que, por vezes, produtos modernos dependem dos commons de uma indústria já madura. Nesse caso, considere-se a migração das foundries de semicondutores para a Ásia, que causou um declínio nas capaci-tações relacionadas ao processamento de silício e à deposição de filme fino, reduzindo fortemente a capacidade dos EUA de liderar essa rota tecnológica e afetando sua pretensão de se tornar um grande player de painéis solares.

A separação entre a manufatura e P&D deve ser vista como algo com-plexo, e a fronteira entre essas atividades é nebulosa. Esse afastamento pode impactar negativamente as interações importantes para alimentar o processo de inovação. Nem sempre é possível uma empresa projetar um novo produto e simplesmente entregá-lo à outra para que o manufature; muitas inovações fazem parte do próprio processo manufatureiro. Conforme Shih (2014, p. 62):

Reestablishing close links between R&D and production offers a significant opportunity to improve products. ‘Having the work in-house is important for our learning. (…) incremental innovations most often come when teams ‘get their hands dirty in the production environment’.

A abordagem proposta pelos EUA

Os EUA foram o first mover em uma série de tecnologias, mas perde-ram participação em vários segmentos importantes. Tendo isso em conta, o desejo é desenvolver novas tecnologias habilitadoras e, a partir disso, se reposicionar como potência industrial. Nesse contexto, alguns documentos propõem ações que se coadunam com o que foi dito anteriormente e colocam ênfase nas sinergias existentes entre as diferentes atividades.

Com efeito, essa conexão vem sendo tratada como questão central. Como identificado em carta ao presidente Obama, que consta na abertura

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19de President’s Council of Advisors on Science and Technology (PCAST, 2011), “(…) it is increasingly apparent that technology innovation is closely tied to manufacturing knowledge. We cannot remain the world’s engine of innovation without manufacturing activity”.

Para garantir que os EUA sejam mais atrativos à atividade manufaturei-ra e se mantenham liderando a produção de conhecimento, o documento recomenda a criação de um ambiente “fértil” para a inovação. Como parte crucial dessa estratégia, há uma iniciativa que envolve primordialmente o apoio às pesquisas relacionadas às novas tecnologias habilitadoras, pré--competitivas e de aplicação geral.

A recomendação-chave do PCAST (2011)20 é que o governo federal lance a Advanced Manufacturing Initiative, que combinaria diversas instituições, com destaque para os departamentos de Comércio, Defesa e Energia.

Dessa forma, como precondição para viabilizar a ascensão da manufatura avançada, entende-se que são necessários vultosos investimentos (feitos di-retamente pelo governo ou via parcerias público-privadas) que garantam que novas tecnologias sejam desenvolvidas nos EUA e que criem uma infraes-trutura de apoio às empresas intensivas em tecnologia.21 Tais investimentos envolvem um forte apoio a programas de pesquisa aplicada cujos impactos sejam potencialmente transformadores – essas novas tecnologias seriam a base de novas indústrias. Tal esforço seria complementado por iniciativas paralelas da academia e da indústria.

Ademais, considera-se importante investir no compartilhamento das tecnologias e também de infraestrutura, uma vez que isso auxiliaria uma série de empresas. A infraestrutura compartilhada poderia ser utilizada de forma transversal, em especial por empresas de menor porte. Isso porque é razoável supor que empresas menores não investirão, individualmente, em toda a infraestrutura necessária para viabilizar a manufatura avançada.22

20 Outros documentos importantes sobre o assunto são NSTC (2012) e PCAST (2012; 2014).21 A despeito de o termo “ambiente de negócios” ser algo genérico, PCAST (2011) entende que serão necessários incentivos tributários para atrair as firmas que investem em inovação. Outra ação que pode ser encaixada nesse quesito seria a melhoria na qualidade da força de trabalho, via mais educação e treinamento da mão de obra. Há um relativo consenso de que garantir uma oferta adequada de trabalhadores altamente qualificados é essencial.22 Com relação às empresas menores, vale lembrar que os EUA já dispõem de outros programas, por exemplo, o SBIR.

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A referida recomendação desencadeou a destinação inicial de US$ 1 bilhão para a criação da National Network for Manufacturing Innovation (NNMI), uma rede – inspirada no Fraunhofer23 – formada por institutos de pesquisa regionais chamados de Innovative Manufacturing Institutes (IMI) e que se propõe a acelerar o desenvolvimento e a adoção de tecnologias de manufatura avançada. Todos têm objetivos comuns, como a responsabilidade de desenvolver tecnologias de manufatura avançada, realizar atividades de pesquisa que empresas privadas por si só não fariam e desenvolvimentos que empresas privadas por si só não conseguiriam, bem como contribuir para a criação de mão de obra capacitada. Questões como essas acabam por reduzir o custo e o alto risco de desenvolvimento e comercialização de novas tecnologias.

Apesar dos objetivos comuns, cada instituto deve ter um foco especí-fico (como manufatura aditiva, semicondutores ou materiais compósitos), sob a ideia básica de que funcionem como um hub regional de inovação. Cada instituto seria operado por meio de parcerias público-privadas entre diversos atores (governo, academia e indústria), com o intuito de alavancar os recursos existentes com coinvestimentos de todas as partes envolvidas. Além da presença de diversas universidades, cabe destacar a participação conjunta de uma grande quantidade de empresas relevantes (como a General Electric, Lockheed Martin, Boeing, Airbus, Raytheon, IBM, Honeywell, Alcoa, Ford, John Deere, Toshiba, ABB, DuPont). A maioria delas é de capital estadunidense, tem forte inserção global e comanda ou faz parte de robustas cadeias produtivas.

No ano de 2012, os EUA propuseram a criação de 15 IMIs e, no ano seguinte, recomendaram que esse número fosse triplicado. Assim, em um total planejado de 45 institutos para o período de dez anos, foi criado um instituto-piloto ainda em 2012.24

23 A associação alemã Fraunhofer é bastante conhecida mundialmente. É formada por diversos institutos de pesquisa que estão presentes em diversas cidades alemãs. Esses institutos são amplamente – mas não apenas – financiados por recursos públicos (seja via orçamento anual, seja via projetos contratados) e têm reconhecida excelência em P&D.24 Vale lembrar que mesmo o maior pacote de estímulo do governo à economia também envolveu apoio a tecnologias importantes. O American Recovery and Reinvestment Act de 2009 permitiu um estímulo de US$ 787 bilhões e também o resgate de grandes empresas. Mas, essa mesma medida contemplava incentivos a iniciativas que abarcassem tecnologias limpas, projetos de redes elétricas inteligentes, desenvolvimento de baterias elétricas etc.

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21Esse IMI-piloto é denominado National Additive Manufacturing Innovation Institute (Namii) e, como o próprio nome diz, está voltado para a manufatura aditiva. Para possibilitar a criação desse instituto, cinco agências do governo foram reunidas e se comprometeram a investir os re-cursos necessários. Conjuntamente, os departamentos de Defesa, Energia e Comércio, bem como a National Aeronautics and Space Administration (Nasa) e a National Science Foundation, contribuíram inicialmente com US$ 30 milhões. Além disso, foi selecionado um consórcio para estabelecer o instituto, e este contribuiu com cerca de US$ 40 milhões.

O Namii foi criado para ser um centro de excelência nesse campo e fornece a infraestrutura necessária para apoiar o desenvolvimento de tec-nologias e produtos relacionados à manufatura aditiva e a áreas como bio e nanomanufatura; materiais avançados e robótica. Esse piloto propõe-se a fazer uma ponte entre a pesquisa básica e o desenvolvimento do produto e para isso fornece uma estrutura que pode ser compartilhada por diversas empresas, bem como acesso a equipamentos de ponta e treinamento para qualificação da mão de obra.

Após o estabelecimento dos primeiros sete IMIs,25 o governo federal investiu mais de US$ 500 milhões e obteve mais de US$ 1 bilhão em apoio de empresas, academia e governos locais.26

Fugiria do escopo deste artigo alongar-se sobre cada um dos institutos, porém vale reforçar alguns pontos comuns a todos: abordam o desenvol-vimento estratégico de tecnologias habilitadoras e/ou novos materiais; têm alguns departamentos federais como parceiros importantes (juntamente com empresas estadunidenses); contribuem para a redução futura nos custos de aquisição dos materiais/tecnologias e também do consumo energético, entre outros.

25 Os demais IMIs existentes são: PowerAmerica; Institute for Advanced Composites Manufacturing Innovation; Digital Manufacturing and Design Innovation Institute; Lightweight Innovations for Tomorrow; American Institute for Manufacturing Integrated Photonics; e Flexible Hybrid Electronics Manufacturing Innovation Institute (ver <http://www.manufacturing.gov/>). Além da implementação dos institutos, existem outras iniciativas estreitamente relacionadas com a NNMI, entre as quais: Advanced Manufacturing Technology Consortia (AMTech); The Alliance for Manufacturing Foresight (MForesight); Investing in Manufacturing Communities Partnership (IMCP); Materials Genome Initiative (MGI); National Nanotechnology Initiative (NNI); e National Robotics Initiative (NRI) (ver <https://www.manufacturing.gov/federal-initiatives/>).26 Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/the-press-office/2015/08/28/fact-sheet-oba ma- -administration-announces-new-flexible-hybrid>.

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Conclusão

Tendo percorrido os tópicos das seções anteriores, reveem-se alguns aspectos mais gerais que devem ser abordados e que serão relevantes para comparar os EUA com a Alemanha e buscar elementos capazes de gerar recomendações preliminares para o Brasil.

Desde já, vale registrar que a forma de atuação dos EUA e os do-cumentos oficiais analisados atribuem um papel explícito ao governo federal no que se refere a impulsionar o desenvolvimento da manufatura avançada no país. Em especial, os departamentos de Defesa, Energia e Saúde atuam em conjunto com os IMIs para prover a demanda efetiva necessária para viabilizá-la.

Claramente, o Departamento de Defesa (DOD) tem um papel predomi-nante e cada vez maior. Atualmente, ele responde por metade dos gastos federais em P&D e opera por meio de programas e agências importantes – como ManTech e Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa). No caso dos EUA, a preocupação com a segurança nacional permeia diversas iniciativas, sendo a de manufatura avançada uma delas. A visão é de que, tendo em vista suas implicações únicas, a Darpa e o DOD são fundamentais para o sucesso da Advanced Manufacturing Initiative.27 Assim, o governo federal atua como um propulsor de novas tecnologias.

Historically, Federal technology investment – supporting basic research, funding proof of concept and promoting early commercialization through procurement – has been crucial to the creation of many technologies that have created new industries in the United States. Such investments, commonly supported by the Department of Defense, Department of Energy, National Institutes of Health, NASA, and National Science Foundation, have helped spawn entire industries, hundreds of U.S. companies and millions of high-quality jobs for Americans for decades (PCAST, 2011, p. 17).

27 Não chega a ser lugar-comum, mas hoje em dia é bastante conhecido o fato de que a internet e a indústria de semicondutores são fruto de uma longa atuação da Darpa e da National Science Foundation (NSF), que não se limitaram a apoiar apenas etapas iniciais como a de ciência básica. Outros casos igualmente conhecidos e importantes são os de apoio (parcial) ao Bell Labs, à Xerox ou às várias tecnologias presentes no iPhone.

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23Sob esse prisma encaixa-se a proposta de aumento do funding dos depar-tamentos e agências28 com o intuito de apoiar e desenvolver aquelas soluções que vão ao encontro dos desafios transversais e aos problemas específicos impostos pela Advanced Manufacturing Initiative.

Outras ações complementares são os incentivos ao P&D privado e demais incentivos financeiros, bem como o apoio à educação (principalmente nos temas relacionados a ciência, tecnologia, engenharia e matemática) e ao treinamento de mão de obra qualificada.

Ademais, é importante notar que a capacidade de os EUA conseguirem trilhar esse caminho é potencializada pelo aproveitamento e fortalecimento de sua base empresarial e dos segmentos de alta tecnologia.

Ao analisar a proposta de atuação estadunidense, deve-se ter em mente que, para além de conferir demanda efetiva estável, o governo exerce papel particular como coordenador e mobilizador de recursos e dos demais agentes. Assim, percebe-se uma lógica de atuação voltada à resolução de proble-mas, a partir de uma abordagem mission-oriented e do estímulo a projetos específicos que solucionem desafios nacionais ou globais em benefício da indústria norte-americana.

A indústria 4.0 da Alemanha

Um breve contexto geral e a “obsessão” pela competitividade

Durante quase duas décadas após a última guerra mundial, a recuperação alemã decorreu em grande parte dos massivos investimentos em indústrias estratégicas e também do aumento das exportações de bens de capital.

O’Sullivan et al. (2013) destacam que o setor manufatureiro representa mais de um quinto do valor adicionado da Alemanha, uma das parcelas mais elevadas da Europa, e é o segundo maior exportador de produtos manufa-turados. Muitas das empresas alemãs são líderes na produção de bens de consumo e bens de capital. Mais recentemente, esse país vem despontando como líder em novas tecnologias, incluindo os segmentos de energia solar e eólica.

28 Em particular, dobrar o orçamento destinado à pesquisa de três órgãos importantes: NSF, Department of Energy’s Office of Science e National Institutes of Standards and Technology, bem como garantir orçamento adequado às demais agências (PCAST, 2011).

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As empresas mais conhecidas são líderes mundiais em determinados segmentos, mas também há uma densa rede de empresas relativamente menores – o Mittelstand – que, em geral, têm controle familiar e são extrema-mente relevantes para a economia alemã. Na verdade, muitas das empresas do Mittelstand são intensivas em tecnologia e líderes de mercado em seus nichos de atuação, apesar de serem desconhecidas para o público em geral.29

Historicamente, o desenvolvimento industrial alemão se beneficiou de alguns elementos essenciais. De acordo com Chang, Andreoni e Kuan (2013) e O’Sullivan et al. (2013), a indústria alemã é tradicionalmente apoiada por uma infraestrutura institucional complexa e altamente organizada. Muitas dessas instituições têm raízes históricas – relacionadas ao contexto pós- -guerra, por exemplo – e são apoiadas por recursos públicos, tais como a ampla rede de apoio à P&D, a disponibilidade de diversos programas ou iniciativas que contribuem para a melhoria das capacitações técnicas das empresas, o acesso a crédito, o sistema educacional vocacional e a atuação da agência alemã de comércio exterior (visando mercados externos).

Andreoni (2016) aponta o Fraunhofer, rede de institutos originada no pós-guerra, como um dos maiores pilares da política industrial alemã, na medida em que trata dos desafios tecnológicos relevantes para todo o sistema industrial.30 Um segundo pilar consiste na infraestrutura financeira composta por bancos públicos voltados ao financiamento do setor industrial. Essa rede não é apenas federal – instâncias subnacionais (länders) também desempe-nham papel relevante – e é particularmente importante para o Mittelstand. Por fim, o autor destaca a regulação das relações industriais: há leis que regulam as negociações coletivas setoriais, embora exista uma tendência à descentralização das negociações, e que tratam da existência de um sistema de treinamento integrado (Vocational Training Law). 31

Apesar de esses elementos tradicionais estarem presentes há bastante tempo, o capitalismo alemão passou por diversas modificações relevantes, especialmente desde os anos 1990. Até o início da década de 2000, o país era visto como o “sickman of Europe” ou um “laggard” passando, em seguida, a ser considerado um caso de sucesso. De acordo com Bastasin (2013, p. 2):

29 Ver Simon (2009) para maior incursão a respeito dos hidden champions.30 O Fraunhofer é o mais conhecido, mas há forte atuação complementar de outros institutos (como os Steinbeis Centres).31 Ver também Hancké e Coulter (2013).

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25(…) the entire German production system had to and was able to strengthen its export orientation, while facing the major geopolitical changes that have directly involved the country; the German reunification, the european monetary unification, eastern Europe opening to international trade and, finally, the entrance into the markets of large areas of the world up to the full development phase of globalization.

Existe um longo debate sobre quais foram os motivos para o desempe-nho alemão a partir da virada do século. Uma corrente atribui o sucesso a uma série de reformas no capitalismo alemão, em especial aquelas re-ferentes ao mercado de trabalho e à política de compressão salarial, que contribuiriam para manter uma taxa real de câmbio competitiva. Outra atribui à superioridade tecnológica da indústria alemã sua excepcional performance exportadora.32

De acordo com Cesaratto (2010), várias são as razões para esse desem-penho externo recente, entre elas o contexto macroeconômico europeu e a integração alemã com os países periféricos do leste europeu. 33 Essa variável é fundamental, sobretudo se forem consideradas as restrições à utilização da política fiscal – em virtude do que foi pactuado no Tratado de Maastricht – e o baixo dinamismo do consumo doméstico – afetado pela política de com-pressão salarial e pela ampliação da desigualdade na Alemanha.

Com efeito, a política de compressão salarial e o fato de a taxa de câm-bio nominal alemã (desde a implantação do euro) estar desvalorizada em relação aos demais países europeus tornam as exportações alemãs mais competitivas em relação a seus concorrentes europeus. Segundo Lehndorff (2012, p. 80-81):

Unit wage costs stagnated and even declined somewhat in manufacturing industry. This contributed to a huge increase in export surpluses in the past decade. (…) For instance, it was no accident that the remarkable rise in export surpluses coincided with the introduction of the euro.

32 Ver, entre outros, Dauderstädt (2012), Bastasin (2013), Storm e Naastepad (2014), Lehndorff (2012) e Cesaratto (2010).33 Como destaca Cesaratto (2010), na década passada a Alemanha saiu de uma razão de importações de bens e serviços em relação ao produto interno bruto (PIB) de 33% em 2000 para 41% em 2008. Além disso, passou de um superávit (bens e serviços) ligeiramente positivo em 2000 para 6% do PIB em 2008. As exportações, especialmente dentro da Europa, têm tido um peso enorme como componente mais dinâmico da demanda.

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The elimination of the exchange rate adjustment mechanism within the currency union (…) means that goods-based competitiveness is linked to the rise in price competitiveness.

Contudo, autores como Storm e Naastepad (2014) e Dauderstädt (2012) argumentam que os produtos com melhor performance exportadora, como automóveis, máquinas e equipamentos, fármacos e produtos químicos, são aqueles cuja competitividade não está relacionada primordialmente ao preço.

Nesse sentido, seria a capacidade industrial alemã que garantiria a com-petitividade de suas exportações, especialmente na própria Europa, que hoje é seu maior mercado. De acordo com Bastasin (2013, p. 5):

German competitiveness derives from the acquisition of comparative advantages in a rather large number of specialized categories of products. In capital goods, durable consumer goods and pharmaceutical products, German firms hold large shares of the world markets. Germany has thus increased exports to the rest of Europe, maintaining its traditional European subcontracting chains (supply chain), specially in non-euro Visegrad countries (Czech Republic, Hungary, Poland and Slovakia, the only euro area country).

Como mencionado, essa posição que a Alemanha desfruta hoje na Europa é resultado de diversas transformações pelas quais a economia alemã vem passando, especialmente desde a formação da União Europeia. A legislação do mercado único europeu impôs padrões únicos para produtos e serviços exportados no âmbito do mercado comum. O que antes era uma barreira não tarifária para a penetração de produtos europeus no mercado alemão tornou-se uma enorme vantagem para as exportações alemãs, em virtude de sua superio-ridade tecnológica e da desde então reforçada capacidade de definir os padrões.

Outra modificação estrutural importante foi a transformação das em-presas alemães em grandes grupos globais. A partir dos anos 1990, elas adotaram, como parte de sua estratégia, a aquisição de plantas nos países vizinhos da Europa Oriental, montando suas “cadeias europeias de valor”. Aproveitando-se de sua posição central na Europa, de sua excelente infraes-trutura de portos e aeroportos e de sua tradição de promoção comercial, acabou se transformando em um polo de comércio intraeuropeu.

As grandes empresas alemãs passaram a importar partes e peças, con-centrando as etapas finais de montagem na Alemanha e exportando os bens

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27finais com forte conteúdo tecnológico. Esse processo, ao mesmo tempo que ampliou as importações alemãs da Europa, com aumento relevante do comércio intrafirmas, também impulsionou as exportações alemãs.

Outro fator relevante foi a forma como a Alemanha se beneficiou das mudanças dos padrões de demanda mundial.34 Oriundas essencialmente do processo de concentração de renda observado na Europa e no mundo, tais mudanças favoreceram a estrutura industrial alemã, inclusive estimulando a demanda de bens de consumo “de luxo”.

Dauderstädt (2012) afirma que a busca por competitividade internacional é quase uma obsessão para a Alemanha, inclusive tendo em vista que o país vem sendo impactado pela crescente ameaça imposta pelos emergentes. Todavia, vale ressaltar que as políticas não conformam uma estratégia deliberada e coerente. Não há exatamente um ator estratégico, mas sim um esforço comum do estado, empresas e sindicatos.35

Enxergar os grandes movimentos da economia alemã e de sua indústria é fundamental para compreender a “nova” estratégia industrial. É nesse contexto que se insere a estratégia alemã, cujo objetivo, pode-se interpretar, é o de aprofundar sua posição de líder industrial na Europa por meio do estímulo e ampliação da technological competitiveness de suas empresas e do reforço de sua competitividade “não preço”. Nesse contexto e associa-das a uma estratégia mais geral, acrescentam-se a preocupação com o uso eficiente de recursos e energia, a ampliação das fontes renováveis na matriz energética e a produção de equipamentos e veículos eficientes.

A High-Tech Strategy e a indústria 4.0

Ante o exposto, existem ações em curso para tratar das preocupações com o futuro industrial da Alemanha. A iniciativa alemã tem como pano de fundo uma série de preocupações gerais que são semelhantes às dos EUA e que se traduzem no desejo de se cristalizar na liderança global (primordial-mente europeia) no que tange à produção industrial e tecnologia de ponta.

34 Esse aspecto é destacado, ainda que com visões diferentes, em trabalhos como MGI (2012) e Dauderstädt (2012).35 Como ressalta o autor, a despeito de seu desempenho, a política industrial alemã encontra limites externos e internos. Os externos se referem às restrições impostas pelo Tratado da União Europeia, que limita diversos instrumentos, como subsídios, tarifas, barreiras não tarifárias. Internamente há forte oposição ideológica à ideia de que o Estado deve influenciar a estrutura da economia – deve apenas cuidar para que o “ambiente de negócios” seja favorável e não haja barreiras à competição.

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Andreoni (2016) destaca que a economia alemã vem passando por alguns ciclos de transformação. Nessa linha, o primeiro ciclo recente se deu no início dos anos 2000 e caracterizou-se por conferir ênfase às questões ambientais, à eficiência energética e à inserção de fontes renováveis na matriz.

Já a partir de meados de década, o sistema industrial passou por três gran-des ciclos (semelhantes) e, em todos os casos, a visão geral e as principais linhas de ação aparecem encapsuladas no âmbito da chamada High-Tech Strategy. A tradução do plano geral em medidas específicas passa não apenas pelo governo federal e seus ministérios, mas também pelos länders e pelas instituições europeias em seus diversos níveis – o sistema alemão é bastante caracterizado por sua conformação multicamadas e por vários tipos de apoio (por exemplo, subsídios, empréstimos, grants, garantias etc.).

A High-Tech Strategy foi a primeira iniciativa ampla construída a partir de um consenso nacional que compartilha uma visão comum sobre o proces-so de inovação e a necessidade de criar novas tecnologias, considerando o objetivo mais geral da economia alemã o de consolidar sua liderança global e abrir possibilidades para sua indústria.36 Essa iniciativa é coordenada pelo governo federal e conta com a participação de empresas importantes (tais como Siemens, Volkswagen, Bosch, Kuka, ABB, Festo e IBM), primor-dialmente alemãs, e que possuem diversas outras empresas do Mittelstand em sua cadeia produtiva.

De forma ambiciosa, a estratégia pretende enfrentar os novos desafios impostos pela globalização (“Germany cannot compete on cost”) e foi de-senhada para explorar oportunidades em segmentos específicos e em ativi-dades/tecnologias transversais.37 A High-Tech Strategy encontra-se em sua terceira versão, e a mais atual mantém abordagem e estrutura semelhantes às da original, de 2006, mas atribui mais evidência à pesquisa de excelência e enfatiza mais a necessidade de capturar novos mercados por meio de um mix de projetos mission-oriented e iniciativas para promoção de exportações.

Trata-se, portanto, de fortalecer a posição industrial e de nação exporta-dora. O objetivo, da mesma forma que no programa americano, é trazer uma

36 Ver BMBF (2010) e BMBF (2014).37 “(…) it was also designed to develop a number of ‘strategic partnerships’ in cross-cutting activities where transversal opportunities emerge were supported (new ‘platform technologies’ and ‘pioneer markets’). The strategy also recognised the need to match these new techno-industrial ventures with new regulations in intellectual property, product standards and concerning the governance of the public procurement system” (ANDREONI, 2016, p. 24).

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29abordagem integrada, conjugando as ações desenvolvidas nos vários níveis de governo para alcançar a liderança no desenvolvimento de tecnologias habilitadoras e consolidar sua posição global. Para esse fim, foi utilizado um arcabouço em que se integra e se estimula o diálogo entre a comunidade científica e empresarial, além de policy makers.38

Diante de desafios como as mudanças climáticas, a escassez de alimentos, mudanças demográficas e aqueles relacionados à energia e combustíveis fós-seis, o país pretende se consolidar como provedor de soluções para essas ques-tões (seja abrindo/criando mercados, seja se aprofundando naqueles existentes e dinâmicos). Para isso, diversas ações relacionadas ao plano de inovação alemão são derivadas de alguns grandes temas. Tanto o desenvolvimento de tecnologias habilitadoras quanto medidas para melhorar as “condições gerais” para inovação são encorajadas de forma a gerar avanços nos grandes temas.

Vale destacar que a política estará direcionada “with the aim of tapping emerging markets” (BMBF, 2010, p. 5) e também se deseja estendê-la para o resto da Europa, como parte da influência alemã sobre suas “cadeias eu-ropeias de valor”. A Figura 2 ilustra o framework proposto.

Figura 2 | Áreas de atuação da High-Tech Strategy

Saúde Mobilidade Segurança ComunicaçãoEnergias emudançasclimáticas

Desafios globais Áreas de ação

Tecnologias habilitadoras

Condições gerais / questões transversais

Fonte: Adaptado de BMBF (2010).

Atualmente, as grandes áreas consideradas prioritárias e que darão o norte para as ações estratégicas são:

38 De acordo com BMBF (2014, p. 10), “only collaboration and participation by all stakeholders will make it possible for curiosity to lead ideas and for ideas to lead to innovations for competitive, sustainable products and services”.

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i. economia digital e sociedade;ii. economia sustentável e energia;iii. saúde/vida saudável;iv. mobilidade inteligente; ev. segurança civil.

Tanto as key technologies quanto outras condições gerais são questões transversais que perpassam todos os campos. O objetivo central da estratégia é dirigir as políticas de pesquisa e inovação para a resolução de “missões” específi cas. Para isso, optou-se por associar projetos específi cos (forward--looking projects) aos grandes temas. Tais projetos devem perseguir objetivos específi cos, em um período de dez a 15 anos.

Existem alguns exemplos mais específi cos, tais como o projeto que ob-jetiva atingir a produção de um milhão de veículos elétricos na Alemanha em 2020, e outros menos específi cos, como o que trata do desenvolvimento da fotônica e que vislumbra tornar este o “século da fotônica”. De qualquer forma, os projetos compartilham uma característica comum: todos os en-volvidos cooperam para atingir um objetivo defi nido. Cada um deles visa “fi nd(ing) systematic solutions that enhance our quality of life, protect our bases for life and give our industry competitive advantages in important lead markets” (BMBF, 2014, p. 50). A Figura 3 ilustra tais projetos.

Figura 3 | Dez projetos emblemáticos presentes em BMBF (2014)

Vida independente em idade avançada

Mobilidade sustentável

Serviços baseados na internet para a indústria e negócios

Segurança para identificação

Indústria 4.0

Cidades neutras em CO2 eenergeticamente eficientes

Fontes renováveis, como alternativa ao petróleo

Transformação inteligente da oferta de energia

Tratamento de doenças e medicina individualizada

Saúde, prevenção efetiva e dieta saudável

Fonte: Adaptado de BMBF (2014).

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31Toma-se agora, brevemente, o tema da economia digital, que trata da integração das tecnologias digitais com as aplicações industriais. Tal inte-gração é encarada como decisiva para a competitividade da economia alemã. Nesse tema, há uma série de inciativas, inclusive a indústria 4.0.

O principal documento que aborda esse assunto é Acatech (2013) e reco-nhece que a força industrial da Alemanha decorre de sua especialização em tecnologias inovadoras. O documento parte do diagnóstico de que as capaci-tações acumuladas em engenharia, manufatura e TI, bem como o know-how que tem em sistemas embarcados e engenharia de automação, permitem que o país se posicione como líder em “manufacturing engineering industry”.

A ênfase é colocada sobre os sistemas ciberfísicos, que no ambiente manufatureiro envolvem máquinas inteligentes, sistemas de armazena-mento, instalações capazes de gerar/trocar informação autonomamente e desencadear ações (ACATECH, 2013). Aqui ganham muita importância os sensores e as tecnologias para automação. As fábricas “inteligentes” representariam a convergência do mundo real e virtual, formando uma internet das coisas. Entre outros aspectos, a indústria 4.0 relaciona-se com a resolução de problemas importantes, como eficiência energética, e visa aumentar a produtividade no nível da firma. Segundo BCG (2015), são nove as tecnologias que se combinam para formar a indústria do futuro: big data e analytics; robôs autônomos; simulação; integração de sistemas; internet das coisas; segurança cibernética; computação e nuvem; manufatura aditiva; e realidade aumentada.

Um elemento importantíssimo dessa estratégia, encarado por Acatech (2013, p. 29) como precondição, é a adoção de uma estratégia “dual” pela Alemanha. Dual no sentido de que o uso dos sistemas ciberfísicos, quando adotado pelos fabricantes de produtos, poderá conferir mais eficiência à produção doméstica. Por outro lado, o desenvolvimento de tais tecnologias representa uma oportunidade de ganhos para diversas empresas alemãs no que tange à exportação de tecnologias e produtos. Para isso, será fundamental se beneficiar de sua vigorosa base industrial e de seu excelente ambiente de pesquisa. Ademais, as atividades de P&D precisam ser acompanhadas de decisões de política. Segundo o documento em referência, são necessárias ações em áreas prioritárias, entre as quais: criação de padrões e arquitetura de referência; regulação e proteção de dados; e um esforço de abertura de novos mercados, com auxílio de agências de promoção de exportações.

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Mais do que entender os detalhes de cada um dos projetos especifica-mente, é importante entender o arcabouço da política elaborada, bem como seu caráter mission-oriented.

Os documentos do governo alemão destacam a importância das tecnolo-gias habilitadoras “due to the economic leverage they can develop” (BMBF, 2014, p. 36) e inclui, entre as tecnologias relevantes, as digitais integradas ao processo de produção. Repare que se faz referência explícita à relação entre essas tecnologias e a preservação da posição de liderança alemã como fábrica do mundo: “Germany’s competitiveness as a centre for production depends in large measure on its ability to exploit the economic potential in such key technologies” (BMBF, 2014, p. 36). Como será visto na próxima seção, a indústria 4.0 vem reforçar e estimular o papel desse país como a verdadeira fábrica mundial.

Conclusão

Com base no que foi descrito, pode-se perceber que a estratégia alemã formula objetivos claros em diversos campos, define prioridades e introduz novos instrumentos. A implementação da estratégia é realizada com a su-pervisão de um conselho de assessores e especialistas das áreas de ciências e da indústria e com a participação de membros da sociedade.

Dentro da estrutura conceitual e do arcabouço institucional, as inicia-tivas se materializam nos forward-looking projects já indicados, do qual a indústria 4.0 é “apenas” um deles. Analogamente ao caso norte-americano, tais projetos se configuram como mission-oriented, e o desenvolvimento de tecnologias habilitadoras é parte fundamental. Assim, a base da política alemã de desenvolvimento tecnológico se apoia no conceito de tecnologias habilitadoras. Pode-se citar BMBF (2010, p. 9):

Key technologies are the drivers of innovation and the basis for new products, processes and services. The future viability of the German economy depends on whether Germany can achieve a leading position in the areas of biotechnology, nanotechnology, micro-and nanoelectronics, optical technologies, microsystems technology, materials technology, production technology, services research, space technology, information technology and communications technology. (...) They are prerequisites for many applications in a wide range of different sectors.

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33À primeira vista, poder-se-ia aventar que a adoção das fábricas “do futu-ro” e das tecnologias seria impulsionada pela própria indústria doméstica. De fato, a adoção de novas tecnologias pode proporcionar ganhos de eficiência, e a estrutura industrial alemã é bastante robusta e composta por empresas modernas que podem se mostrar capazes de absorver essas tecnologias para se manter em posição de liderança. Entretanto, há que se considerar que a economia alemã não apresenta elevado crescimento e, tradicionalmente, se apoia nas exportações. Esse sim parece ser o componente da demanda efetiva que ajudará a dar escala para a estratégia alemã. Tal interpretação se coaduna com o excelente desempenho exportador do país e sua ligação com as “cadeias europeias de valor”. Ademais, guarda relação direta com a já mencionada orientação explícita de buscar novos mercados, até mesmo em países emergentes, e com a atuação ativa das agências alemãs de promoção ao comércio exterior – inclusive no Brasil.

Além disso, o que parece haver de novidade na inserção alemã é que o país não se colocará apenas como exportador de produtos e tecnologias, mas também como um “produtor”/EPCista39 das ditas fábricas inteligentes. Ganhar essa característica é algo notório, pois os EPCistas têm o papel de definir de quais empresas serão demandados os equipamentos/soluções a serem utilizados. Não por outra razão, Simon (2009, p.108) lembra que “[w]e often hear that China will become the ‘factory of the world’, an assertion that will probably come true. But hardly anyone asks the ensuing question, ‘Who builds this factory of the world?’”.

Ainda que o governo federal alemão não atue exatamente como o dos EUA, não quer dizer que não exerça papel destacado. Isso é verdade no que diz respeito tanto à coordenação de uma diversidade de agentes quanto à provisão de demanda efetiva. Com efeito, a High-Tech Strategy lançada em 2006 comprometeu-se com cerca de € 4 bilhões anuais especificamente para o desenvolvimento de tecnologias habilitadoras; a versão revisada da High-Tech Strategy de 2010 alocou mais de € 8 bilhões para o período 2012-2015.40

39 Termo derivado da sigla EPC (engineering, procurement and construction) e aplicado às empresas cuja responsabilidade é realizar as atividades de engenharia, contratação/compras e construção do empreendimento para o qual foi contratada.40 Ver <http://www.gtai.de/GTAI/Navigation/EN/Invest/Industries/Smarter-business/smart-solutions-changing-world,t=hightech-strategy-2020-action-plan,did=575914.html>.

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Além disso, o tradicional ecossistema de inovação alemão contribui decisivamente para o fortalecimento da indústria, contando com diversas formas de apoio a P&D, mão de obra qualificada e institutos de pesquisa altamente capacitados. De forma semelhante aos EUA, a Alemanha bene-ficia-se de sua base industrial robusta e já instalada e de sua atual inserção internacional.

Vale notar que a discussão sobre o estabelecimento de padrões cumpre um papel relevante no que diz respeito a criar/garantir mercados para suas empresas e construir barreiras à entrada. Assim, a definição de padrões é fundamental e, não por menos, vem sendo objeto de disputa entre EUA e Alemanha. Segundo BCG (2015, p. 12-14), “[s]everal other standardization organizations have ambitions in the field. Strategically choosing participation in these and other bodies and actively shaping the standardization agenda will be critical for manufacturing-system suppliers”.

Considerações finaisO que há de novo? Há algo de velho?

Neste artigo, buscou-se enxergar a construção da manufatura avançada sob um prisma diferente das abordagens dominantes. Decerto, seria um grande equívoco encará-las como uma estratégia global empreendida con-juntamente ou de forma coordenada. Na verdade, é justamente o contrário disso: consistem em políticas nacionais de determinados países que visam a liderança industrial e a manutenção de sua preponderância global.

Além das experiências ora abordadas, existem iniciativas da mesma natu-reza em países como Inglaterra, China e Japão. Ao interpretar os fenômenos dessa forma, também fica claro que não há uma tendência “exógena” de evolução tecnológica, autônoma ou inevitável; e sim de políticas deliberadas para criar novos mercados e construir o futuro, incorporando tecnologias habilitadoras. Dessa forma, ressalta-se o caráter não espontâneo do avanço tecnológico nesses países.

Tendo abordado a motivação mais geral e as duas experiências par-ticulares, um passo obrigatório é indagar quais seriam as semelhanças entre as iniciativas estadunidense e alemã. O Quadro 1 resume os prin-cipais pontos.

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35Quadro 1 | Síntese comparativa entre EUA e Alemanha

Principais pontos em comum

EUA Alemanha

Demanda efetiva Compras públicas(defesa, energia e saúde)

Mercado externo(países europeus)

Tecnologias habilitadoras

Manufatura aditiva, nano e biomanufatura, novos materiais (inclusive compósitos e mais leves), TICs, semicondutores, fotônica, eletrônica de próxima geração etc.

Manufatura aditiva, nano e biomanufatura, novos materiais (inclusive compósitos e mais leves), TICs, semicondutores, fotônica, eletrônica de próxima geração etc.

Infraestrutura de inovação

Criação dos IMIs Institutos como Fraunhofer

Áreas de atuação Defesa (dual), energia, saúde etc.

Energia, saúde, mobilidade, segurança e comunicação etc.

Base empresarial GE, Boeing, Lockheed Martin, IBM, Honeywell etc.

Siemens, VW, Kuka, Bosch, Festo etc.

Fonte: Elaboração própria.

Primeiramente, configuram-se como políticas que têm a inovação no cer-ne do debate. Como já mencionado diversas vezes, elas apoiam e estimulam o surgimento de novas tecnologias habilitadoras (key enabling technologies), elemento crucial de ambas as estratégias. Tais tecnologias são essenciais e formam a base das iniciativas de uma série de países. Como destaca Loural (2014), estamos diante de tecnologias que podem ser capazes de viabilizar novos setores econômicos ou revitalizar setores tradicionais.

