história da publicação do livro do desassossego

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  • MEMORIAL DO DESASSOSSEGO:

    Breve histria da edio do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa

    por

    ANA CRISTINA COMANDULLI DA CUNHA

    Departamento de Letras Vernculas

    Dissertao de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Conselho dos Cursos de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor Jos Clcio Baslio Quesado. Co-Orientadora: Professora Doutora Gilda da Conceio Santos.

    UFRJ / Faculdade de Letras 1 semestre de 2005

  • Para Ana Luiza Varela, minha sobrinha eleita, que compartilhou comigo cada momento deste trabalho.

    A BIS, A AVE DO EGITO POUSA SEMPRE SOBRE UM P

    O QUE ESQUISITO. UMA AVE SOSSEGADA,

    PORQUE ASSIM NO ANDA NADA.

    FERNANDO PESSOA

  • O MEU PRIMEIRO AGRADECIMENTO A DEUS POR TUDO.

    AOS FUNCIONRIOS DO REAL GABINETE PORTUGUS DE LEITURA: CARLA

    GONALVES, LUCIANO FERREIRA, MARIA MANUELA ALVES, ORLANDO INCIO,

    ROSELANE BOAVENTURA, VERA LCIA DE ALMEIDA E SEU PRESIDENTE DOUTOR

    ANTNIO GOMES DA COSTA O MEU AGRADECIMENTO PELA DISPONIBILIDADE E AUXLIO

    PRESTADO EM MINHA PESQUISA.

    CTEDRA JORGE DE SENA, ONDE FUI BOLSISTA, AS MINHAS MELHORES LEMBRANAS DO REFGIO PERFEITO DOS MEUS ESTUDOS PESSOANOS.

    MEU ESPECIAL CARINHO PARA DONA CLEONICE BERARDINELLI, ETERNA

    MESTRA! MEU AGRADECIMENTO S SUAS COLABORADORAS SOLANGE GOMES DE

    PINHO E VANIE MARIE CAVICHIOLI, QUE ME APOIARAM PARA QUE ESTE PROJETO SE

    TORNASSE REALIDADE.

    S PROFESSORAS ANA MARIA CAMPOS, MRCIA VALRIA COSTA, MARIA LUCIA ELIAS PIRES E ROSELAND SCHIMID RONDON QUE NO DEIXARAM QUE EU

    DESISTISSE DO SONHO DAS LETRAS.

    AOS COLEGAS DOS BANCOS ACADMICOS CLAUDIA VALENTIM, EDUARDO

    COELHO, LUCIANA SALLES, MNICA FAGUNDES E VANESSA RIBEIRO QUE ME

    AJUDARAM A VER A VIDA COMO UM CALEIDOSCPIO.

    O MEU RECONHECIMENTO AOS MESTRES QUE ME ORIENTARAM NO CAMINHO DA

    LITERATURA: NGELA BEATRIZ DE FARIA, CLEONICE BERARDINELLI, EUCANA FERRAZ, GILDA DA CONCEIO SANTOS, JOS CLCIO BASLIO QUESADO, LUCI

    RUAS, MARIA DE LOURDES SOARES E TERESA CRISTINA CERDEIRA.

    O MEU CARINHO E AMIZADE A VANDA ANASTCIO, QUE DO OUTRO LADO DO

    ATLNTICO ME ENSINOU QUE TRABALHO SE PAGA COM TRABALHO .

  • AO PROFESSOR ANTONIO CARLOS RIBEIRO GARRIDO IGLESIAS, AMIGO DE

    HORAS MUITO DIFCEIS, O MEU CARINHO E GRATIDO.

    PROFESSORA MARIA MAZZARONE O AGRADECIMENTO POR TER ME ENSINADO A ESCUTAR O SILNCIO.

    PROFESSORA LUCI RUAS, SUAVE CULPADA POR ME APRESENTAR O LIVRO DO DESASSOSSEGO, O MEU CARINHO

    AO MEU ORIENTADOR PROFESSOR JOS CLCIO BASLIO QUESADO, O

    OBRIGADO PELA PACINCIA, RESPEITO E AMIZADE AO ORIENTAR E ME DIRIGIR AO

    LONGO DESTE TRABALHO.

    A MINHA CO-ORIENTADORA PROFESSORA GILDA DA CONCEIO SANTOS, MEU

    CARINHO E AGRADECIMENTO POR TODA DOCE SEVERIDADE COM QUE CONDUZIU A

    MINHA PESQUISA.

    A MINHA GRATIDO A ANA LUIZA VARELA, JOANA D ARC VARELA, MARILDA

    COMANDULLI E MARY VARELA, MINHA FAMLIA, QUE PRESENTE EM TODOS OS

    MOMENTOS, NO PERMITIU QUE EU ABANDONASSE A LITERATURA, DESASSOSSEGO QUE

    ME FAZ SENTIR VIVA.

