bernardo soares_o livro do desassossego (trechos)

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 Haja ou não deuses, deles somos servos. A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia. Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente , a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso em suma, é a nós mesmos que amamos. A renúncia é a libertação. Não querer é poder. "Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse "Conhece-te" propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge." "O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate - mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma. Como um espectáculo na bruma Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e [a] dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação." "Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos,o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alhe ios no sangue à raça da sua natureza! Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me  esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores." "O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação. Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto."

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5/10/2018 Bernardo Soares_O Livro Do Desassossego (Trechos) - slidepdf.com

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Haja ou não deuses, deles somos servos.

A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo paraa sensualidade como o obstáculo para a energia.

Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente , a ideia que fazemos de alguém. É a umconceito nosso em suma, é a nós mesmos que amamos.

A renúncia é a libertação. Não querer é poder.

"Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse "Conhece-te" propôs uma tarefa maior queas de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge."

"O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim seinsinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem sequerer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate - mas a alma que deleusa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é elamesma.

Como um espectáculo na bruma

Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizerocomum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, osrecantos e os móveis mortos e [a] dar música, como para me embalar, quando asescrevo, às frases fluidas da minha fixação."

"Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que osvestígios dos nossos sonhos,o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguémo que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o usoda época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não sãomais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheiosno sangue à raça da sua natureza!

Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundomesurge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mentese me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e dasarestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma emum absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores."

"O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E

se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado?

É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrevervivem sem enquanto."

5/10/2018 Bernardo Soares_O Livro Do Desassossego (Trechos) - slidepdf.com

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