Esse mesmo autor faz uma reflexão sobre as tecnologias habilitadoras, associando-as ao conceito de plataformas, ou seja, “tecnologias sobre as quais outras tecnologias, processos e produtos podem ser desenvolvidos” (LOURAL, 2014, p. 12).41 A partir de Tassey (2008), o autor também resgata o conceito de tecnologias genéricas (generic technologies), que fornecem “uma base de conhecimentos a partir da qual conjuntos particulares de aplica-ções e outras tecnologias podem ser desenvolvidas” (LOURAL, 2014, p. 14).

Em segundo lugar, é possível identificar que há investimentos massivos do governo federal (ainda que em maior grau nos EUA), das instâncias locais e da iniciativa privada, especialmente em institutos especializados voltados para o desenvolvimento das tecnologias habilitadoras, e que estimulam os

41 Ver também OECD (2015), que segue uma interpretação similar.

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industrial commons. Adicionalmente, tem-se recorrido à formação de con-sórcios de empresas e institutos de ciência e tecnologia.

Somado a isso, há toda uma estrutura institucional relacionada ao ecossis-tema de inovação que contribui para o fortalecimento da indústria – apoiada de forma decisiva por instâncias federais e locais – que conta com excelente ambiente de pesquisa (em especial no caso alemão, contendo os Fraunhofer, por exemplo), alta qualificação da mão de obra e diversas modalidades de apoio à P&D.

Entre outras coisas, o governo exerce um papel de coordenação de agentes e capacidade de mobilização de recursos e de demais agentes. No que tange à provisão da demanda efetiva capaz de viabilizar o de-senvolvimento das tecnologias habilitadoras (e sua incorporação em bens e setores), o papel dos departamentos federais norte-americanos é um exemplo muito explícito – como tem sido historicamente, aliás. Por sua vez, na Alemanha também há um papel proeminente para o governo federal (e länders), porém a reafirmação de sua liderança exportadora é fundamental. Desde a concepção das estratégias, há uma clara opção do governo em atuar sob uma lógica de resolução de problemas e do estímu-lo a projetos específicos que resolvam desafios nacionais ou globais em benefício de sua indústria.

Em ambos os casos, é possível aproveitar da definição dada em PCAST (2011) e dizer que os esforços desses países visam desenvolver diversas atividades que dependem do uso e coordenação da informação, automação, computação, software e sensoriamento. Ao mesmo tempo, elas utilizam materiais avançados e competências emergentes que se tornam possíveis a partir de avanços em campos do conhecimento como a física e as ciências biológicas. Daí resultam tanto novas formas de fabricar e desenvolver produtos existentes quanto a manufatura de novos produtos utilizando novas tecnologias.

Ademais, vale notar que ambos os países se beneficiam de uma base industrial robusta e já instalada – em especial, de seus grandes campeões nacionais e dos hidden champions – bem como de sua atual inserção inter-nacional. Em linha com o que foi dito anteriormente, a capacidade de trilhar esse caminho é potencializada pelo aproveitamento e/ou fortalecimento de sua base empresarial – em que a propriedade nacional é muito mais a regra do que a exceção – e dos segmentos de alta tecnologia. Resultados

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37completamente diferentes poderiam ser esperados a depender da existência prévia disso.

Pode-se, portanto, ressaltar que a identificação e o desenvolvimento de tecnologias habilitadoras ganham um caráter relevante. Relevante, inclusive, como parte da estratégia de criar e/ou comandar novos mercados.

Assim, cabe refletir sobre o que parece haver de verdadeiramente novo nesses movimentos analisados. Nesse sentido, o que pode diferenciar o atual movimento global de avanço tecnológico dos demais é a convergência e a combinação dessas tecnologias habilitadoras, que se encontram em diver-sos graus de maturidade e desenvolvimento, para gerar novos produtos e processos que podem levar a mudanças mais disruptivas.

No entanto, cabe indagar: mas será que não há nada de “velho”? No contexto da competição global das economias avançadas e das mudanças na natureza da atividade manufatureira, diversos países adotaram estratégias de reposicionamento econômico. Nesse sentido, trata-se de mais uma nova manifestação do velho debate sobre política industrial, agora revisitado de forma a estimular o reshoring. Note-se que foram os próprios países avança-dos que reabilitaram a política industrial com uma abordagem que congrega os seguintes elementos: um olhar mission-oriented; ênfase na combinação de tecnologias habilitadoras; e fortalecimento das capacitações coletivas (industrial commons).

Por certo, vive-se um período de transformações, porém, dadas as dinâ-micas ressaltadas no presente artigo, a ideia de que há uma “nova” revolução industrial pode ser vista com algum ceticismo. Ainda que a convergência de tecnologias ofereça perspectivas positivas, parece exagerado afirmar que há uma mudança de paradigma que justifique aclamá-la como a quarta revolução industrial.

Há que se reconhecer que é precipitado afirmar taxativamente que se trata de uma revolução. O futuro (e o presente) é carregado de incertezas, e é difícil prever a maturidade dessa ou daquela abordagem. Está claro, en-tretanto, que ainda há uma longa transição e que o futuro encontra-se aberto e em construção – obviamente, o tempo encarregar-se-á de esclarecer isso.

Ainda que se apontem mudanças significativas, é possível que se con-figurem como um novo avanço de um longo processo já em marcha e pos-sibilitado pelas tecnologias de informação. Dessa forma, talvez seja mais

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prudente enxergar os movimentos como parte de um processo evolutivo não tão rápido, carregado de inovações incrementais e caracterizado por uma combinação de tecnologias, várias delas já conhecidas há algum tempo – ou, conforme OECD (2015, p. 10), “have been around for a while”.42 Ademais, é importante ter a clareza de que as tecnologias conviverão de forma híbrida, com produtos/processos novos e tradicionais e tecnologias mais maduras e outras emergentes – essas próprias tecnologias híbridas ainda se encontram em gestação, o que pode se mostrar como mais um elemento de uma fase de transição.

Algumas recomendações para o Brasil

O presente trabalho concentrou-se primordialmente em tecer considera-ções a respeito das principais experiências internacionais, mas estas podem ser aproveitadas na intenção de buscar aprendizado e inspiração para a construção de uma futura política brasileira de manufatura avançada.

Considerando o conjunto de elementos sintetizados no Quadro 1, enu-meram-se algumas perguntas analíticas que poderiam nortear uma eventual incursão no tema. Um detalhamento excessivo fugiria ao escopo deste artigo, de forma que serão elaboradas apenas questões gerais que, evidentemente, requerem aprofundamento em um próximo trabalho.

Em primeiro lugar, é essencial identificar quais são as tecnologias habili-tadoras que poderiam ser mais relevantes para o Brasil. Em certo sentido, as tecnologias são transversais, mas há que se ponderar que as oportunidades podem ser maiores em alguns nichos do que em outros. Dessa forma, uma estratégia brasileira encontraria suporte em que setores da economia? Indo além, quais seriam os problemas específicos e os projetos estruturantes responsáveis por impulsionar a demanda?

De maneira breve e não exaustiva, destaque-se que o Brasil está parti-cularmente bem posicionado no setor de petróleo e gás (a despeito da crise atual) e tem um enorme potencial relacionado ao pré-sal. Analogamente, o país tem “vocação natural” para a agropecuária e também um ativo único no mundo que é o bioma Amazônia. As energias renováveis podem apontar o país para novas tecnologias e mercados (inclusive aproveitando

42 Para interpretação semelhante, ver Loural (2014) e Kupfer (2016). Os autores são dos poucos que vêm falando nessa linha.

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39suas condições climáticas de vento e incidência solar, além da tradicional competência no segmento de hídrica, bem como do arcabouço regulatório já montado). Como se sabe, o Brasil apresenta déficits em saúde e em mo-bilidade, por exemplo, e essas também são questões que poderiam orientar os desafios nacionais.

Em segundo lugar, de onde viria a demanda efetiva necessária para as tecnologias? No caso estadunidense, as compras públicas são cruciais, e o mercado doméstico pode vir a assumir papel importante para as empresas dos EUA; no caso da Alemanha, crucial é sua orientação exportadora as-sociada a seu papel dentro da Europa. Claramente, a inserção internacional brasileira é diferente, mas há que se refletir especialmente sobre qual papel regional ela pode assumir – e em alguns casos o papel global. Além disso, vale indagar: é necessário estruturar uma política de compras de médio/longo prazo por trás dos desafios a serem atacados? A longo prazo, haveria “disposição” econômica para isso? Haveria coesão política para, no longo prazo, sustentar as ações necessárias?

Vale lembrar que se ensaiou algo nesse sentido com o Inova Empresa e com o Programa Nacional de Plataformas do Conhecimento (PNPC). O primeiro programa envolvia a elaboração de editais de chamada pública para apoio a setores e tecnologias prioritárias. O segundo tinha entre suas metas criar plataformas de conhecimento em áreas selecionadas, utilizando-se de compras públicas, e fortalecer as instituições de infraestrutura de pesquisa.

Sobre esse último tópico, deve-se cotejar o que idealmente poderia ser feito vis-à-vis o que se pode aproveitar da estrutura e das ações existentes no país. À luz do que foi exposto neste trabalho, é essencial incentivar a formação e o reforço de commons no Brasil. Como exemplo, pode-se ressaltar a iniciativa ainda em andamento para criação de uma série de institutos regionais e com competências específicas – os Institutos Senai de Inovação (ISI) e os Institutos Senai de Tecnologia (IST) – concebidos em parceria com o Fraunhofer e o Massachusetts Institute of Technology (MIT). Exclusivamente em termos conceituais, poder-se-ia dizer que iniciativas como o PNPC e os ISIs/ISTs são ações embrionárias que ensejam pôr o Brasil em patamar semelhante ao dos principais países do mundo em relação a esse tipo de estrutura. Adicionalmente, o país conta com uma variedade de instituições e instrumentos tradicionalmente importantes, tais como Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Empresa Brasileira de

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Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), Centro de Pesquisas Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes/Petrobras), Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), BNDES Funtec e programas de P&D da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

De qualquer forma, o estímulo ao desenvolvimento de tecnologias ha-bilitadoras passa pelo mapeamento das instituições e também das empresas presentes no país e relacionadas ao tema. Nesse aspecto, caberia também in-vestigar o papel da base empresarial local nesse movimento, considerando sua fragilidade e sua heterogeneidade característica (em suas várias dimensões). Em particular, tendo em vista que a industrialização brasileira foi historica-mente construída com significativa presença de multinacionais estrangeiras, dever-se-ia indagar se isso põe o Brasil em posição diferente de Alemanha ou EUA (em que empresas alemãs ou estadunidenses, respectivamente, assumem proeminência). Seja qual for a resposta, não se pode deixar de questionar: as características de nossa base industrial importam de alguma maneira?

Evidentemente, esse seria um esforço deliberado, que (obviamente) po-deria dar certo ou errado; existem muitos casos em que políticas industriais fracassaram, inclusive por perseguirem objetivos errados. Parte do sucesso depende da existência de sustentação política às ações essenciais. Sem ela, pouco se avançará nas ações que efetivamente promovem a indústria.

Ademais, o próprio relacionamento entre instituições e classes mostra-se relevante. Todavia há que se tomar cuidado com o risco de ser “capturado” por interesses de grupos específicos da sociedade. Assim, vale citar Chang, Andreoni e Kuan (2013, p. 17) ao resgatarem a famosa expressão de Peter Evans:

Peter Evans (1995), the eminent American sociologist, has captured this point beautifully in his notion of ‘embedded autonomy’, which means that the government needs to have roots in the society (‘embeddedness’) but also has to have its own will and power (‘autonomy’) in order to be effective in its intervention. Autonomy without embeddedness can create a state that imposes an ‘inorganic’ vision on the society through force, while embeddedness without autonomy means that the state is turned into Marx’s executive committee of the bourgeoisie.

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41Por fim, resta saber se essa será uma daquelas situações em que a nação industrialmente mais desenvolvida apenas mostra às menos desenvolvidas a imagem de seu próprio futuro e se, também, parafraseando Chang (2004), chutará a escada das demais.

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Aeroespaço e DefesaBNDES Setorial 44, p. 47-86

* Respectivamente: contador; gerente, com PhD em Dinâmica de Voo pela Cranfield University, Inglaterra; e arquiteto, lotados no Departamento de Comércio Exterior 1, da Área de Comércio Exterior do BNDES.

Empresas aéreas de baixo custo

Paulus Vinicius da Rocha Fonseca Sérgio Bittencourt Varella Gomes João Alfredo Barcellos*

ResumoO mercado de empresas aéreas de baixo custo, ou low cost carriers (LCC), como são universalmente conhecidas, teve seu início com a mudança no modelo de negócios da Southwest Airlines, quando houve a desregulamen-tação do transporte aéreo nos Estados Unidos da América (EUA), em 1978. Desde então, esse modelo vem se difundindo pelo mundo. Ele se baseia na mudança dos paradigmas do produto oferecido, nas características dos serviços, na forma de operação das rotas, nas estratégias de marketing e divulgação e nos canais de distribuição, com o objetivo de se incorrer nos menores custos possíveis, cobrando-se tarifas sempre mais baixas que as da concorrência. O survey das LCCs pelo mundo revela modelos adaptados assumindo diversas variações conforme as características regulatórias e cul-turais de cada país/região. As implicações para as exportações de aeronaves brasileiras para LCCs são brevemente analisadas.

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IntroduçãoO mercado para as LCCs tem crescido bastante. Em 2015, essas empre-

sas transportaram pouco mais de 1,1 bilhão de passageiros, auferindo uma receita de mais de US$ 92,5 bilhões. Isso significa um aumento de 10,9% em relação ao ano anterior, crescimento semelhante ao observado de 2013 para 2014. A frota de aeronaves de baixo custo compreendeu um total de 4.369 unidades em abril de 2016, majoritariamente dos modelos B737 e A320 (FARFARD, 2016). Esses modelos compreendem a maior parte dos pedidos em carteira da Boeing e da Airbus feitos pelas LCCs.

Este artigo se inicia com um breve comentário sobre o contexto histórico em que surgiu o modelo LCC, fruto da desregulamentação do transporte aéreo nas principais regiões do planeta. Em seguida, serão tratadas as prin-cipais características do modelo de negócios de uma empresa low cost. Na sequência, serão abordadas a questão dos impactos da entrada das LCCs nos principais mercados do planeta e a reação das empresas tradicionais a esses novos entrantes. Faz-se, depois, breve reflexão sobre o futuro desse modelo de negócios, apresentando-se tendências já presentes. Na conclusão, algumas implicações para as exportações de aeronaves brasileiras são investigadas.

Contexto históricoEmbora seja um modelo de negócios disseminado por todo o mundo

na atualidade, o conceito de empresa de baixas tarifas teve início com as empresas chamadas de charter, ou “charteiras”, na forma aportuguesada. O berço desse modelo de negócios foi a Europa da década de 1960, quando as charteiras – operadoras de transporte aéreo não regular – passaram a levar, durante o verão, milhares de turistas dos países situados ao norte para as praias ensolaradas do Mediterrâneo e de Portugal. O pacote turístico, que podia incluir também a hospedagem, era pago com antecedência. A rígida regulamentação tarifária então em vigor permitia assim voos bem mais em conta, dado o caráter turístico específico da viagem. Por outro lado, a char-teira também tinha custos muito reduzidos, pois só operava com a aeronave lotada, sem a necessidade de esforços de vendas (a cargo de operadoras de turismo), sistemas de reservas, serviço de bordo etc.

Foi, porém, nos EUA que surgiu a primeira empresa regular que pode ser considerada uma LCC. Seu modelo de negócio foi a inspiração para as demais empresas que surgiram depois em todo o mundo. Essa empresa

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49foi a Southwest Airlines. Embora tenha sido fundada em 1971 para operar apenas no Texas, foi somente a partir de 1978 que deslanchou, pois pôde operar em todo o mercado doméstico norte-americano.

Até o fim da década de 1970, em todo o mundo, o mercado era domi-nado pelas empresas de modelo de negócio tradicional, conhecidas como mainlines ou – no caso do transporte aéreo internacional – empresas “de bandeira” (levavam a bandeira do país ao exterior). Voar era visto como uma forma de deslocamento requintada, com diversos “mimos” à disposição dos passageiros: serviço de bordo completo, disponibilização de jornais e revistas, amplo espaço entre as poltronas etc. Tudo isso funcionava bem em um ambiente de preços altamente regulados, em que as empresas se distinguiam pelo serviço oferecido, procurando assim atrair os passageiros para seus voos. Entre as empresas, havia rivalidade, e não concorrência no sentido contemporâneo.

Esse padrão de mercado regulado prevaleceu a partir do término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Resultou da realização da Convenção de Chicago, em 1944, com representantes da aviação civil de 54 países (DOGANIS, 2006). O transporte aéreo comercial passou a ser visto como um setor nascente e estratégico. Esse reconhecimento e o potencial de crescimento dessa nova indústria justificaram sua estrita regulação técnica e econômica. A Convenção de Chicago estabeleceu as bases do sistema do transporte aéreo em três elementos inter-relacionados: (i) troca de direitos para os acordos de serviços aéreos (para que empresas de um país pudessem voar para outros países); (ii) controle de taxas e tarifas aéreas; e (iii) con-trole das frequências dos voos e capacidade neles oferecida (número de assentos das aeronaves).

O resultado imediato dessa convenção foi a fundação da Organização da Aviação Civil Internacional (Icao, na sigla em inglês). Órgão filiado à Organização das Nações Unidas (ONU), a Icao é responsável pela unifor-mização internacional de procedimentos técnicos e operacionais da indústria do transporte aéreo e sua fiscalização (RODRIGUES, 2012). Outra conse-quência dessa convenção foi o estabelecimento, em 1945, pelas empresas aéreas, da Associação Internacional do Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), com a missão precípua de regular as tarifas aéreas internacionais e os padrões de serviços oferecidos pelas empresas, além de servir de câmara de compensação para passagens aéreas entre as empresas, entre outras missões.

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Portanto, o resultado geral e direto foi a forte limitação da liberdade de ação dos agentes do setor, criando-se um ambiente extremamente regula-do, inexistente em qualquer outra indústria desse porte e importância. Tal arranjo permaneceu inalterado até o fim da década de 1970, contendo-se assim eventuais inovações na gestão das empresas e limitando claramente a concorrência quanto a preços e a redes de transporte aéreo, tanto na esfera doméstica quanto na internacional.

Processos de desregulamentação econômica

Nos EUA, durante a década de 1970, intensificou-se o movimento, por parte de vários grupos da sociedade e pelo Congresso, em prol da desregulamentação e da livre competição no setor aéreo. A argumentação tinha por base os benefícios esperados para o consumidor caso houvesse a proliferação da concorrência, a qual poderia gerar tarifas mais baixas, maior oferta e diferenciação do produto. Também se vislumbravam im-pactos positivos nas empresas, que estariam sujeitas à concorrência de mercado e ver-se-iam obrigadas a aumentar sua eficiência e inovar na administração. Já as incapazes de disputar esse novo jogo seriam elimi-nadas do mercado.

Portanto, os primeiros passos para a desregulamentação do setor se deram nos EUA, seguidos pela Europa, proliferando-se gradativamente pelo resto do planeta até hoje (em maior ou menor grau), inclusive no Brasil.

EUA

Depois de longos anos de muita discussão e debates sobre o tema, foi assinado em 1978 o Airline Deregulation Act (ADA), que acabou com os controles existentes sobre taxas, tarifas, rotas e capacidade das aeronaves para as empresas que operavam sob registro norte-americano. Embora afetasse diretamente o mercado doméstico, essa nova lei também levou a uma renegociação de vários acordos de tráfego internacional bilaterais, especialmente com alguns países europeus e asiáticos. Isso porque eliminou a monodesignação, ou seja, a permissão para que apenas uma empresa dos EUA – então a PanAmerican Airways – voasse para o exterior.

Dessa forma, satisfeitas as exigências de certificação técnica e de segu-rança a cargo da Federal Aviation Administration (FAA), que permanece-

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51ram intocadas no processo de desregulamentação econômica, voava quem quisesse, para onde quisesse, cobrando o quanto quisesse (ou pudesse). O objetivo maior era beneficiar os usuários do transporte aéreo, pela introdução da livre-concorrência entre as empresas – tradicionais ou novas entrantes – aumentando-se a oferta de voos, reduzindo-se as tarifas cobradas e promo-vendo-se a eficiência do sistema pela eliminação das empresas menos aptas à livre-concorrência (FONSECA; GOMES; QUEIROZ, 2014).

Foi nesse novo ambiente que despontou a Southwest Airlines, empresa considerada paradigma do modelo de negócios low cost. Conhecido no início como low cost/low fare, ou seja, de baixos custos e baixas tarifas, o novo modelo introduzido pela Southwest (Figura 1) baseava-se em ter uma estrutura operacional enxuta, com precificação agressiva, uma frota homogênea (um só tipo de aeronave), apenas uma classe a bordo, serviço de bordo simplificado, uso intensivo – desde a década passada – da internet como canal de venda, não adoção de programas de fidelidade/milhagem, operações em rotas de maior densidade e em etapas curtas, voos diretos, busca por alta eficiência e produtividade e, acima de tudo, um eficiente sistema de gestão de custos.

Figura 1 | Southwest Airlines

Fonte: Brian (http://flickr.com/people/40563877@N00) from Toronto, Canada. Disponível em: <www.wikimedia.org>.

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Com a consolidação da Southwest nesse modelo, voando para amplo leque de destinos nacionais com tarifas reduzidas, foi deflagrada uma verdadeira guerra tarifária entre as empresas aéreas. Como consequência, a indústria de transporte aéreo americano apresentou prejuízo de US$ 640 milhões já no primeiro trimestre de 1983 (FERREIRA; BARRAGAN; LIMA, 2008).

Decorridos mais de trinta anos desde então, os EUA viram muitas empre-sas novas surgirem e muitas outras desaparecerem. A cada período de crise ou baixa acentuada da atividade econômica, empresas eram fechadas ou incorporadas a alguma sobrevivente, dada a baixa margem de rentabilidade do setor. Ao mesmo tempo, as empresas low cost, mais bem estruturadas, aumentavam sua participação no mercado, o que persiste até hoje.

Europa

Na Europa, o processo de desregulamentação econômica ocorreu pos-teriormente ao dos EUA. Originalmente, as empresas aéreas europeias operavam em um ambiente pouco competitivo. Os acordos bilaterais ou multilaterais, que regulavam os serviços aéreos internacionais, designavam, em geral, quais empresas de cada país poderiam voar em determinada rota, as tarifas a serem cobradas, o tipo de aeronave a ser empregado e as fre-quências dos voos nessas rotas.

O processo de desregulamentação na Europa ocorreu em quatro etapas bem distintas (FERREIRA; BARRAGAN; LIMA, 2008). Iniciou-se em 1987 e somente foi concluído em 1997. A morosidade do processo deveu-se ao fato de a Europa abranger um número grande de países.

O processo de liberalização provocou grandes mudanças no ambiente concorrencial europeu. O novo ambiente regulatório facilitou a entrada de novas empresas no mercado, elevando a concorrência no setor e aumentan-do a oferta de novos destinos, antes abandonados. No entanto, muitas das novas companhias faliram ou foram absorvidas por outras mais resilientes (ALMEIDA, 2014).

O aumento da concorrência e a entrada no mercado de companhias aéreas de baixo custo obrigaram as empresas tradicionais, ou de bandeira, a rever seus modelos de negócios, assim como suas estratégias de atuação. Resultou disso que várias dessas empresas criaram suas próprias LCCs, de modo a concorrer com as low cost entrantes.

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53América Latina

O processo de desregulamentação na América Latina se deu em diferentes momentos para cada país. No Chile, teve início em 1979, com as alterações na base legal do arcabouço regulatório do setor. No México, a liberalização teve início em 1991, com a permissão para novas empresas atuarem no mercado doméstico e com a flexibilização dos critérios de operação para rotas e tarifas domésticas.

No Brasil, o processo de desregulamentação teve início em 1992, como consequência da realização, em 1991, da V Conferência Nacional de Aviação Civil (Conac), a qual congregou as empresas, os órgãos governamentais do setor, grupos de interesse, consultores etc. (CASTRO, 2003).

Em 2001, iniciaram-se as atividades da primeira empresa LCC no Brasil e na América Latina, a Gol Transportes Aéreos Ltda. (Figura 2). Em 2004, a BRA deixou de ser uma empresa de charter para adotar o modelo low cost e, em 2006, tiveram início as atividades da Webjet, também nesse novo padrão. A BRA sucumbiu em 2007, e a Webjet foi adquirida pela Gol em 2011. No fim de 2008, a Azul, criada pelo fundador da JetBlue nos EUA, iniciou suas operações no Brasil.

Figura 2 | Aeronave com pintura comemorativa dos dez anos da Gol

Fonte: Mariordo (Mario Roberto Durán Ortiz). Disponível em: <www.wikimedia.org>.

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Ásia-Pacífico e África

A liberalização dos mercados asiáticos teve início na década de 1980. O processo avançou em épocas diferentes em cada país, conforme as ca-racterísticas regulatórias e mercadológicas existentes, encontrando-se em diferentes etapas atualmente.

Na China, a desregulamentação do setor do transporte aéreo vem ocor-rendo de forma lenta e parcial, uma vez que o governo deseja proteger o crescimento do mercado doméstico e fortalecer as empresas aéreas chinesas antes de elas disputarem o mercado internacional.

O continente africano ainda engatinha no processo de liberalização do transporte aéreo, até mesmo porque alguns países sequer contam com um serviço aéreo regular.

Características do modelo de negócios LCCSegundo a definição da Icao, uma LCC

é uma empresa aérea com uma estrutura de custos relativamente baixos em comparação com outras empresas semelhantes e que oferta baixas tarifas e taxas. Essas empresas podem ser independentes, a divisão ou subsidiária de uma grande empresa tradicional ou, em alguns casos, o ex-braço charteiro de um grupo de aviação (ICAO, 2016).1

Apesar dessa definição, nem sempre é fácil distinguir uma empresa LCC de uma empresa de modelo tradicional. Isso se deve à constante evolução do mercado e à grande necessidade de mudanças de estratégia das empre-sas para assegurar a sobrevivência no ambiente altamente concorrencial que caracteriza o transporte aéreo em boa parte do mundo. As LCCs, a despeito de uma identidade própria consagrada após mais de três décadas de existência da Southwest Airlines, atuam de forma distinta conforme os mercados em que operam. O Apêndice A lista as trinta maiores empresas LCC no mundo em 2015.

Na origem, podiam ser identificadas algumas características comuns, muitas delas baseadas no modelo implantado pela Southwest nos EUA.

1 Uma extensa listagem de LCCs em conformidade com essa definição, existentes e já extintas, pode ser encontrada em <http://www.icao.int/sustainability/Pages/GATO2030.aspx>.

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55Mesmo com as mudanças e adaptações necessárias a cada mercado e ambiente concorrencial, o principal foco das empresas nunca foi altera-do: a busca constante pelo menor custo operacional (cost available seat kilometer – Cask, ou custo por assento-quilômetro oferecido). Esse seria o fundamento central, com base no qual um leque de tarifas e produtos pode ser oferecido aos clientes. Refletindo as estratégias de cada empresa, isso se dá, na prática, com o devido suporte técnico dos modernos sistemas de gerenciamento dinâmico dos preços/classes de tarifas, conhecidos como yield management ou revenue management.

Nesse contexto, é possível tratar as características do modelo LCC com base em cinco aspectos principais (ressalvando-se as necessidades de adaptações que cada empresa possa requerer), a saber: produto, serviço, operações, estratégia e distribuição.

ProdutoEm geral, as empresas LCC trabalham com tarifas mais baixas que

as empresas tradicionais dos mercados em que atuam. Existem casos, porém, em que uma LCC, como a Gol (Brasil) e a JetBlue (EUA), cobra tarifas, em determinadas instâncias, até superiores às de suas concorrentes, embora possa ficar, na média, em nível tarifário inferior ao delas. Isso se dá, essencialmente, em situações de grande demanda por determinadas rotas e horários, ou, o que é mais comum, em rotas em que há pouca ou nenhuma concorrência. A estrutura de precificação normalmente segue uma lista simples de valores, influenciada pela demanda e pela proxi-midade do voo (normalmente, clientes que compram passagens muito perto da data do voo estão dispostos a pagar mais caro, pois têm uma necessidade de urgência).

A maioria das empresas LCC não costuma oferecer a seus clientes a opção de marcação de lugares, o que induz os passageiros a entrar logo na aeronave para “conquistar” os de sua conveniência. Isso ajuda a reduzir o tempo de permanência da aeronave no local de embarque. Eventuais mar-cações de assentos são cobradas à parte, constituindo assim uma fonte de receita extra. Além disso, não há a emissão física de bilhetes, e a empresa procura induzir o passageiro a imprimir seu próprio cartão de embarque (ou a disponibilizá-lo na tela de seu celular), o que permite uma diluição dos custos.

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Por outro lado, a bagagem despachada é, em muitas empresas (embora não em todas), cobrada à parte. Isso incentiva o cliente a levar o mínimo necessário e, preferencialmente, em sua bagagem de mão, ficando, assim, o passageiro responsável por cuidar de sua própria bagagem. Qualquer peça especial (tipo pranchas de surf, tacos de golfe etc.) não é aceita ou é despachada com a cobrança de tarifas especiais. Embora a tarifa aérea seja mais baixa, qualquer necessidade além do transporte simples do passageiro é cobrada à parte.

Em geral, as LCCs não têm ou não estão associadas a programas de fide-lidade (programas de milhagem ou benefícios para passageiros frequentes). Dependendo do valor e da classe tarifária, os bilhetes são, em grande parte, não reembolsáveis, ou seja, o cliente que desistir de viajar ou perder o voo perde também o dinheiro da compra da passagem. Algumas empresas até permitem a remarcação, cobrando taxas significativas e o pagamento de eventual diferença tarifária entre o valor da compra e o valor da passagem desejada naquele momento.

Não se costuma oferecer serviços de catering tradicionais. Eventual serviço de alimentação a bordo é cobrado à parte, durante o próprio voo. Isso reduz o tempo de permanência em solo, o peso total transportado e a necessidade de galleys (a comissaria de bordo), pois a necessidade de reposição de alimentos é menor, assim como o tempo gasto com a limpeza da aeronave para o próximo percurso.

ServiçoAs empresas LCC procuram fazer uso, sempre que possível, de aero-

portos secundários, menos congestionados e com taxas de utilização mais baixas. Além da economia de custos, isso propicia maior pontualidade na operação e menor tempo de permanência da aeronave no solo. Muitas LCCs competem pelos mesmos destinos finais que as companhias tradicionais, as quais operam nas mesmas rotas e aeroportos. Porém, a estrutura operacional simplificada da LCC facilita a troca de aeroportos, na busca constante de custos mais baixos e agilidade na operação.

Em geral, as LCCs não participam das grandes alianças de empresas aéreas (Star, Oneworld etc.). A operação intensa de voos compartilhados (code sharing) levaria à necessidade de significativa transferência de ba-gagens entre aeronaves nas conexões, aumentando o tempo necessário em

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57solo e os custos de handling, bem como provocaria a diminuição da taxa de utilização das aeronaves (ALMEIDA, 2014).

A malha utilizada é, até onde for possível, o sistema de rotas ponto a ponto, com voos diretos e sem conexões, em trajetos de curta duração e baseados em ligações com muita procura. O passageiro adquire uma pas-sagem sem conexão. Caso deseje continuar a viagem para outro destino, a companhia aérea não tem nenhuma responsabilidade pela transferência da bagagem para outra aeronave. No caso de atraso do voo, ou outro impre-visto, a companhia aérea não tem responsabilidade no que diz respeito à continuidade da viagem nem ao eventual outro destino final do passageiro (VALERO, 2015).

A configuração das aeronaves é feita em uma só tipologia de classe, normalmente a econômica. Busca-se o máximo aproveitamento do espaço interno para levar-se o maior número de passageiros por voo, a mínima quantidade de toaletes, de tripulantes de cabine e galleys. Essa configu-ração padronizada ajuda desde o gerenciamento das tarifas até o serviço de bordo a ser disponibilizado. Na hipótese de a ocupação dos voos sofrer uma baixa eventual, as LCCs costumam oferecer uma pequena quantidade de assentos a preços irrisórios, associados a campanhas promocionais e de marketing bastante agressivas para insuflar a demanda. Já nos momentos de alta demanda, as tarifas chegam a ficar próximas às de seus concorrentes. O objetivo é sempre conseguir a máxima ocupação de cada aeronave, com a máxima receita total possível.

OperaçõesA utilização de uma única família de aeronaves (ou de um único modelo,

tal como o Boeing 737-800 ou o Airbus A320) reduz os custos da empresa. Todos os tripulantes podem assim operar todas as aeronaves da empresa, há maior flexibilidade na troca de aeronaves por questões de manutenção, reduz-se a necessidade de estoque de peças e de treinamento de diferentes equipes de manutenção para diferentes tipos de aeronaves.

Ao operar em aeroportos secundários, sem voos de conexão e com pouco tempo em solo, as LCCs maximizam o uso do equipamento de voo. Este chega a voar até 16 horas por dia, perfazendo até vinte horas de operação total, levando ao limite a rentabilização do ativo. A terceirização de ativida-des é amplamente utilizada pelas empresas LCC, que buscam, dessa forma,

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concentrar-se em seu core business: o transporte de passageiros. Não fazem transporte de cargas, para não perder muito tempo em solo com o acondi-cionamento dessas cargas na aeronave. Para que o negócio da LCC seja viável, estima-se que precise operar com taxas de ocupação acima de 80%.

Por fim, as LCCs fazem uso de aeronaves com pouca idade, utilizan-do-se preferencialmente de aeronaves novas, que são substituídas por similares a cada determinado período de tempo, reduzindo-se, assim, os gastos com manutenção. A colocação dessas aeronaves, com pouco tempo de uso, no mercado secundário de usadas permite a obtenção de preços que significam valores de reposição adequados vis-à-vis o investimento originalmente efetuado.

EstratégiaA busca incessante pela redução de custos norteia as decisões da empresa.

Esta é a principal estratégia de qualquer LCC: a permanente busca por redu-ção de custos, sejam custos diretos, sejam indiretos. O desenho do negócio da empresa está alicerçado em três fatores essenciais (ABRANTES, 2010):

· oferta de um serviço simples;

· manutenção de baixos custos operacionais; e

· precisão no posicionamento de mercado.

A estratégia das empresas LCC está focada no passageiro que está voando a lazer, a turismo ou para visitar familiares e amigos. O segmento de viagens a negócio é um mercado secundário, embora venha crescendo o número de viajantes dessa categoria, em função dos preços praticados e da disponibilidade de voos diretos. A estratégia de preços é agressiva, pela política de baixos custos, o que lhes permite oferecer tarifas mais baratas, ajustadas à demanda e à proximidade da data de embarque. Essa política de tarifas baixas tem permitido às LCCs a inserção em novos nichos de mer-cado, como o de passageiros que nunca antes haviam voado, e outros mais sensíveis aos preços do que às amenidades oferecidas, procurando poupar recursos que poderão ser gastos com outros itens da viagem.

O modelo de negócios está baseado na rapidez e no dinamismo de proces-sos, no aproveitamento máximo dos equipamentos e na prática de baixos

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59custos de pessoal. Costumam trabalhar com o mínimo de colaboradores, normalmente com salários abaixo do mercado. Isso, em muitas LCCs, é contrabalançado por uma participação generosa nos lucros, o que parece contribuir sobremaneira para o sucesso do desempenho, essencialmente coletivo em sua natureza. As equipes de bordo são flexíveis e desempe-nham diferentes tarefas. Geralmente, essas equipes podem fazer a limpe-za da aeronave ou mesmo atender aos passageiros na área de embarque no aeroporto.

DistribuiçãoO segmento de transporte aéreo de baixo custo foca seus canais de

distribuição na venda direta dos bilhetes aos passageiros. Há uma presença seletiva nos canais de distribuição clássicos, recorrendo prioritariamente aos canais on-line (telefone, internet, call centers próprios), evitando-se assim o pagamento de comissões a agentes distribuidores (agências de viagens, sistemas de reservas dedicados etc.). Historicamente, grande parte das pas-sagens aéreas é comercializada por agências de viagens, nas lojas ou balcões de aeroporto das próprias empresas com o suporte de sistemas globais de distribuição, como os sistemas Amadeus e Sabre. Porém, as comissões pagas a agentes de distribuição normalmente representam de 2,5% a 5% do valor final da passagem. Ao trabalhar mais com a distribuição direta, foi possível também às LCCs a entrada em novos mercados a custos reduzidos (RODRIGUES, 2012).

Como forma de divulgação, as LCCs fazem uso de campanhas de marketing agressivas e com custos reduzidos, com o emprego das redes sociais para a divulgação de seus produtos, promoções e destinos atendi-dos. Em geral, contam com o apoio dos aeroportos e, em alguns casos, de instituições e associações empresariais dos destinos oferecidos.

A comparação com as empresas concorrentes é comumente utilizada nas campanhas de marketing, ressaltando as vantagens competitivas e os preços oferecidos. Para isso, são usualmente empregados mecanismos on-line de produção de informação sofisticados e intensivos sobre os destinos para onde as empresas operam, visando a “captura” do cliente eventualmente indeciso.

No Quadro 1, há um resumo das principais características de uma LCC em seu conceito puro.

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Porém, nem todas as companhias de baixo custo implantaram ou per-manecem praticando todos os aspectos apresentados no Quadro 1. Algumas adotam modelagens adaptadas e, em certos casos, veem-se obrigadas a mudar em relação a algum ponto para poder permanecer no mercado.

Quadro 1 | Resumo das características principais do modelo original de negócios das LCCs (modelo “puro sangue”)

Pontos de diferenciação

Características

Produto • Baixas tarifas em uma percentagem elevada de lugares, com estrutura de tarifas simples

• Não há programa de fidelidade/milhagem• Sem marcação de lugares a bordo• Sem serviços de refeição (catering) a bordo• Bilhetes sem reembolso em caso de não utilização

Serviço • Utilização de aeroportos secundários, com menores tarifas• Empresa não participa de alianças globais• Malha aérea do tipo ponto a ponto (não há voos de conexão),

baseada em ligações de alta procura• Aeronaves com um só tipo de classe (econômica)

Operações • Frota baseada em uma única família de aeronaves com baixa idade de operação

• Maximização no uso diário das aeronaves• Redução dos serviços ao cliente em geral• Empresa não opera com transporte de cargas

Estratégia • Concentração em passageiros de lazer e turismo• Política de redução permanente de custos de operação• Número reduzido de colaboradores

Distribuição • Ênfase na venda direta de bilhetes, sem intermediários• Campanhas de marketing agressivas e de custos reduzidos• Presença seletiva nos canais de distribuição clássicos

Fonte: Elaboração própria.