  • Eu canto porque o instante existe E a minha vida est completa No sou alegre nem sou triste: Sou poeta.

    Irmo das coisas fugidias, No sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias No vento.

    Se desmorono ou se edifico, Se permaneo ou me desfao, - no sei, no sei. No sei se fico ou passo.

    Sei que canto. E a cano tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada.

    Ceclia Meireles

    Gastei uma hora pensando um verso

    Que a pena no quer escrever. No entanto ele est c dentro inquieto, vivo. Ele est c dentro e no quer sair. Mas a poesia deste momento Inunda minha vida inteira.

    Carlos Drummond de Andrade

    Eu no sou eu nem sou o outro sou qualquer coisa de intermdio pilar da ponte de tdio que vai de mim para o outro.

    Mrio de S-Carneiro

  • CUNHA, Ana Cristina Comandulli da. Memorial do Desassossego: Breve histria do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, 2005. Dissertao de Mestrado em Literatura Portuguesa

    Faculdade Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.

    RESUMO

    Estudo do projeto de publicao do Livro do desassossego por seu autor Fernando Pessoa. Estudo do incio da vida literria de Fernando Pessoa. O seu primeiro texto crtico e o primeiro texto literrio, escrito para o Livro do Desassossego como elo de ligao para o conhecimento da edio material do Livro. A participao e importncia de Fernando Pessoa no Modernismo portugus. Anlise do Livro do desassossego, nas suas sucessivas edies, em lngua portuguesa, em relao sua organizao, ao seu corpus e sua ordenao. Anlise dessas edies sob a perspectiva da crtica gentica como contributo para uma nova possvel edio. A possibilidade de preparao de uma edio crtico-gentica. Edio elaborada a partir dos documentos deixados pelo autor, considerando a sua ltima vontade. Contributo para uma edio crtico-gentica contextualizada na teoria e na crtica literria moderna.

    Palavras-chave: Livro do desassossego/ Fernando Pessoa/ Bernardo Soares/ Vicente Guedes/Edio crtica do Livro do Desassossego

  • CUNHA, ANA CRISTINA COMANDULLI DA. MEMORIAL DO DESASSOSSEGO: BREVE HISTRIA DO LIVRO DO DESASSOSSEGO, DE FERNANDO PESSOA. RIO DE JANEIRO, 2005. DISSERTAO DE MESTRADO EM LITERATURA PORTUGUESA

    FACULDADE LETRAS, UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2005.

    RSUM

    ETUDE DU PROJET DEDITION DU LIVRO DO DESASSOSSEGO, PAR SON AUTEUR FERNANDO PESSOA. ANALYSE DE LINITIATION LITTERAIRE DE FERNANDO PESSOA, A PARTIR DE SON PREMIER TEXTE CRITIQUE AUSSI BIEN QUE DE SON PREMIER TEXTE

    LITTERAIRE, ECRIT POUR SON LIVRE: LIVRO DO DESASSOSSEGO. LES DEUX CONSTITUANT UN PONT

    AVEC UNE FUTURE EDITION MATERIELLE. LA PARTICIPATION ET LIMPORTANCE DE FERNANDO PESSOA AU MODERNISME PORTUGAIS. ANALYSE DU LIVRO DO DESASSOSSEGO, DANS SES SUCCESSIVES EDITIONS, EN LANGUE PORTUGAISE, PAR RAPPORT A SON ORGANISATION, A SON CORPUS ET A SON

    ORDINATION. ANALYSE DE CES EDITIONS DANS LA PERSPECTIVE DE LA CRITIQUE GENETIQUE COMME CONTRIBUTION POUR POSSIBLE NOUVELLE EDITION.

    DEMONSTRATION DE LA POSSIBILITE DE LA PREPARATION DUNE EDITION CRITIQUE-GENETIQUE. EDITION REALISEE DAPRES LA DOCUMENTATION PRODUITE PAR PESSOA, EN RESPECT A SA DERNIERE VOLONTE. SELON LA THEORIE LITTERAIRE MODERNE, CETTE EDITION CRITIQUE-GENETIQUE DOIT ETRE CONSIDEREE COMME BON MODELE

    EDITORIAL.