Impactos da entrada das LCCsAeroportos

A propagação do modelo LCC pelo mundo tem gerado alterações significativas no negócio aeroportuário: novas exigências e necessidades operacionais são trazidas pelas empresas; em especial, há um aumento de demanda em aeroportos secundários, anteriormente subutilizados ou des-prezados pelas empresas tradicionais. Por ser um componente essencial do

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61sistema de transporte aéreo, tem de focar nas necessidades do movimento de passageiros e mercadorias, sendo fundamental para o negócio do transporte aéreo. Portanto, a relação entre as empresas e os aeroportos é fundamental para o sucesso de ambos. Nessa relação, as LCCs costumam gerar os se-guintes impactos nos aeroportos:

· O modelo LCC estipula o menor tempo no solo para a aeronave, entre sua chegada e subsequente partida (turn-around time). Requer do aeroporto, assim, que o estacionamento da aeronave seja o mais próximo possível do terminal de passageiros, para agilizar os fluxos de saída e entrada. Além disso, a LCC buscará que esse estaciona-mento se dê no local mais próximo possível da pista, para reduzir o tempo de táxi pista-terminal, na chegada, e terminal-pista, na partida.

· A LCC requererá que a empresa de atendimento em solo, responsável pelas tarefas de reabastecimento, limpeza e ressuprimento da aero-nave, desempenhe sua função nos menores tempo e custo possíveis.

· A LCC, podendo escolher, optará sempre pelo aeroporto com as me-nores taxas de pouso e permanência das aeronaves e de passageiros. O modelo LCC implica grande volume de passageiros transportados e frequência de voos acima da média tradicional. Isso geralmente é de grande interesse para aeroportos secundários, pois alavanca seus planos de desenvolvimento. Exemplos disso são as operações da Ryanair em Stansted (Londres, Inglaterra), da Azul em Campinas (São Paulo, Brasil) e da Southwest em Love Field (Texas, EUA).

Impactos das LCCs no mercadoA conquista de fatias crescentes do mercado pelas companhias LCC ao

longo das décadas recentes provocou uma resposta não homogênea das empresas tradicionais. Na Europa, por exemplo, as LCCs contribuíram para aumentar significativamente o número de usuários do transporte aéreo, assim como o número de aeroportos atendidos com as novas rotas ponto a ponto (FERREIRA; BARRAGAN; LIMA, 2008). Já em outros mercados, as empresas de baixo custo forçaram as tradicionais a rever suas estratégias e seus modelos de negócios, optando até em alguns casos por reforçar seus fatores de diferenciação para garantir sua parcela de mercado, como se verá a seguir.

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EUA

A entrada da pioneira Southwest Airlines no mercado doméstico ameri-cano, expandindo suas atividades do estado do Texas para outros destinos, se deu logo depois do ADA de 1978. O modelo low cost já vinha sendo praticado nas rotas entre Houston, Dallas e San Antonio desde o início das operações da empresa em 1971.

Atualmente, as três maiores empresas norte-americanas de baixo custo (Southwest, JetBlue – Figura 3 – e Spirit) representam 15,6% do total das receitas e estão entre as dez maiores empresas daquele mercado, considerando-se o agregado dos mercados doméstico e internacional. Na Tabela 1, pode-se observar que, da receita operacional das duas maiores empresas aéreas de baixo custo, listadas entre as dez maiores de todos os tipos, a maior parte é de receitas provenientes do transporte de pas-sageiros (95% no caso da Southwest e 92% no caso da JetBlue). Já nas empresas tradicionais esse índice fica abaixo da média de 75% apurada para o mercado.

Figura 3 | Embraer 190 operado pela JetBlue

Fonte: Alan Wilson (https://www.flickr.com/people/65001151@N03) from Stilton, Peterborough, Cambs, UK. Disponível em: <www.wikimedia.org>.

Aeroespaço e Defesa

63Tabela 1 | As dez maiores empresas aéreas norte-americanas por receita operacional, 2014 (US$ milhões)

Rank Empresa aérea Lucro líquido

Resultado operacional

Receita operacional

Receita com passagens

1 Delta 649 2.925 40.427 28.225

2 United 1.114 2.376 38.901 26.785

3 American 131 2.338 27.140 20.345

4 Southwest 1.137 2.225 18.605 17.704

5 US Airways 1.482 1.928 15.750 9.970

6 JetBlue 396 508 5.817 5.354

7 Alaska 599 958 5.363 3.792

8 Hawaiian 80 249 2.311 2.038

9 Spirit 281 355 1.932 1.221

10 SkyWest 47 122 1.889 1.822

Dez maiores empresas 7.092 13.984 158.134 117.256

Total do mercado 7.459 14.605 169.275 127.454

Fonte: Bureau of Transportation Statistics – EUA.

Em dezembro de 2015, a Southwest detinha 18,2% do número de passageiros-milhas-transportados, ou revenue passenger miles (RPM), do mercado doméstico norte-americano (Gráfico 1). As três maiores empresas LCC detinham 28% de todo o mercado. Estima-se que 30% da demanda (em RPM) do mercado doméstico dos EUA seja atendida por empresa low cost atualmente.

O principal efeito do crescimento das low costs no mercado norte-americano foi a queda generalizada nas tarifas. Segundo dados do Bureau of Transportation Statistics,2 o preço médio das tarifas praticadas entre 1995 e 2014, ajustadas pela inflação, apresentou uma queda real de 13,8% no período. Além da queda nos preços das tarifas, o mercado das LCCs cresceu mais de 42,3% entre 1995 e 2006 (CHOWDHURY, 2007). Considerando-se que as demais empresas tiveram, como consequência, de baixar seus custos (ainda que de maneira comedida) para se manterem competitivas, parece lícito afirmar que as LCCs induziram um aumento da eficiência da indústria de transporte aéreo no mercado doméstico dos EUA. O Gráfico 2 procura dar um balizamento a esse quadro geral.

2 Disponível em: <http://www.rita.dot.gov/bts/airfares>. Acesso em: 11 abr. 2016.

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Gráfico 1 | Distribuição do mercado de transporte aéreo doméstico dos EUA, acumulado de 2015 (RPM)

Southwest18,2%

Delta16,9%

United14,7%

American20,0%

JetBlue5,3%

Alaska4,5%

SkyWest2,4%

Spirit2,6% Frontier

1,9%

Outras13,5%

Fonte: Bureau of Transportation Statistics – EUA.

Gráfico 2 | Custo unitário (Cask) em função da etapa média voada* para empresas LCC e tradicionais, empresas americanas, 2015

SpiritAllegiant Frontier

Westjet JetBlue Alaska Virgin America

Southwest

AmericanUnited

Delta

Envoy

3

4

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Cask

(cen

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US$

)

Etapa média (km)

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do The Airline Analyst.* Etapa média significa a média aritmética das distâncias percorridas por todos os voos da empresa ao longo de um ano. A análise de Cask só faz sentido levando-se a etapa média em consideração, pois etapas médias mais longas tendem a “diluir” o valor do Cask (GOMES; FONSECA, 2014).

Aeroespaço e Defesa

65No Gráfico 2, a curva do Cask médio é um claro divisor de águas. Acima ficam as empresas tradicionais e, abaixo, as LCCs. As três empresas com os menores Cask (que não entraram na ponderação para a obtenção da curva) seguem o modelo ultra low cost (ULCC). A única que ficou “na curva” é uma empresa regional, subsidiária da American Airlines.

O que significa, conforme o Gráfico 2, o modelo LCC? Grosso modo, do ponto de vista econômico-financeiro, é a empresa operar com um custo unitário 25% a 30% inferior aos das empresas tradicionais, para etapas médias situadas na mesma faixa (1,5 a 2,5 mil quilômetros). Dessa forma, nas rotas em que há concorrência com a tradicional, a LCC pode capturar clientes de menor renda, pois suas tarifas podem ser, a priori, mais em conta. E, onde não houver concorrência, a LCC fará a chamada “precificação cien-tífica” (BOYD, 2007) por meio dos modernos sistemas de yield ou revenue management: conforme a data do voo se aproxima, a tarifa pode subir (caso de demanda normal), ficar estável (demanda atípica) ou cair (demanda em baixa, geralmente graças a eventos espúrios).

Portanto, é a análise do Cask que constitui o eixo central do modelo de negócios LCC. Os 25% a 30% de vantagem é que direcionam a padronização da frota, as refeições a bordo pagas, sumárias ou inexistentes, as passagens vendidas pela internet, a cobrança por bagagens etc., assim como todas as demais características apresentadas no Quadro 1. E foi exatamente essa nova proposição de empresa aérea que se propagou dos EUA para o resto do mundo, conforme exposto a seguir.

Europa

Foi a partir de 1997, com a conclusão do processo de desregulamentação, que as LCCs europeias puderam, de fato, deslanchar. Voando em rotas de curta e média distância, cresceram tirando proveito da compacta geografia do continente europeu, gerando uma abrangente malha internacional operada por empresas de baixo custo (ARAÚJO, 2004).

Pode-se considerar que o “fenômeno LCC” prosperou em solo europeu pelos seguintes motivos principais:

· Vertente crescimento: historicamente, na Europa (pré-1997), o trans-porte aéreo atendia aos cidadãos de renda mais alta e aos que viaja-vam a negócios com a passagem paga pela empresa. O transporte de

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massa intracontinental era atendido pelos densos sistemas ferroviário e rodoviário. Vem daí o sucesso alcançado pelas duas maiores empre-sas LCC europeias – Ryanair e EasyJet – fundadas respectivamente na Irlanda e na Inglaterra, ou seja, dois países insulares. Assim, as conexões entre as duas ilhas e com o continente a preços reduzidos “puxou” uma demanda reprimida que se revelou, afinal, de grandes proporções, e catapultou as duas empresas a patamares impensáveis em suas respectivas origens. Nos anos mais recentes, ambas – jun-tamente com as demais que foram surgindo – estabeleceram bases cada vez mais numerosas no próprio continente europeu, inclusive fomentando até ligações com o leste, o qual, até o fim da Guerra Fria (1989), era pouco conectado à Europa ocidental. Ou seja, tornaram-se LCCs totalmente europeias. Por exemplo, em 2014, a EasyJet ofertou 39% mais assentos do que em 2010, enquanto a KLM ofertou 14,6% a mais no mesmo período. A fatia de mercado das LCCs passou de 5% em 2001 para 38% em 2013, quando transportaram mais de duzentos milhões de passageiros na Europa.

· Vertente turismo: no período pré-1997, o cidadão pagante era aten-dido pelo transporte aéreo essencialmente em suas férias. Isso se dava via operadores turísticos de grande porte e empresas charter3 a eles associadas, que comercializavam pacotes de uma ou duas semanas. Milhões de turistas se deslocavam assim dos países do norte para Portugal, Costa Mediterrânea e ilhas turísticas do sul em geral. A difusão da internet na década passada, somada ao modelo de vendas diretas on-line das LCCs, transformou cada lar em uma agência de viagens, com economias substanciais para os potenciais turistas. Portanto, as LCCs passaram tanto a atender a uma demanda que antes ficava de fora dos operadores turísticos (por insuficiência de renda disponível) como a “roubar” parte da demanda deles (pelas economias proporcionadas) (CALDER, 2003). Atualmente, as LCCs europeias voam para os principais destinos turísticos do continente e até mesmo para várias localidades no norte da África.

O Gráfico 3 procura dar um balizamento ao quadro europeu das LCCs.

3 Empresas aéreas não regulares, que operam exclusivamente com voos fretados, seja por operadores turísticos, seja por agentes que vendem “apenas o assento” no voo predeterminado.

Aeroespaço e Defesa

67Gráfico 3 | Custo unitário (Cask) em função da etapa média voada para empresas LCC e tradicionais, empresas europeias, 2015

Ryanair Norwegian

Vueling Easyjet

Alitalia

BritishKLM

Air France

AustrianLufthansa

Flybe

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Cask

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US$

)

Etapa média (km)

Air Berlin

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do The Airline Analyst.

Como visto no caso dos EUA, a curva do Cask médio separa as empresas tradicionais (e a regional híbrida Flybe) das LCCs. Porém, a etapa média voada na Europa pelas LCCs é menor do que nos EUA, dado que o conti-nente é mais “compacto”. Por outro lado, as grandes empresas tradicionais (Air France, British Airways, Lufthansa) têm por “plataforma” estados nacionais muito menores do que os EUA e, assim, focaram, historicamente, seus planos de negócios no longo curso internacional.4 Isso faz com que suas etapas médias, ao contrário do caso americano, sejam bastante superiores àquelas das LCCs.

Apesar disso, essas longas etapas médias não conseguem diluir subs-tancialmente os Cask das empresas tradicionais;5 com isso, os Cask dessas empresas ficam, na média, mais de 50% superiores à média das LCCs, um diferencial que é praticamente o dobro do caso americano. Puxadas em seus Cask para baixo pela Ryanair, parece claro que o nível de custos das LCCs

4 Na origem, no período imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, as ligações eram essen-cialmente entre cada país europeu e suas respectivas ex-colônias espalhadas pelo mundo.5 Pelo incremento nos quilômetros do indicador ASK (assentos-quilômetros oferecidos), que constitui o denominador do Cask.

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europeias tem mais afinidade com o das ULCCs americanas (ver subseção “O aprofundamento do modelo – ULCC”). Isso, de certa forma, não chega a surpreender porque, no caso europeu, os meios terrestres de transporte são uma opção amplamente disponível e em conta para a população; assim, so-mente podendo operar com tarifas realmente baixas, é que as LCCs europeias conseguem puxar a escala de demanda que tem levado a seu sucesso.

Além disso, as LCCs europeias, graças à imbatível velocidade do avião, alavancaram uma modalidade quase única de turismo: o chamado weekend break. Com uma hora ou menos de voo no continente europeu, o turista de fim de semana acessa realidades históricas, culturais e de entretenimento muito diversas, o que tornou possível que a atividade turística significativa intracontinente não se restringisse mais aos meses do verão (CALDER, 2003).

Nesse contexto, não surpreende que as empresas tradicionais (Lufthansa, Air France etc.) tenham reduzido o escopo de suas rotas intraeuropeias, porém, preservando aquelas fundamentais alimentadoras do longo curso intercontinental. Em outra vertente, todavia, essas mesmas empresas – ou seus respectivos grupos econômicos – têm atuado seletivamente no mercado de LCC europeu por meio de afiliadas, subsidiárias, associadas etc. É o caso da Germanwings (ligada à Lufthansa), da Vueling (ligada ao grupo da British Airways/Iberia), da Transavia (ligada à Air France-KLM) etc. Diga-se de passagem, essa mesma fórmula foi tentada nos EUA, sem, no entanto, obter sucesso, como foi o caso da extinta Song (ligada à Delta Airlines).

Em síntese, portanto, o mercado LCC europeu apresenta um vigor par-ticular, condizente com a diversidade histórica e cultural, além da pesada infraestrutura terrestre de transportes, que são a marca daquele continente.

Ásia

Na região Ásia-Pacífico, o modelo de empresa LCC só deslanchou depois de sua difusão na Europa. Assim como lá, a desregulamentação do setor de trans-porte aéreo foi e vem sendo o elemento primário para o surgimento das LCCs.

Foi no fim dos anos 1990 que surgiram as primeiras empresas, por exemplo, a Cebu Pacific, nas Filipinas, em 1996; e a Air Do e Skywark, no Japão, em 1998. A essas, seguiram-se várias outras, entre as quais: a Lion Air (Indonésia, 1999), a Virgin Blue (Austrália, 2007), a AirAsia (Malásia, 2001), a Tiger Airways (Cingapura, 2004), a Nok Air (Tailândia, 2004), a Jetstar (Austrália, 2004), a Spring Airlines (China, 2005) e a SpiceJet (Índia, 2005). Várias outras têm surgido nos anos recentes.

Aeroespaço e Defesa

69Em 2015, entre as vinte primeiras LCCs de todo o mundo em passageiros transportados, seis se originaram na Ásia-Pacífico. Dessa forma, o segmento LCC da região Ásia-Pacífico, se ainda não atingiu a maturidade verificada nos EUA e na Europa, sugere um crescimento vigoroso.

O atual ambiente de negócios beneficiou-se do crescimento econômico da região, em especial no Sudeste Asiático, com os Tigres Asiáticos – Coreia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan –, ainda que momentaneamente tenham sido afetados pela crise financeira asiática de 1998.

A melhoria na renda, com a ampliação do poder aquisitivo da população, pode ser considerada um segundo elemento de estímulo ao desenvolvimento das LCCs. O aumento da demanda pelo transporte aéreo vis-à-vis as baixas tarifas por elas oferecidas, sobretudo em uma área do planeta onde as carac-terísticas geográficas de alguns países restringem os modos de deslocamento, impulsionou as empresas de baixo custo em maiores taxas que as empresas tradicionais. O Gráfico 4 aponta para o crescimento constante nos últimos oito anos da demanda em passageiros-quilômetros transportados, ou revenue passenger-kilometers (RPK).

Gráfico 4 | Evolução da demanda atendida por empresas LCC da região Ásia-Pacífico (RPK)

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2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

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Lion Air – Indonésia Jetstar – Austrália AirAsia – Malásia

IndiGo – Índia Spring – China Cebu Pacific – Filipinas

Spice Jet – Índia Thai AirAsia – Tailândia

Fonte: Elaboração própria, com base em dados da Flight Global.

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Um terceiro elemento que caracteriza o desenvolvimento das LCCs na Ásia--Pacífico foi o estabelecimento, pelas empresas, de sociedades (joint ventures) fora de seus países de origem, na forma de subsidiárias com investidores locais. Isso permitiu sua expansão nos países vizinhos ao superar restrições quanto à propriedade das subsidiárias de acordo com as respectivas legislações nacionais. É o caso da australiana Qantas, que passou a ter subsidiárias da sua LCC Jetstar em diversos países (Japão, Cingapura e Vietnã). Já o AirAsia Group, controlador da AirAsia, conseguiu estabelecer joint ventures na Tailândia, na Indonésia, nas Filipinas, na Índia e no Japão, enquanto a Lion Air foi para a Malásia e a Tailândia. Com isso, não apenas a malha de rotas passa a ser estabelecida com base na maior abrangência geográfica, com consequente aumento no fluxo de passageiros, mas também possibilita a execução de estratégias comuns na aquisição de insumos (aeronaves, combustível etc.), bem como no uso de infraestrutura e serviços (hangares, manutenção etc.) e, mesmo, aeroportos.

Além disso, no território abrangido pela Association of Southeast Asian Nations (Asean),6 onde vive cerca de 9% da população mundial e que é responsável por cerca de 7% a 8% no tráfego mundial de passageiros (em RPK), ainda estão para ser implementados, em sua plenitude, dois acordos, o Multilateral Agreement on Air Services (MAAS) e o Multilateral Agreement for the Full Liberalisation of Passenger Air Services (MAFLPAS),7 que promoverão a consequente remoção das restrições ainda existentes.

Um quarto elemento que caracteriza a expansão das LCCs na Ásia- Pacífico já havia sido observado na Europa, a saber: empresas tradicionais criando suas companhias aéreas de baixo custo para enfrentar a concorrência. Tal foi o caso da Qantas com a Jetstar, da All Nippon Airways (ANA) com a Peach Aviation e da Singapore Airlines com a Scoot e a Tigerair.

Outra característica peculiar da Ásia-Pacífico foi o rápido início na exploração de voos diretos com duração superior a três ou quatro horas de duração. Assim, já em 2006, a Jetstar passou a ligar Austrália a Filipinas, Indonésia, Vietnã, Cingapura, Fiji, Tailândia, Japão e, nos EUA, Honolulu; a AirAsia X (subsidiária da AirAsia) passou a ligar Malásia a Austrália, Índia, China, Japão, Taiwan e Arábia Saudita; a Scoot ligou Cingapura a Japão, China e Austrália. Contudo, nesses voos, existem diferenças em

6 Países-membros da Asean: Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura, Tailândia, Brunei, Camboja, Laos, Myanmar e Vietnã.7 O MAAS foi assinado em 2009 e prevê, entre outros dispositivos, a implantação entre as capitais dos países-membros da terceira, quarta e quinta liberdade do ar, enquanto o MAFLPAS, assinado em 2010, amplia essa implantação em quaisquer cidades dos países que compõem a Asean.

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71relação ao modelo-padrão que define uma LCC. Por exemplo, entre Sidney e Honolulu (8.163 km – duração de 9h30), a Jetstar oferece duas classes de serviços (econômica e executiva) e, dependendo da tarifa, há diferenças quanto ao despacho de bagagem e nas refeições a bordo: os passageiros da classe econômica que desejarem a refeição deverão adquiri-la antes de viajar, pois não são vendidas a bordo.

Já na China, tem-se que sua principal LCC – a Spring Airlines – alcançou, em 2015, a 21ª posição (com 13 milhões de passageiros transportados) entre as LCCs do mundo todo, segundo a publicação Airline Business. Além da Spring, as outras três importantes LCCs na China são: China United Airlines, subsidiária da China Eastern Airlines, a Lucky Air e a West Air, subsidiárias da Hainan Airlines. Essas principais LCCs têm tido um significativo cresci-mento de demanda nos anos de 2009 a 2014 (Gráfico 5): juntas transportaram 32 milhões de passageiros em 2015; além disso, observa-se que trabalham com uma ocupação média (load factor) bastante alta, acima de 90% em alguns casos, exatamente como prescreve o modelo LCC. Recentemente, a Civil Aviation Administration of China (CAAC) aboliu o limite para descontos nas passagens aéreas (JING, 2013), fato que deve colaborar para o crescimento do setor de LCC chinês como um todo.

Gráfico 5 | Evolução recente da demanda das três principais LCCs chinesas (RPK)

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2009 2010 2011 2012 2013 2014

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Spring Airlines – RPK China United Airlines – RPK West Air (China) – RPK

Fonte: Elaboração própria, com base em dados da Flight Global.

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Por fim, deve-se notar que o segmento LCC da Ásia-Pacífico segue os cânones dos EUA e da Europa: apresenta valores Cask sensivelmente infe-riores aos das empresas tradicionais – Gráfico 6.

Gráfico 6 | Custo unitário (Cask) em função da etapa média voada para empresas LCC e tradicionais, empresas da Ásia-Pacífico, 2015

Korean Air

AirAsia AirAsia X

TigerairCebu Pacific

Thai AirAsiaIndigo

SpiceJet

China SouthernAir China Singapore

China Eastern Air IndiaQantas

China Airlines

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0 1.000 2.000 3.000 4.000 5.000 6.000

Cask

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US$

)

Etapa média (km)

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do The Airline Analyst.

África

A chamada Decisão de Yamoussoukro (1999) é considerada o marco histórico para a reforma nas políticas relativas ao transporte aéreo na África, com o intuito de melhorar e expandir seu uso, liberalizando-o e proporcio-nando a entrada de novos parceiros nesse mercado. Isso de tal sorte que fossem ampliadas as ligações aéreas entre diversos pontos daquele imenso continente, tornando possível os deslocamentos intra-africanos diretos. Assim, a despeito de uma conjuntura político-regulatória não totalmente equacionada no que tange à liberalização do uso do transporte aéreo naquele continente (VAN WYNGAARDT, 2015), é a partir do início deste século que vão surgindo empresas aéreas africanas baseadas no modelo low cost.

Das seis LCCs que atuavam em 2014, conforme listadas pela Icao, apenas a Fastjet Tanzania, criada em 2011, tinha como destinos cidades de vários

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73países africanos. Já a Mango Airlines, criada em 2006 como subsidiária da South African Airlines, tinha como destino o mercado da África do Sul; a Air Arabia Maroc (criada em 2009), o Marrocos e a Europa; a Air Arabia Egypt (criada em 2010), os países do Golfo Pérsico; a Fly540 (criada em 2006 – ver Figura 4), Quênia, Sudão e Tanzânia; e a Africa World Airlines (criada em 2012), Gana e Nigéria.

Figura 4 | Turboélice da Fly540

Fonte: UR-SDV. Disponível em: <www.wikimedia.org>.

Essa disseminação recente de empresas se insere no processo global de espraiamento do modelo LCC. Essas empresas contam com fundos de investimentos, instituições financeiras e, mesmo, outras empresas aéreas entre seus investidores/proprietários. Contudo, de um total aproximado de oitenta milhões de passageiros transportados em 2014 por empresas aéreas africanas, apenas cerca de 4,8% o foram pelas LCCs africanas que se en-contravam em operação, o que revela o enorme potencial de crescimento desse segmento naquele continente.

Apesar das limitações impostas pelo atual ambiente de negócios, as seis LCCs africanas, listadas pela Icao (Fastjet Tanzania, Mango Airlines, Air

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Arabia Maroc, Air Arabia Egypt, Fly540 e Africa World Airlines), somadas, têm experimentado um crescimento considerável em passageiros-quilôme-tros transportados, conforme o Gráfico 7.

Gráfico 7 | Evolução recente da demanda das seis maiores LCCs africanas (RPK)

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2

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2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

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Total – RPKFonte: Elaboração própria, com base em dados da Flight Global.

Oriente Médio

No Oriente Médio, compreendendo o Egito, a península arábica e o Irã, o modelo LCC ainda não teve grande penetração. Isso ocorre em razão da estrita regulamentação, como a exigência de ao menos duas classes nos voos operados a partir do aeroporto do Cairo ou chegando dele, da falta de aeroportos secundários, da estrutura aeroportuária voltada para o atendimento das grandes empresas tradicionais, dos subsídios dados às empresas árabes de bandeira, de o nível salarial ter de ser equivalente aos das empresas tradicionais e, sobretudo, das preferências dos passageiros. As LCCs que se instalaram na região desde 2003, em sua maioria, passaram a oferecer serviços semelhantes às empresas tradicionais, corrompendo assim o modelo LCC.

De todo modo, atualmente, dos passageiros transportados na região, me-nos de 12% optaram por empresas rotuladas como low cost, e a Air Arabia é a única grande empresa LCC operando, com uma frota de 44 aeronaves A320 (BUYCK, 2014).

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75América Latina

A América Latina é a única região com um setor de transporte aéreo bem desenvolvido onde o modelo LCC ainda não se consolidou, à exceção do México e do Brasil (VALERO, 2015). Em 2015, a empresa colombiana VivaColombia começou a despontar, aparecendo entre as cem maiores LCCs do mundo, na 73ª posição entre as maiores em número de passagei-ros transportados, com um aumento de 56% em RPK e 65,5% em ASK (ISHAK, 2016).

Atualmente, 11% do mercado latino-americano é atendido por empresas LCC. Em alguns países, esse percentual é maior e ultrapassa 50%, como no caso do Brasil e do México (os dois maiores mercados da região). Em geral, o grau de concorrência entre as companhias aéreas latino-americanas é mínimo, havendo uma empresa aérea dominante em cada país, com duas ou três empresas secundárias que complementam a principal, com uma penetração de mercado ainda reduzida.

O caso brasileiro

As empresas brasileiras são um caso singular de posicionamento entre as LCCs e as empresas tradicionais. Não se nota uma diferença tão expressiva entre as empresas. As duas empresas low cost brasileiras ocupam a quarta e a 11ª posições (Gol e Azul, respectivamente) entre as maiores em número de passageiros transportados, em 2015 (ISHAK, 2016).

O início das atividades da Gol no Brasil coincidiu com um momento conturbado do mercado. Em 2001, houve a paralisação das atividades da Transbrasil, uma das três maiores empresas aéreas na época, junto com Varig e Vasp. Em 2005, a Vasp deixou de operar e, em 2008, as operações restan-tes da Varig, já muito menor do que havia sido na década de 1990, foram incorporadas pela Gol. Enquanto as empresas antigas, que funcionavam no padrão tradicional de serviços, iam cessando suas atividades, a Gol e a TAM foram naturalmente ocupando o lugar delas no mercado.

Nesse processo, surgiram diversas tentativas de emplacar empresas LCC no mercado, e em 2015 estavam em operação apenas a Azul (Figura 5) e a Gol entre as sete empresas de transporte aéreo regular nacionais. Estas responderam por aproximadamente 53% (em RPK) do mercado doméstico no acumulado de 2015. Elas também atuam no mercado internacional, onde respondem por 21,4% da demanda atendida pelas empresas brasileiras (ANAC, 2016).

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Figura 5 | Embraer 190 da Azul

Fonte: ThiagoPM (https://www.flickr.com/people/81348165@N00) from Brasília, Brazil. Disponível em: <www.wikimedia.org>.

Embora a Gol e a Azul sejam classificadas como LCC pela Icao, a atuação delas no mercado brasileiro difere em muitos pontos do modelo-padrão, aproximam-se do modelo tradicional em vários pontos, caracterizando, assim, um modelo híbrido:

· Competem em valor com as tarifas das demais empresas, em especial com TAM e Avianca.

· As LCCs brasileiras adotaram o modelo de rede de rotas hub & spoke,8 operando, no entanto, também voos diretos para os mesmos trajetos oferecidos com conexão, a depender da demanda e dos horários das ligações oferecidas, ou seja, a mesma estratégia adotada pelas em-presas tradicionais.

· A Azul oferece serviço de bordo grátis, enquanto a Gol cobra por ele na maioria de suas rotas.

8 Ou seja, rotas em que preponderam voos com ao menos uma conexão entre a origem e o destino finais do passageiro. Para um melhor entendimento dos modelos de malhas aéreas, ver Fonseca e Gomes (2015).

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77 · Tanto as duas maiores empresas tradicionais quanto as duas LCCs oferecem programas de milhagem.

· Em geral, tradicionais e low costs atuam nos mesmos aeroportos, à exceção de alguns aeroportos regionais utilizados apenas pela Azul (que tem seu principal hub em um aeroporto secundário da região metropolitana de São Paulo, o aeroporto de Viracopos, em Campinas).

· A Gol, assim como a TAM e a Avianca, dispõe de frotas padroni-zadas para o mercado doméstico (no caso, família Boeing 737, na Gol; e família Airbus A320, na TAM e na Avianca), ao passo que a Azul já conta com uma frota diversificada, formada por aeronaves turboélices (modelos ATR), Embraer (família 170/190) e Airbus A330. A Azul anunciou recentemente o pedido de aeronaves da família Airbus A320neo.

· Todas as empresas disputam o concorrido mercado do tráfego de negócios e o de turismo/lazer, oferecendo assentos opcionais com mais espaço e com tarifas diferenciadas para atrair os viajantes a negócio.

· O que difere principalmente as empresas LCC das tradicionais no Brasil é o serviço de bordo e a distância entre as poltronas (RODRIGUEZ, 2015).

E a reação das empresas tradicionais?

As empresas tradicionais (legacy carriers) tiveram distintas reações à entrada das LCCs em seus mercados. Algumas passaram a focar ainda mais suas operações em seus hubs. Por outro lado, passaram a enfrentar dificulda-des em aeroportos secundários e regiões de menor tráfego, tendo que baixar seus preços, mantendo estruturas caras e complexas. Outras buscaram se aproximar do modus operandi das empresas low cost, especialmente no que se refere aos controles de custos, para poder competir diretamente com essas novas entrantes. Outras focaram ainda mais na diferenciação de seu serviço, em busca da fidelização de seus clientes e na conquista de novos usuários dispostos a pagar um pouco mais por isso.

Em contrapartida, também as várias LCCs têm procurado atuar em cidades que são hub de empresas tradicionais (Roma, Barcelona, Atenas,

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Lisboa etc.) na medida em que estas, ao reestruturarem suas malhas viá-rias, vêm abrindo mão de mercados com voos de curta duração e pouco interessantes para alimentarem esses hubs, de onde partem os seus voos de longo curso.

Outro movimento que tem ocorrido, especialmente no continente europeu e na região Ásia-Pacífico, como visto, é a criação, por parte das empresas tradicionais, de subsidiárias low cost, para concorrer, ainda que seletiva-mente, nessa modalidade, abastecendo seus principais hubs. Exemplos desse tipo de iniciativa são: a criação da Germanwings, uma subsidiária da Eurowings, onde a Lufthansa tem participação; a Jetstar como subsidiária da australiana Qantas; a Peach Aviation pela ANA; e as empresas Scoot e Tigerair pela Singapore Airlines.

Porém, nessa estratégia de criar subsidiárias low cost, a maioria não logrou êxito, dada a incompatibilidade dos modelos de negócio entre as empresas. Foi o caso da British Airways, que criou a subsidiária Flybe e a Go Air e se viu obrigada a vendê-las posteriormente, desvinculando-as do grupo, e a Go Air acabou sendo incorporada pela concorrente EasyJet. A Iberia criou a filial Clickair para confrontar sua concorrente Vueling, principalmente nas rotas para Barcelona. Ao fim do confronto, ambas as empresas estavam em situação financeira ruim, levando à ruína da Clickair e à integração da Vueling no grupo IAG (formado também pela British Airways e Iberia).

Atualmente o que se tem observado é que as companhias tradicionais estão se adaptando para concorrer com as low cost, incorporando muitas de suas formas de operação, como a redução dos quadros de funcionários, renovação de suas frotas, tornando-as mais homogêneas e de menor custo de manutenção (VALERO, 2015).

O futuro das LCCsPredizer o futuro é a mais difícil de todas as tentativas, pois as incertezas

que rondam o mercado de transporte aéreo são muitas, e muitas também são as variáveis envolvidas. Mas pode-se destacar alguns movimentos que vêm se consolidando e ganhando espaço cada vez maior entre as empresas LCC: as ultra low cost carriers, as low cost híbridas e as low cost de longo curso.

Aeroespaço e Defesa

79O aprofundamento do modelo – ULCCMais recentemente, tem-se observado, no mercado norte-americano, o

surgimento de empresas que se denominam ultra low cost carriers (ULCC). Trata-se de uma derivação do modelo low cost, que procura simplificar ainda mais a estrutura de tarifas e de custos, com ênfase no auferimento de receitas auxiliares por serviços “extras”, tais como despacho de bagagens, serviços de bordo e adicionais por bagagens extras. Isso viabiliza preços de passa-gens ainda mais baixos que os praticados pelas demais empresas low cost.

Dentre as empresas que se destacam nesse modelo, estão a Spirit Airlines, a Allegiant Air e, a partir de 2015, também a Frontier Airlines, nos EUA, assim como a Canada Jetlines, no Canadá. A forma de atuação das empresas europeias Ryanair e EasyJet serviu, aparentemente, como inspiração para essas americanas, com suas políticas de cobrança de tarifas por serviços normalmente incluídos nos preços das passagens. Note-se ainda que, em 2013 e 2014, a Spirit e a Allegiant foram as empresas aéreas com os melhores resultados, em percentual de lucros, do mercado americano.

Evolução para o modelo híbrido?Com a constante evolução nos modelos de negócio, tanto para as empre-

sas tradicionais como para as LCCs, as primeiras têm reduzido seus custos e desagregado seus produtos,9 enquanto as empresas de baixo custo passaram a oferecer mais serviços, embora associando a esses um determinado valor extra. Assim, a fronteira entre os produtos e serviços de ambos os modelos tornou-se mais tênue, com uma especialização voltada para rotas, curso (longo ou curto) e a frota de aeronaves.

Nesse contexto, diversas empresas aéreas têm desenvolvido estratégias “híbridas”, onde se dá uma aposta simultaneamente no baixo custo e na dife-renciação de seu produto para atrair clientes. O sucesso dessa estratégia de-pende da capacidade de inovar no produto e de oferecê-lo a um baixo preço, conseguindo, contudo, margens significativas que possam ser aplicadas para reinvestir em sua constante inovação e diferenciação (RODRIGUES, 2012).

Esses modelos híbridos são uma combinação dos serviços oferecidos pelas companhias tradicionais e pelas de baixo custo, podendo aproximar-se

9 A “desagregação” do produto significa, no limite, que o passageiro paga, inicialmente, apenas para usar um assento da aeronave; qualquer outro serviço (refeição, transporte de bagagem, uso de banheiro etc.) será cobrado à parte. Fare unbundling é o termo-chave no jargão do setor.

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mais de um ou de outro modelo. São designados limited-frills airlines10 (TRAVEL & TOURISM ANALYST, 2006). Podem oferecer uma classe business ou econômica-plus para, em suas tarifas normais (como a Air Berlin ou a FlyBe), disponibilizar alguns serviços a bordo (DBA ou One-Two-Go) ou ainda ligações telefônicas (Air Berlin e Jet Star).

Tais derivações do modelo apresentam certa tendência de generalização, pois, com a saturação do mercado limitando cada vez mais a expansão da rede, especialmente nos EUA e na Europa, as companhias aéreas promovem o serviço como elemento diferenciador de sua oferta (TRAVEL & TOURISM ANALYST, 2006). Essa estratégia tem sido adotada mais pelas companhias aéreas low cost, na medida em que perdem, eventualmente, vantagem com-petitiva em preços de tarifa em relação às companhias aéreas tradicionais. Isso porque estas têm buscado melhorias em eficiência e produtividade, podendo, cada vez mais, oferecer tarifas mais baixas, reduzindo, assim, a vantagem das LCCs (BELOBABA; ODONI; BARNHART, 2009).

LCC de longo curso?Outra tendência que se observa no comportamento das empresas low

cost no mundo é a inclusão de rotas de médio ou longo curso, com durações superiores a quatro horas, em suas malhas aéreas. Isso pode ser observado: nas rotas operadas atualmente pela AirAsia X, subsidiária da AirAsia da Malásia; na operação de rotas entre aeroportos dos EUA com o Caribe pela JetBlue; na operação de voos entre o Brasil e os EUA pela Gol e pela Azul; e na ligação da Europa com os EUA, pela Norwegian Airlines, entre outros exemplos.

Porém, a presença de LCCs em rotas de longo curso é um fenômeno mais presente nos mercados da Ásia-Pacífico e intra-Ásia. O resultado é a pressão, sobre as concorrentes tradicionais, para baixar os preços de suas passagens, reduzindo, consequentemente, suas margens de resultado.