    MOTS-CLEFS: LIVRO DO DESASSOSSEGO/ FERNANDO PESSOA/ BERNARDO SOARES/ VICENTE GUEDES/EDITION CRITIQUE DU LIVRO DO DESASSOSSEGO

  • SUMRIO

    1. Introduo ................................................................................................ 10

    2. No Caminho do Alheamento................................... ................................. 12

    2.1. A guia............................................................................................... 20

    2.2. Na Floresta do Alheamento ............................................................... 29

    2.3 . Duas Cartas......................................................................................... 34

    3. No Caminho do Desassossego................................................................... 38

    3.1. A Autoria ............... ............................................................................... 45

    3.2. O Corpus ............................................................ ................................51

    3.3. A Ordem.................................................................................................57

    3.4. O Livro como edio .............................................................................63

    3.5. A edio crtico-gentica do Livro..........................................................68

    4. Concluso .....................................................................................................73

    7. Bibliografia Geral ......................................................................................... 75

    8. Bibliografia Especfica .................................................................................. 80

    8. Anexos.......................................................................................................... 83

  • 1.INTRODUO

    Tm todos, como eu, o futuro no passado

    BERNARDO SOARES

    Em 1982, a publicao do Livro do desassossego veio somar j consagrada obra de Fernando Pessoa mais um objeto de estudo para a compreenso desse to complexo quanto genial poeta portugus. quela altura a grandeza desse poeta j havia ultrapassado limites, atravessado mares e oceanos. Qualquer apreciador ou estudioso seu tinha, sem detena, uma

    enorme literatura passvel de servir como apoio para compreender sua obra.

    Como exemplo dos pioneiros dos estudos pessoanos temos, dentre

    tantos, em Portugal, Joo Gaspar Simes, Lus de Montalvor, Georg Rudolf

    Lind, Jorge de Sena, Jacinto do Prado Coelho, Teresa Rita Lopes, Maria Aliete

    Galhoz, Teresa Sobral Cunha e Ivo Castro. No Brasil, Cleonice Berardinelli e

    Jos Clcio Baslio Quesado. Na Itlia, temos Luciana Stegagno Picchio. Eles

    e muitos outros nomes de magnitude das letras contriburam, e continuam a

  • contribuir, para a ampliao da bibliografia e fortuna crtica de Fernando

    Pessoa.

    A publicao do Livro do desassossego, tambm denominado por

    Pessoa como o L.do D., acrescentou vasta obra do autor uma quantidade

    ainda maior de ensaios, artigos e conferncias que vo se reproduzindo

    incessantemente. Depois da edio princeps, o Livro do desassossego j teve novas publicaes em Portugal, no Brasil, na Itlia, Espanha, Alemanha,

    Inglaterra e em Frana. Alm da traduo para os pases do leste europeu e

    da sia. O iderio editorial do Livro do desassossego no possui uma definio

    totalmente clara quanto s suas regras, deixando, pois, em processo de

    construo uma unidade editorial desta obra de Fernando Pessoa, mesmo que

    no falte desejo e dedicao dos partcipes de uma equipe para esse fim destinada. O fato que o livro um desassossego para quem dele se ocupa.

    Este trabalho relata a breve histria do L. do D., tal como ele chegou a

    ser editado em lngua portuguesa. Divide-se ele em duas partes: a primeira,

    que trata do que foi publicado pelo prprio autor e, a segunda pelos editores

    que publicaram o Livro, aps a sua morte.

    A primeira parte composta pelo estudo de elementos do incio da

    carreira literria de Fernando Pessoa e da sua inteno quanto ao Livro do

    desassossego. A segunda trata da publicao material da obra e de sua

    relao com a autoria, do corpus, e da ordem das suas edies. A edio

    princeps, organizada por Jacinto do Prado Coelho com a colaborao de

    Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz. E as edies seguintes, feitas nos

    anos 90, por Teresa Sobral Cunha e Richard Zenith. Buscando melhor

  • compreender essas edies foi respeitado o estudo pioneiro de Jorge de Sena

    que, durante mais de dez anos, trabalhou com os microfilmes dessa obra,

    resultando na publicao do texto crtico Introduo ao Livro do

    desassossego , em 1970.

    A breve histria do L. do D. foi tecida com argumentos da bibliografia

    material do autor e busca contribuir para novas edies, procurando, dentro

    dessa metodologia e da cincia literria, o tipo de edio mais apropriado

    obra de Fernando Pessoa.

  • 2. NO CAMINHO DO ALHEAMENTO

    Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, j que do corpo no posso ser.

    Bernardo Soares

    sabido por quem se ocupa da obra de Fernando Pessoa que ele muito pouco publicou enquanto vivo. O reconhecimento da sua qualidade como poeta

    foi consagrada na cena literria em 1942, em antologia organizada por Adolfo

    Casais Monteiro onde foram reunidas poesias j publicadas de maneira dispersa por Pessoa. Desde ento os estudiosos de sua obra vm trazendo a

    lume tanto os textos inditos que o escritor deixou de publicar quanto aqueles

    que ele talvez nem pretendesse publicar. Alguns por considerar como

    inacabveis outros porque no se decidiu quanto complexa questo da

    autoria a ser-lhes atribuda, razo encontrada por Teresa Rita Lopes para esta

    opo do autor.1

    O percurso da publicao do livro desassossegante. Caminho traado,

    muito provavelmente de propsito por seu autor, para demonstrar o

    desassossego de seus muitos eus . Consubstanciar um livro denominado de

    desassossego extremamente pertinente para um homem que valorizou sua

    escrita em detrimento de sua publicao.

    Paralela histria do livro, como no podia deixar de ser, h o percurso

    literrio de Fernando Pessoa ele-mesmo e de seus heternimos. Pessoa

    dedicou seus anos de atividade intelectual literatura, crtica literria, aos

    estudos de filosofia, filologia, publicidade, editoria de revistas, e traduo, alm

    de seus interesses pela astrologia, espiritismo e ocultismo.

    1 LOPES, Teresa Rita. Pessoa por conhecer.Lisboa: Estampa, 1990.

  • Foi na revista A guia, editada no Porto, pelos intelectuais do grupo da Renascena Portuguesa, que Fernando Pessoa fez sua estria como uma das

    mais belas pginas da crtica literria: A Nova poesia portuguesa . Nessa

    mesma revista, em agosto de 1912, Fernando Pessoa publicou a plaqueta Na

    Floresta do alheamento, assinada por ele mesmo com a indicao para o L.do

    D. Esta pea faz parte do perodo ps-simbolista de Pessoa e tambm parte

    integrante das edies que foram feitas do Livro do desassossego. O projeto do Livro ficou inacabado por seu autor, embora tenha ocupado toda a sua vida

    literria o que sempre instigou vrios editores a publicao desta obra.

    O seu perodo de trabalho com o grupo da revista A guia se extinguiu, em 1914, em razo de discordncia do ponto de vista literrio, ou seja, face aos rumos que a literatura portuguesa estava apontando para um futuro muito

    prximo. A polmica criada pelo seu texto A Nova poesia portuguesa,

    culminando com a recusa de sua pea O Marinheiro

    drama esttico que em

    muito se assemelhava ao texto Na Floresta do alheamento

    foram razes que

    levaram Pessoa a romper com o grupo de intelectuais do Porto. Este

    rompimento foi deixado claro em carta escrita por Fernando Pessoa a lvaro Pinto, secretrio da revista A guia, em 12 de novembro de 1914. (Anexo I)

    No mesmo perodo em que escrevia para A guia, Pessoa conheceu aqueles que mais tarde iriam se reunir em torno da revista Orpheu,

    nomeadamente Mrio de S-Carneiro e Almada Negreiros. Esses dois poetas

    acompanharam Fernando Pessoa pelos ismos que ele criou e que marcaram

    profundamente a poesia portuguesa do sculo XX.

    Em 1915, foi fundada a revista Orpheu pelos jovens bomios de Lisboa interessados na arte como Fernando Pessoa, Mrio de S-Carneiro, Almada

  • Negreiros e Santa-Rita Pintor, de durao curta, mas com valor inestimvel

    para a histria literria portuguesa. A falta de dinheiro e o suicdio de Mrio de

    S-Carneiro, em 1916, foram algumas das razes para o fim da revista.

    A gerao de Orpheu , como ficaram conhecidos esses intelectuais, se

    inscreveu na histria literria como o grupo que causou escndalo e inmeras

    adeses s tendncias modernistas do incio do sculo XX. Era a gerao do

    moderno. Na verdade, o Modernismo dessa gerao comeou antes da sua

    organizao em torno dessa revista. Foi ao longo do ano de 1913, que o grupo

    de Orpheu deu ao novo movimento literrio; o Palismo, o Interseccionismo e o

    Sensacionismo. Na definio do prprio Fernando Pessoa, o Palismo situa-se

    em correntes opostas: o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes transportado

    para os poetas reunidos em torno da guia e o simbolismo decadentista que segue as novas tendncias estticas europias. O poeta palico tem uma

    concepo cinematogrfica da sua arte . Os seus estados de alma so

    projetados em seqncia de imagens, o que Pessoa define como todo espao de alma uma paisagem .2

    Do Palismo deriva-se ainda outra corrente, o Interseccionismo, que

    resulta de uma adaptao s novas estticas como o Futurismo e o Cubismo.

    Essa corrente pretendia, pois, ir alm, adotar na literatura formas de linguagem

    e complexidade da estrutura pictrica, segundo Pessoa, constituda por

    diferentes sensaes mescladas .3 A primeira pea interseccionista de Pessoa

    foi Na Floresta do alheamento, publicada na revista do Porto.