ConclusõesA liberalização do transporte aéreo, associada à chegada das companhias

aéreas de baixo custo, trouxe um novo ambiente concorrencial no mercado

10 Termo derivado de no frills airlines, que é como são denominadas, no inglês popular, as empresas LCC, significando, em uma tradução livre, “empresas aéreas sem supérfluos”.

Aeroespaço e Defesa

81do transporte aéreo. O modelo de negócios LCC trouxe grandes benefícios para os consumidores, como redução de tarifas, maiores possibilidades de escolhas de companhias, horários e frequências de voos, além do aumento de opções de rotas e destinos.

O modelo de negócio das LCCs baseia-se em uma operação com carac-terísticas singulares, em um produto simples, em um serviço diferenciado e em operações distintas das demais companhias aéreas. Faz uso de estra-tégias de atuação que permitem às empresas um posicionamento inovador e dinâmico no mercado, em muito associado a sua forma de distribuição (ALMEIDA, 2014).

Para a infraestrutura aeroportuária, a entrada das LCCs trouxe uma nova dinâmica para os aeroportos. Apesar de terem que se adaptar a esse novo modelo, especialmente quanto ao reduzido tempo em solo para as aeronaves, também observaram um aumento de receitas e valorização. Ao se utilizarem de aeroportos secundários e, em alguns casos, antigas bases militares, as LCCs permitiram a entrada no mercado de um conjunto de aeroportos até então pouco conhecidos e o desenvolvimento das áreas de entorno.

O sucesso das LCCs pode ser atribuído a dois principais fatores: simplicida-de no modelo de negócio e eficiência em suas operações. As empresas de baixo custo que não sobreviveram, em grande parte, falharam em um desses pontos.

A inovação, seja nos equipamentos e aeronaves, seja na estruturação de cada modelo de negócio de empresa aérea, é uma característica própria da indústria de transporte aéreo. Não há um modelo que se possa chamar de pa-drão absoluto de operação. Com o passar do tempo, são adotados novos conceitos e novas formas de organizar uma companhia, seja ela de vertente tradicional (legacy carrier), regional ou de baixo custo (low cost), e novas soluções são implementadas em função das experiências adquiridas.

Como visto, o esteio da LCC é o Boeing 737 ou o Airbus 320. Embora os E-Jets da Embraer, por serem menores do que o B737 ou o A230, em geral apresentem custos unitários (Cask) ligeiramente superiores aos destes, têm custos totais de viagem invariavelmente inferiores, o que pode ser crucial para rotas de menor tráfego ou mesmo para o desenvolvimento de novas ligações.

Nesse contexto, como esse quadro afeta o BNDES? Por meio do BNDES--exim, há mais de 18 anos que aeronaves brasileiras são exportadas para todo o mundo, sendo financiadas, com sucesso, pelo BNDES. Em especial,

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o BNDES-exim já realizou operações com LCCs, ao financiar E-Jets da Embraer para a JetBlue, a Azul e a Air Europa.

O survey dos mercados aqui levado a cabo parece indicar que há mais possibilidades para os E-Jets em LCC nos EUA e na Ásia-Pacífico. No pri-meiro caso, porque, como mostrou o Gráfico 2, o Cask da JetBlue (que opera frota de A320 também) indica que os E-Jets são competitivos para aquele mercado. Já no caso da Ásia-Pacífico porque, como visto, é um mercado ainda em amplo desenvolvimento (como o dos EUA trinta anos atrás), é grande comprador de aeronaves, tem grande diversidade de densidade de tráfego em suas rotas e apresenta uma geografia demandante de transporte aéreo. E, em algum ponto dessa expansão, os E-Jets poderão, portanto, representar a solução adequada para certas rotas menos densas. Foi isso o que ocorreu, por exemplo, nos três casos mencionados de financiamentos para LCC feitos pelo BNDES para os mercados americano, brasileiro e europeu, respectivamente.

Conclui-se, assim, que novas perspectivas surgem, potencialmente, de demandas para o BNDES nos mercados dos EUA e da região Ásia-Pacífico.

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Aeroespaço e Defesa

85Apêndice A | Trinta maiores LCCs do mundo, 2015

Empresa País Número de passageiros (milhões)

RPK (milhões)

Load factor (%)

Frota (dez. 2015)

Receita (US$

milhões) 2015

Resultado operacional

(US$ milhões)

Margem operacional

(%)

Resultado líquido (US$

milhões)

Southwest Airlines

EUA 144,6 189.057 83,6 703 19.820,0 4.116,0 20,8 2.181,0

Ryanair Irlanda 106,4 92,9 352 7.500,0 1.300,3 1.400,0

EasyJet RU 68,6 77.619 92,6 249 7.219,0 1.059,9 14,8 844,2

Gol Brasil 38,9 38.411 77,2 133 2.878,0 (54,1) (1,9) (1.263,2)

Jet Blue EUA 35,1 67.112 84,7 218 6.416,0 1.216,0 19,0 677,0

Lion Air Indonésia 32,0 114 1.600,0

Indigo Índia 31,4 34.186 83,4 107 2.530,0 451,8 17,9 303,3

Norwegian Noruega 25,8 42.284 86,2 106 2.763,0 42,7 1,5 30,3

Vueling Airlines

Espanha 24,8 24.775 81,3 102 2.146,0 152,4 7,1 105,1

AirAsia Malásia 24,3 30.006 80,2 80 1.660,0 402,6 24,2 134,5

Pegasus Turquia 22,3 21.223 77,4 58 1.293,0 88,5 6,8 40,7

Azul Brasil 20,6 18.636 79,6 140 2.100,0

WestJet Canadá 20,3 34.635 80,0 117 3.122,0 441,5 14,1 284,8

Wizz Air Hungria 21,2 88,2 67 1.600,0

Cebu Pacific Air

Filipinas 18,4 19.872 79,8 48 1.239,0 212,8 17,2 96,2

Spirit Airlines

EUA 17,9 28.954 84,7 84 2.141,0 509,1 23,8 317,2

JetStar Austrália 17,9 30.503 80,4 70 2.851,0 189,3 6,6

Eurowings Alemanha 17,0 87 2.105,0 41,9 2,0

Thai AirAsia

Tailândia 14,9 14.872 81,0 47 880,0 75,6 8,6 28,6

Frontier Airlines

EUA 13,3 21.822 86,5 57 1.604,0 275,9 17,2 145,5

Spring Airlines

China 13,0 22.176 92,8 53 1.280,0 137,7 10,8 206,0

Volaris México 12,0 18.603 82,3 59 1.138,0 157,1 13,8 154,2

Anadolu Jet

Turquia 11,0 36 600,0

Thomson Airways

RU 10,6 33.395 93,8 60

Continua

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Continuação

Empresa País Número de passageiros (milhões)

RPK (milhões)

Load factor (%)

Frota (dez. 2015)

Receita (US$

milhões) 2015

Resultado operacional

(US$ milhões)

Margem operacional

(%)

Resultado líquido (US$

milhões)

Spice Jet Índia 10,5 10.259 88,5 41 750,0

Interjet México 10,5 10.643 78,3 61 945,0 56,6 6,0 13,1

Air Europa

Espanha 10,2 22.502 84,1 57

Allegiant Air

EUA 9,5 14.392 85,0 82 1.262,0 371,7 29,4 220,3

Citilink Indonésia 9,5 7.717 80,2 40 470,0 10,6 2,2 3,6

VietJet Air Vietnã 9,2 8.566 87,1 31 497,0

Total trinta maiores

821,7 842.220,0 84,1 3.459,0 80.409,0 11.255,9 12,5 5.922,4

Fonte: Elaboração própria, com base em dados de Airline Business, junho 2016.

SaúdeBNDES Setorial 44, p. 87-124

* Respectivamente, gerente e economistas do Departamento do Complexo Industrial e de Serviços de Saúde da Área Industrial do BNDES. Os autores agradecem o apoio de pesquisa a Luiz Filippe Santana Adão e os comentários a Luciano Machado e João Paulo Pieroni.

O desafio do envelhecimento populacional na perspectiva sistêmica da saúde

Carla Reis Larissa Barbosa Vitor Pimentel*

ResumoO envelhecimento da população é uma tendência razoavelmente previsível, permitindo que as sociedades se planejem e moldem o futuro levando-a em consideração. O artigo tem como objetivo discutir as tendências gerais de ne-cessidades de saúde da população no contexto do envelhecimento, com ênfase no caso brasileiro. Para isso, são levantados os principais motivos que fazem da área de saúde um campo privilegiado para a promoção do desenvolvimento econômico e social. Também são debatidos, com base em dados da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), os fundamentos históricos e demográficos do fenômeno em questão. Por fim, discutem-se as diretrizes a serem observadas pelos sistemas de saúde para que se adaptem à realidade demográfica descrita. Argumenta-se que a visão sistêmica da saúde pode ser a chave para transformar os desafios gerados pelo envelhecimento populacional em oportunidades para o desen-volvimento do complexo econômico e industrial da saúde (Ceis).

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IntroduçãoO papel do BNDES como banco de desenvolvimento é olhar todas as

dimensões do desenvolvimento, além da perspectiva puramente econômica. Quanto mais ampla a visão adotada, maior a importância da atuação em saúde para a efetividade da instituição na promoção do desenvolvimento.

A literatura no campo do desenvolvimento apresenta diferentes abor-dagens do processo. Nessas diversas perspectivas, a saúde aparece como elemento de destaque, seja por seu grande impacto econômico e tecnológico, em razão do dinamismo de sua base industrial e do grande peso relativo das atividades relacionadas à prestação de serviços de saúde no produto interno bruto (PIB), seja por seu impacto no desenvolvimento social, por seu caráter de necessidade humana e social básica.

Com o reconhecimento da centralidade da área de saúde para o processo de desenvolvimento e o caráter múltiplo de seu impacto, cresce a importân-cia de abordagens que adotem uma perspectiva sistêmica do fenômeno. Tratar os diversos aspectos da intervenção em saúde de modo estanque é perder a oportunidade de potencializar o efeito das políticas públicas. É importante um olhar integrado sobre as políticas e linhas de ação em saúde, a fim de atingir simultaneamente objetivos de políticas industrial, tecnológica e sanitária. Dessa forma, pode ser possível ampliar o acesso da população à saúde de qualidade, ao menor custo possível, e promover o adensamento tecnológico das atividades realizadas localmente nas indústrias correlatas, com vistas à crescente melhoria da inserção brasileira nas cadeias globais de valor.

Ao longo da última década, a atuação do BNDES nos setores indus-triais e de serviços de saúde tem sido marcada por crescente interação com o Ministério da Saúde e outros órgãos de governo, visando à utilização complementar dos instrumentos de política pública. Essa interação tem se mostrado proveitosa, na medida em que contribui para a construção de con-sensos quanto a prioridades estratégicas, para a compreensão mútua sobre as limitações e possibilidades de cada órgão e para a definição de condições de contorno para os resultados desejáveis do ponto de vista das diferentes missões institucionais.

A continuidade dessa atuação coordenada demanda aprofundamento do conhecimento das necessidades de saúde da população brasileira pelas equipes do BNDES, seja para identificar novas agendas prioritárias, seja para avaliar a efetividade da própria atuação do Banco.

Saúde

89Em razão de seu caráter intrinsecamente dinâmico, o desenvolvimento econômico e social precisa ser pensado como um processo. A definição de políticas para o desenvolvimento do país deve ser direcionada a enfrentar os desafios de longo prazo da sociedade. Assim, o planejamento da atuação do BNDES deve considerar, em seus cenários para o futuro, as tendências tecnológicas, sociais e econômicas identificadas como mais importantes para cada setor específico.

Na área de saúde, o envelhecimento populacional é apontado como uma das principais tendências mundiais em estudos de prospecção de futuros, por sua previsibilidade, sua relativa inexorabilidade e pelos impactos esperados com sua concretização. Conforme será discutido no artigo, a população de idosos (acima de sessenta anos) no Brasil deverá superar a de jovens (até 14 anos) a partir de 2030. A transição demográfica tem implicações seve-ras em importantes esferas da vida social, como o mercado de trabalho, a previdência e as necessidades de saúde.

Em relação ao impacto em saúde, destaca-se a interação entre a transição demográfica e a epidemiológica, uma vez que o envelhecimento populacio-nal implica aumento da prevalência de causas de morbidade e mortalidade associadas a doenças crônicas e degenerativas. Embora correlacionados, os dois fenômenos são, todavia, distintos. Há outros fatores determinantes do padrão epidemiológico, tais como: urbanização, hábitos alimentares, seden-tarismo, acidentes de trânsito, violência urbana e cobertura de saneamento.

Ademais, o desafio para a estruturação de sistemas de atenção à saúde na atualidade vai além dos impactos das transições demográficas e epidemioló-gicas. Nas últimas décadas, observou-se uma tendência mundial consistente de elevação dos custos da atenção à saúde. Atribui-se o fenômeno a três causas principais: a aceleração do desenvolvimento tecnológico e a pressão pela adoção de novas tecnologias em saúde; a estrutura das demandas de saúde (determinadas pelos padrões demográficos e epidemiológicos); e a estrutura organizacional dos sistemas de saúde, tanto na prestação de serviços quanto na repartição dos pagamentos.

Nos últimos anos, a produção de conhecimento sobre saúde no BNDES tem se concentrado em aspectos específicos dos segmentos da indústria e de serviços. Este artigo insere-se em um projeto mais amplo de revisão da estratégia e da abordagem do BNDES para a área de saúde. Nesta iniciativa, busca-se identificar elementos unificadores e organizar os diferentes temas

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em um arcabouço comum. Por uma visão sistêmica, pretende-se identificar formas de atuação que promovam simultaneamente o acesso à saúde e a competitividade industrial.

Pela amplitude do tema, a abordagem será feita em duas etapas. Nesta primeira, o objetivo é discutir possíveis direcionamentos indicados pelas tendências gerais de necessidades de saúde da população no contexto do envelhecimento, com ênfase no caso brasileiro. Em um segundo artigo, pretende-se abordar de modo mais detalhado os formatos da atenção à saúde, enfocando aspectos relacionados a sua sustentabilidade. Espera-se, por meio desse esforço, identificar focos estratégicos para a orientação de recursos prioritários ou para ações direcionadas para atenção aos desafios de longo prazo da sociedade brasileira na área de saúde.

O artigo organiza-se da seguinte forma: após esta breve introdução, é abordada a importância da saúde para o desenvolvimento, em uma perspectiva sistêmica, com ênfase na compreensão da demanda de saúde para a priori-zação de ações que conjuguem objetivos de política de saúde e de política industrial e tecnológica. Na sequência, analisam-se o fenômeno global do envelhecimento populacional, suas causas e as particularidades das transições demográfica e epidemiológica, no caso brasileiro. Depois disso, são discutidos os impactos das transições mencionadas para a organização da sociedade e da atenção à saúde, também com destaque para o caso do Brasil. Nas con-siderações finais, são ressaltadas condições de contorno a serem observadas na elaboração de ações voltadas à área de saúde pelas equipes do BNDES. Também são enunciadas perguntas a serem abordadas em um próximo artigo.

Saúde como desenvolvimentoPor ser tão intrinsecamente ligada à vida humana, torna-se quase

redundante argumentar sobre as razões de a saúde ser uma necessidade humana fundamental. Sem saúde, não há vida. As doenças ou fragilidades podem levar as pessoas à morte ou limitar muito sua qualidade de vida, sua capacidade de trabalho e realização de objetivos pessoais e sua inde-pendência financeira e felicidade. Segundo definição da OMS, expressa em sua Constituição, desde 1946, a saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças” (WHO, 1948). Assim, a saúde individual é um fundamento básico do desenvolvimento humano em nível individual e, por agregação, a saúde coletiva é um ele-mento básico do desenvolvimento social.

Saúde

91A relação entre saúde e desenvolvimento não é uma via de mão única, mas sim uma rede complexa de numerosas conexões e interações. No nível individual, quanto melhor for a saúde de uma pessoa, mais capaz ela deverá ser de trabalhar, obter seu sustento e realizar atividades cotidianas diversas em sua vida. Por outro lado, as condições de saúde de uma determinada pessoa também são influenciadas pelo ambiente socioeconômico, na medida em que melhores condições de renda e educação favorecem a adoção de hábitos de vida mais saudáveis e permitem o acesso a serviços de saúde de maior qualidade.

Além disso, a importância econômica dos setores de saúde abre um vasto campo de atuação tanto para a geração de emprego e renda quanto para o de-senvolvimento industrial e tecnológico. Para uma compreensão mais apurada sobre a importância da visão sistêmica em saúde, é necessário apresentar os diversos aspectos que permeiam a relação entre saúde e desenvolvimento.

A saúde como necessidade fundamental e seus determinantes sociais

A relação mais imediata entre saúde e desenvolvimento diz respeito à necessidade de vida saudável para a capacidade de as pessoas trabalharem e gerarem renda. Hsiao e Heller (2007) apontam que um bom nível de saúde da população contribui significativamente para o acúmulo de capital humano e para a produtividade. Os autores citam evidências empíricas que corroboram que a saúde na infância tem efeito substancial no aprendizado. Adicionalmente, citam evidências do impacto da saúde na oferta de traba-lho e produtividade do trabalhador, além de efeitos agregados nas taxas de crescimento econômico dos países.

Como apontado em Sachs (2001), o peso das doenças em países de baixa renda funciona como uma barreira ao crescimento econômico, pois limita a capacidade de trabalho das pessoas. Portanto, investir na melhoria da saúde e da longevidade das pessoas mais pobres pode ser uma estratégia de desenvolvimento capaz de reduzir a pobreza, com efeitos no crescimento de longo prazo desses países.

Até meados do século XX, a visão prevalecente sobre o desenvolvimento era muito centrada no aspecto econômico, havendo a suposição implícita que outros aspectos desejáveis do desenvolvimento decorreriam naturalmente do crescimento consistente do PIB e, quando muito, do PIB per capita.

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Processos de industrialização e urbanização observados em alguns países onde o crescimento da renda foi acompanhado de elevados graus de pobreza e desigualdade chamaram atenção para a necessidade de um olhar menos agregado para as medidas de renda. Além disso, ao avançar no exame dos fenômenos da pobreza e da desigualdade de renda, observou-se sua interação com outros aspectos limitantes não necessariamente originados em condições de renda e riqueza, mas que também poderiam ter impacto relevante sobre as medidas dessas variáveis.

Dessa constatação, nasce uma nova vertente de análise do fenômeno do desenvolvimento, cujo expoente maior é o economista indiano Amartya Sen. Sen amplifica o olhar sobre o ser humano para além da lente econômica, en-tendendo que a medida do desenvolvimento de uma comunidade, sociedade ou país não pode se restringir a indicadores econômicos genéricos como crescimento do PIB, ainda que seja PIB per capita. Um dos motivos é que a medida per capita não assegura que a distribuição dos recursos econômi-cos seja suficiente para garantir o mínimo necessário a todos os habitantes. Além disso, Sen analisa a importância de outros bens ou valores de caráter não econômico que são essenciais para o bem-estar individual e social e que, portanto, são fundamentais para a determinação do desenvolvimento. Dentre eles, destacam-se: saúde, educação, liberdade, mobilidade social, igualdade racial e de gênero, entre outros (SEN, 2000).

Para Sen, o objetivo último dos indivíduos deve ser a realização de suas potencialidades. A existência de males sociais evitáveis, tais como a pobre-za extrema, a subnutrição, a marginalização social, a privação de direitos básicos, a carência de oportunidades, a opressão e a insegurança econô-mica, política e social, incapacita os indivíduos e os priva da liberdade de realizar toda a sua potência individual. Assim, o autor estabeleceu um novo paradigma para a questão do desenvolvimento, deslocando o eixo teórico do aspecto meramente econômico e colocando o desenvolvimento humano como o centro das atenções. Nessa concepção do desenvolvimento, a saúde tem papel central como elemento habilitador (ou limitador, no caso de sua ausência) da capacidade de realização individual.

No sentido inverso, observa-se que a saúde das pessoas é definida tam-bém por sua situação social. Considerando o processo saúde-doença como socialmente determinado e historicamente situado, é preciso examinar os determinantes sociais da saúde, para melhor compreensão das necessidades de saúde de uma determinada população (CARVALHO, 2013).

Saúde

93Desde os anos 1990, com base em discussões realizadas no âmbito da ONU, com participação de representantes dos países, refinou-se o marco conceitual dos determinantes sociais da saúde e avançou-se na discussão de instrumentos para a redução das iniquidades em saúde. Conforme definição de OPAS (2011, p. 15):

Os determinantes sociais da saúde são as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem, incluindo o sistema de saúde. Essas circunstâncias são moduladas pela distribuição de renda, poder e recursos em nível global, nacional e local e são influenciadas por decisões políticas. Os determinantes sociais da saúde são os princi-pais responsáveis pelas iniquidades em saúde – as diferenças injustas e evitáveis entre pessoas e países.

A Figura 1 apresenta um esquema dos determinantes da saúde consagrado na literatura.

Figura 1 | Determinantes individuais e sociais da saúde

Cond

ições

socio

econômicas, culturais e ambientais gerais

Rede

s de r

elacionamento comunitário e socialHábi

tos e

estilo de vida individuais

Condições de vida e de trabalho

Agricultura

e produção

de alimentos

Ambiente

de trabalhoDesemprego

Água e

saneamento

Serviços

de saúde

Habitação

Idade, sexo e fatores

constitutivos

Educação

Fonte: Adaptado de Dahlgreen e Whitehead (1991).

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A definição da OMS para determinantes sociais da saúde torna claro o entendimento da saúde como um processo social e revela como aspectos sociais e decisões políticas impactam as condições de vida e saúde das po-pulações, bem como a ocorrência de doenças. A análise de indicadores de saúde dos países à luz de outros indicadores socioeconômicos associados ao desenvolvimento evidencia a forte correlação entre os aspectos.

Entre países de mesmo nível de renda, os indicadores nacionais de saúde são piores naqueles onde é maior a desigualdade de renda. A correlação entre desigualdade social e peso das doenças indica que há retroalimentação entre os dois fenômenos. A frequência da maioria das doenças é maior nos grupos de populações mais pobres, e as populações mais vulneráveis sofrem mais com a superposição de problemas de saúde, elevando a carga de morbidade e mortalidade, tanto individual quanto da população. O contexto socioeconômico impacta, ainda, no resultado de tratamentos de saúde. Pessoas com maior nível educacional e econômico têm maior probabilidade de seguir corretamente os tratamentos de saúde e manter sua adesão, seja por entender melhor sua importância, seja por ter mais capacidade de arcar com os custos financeiros dos tratamentos (WHO, 2010; BARRETO, 2013).

Em suma, por um lado, fica evidente a importância de combinar a política de saúde com outras políticas públicas (econômicas, sociais, ambientais etc.), para a melhoria das condições de saúde da população. Por outro, a promo-ção da equidade no acesso à saúde aparece como elemento central para a redução da pobreza e da desigualdade de renda, reiterando a relevância da escolha brasileira pelo modelo de atenção integral e universal do Sistema Único de Saúde (SUS).

O complexo econômico e industrial da saúde como eixo de desenvolvimento econômico

Além de seu claro impacto na vida das pessoas, a saúde é composta por atividades econômicas relevantes, que respondem em média por 8% do PIB brasileiro e que empregam mão de obra qualificada, composta fundamental-mente por pessoas de nível médio e superior (médicos, enfermeiros, farma-cêuticos e outros profissionais de saúde). Ademais, a saúde mobiliza uma ampla cadeia produtiva de bens de alto valor agregado, sendo responsável por gerar e difundir conhecimento (GADELHA; COSTA, 2013).

Saúde

95As indústrias de saúde representam campo privilegiado de atuação con-forme diversas teorias do desenvolvimento econômico. Segundo a teoria estruturalista,1 o processo de desenvolvimento econômico não segue uma linha evolutiva idêntica em todos os países, dissociada do contexto históri-co. Há uma significativa diferença entre os pioneiros (países centrais) e os seguidores (periferia). Os países retardatários deparam-se com um mercado já existente de bens industrializados, que eles desejam também consumir. No entanto, como são basicamente produtores de bens primários (com bai-xa elasticidade-renda relativa), caracteriza-se uma dinâmica de comércio internacional que os mantém especializados nesses bens e, na ausência de intervenções, a tendência é a perpetuação do subdesenvolvimento dos países periféricos, e não sua superação. Com base nesse diagnóstico, defi-niu-se a industrialização como principal meta de transformação estrutural para atingir o desenvolvimento econômico e definiram-se as políticas ati-vas de promoção e proteção da indústria como meio de atingir essa meta (BRESSER-PEREIRA, 2016).

Já na visão schumpeteriana, a inovação é o elemento central para o desenvolvimento econômico, por introduzir mudanças qualitativas nas combinações de materiais e forças que constituem as atividades produ-tivas. Essas mudanças seriam materializadas por meio da introdução de novos produtos, matérias-primas ou métodos de produção, abertura de novos mercados e estabelecimento de novas formas de organização industrial (SCHUMPETER, 1997).

Ouras linhas teóricas mais recentes descrevem um fenômeno chamado de “armadilha da renda média”, que pode ocorrer em países que passam por um processo de urbanização acelerada sem a construção de uma estrutura industrial diversificada e de alta produtividade. Conforme essa vertente teórica, as políticas de desenvolvimento devem privilegiar a diversificação produtiva e o aumento da produtividade (FELIPE; ABDON; KUMAR, 2012; JANKOWSKA; NAGENGAST; PEREA, 2012).

As abordagens citadas são complementares na argumentação sobre a importância da base produtiva em saúde para o desenvolvimento. Ainda se

1 A teoria estruturalista do desenvolvimento surgiu no período pós Segunda Guerra Mundial, tendo como base a macroeconomia keynesiana e a economia política clássica. Tinha como objeto o fenômeno do subdesenvolvimento das economias latino-americanas. Dentre diversos intelectuais que contribuíram para o debate, destaca-se Celso Furtado, cuja obra norteou boa parte das políticas públicas brasileiras de desenvolvimento, desde a década de 1950 até os dias de hoje.

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observa uma desigualdade estrutural no comércio internacional de bens que favorece aqueles com maior conteúdo tecnológico e leva à perpetuação do subdesenvolvimento nos países que se especializam em produtos de baixo dinamismo. Ou seja, continua pertinente o objetivo de transformação es-trutural da economia, avançando, porém, além da industrialização básica, em busca do desenvolvimento e da produção de bens diferenciados e de alto valor agregado, que consigam obter e manter vantagem competitiva no comércio internacional.

Dessa forma, justificam-se a priorização de setores de alta tecnologia e as políticas de inovação voltadas à diferenciação de produtos, como ênfases con-temporâneas das políticas de desenvolvimento econômico. Essa priorização é ainda mais relevante quando, além dos efeitos tecnológicos e produtivos, esses setores têm o poder de exercer amplo e profundo impacto social, como ocorre com os segmentos que compõem as indústrias de saúde, caracterizados pela produção de bens industriais intensivos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e serviços intensivos em conhecimento (GADELHA, 2003).

Dois segmentos industriais compõem o complexo da saúde. A in-dústria farmacêutica caracteriza-se mundialmente como um oligopólio baseado em ciência e tecnologia, no qual a diferenciação de produtos e a obtenção de rendas de monopólio derivadas da proteção patentária da inovação são as principais estratégias. O mercado farmacêutico mundial movimenta cerca de US$ 1 trilhão, e as principais empresas farmacêuticas investem cerca de 15% de sua receita líquida em atividades de P&D, em média, destacando-se como um dos setores produtivos mais inovadores do mundo. O setor de equipamentos e materiais médicos, hospitalares e odontológicos, por sua vez, também apresenta altas taxas de investimen-to em P&D (6,5%), bem acima da média da indústria de transformação mundial (EVALUATE, 2016).

Por se compor de setores industriais dinâmicos, cuja competitividade baseia-se preponderantemente no uso intensivo de ciência e tecnologia para o desenvolvimento contínuo de novos produtos e serviços, as indústrias de produtos para saúde podem proporcionar o aumento da incorporação de progresso técnico na economia. Assim, são setores industriais potencialmente “desejáveis” para o propósito do desenvolvimento econômico, uma vez que dinamizariam o ambiente de ciência e tecnologia, incorporando o progresso técnico e gerando empregos de maior qualidade.

Saúde

97Entretanto, as atividades econômicas são social e historicamente ca-racterizadas e, portanto, não engendram as mesmas formas de relações socioeconômicas em toda parte. A base produtiva da saúde constitui uma área de intenso dinamismo, pois concentra alguns dos setores industriais mais intensivos em ciência, tecnologia e inovação. Porém, as decisões alocativas de atividades de P&D das firmas multinacionais são definidas em função de aspectos como a localização de suas matrizes e sua dis-ponibilidade de recursos humanos, financeiros e de infraestrutura. Isso contribui para a concentração estrutural dos esforços de pesquisa, desen-volvimento e inovação nas cadeias globais de valor em poucos países (RADAELLI, 2008).

Essa configuração limita em dois aspectos os países alienados na dinâ-mica locacional das atividades de P&D: reduz a apropriação dos ganhos econômicos advindos do progresso técnico da produção, já que as atividades mais sofisticadas são realizadas externamente; e restringe os incentivos para desenvolver soluções voltadas ao atendimento às necessidades específicas de atenção à saúde de sua população. Assim, reforça-se a importância não apenas de fortalecer a base produtiva da saúde instalada no país, mas tam-bém de fomentar seu adensamento tecnológico (PADULA; NORONHA; MITIDIERI, 2015).

Já o segmento de prestação de serviços de saúde destaca-se por seu gran-de peso econômico, como gerador de empregos qualificados. Além disso, é o motor da demanda dos segmentos industriais e o lócus da inovação em saúde, a ponte entre o usuário final e os produtos de saúde (COSTA et al., 2013). Por sua natureza, os serviços de saúde são intensivos em pessoas. São considerados serviços com elevado grau de especialização, demandando mão de obra qualificada.

Além disso, sua demanda é distribuída no território conforme a distribui-ção populacional, com idiossincrasias derivadas de fatores socioeconômicos, ambientais e culturais. Dessa forma, a distribuição adequada de serviços de saúde no território poderia permitir também a redução das desigualdades territoriais de emprego e renda.

A dinâmica entre os segmentos industriais e os serviços de atenção à saúde configura a relação sistêmica dentro do Ceis. As duas esferas po-dem se retroalimentar de maneira virtuosa quando as atividades de maior complexidade tecnológica da cadeia são realizadas localmente e quando os

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padrões tecnológicos da indústria são orientados à atenção das necessidades da população local (GADELHA; COSTA, 2013).

Cabe notar que a definição de políticas públicas na área de saúde com-porta uma gama variada de atores com objetivos diversos e muitas vezes conflitantes, evidenciando a necessidade da atuação do Estado como media-dor dos interesses sanitários e de mercado. Essa complexidade intensifica a importância de uma visão integrada sobre o conjunto do Ceis, entendendo essas atividades produtivas como interdependentes. Tendo em vista que as políticas públicas devem buscar o bem-estar coletivo, a abordagem sistêmica favorece também a orientação das políticas industriais e tecnológicas em apoio à sustentabilidade e à autonomia das políticas públicas de atenção à saúde (GADELHA; COSTA; MALDONADO, 2012).

Caracterizada a importância do Ceis para o desenvolvimento, há de se lembrar ainda que o planejamento de políticas públicas deve ser realizado de uma perspectiva dinâmica. Uma vez que a sociedade está em constante transformação, a construção de uma visão de longo prazo para a saúde tem que incorporar as principais tendências de impacto no cenário futuro da saúde, isto é, o planejamento deve refletir os principais desafios da sociedade.

Transição demográfica e transição epidemiológicaDiferentemente da maioria das transformações que ocorrerão no pró-

ximo século, o envelhecimento da população é uma tendência previsível, permitindo que as pessoas e as sociedades planejem-se e moldem o futuro levando-a em consideração. Por sua vez, a saúde é o aspecto central do envelhecimento da população, pois a preservação de boas condições de saúde é o que determina se os anos adicionais serão uma bênção ou um fardo (WHO, 2015). Assim, é imprescindível a compreensão dos impactos da transição demográfica para as necessidades de saúde da população.

Envelhecimento populacional: impactos demográficosDo ponto de vista biológico, o envelhecimento está relacionado com o

acúmulo gradual de uma variedade de danos moleculares e celulares. Com o passar do tempo, esses danos levam a redução das reservas fisiológicas, maior risco de incidência de doenças e declínio das capacidades individuais

Saúde

99(WHO, 2015). Essas mudanças não são lineares, tampouco ocorrem na mesma idade para todos os indivíduos. Desse modo, é difícil estabelecer a idade a partir da qual uma pessoa passa a ser considerada idosa. Usualmente, os estudos sobre o tema adotam o corte de sessenta ou 65 anos. Para efeito desta análise, será considerado o marco de sessenta anos, o mesmo utilizado pela ONU e pela lei brasileira 10.741, de 1° de outubro de 2003, conhecida como Estatuto do Idoso. Outras datas de corte foram usadas pontualmente para manter a fidelidade em relação à fonte.

No Brasil e no mundo, a parcela da população com idade acima de sessenta anos está crescendo em um ritmo mais acelerado do que qualquer outro grupo etário. Historicamente, o número de crianças sempre foi su-perior ao número de idosos. Porém, espera-se que em 2050 o percentual da população mundial acima de sessenta anos ultrapasse o percentual de jovens de até 14 anos. No Brasil, essa transição deve ocorrer já em 2030, conforme mostra o Gráfico 1.

Gráfico 1 | Proporção da população com idade até 14 anos e acima de sessenta anos, 1980-2070

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

1980 1990 2000 2010 2020 2030 2040 2050 2060 2070

% de jovens na população mundial % de idosos na população mundial

% de jovens na população brasileira % de idosos na população brasileira

Fonte: Elaboração própria, com base em United Nations (2015).

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A proporção da população idosa (acima de sessenta anos) está aumen-tando, enquanto a proporção da população de jovens (zero a 14 anos) e de adultos (de 15 a sessenta anos) se reduz. O peso das pessoas econo-micamente dependentes, na população brasileira, chamado de razão de dependência,2 aumentaria de 0,53, em 2015, para 0,59, em 2030 (UNITED NATIONS, 2015).

O processo de evolução demográfica das sociedades é usualmente descrito em quatro etapas. Na primeira, a taxa de nascimento e a taxa de mortalidade são altas, resultando em baixo crescimento populacional e estrutura etária com formato de pirâmide, com muitas crianças e pouca população idosa. Na segunda etapa, a queda da mortalidade infantil combi-nada com a manutenção de altas taxas de fertilidade provoca crescimento populacional, potencialmente com um efeito virtuoso, o chamado “bônus demográfico”, uma vez que cresce a proporção da população em idade ativa. Na terceira etapa, o fato relevante é a queda na taxa de fertilidade, estreitando a base da pirâmide e empurrando para cima a média de idade da população. Por fim, na quarta, a mortalidade e a fertilidade são baixas e estáveis, o crescimento populacional estabiliza-se e a estrutura etária torna-se quase retangular, com maior peso da população idosa, marcada pelo fenômeno do envelhecimento populacional (HE; GOODKIND; KOWAL, 2016).

O envelhecimento populacional pode ser explicado por dois fatores- -chave: o aumento da expectativa de vida e a queda da taxa de fecundidade. Nos últimos anos, o mundo assistiu a uma grande elevação da expectativa de vida ao nascer de sua população. Nos anos 1950, a expectativa de vida era de 46,8 anos. Em 2015, esse indicador passou para 70,4, e espera-se que em 2030 chegue a 74,5 anos. O Brasil segue a tendência mundial, sendo projetada para 2030 uma expectativa de vida populacional média de 79 anos (UNITED NATIONS, 2015).

Esse aumento da expectativa de vida ao nascer é causado conjuntamente pela redução da mortalidade infantil e pela maior sobrevivência em idades mais avançadas. Na maior parte do mundo que ainda passa pela primeira transição demográfica, a redução da mortalidade infantil foi o fator prepon-

2 Soma do número de jovens de zero a 14 anos com o de idosos acima de sessenta, dividida pela popu-lação em idade ativa, de 14 a sessenta anos.

Saúde

101derante para elevar a expectativa de vida. Nos países desenvolvidos, onde o patamar de mortalidade infantil é baixo, o fator de maior impacto foi o aumento da sobrevivência dos idosos.

Taxa de mortalidade infantil e taxa de fecundidade

A taxa mortalidade infantil (TMI)3 reduziu significativamente, no mundo, nos últimos sessenta anos, passando de 142 óbitos a cada mil nascimentos, em 1950, para 32 a cada mil, em 2015. No Brasil, o processo de convergên-cia da TMI com os melhores padrões internacionais vem ocorrendo desde a década de 1980. Em 2015, a TMI do Brasil foi de 13,8, e estima-se que esse número chegue a nove por mil nascimentos até 2030, de acordo com o que se observa no Gráfico 2. A título de comparação, nos países de alta renda da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essa taxa é atualmente de 4,1 por mil.

Gráfico 2 | Taxa de mortalidade infantil a cada mil nascidos vivos, real e projetada – mundo, Brasil e países desenvolvidos, 1950-2070

0

20

40

60

80

100

120

140

160

1950 1970 1990 2010 2030 2050 2070

Mundo Países desenvolvidos Brasil

Fonte: Elaboração própria, com base em United Nations (2015).

Essa redução significativa da taxa de mortalidade infantil ocorreu graças a um conjunto de fatores que incluiu a urbanização, a melhoria das condições sociais da população (com destaque para o avanço relativo do saneamento

3 Número de mortes de crianças de até um ano por mil nascimentos.

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básico) e uma série de ações de saúde pública, como a maior atenção ao pré-natal, ao aleitamento materno e à vacinação, a introdução de agentes comunitários de saúde e a Estratégia de Saúde da Família (ERVATTI; BORGES; JARDIM, 2015).

Assim como a TMI, a taxa de fecundidade também caiu progressiva-mente em todo o mundo, com a disseminação de métodos contraceptivos, a invenção da pílula anticoncepcional e a entrada da mulher no mercado de trabalho a partir dos anos 1950. Em 1950, essa taxa era de cerca de seis filhos por mulher no Brasil, de cinco filhos por mulher no mundo e de um pouco menos de dois filhos por mulher nos países desenvolvidos. À semelhança do que ocorreu com a TMI, a taxa de fecundidade brasileira descolou-se da dos países menos desenvolvidos na segunda metade do século XX, chegando a um padrão similar ao dos países desenvolvidos a partir dos anos 2000, de menos de dois filhos por mulher (Gráfico 3).