    2 PESSOA, Fernando. Pginas de Doutrina e Esttica. Lisboa: Editora tica, 1946, pg. 45.

    3 PESSOA, Fernando. Pginas ntimas e de auto-interpretao. Lisboa: Editora tica, 1966. Pg.187.

  • Mais tarde surge o Sensacionismo, corrente considerada cosmopolita e

    universalista e que faz a apologia da sensao como a nica realidade da vida.

    pela pena de lvaro de Campos que Pessoa afirma que o Sensacionismo comeou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mrio de S-Carneiro ,

    acrescentando ainda sobre o mesmo tema: Fernando Pessoa e Mrio de S-

    Carneiro esto mais prximos dos simbolistas. lvaro de Campos e Almada Negreiros so mais afins da moderna maneira de sentir e escrever .4

    Mltiplo de si mesmo, ao mesmo tempo em que Pessoa dava vida aos

    seus heternimos e ao seu processo de criao literria, dedicou-se tambm

    editorao como outro processo de atividade nas letras. Ao longo de sua vida,

    desde a revista A guia, passando pela criao de Orpheu, Fernando Pessoa colaborou com inmeras revistas: Portugal Futurista, de Almada Negreiros;

    Contempornea, de Jos Pacheco. Em 1924, dirigiu e fundou com Ruy Vaz a

    revista Athena, que definiu como puramente de arte , obedecendo um critrio

    de generalismo para que atingisse a um pblico irrestrito. Colaborou ainda com

    a revista Presena, de Jos Rgio e dos academicistas de Coimbra, onde

    publicou, por insistncia desse grupo, o seu conjunto de poemas intitulado Mar portuguez que, depois, com modificaes, comporia a segunda parte da

    Mensagem.

    Foi o prosador do Alheamento quem levou ao extremo a esttica do

    Modernismo, tal como foi concebido pelo lema ver em tudo um alm 5.

    Segundo o texto de lvaro de Campos, Ultimatum, um poeta deveria ser vrios poetas, nenhum deles sendo a personalidade que se suporia sentindo e

    4 PESSOA. Pginas ntimas e de auto-interpretao. 1966. Pg. 148

    5 PESSOA, Fernando. A Nova Poesia Portuguesa. Cadernos Inqurito , srie G, crtica e Histria Literria. Lisboa: Editorial Inqurito Limitada, 1944. Pg. 61

  • transmitindo seus prprios sentimentos . Este manifesto de lvaro de Campos foi publicado no nico nmero da revista Portugal Futurista, em 1917. Foi este

    Fernando Pessoa que levou ao pice a negao de si mesmo, no jogo suicida da modernidade.6 Ao multiplicar o seu eu em muitos outros, Pessoa negou a

    sua prpria existncia para existir em outros. Fernando Pessoa se

    despersonalizou na figura de inmeros heternimos, personalidades literrias,

    sendo ele-mesmo um outro - o ortnimo. Da multiplicao dessa

    despersonalizao os mais conhecidos so: Ricardo Reis, mdico de profisso,

    monrquico, de educao clssica e latinista. Adepto do Sensacionismo

    herdado do mestre Caeiro; Estoicista e epicurista, poeta horaciano e helenista:

    Ricardo reis tem outra disciplina diferente; as coisas no devem ser sentidas

    no s como so. Mas tambm de modo a integrarem-se em um certo ideal de

    medida e regras clssicas .7 Alberto Caeiro, mestre dos heternimos, nasceu

    em Lisboa, mas viveu grande parte de sua vida numa quinta do Ribatejo. Sua educao no passou do curso primrio. Antimetafsico, poeta das sensaes,

    da natureza, de atitude antimstica e pag. A obra de Caeiro apresenta uma

    reconstruo integral do paganismo, na sua essncia absoluta, tal como nem

    os gregos nem os romanos que vieram nele e por isso no o pensaram, o

    puderam fazer. 8 lvaro de Campos era engenheiro naval de profisso, ligado aos movimentos modernistas como o Futurismo e o Sensacionismo. o poeta que escreve as sensaes da energia e do movimento bem como, as

    sensaes de sentir tudo de todas as maneiras . o heternimo que

    6 CERDEIRA, Teresa Cristina. A aventura suicida da Modernidade. ---. O avesso do bordado. Lisboa:

    Editora Caminho, 2001 7 PESSOA. Pginas ntimas e de auto-interpretao. Pg. 330

    8 PESSOA. Pginas ntimas e de auto-interpretao. Pg. 330

  • acompanhar Pessoa por toda a vida. O Baro de Teive uma personalidade

    literria, fidalgo, conhecedor de literatura clssica, intelectual, despido de

    imagens, um pouco hirto e restrito 9. Vicente Guedes, um heternimo que

    escreve claro e domina as suas emoes; e Bernardo Soares, semi-

    heternimo, s vezes uma personalidade literria, um prosador que, no

    sendo Pessoa, era ele menos o raciocnio e a afetividade.

    Em todo o seu produto de criao h o Livro do desassossego, obra

    inacabada na qual Fernando Pessoa trabalhou durante toda a sua vida. H

    para este livro inacabado mais de um autor. O heternimo Vicente Guedes e o

    semi-heternimo Bernardo Soares, so os mais conhecidos e polemizados

    quanto autoria. Alguns crticos dessa obra pessoana atribuem certos

    fragmentos do Livro ao Baro de Teive . Mas, em seu ltimo plano de

    editorao do Livro, foi a Bernardo Soares que Fernando Pessoa atribuiu a sua

    autoria. E importante acentuar que muito pouco se sabe desses personagens

    comparados aos demais heternimos

    O projeto do Livro foi escrito em notas e em cartas enviadas aos seus amigos e editores. Os documentos relativos ao L. do D. esto no esplio do

    poeta, hoje sob a guarda do governo portugus

    na Biblioteca Nacional de

    Lisboa. Este legado que favorece aos estudiosos de sua obra a compreenso

    da gnese do Livro.

    Em meados da dcada de 10, as cartas encaminhadas a Armando

    Crtes-Rodrigues e a Mrio de S-Carneiro apresentam um livro que estava

    em fase de criao. Nas missivas a Crtes-Rodrigues, Pessoa se refere ao

    texto do L. do D. como uma produo doentia e fragmentada. Os fragmentos

    9 PESSOA, Fernando. Cartas a Armando Crtes-Rodrigues. Lisboa: Editorial Confluncia, Ltd, s/d.

  • dessa prosa so de depresso confessada, angstia e tdio , afirma o prprio

    Pessoa. Elas so cartas confessionais de Pessoa descrevendo sua crise

    existencial e o desdobramento dela em relao sua obra.

    (02 de setembro de 1914). Nada tenho escrito nada que valha a pena mandar-lhe. Ricardo Reis e lvaro futurista-silcenciosos. Caeiro perpetrador de algumas linhas que encontraro talvez asilo num livro futuro. Mas essas linhas so esboos de poesia propriamente falando. O que principalmente tenho feito sociologia e desassossego. Voc percebe que a ltima palavra diz respeito ao livro do mesmo; de facto tenho elaborado vrias pginas daquela produo doentia. A obra vai pois complexamente avanando. O facto que neste momento atravesso um perodo de crise na minha vida. Preocupa-me quotidianamente a necessidade de dar ao conjunto da minha obra uma orientao, tanto intelectual como existente de vida , uma linha metdica e lgica. Quero disciplinar a minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um estado anrquico pelo prprio excesso de foras vivas em aco, conflito e evoluo interconexa e divergente. No sei se estou sendo perfeitamente lcido. Creio que estou sendo sincero. Tenho pelo menos aquele amargo esprito que trazido pela prtica anti-social da sinceridade. Sim, eu devo estar a ser sincero. 10

    Cerca de um ms depois, Pessoa envia uma outra carta a Crtes-

    Rodrigues com revelaes mais contundentes em relao ao

    Livro do

    desassossego.

    (04 de outubro de 1914) Nem lhe mando outras pequenas coisas que tenho escrito nestes dias. No so muito dignas de serem mandadas, umas; outras esto incompletas; o resto tem sido quebrados e desconexos pedaos do Livro do desassossego. O meu estado de esprito actual de uma depresso profunda e calma. Estou h dias ao nvel do Livro do desassossego. E alguma coisa dessa obra tenho escrito. Ainda hoje escrevi um captulo todo. 11

    Em 19 de outubro do mesmo ano de 1914, Pessoa envia mais uma carta

    a Crtes Rodrigues sobre o seu estado de alma e a intimidade criada com o

    Livro:

    Eu j no sou eu. Sou um fragmento de mim conservado num museu abandonado. O meu estado de esprito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.12

    10 PESSOA. Cartas a Armando Crtes-Rodrigues. Pg. 22

    11 PESSOA, Fernando. Correspondncia 1905-1922. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pg. 125

    12 Idem. Pg. 133

  • O contedo das cartas enviadas a Mrio de S-Carneiro corresponde,

    principalmente, fase gestacional do Modernismo em Portugal. Mas tambm

    escreve sobre o L. do D.:

    (14 de maro de 1916) Pode ser que se no deitar hoje esta carta no correio amanh, relendo-a, me demore a copi-la mquina, para inserir frases e esgares dela no Livro do desassossego. Mas isso nada roubar sinceridade com que a escrevo, nem dolorosa inevitabilidade com que sinto.13

    As cartas dirigidas a Joo Gaspar Simes tratam sobre as questes

    referentes publicao de textos do L. do D., da autoria de Bernardo Soares, e

    que deveria ocupar o segundo lugar no projeto de edio de sua obra completa.