Gráfico 3 | Taxa de fecundidade (número de filhos por mulher), real e projetada – mundo, Brasil e países desenvolvidos, 1950-2060

0

1

2

3

4

5

6

7

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2030 2040 2050 2060

Mundo Países desenvolvidos Brasil

Fonte: Elaboração própria, com base em United Nations (2015).

Sobrevivência em idades avançadas

Outro fator relevante da transição demográfica atual é a longevidade. Há uma fatia crescente da população composta por idosos, e chama a atenção, nesse grupo, a parcela de idosos que vai viver por muitos anos. Entre 2015

Saúde

103e 2030, prevê-se que o grupo dos idosos acima de 85 anos aumentará em um ritmo maior que a população entre zero e sessenta anos e maior que a população de idosos como um todo, podendo alcançar 7% do total de pessoas em 2030, ante 5% em 2015 (Gráfico 4). A maior probabilidade de morte ocorre, cada vez mais, em idades mais avançadas. Estima-se que, por volta de 2030, 78% das mortes no Brasil ocorrerão com pessoas acima de sessenta anos. Cabe notar que, em 1950, apenas 18% das pessoas passavam dos sessenta anos (UNITED NATIONS, 2015).

Gráfico 4 | Taxa de crescimento populacional por faixa etária – mundo e Brasil, 2015-2030

10%

56%64%

1%

76%

116%

0-60 60+ 85+

Mundo Brasil

Fonte: Elaboração própria, com base em United Nations (2015).

Nesse contexto, uma importante questão é se esses idosos com idades cada vez mais avançadas conseguirão ter sua vida saudável prolongada ou se esses anos adicionais serão vivenciados sem saúde. Se os anos adicionais forem vivenciados de forma saudável e produtiva, haverá um aumento de recursos humanos que poderão continuar contribuindo de maneira ativa para a sociedade. Caso contrário, haverá apenas maior demanda por saúde e assistência social. Quanto a esse respeito, não parece haver ainda consenso na literatura, mesmo se considerada a experiência dos países mais avançados (UNITED NATIONS, 2015).

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Diferenças territoriais

É marcante a diferença entre a velocidade observada da transição demo-gráfica nos países desenvolvidos e a prevista para os países em desenvol-vimento. Como pode ser observado na Figura 2, enquanto a França levou aproximadamente 150 anos para que a população acima de sessenta anos passasse de 10% para 20% do total, Brasil, China e Índia deverão ter apenas vinte anos para se adaptar à mesma situação.

Figura 2 | Velocidade do envelhecimento da população (tempo para a população de idosos passar de 10% para 20% da população)

184020%

10%

França Suécia Reino Unido Estados Unidos Japão China Brasil Índia

1860 1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000 2020 2040 2060

Fonte: Elaboração própria, com base em WHO (2015).

Pode-se dizer que essa diferença de velocidade deve-se à queda ace-lerada da TMI e da taxa de fecundidade observada nos países menos desenvolvidos na segunda metade do século XX. Essa diferença poderia ser explicada pelo fato de as tecnologias e os hábitos que permitiram essa transição demográfica terem surgido e sido incorporados gradualmente nas sociedades mais desenvolvidas. Por sua vez, os demais países puderam dispor de tecnologias e hábitos mais complexos já consagrados, o que teria permitido que se apropriassem dos avanços tecnológicos e sociais de maneira mais acelerada.

As diferenças territoriais observadas entre países também podem ocorrer dentro de um mesmo país. No Brasil, a transição demográfica reflete suas desigualdades regionais, conforme pode ser visto na Tabela 1. O aumento do percentual de idosos é uma tendência em todas as regiões, porém esse processo está mais avançado no Sul e no Sudeste e menos no Norte, no Centro-Oeste e no Nordeste. A principal razão disso é a maior expectativa de vida nas primeiras regiões em relação às últimas, em função da menor TMI.

Saúde

105Ressalta-se, contudo, que houve uma expressiva queda da TMI nas regiões Norte e Nordeste.

A taxa de fecundidade também tem diferenças entre regiões. A região Norte é a única que ainda apresenta uma taxa equivalente ao nível de repo-sição populacional (2,1 filhos por mulher). Mesmo em 2030, conforme as projeções, ainda devem ser marcantes as diferenças regionais no Brasil, o que deve ser levado em consideração na formulação de políticas públicas.

Tabela 1 | Indicadores relacionados ao envelhecimento populacional das regiões do Brasil, 2000, 2015 e 2030

Indicador Ano Norte Nordeste Sul Sudeste Centro-OestePercentual de idosos 2000 5,2 8,0 8,9 8,9 6,4

2015 7,1 10,2 13,7 13,3 9,82030 11,8 16,0 21,9 21,1 16,5

Expectativa de vida ao nascer

2000 67,9 67,4 71,9 71,1 70,82015 72,0 72,8 77,5 77,2 74,92030 74,8 76,1 81,0 80,4 77,7

Taxa de mortalidade infantil

2000 31,0 45,2 16,9 20,1 22,62015 18,1 17,5 9,7 10,7 14,82030 13,1 11,1 6,1 6,9 10,3

Taxa de fecundidade 2000 3,2 2,7 2,2 2,1 2,32015 2,1 1,8 1,6 1,6 1,72030 1,6 1,6 1,5 1,4 1,5

Fonte: Elaboração própria, com base em Ervatti, Borges e Jardim (2015).

Transição epidemiológicaSegundo Omran (1971), historicamente, as sociedades passaram por três

fases no processo de modernização no que tange à epidemiologia. A primeira fase foi a “era de pestes e fome”, na qual a mortalidade era alta e flutuante e a expectativa de vida era inferior a trinta anos. Essa fase teria durado até meados do século XVIII. A segunda fase é a “era do recuo das pandemias”, na qual há uma redução da mortalidade associada a epidemias, principalmente em virtude da adoção de hábitos básicos de higiene e saneamento. Como resultado, ocorre elevação significativa da expectativa de vida, que passa a ser superior a cinquenta anos. De forma geral, essa fase teria durado até por volta dos anos 1960, na maioria dos países. A última etapa caracteriza-

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-se pelo avanço da medicina na reversão de condições agudas, em especial, infectocontagiosas, com a difusão dos antibióticos e vacinas. É a chamada “era das doenças degenerativas e ocasionadas pelos homens”, na qual a taxa de prevalência de doenças infectocontagiosas tende a ser marginal.

Causas de mortes

Atualmente, apenas os países de baixa renda têm um percentual maior de mortes por doenças transmissíveis que por doenças não transmissíveis. Estima-se que, até 2030, a maioria dos países já tenha realizado a transição para um perfil de maior prevalência de doenças não transmissíveis. No Brasil, as principais causas de morte já são as doenças não transmissíveis, com destaque para as doenças cardiovasculares, os diversos tipos de câncer, diabetes, doenças respiratórias e do aparelho digestivo (Gráfico 5).

Gráfico 5 | Percentual de causas de morte no Brasil, 2012

Doençastransmissíveis

14%

Doenças nãotransmissíveis

74%

Causasexternas

12%

Fonte: Elaboração própria, com base em WHO (2012).Nota: No conjunto de doenças transmissíveis, estão consideradas também as condições maternais, perinatais e nutricionais.

As doenças transmissíveis representam 13,5% do total de mortes, sendo relevantes a Aids, a tuberculose, a doença de Chagas e as doenças diarreicas. Em relação às causas externas, chama a atenção o fato de o Brasil, apesar de ser um país de renda média-alta, ter um percentual de mortes acima da média dos países de renda baixa. Entre as causas externas, as mais significativas são a violência e os acidentes de trânsito.

Saúde

107A iniciativa Saúde Amanhã, da Fiocruz, aponta as principais mudanças no perfil epidemiológico brasileiro previstas para ocorrer até 2033, com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan). Dentre os resultados da análise, destaca-se o aprofundamento da tendência de aumento do peso das doenças crônicas não transmissíveis (SILVA JR.; RAMALHO, 2015).

Segundo essas estimativas, as doenças do aparelho circulatório conti-nuarão sendo a principal causa de morte, apesar de sua importância relativa diminuir, seguidas pelas doenças oncológicas, que tendem a continuar au-mentando, em função do envelhecimento da população. Alzheimer e outras demências também devem continuar crescendo (SILVA JR.; RAMALHO, 2015). Essas doenças causam alto impacto ao sistema de saúde e trazem a necessidade de pensar modelos de atenção diferenciados, complementares ao ambiente hospitalar tradicional, envolvendo o atendimento domiciliar, cuidadores comunitários e suporte familiar, entre outros, conforme será explorado na seção seguinte (WHO, 2015).

Um aspecto importante do aumento da prevalência das doenças crônicas é o fenômeno da multimorbidade, isto é, a presença de múltiplas condições crônicas ao mesmo tempo. De acordo com estudo realizado em sete países de alta renda, atualmente mais da metade da população idosa desses países é afetada pela multimorbidade. Seu impacto na qualidade de vida e no risco de mortalidade pode ser significativamente maior do que a soma dos impactos individuais das condições crônicas, em razão da interação entre essas condi-ções e entre os tratamentos adotados para cada uma delas. Um exemplo com impactos adversos é a combinação de depressão com problemas cardíacos, osteoartrite e dificuldades cognitivas (WHO, 2015).

As únicas doenças transmissíveis que figuram entre as dez principais cau-sas de morte no Brasil para os próximos anos são as infecções respiratórias inferiores. Esse grupo compreende infecções de origem viral ou bacteriana, com impacto relevante em pacientes jovens, imunodeprimidos e idosos, por serem mais vulneráveis (SILVA JR.; RAMALHO, 2015).

De forma geral, em relação às doenças transmissíveis, pode-se vislumbrar tendências distintas para três grupos desse tipo de doença, segundo Silva Jr. e Ramalho (2015). A primeira tendência é de eliminação de parte das doen-ças transmissíveis como problema de saúde pública. Prevê-se que algumas doenças transmissíveis terão sua incidência reduzida a uma velocidade tão acelerada, que vão se aproximar da extinção até a década de 2030. Essa

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redução será decorrente de estratégias recentemente adotadas de tratamento coletivo em áreas de alta prevalência, maior eficiência na busca e trata-mento de contatos, quimioprofilaxia, entre outros fatores. Nesse primeiro grupo, estão doenças como a hanseníase, as geohelmintíases, o tracoma, a esquistossomose, a filariose e a oncocercose.

A segunda tendência importante refere-se às doenças contagiosas que provavelmente persistirão, uma vez que os instrumentos e estratégias para enfrentá-las são limitados. Nesse segundo grupo, estão a tuberculose, a Aids, a dengue e outras.

A terceira tendência é a possível emergência ou ressurgência de doenças infectocontagiosas nos próximos vinte anos, em decorrência do aumento do trânsito mundial de mercadorias e pessoas, elevando a possibilidade de disseminação rápida de vírus e bactérias. Essas doenças podem causar grande impacto sanitário e demandar que o país reforce sua capacidade de rápida detecção e resposta. Pode-se elencar como doenças pertencentes a esse grupo a síndrome respiratória aguda grave (SARS), o chikungunya, a zika e o ebola.

Por fim, as causas externas ainda devem aumentar seu peso relativo na taxa de mortalidade até 2033. São predominantemente agressões e acidentes de trânsito, em número tão impressionante, que têm o efeito de arrefecer a tendência ao envelhecimento da população, dado que são importantes causas de falecimento de homens jovens.

A distribuição das causas de morte é também heterogênea no território. As doenças isquêmicas e cerebrovasculares são as maiores responsáveis por óbitos em todas as regiões do Brasil, exceto no Norte, onde as agres-sões estão em primeiro lugar. No Nordeste e no Centro-Oeste, as agressões também figuram entre as quatro principais. A região Norte diferencia-se ainda pela presença mais elevada de doenças infectocontagiosas. No Sul e no Sudeste, as mortes por Alzheimer e outras demências têm maior peso do que no restante do país. Por fim, outro fato que chama a atenção é o acidente de trânsito como quarta principal causa de morte no Centro-Oeste.4

Nas projeções para o futuro, espera-se um aumento de importância das doenças respiratórias inferiores na região Sudeste, em particular, e no Brasil. Também se destaca o aumento da incidência da diabetes como causa de morte,

4 As projeções de causa de morte no Brasil utilizadas para a análise territorial apresentam um nível de agregação distinto do restante da seção. Dessa forma, os diversos tipos de câncer não aparecem com o mesmo destaque, pois não foram agregados em uma única categoria.

Saúde

109no Norte, e o do Alzheimer e outras demências, principalmente no Sul e Sudeste. Tendo em vista as diferenças regionais apontadas, fica clara a necessidade de pensar a política pública de saúde de acordo com a realidade de cada região.

Peso das doenças

Para a análise das necessidades de saúde da população, é preciso avaliar não somente a incidência das doenças em relação a causas de morte (morta-lidade), mas também o peso das doenças quanto ao prejuízo causado pela re-dução das capacidades individuais decorrente das enfermidades (morbidade).

Para essa segunda medida, utiliza-se na literatura internacional o conceito de peso das doenças, medido por anos de vida ajustados por desabilidades (Daly – em inglês: disability adjusted life years).5 Essa medida, adotada pela OMS, leva em consideração tanto os anos de vida perdidos em razão da morte quanto os anos de vida em que a pessoa teve alguma deficiência. O Gráfico 6 mostra a tendência de crescimento do peso relativo das doenças não transmissíveis no Brasil e no mundo.

Gráfico 6 | Percentual de peso das doenças no mundo e no Brasil, 2000 e 2012

15%

24%

34%

43%

70%

62%

55%

46%

15%

14%

11%

11%

2012

2000

2012

2000

Mundo

Doenças transmissíveis Doenças não transmissíveis Causas externas

Brasil

Fonte: Elaboração própria, com base em WHO (2012).Nota: No conjunto de doenças transmissíveis, estão consideradas também as condições maternas, perinatais e nutricionais.

5 A OMS não divulga estudos prospectivos com base nesse indicador. Dessa forma, as tendências em relação ao perfil epidemiológico foram tratadas apenas com base no indicador de causas de morte.

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É interessante notar que as causas externas tornam-se mais relevantes quando é analisado o peso das doenças do que ao observar as causas de mortes. Isso pode se justificar pelo fato de que a violência e os acidentes retiram a vida de muitos jovens e também porque os sobreviventes muitas vezes passam a viver com alguma deficiência. Outras condições que se tornam mais relevantes com esse indicador são a depressão, complicações no nascimento, doenças diarreicas, deficiências nutricionais, como anemia, e as condições neurológicas, como epilepsia.

Na seção seguinte, expõe-se como a transição demográfica e a transição epidemiológica devem impactar a sociedade brasileira e apresentam-se algumas abordagens adotadas por outros países para lidar com o assunto.

Impactos do envelhecimento para a organização da sociedadeDentre as principais preocupações das sociedades com o processo de

envelhecimento, destacam-se aquelas referentes à seguridade social, isto é, aos sistemas de saúde, assistência e previdência social. O crescimento rápido do número de idosos impõe desafios complexos, em especial na adaptação da estrutura dos sistemas para as necessidades dessas populações e na sus-tentabilidade desses sistemas (BLOOM et al., 2015). No presente artigo, enfatizam-se os aspectos relacionados aos sistemas de saúde elencados por Bloom et al. (2015).

Cuidado aos idososPor muitas gerações, as famílias foram as principais provedoras de suporte

aos idosos, tanto monetário quanto não monetário. O cuidado aos idosos inte-gra o trabalho doméstico não remunerado, tipicamente realizado por mulheres, e não é considerado como parte da força de trabalho. Com a urbanização, o declínio das taxas de fertilidade e a gradual inclusão das mulheres no mercado de trabalho, as formas de suporte da população idosa têm se alterado, trazendo a necessidade de maior planejamento de sistemas de seguridade social para os idosos (MIRANDA, 2011; HE; GOODKIND; KOWAL, 2016).

Quanto mais acelerados são o processo de envelhecimento populacional e a transformação cultural, que desencadeia essa “terceirização” do cuidado aos idosos, maiores as dificuldades enfrentadas pelos governos para equa-cionar a situação. A decisão de encará-la como um problema privado ou público depende da conformação histórica e política de cada país.

Saúde

111A principal diferença dos idosos em relação a outros grupos populacio-nais é a maior necessidade de cuidados de longo prazo, que acompanham os indivíduos acometidos por doenças crônicas ou que necessitam de cuidados especiais por dependência funcional. Em 2011, 15 de 26 países da OCDE tinham mais de 10% da população de idosos recebendo cuidados desse tipo, sem contabilizar os cuidados informais oferecidos pelas famílias (HE; GOODKIND; KOWAL, 2016).

Na ausência de um sistema de proteção, situação encontrada em diversos países de renda baixa, uma doença grave é causa frequente do empobre-cimento repentino para uma família, tanto pelas elevadas necessidades de tempo e dinheiro para o cuidado do enfermo quanto pela redução de sua capacidade de trabalho (BLOOM et al., 2015). Estima-se que 150 milhões de domicílios no mundo já incorreram em gastos catastróficos com saúde (desembolso acima de 40% da renda). Levantamento realizado em quarenta países de renda baixa e média (58% da população mundial) apontou que 26% dos domicílios fizeram empréstimos ou venderam bens domésticos para pagar despesas com saúde (KRUK; GOLDMAN; GALEA, 2009).

No Brasil, a Constituição de 1988 assegurou uma visão de cidadania integrada sob o conceito abrangente da seguridade social. Porém, enquanto a Constituição foi precisa na enunciação dos direitos, a construção do pacto social necessário para sua implementação e garantia tem se mostrado com-plexa e ainda frágil (NORONHA; PEREIRA, 2013).

Aumento dos custos da saúdeO desafio do envelhecimento da população tende a ser maior nos países

de renda baixa e média, conforme destacou, em 2003, a diretora geral da OMS à época, doutora Gro Harlem Brundland: “Devemos reconhecer que, enquanto os países desenvolvidos ficaram ricos antes de envelhecer, os países em desenvolvimento ficarão velhos antes de enriquecer”6 (BRUNDTLAND apud BUTLER, 2002).

Conforme se observa na Tabela 2, os países de alta renda desembol-saram, por habitante, em 2014, quase dez vezes mais do que os países de renda média. O Brasil, considerado um país de renda média-alta pelo Banco Mundial, gastou em saúde, por habitante, três vezes e meia menos que os países de alta renda no mesmo ano.

6 “She noted, ‘we must be fully aware that while the developed countries became rich before they became old, the developing nations will become old before they become rich’”.

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Tabela 2 | Despesas com saúde per capita (US$ paridade poder de compra constante de 2011) e como percentual do produto interno bruto, 1995 e 2014

Grupo de países Per capita (US$ PPP constante 2011) Percentual do PIB1995 2014 Crescimento total

(%)Cresc. médio

anual (%)1995 2014

Renda alta 2.071 5.193 151 13 9,2 12,3Renda média 134 577 331 23 4,7 5,8Renda baixa 32 91 187 15 4,5 5,7Mundo 481 1.276 165 14 8,5 9,9Brasil 524 1.318 151 13 6,5 8,3

Fonte: Elaboração própria, com base em Banco Mundial (2016).

A tabela evidencia que o aumento dos gastos com saúde como percentual do PIB é um fenômeno global, que vem motivando intensas discussões so-bre suas causas e sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde atuais. O aumento observado nos últimos anos com o custeio dos serviços de saúde no mundo é usualmente atribuído a dois fatores: envelhecimento populacional e avanço tecnológico. Quanto ao fator envelhecimento, argumenta-se que: (i) os idosos demandam acompanhamento mais permanente, pois têm menos autonomia para cuidar de sua própria saúde; e (ii) a maioria das doenças crônico-degenerativas – típicas dos idosos – atualmente não tem cura, fa-zendo com que os tratamentos sejam mais caros, paliativos e acompanhem o paciente por longos períodos (BLOOM et al., 2015).

A principal crítica a essa conexão vem da abordagem conhecida como “Time-to-Death”, que distingue os gastos com saúde no último ano de vida dos realizados nos outros períodos, independentemente da idade do óbito. Estudos apontam que estes representam na Austrália e na Holanda, por exemplo, 10% de todos os gastos com saúde de um indivíduo, chegando a atingir 22% nos Estados Unidos (WHO, 2015; GEUE et al., 2013; HE; GOODKIND; KOWAL, 2016). Nessa visão, ao postergar a idade do óbito, o envelhecimento da população apenas deslocaria, para essa faixa etária, parte significativa dos gastos com saúde que anteriormente estavam mais distribuídos nas faixas etárias anteriores.

Por outro lado, está razoavelmente estabelecido na literatura que o des-locamento da fronteira tecnológica parece ser o fator mais importante para explicar o crescimento generalizado dos custos de saúde. As novas opções de tratamento geralmente exigem mão de obra mais qualificada, equipamentos

Saúde

113mais avançados e infraestrutura dedicada. Novas técnicas de diagnóstico e tratamento ampliam a sobrevida das pessoas, levando à substituição de doenças letais por doenças crônicas. Por outro lado, há indicativos de que a introdução de novas tecnologias em saúde não necessariamente substitui as mais antigas. Frequentemente, uma nova técnica é utilizada de modo complementar às anteriores (BODENHEIMER, 2005).

Princípios da prospecção e incorporação tecnológica em saúdeA profusão de inovações que elevam o custo do sistema de saúde e a

grande pressão para incorporá-las levaram ao desenvolvimento de uma série de técnicas de avaliação para subsidiar as decisões dos gestores de saúde sobre a incorporação ou não de inovações. Por outro lado, a busca pelo de-senvolvimento de soluções para as necessidades de saúde também conduziu ao aprimoramento de técnicas para a prospecção tecnológica.

O tratamento oferecido ao paciente, no nível individual, é pautado pela relação entre o médico e o paciente, mediada pelos interesses da indústria e dos pagadores. Há grandes assimetrias de informação nessas relações. A indústria busca promover as inovações como indispensáveis; os médicos buscam se proteger, recomendando, sempre que possível, o que houver de mais sofisticado entre os tratamentos disponíveis; os pagadores, por sua vez, querem minimizar seus custos; por fim, os pacientes acabam sendo o elo mais fraco, pois, em geral, não são capacitados para avaliar as características dos bens e serviços de saúde (FIUZA; LISBOA, 2001).

Foi nesse contexto que começaram a ser desenvolvidos métodos de ava-liação para incorporação tecnológica que buscam se basear em critérios mais objetivos (GARBER, 2001). A Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) é a disciplina que busca dar suporte à tomada de decisão na incorporação de tecnologias. Compreende um conjunto amplo de dimensões, que devem ser selecionadas com base no tipo de produto e em seu estágio no ciclo de vida. Dentre as dimensões, destacam-se acurácia (do diagnóstico), eficácia (probabilidade de benefício em condições ideais), segurança (probabilidade de efeitos adversos), efetividade (probabilidade de benefício em condições reais de uso), custo-efetividade, custo-utilidade, impacto, equidade e ética.

A ATS permite a sistematização do conhecimento científico sobre uma determinada tecnologia e seus impactos no contexto da saúde da popula-ção-alvo. Com isso, além de servir de suporte à decisão sobre incorporação

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tecnológica, também auxilia na constituição de guias de conduta clínica (protocolos clínicos) para os médicos e fornece elementos para avaliações a posteriori, baseados em dados reais do uso da tecnologia (KRAUSS SILVA, 2004).

Em âmbito internacional, o uso das metodologias de ATS é recente. Pioneiro, em 1993, o governo australiano determinou que a inclusão de novos medicamentos para distribuição gratuita à população deveria ser precedida de análise econômica comparada com a alternativa terapêutica vigente. Entretanto, a principal referência nesse campo é o Reino Unido, com a criação do Nacional Institute for Health and Care Excelence (Nice) em 1999. O Nice segue o modelo australiano, embora com metodologias mais refinadas.

No Brasil, a utilização das metodologias de ATS de forma mais siste-mática7 ganhou corpo em 2011, com a criação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), compos-ta por representantes dos três níveis de governo, das agências reguladoras e de representantes da sociedade e da classe médica.8

Entre 2011 e 2015, a comissão avaliou 428 requisições e aprovou 142 tecnologias para inclusão no SUS, baseando-se em dados de segurança e eficácia e outras evidências. A atuação da comissão é criticada por favorecer pedidos oriundos do Ministério da Saúde (que são aprovados em 95% dos casos) em detrimento das solicitações oriundas da indústria, associações de pacientes ou outros entes federados (com 31% de solicitações aprovadas). De fato, a Conitec tem sido mais restritiva que alguns de seus pares interna-cionais, principalmente em função das restrições orçamentárias brasileiras. Contudo, medicamentos de altíssimo valor, mas que apresentavam claro e elevado impacto para a saúde, como os novos tratamentos para a hepati-te C (Sofosbuvir, Simeprevir e Daclatasvir), foram incorporados ao SUS em tempo recorde, antes mesmo de concluída a avaliação no Reino Unido (RODRIGUES, 2016).

7 A primeira norma de incorporação de tecnologias no SUS foi a Portaria do Ministério da Saúde 152, de 19 de janeiro de 2006. Posteriormente, a política foi normatizada pela Lei 12.401, de 28 de abril de 2011, e pelo Decreto Presidencial 7.646, de 21 de dezembro de 2011.8 A Conitec é composta de representantes de cada secretaria do Ministério da Saúde, além do Conselho Nacional das Secretarias Estaduais de Saúde (Conass), do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Saúde

115As ATS são utilizadas para avaliar a pertinência da adoção de ino-vações já lançadas. Outras metodologias têm sido desenvolvidas para estabelecer prioridades para investimentos em P&D para a geração de inovações. Kaplan et al. (2013) estabeleceram uma metodologia para indicar áreas de pesquisa que poderiam ser consideradas prioritárias do ponto de vista sistêmico. O relatório, publicado em 2004 e atualizado em 2013, tem sido considerado na alocação de recursos de fomento para ciência e tecnologia na área de saúde pelos países da União Europeia (FIGUEIREDO; PEPE, 2016).

A metodologia adotada por Kaplan et al. (2013) parte da carga global de doença para identificar as principais necessidades de saúde atuais. A ela, agregam-se as projeções de carga de doença baseadas nas tendências demográficas e epidemiológicas e os fatores de risco externos (obesidade, tabagismo etc.). Por fim, incorpora-se o princípio da solidariedade, que identifica as doenças para as quais não existem incentivos de mercado para o investimento em inovação.

Com base nesses critérios, o relatório identificou três lacunas que devem ser corrigidas por meio do incentivo ao desenvolvimento de inovações em saúde. A primeira refere-se a doenças para as quais existe tratamento, mas espera-se que ele se torne ineficiente no médio prazo. É o caso das infecções por bactérias resistentes a antibióticos, como a tuberculose multirresistente, e também da influenza, cujo vírus é altamente mutante e requer esforços continuados para o desenvolvimento de vacinas.

Na segunda lacuna, aparecem dez doenças para as quais há tratamentos, mas que são pouco eficazes ou sua forma de administração não é adequada às populações-alvo: doenças cardiovasculares, HIV/Aids, câncer, depres-são, diabetes, infecções neonatais e infantis, malária, tuberculose, doenças tropicais negligenciadas e hemorragia pós-parto.

Na terceira lacuna, são elencadas as doenças para as quais o tratamento tem baixa efetividade ou não existe. Figuram nesse grupo: infarto agudo, osteoartrite, as demências (Alzheimer e outras), doença pulmonar obstrutiva crônica, surdez, lombalgia e doenças raras (inclusive órfãs).

Ressalta-se que os focos identificados por Kaplan et al. (2013) tiveram como base dados do conjunto do mundo, além de destacar algumas ques-tões mais prementes da União Europeia. É provável que o Brasil apresente particularidades, como no que diz respeito aos tipos de doenças tropicais

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(dengue e zika), algumas enfermidades associadas à pobreza e à falta de saneamento, além de condições clínicas associadas à violência e aos aci-dentes de trânsito, tais como deficiências físicas.

Sistemas de saúde centrados no idosoEm paralelo à discussão de custos, o envelhecimento da população in-

cita a discussão de modelos de sistemas mais adequados para a prestação de serviços de saúde aos idosos. Tradicionalmente, a maioria dos sistemas de saúde estruturou-se para oferecer cuidado episódico quando a enfermidade se instala em fase aguda. Contudo, conforme abordado nas seções anterio-res, observam-se dois fatores associados ao envelhecimento: (i) a transição epidemiológica em direção à maior relevância das doenças crônicas; e (ii) a importância crescente do fenômeno da multimorbidade.

Apesar da alta incidência de multimorbidade, a maior parte dos sistemas de saúde do mundo não está preparada para prover uma assistência abran-gente necessária nessa situação. Outro fato relevante é que a maior parte dos ensaios clínicos não considera adequadamente o impacto da multimorbidade e geralmente exclui os idosos dos testes, apesar de terem uma fisiologia diferente do restante da população (WHO, 2015).

Essas tendências, se não forem abordadas de modo preventivo, resultam em maior probabilidade de agudização das condições crônicas e maior taxa de utilização do sistema de saúde. Assim, a OMS recomenda em seu re-cente Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde: “O enfoque social recomendado para abordar o envelhecimento da população [...] requer uma transformação dos sistemas de saúde que substitua os modelos curativos ba-seados na doença pela prestação de atenção integrada [...]” (WHO, 2015, p. 4).

O SUS brasileiro parece estar no caminho correto, uma vez que é definida a diretriz de atenção integral, com a porta de entrada do sistema centrada na atenção primária, em vez do hospital. Tendo a atenção básica como estru-tura de cuidado preventivo com base em uma abordagem populacional, o hospital tende a atuar apenas nos casos de maior complexidade e densidade tecnológica, como os cuidados intensivos, ganhando em escala. Embora ainda fragmentada, é crescente a utilização de tecnologias de informação e comunicação (TIC) em saúde para a gestão e a prestação de serviços, a organização de bancos de dados e o compartilhamento de informações (COSTA et al., 2013).

Saúde

117A mudança ocorrida no modelo de atenção brasileiro insere-se em uma tendência mundial de ênfase nas ações de atenção básica. No SUS, a principal estratégia para essa transição foi a criação do Programa Saúde da Família (PSF), em articulação com outros serviços, visando reduzir a pressão sobre a infraestrutura hospitalar com demandas que poderiam ser resolvidas fora dessa estrutura ou redirecionadas. Segundo Paim et al. (2011), o PSF ajuda a reorganizar as unidades básicas de saúde, com foco nas famílias e comu-nidades, nas ações preventivas e na gestão de doenças crônicas (COSTA et al., 2013).

Considerações finaisNo presente trabalho, abordaram-se alguns dos principais desafios e opor-

tunidades associados às necessidades de saúde no contexto do envelhecimento populacional. Estes podem representar tanto espaços para atuação de políticas públicas quanto dilemas a serem enfrentados pelos sistemas de saúde.

Por seu cunho exploratório, este estudo não pretendeu esgotar as questões abordadas, mas sim apontar condições de contorno a serem aprofundadas em trabalhos posteriores, de modo a construir uma narrativa consistente para embasar a atuação do BNDES no desenvolvimento à saúde do Brasil.

Primeiramente, foram abordadas diversas interpretações sobre a saúde enquanto fenômeno social e econômico. Tendo em vista ser simultanea-mente uma necessidade humana básica, um pré-requisito para o trabalho produtivo e um eixo de criação e difusão de tecnologias, a saúde pode ser considerada um campo privilegiado para a promoção do desenvolvimento. Por esses motivos, converge-se para a busca de uma visão sistêmica da saúde, em que sejam enfatizados os espaços de alinhamento de objetivos sociais e econômicos.

Em seguida, verificou-se que os impactos do envelhecimento populacio-nal sobre a saúde são amplos, profundos e ocorrem em múltiplas frentes. As estimativas apontam para uma generalização do perfil epidemiológico típico dos países desenvolvidos, já observado em diversas nações em de-senvolvimento. Nesse contexto, o fenômeno da multimorbidade parece ser um dos desafios centrais, em conjunto com a crescente participação de doenças crônicas entre as causas de morbimortalidade, com destaque para o câncer, doenças mentais, doenças cardiovasculares e metabólicas. No caso

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brasileiro, outro desafio complexo é tratar a heterogeneidade regional do país na análise das necessidades de saúde.

A respeito das populações idosas, uma das principais questões a con-siderar é a manutenção da funcionalidade. Em virtude da transformação cultural que determina a redução da disponibilidade do trabalho não remu-nerado familiar de cuidado aos idosos, cresce a importância da formação de profissionais dedicados a esse cuidado. Do ponto de vista social, é desejável manter a dignidade que provém da autonomia individual para tomar decisões e gerenciar sua vida. Do ponto de vista econômico, significa manter as pessoas mais produtivas durante mais tempo. A manutenção da funcionalidade é um objetivo do cuidado integral e da atuação preventiva. O fortalecimento da visão sistêmica da saúde pode ser considerado um incentivo para o desenvolvimento de tecnologias e modelagens voltadas para a atenção integral e preventiva.

No contexto do envelhecimento da população, é cada vez mais relevante construir a saúde como sistema integrado. Assim, o fortalecimento do SUS, em conjunto com a assistência suplementar, nos moldes preconizados pela Constituição Brasileira parece adequado às necessidades de saúde futuras. No entanto, a sustentabilidade de um sistema com demandas crescentes é um desafio em todo o mundo, e ainda mais complexo no Brasil.

Em um contexto de restrição orçamentária, as decisões sobre prioriza-ção de investimentos para inovação e incorporação tecnológica de novos procedimentos no sistema público de saúde e as escolhas entre diversos modelos de atenção também devem ser consideradas integrantes desse conjunto de políticas para o desenvolvimento. Dessa forma, a avaliação de tecnologias em saúde deve ser utilizada para compatibilizar a ampliação do acesso com a sustentabilidade do sistema. Por outro lado, a prospecção tecnológica deve ser capaz de direcionar os esforços de inovação, de modo a solucionar necessidades de saúde não atendidas e ampliar a competiti-vidade industrial.

No que tange à atuação operacional do BNDES, o envelhecimento populacional é simultaneamente um desafio e uma oportunidade na visão sistêmica da saúde. Aspectos como o foco no cuidado aos idosos e em ati-vidades preventivas podem ser usados como critérios para priorização de investimentos, em função de seu alinhamento às necessidades de saúde pú-blica e, por consequência, seu elevado potencial de geração de retorno social.

Saúde

119Por fim, dois desafios restam na agenda futura. Um deles é compreender a estrutura do sistema de saúde brasileiro, em aspectos como financiamento e gestão. Os princípios de organização do SUS, em linhas gerais, já contem-plam foco na prevenção de doenças, cuidado integral e universal. Entretanto, cumpre discutir quais os modelos de organização do sistema mais adequados à concretização desses princípios. Com base nessa análise e tendo em vista as projeções do envelhecimento da população brasileira aqui delineadas, poderão ser identificados espaços de atuação do BNDES.

O outro desafio diz respeito à identificação de elementos específicos da demanda por saúde do Brasil, reconhecendo os que mais geram custos para o sistema brasileiro, tanto atualmente quanto no futuro. A prospecção tecnológica, orientada pelas necessidades atuais e futuras da população brasileira, conforme apresentada para o caso europeu, poderá orientar os focos dos financiamentos à inovação, para que estes tenham potencial de, no longo prazo, reduzir os gastos em saúde ou aumentar sua efetividade em aspectos terapêuticos, gerando externalidades positivas para a socie-dade brasileira.

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AgroindústriaBNDES Setorial 44, p. 125-156

* Respectivamente, economistas e gerente do Departamento de Agroindústria da Área Agropecuária e de Inclusão Social do BNDES. Os autores agradecem a colaboração da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – Suínos e Aves, isentando essa instituição de qualquer responsabilidade por incorreções porventura remanescentes no artigo.

Impactos ambientais da suinocultura: desafios e oportunidades

Minoru Ito Diego Guimarães Gisele Amaral*

ResumoA suinocultura é uma atividade que, no Brasil, emprega majoritariamente produtores familiares, o que incentiva a fixação do homem no campo e gera empregos em toda a cadeia produtiva, incluindo produção de insumos veterinários, rações, máquinas e equipamentos e indústria de abate e pro-cessamento. Nos últimos cinquenta anos, a intensificação da produção de suínos no Brasil e nos principais produtores, apesar de possibilitar ganhos de produtividade, levou ao recrudescimento dos impactos ambientais da atividade. Considerando a importância da produção de suínos, este artigo apresenta um breve panorama da suinocultura no Brasil, os impactos am-bientais da atividade e as políticas socioambientais para o setor no Brasil e nos principais produtores, as linhas e programas de apoio do BNDES ao setor e as principais tecnologias mitigadoras dos impactos ambientais mais importantes.

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IntroduçãoO artigo está dividido em sete seções, incluindo esta introdução. A seção

“Panorama da suinocultura no Brasil” mostra de forma breve um quadro dessa atividade no país, que é o quarto maior produtor e exportador mundial de carne suína.

Na seção “Impactos ambientais”, destacam-se como principais efeitos para o meio ambiente o elevado consumo de recursos hídricos e a emissão de dejetos líquidos e gasosos, e algumas tecnologias mitigadoras são apontadas.

“Políticas socioambientais no Brasil e nos principais produtores mun-diais” contém um resumo da legislação que regulamenta a suinocultura na China, na União Europeia e nos Estados Unidos da América (EUA).

Em “Oportunidades (biogás e biofertilizantes)”, são apresentadas as duas principais tecnologias para aproveitamento econômico dos dejetos de suínos.

Na seção “Produtos financeiros do BNDES para apoio à suinocultura”, são indicados os principais produtos para apoio ao setor. E, por último, são feitas as considerações finais.

Panorama da suinocultura no BrasilO Brasil é o quarto maior produtor e exportador de carne suína, estando

atrás de China, União Europeia e EUA.Apesar de ser o quarto maior exportador mundial, seu volume exportado

representa apenas 8% do total transacionado mundialmente. E, embora as exportações brasileiras tenham se expandido 9,7%, no volume, em 2015, os preços baixos internacionais resultaram numa perda de 20,4% no valor das exportações (RAMOS, 2016).

A produção brasileira de carne suína é majoritariamente destinada ao con-sumo doméstico. Em 2015, 84,8% da produção foi absorvida pelo mercado interno. Embora tenha apresentado, em 2015, um volume per capita igual ao mundial – estimado em 15,1 kg/hab./ano –, o consumo de carne suína no Brasil é, contrariamente à média do resto do mundo, inferior ao das carnes bovina e de frango. Enquanto a de frango corresponde a aproximadamente 42% da aquisição familiar de carnes, a carne suína responde por 13% (ABPA, 2016).

Por outro lado, em 2015, a carne suína tornou-se mais competitiva em re-lação à carne bovina e à de frango, pois o valor do suíno reduziu-se em comparação às outras carnes.

Agroindústria

127Genética

O desenvolvimento genético cumpre papel importante no mercado de carnes porque por meio dele é possível obter maior rendimento por carcaça. Há algumas características específicas que os suínos devem apresentar no processo de melhoramento genético. As fêmeas, por exemplo, devem ter ganho de peso médio diário mínimo de 650 g, além de alta prolificidade. Os machos devem ter alto percentual de carne na carcaça e boa conversão alimentar, podendo ser de raça pura, cruzada ou até mesmo de linhas dife-rentes daquelas que deram origem às leitoas.

A capacitação tecnológica em genética suína no Brasil encontra-se mais desenvolvida do que a de frangos. O mercado de material genético no país conta com a participação de empresas brasileiras, públicas e privadas, atuando no aprimoramento das raças de alto valor comercial. A quantidade expressiva de empresas atuantes no setor garante um alto nível de compe-titividade e, consequentemente, qualidade no abastecimento do material genético fornecido aos produtores comerciais de suínos.

A título de exemplificação, na década de 1970, os suínos no Brasil al-cançavam o peso de abate em duzentos dias, com uma taxa de conversão alimentar de 3,5. Atualmente, por meio da utilização de material genético adequado, os animais atingem o peso de abate em menos de 150 dias, e a taxa de conversão alimentar1 encontra-se abaixo de 2,5. Também graças ao desenvolvimento da genética, os teores de gordura da carne suína são cada vez mais reduzidos, o que a torna uma opção consideravelmente mais sau-dável. Os principais frigoríficos de suínos abatem os animais com mais de 70% de carne nas carcaças, o que, em outras palavras, significa carne com baixo teor de gordura (MORAES; CAPANEMA, 2012).

Sanidade animal

Tão importante quanto a existência de grandes rebanhos com boa ge-nética é o cuidado com a sanidade dos animais. Por conta do combate às enfermidades animais em nível mundial, foi criado o Office International des Epizooties (OIE), depois renomeado Organisation Mondiale de la Santé

1 A taxa de conversão alimentar é a relação entre a quantidade de alimento necessária para a produção de 1 kg de peso no animal vivo. Quanto menor a taxa, mais eficiente é o animal.

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Animale (Organização Mundial de Saúde Animal), mantendo a mesma sigla anterior. Suas normas são reconhecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) como referência no tratamento das questões de comér-cio internacional ligadas à saúde animal, e, em última instância, busca-se restringir ou evitar a disseminação de patógenos, além de desestimular a instalação de barreiras sanitárias injustificadas.

No Brasil, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) é a autoridade responsável pela defesa sanitária e por questões de saúde animal. Dentre as doenças que afetam a suinocultura brasilei-ra e geram barreiras às importações de sua carne suína, destacam-se a peste suína e a febre aftosa. Em relação à peste suína, apenas os estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul são considerados zona livre de peste suína clássica. Quanto à febre aftosa, apesar de o Brasil ter 23 estados, além do Distrito Federal, reconhecidos internacionalmente pela OIE como livres da febre aftosa com vacinação, apenas Santa Catarina tem o maior status sanitário da organização, ou seja, é reconhecida como livre da febre aftosa sem vacinação. Como vários países não aceitavam a regionalização sanitária, a importação da carne brasileira estava proibida nesses mercados. Entretanto, com o reconhecimento da regionalização sanitária, Japão, EUA e Coreia do Sul vêm abrindo seus mercados gra-dualmente às importações.

Estrutura da indústria

As líderes do mercado atualmente são a BRF – antiga Brasil Foods S.A. (resultante da fusão da Perdigão e da Sadia) – e a Seara (pertencente à JBS), ambas com atuação nacional. Nesse setor, as cooperativas agropecuárias também se destacam, com atuação principalmente regional. Entre elas, mencionam-se a Aurora, de Santa Catarina, e a Frimesa, do Paraná.

Em relação à estrutura produtiva, a suinocultura brasileira or ga ni za-se de duas formas: sob o sistema integrado, comum também à avicultura, e o independente.

Na região Sul, em especial no estado de Santa Catarina, que é o maior produtor do país, predomina a produção integrada. Essa forma de produção caracteriza-se pela ação integradora de uma empresa abatedora/processadora, que fornece os leitões, a ração, as vacinas, os medicamentos e a assistência

Agroindústria

129técnica ao criador, que se compromete a entregar o suíno pronto para o abate segundo as especificações determinadas pela abatedora/processadora. Esse tipo de acordo, na maioria das vezes, acaba criando uma dependência direta entre os produtores e a empresa.

Contudo, sobretudo em outras áreas do país, alguns produtores optam pelo sistema independente. Nesse arranjo produtivo, não há dependência das empresas abatedoras/processadoras; os produtores se responsabilizam pelos insumos, desenvolvimento e venda do produto. Entretanto, eles estão mais vulneráveis às oscilações do mercado.

Independentemente da forma de produção adotada, as empresas que atuam no setor devem investir nas mesmas coisas: tecnologias para os programas reprodutivos, nutrição, saúde dos animais e qualificação da mão de obra.

Apesar de os dados mais recentes sobre a produção no campo serem do Censo Agropecuário de 2006 (IBGE, 2006), é possível fazer algumas considerações sobre a criação brasileira de suínos, partindo da premissa de que não tenham se verificado grandes alterações nesse período.

Segundo aquele censo, apenas 47.066 estabelecimentos (3% do total) tinham mais de 49 suínos e concentravam 68% do rebanho nacional. Este, provavelmente, era o universo dos produtores comerciais, ou seja, em que a suinocultura era desenvolvida de acordo com o padrão tecnológico domi-nante (MIELE et al., 2013).

Ainda de acordo com Miele et al. (2013), nessa faixa de rebanho, menos de 39% dos estabelecimentos estavam vinculados à indústria por meio de contratos de integração (Tabela 1). A maior concentração desses contratos ocorre na faixa de 501 a 1.500 suínos: nessa faixa, 73% dos estabelecimentos (4.532) estavam integrados à indústria.

A menor participação dos contratos ocorre, por sua vez, entre os criado-res com menos de cem suínos (menos de 6% do total de estabelecimentos), provavelmente em razão de a maior parte deles operar com uma quantidade de suínos abaixo do mínimo exigido pela indústria.

Nas criações acima de 1.501 suínos, há uma queda relativa progressiva da participação dos integrados entre os estabelecimentos, em virtude do maior poder de negociação desses criadores perante a indústria.

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Tabela 1 | Participação da integração na suinocultura, por classe de suínos alojados, Brasil, 2006

Classe de suínos alojados

Total de estabelecimentos

com suínos

Integrados Participação integrados/total

(%)

Participação entre os

integrados (%)Menos de 50/sem declaração

1.457.512 6.618 0 31

De 51 a 100 14.504 756 5 3De 101 a 500 16.064 8.457 53 39De 501 a 1.500 6.177 4.532 73 21De 1.501 a 5.000 1.701 1.006 59 5De 5.001 a 15.000 385 182 47 1De 15.001 a 30.000 61 21 34 0Acima de 30.000 18 4 22 0Total 1.496.422 21.576 1 100

Fonte: Elaboração própria, com base em Miele et al. (2013) e IBGE (2006).

Em relação à distribuição quanto ao porte, 73% dos integrados (15.831 estabelecimentos) tinham um plantel de até quinhentos suínos, ou seja, seriam considerados, atualmente, granjas de pequeno porte.2

Ressalta-se também a importância social da suinocultura: em 2006, 85% do total de estabelecimentos com suínos, mais de 1,27 milhão, eram enquadrados na agricultura familiar (IBGE, 2006). Trata-se de uma atividade que incentiva a fixação do homem no campo e que gera empregos em toda a cadeia produtiva, incluindo produção de insumos veterinários, rações, máquinas e equipamentos e a indústria de abate e processamento.

Impactos ambientaisUso da água

A suinocultura é uma atividade que demanda elevado consumo de água, que é o principal insumo na criação de suínos. Considerando a necessidade crescente de economia de água nas atividades produtivas, o atual estágio de desenvolvimento da suinocultura já enseja preocupação com o uso racional da água.

2 Ver a seção “Oportunidades (biogás e biofertilizantes)” deste artigo.

Agroindústria

131Os principais fatores que interferem no consumo de água são: qualidade da alimentação; estado fisiológico (idade, fase reprodutiva, peso etc.); e os ambientais (temperatura, umidade, vento, espaços abrigados ou não).

De acordo com Fatma (2014), estima-se que o consumo de água por animal ao dia, em cada um dos três ciclos de produção, seria de: 72,9 litros no ciclo completo (CC); 35,3 litros na unidade produtora de leitões (UPL); e 8,3 litros na unidade de terminação (UT).3

Entre as medidas mais adotadas para economia de água na suinocultura, Brasil (2016) menciona a racionalização da dessedentação (oferta de água para beber), a reutilização da água das lagoas de tratamento e o aproveita-mento da água da chuva.

O aumento do consumo de água pela granja nem sempre é causado pela maior ingestão pelo animal; pode ocorrer pelo desperdício nas propriedades em razão do manejo e do tipo de bebedouros (altura, má localização, falhas de funcionamento, ângulo de instalação inadequado dos equipamentos etc.).

A reutilização da água das lagoas de tratamento na limpeza das instalações é um processo cada vez mais adotado pela suinocultura brasileira, possibili-tando reduzir em até 20% o consumo de água da unidade produtiva. Como essa água não pode ser usada na dessedentação, é necessária a construção de uma rede hidráulica exclusiva para essa água.

A utilização de sistemas para coleta de água da chuva por meio da captação via telhado e do escoamento da água captada por meio de calhas, passando por filtros, antes da armazenagem em cisternas, é outro mecanismo de racionalização dos recursos hídricos. A água da chuva pode ser utilizada tanto na limpeza das instalações quanto, caso seja tratada, na dessedentação dos animais.

Produção de dejetosA suinocultura no Brasil, até a década de 1970, era caracterizada pela

pequena concentração de animais nas propriedades, onde os dejetos de suínos não representavam um risco aparente ao meio ambiente, uma vez que os solos dessas propriedades tinham capacidade de absorvê-los, além de serem utilizados em grande parte como adubo orgânico.

3 O CC contempla todas as etapas da produção, desde a aquisição do material genético até a entrega dos suínos para abate na plataforma do frigorífico. A UPL produz leitões até a saída da creche. A UT recebe os leitões de uma UPL e executa as fases de crescimento e de terminação (AMARAL et al., 2006).

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A partir de meados de 1970, a modernização do sistema de produção da suinocultura, sob a forma do regime de criação intensivo e confinado, ao mesmo tempo que permitiu ganhos de escala e produtividade, resultou em um aumento considerável na produção de dejetos suínos.

Os sistemas confinados, base da expansão suinícola, contribuíram para a adoção do manejo de dejetos na forma líquida, o que se tornou um agravante para os problemas de captação, armazenagem, tratamento, transporte e distri-buição de dejetos. Consequentemente, a capacidade poluidora da suinocultura foi intensificada, sendo necessário o manejo adequado de seus resíduos.

Os dejetos são constituídos de esterco, urina, resíduos de ração e água. Sua composição e sua quantidade variam de acordo com o manejo adotado, assim como fatores zootécnicos (tamanho, peso, raça), ambientais (tempera-tura e umidade) e dietéticos (digestibilidade, conteúdo de fibra e vitamina). Um suíno, em média, produz sete litros de dejetos por dia, o que representa a produção de esgoto de cinco pessoas (PERDOMO, 1998). Trata-se de um animal com capacidade de geração de dejetos elevada, o que requer atenção especial para a atividade de suinocultura.

A Tabela 2 apresenta o volume e as diferentes fontes de diluição dos de-jetos. Observa-se que urina e fezes representam os maiores volumes de dejetos, se guidas pela água de higiene e pela perda de bebedouros.

Tabela 2 | Volume e fontes de diluição de dejetos

Categoria dos suínos Fezes e urina (l/dia)

Água de higiene (l/dia)

Perda de bebedouros

(l/dia)

Total (l/dia)

Unidade de produção de leitões (matriz alojada)

19,0 16,0 7,9 42,9

Unidade de terminação (suíno alojado)

6,8 2,8 1,3 10,9

Unidade de ciclo completo (matriz alojada)

55,0 32,0 15,5 102,5

Fonte: Oliveira (2007).

Na Tabela 3, mostra-se a produção de dejetos de acordo com as dife-rentes fases do sistema de produção. O pico da produção de dejetos ocorre durante a lactação, quando a geração de esterco e urina chega a 18 kg/dia e são produzidos 27 litros de dejetos líquidos.

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133Tabela 3 | Produção de dejetos

Categoria animal Esterco + urina (kg/dia) Dejetos líquidos (l/dia)Suínos 4,90 7,0Porca – gestação 11,00 16,0Porca – lactação + leitões 18,00 27,0Cachaço 6,00 9,0Leitões na creche 0,95 1,4

Fonte: Konzen (1980) apud Fernandes (2012).

Impactos ambientais dos dejetosA suinocultura intensiva, dada a alta concentração de animais por área,

gera um volume elevado de dejetos, conforme apontado na seção anterior. Seus principais componentes poluentes são o nitrogênio (N), o fósforo (P) e os metais pesados, como zinco (Zn) e cobre (Cu), além de microrganis-mos fecais patogênicos (COOLS et al., 2001 apud FERNANDES, 2012). O manejo indevido dos dejetos pode provocar graves impactos ambientais sobre a água, a terra e o ar.

Os resíduos suinícolas têm impacto sobre os recursos hídricos, o que pro-voca o processo de eutrofização4 dos corpos d’água, altera a biodiversidade aquática e promove a presença de organismos prejudiciais ao ser humano (acarretando problemas como verminoses, alergias e hepatite) e aos animais (gerando a morte de peixes e aumentando a toxicidade em plantas).

A poluição da água também se manifesta na forma de microrganismos fecais patogênicos, que podem causar sérios riscos à saúde dos homens e dos animais que a consumirem, como leptospirose, tularemia, febre aftosa e peste suína clássica (OLIVEIRA, 1993).

Uma das principais aplicações do dejeto suíno é a fertilização agrícola do solo. Contudo, tal prática, sem o devido controle, gera um grande risco de poluição ambiental, pelos efeitos da infiltração do nitrogênio no solo e do es-corrimento superficial do fósforo (OLIVEIRA; NUNES, 2005).

Outro impacto ambiental da suinocultura é a emissão de gases voláteis pela urina e pelas fezes de suínos. Segundo Lopes, Filho e Alves (2013), o carbamato de amônia (H2NCOONH4) é um composto presente nos dejetos

4 Processo por meio do qual um corpo de água adquire níveis altos de nutrientes.

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suínos, de odor desagradável e com a capacidade de se dissociar nos gases de amônia (NH3) e dióxido de carbono (CO2). A amônia é um gás que provoca efeitos adversos ao ser humano, como irritação ocular, nasal e na pele, além de gerar distúrbios na condução neural do cérebro. Assim, verifica-se que os dejetos da suinocultura também têm impacto direto sobre o conforto da população, na forma de maus odores e proliferação de insetos.

Genova, Pucci e Sarubbi (2015) indicam que a amônia ainda pode pro-vocar a chuva ácida, que tem implicações tóxicas sobre o solo e a água. O dióxido de carbono é um dos gases que causam o efeito estufa, agravando o aquecimento global. Outro gás impactante ao meio ambiente gerado pela suinocultura é o metano (CH4), que é um subproduto da decomposi-ção anaeróbia de material orgânico. De acordo com Lopes, Filho e Alves (2013), trata-se de um gás 21 vezes mais impactante ao efeito estufa que o gás carbônico. Além disso, a suinocultura produz também os gases amônio (NH4), óxido nitroso (N2O) e nitrogênio (N2), que atuam como promotores do efeito estufa.

Principais tecnologias para tratamento dos dejetosPara a minimização dos impactos ambientais da suinocultura, o manejo

adequado dos dejetos é um item fundamental. Mais do que isso, o correto tratamento dos dejetos pode promover oportunidades5 ao setor, como a produção de biofertilizantes e de biogás. A forma do manejo pode variar de acordo com o método de criação de suínos. Oliveira e Nunes (2005) e Brasil (2016) elencam as características de manejo de suínos nos seguintes sistemas: o convencional, o de compostagem, o de criação de suínos em cama sobreposta e o uso de biodigestores.

O método convencional é caracterizado por edificações construídas com piso de concreto ripado, paredes compactas, uso de forro e baias para os animais. Nele, os dejetos são recolhidos internamente nas edificações onde os suínos se encontram, por meio de canais cobertos por barras (em alguns casos com o uso de lâmina d’água), e são encaminhados externa-mente para armazenamento em esterqueiras6 ou lagoas.7 O tratamento dos

5 Esse tema será aprofundado na seção “Oportunidades (biogás e biofertilizantes)”.6 As esterqueiras constituem-se em depósitos que têm por objetivo principal a armazenagem dos dejetos líquidos provenientes de sistemas de criação de suínos (KUNZ; HIGARASHI; OLIVEIRA, 2005).7 Segundo Oliveira, Costa e Troglio (1995), os dejetos devem passar por cinco lagoas de tratamento para a melhor despoluição.

Agroindústria

135dejetos é feito por transformações por meios físico-químicos e biológicos nos locais de armazenamento, modificando sua composição química e a consistência física, para posterior uso agrícola, na própria propriedade ou nas vizinhas.

As lagoas no Brasil, segundo Oliveira e Nunes (2005), são bastante utiliza-das por facilidade de uso e baixos custos. Demandam, porém, grandes áreas, exigem tempos longos de detenção, não combatem inteiramente o processo de nitrificação e emitem odores e gases de efeito estufa, frutos da fermentação anaeróbia, além de atraírem moscas, por serem um sistema aberto.

O sistema de compostagem baseia-se “no processo de oxidação bio-lógica aeróbia e controlada da matéria orgânica, produzindo CO2, calor e um resíduo estabilizado denominado de composto” (OLIVEIRA; NUNES, 2005). Nele, os dejetos líquidos se transformam em composto orgânico de alta qualidade, que, caso atenda à Instrução Normativa 25, de 23 de julho de 2009, do Mapa, pode, após registro, ser vendido como “fertilizante” orgânico (BRASIL, 2016).

O tratamento dos dejetos via sistema de compostagem consiste, basica-mente, na mistura dos dejetos brutos oriundos das edificações convencionais de criação de suínos, em unidades de compostagem constituídas por leitos formados por maravalha,8 serragem ou palha.

Os modelos de unidades de compostagem podem ser dos mais simples até os automatizados, dependendo da escala na qual o processo será implan-tado. Nesse sistema, em virtude da compostagem aeróbia, os odores são fortemente reduzidos, assim como as emissões dos gases metano, amônia, óxido nitroso e nitrogênio. Os efeitos de lixiviação são minimizados ao se fixar o nitrogênio ao composto orgânico, que é seco e pode ser armazenado, fato não possível no método tradicional, que gera dejetos tratados líquidos. As desvantagens estão relacionadas ao custo do substrato, necessidade de monitoramento constante, mão de obra específica e previsão de uma unidade de instalação coberta (BRASIL, 2016).

O sistema de criação de suínos em cama sobreposta pode ser traduzido como um processo de compostagem dentro das instalações onde estão os animais. Nesses locais, há uma camada de substrato sólido (os produtos co-mumente utilizados são maravalha, palha, casca de arroz e bagaço de cana),

8 Maravalhas são raspagens ou aparas de madeira.

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onde os animais despejam seus dejetos. As bactérias dos dejetos degradam a matéria orgânica da cama, e a água dos dejetos é praticamente eliminada na evaporação. Nesse sistema, parte do nitrogênio e do fósforo fica retida na cama, diminuindo a capacidade poluidora. Porém, a cama sobreposta não é capaz de diminuir significativamente a emissão dos gases amônia e óxido nitroso (OLIVEIRA; NUNES, 2005), além de gerar calor adicional ao ambiente, demandando um consumo maior de água.

Por fim, o sistema de biodigestão é constituído de uma câmara hermetica-mente fechada, em que é depositado o material orgânico para decomposição, visando a produção de biogás e de biofertilizante (resíduo do processo de decomposição). Essa câmara (biodigestor) pode ser tanto uma construção quanto um tanque revestido e coberto por manta impermeável, funcionando, no Brasil, em geral, de forma contínua.9

O biogás geralmente é queimado em caldeiras ou usado para mover motores ou produzir energia, sendo o excedente queimado em flares (quei-madores), transformando o metano, presente na composição do biogás, em gás carbônico, menos poluente (BRASIL, 2016).

Outra forma de aproveitar os dejetos de suínos é sua utilização na alimentação animal, especialmente na de bovinos de corte e peixes, pro-porcionando, nesse caso, redução no custo de alimentação desses animais. Apesar de bastante usada no exterior, sobretudo na piscicultura, como essa destinação alternativa dos dejetos suínos é polêmica, pela preocupação de os dejetos servirem como vetor de patógenos e doenças (DIESEL; MIRANDA; PERDOMO, 2002), ela não será detalhada neste artigo.

Políticas socioambientais no Brasil e nos principais produtores mundiais

Políticas socioambientais no BrasilAs políticas socioambientais da suinocultura brasileira seguem as regras

determinadas pela legislação do setor. No caso de produtores exportado-res, as demandas dos mercados espalhados pelo mundo também devem ser respeitadas.

9 Ver seção “Oportunidades (biogás e biofertilizantes)” para mais detalhes sobre o retorno econômico para o produtor.

Agroindústria

137Em relação à legislação brasileira, há normas federais e estaduais a que as empresas devem atender no manejo dos dejetos líquidos e dos re-síduos sólidos.10 A seguir, são comentadas as principais regras aplicáveis à suinocultura.

Quanto aos dejetos líquidos, seu lançamento em efluentes é regulamen-tado pela Resolução Conama 357, de 18 de março de 2005, que dispõe sobre a classificação dos corpos d’água e determina diretrizes ambientais para seu enquadramento, assim como estabelece as condições e os padrões de lançamento de efluentes. Para as águas destinadas ao consumo humano e à preservação do equilíbrio ambiental, os limites máximos tolerados de substâncias poluentes são mais rigorosos. Há também a legislação de cada estado sobre o lançamento de dejetos. Por exemplo, no caso dos produtores de Santa Catarina, as empresas devem seguir o disposto no Código Estadual do Meio Ambiente (Lei 14.675, de 13 de abril de 2009), que regula as ca-racterísticas dos efluentes lançados em corpos d’água.

Os resíduos sólidos são regulados pela Resolução Conama 313, de 29 de outubro de 2002, que classifica os resíduos orgânicos de processo, como sebo e ossos, em classe II ou III, o que significa que os rejeitos do frigorífico devem ter como destino aterro sanitário devidamente licenciado.

Além das normas citadas, Palhares (2008) lista outras legislações am-bientais federais aplicáveis à suinocultura (Quadro 1).

Quadro 1 | Legislação ambiental federal – suinocultura

Legislação DescriçãoDecreto 24.643, de 10 de junho de 1934 Código de Águas.Lei 4.771, de 15 setembro de 1965 Código Florestal.Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981 Estabelece a finalidade e mecanismos

de formulação e aplicação da Política Nacional do Meio Ambiente, constitui o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e institui o Cadastro de Defesa Ambiental e o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).

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10 Tais disposições balizam o processo de licenciamento ambiental realizado pelos órgãos ambientais, que analisam o potencial poluidor do empreendimento, autorizando ou não sua implementação.

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Legislação Descrição

Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente e ao consumidor e dá outras providências.

Resolução Conama 1, de 23 de janeiro de 1986

Estabelece diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impacto Ambiental e Estudo de Impacto Ambiental.

Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997 Institui o Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais.

Lei 9.984, de 17 de julho 2000 Cria a Agência Nacional de Águas (ANA), para implemtentação da Política Nacional de Recursos Hídricos e coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Fonte: Palhares (2008).

Outro ponto relevante das políticas socioambientais são as exigências dos mercados consumidores aos produtos exportados. Para estar apto a acessar certos mercados, o produtor deve seguir diversos parâmetros impostos pelos países importadores, que envolvem questões sanitárias, de meio ambiente, bem-estar animal e boas práticas na indústria. Dessa forma, os produtores exportadores submetem-se a políticas socioambientais ainda mais restritivas que o resto do país.

A adequação ambiental na criação de suínos ocorre de forma heterogê-nea no Brasil: os estados do Sul,11 com elevados níveis de industrialização e concentração de produção, estão em um patamar de implantação mais avançado que o resto do país, que ainda apresenta padrões baixos de eficiên-cia ambiental (PALHARES, 2008). Isso é reflexo da necessidade maior de cuidados com a questão socioambiental, uma vez que a produção intensiva do Sul é geradora de uma grande quantidade de dejetos.

11 De acordo com ABPA (2016), 66,5% dos abates de suínos ocorrem nos estados da região Sul.

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139Políticas socioambientais nos principais produtores mundiaisAs principais características das políticas socioambientais dos maiores

produtores de carne suína do mundo dependem do nível de desenvolvimento de cada país. Nota-se que países desenvolvidos, como os da União Europeia e os EUA, têm regras mais rígidas, enquanto os países em desenvolvimento são mais lenientes com a poluição. Isso se deve ao fato de que as prioridades dos países subdesenvolvidos ainda são questões básicas, como as sociais e as relacionadas à pobreza e ao fornecimento de alimento para a população. Já países desenvolvidos, tendo suprido a maior parte de tais problemas, concentram-se nas questões ambientais, impondo condicionantes e punições mais duras (PALHARES, 2008).

Em relação à China, a maior produtora de suínos do mundo, é importante observar que o método de produção passou por uma grande inflexão nos últimos anos, saindo do modelo familiar para o intensivo. Cerca de 60% de sua produção é realizada em grandes fazendas, enquanto o restante é representado por pequenos produtores. As políticas socioambientais nesse último grupo praticamente inexistem, sendo a produção caracterizada por métodos precários e altamente poluentes.

Já na produção intensiva chinesa, o risco ambiental é elevado em razão da grande concentração animal, que potencializa a geração de dejetos. Atualmente, a prioridade do governo chinês é garantir a expansão da oferta da carne suí-na para atender ao imenso mercado interno, com medidas que favorecem a produção intensiva (GUO; MCORIST; KHAMPEE, 2011), relegando em segundo plano a questão socioambiental. Consequentemente, as políticas socioambientais chinesas são mais precárias que as dos países desenvolvidos.

Nos países da União Europeia, a suinocultura também é dominada pelos grandes produtores, que representam 78% de toda a produção. Observa-se a tendência do aumento da concentração da produção em grandes fazen-das, em detrimento das de menores rebanhos, fruto de intensos subsídios governamentais, que incentivaram a expansão da produção, resultando em unidades mais densas. Outro aspecto da concentração produtiva é a regula-ção ambiental mais demandante, que tornou mais onerosas as adequações às regulações ambientais, proporcionalmente menos custosas aos grandes produtores. Apesar disso, em todos esses países, existem as pequenas fazen-das, cuja importância na produção é maior em países menos desenvolvidos do Leste Europeu (MARQUER; RABADE; FORTI, 2014), como Romênia (62,8%) e Eslovênia (31,4%).

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A legislação ambiental dos europeus segue as demandas particulares de cada país, tradicionalmente voltadas à redução dos impactos ambientais, com o foco na gestão ambiental. Entretanto, nota-se que a legislação é mais rígida nos países do norte da Europa, onde a produção é concentrada e potencial-mente mais poluidora. Neles, há também incentivos monetários dos governos para a diminuição dos impactos ambientais, como subsídios e doações aos produtores para a implantação de medidas mitigadoras da poluição. Além disso, há países, como Holanda, Suécia e Dinamarca, que utilizam taxas ambientais sobre a suinocultura para desencorajar a produção de dejetos. A experiência europeia, com normas ambientais introduzidas nas décadas de 1980 e 1990, além dos avanços técnicos e tecnológicos, demonstra que seus países têm melhorado a eficiência ambiental na suinocultura (OCDE, 2003).

Nas últimas décadas, a suinocultura dos EUA, em busca de ganhos de competitividade, concentrou-se em unidades intensivas de produção. Esse au-mento da densidade de animais expandiu a poluição provocada pela atividade (MIRANDA, 2005). Porém, diferentemente da China e da União Europeia, o governo dos EUA despende menos recursos com subsídios aos grandes produ-tores, desempenhando um papel menos indutor para a intensificação da criação de suínos em grandes e densas unidades (OCDE, 2003). Como resultado, a maior parte das granjas (83%) ainda é operada por grupos familiares, que re-presentam 43% das vendas (USDA, 2014). A legislação ambiental americana é restritiva e rigorosa. Seu marco básico é o Clean Water Act de 1972, que concedeu autoridade ao Environmental Protection Agency (EPA), por meio da National Pollutant Discharge Elimination System (NPDES), para regulamentar a concessão de permissão ao controle de resíduos nas águas. Já a legislação estadual ficou responsável pelos critérios de licenciamento para o lançamento direto de dejetos nas propriedades (WEYDMANN, 2002). Os EUA, como os países da União Europeia, também dispõem de incentivos governamentais para a implantação de programas de melhoria para o manejo de dejetos, por meio do Environmental Quality Incentives Program12 (OCDE, 2003). Observa-se que as políticas socioambientais nos EUA são mais avançadas que as dos países subdesenvolvidos, estando em consonância com as dos países europeus.

Nos quadros 2 e 3, são expostas as principais características das políticas socioambientais dos países da Europa e da América do Norte.

12 Esse programa financia até 75% dos custos de implantação de medidas mitigadoras de poluição (OCDE, 2003).

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141Quadro 2 | Políticas socioambientais da Europa

Bélgica Estipulados níveis máximos de aplicação de nitrogênio (N) e fósforo (P) no solo de acordo com a cultura produzida.Permissão para aplicação dos dejetos no solo somente em algumas épocas do ano.Criado um banco de resíduos para os produtores com falta de área para aplicação.

Dinamarca Exige-se capacidade de armazenagem para 12 meses.40%-50% das áreas agrícolas devem ser cultivadas com culturas de inverno.Deve-se ter uma documentação completa do uso de resíduos como adubo.

França Tem autorização ambiental ou licenciamento ambiental.Estabelece distâncias entre as instalações de suínos e de resíduos em relação a fontes, poços, estradas e residências.É obrigatório o uso de hidrômetros nas instalações.Os sistemas devem estar cercados.Não pode haver mistura entre águas de drenagens e efluentes.Tempo de armazenagem deve ser de quatro meses.Toda forma de aplicação de resíduos no solo deve estar documentada.A fertilização é feita tendo como referência o nitrogênio e o balanço dos nutrientes.Descarga de efluentes em corpos d’água é permitida de acordo com padrões estipulados.

Alemanha Legislação variável de acordo com o estado.Foi estabelecida uma unidade de resíduo (= 80 kg de N).Em áreas que ultrapassavam os limites de fertilização, a suinocultura foi restringida.Manejo nutricional para redução da excreção de N.

Reino Unido Criação de um código de boas práticas agrícolas para conservação dos recursos hídricos.Estabelece distâncias mínimas para aplicação; em áreas de risco, o limite máximo de aplicação de efluentes é de 50 m³/ha/ano.Referencial para aplicação no solo é o N.Tempo de armazenagem deve ser de quatro meses.Estabelece áreas sensíveis e áreas de precaução ao nitrato.

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Holanda Uso como fertilizante é feito com base na quantidade de N ou de P (sendo fósforo o referencial para áreas sensíveis).Produtor recebe uma quota anual de aplicação de resíduo no solo e, se for colocado excesso de N ou P por hectare, deve ser paga uma taxa.A aplicação no solo só é permitida com incorporação do resíduo.Proibido aplicar dejeto em determinadas épocas do ano.Toda forma de aplicação de resíduos no solo deve estar documentada.Incentiva o manejo nutricional ambientalmente correto.Estipula metas para redução da emissão de amônia.Criado um banco de resíduos.Estabelece incentivos financeiros para secagem e o transporte dos dejetos para outras áreas.Estipula prêmios e/ou diminuição de taxas para as melhores propriedades.

Fonte: Palhares (2008).

Quadro 3 | Políticas socioambientais da América do Norte

Estados Unidos Existem diversas leis federais que regulam o manejo de resíduos animais e cada estado tem sua própria legislação.A descarga de efluentes animais em corpos d’águas superficiais é regulada por uma lei federal (Clean Water Act), e cada estado pode estipular seus padrões de lançamento desde que não sejam menos restritivos que o federal.Produtor deve provar, por meio de um projeto, que sua criação não poluirá a água.Os resíduos podem ser aplicados no solo tendo como referência os conceitos agronômicos e a apresentação de um plano de manejo de nutrientes.As instalações de armazenamento e tratamento devem ser revestidas ou de alvenaria.Alguns estados estipularam “zonas de produção animal”.É obrigatória uma nova licença se houver expansão da produção ou construção de novas instalações.O trânsito de animais nas áreas de mata ciliar deve ser controlado ou proibido, dependendo do propósito da mata. A travessia de cursos d’água pelos animais ou o uso desses cursos como bebedouro devem ser restritos e controlados a fim de minimizar o impacto nessas matas (critérios do Serviço de Conservação dos Recursos Naturais).

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Agroindústria

143Continuação

Canadá Existem várias leis que incidem sobre o manejo ambiental da produção, regulando a emissão de odores e gases, o manejo dos dejetos e carcaças, o uso dos dejetos como adubo, o uso do solo, a outorga para o uso da água, os planos de bacias hidrográficas e as zonas sensíveis à qualidade da água.Os resíduos podem ser aplicados no solo tendo como referência os conceitos agronômicos e a apresentação de um plano de manejo de nutrientes.Os profissionais que assinam os planos de manejo de nutrientes devem ter participado de um curso de capacitação relacionado a essa metodologia e serem filiados a associações específicas.Os profissionais ou as empresas que realizam a aplicação dos dejetos no solo devem ter uma capacitação, certificação e licença para essa prática.Dejetos na forma sólida podem ser armazenados a campo desde que medidas sejam tomadas (proteção de nascentes, rios, poços etc.), devendo ser removidos da área anualmente, e a área devendo ser colocada em descanso.Ao transportar dejetos na forma líquida, qualquer derramamento acima de 50 l deve ser reportado ao órgão competente.Instalações de animais, estruturas de armazenagem de dejetos, composteiras etc. devem ser locadas a 100 m de nascentes, rios e poços, e a área deve ser vegetada.Quando é solicitada uma licença ambiental, três possibilidades podem ocorrer: licença aprovada, licença aprovada para um tamanho específico de plantel e licença não aprovada.Cada municipalidade é obrigada a determinar as áreas passíveis de serem utilizadas para produção animal.

Fonte: Palhares (2008).

Oportunidades (biogás e biofertilizantes)Um dos maiores desafios da suinocultura brasileira é como fazer o melhor

aproveitamento econômico dos dejetos da suinocultura.

Como mostrado na seção “Impactos ambientais”, as duas principais soluções tecnológicas para tratar os dejetos de suínos nas propriedades são a compostagem e a utilização de biodigestores.

Nesta seção, analisam-se a avaliação econômica do uso da compostagem e de biodigestores nas granjas e o potencial do mercado de seus principais subprodutos, o biofertilizante e o biogás.

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Avaliação econômica da compostagem e da biodigestãoNa cartilha do Mapa (BRASIL, 2016), foi feito um estudo de viabilidade

econômica de projetos de tratamento de dejetos suínos utilizando essas duas soluções, para diferentes escalas de produção (pequeno, médio e grande) e sistemas produtivos (UPL, UT e CC). Na cartilha, foram consideradas:

· granjas pequenas: 250 matrizes (CC), quinhentas matrizes (UPL) e quinhentos animais (UT);

· granjas médias: quinhentas matrizes (CC), mil matrizes (UPL) e 1.500 animais (UT);

· granjas grandes: mil matrizes (CC), duas mil matrizes (UPL) e qua-tro mil animais (UT).

Nesse estudo, o custo dos projetos de compostagem variou de R$ 170 mil (UT pequena) a R$ 605 mil (CC grande), enquanto o de biodigestão variou de R$ 47 mil (UT pequena) a R$ 593 mil (CC grande). A taxa mínima de atratividade usada no cálculo do valor presente líquido (VPL) foi de 7,5% ao ano, taxa praticada na linha BNDES ABC quando foi feito o estudo (em 2016, essa taxa foi aumentada para 8,5% ao ano, mas essa variação não altera significativamente os resultados obtidos).

O estudo constatou que os investimentos em compostagem geraram re-ceita por meio da produção de fertilizante orgânico e que, nos investimentos em biodigestão, a fonte de receita foi apenas a economia de energia (ou seja, não houve geração de receita por meio da produção de biofertilizante). Consideraram-se as seguintes hipóteses: (a) sem geração distribuída, ou seja, toda a energia elétrica é consumida na granja; (b) com geração distribuída, em que se geram créditos sobre o excedente de energia elétrica produzida; e (c) geração parcial apenas para consumo próprio, ou seja, apenas parte dessa energia é consumida, não aproveitando a capacidade máxima de produção do biogás, usando equipamentos menores e queimando o excedente nos flares.

Como resultado, apontou-se que, independentemente do sistema pro-dutivo adotado, o uso de biodigestores e da compostagem não apresentou viabilidade econômica nas granjas pequenas.

Em relação às granjas de médio porte, o uso de biodigestores se mostrou viável apenas no CC e na UPL (consumo próprio) e o da compostagem,

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145na UPL. Portanto, o uso de biodigestores, nas UPL (sem ser para consumo próprio) e UT, e da compostagem, no CC e na UT, não foi vantajoso.

Por fim, nas granjas de grande porte, com exceção da compostagem na UT, todos os demais projetos foram economicamente atrativos. Os projetos com uso de biodigestores foram mais atrativos nas UPL e UT, e a compos-tagem se mostrou mais vantajosa no CC.