    (28 de junho de 1930) Quando se publica o 27 da Presena? Desejo enviar umas triunfais do lvaro de Campos e mais uma coisa do meu meu.14

    A ordenao que pretende dar sua obra est na carta datada de 28 de

    julho do ano de 1932. Primitivamente, era minha inteno comear minhas publicaes por trs livros, na seguinte ordem: 1. Portugal, que um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Portugus (Contempornea 40 a Segunda parte; O Livro do desassossego de Bernardo Soares, (pois que o Bernardo Soares no um heternimo, mas uma personalidade literria...) Sucede, porm, que o Livro do desassossego tem muita coisa que equilibrar e rever, no podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a faz-lo. 15

    13 PESSOA. Correspondncia 1905-1922. Pg. 210

    14 SIMES, Joo Gaspar. Cartas de Fernando Pessoa a Joo Gaspar Simes. Lisboa: Publicaes

    Europa-Amrica, 1957. Pg. 52 -Esta edio foi publicada em apenas 110 exemplares, sendo que 10 ficaram como cota do autor. Foi o prprio Gaspar Simes quem escreveu a introduo, o apndice e as notas. - O trecho a que Pessoa se refere o correspondente ao fragmento de n 95 da edio do Livro do desassossego, organizada por Richard Zenith, 1999. Pg. 125 Durei horas incgnitas, momentos sucessivos sem relao...

    15 Idem. Pg. 117

  • Mesmo depois de publicado, em 1982, os estudiosos do Livro do

    desassossego, retornam, com freqncia, aos documentos epistolares

    pessoanos, fonte inesgotvel de redescobrimentos.

    2.1 A GUIA A estria literria de Fernando Pessoa aconteceu em 1912, no nmero 4

    da revista A guia, com a publicao do artigo A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada.16 Sucedem-se, a este primeiro, outros artigos

    sob o mesmo tema: Reincidindo...17, na revista de n 5, de maio de 1912; A

    Nova poesia portuguesa no seu aspecto psicolgico

    1 Parte, no n 9, de

    setembro de 1912, e a 2 Parte no n 11, de novembro de 1912; no n12, de

    dezembro de 1912, sai a publicao da ltima parte do artigo intitulado A Nova

    poesia portuguesa psicologicamente considerada. Estes cinco artigos,

    publicados espaadamente, formam o grande estudo crtico de Fernando

    Pessoa sobre a nova corrente literria que surgia.18

    A revista A guia surgiu em 1910 e teve uma segunda srie em 1912, que se tornou veculo de comunicao do grupo da Renascena Portuguesa,

    formado por intelectuais do Porto. O iderio desse grupo era criar um novo

    16 Revista A guia, 2 srie, n 04, Porto, 1912

    17 Reincidindo... um texto-resposta a uma Carta de Coimbra, escrita e publicada pelo jornal O Dia de Lisboa, em 24 de abril de 1912, intitulada A Literatura e o Futuro. Este artigo criticava o texto de Fernando Pessoa A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. 18 Esses artigos foram publicados pela segunda vez nos nmeros de maio a setembro de 1941, na revista Ocidente, de Lisboa. Uma terceira publicao foi feita, em 1944, nos Cadernos Inqurito, srie G, Crtica e Histria Literria, com prefcio de lvaro Ribeiro. 19 A guia, 1912 20 A guia, 2. A guia, 1912.

  • Portugal, ou melhor, ressuscitar a Ptria Portuguesa, arrancando-a do tmulo

    onde a sepultaram alguns sculos de obscuridade fsica e moral .19 Segundo

    Teixeira de Pascoaes, o homem mais importante da Renascena, o grupo

    queria regressar s fontes originais da vida, para criar uma nova vida .20

    Os intelectuais da Renascena deram um novo perfil revista, passando

    esta para uma segunda fase com um contedo mais ecltico, respeitando, at

    onde possvel, as procedncias ideolgicas de seus colaboradores. O

    hibridismo dessa revista gerou uma indeterminao editorial que Pessoa soube

    aproveitar muito bem, extraindo da os fundamentos para o seu artigo que

    consistia, quela altura, na anteviso de uma Nova Renascena.

    A colaborao de Pessoa na revista A guia, com uma prosa crtica de valor incontestvel, teve um impacto grande nos meios polticos e culturais de

    Portugal, principalmente para aqueles que no comungavam com seu

    pensamento. Utilizando o mesmo espao da A guia, Adolfo Coelho,

    intelectual do Porto, acusa, sem citar o nome de Pessoa, de ser uma gerao

    de viso megalomanaca e messinica .