Esses resultados indicaram que, para as granjas grandes e para as granjas médias de CC e UPL, já há incentivo econômico para a adoção dessas solu-ções tecnológicas para o tratamento dos dejetos suínos, havendo necessidade, apenas, de difundir esses resultados entre os criadores, além de fazer os ajus-tes necessários na legislação para incentivá-los a fazer esses investimentos.

Contudo, entre os pequenos criadores e médios terminadores (UT), há necessidade de atingirem a escala mínima em que seja viável a adoção dessas tecnologias e, possivelmente, melhores condições financeiras de crédito. As cooperativas e as integradoras podem ajudar nesse processo, garantindo a aquisição desse aumento de produção. Sem esse apoio prévio, a imposição de leis mais rígidas quanto ao tratamento desses dejetos para esses criadores pode, sem o esclarecimento e a ajuda financeira adequada, expulsá-los do mercado.

Uso e mercado do biogás

Na perspectiva econômica, o biogás é o principal produto dos biodi-gestores. Seus usos principais, nas propriedades rurais, são sua queima em caldeiras de aquecimento e a movimentação de turbinas elétricas ou motores.

No Brasil, existem, em operação ou construção, 14 empreendimentos que utilizam o biogás, a partir de biomassa agroindustrial ou resíduos animais, para a geração de energia elétrica para a rede nacional, com capacidade de produzir até 15.686 kW, representando 0,01% de toda a capacidade de produção nacional (ANEEL, 2012). Esse número, apesar de ainda ser inex-pressivo, mostra que alguns produtores já estão percebendo viabilidade na conexão de sua produção na rede.

Além da queima, o biogás também pode ser vendido a empresas de energia, depois de sua transformação em biometano. O biometano é obtido pela purificação do biogás para a elevação da concentração do metano a 96,5%. Com a Resolução 8, de 30 de janeiro de 2015, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o biometano, especial-mente o oriundo de produtos e resíduos pecuários, agrícolas e agroindus-

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Considerando que cada metro cúbico de dejeto gere entre 0,35 m³ e 0,60 m³ de biogás, que a concentração de gás metano no biogás oscila entre 55% e 75% do total (BRASIL, 2016) e que o rebanho nacional é de 38 milhões de suínos, a suinocultura tem o potencial de produzir até 45.000.000 m³ de biometano por ano. Esse volume representa uma fração irrisória da demanda nacional de gás natural: em 2015, o consumo brasileiro diário desse gás foi de 93.300.000 m³ (PORTAL BRASIL, 2016).

Se usado o valor de venda de gás natural da Companhia de Gás de Santa Catarina (SCGás) como referência para cálculo (SCGÁS, 2009), a comer-cialização de biometano poderia gerar uma receita adicional de até R$ 130 milhões por ano para os criadores.

Uso e mercado dos fertilizantes de origem orgânica

Os fertilizantes são substâncias, de origem natural ou sintética, capazes de fornecer às plantas um ou mais nutrientes essenciais a seu desenvolvi-mento. Os elementos mais importantes utilizados na nutrição das plantas são nitrogênio, fósforo e potássio, sendo, por isso, citados comumente por NPK.

Em 2015, foram vendidos no mercado brasileiro 30.200.000 t de fertilizan-tes, dos quais 21.100.000 t (70% do total) foram importados (ANDA, 2016). No período 2010-2015, o crescimento da demanda foi, em média, de 4,3% ao ano.

Em relação ao consumo de NPK, em 2015, o Brasil consumiu cerca de 5.400.000 t de potássio, 4.700.000 t de fósforo e 3.600.000 t de nitrogênio (IPNI, 2015).

Como visto na seção anterior, enquanto do processo de compostagem se obtém o composto orgânico, ou “fertilizante orgânico”, do processo de biodigestão sobra um resíduo que é o biofertilizante. Esse último, por ser o resíduo da liberação de carbono do material orgânico (para a formação de biogás), apresenta uma concentração maior de NPK e de outros macro e micronutrientes que o composto oriundo da compostagem. O biofertili-zante pode ser diluído em água para ser usado diretamente nas lavouras (fertirrigação), ou passar por processos de secagem/compostagem para ser guardado, ou vendido, na forma sólida (BRASIL, 2016).

Segundo estimativas de Polidoro (2015), e considerando o rebanho suíno de 2014, de quase 38 milhões de cabeças (IBGE, 2006), o Brasil poderia, com

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147o aproveitamento dos dejetos suínos, produzir pouco menos de 4% da deman-da nacional de potássio, 7% da de fósforo e 11% da de nitrogênio em 2015.

Esses números, confrontados à demanda e ao potencial de crescimento da agropecuária brasileira, mostram que há bastante espaço para a expansão do uso de substitutos dos fertilizantes minerais no mercado nacional.

Além disso, estudos recentes demonstram que a mistura física, ou a combinação de materiais orgânicos aos fertilizantes minerais (chamada, caso atenda a alguns requisitos, de fertilizante organomineral), tem, muitas vezes, eficiência nutricional às plantas superior à utilização deles separada-mente. Por essa razão, cresce o uso de adubos orgânicos e organominerais no país, de forma que, para 2016, a previsão do setor é de um crescimento do faturamento de 18% para os fertilizantes orgânicos e de 32% para os organominerais (ABISOLO, 2016).

Ainda de acordo com Abisolo (2016), os fertilizantes orgânicos faturaram, em 2015, R$ 213 milhões, enquanto os organominerais, no mesmo período, faturaram R$ 738 milhões. As vendas totais de fertilizantes foram, no mesmo ano, de cerca de US$ 14 bilhões (ABIQUIM, 2015).

Produtos financeiros do BNDES para apoio à suinoculturaO BNDES dispõe de diversas linhas de financiamento para apoio à pro-

dução e à industrialização de suínos, como a linha de apoio direto à agro-pecuária 4 e à indústria 3. Além disso, o Banco conta com os programas do governo federal para as mesmas finalidades, como o Prodecoop, o Pronamp Investimento e o Pronaf Agroindústria. Mais informações sobre essas linhas e programas podem ser obtidas no site da instituição.

Conforme exposto nas sessões anteriores, a suinocultura é uma atividade de elevado impacto ambiental que requer a adoção de soluções tecnológicas que tenham ação mitigadora e sejam viáveis economicamente.

Entre elas, mencionam-se: o uso racional dos recursos hídricos, por meio do aproveitamento da água da chuva e da instalação de bebedouros que otimizam o consumo de água pelos animais; a instalação de biodigestores; e a produção de biofertilizantes.

O Quadro 4 contém a relação, com um breve resumo, das principais linhas de crédito ofertadas pelo BNDES, diretamente ou por intermédio de agentes financeiros, que podem atender aos criadores de suínos. No site do BNDES, podem ser vistos mais detalhes dessas linhas.

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Constata-se que o Banco dispõe de várias linhas de crédito para apoio financeiro ao setor, incluindo tanto projetos de implantação, ampliação e mo-dernização de unidades produtivas quanto aqueles que apresentam soluções tecnológicas mitigadoras dos impactos ambientais gerados pela suinocultura.

Considerações finaisA intensificação da suinocultura no Brasil, a partir da década de 1970,

por meio do processo de integração com empresas abatedoras/processadoras, trouxe uma série de avanços na cadeia produtiva. Progressivamente, a difusão de novas tecnologias, o desenvolvimento da genética, o aprimoramento da sanidade e as melhorias nas taxas de conversão levaram a incrementos de produtividade que colocaram o Brasil entre os maiores produtores e expor-tadores mundiais de carne suína. A despeito desse processo de intensificação da produção, que ocorreu também nos demais países produtores de carne suína, os impactos ambientais da criação de suínos, que já eram grandes, também foram ampliados.

Como a questão ambiental tem ocupado cada vez mais espaço entre as preocupações da sociedade, há a necessidade de adequar as granjas de suínos às leis cada vez mais rígidas.

Nesse sentido, o artigo mostrou a evolução da política ambiental no Brasil e em alguns países onde a suinocultura é relevante, como na China e em países da Europa e da América do Norte.

No Brasil, os estados da região Sul são os mais avançados na adequação dos suinocultores às novas exigências ambientais, graças à maior intensifi-cação da atividade nessa região.

Dentre os principais impactos ambientais dessa atividade, destacam-se: o alto consumo de água; e a emissão de dejetos líquidos e gasosos. O ele-vado consumo de água, tanto para dessedentação dos animais quanto para a higienização, pode ser reduzido com algumas medidas que envolvem a racionalização da instalação dos bebedouros, o reúso da água e o aprovei-tamento da água da chuva.

Os dejetos de suínos (fezes, urina, resíduos de ração e água) contêm com-ponentes químicos e orgânicos com elevada capacidade poluente nos solos e na atmosfera. O sistema convencional de tratamento de dejetos, baseado em esterqueiras e lagoas de tratamento, apesar da facilidade de uso e baixo

Agroindústria

151custo, provoca impacto ambiental relevante, pois ainda gera contaminação do solo e do ar, além de atrair insetos, por ser um sistema aberto.

Por outro lado, com a adoção de tecnologias mitigadoras, grande parte desses impactos é minimizada, podendo, até mesmo, gerar renda para os produtores.

O processo de compostagem e o uso de biodigestores são as duas soluções tecnológicas mais recomendáveis para o tratamento de dejetos de suínos e já se mostram economicamente viáveis de serem adotadas por médios e grandes criadores, faltando apenas maior divulgação dos resultados espe-rados e das linhas de crédito disponíveis. Para os demais criadores, além da divulgação citada, é necessário estimular o crescimento do tamanho de seus empreendimentos, de forma que possam atingir o porte mínimo em que se torna vantajoso adotar as soluções tecnológicas.

O BNDES dispõe de várias linhas de crédito para atender aos criadores de suínos, em projetos de implantação, ampliação e modernização de uni-dades produtivas, e linhas específicas para adoção das soluções tecnológicas mitigadoras de impactos ambientais e mais adequadas à realidade de cada criador. Essas linhas de crédito contam com taxas atrativas e podem ser aces-sadas diretamente no Banco, ou por intermédio de seus agentes financeiros.

Apesar do elevado impacto ambiental da suinocultura, o setor tem bus-cado soluções tecnológicas mitigadoras; e o BNDES, por meio das linhas de crédito que oferece aos criadores, pode contribuir para a transição da atividade para um patamar mais ambientalmente sustentável. Além disso, trata-se de uma atividade geradora de externalidades positivas: fixação do homem no campo, emprego, renda e divisas com exportações.

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Florestas NativasBNDES Setorial 44, p. 157-196

* Respectivamente, economista e engenheiro do Departamento de Meio Ambiente, da Área de Meio Ambiente do BNDES.

Estimativa de investimentos na capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica e da Amazônia para atendimento ao Novo Código Florestal Brasileiro

Marcos Henrique Figueiredo Vital Martin Ingouville*

ResumoEste artigo estima o montante de investimentos necessário para a expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica e da Amazônia, visando o atendimento de potencial demanda gerada a partir da implementação do Novo Código Florestal Brasileiro, Lei 12.651, de 25 de maio de 2012. Compara-se a demanda esperada por restauração apresentada no Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg) – 12 milhões de hectares – com a capacidade de oferta de mu-das de espécies nativas no Brasil. Em três dos quatro cenários propostos pelo referido plano, observa-se excesso de demanda por mudas. Com base no custo de um “viveiro representativo” do setor, conclui-se que a necessidade de investimentos no setor de produção de mudas de espécies nativas pode variar entre R$ 160 milhões e R$ 540 milhões, dependendo do cenário utilizado.

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IntroduçãoEntre as condições para cumprir o Código Florestal, estão a estruturação

de cadeia de pomares de sementes certificadas1 e de viveiros de mudas de es-pécies nativas e a contratação de prestadores de serviços de reflorestamento.

Por isso, o presente trabalho estima o montante de investimentos neces-sários para que o país possa expandir a capacidade do setor de produção de mudas nativas típicas da Mata Atlântica e da Amazônia de modo a atender ao Novo Código Florestal.

Para tanto, compara-se a atual capacidade instalada de produção de mudas com a capacidade requerida para que as metas nacionais (e compromissos firmados internacionalmente) de restauro sejam cumpridas. Tais metas foram propostas no Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), como parte do processo de regularização ambiental das propriedades rurais brasileiras, e estão relacionadas aos passivos florestais nelas existentes.

O Planaveg estima a necessidade de recuperação de 12,5 milhões de hecta-res de reservas legais e áreas de preservação permanente (APP),2 em áreas da Mata Atlântica, do Cerrado e da Amazônia, cujos passivos ambientais foram levantados em estudo de Soares-Filho et al. (2014), somando 22 milhões de hectares. O plano prevê área de restauro menor do que o passivo total, uma vez que a Lei 12.651/12 permite a compensação de reserva legal.

A recuperação pode ser feita com plantio direto de mudas – foco do presente estudo –, bem como por meio de técnicas de regeneração natural da floresta (com o simples cercamento da área).

O presente trabalho está organizado da seguinte forma: depois desta intro-dução, são expostos, na seção “Base conceitual”, os principais aspectos das recentes alterações no Código Florestal Brasileiro. Em “A cadeia produtiva de mudas de espécies nativas no Brasil: o predomínio de viveiros com espé-cies da Mata Atlântica e a concentração regional da produção”, analisa-se a estrutura de oferta (cadeia produtiva de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica) disponível no Brasil. A seção “Estimativa de demanda por restauro no Brasil depois da revisão do Código Florestal” apresenta cenários possíveis e estudos que estimam a demanda prevista por restauração no país. “Estimativa

1 A Lei 10.711, de 5 de agosto de 2003 define certificação de sementes ou mudas da seguinte forma: “consiste no processo de produção de sementes ou mudas, executado mediante controle de qualidade em todas as etapas do seu ciclo, incluindo o conhecimento da origem genética e o controle de gerações”.2 O plano estima que outros dez milhões possam ser equacionados por meio do mecanismo de compensação.

Florestas Nativas

159da necessidade de investimentos em ampliação de capacidade instalada de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica e da Amazônia” mostra lógica de cálculo e parâmetros que permeiam a estimativa de investimentos neces-sários para expansão da capacidade produtiva de mudas de modo atender à demanda prevista. O artigo finaliza-se com a seção “Conclusões e propostas”.

Base conceitualNa execução do presente trabalho, quatro marcos regulatórios do setor flo-

restal brasileiro merecem atenção: (i) a Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965, Novo Código Florestal Brasileiro; (ii) a Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, Reforma do Novo Código Florestal Brasileiro; (iii) a Lei 10.711, de 5 de agosto de 2003, Lei de Sementes e Mudas; e (iv) o Planaveg.

Os apêndices B e C apresentam alguns novos conceitos definidos na Lei 12.651/12 e na Lei 10.711/03, respectivamente.

O Novo Código Florestal Brasileiro (Lei 4.771/65)A Lei 4.771/65, conhecida como o Novo Código Florestal Brasileiro, foi

marco fundamental ao definir diversos conceitos utilizados até hoje, ainda que modificados pela recente revisão, conforme mostrado no Quadro 1. Dois desses conceitos são as APPs3 e as áreas de reserva legal.

Áreas de preservação permanente

No código de 1965, o conceito de APPs (beira de rio, topo de morro, encostas, nascentes) e suas especificações eram norteados por princípios que priorizavam suas funções ecológicas (atenuar erosão, fixar dunas, formar faixas de proteção, proteger sítios de excepcional beleza, manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas). Alterações na lei reduziram a importância das funções estritamente ecológicas das APPs em favor de outras de caráter socioeconômico.

Áreas de reserva legal

O conceito de área de reserva legal foi instituído em 1965, passando por alterações em 2012, quando se definiu a redação dada na Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, em seu artigo 1:

3 Redação dada pela Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012.

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Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei.

A justificativa para a existência da reserva legal é garantir suprimentos florestais para as gerações futuras. Assim, setores e atividades agrícolas que não têm o percentual de suas fazendas sob a forma de reserva legal confor-me definido em lei estão utilizando recursos no presente em detrimento de gerações futuras.4

A Reforma do Novo Código Florestal (Lei 12.651/12): principais alterações

Duas discussões estiveram no centro dos debates de reforma do Código Florestal Brasileiro: (i) definição das APPs; e (ii) percentuais de reserva legal a serem mantidos em cada bioma.

As áreas de preservação permanente após a revisão de 2012 (área rural consolidada)

A Lei 12.651 define, em seu artigo 66, “área rural consolidada” como aquela que, antes de 22 de julho de 2008, tinha ocupação do homem com edificações, benfeitorias e ati vidades agrossilvipastoris, isto é, relativas à agricultura, à aquicultura, à pecuária e à silvicultura, desenvolvidas em conjunto ou isoladamente. Com a revisão, autorizou--se, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural nessas áreas.

O Quadro 1 apresenta as diferenças entre os percentuais de reserva legal definidos no Código Florestal de 1965 e aqueles definidos a partir da reforma ocorrida em 2012.

4 Setores como pecuária, soja, milho, cana-de-açúcar e algodão são os que mais fazem uso da terra com passivos florestais já estimados.

Florestas Nativas

161Quadro 1 | Reserva legal – comparação entre a Lei 4.771/65 e a Lei 12.651/12

Reserva legal Amazônia/Amazônia Legal Demais locaisLei 4.771/65 35% e 80%, sem contar APP 20%, sem contar APPLei 12.651/12 20%, 35% e 80%, incluindo APP* 20%, incluindo APPLei 12.651/12 – local desmatado até 2008 (área rural consolidada)

0% a 80%, incluindo APP, a depender de tamanho do imóvel, data do desmatamento, existência de zoneamento, tamanho de áreas protegidas no município ou no estado

0% a 20%, incluindo APP, a depender de tamanho do imóvel e data do desmatamento

Fonte: Elaboração própria/Casa Civil.* No caso da Amazônia Legal (área de 5,2 km2 que abrange Acre, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia, Amapá, Mato Grosso e parte do Tocantins). A Amazônia Legal é uma divisão político-territorial que abrange não apenas o bioma Amazônia, mas ainda áreas do Cerrado e outras denominadas “campos gerais”. No caso da Amazônia Legal, o Novo Código Florestal, Lei 12.651/12, define 20% de reserva legal nas áreas de campos gerais, 35% em áreas de Cerrado e 80% no bioma Amazônia.Nota: Os percentuais diferem de bioma para bioma por um espectro amplo de motivos, tais como: a importância fluvial da região, o processo histórico de ocupação de cada bioma, disputas político-regionais, ecologia, preservação de biodiversidade, mudanças climáticas e até mesmo acordos multilaterais firmados pelo país.

Dois pontos da reforma do Código Florestal merecem destaque:

i. a possibilidade de composição de 50% da reserva legal com espé-cies comerciais – passíveis de serem manejadas com a finalidade de obtenção de lucro; e

ii. o cômputo das áreas de APP no cálculo da área de reserva legal.

As alterações nos marcos legais levaram o governo federal a preparar um programa de recuperação da mata nativa, o Planaveg, com o objetivo de estimar o passivo ambiental florestal do país e elaborar cenários de recupe-ração e restauro, em que se apresentam os custos diferentes de recuperação do passivo florestal, conforme explicado na seção “Estimativa de demanda por restauro no Brasil depois da revisão do Código Florestal”.

A Lei de Sementes e Mudas (Lei 10.711/03)A Lei 10.711/03 cria o Sistema Nacional de Sementes e Mudas objetivan-

do garantir a identidade e a qualidade do material genético de multiplicação e de reprodução vegetal produzido, comercializado e utilizado em território nacional.

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Em seu artigo 3o, a Lei 10.711 define as atividades de responsa bilidade do Sistema Nacional de Sementes e Mudas, valendo citar:

i. criação do Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem);

ii. criação do Registro Nacional de Cultivares;

iii. estabelecimento de regras que norteiam a produção de sementes e mudas;

iv. análise de sementes e mudas;

v. definição do conceito de análises de amostras;

vi. normatização das condições para a comercialização de sementes e mudas; e

vii. disposição sobre a fiscalização de atividades relacionadas à coleta de sementes e à produção de mudas.

A lei apresenta diversos conceitos, sendo marco regulatório importante para a expansão de cadeia de sementes e mudas certificadas e de boa qua-lidade, definindo competências e requisitos mínimos para os viveiristas (Apêndice C).

A cadeia produtiva de mudas de espécies nativas no Brasil: o predomínio de viveiros com espécies da Mata Atlântica e a concentração regional da produção

Em 2000, programa conjunto do Fundo Nacional de Meio Ambiente e do Programa Nacional de Florestas estruturou, por meio de editais, oito redes de sementes em todo o Brasil, criando a Rede Brasileira de Sementes e Mudas.5

5 Composta por: (i) Rede Norte de Sementes/Universidade Federal da Amazônia; (ii) Rede de Sementes da Amazônia Meridional/Universidade Federal de Mato Grosso; (iii) Rede de Sementes do Pantanal/Universidade Federal do Mato Grosso do Sul; (iv) Rede de Sementes do Cerrado/Finatec – Universidade de Brasília; (v) Rede de Sementes da Caatinga/Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; (vi) Rede de Sementes da Mata Atlântica/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; (vii) Rede de Sementes Florestais Rio-São Paulo/Fundação Florestal; (viii) Rede Semente Sul/Universidade Federal de Santa Catarina; e (ix) Rede de Sementes do Xingu. A rede de sementes vem sendo implementada e ampliada ao longo do tempo, abrangendo novos biomas.

Florestas Nativas

163As redes têm como objetivo sistematizar informações técnicas acerca dos processos de coleta, produção, clonagem, marcação de matrizes, plantio e outras técnicas relacionadas aos processos de restauração.

Em 2015, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) produziu documento em que reúne as informações contidas nos relatórios apresen-tados pelas redes regionais de sementes, analisado nas subseções seguintes (IPEA, 2015).

Aspectos regionais da produção de sementes e mudasDe acordo com Ipea (2015), ainda que a cadeia de produtores de mudas e

sementes estenda-se por todo o território nacional (em razão da necessidade de coleta de sementes), o setor é bastante regionalizado, de acordo com cada bioma, e concentrado na região Sudeste (Figura 1).

Figura 1 | Distribuição regional de viveiros por unidade da Federação e bioma (número de viveiros)

Fonte: Ipea (2015).

Na região Norte (bioma Amazônia), é possível notar pequena quantidade de viveiros distribuídos de modo disperso.

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Figura 2 | Concentração de viveiros nas regiões da Mata Atlântica

Fonte: Ipea (2015).

Outro modo de perceber essa concentração é olhar a quantidade de viveiros que participaram da pesquisa do Ipea, de acordo com a região do país em que se inserem, conforme Gráfico 1.

Fica clara a predominância de viveiros na região Sudeste, o que favorece a recuperação de áreas da Mata Atlântica. O número de viveiros nesse bioma é quase cinco vezes o número de viveiros na Amazônia. Ressalta-se, ainda, a inexistência de viveiros situados no bioma Pantanal.

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165Gráfico 1 | Distribuição de viveiros por região, Brasil, 2014

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Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Fonte: Elaboração própria, com base em Ipea (2015).Nota: Os dados da figura não contemplam todos os viveiros nacionais, somente a amostra utilizada pelo Ipea.

Produção e capacidade instalada de produção de mudas de espécies nativas no Brasil

A capacidade instalada de sementes e mudas, por região, de acordo com Ipea (2015), é apresentada na Tabela 1.

Tabela 1 | Capacidade total instalada de mudas, Brasil, 2014

Região Mudas por ano (milhões)

Número de viveiros (unidades)

Capacidade média (milhares)

Norte 11,2 25 447,7Nordeste 11,8 27 442,3Sudeste 73,6 97 759,0Sul 32,4 47 689,1Centro-Oeste 13,0 31 420,1Total 142,0 227 626,3

Fonte: Ipea (2015).

Conforme Tabela 1, é notório que o Sudeste não apenas tem a maior quantidade de viveiros, como também a maior capacidade de produzir mu-das por ano (quase 50% de toda a capacidade instalada). Adicionalmente, pode-se observar que os viveiros das regiões Sul e Sudeste são maiores do

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que os das outras regiões (apresentando capacidade média por viveiro ao redor de 750 mil mudas por ano).

O estudo constata, ainda, que a cadeia operava, em 2014, com baixo grau de utilização de capacidade (Tabela 2).

Tabela 2 | Produção, capacidade produtiva e nível de utilização da capacidade, Brasil, 2014

Região Capacidade instalada (milhões de mudas/ano)

Produção anual (milhões)

Capacidade ociosa (%)

Norte 11,2 4,3 61,6Nordeste 11,8 3,7 68,7Sudeste 73,6 31,8 56,8Sul 32,4 10,9 66,3Centro-Oeste 13,0 6,2 52,5Total 142,0 56,9 60,0

Fonte: Ipea (2015).

Em média, 60% da capacidade instalada de produção de mudas no país não está sendo utilizada. Do ponto de vista econômico, isso permite que a demanda possa crescer no curto prazo sem pressionar o preço das mudas. No entanto, se a demanda por mudas triplicar (conforme alguns cenários do Planaveg), o crescimento da capacidade instalada será fundamental para manter a estabilidade de preços no respectivo segmento.

A partir da reforma do Código Florestal, 50% das reservas legais podem ser restauradas com espécies comerciais, incluindo exóticas. Nesse caso, parte da reserva legal torna-se um ativo, passível de obter benefícios pri-vados com o manejo florestal, reduzindo, entretanto, as funções ecológicas da reserva legal e, com isso, seus benefícios sociais.

Tal fato é importante para fins de cálculo, posto que, se as reservas legais forem recompostas 50% com espécies comerciais, a demanda esperada por mudas de espécie nativas reduz-se à metade.

Capacidade instalada para a produção de mudas em diferentes biomas: a predominância do segmento de mudas e sementes da Mata Atlântica e o déficit de capacidade para restauro de outros biomas

Antes do estudo realizado pelo Ipea, toda informação sobre viveiros estava contida nos relatórios da Rede Nacional de Sementes e Mudas. Tais

Florestas Nativas

167relatórios, como apontado por Ipea (2015), não se encontram devidamente sistematizados nem no que tange à uniformidade de conteúdo, nem no que concerne à atualização dos dados ao longo do tempo.

Feita a ressalva e sem prejuízo dos argumentos – quais sejam: (i) predo-minância de viveiros na Mata Atlântica, em detrimento de outros biomas; e (ii) concentração de viveiros nas regiões Sul e Sudeste –, apresenta-se, em seguida, retrato da capacidade de restauro de espécies nativas nos biomas analisados, tendo como referência bibliográfica os relatórios originais das redes de sementes.

Para fins de análise, Martins (2011) classificou os viveiros, por porte, segundo a Tabela 3.

Tabela 3 | Categorias de viveiros por porte/escala de produçãoCategoria Capacidade instalada (unidades de mudas/ano)Micro x < 10.000Pequeno 10.000 < x < 100.000 Médio 100.000 < x < 1.000.000Grande x > 1.000.000Fonte: Elaboração própria, com base em Martins (2011).

Para o entendimento da escala de produção a que se refere a Tabela 3, viveiros da indústria de papel e celulose apresentam capacidades instaladas que podem variar de dez milhões a trinta milhões de mudas de eucalipto por ano.

De modo geral, um viveiro de grande porte no Brasil tem, em média, capacidade de produção entre dois milhões a três milhões de mudas por ano. Tais viveiros estão concentrados em São Paulo e no Rio de Janeiro, e no Rio de Janeiro a presença do setor público e do terceiro setor é proporcionalmente maior do que as iniciativas privadas encontradas no estado de São Paulo, onde 70% dos viveiros são de propriedade privada (MARTINS, 2011).

A Tabela 4 estima a capacidade de produção de mudas do Cerrado e da Amazônia, entre outros biomas, admitindo que o número de viveiros em cada bioma (Figura 1) é proporcional à capacidade instalada de produção de mudas no mesmo bioma.

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Tabela 4 | Capacidade de produção de viveiros com espécies nativas em diferentes biomas brasileiros

Bioma Capacidade de produção de mudas (milhões de mudas/ano)

Número de viveiros (unidades)

Mata Atlântica 72,2 125Cerrado 38,1 66Amazônia 15,0 26Caatinga 10,4 18Pampa 6,3 11Pantanal 0,0 0Brasil 142,0 246

Fonte: Elaboração própria, com base em Ipea (2015).

A capacidade estimada de produção de mudas da Mata Atlântica é muito similar à capacidade de produção da região Sudeste (explicitada na Tabela 2), onde o bioma é predominante. Conforme Tabela 4, 50% da capacidade de produção de mudas (72 milhões de mudas por ano) está concentrada no bioma Mata Atlântica, enquanto o bioma Amazônia tem apenas 10,5% da capacidade de produção de mudas do país.

Capacidade de produção de mudas da Mata Atlântica

Até que seja implantada madura indústria de pomares certificados capazes de produzir, em qualquer região, diferentes espécies endêmicas de mais de um bioma, por questões logísticas, os viveiros ainda necessitam estar inseridos no bioma de sua especialização, para que lá sejam colhidas sementes e mudas.

Remanescentes do bioma Mata Atlântica (mapas e imagens de satélite são apresentados no Apêndice D) estão presentes em toda extensão do litoral brasileiro, particularmente, nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul.

O Cerrado brasileiro: uma análise introdutória e qualitativa

Ainda que as estimativas desenvolvidas no presente estudo tenham como foco o restauro dos biomas Mata Atlântica e Amazônia, inclui-se um breve panorama da relevância do Cerrado brasileiro.

Ademais, vale ressaltar que parte do passivo a ser restaurado (seis mi-lhões de hectares) encontra-se em região de Cerrado. Entretanto, Instituto Escolhas (2016) foca nas regiões mencionadas, a fim de facilitar os cálculos.

Florestas Nativas

169De acordo com o portal da Rede de Sementes do Cerrado: “O Cerrado ocupa uma área de aproximadamente 204 milhões de hectares, equivalente a 22% do território nacional. O clima caracteriza-se por duas estações bem definidas, uma seca (de maio a setembro) e outra chuvosa”.

A Figura 3 ilustra a importância ecológica e territorial do bioma. Também a importância econômica, na produção de carvão vegetal para fabricação de ferro, ligas e aço no estado de Minas Gerais, é de conhecimento público.

Ainda naquilo que define as características do bioma, em seu portal, a Rede de Sementes do Cerrado afirma:

A vegetação é considerada uma formação savânica mas com uma grande variação de fisionomias ou paisagens. Estas variam de Matas de Galeria e Ciliares a Campos Limpos, passando por Campos Sujos, o Cerrado no sentido restrito da palavra e o Cerradão. Ainda existem outras paisagens em situações específicas, tais como as Matas Decíduas sobre solos mais férteis e os Campos Rupestres de Altitude.

Figura 3 | Área de Cerrado no Brasil

Fonte: Portal da Rede de Sementes do Cerrado.

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Segundo a Rede de Sementes do Cerrado e a Rede de Sementes Xingu, em dados disponibilizados em seus portais, existiam, em 2014, 66 viveiros de espécies nativas do Cerrado, com capacidade de produção de 38 milhões mudas por ano.

Conforme Tabela 4, fica evidenciada a importância do referido bioma, que pode representar até um terço de toda a capacidade instalada de viveiros do país.

Estimativa de demanda por restauro no Brasil depois da revisão do Código Florestal

De acordo com Brasil (2014), havia, em 2014, no Brasil, passivo florestal de aproximadamente 21 milhões de hectares (déficit de 16,8 milhões em re-servas legais e de 4,8 milhões em APPs). Segundo Soares-Filho et al. (2014), desses 21 milhões, aproximadamente nove milhões poderiam ser compensa-dos com a aquisição de cotas de reserva ambiental (CRA), restando, assim, outros 12 milhões de hectares a serem necessariamente restaurados (existem, ainda, outros 1,7 milhão de hectares em unidades de conservação privadas que poderiam ser adquiridos, de tal sorte que o mínimo a ser restaurado é de 10,3 milhões de hectares). Ressalta-se que a compensação florestal não é uma obrigação, portanto, a área a ser restaurada pode ser superior a 10,3 milhões, caso o proprietário rural opte por não adquirir CRAs. Adicionalmente, nem toda área a ser recuperada necessitará de plantio efetivo, sendo parcialmente regenerada com técnicas de cercamento ou com a simples regeneração livre.

No âmbito das conferências das partes signatárias da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, firmou-se compromisso de restaurar os mesmos 12 milhões previstos no Planaveg (como parte da contribuição brasileira à redução de emissões de gases de efeito estufa). Assim, o restauro de áreas de passivo ambiental florestal de reserva legal e APP transcende a questão doméstica de conformidade legal com o Novo Código Florestal, elevando-se ao status de “compromisso internacional” perante a Organização das Nações Unidas (ONU).

Brasil (2014) propõe diferentes cenários com distintas combinações de técnicas de restauro. Tais cenários serão utilizados para fins de cálculos pro-postos na seção “Estimativa da necessidade de investimentos em ampliação

Florestas Nativas

171de capacidade instalada de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica e da Amazônia” e são apresentados na Tabela 5.

Tabela 5 | Cenários de restauração, por técnica (%)

Cenário Plantio total (1.666 mudas/ha)

Alto enriquecimento (800 mudas/ha)

Baixo enriquecimento

Regeneração natural (com cercamento)

Regeneração natural (sem cercamento)

Cenário 1 50 15 15 10 10Cenário 2 40 15 15 15 15Cenário 3 30 15 15 20 20Cenário 4 20 15 15 25 25

Fonte: Elaboração própria, com base em Brasil (2014).

Ainda de acordo com Brasil (2014), o referido passivo florestal brasileiro concentra-se nas bordas da Amazônia, por quase toda a extensão da Mata Atlântica e no sul do Cerrado, onde a ocupação agrícola é maior. Segundo o plano, o passivo ambiental de reserva legal e APPs encontram-se distri-buídos conforme Tabela 6.

Tabela 6 | Passivo florestal por bioma, Brasil, 2015 (milhões de hectares)

Bioma Passivo total Reserva legal APP Amazônia 8,0 7,0 1,0Mata Atlântica 6,0 4,5 1,5Cerrado 5,0 3,3 1,7Outros 2,0 1,4 0,6Total 21,0 16,2 4,8Fonte: Elaboração própria, com base em Brasil (2014).

Instituto Escolhas (2016) aponta que a maior parte da área a ser res-taurada no país (aproximadamente 70%) concentra-se na Mata Atlântica e na Amazônia, e ambas têm similitudes no que tange a espécies arbóreas, a despeito de diferenças de solo e de velocidade de crescimento (os solos da Amazônia são menos férteis, porém as condições pluviométricas e de luminosidade propiciam rápido crescimento das árvores). Indica também que 90,5% do passivo total encontra-se circunscrito aos biomas da Mata Atlântica, da Amazônia e do Cerrado. Portanto, a resolução do passivo nesses três biomas é fundamental para cumprir as metas nacionais.

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As figuras 4 e 5 ilustram as áreas a serem restauradas na Amazônia e na Mata Atlântica, respectivamente.

Figura 4 | Área a ser restaurada na Amazônia

Fonte: Instituto Escolhas (2016).

Figura 5 | Área a ser restaurada na Mata Atlântica

Fonte: Instituto Escolhas (2016).

Florestas Nativas

173A revisão do Código Florestal reduziu o passivo florestal a ser restaurado de cinquenta milhões para 22 milhões de hectares, dos quais 16 milhões em reservas legais e cinco milhões em APPs (SOARES-FILHO et al., 2014).

Apontam-se as seguintes principais alterações responsáveis por essa redução:

i. permissão do cômputo das APPs no cálculo da reserva legal;ii. isenção para pequenas propriedades rurais (abaixo de quatro mó-

dulos fiscais) de restaurar suas reservas legais;iii. redução da área de reserva legal para 50% na Amazônia Legal (ante

os 80% anteriormente preconizados); eiv. revisão dos conceitos teóricos de APP, reduzindo suas funções eco-

lógicas e reduzindo efetivamente a área a ser restaurada.

Estimativa da necessidade de investimentos em ampliação de capacidade instalada de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica e da Amazônia

Para atender à suposta demanda por restauração – 12 milhões de hectares previstos em Brasil (2014) –, pode ser necessária a expansão da atual capa-cidade produtiva de mudas e sementes do país (já analisada em “A cadeia produtiva de mudas de espécies nativas no Brasil: o predomínio de viveiros com espécies da Mata Atlântica e a concentração regional da produção”), dependendo do grau de compromisso da sociedade em manter-se em con-formidade com o Código Florestal.

A presente seção compara a demanda por mudas para restauro na Mata Atlântica e na Amazônia (seção “Estimativa de demanda por restauro no Brasil depois da revisão do Código Florestal”) com a capacidade insta-lada (seção “A cadeia produtiva de mudas de espécies nativas no Brasil: o predomínio de viveiros com espécies da Mata Atlântica e a concentração regional da produção”), formulando as seguintes questões:

i. É possível cumprir o prazo de recuperação (até 2030) com a atual capacidade instalada de viveiros em cada bioma?

ii. Qual deve ser a expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas, por bioma, para atender à demanda por restauro prevista no referido bioma?

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iii. Qual a necessidade de investimentos para expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas para atender à demanda por restauro em cada um dos biomas brasileiros?

Tais questões foram respondidas na forma de breves exercícios algébri-cos, cujas hipóteses e premissas são as mesmas adotadas pela literatura já referenciada – Instituto Escolhas (2016) –, sendo necessário, para o pleno entendimento dos cálculos, apenas apresentar os parâmetros de densidade de mudas por hectare restaurado, conforme Tabela 7.

Tabela 7 | Número de mudas utilizadas em função da técnica empregada

Técnica Número de mudas por hectare Plantio total 1.666Alto enriquecimento 800Baixo enriquecimento 250Cercamento 0

Fonte: Instituto Escolhas (2016).

Mata Atlântica

Conforme Tabela 4, a capacidade anual de produção de mudas de espécies da Mata Atlântica no país seria de aproximadamente 72 milhões mudas por ano. O passivo florestal da Mata Atlântica foi estimado em seis milhões de hectares (Tabela 6), mas presume-se que parte relevante (56%) desse pas-sivo seja solucionada pela compensação, por meio da aquisição de CRAs6 (SOARES- FILHO et al., 2014).

Se aplicado o mesmo percentual (56%) sobre o passivo da Mata Atlântica, seriam solucionados 3,3 milhões de hectares de passivo pela aquisição de reservas legais em outras áreas, restando 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica a serem efetivamente restaurados.

O número de mudas necessário para reflorestar essa área dependerá da técnica de restauração utilizada.

6 Ver Lei 12.651/12.

Florestas Nativas

175É possível cumprir o prazo de recuperação (até 2030) com a atual capacidade instalada nas regiões da Mata Atlântica?

Considerando as três primeiras técnicas de restauro citadas na Tabela 7 e a capacidade de produção de mudas para o restauro da Mata Atlântica (Tabela 4), a Tabela 8 indica o tempo necessário para reflorestar 2,7 mi-lhões de hectares da Mata Atlântica caso cada técnica de restauro seja aplicada isoladamente.

Tabela 8 | Demanda por mudas e quantidade de anos necessários para restaurar 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica

Técnica Mudas por hectare

Hectares a restaurar (milhões)

Demanda por mudas (bilhões)

Capacidade instalada (milhões)

Anos

Plantio total 1.666 2,7 4,5 72 62Alto enriquecimento

800 2,7 2,1 72 30

Baixo enriquecimento

250 2,7 0,7 72 9

Fonte: Elaboração própria, com base em Brasil (2014).

De acordo com os cálculos apresentados na Tabela 8, no cenário em que são restaurados 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica considerando a utilização isolada de cada uma das diferentes técnicas de plantio, é possível concluir:

i. Com a utilização da técnica do plantio total e com a atual capacidade instalada no bioma, o Brasil não conseguiria cumprir as metas esta-belecidas, levando 62 anos para que todo o restauro fosse efetivado.

ii. Com a técnica de alto enriquecimento, o país levaria aproximadamen-te trinta anos para recompor os passivos do bioma Mata Atlântica.

iii. Com baixo enriquecimento, o país levaria nove anos para recompor 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica.

Esse cálculo é meramente ilustrativo, uma vez que não é esperado que a totalidade dos processos de restauro seja realizada com apenas uma úni-ca técnica de reflorestamento. O mais provável é que seja utilizada uma combinação dessas técnicas. De fato, o Planaveg constrói cenários em que diferentes combinações de técnicas de restauro são utilizadas.

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Convida-se o leitor a resolver o exercício com a utilização de outras combinações dos três casos apresentados.

Qual deve ser a expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica para atender à demanda por restauro prevista no referido bioma?

Conforme exercício cujos resultados são apresentados na Tabela 9, a demanda anual por mudas necessária para cumprimento das metas definidas em Brasil (2014) pode variar entre extremos,7 desde 66 milhões de mudas por ano (Cenário 4) até 133 milhões de mudas por ano, dependendo da combinação de técnicas de restauro utilizada.8

Para chegar a esses números, utilizaram-se os cenários elaborados pelo Planaveg (em que são definidas diferentes combinações de técnicas de restauro para cada cenário) conforme Tabela 5, a capacidade instalada de produção de mudas estimada na Tabela 4, e o prazo, definido pelo Planaveg, de vinte anos.

Ou seja, para reflorestar 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica uti-lizando o mix de técnicas do Cenário 1, serão necessários 2,6 bilhões de mudas, ou 133 milhões de mudas por ano (considerando vinte anos, o prazo definido pelo Planaveg). Comparando esse valor com a capacidade existente, calcula-se o déficit de capacidade instalada para cada cenário estabelecido. A Tabela 9 resume os resultados.

Tabela 9 | Demanda esperada e capacidade instalada (cenários Planaveg)

Cenário Demanda anual por mudas (milhões) Capacidade instalada Diferença Cenário 1 133,7 72 61,7Cenário 2 111,2 72 39,2Cenário 3 88,7 72 16,7Cenário 4 66,2 72 (5,7)

Fonte: Elaboração própria, com base em Brasil (2014).

Percebe-se que há excesso de demanda em três dos quatro cenários propostos e constata-se:

7 Esses valores extremos foram calculados apenas com finalidade teórica, com objetivo de mostrar não apenas os cenários em que pode ocorrer excesso de demanda, mas também a importância da necessi-dade de regulação explícita tanto no que concerne à área total a ser restaurada quanto no que tange à combinação de técnicas que será utilizada.8 Tal fato pode levar à elevação do preço das mudas e sementes e/ou à necessidade de expansão da capacidade de produção.

Florestas Nativas

177i. Se todo o passivo no bioma Mata Atlântica fosse restaurado com o mix de técnicas de restauração definido pelo Cenário 1 do Planaveg, a demanda anual por mudas de espécies nativas da Mata Atlântica excederia a capacidade de oferta (72 milhões de mudas/ano) em 61,7 milhões de mudas por ano. Ou seja, seria necessário ampliar em mais que 85% a capacidade atual de produção de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica.

ii. Apenas no cenário em que 50% do passivo da Mata Atlântica é re-cuperada com o uso de regeneração natural da floresta (Cenário 4), técnica que não demanda produção de mudas, a capacidade insta-lada de produção de mudas no bioma seria suficiente para atender à deman da prevista.

Conforme seção “A cadeia produtiva de mudas de espécies nativas no Brasil: o predomínio de viveiros com espécies da Mata Atlântica e a concentração regional da produção”, são raros os viveiros de grande porte, com capacidade em torno de três milhões de mudas por ano. A capacidade média dos viveiros do Sudeste é em torno de 750 mil mudas por ano. Com base nessas informações, dividiu-se o excesso de demanda anual estimada em cada cenário pela capacidade de três “viveiros representativos”, com três escalas distintas: 750 mil mudas por ano, 1,5 milhão de mudas por ano e três milhões de mudas por ano (escala do maior viveiro privado do país).

O resultado obtido é a quantidade de viveiros que deve ser implantada para que a demanda esperada seja atendida. A síntese do referido exercício é exibida na Tabela 10.

Tabela 10 | Número de viveiros, variando porte e cenários de demanda

Cenário Excesso de demanda

Viveiros representativos a serem construídos750 mil mudas

por ano1,5 milhão de

mudas por anoTrês milhões de mudas por ano

Cenário 1 61.717.500 82 41 21Cenário 2 39.226.500 52 26 13Cenário 3 16.735.500 22 11 6Cenário 4 (5.755.500) (8) (4) (2)

Fonte: Elaboração própria.

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A observação da Tabela 10 permite afirmar que:

i. No Cenário 1 do Planaveg, seria necessária a implantação de 21 viveiros de grande porte (três milhões de mudas por ano), ou 41 viveiros de médio porte (1,5 milhão de mudas por ano), ou 82 viveiros de pequeno porte (750 mil mudas por ano). Os autores atribuem maior probabilidade ao cenário de implantação de grande número de pequenos viveiros em contraposição ao cenário onde 21 viveiros com capacidade para produzir três milhões de mudas seriam implantados. Uma combinação de viveiros de portes distintos também é esperada.

ii. Nos cenários 2 e 3 do Planaveg – em que menor quantidade de mudas é demandada – a quantidade de viveiros pode variar do mínimo de seis viveiros de grande porte (Cenário 3) ao máximo de 52 viveiros de pequeno porte (Cenário 2). Novamente, uma combinação linear com maior peso de viveiros de pequeno porte parece ser a conclusão mais provável.

iii. Naturalmente, no Cenário 4, em que não existe excesso de demanda, a capacidade já instalada seria suficiente para atender à demanda pe lo restauro dos 2,7 milhões de hectares de passivo florestal do bioma Mata Atlântica.

Qual a necessidade de investimentos para expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Mata Atlântica para atender à demanda por restauro de 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica?

Para obtenção do custo de expansão da cadeia produtiva de mudas da Mata Atlântica, multiplicou-se o número de viveiros que precisam ser implantados pelo custo de implantação de um viveiro green field com ca-pacidade para produção de três milhões de mudas por ano. Sob a hipótese de retornos constantes de escala, obteve-se o custo dos viveiros com capa-cidade para 1,5 milhão de mudas por ano e para 750 mil mudas por ano, respectivamente.

Florestas Nativas

179Tabela 11 | Custo de implementação de um “viveiro representativo” com capacidade para produção de três milhões de mudas

Itens Valor (R$)Terreno 1.500.000,00 Alojamento (cozinha/banheiro/quartos/lavanderia) 300.000,00 Casas (morador fixo/administrador/engenheiro) 300.000,00 Cercamento e topografia 80.000,00 Terraplanagem 120.000,00 Galpão 800 m2 (pré-fabricado) 150.000,00 Câmara fria (com instalação elétrica) 50.000,00 Irrigação (incluindo projeto, rede, material e filtros) 180.000,00 Poço artesiano 50.000,00 Cisterna 70.000,00 Casa de vegetação – 2.000 m2 400.000,00 Fossa e filtro 80.000,00 Alvenaria do galpão – 120 m2 300.000,00 Sementeiras e canteiros 250.000,00 Equipamentos de escritório 50.000,00 Insumos de produção – vasos/tubetes/citrus/caixas/sementes/substrato 300.000,00 Ferramentas 30.000,00 Um veículo 4 x 4 100.000,00 Dois microtratores 70.000,00 Total 4.380.000,00 Fonte: Elaboração própria, com base em informações obtidas com empresa do setor pelos autores para a realização deste trabalho.

O número de viveiros foi obtido na Tabela 10; e o custo de implantação de viveiro com capacidade para produção de três milhões de mudas, estimado em aproximadamente R$ 4,4 milhões.

Alguns fatores levaram os autores a validar a hipótese de inexistência de retornos crescentes de escala. Optou-se pela hipótese de retornos constantes de escala. A hipótese justifica-se, pois, conforme Tabela 11, 70% dos custos de implantação referem-se ao terreno e a edificações (o custo fixo elevado diminui a possibilidade de redução do custo médio de longo prazo, pois, sempre que a quantidade produzida aumentar, serão necessários maiores terrenos e, portanto, aumentará também o custo).

A Tabela 12 apresenta os resultados.

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Tabela 12 | Custo de expansão da cadeia produtiva da Mata Atlântica para atendimento ao Novo Código Florestal (R$ milhões)

Cenário Investimentos Cenário 1 92,4Cenário 2 57,2Cenário 3 26,4Cenário 4 (8,8)

Fonte: Elaboração própria.

O investimento em novos viveiros na Mata Atlântica pode variar entre R$ 24,5 milhões e R$ 90,5 milhões, dependendo do cenário que se observar, a posteriori.

Essas estimativas levam em conta apenas a necessidade de mudas para atender à demanda por recomposição, ou seja, o investimento necessário para expandir a capacidade produtiva de mudas da Mata Atlântica (Capex). Não se contabilizam os custos para restaurar o passivo, como equipes de engenheiros florestais, técnicos em reflorestamento, entre os diversos outros componentes operacionais. Estimativas do custo de restauro, que incluem os benefícios econômicos do manejo de 50% da reserva legal, calculando o Valor Presente Líquido (VPL) dos projetos de restauro de reservas legais, podem ser encontradas no estudo desenvolvido por Instituto Escolhas (2016).

Os exercícios foram repetidos para o bioma Amazônia, mantidas as mesmas premissas, hipóteses e metodologia de cálculo dos exercícios re-solvidos para o bioma Mata Atlântica. Vale lembrar que os exercícios foram desenvolvidos para esses dois biomas em consonância com as premissas adotadas por Instituto Escolhas (2016).

AmazôniaÉ possível cumprir o prazo de recuperação (até 2030) com a atual capacidade instalada de viveiros existente na Amazônia?

De acordo com a Tabela 4, a Amazônia tem capacidade instalada para produ-ção de apenas 15 milhões de mudas por ano, distribuída em apenas 26 viveiros.

Sob as mesmas hipóteses de compensação, restariam a ser restaurados 3,5 milhões de hectares de florestas na Amazônia. Em tais condições, ob-servam-se os resultados da Tabela 13.

Florestas Nativas

181Tabela 13 | Anos necessários para restaurar 3,5 milhões de hectares na Amazônia

Técnica Mudas por hectare

Demanda por mudas (bilhões)

Capacidade instalada (milhões de mudas/ano)

Anos

Plantio total 1.666 5,8 15 389Alto enriquecimento 800 2,8 15 187Baixo enriquecimento 250 0,9 15 58

Fonte: Elaboração própria.

Ou seja, se o país optasse por restaurar todo o passivo da Amazônia com a técnica de plantio total e com a atual capacidade instalada, levaria 389 anos para realizar o reflorestamento. Mesmo utilizando a técnica de baixo enrique-cimento, o tempo necessário para atingir a meta seria 58 anos. Esses números são incompatíveis com a meta do Planaveg de atingir a meta em vinte anos. Novamente, lembra-se que esses números são indicativos, pois, em nenhum cenário do Planaveg, pretende-se utilizar uma única técnica de reflorestamento.

Qual deve ser a expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Amazônia para atender a demanda por restauro de 3,5 milhões de hectares no referido bioma?

De acordo com exercício cujos resultados são apresentados na Tabela 14, a demanda anual por mudas necessária para cumprimento das metas definidas em Brasil (2014) para o bioma Amazônia pode variar entre extremos,9 desde 71 milhões de mudas por ano (Cenário 4) até 158 milhões de mudas por ano (Cenário 1), dependendo da combinação de técnicas de restauro utilizada.

Tabela 14 | Demanda esperada e capacidade instalada

Cenário Demanda anual por mudas (milhões)

Capacidade instalada (milhões)

Diferença

Cenário 1 173,3 15 158,3Cenário 2 144,2 15 129,2Cenário 3 115,1 15 100,1Cenário 4 85,9 15 70,8

Fonte: Elaboração própria.

9 Esses valores extremos foram calculados apenas com finalidade teórica, com objetivo de mostrar não apenas os cenários em que pode ocorrer excesso de demanda, mas também a importância da necessi-dade de regulação explícita tanto no que concerne à área total a ser restaurada, quanto no que tange à combinação de técnicas que será utilizada.

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Conforme Tabela 14, em todos os cenários previstos no Planaveg, com a atual capacidade de produção de mudas do bioma Amazônia, observa-se confirmação da hipótese de excesso de demanda esperada sobre a capaci-dade instalada.

De fato, a capacidade instalada deveria ser de seis a 11 vezes maior que a observada atualmente, de modo a atender à demanda por restauro dos 3,5 milhões de hectares na Amazônia em vinte anos.

A Tabela 15 apresenta a quantidade de viveiros a ser instalada na região para atender às metas estabelecidas, de acordo com cada porte de “viveiro representativo” utilizado e cada cenário previsto no Planaveg. Os valores foram obtidos dividindo o excesso de demanda pelo porte de cada “viveiro representativo”.

Tabela 15 | Número de viveiros, variando porte e cenários de demanda

Cenário Excesso de demanda (milhões)

Viveiros representativos a serem construídos750 mil mudas

por ano1,5 milhão de

mudas por anoTrês milhões de mudas por ano

Cenário 1 158,3 211 106 53Cenário 2 129,2 172 86 43Cenário 3 100,1 133 67 33Cenário 4 70,9 94 47 24

Fonte: Elaboração própria.

O custo de transporte não permite que se importem mudas da região Sudeste até a região Norte, indicando a necessidade de implantação de um parque de viveiros na própria região amazônica. Os números demonstram necessidade de instalação de viveiros na Amazônia para aumentar a capa-cidade instalada. Comparativamente à Mata Atlântica, a necessidade de novos viveiros para atender à demanda é muito superior. Se forem instala-dos exclusivamente viveiros de capacidade de 750 mil mudas por ano, será necessário implantar entre 94 e 211 novos viveiros, dependendo do cenário do Planaveg (ou do mix de técnicas) adotado. Para viveiros de capacidade de três milhões de mudas por ano, seriam necessários entre 24 e 53 novos viveiros no bioma Amazônia.

Florestas Nativas

183Qual a necessidade de investimentos para expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Amazônia para atender à demanda por restauro no referido bioma?

A necessidade de recursos para investimentos em novos viveiros no bioma Amazônia pode variar entre R$ 103,9 milhões e R$ 232,2 milhões, dependendo do cenário que se observar, a posteriori.

Tabela 16 | Custo de expansão da cadeia produtiva da Amazônia para atendimento ao Novo Código Florestal (R$ milhões)

Cenário Investimento Cenário 1 232,2Cenário 2 189,5Cenário 3 146,7Cenário 4 103,9

Fonte: Elaboração própria.

Verifica-se, em relação ao bioma Amazônia:

i. A combinação de elevado passivo (3,5 milhões de hectares) com reduzida capacidade instalada na região demanda investimentos de maior monta no bioma Amazônia – em comparação à Mata Atlântica.

ii. A Tabela 15 indica ainda necessidade de implantação de eleva-da quantidade de novos viveiros sob qualquer cenário previsto no Planaveg.

Restaurando 10,3 milhões de hectares até 2030Conforme já mencionado, a metodologia utilizada no presente estudo

segue idêntica hipótese de Instituto Escolhas (2016) de que o restauro de 12 milhões de hectares de florestas (compromisso brasileiro junto a ONU como parte contribuição às alterações climáticas) ocorreria no bioma Mata Atlântica e Amazônia, conforme cálculos dos exercícios das subseções “Mata Atlântica” e “Amazônia”.

Neste trabalho, o corte foi feito por bioma. Outras perspectivas, como a setorial, são de grande valia do ponto de vista da implementação efe-tiva da proposta de restauro. Estudo interno do BNDES, por exemplo, estimou a existência de passivo de 1,8 milhão de hectares de reserva

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legal e APPs no setor de cana-de-açúcar, criando questionário para seus clientes que atuam nesse setor, de modo a garantir a conformidade legal de suas operações.

No mesmo sentido, o Banco conta com resoluções internas para garantir a conformidade dos mutuários de setores ambientalmente sensíveis (como carvão vegetal e pecuária, por exemplo) que obrigam seus mutuários à ins-crição no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e à implementação do Plano de Regularização Ambiental (PRA).

Essa intrínseca relação entre o uso e a ocupação do solo e as condi-ções de conformidade de cada setor da economia brasileiro é trabalho de levantamento minucioso. Um dos instrumentos para tal levantamento é a implementação do CAR e do PRA.

No caso da aplicação da metodologia proposta para toda a área mínima a ser restaurada, como se os 10,3 milhões ocorressem em plantios contíguos, os resultados para as perguntas propostas seriam os apontados a seguir.

É possível cumprir o prazo de recuperação (até 2030) com a atual capacidade instalada de viveiros existente no Brasil?

Conforme Tabela 17, utilizando-se somente a técnica de plantio total, seriam necessários 121 anos para restaurar os 10,3 milhões de hectares. Utilizando-se apenas a técnica de alto enriquecimento, seriam necessários 58 anos. Apenas no caso de utilização exclusiva por baixo enriquecimento seria possível cumprir o prazo de vinte anos do Planaveg.

Tabela 17 | Anos necessários para restaurar 10,3 milhões de hectares na Amazônia

Técnica Mudas por hectare

Hectares a restaurar (milhões)

Demanda por mudas (bilhões)

Capacidade instalada (milhões)

Anos

Plantio total 1.666 10,3 17,2 142 121Alto enriquecimento 800 10,3 8,2 142 58Baixo enriquecimento 250 10,3 2,6 142 18

Fonte: Elaboração própria.

Florestas Nativas

185Qual deve ser a expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas da Amazônia para atender à demanda por restauro de 3,5 milhões de hectares no referido bioma?

Testando, novamente, a hipótese de excesso de demanda no setor de mudas nos diferentes cenários propostos, observa-se, conforme Tabela 18, a presença de excesso de demanda sobre a atual capacidade instalada de produção de mudas, podendo variar de 110 milhões até 368 milhões de mudas.

De forma alternativa, o excesso de demanda sinaliza potencial de crescimento de 77% até 259% (mais que três vezes a atual capacidade instalada).

Tabela 18 | Demanda esperada e capacidade instalada

Cenário Demanda por mudas Capacidade instalada DiferençaCenário 1 510,1 142,0 368,1Cenário 2 424,3 142,0 282,3Cenário 3 338,5 142,0 196,5Cenário 4 252,7 142,0 110,7

Fonte: Elaboração própria.

Pela observação de qualquer um dos cenários propostos, verifica-se que tal intervalo de excesso de demanda [110,7; 368,1] terá que ser suprido com a expansão dos viveiros existentes ou com a implantação de novos viveiros conforme Tabela 19.

Tabela 19 | Número de viveiros, variando porte e cenários de demanda

Cenário Excesso de demanda

750 mil mudas/ano

1,5 milhão mudas/ano

Três milhões de mudas/ano

Cenário 1 368,1 490,8 245,4 122,7Cenário 2 282,3 376,4 188,2 94,1Cenário 3 196,5 262,0 131,0 65,5Cenário 4 110,7 147,6 73,8 36,9

Fonte: Elaboração própria.

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Nos cenários em que os novos entrantes são, por hipótese, médios (750 mil mudas por ano), o número de viveiros a ser implantado varia entre 148 e 491, sinalizando potencial de dobrar a atual capacidade. No caso de entrantes de grande porte, a demanda esperada pode requerer de 37 a 123 novos viveiros de grande porte (três milhões de mudas por ano).

Qual a necessidade de investimentos para expansão da capacidade produtiva de mudas de espécies nativas no Brasil para atender à demanda por restauro?

De acordo com cálculos realizados e premissas adotadas, seriam neces-sários investimentos entre R$ 162 milhões e R$ 540 milhões, dependendo do cenário do Planaveg que prevalecer. Atribui-se maior probabilidade para a ocorrência de alguma combinação convexa entre tais extremos.

Tabela 20 | Custo de expansão da cadeia produtiva da Amazônia para atendimento ao Novo Código Florestal

Cenário Investimento (R$ milhões)Cenário 1 539,9Cenário 2 414,1Cenário 3 288,2Cenário 4 162,4

Fonte: Elaboração própria.

Conclusões e propostasO presente artigo estima o impacto das alterações no Novo Código

Florestal (bem como de políticas nacionais e acordos internacionais firmados com a ONU) sobre a demanda de mudas nativas no país e avalia a necessi-dade de investimentos em expansão de capacidade produtiva de mudas de modo a atender a tal demanda.

O Planaveg estima que o país tenha 21 milhões de hectares de passivo florestal e admite que 56% desse passivo será compensado pela aquisição de CRAs. Portanto, a meta do Planaveg é de reflorestar 10,3 milhões de hectares em vinte anos, premissa central em todos os cálculos. As alterações no marco regulatório e a expectativa de que o Código Florestal venha a ser implementado no país altera o patamar da demanda por mudas.

Florestas Nativas

187Como 90,5% do passivo florestal brasileiro está nos biomas Mata Atlântica, Amazônia e Cerrado, resolvendo o passivo desses biomas, a meta do Planaveg estará praticamente cumprida.

A Mata Atlântica tem seis milhões de passivo florestal, dos quais 3,3 milhões serão compensados e 2,7 milhões serão de fato reflorestados. Com um parque robusto de 125 viveiros nesse bioma, capacidade instalada de produção de 72 milhões de mudas por ano e demanda anual de mudas entre 66 milhões (Cenário 4 do Planaveg) e 133 milhões de mudas por ano (Cenário 1), será necessário um investimento de até R$ 92,4 milhões em novos viveiros para fazer frente à demanda na Mata Atlântica.

Já a Amazônia, com oito milhões de hectares de passivo florestal, de-verá reflorestar 3,5 milhões de hectares. Com um parque de viveiros mais modesto, 26 viveiros com 15 milhões de mudas por ano de capacidade instalada, e demandas anuais de 85 milhões a 173 milhões de mudas, o bioma precisará de um investimento maior em novos viveiros, que pode variar de R$ 104 milhões a R$ 232 milhões (dependendo do cenário do Planaveg escolhido).

Somando-se os 2,7 milhões de hectares da Mata Atlântica com os 3,5 mi-lhões da Amazônia, chega-se a 6,2 milhões de hectares restaurados, aquém dos 10,3 milhões estabelecidos como meta pelo Planaveg. Para atingir a meta, teria de ser feito o cálculo também para o Cerrado. Porém, a infor-mação disponível para isso é insuficiente. Alternativamente, calculou-se o investimento necessário para aumentar a capacidade produtiva do país, de forma agregada, a fim de fazer frente à meta de reflorestar 10,3 milhões de hectares. O investimento fica entre R$ 162 milhões e R$ 540 milhões, dependendo do cenário do Planaveg utilizado para cálculo.

A hipótese de que 56% do passivo florestal brasileiro será resolvido pela comercialização de cotas de reserva legal dependerá da evolução desse mercado. É possível que os proprietários rurais decidam não adquirir CRA (ou que o mercado de CRA ainda não esteja desenvolvido) e optem por re-solver o passivo por meio de reflorestamento em si. Se isso ocorrer, a oferta de mudas e, portanto, o investimento em novos viveiros, será o dobro do apresentado. Por outro lado, o Código Florestal permite espécies exóticas em metade da área reflorestada, o que faria com que a demanda por mudas nativas caísse novamente pela metade.

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Este estudo não pretende calcular o custo total do reflorestamento necessário para atender ao Planaveg, mas tão somente o volume de inves-timentos necessários em novos viveiros para atender à demanda gerada pelo Planaveg.

Para tanto, conta-se com fontes domésticas e internacionais de financia-mento, valendo ressaltar:

i. a Iniciativa BNDES Mata Atlântica;ii. linha do BNDES Finem Direto denominada BNDES Florestal (cuja

finalidade pode ser tanto o plantio de espécies exóticas como o plantio de espécies nativas);

iii. linha de meio ambiente;iv. captação de recursos no mercado voluntário de carbono por meio

da emissão de redução certificada de emissões (CRE); ev. utilização do mecanismo de Redução das Emissões por Desmatamento

e Degradação florestal (REDD) contido no âmbito dos mecanismos financeiros previstos e desenvolvidos ao longo da conferência entre as partes signatárias do Protocolo de Quioto.

Por fim, conclui-se que a efetiva implementação do Código Florestal (com a utilização do CAR e do PRA) pode ser capaz de gerar excesso de demanda por mudas de espécies nativas, permitindo elevação de inves-timentos na cadeia produtiva de sementes e mudas no Brasil, e todos os efeitos indiretos relacionados, tais como: geração de emprego, aumento da demanda por aço (para cercamento de áreas), aumento na arrecadação, fixação do homem no campo e, por último, mas não menos importante, a melhoria do clima geral do planeta.

ReferênciasBRASIL. Presidência da República. Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965. Novo Código Florestal Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4771.htm>. Acesso em: 13 jul. 2016. . Casa Civil. Lei 10.711, de 5 de agosto de 2003. Lei de sementes e mudas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.711.htm>. Acesso em: 1º fev. 2016.

Florestas Nativas

189 . Casa Civil. Lei 12.651, de 25 de maio de 2012. Reforma do Código Florestal. 2012a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm>. Acesso em: 19 abr. 2016.

. Casa Civil. Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012. Reforma do Código Florestal. 2012b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm>. Acesso em: 29 abr. 2016.

. Decreto 7.830, de 17 de outubro de 2012. Dispõe sobre o Sistema de Cadastro Ambiental Rural, o Cadastro Ambiental Rural, estabelece normas de caráter geral aos Programas de Regularização Ambiental, de que trata a Lei n. 12.651, de 25 de maio de 2012, e dá outras providências. 2012c. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7830.htm>. Acesso em: 14 maio 2015.

. Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa. Brasília, 2014. Versão preliminar.

INSTITUTO ESCOLHAS. Quanto o Brasil precisa investir para recuperar 12 milhões de hectares de florestas? São Paulo, 2016. Disponível em: <http://escolhas.org/wp-content/uploads/2016/09/quantoe.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2016.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Diagnóstico da produção de mudas florestais nativas no Brasil. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.lerf.eco.br/img/publicacoes/150507_relatorio_diagnostico_producao.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2016.

MARTINS, R. B. Diagnóstico dos produtores de mudas florestais nativas do Estado de São Paulo – Relatório analítico. Jul. 2011. Disponível em: <http://www.sigam.ambiente.sp.gov.br/sigam3/Repositorio/222/Documentos/Produtos%20Tecnicos/Produtos_Tecnicos_02_viveiros.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2016.

SOARES-FILHO, B. et al. Cracking Brazil’s forest code. Science, v. 344, n. 6.182, p. 363-364, 2014.

SODRE, L. L. Diversidade de espécies de mudas de árvores nativas de mata atlântica em viveiros do estado do Espírito Santo. Monografia

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(Graduação em Engenharia Florestal) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Rio de Janeiro, 2006.

Sites consultadosREDE DE SEMENTES DO CERRADO – <http://www.rsc.org.br/>.REDE DE SEMENTES DO XINGU – <http://sementesdoxingu.org.br/site/>.

Apêndice A | APP e reserva legal antes e depois da reforma do Código Florestal

De acordo com a Lei 4.504/64, módulo fiscal, doravante MF, é uma unidade de medida agrária usada no Brasil, instituída pela Lei 6.746, de 10 de dezembro 1979. É expressa em hectares e é variável, sendo fixada para cada município, levando-se em conta:

· tipo de exploração predominante no município; · renda obtida com a exploração predominante; · outras explorações existentes no município que, embora não pre-

dominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; e

· conceito de propriedade familiar.

O Quadro A1 mostra, para cada espessura de curso d’água, qual o míni-mo de largura de floresta a ser mantido em sua margem, em forma de APP. Por exemplo, de acordo com a Lei 4.771/65, os cursos d’água com menos de dez metros de largura deveriam manter uma faixa de floresta de trinta metros de largura ao longo de seu percurso.

Quadro A1 | Alterações nas APPs em leitos de curso d’água (rios) – Lei 4.771/65 e Lei 12.651/12

APPs: largura dos cursos d’água (m)Largura do curso d’água

<10 10-50 50-200 200-600 >600

Lei 4.771/65* 30 50 100 200 500Lei 12.651/12** 30 50 100 200 500

Continua

Florestas Nativas

191Continuação

APPs: largura dos cursos d’água (m)

Lei 12.651/12 – local desmatado até 2008 (área rural consolidada)***

MF<1 1<MF<2 2<MF<4 MF>4 MF>105 8 15 20-100,

conforme o PRA

10% da área total do imóvel, para imóveis rurais <2MF20% da área total do imóvel, para imóveis rurais 2<MF<4

Fonte: Casa Civil da Presidência da República.* A recomposição das faixas marginais das APPs consolidadas é contada a partir da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d’água.** As faixas marginais de qualquer curso d’água natural ou perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular (não considera a área de cheia dos rios), em largura mínima de trinta metros de vegetação a quinhentos metros, variando de acordo com a largura do curso d’água. Análise comparativa pormenorizada pode ser encontrada no endereço eletrônico: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/56535/mod_resource/content/1/iso-8859-1Novo%20Cdigo%20Florestal%20-%20Quadro%20Comparativo%20-%20Vera%20Weigand%201.0.pdf>.*** Note que aos proprietários e possuidores dos imóveis rurais que detinham até dez MF e desenvolviam atividades agrossilvipastoris nas áreas consolidadas em APPs é garantido que a exigência de recomposição, somadas todas as áreas de APPs do imóvel não ultrapassará de 10% a 20%.

Apêndice B | Novos conceitos surgidos a partir da reforma do Código Florestal

O CAR é o Cadastro Ambiental Rural, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre o Meio Ambiente (Sinima), registro público eletrô-nico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.

O PRA foi definido pelo Decreto Federal 7.830, de 17 de outubro de 2012. Compreende um conjunto de ações ou iniciativas a serem desenvolvidas por proprietários e posseiros rurais com o objetivo de adequar e promover a regula-rização ambiental com vistas ao cumprimento do disposto no Capítulo XIII da Lei 12.651, de 2012. A inscrição do imóvel rural no CAR é condição obrigatória para a adesão ao PRA.

O Prada consiste em um documento que contém as medidas propostas para a mitigação dos impactos ambientais decorrentes das atividades rela-

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cionadas aos empreendimentos, incluindo o detalhamento dos projetos para a reabilitação das áreas degradadas.

O CRA é um título nominativo representativo de área com vegetação nativa existente ou em processo de recuperação excedente à reserva legal. Assim, o excesso de RL em uma propriedade pode ser trocado em mercado pelo déficit em outra. Naturalmente, esse tipo de compensação não apresenta os mesmos benefícios socioambientais e ecológicos próprios aos processos de recuperação de matas nativas.

Apêndice C | A Lei de Sementes e Mudas (conceitos)I- O Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem)

Subordinado ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) obriga as pessoas jurídicas que exerçam atividades de produção, beneficiamento, embalagem, armazenamento, análise, comércio, importação e exportação de sementes e mudas a se cadastrarem no ministério.

II- Do Registro Nacional de Cultivares (RNC) e do Cadastro Nacional de Cultivares (CNCR)

A produção, o beneficiamento e a comercialização de sementes e de mudas ficam condicionados à prévia inscrição da respectiva cultivar no RNC.

III- Da produção e certificação

No processo de certificação, as sementes e as mudas poderão ser produ-zidas segundo as seguintes categorias:

i. semente genética;

ii. semente básica;

iii. semente certificada de primeira geração – C1;

iv. semente certificada de segunda geração – C2;

v. planta básica;

vi. planta matriz; e

vii. muda certificada.

Florestas Nativas

193O Mapa é o órgão responsável pela certificação de sementes e mudas. Instituem-se, também, as comissões de sementes e mudas – órgão colegia-dos, de caráter consultivo e de assessoramento ao Mapa –, às quais compete propor normas e procedimentos complementares, relativos à produção, ao comércio e à utilização de sementes e mudas.

Apêndice D | Remanescentes da Mata Atlântica

De acordo com Sodre (2006), a floresta atlântica abrangia original-mente 12% do território nacional, correspondente a 1.300.000 km2, en-globando 17 estados e 2.428 municípios. Ainda de acordo com a autora, restavam, em 2006, apenas 7,6% da área original da floresta, ou seja, 98.800 km2 (equivalentes a aproximadamente dez milhões de hectares). Já Ipea (2015) afirma que ainda restam de 13% a 16% de remanescentes do referido bioma.

A área original e a área atual podem ser contrastadas na Figura A1.

Figura A1 | Remanescentes da Mata Atlântica

Fonte: Brasil (2014).

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Os remanescentes da Mata Atlântica têm especial importância para a cadeia produtiva de mudas e sementes. De modo geral, as sementes são co-letadas em áreas com fragmentos da Mata Atlântica, sendo o raio econômico para a coleta ao redor de 50 km dos viveiros. Assim, a implementação de sistema nacional de pomares de espécies nativas deve estar localizado em áreas próximas aos remanescentes florestais.

As imagens de satélite em alta definição permitem aproximações visuais tão próximas quanto se deseje, sendo utilizadas até mesmo para acompanhamento de restauração florestal em projetos da Iniciativa BNDES Mata Atlântica.

No caso do estado do Rio de Janeiro, a imagem de satélite é mostrada na Figura A2.

O BNDES tem concentrado inteligência no desenvolvimento de ma-pas para suporte a análise de projetos. As figuras A2 e A3 são imagens de satélite obtidas por meio da utilização do ArcGIS e mostram áreas de remanescentes da Mata Atlântica, restinga e manguezais no estado do Rio de Janeiro.

Figura A2 | Imagem de satélite do município do Rio de Janeiro a 50 km de altitude

Fonte: Elaborado na plataforma ArcGIS.

Florestas Nativas

195Figura A3 | Zoom in (5 km-8 km de altitude) – Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Fonte: Elaborado na plataforma ArcGIS.

A área mais clara mostra a região antropizada; a área escura mostra remanescentes florestais. O intuito deste apêndice foi mostrar a impor-tância das imagens de satélite na identificação precisa dos passivos ambien tais brasileiros.

Apêndice E | Técnicas de restauroIsolamento e condução da regeneração natural (CRN)

O isolamento é feito caso exista fatores de degradação ambiental que são relacionados ao trânsito de animais, veículos, máquinas e implementos agrícolas. Com o isolamento, a vegetação nativa tem melhores condições para se desenvolver e aumentam a eficiência da restauração e, consequente-mente, a redução dos custos associados a essa atividade. O processo de con-dução da regeneração envolve o controle periódico, químico, ou mecânico, de competidores (plantas invasoras), seja pelo coroamento dos indivíduos regenerantes, seja pelo controle do mato em área total. Dessa forma, fica claro que a condução a regeneração apresenta um custo bem inferior, já que não é necessário produzir a muda e realizar o plantio.

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Adensamento (ADN)

Entende-se por plantio de adensamento o plantio nos espaços não ocu-pados pela regeneração natural. É indicado para locais que apresentam regeneração natural com locais falhos, com baixa densidade de vegetação arbustiva e arbórea, ou em áreas em bordas de fragmentos e grandes clareiras em estágio inicial de sucessão, visando controlar a expansão de espécies invasoras e nativas em desequilíbrio e favorecer o desenvolvimento das espécies finais por meio de sombreamento. Esse plantio é feito com mudas de espécies iniciais de sucessão (pioneiras e secundárias iniciais).10 O custo de implantação é maior quando comparado com a condução da regeneração natural. Nessa técnica, utiliza-se o plantio em espaçamento de 3x2 ou 2x2.

Enriquecimento (ENR)

Entende-se por plantio por enriquecimento a introdução de espécies em estágios finais de sucessão em áreas ocupadas com vegetação nativa, mas que apresentam baixa diversidade florística. A forma mais utilizada nesse plantio consiste na introdução de mudas, sementes ou na introdução de indivíduos produzidos a partir de sementes coletadas em outros fragmentos regionais de espécies. Nessa técnica, utiliza-se o plantio em espaçamento de 6x6.

Plantio em área total

Áreas, com ausência de espécies, nas quais ocorre o plantio de mudas de espécies nativas em área total, via módulos ou grupos de plantio. O plantio é feito em áreas alternadas, com espécies do grupo de recobrimento (ou pioneiras) e grupo de diversidade (ou não pioneiras), ou por transferência de banco de sementes alóctone (que não existem no solo do próprio local que se quer preservar ou recuperar), ou por semeadura indireta. O plantio em área total tem custo superior às outras técnicas por demandar maior quantidade de mudas por hectare.

10 As espécies pioneiras, em geral, produzem grande número de sementes, dispersas por animais, e ne-cessitam de luz para germinar; o crescimento da planta é rápido e vigoroso, mas o ciclo de vida costuma ser curto; constituem comunidades com baixa diversidade e alta densidade populacional.