    Entretanto, a razo determinante que levou Pessoa a escolher a revista

    dos intelectuais do Porto ainda razo de dvida para os investigadores de

    sua obra. Os pressupostos literrios da Renascena pareciam, a princpio,

    coincidir com a sua idia patritica, confessada a Armando Crtes-Rodrigues,

    em carta datada de 19 de janeiro de 1915: Porque a idia patritica, sempre mais ou menos presente nos meus propsitos, avulta agora em mim; e no penso em fazer arte que no medite faz-lo para erguer alto o nome portugus do que eu consiga realizar. 21

    21 PESSOA. Cartas a Armando Crtes-Rodrigues. Pg. 1

  • O interesse de Fernando Pessoa tambm no tinha um referencial

    poltico declarado. Entendia que o grupo d A guia, em sua segunda fase, desempenhava um papel de transformao cultural da sociedade lusa. E,

    neste particular, Pessoa fez uma anlise em seu artigo Reincidindo..., dividida

    em trs partes sobre o futuro da literatura portuguesa. A primeira era sobre o

    novo movimento literrio

    Portugal se prepara para um ressurgimento

    assombroso, um perodo de criao e social como poucos o mundo tem tido .22

    A segunda concluso era acerca do momento poltico situacional daquele

    movimento do Porto

    tendo o movimento literrio portugus nascido com e

    acompanhado o movimento republicano, que est e ser o glorioso futuro

    deduzido .23 E a terceira concluso: O republicanismo que far a glria da

    nossa terra e por quem novos elementos civilizacionais sero criados no o

    atual desnacionalizado, idiota e corrupto, do tripartido republicano .24

    Um de seus grandes interesses em interferir na corrente do grupo d A

    guia foi o da arte e da cultura. Esta atitude de Pessoa est clara na mesma carta enviada a Crtes-Rodrigues: uma conseqncia de encarar a srio a

    arte e a vida. Outra atitude no pode ter para com a sua prpria noo-do-

    dever quem olha religiosamente para o espetculo triste e misterioso do

    Mundo."25

    22 PESSOA. A Nova Poesia Portuguesa. Pg. 48

    23 Idem. Ibidem.

    24 Idem. Ibidem.

    - Os partidos a que Fernando Pessoa se referem so os que foram formadas as voltas de Afonso Costa (1871-1973), Brito Machado e Antonio Jos de Almeida (1866-1929). Este ltimo eleito presidente da Repblica de Portugal no ano de 1910. 25

    PESSOA. Cartas a Armando Crtes-Rodrigues Pg.1.

  • Decerto, a aproximao poltica e sociolgica com o grupo do Porto,

    possibilitou ao crtico Pessoa apresentar os seus conceitos sobre uma nova

    pgina que se escrevia na histria da literatura portuguesa, atravs de

    fundamentos messinicos que ainda hoje surpreendem quem o estuda. Com efeito, a srie de artigos que compem a Nova poesia portuguesa, quer se diga

    sociologicamente quer psicologicamente considerada, possui elementos que

    antevem o processo potico pessoano. A coterie formada pelos outros eus

    e o ortnimo, as correntes literrias conhecidas como Palismo,

    Sensacionismo e Interseccionismo foram delineadas na revista A guia. Para justificar ainda mais seus conceitos, Pessoa atribui a essa nova poesia os significados de vago , subtil , complexo , e sugere que se estabelea um

    equilbrio entre eles para que a poesia daquela gerao no seja absolutamente subjetiva usando como exemplo o Simbolismo. O resultado foi o nascimento de uma poesia com a preocupao constante com a Alma e a

    Natureza.

    O amor patritico de Fernando Pessoa, referido em suas cartas, como

    tambm as suas reflexes sobre um Portugal camoniano culminaram, como se

    sabe, no poema Mensagem, nico livro que organicamente 26 foi composto e

    publicado em vida pelo poeta, poema que pode ser compreendido como um

    dos resultados de suas primeiras publicaes no Porto.

    No artigo sobre crtica literria, escrito n A guia, o poeta de Mensagem

    traa a evoluo e o futuro da corrente literria do Modernismo portugus, a

    26QUESADO, Clcio. Mensagem: labirintos de um livro beira-mgoa. Rio de Janeiro: Editora Elo, 1999

    27 PESSOA. A Nova poesia portuguesa, Pg. 48

  • partir da contextualizao de um Portugal histrico e culturalmente engajado

    na primeira dcada do sculo XX com pases da Europa, mais especificamente

    na Inglaterra e na Frana.

    ...este movimento potico d-se coincidentemente com um perodo de pobre e deprimida vida social, de mesquinha poltica, de dificuldades e obstculos de tosa a espcie e a mais quotidiana paz individual e social, e a mais rudimentar confiana ou segurana num ou de um, fututo.27

    Ainda no mesmo artigo, Pessoa enfatiza a sua deduo em relao ao

    futuro literrio lusitano:

    ...mais conclusivo se nos afigura o prximo parecer de um supra Cames na nossa terra. [...] Porque a corrente literria, como vimos, precede sempre a corrente social nas pocas sublimes de uma nao. [...] Ousemos concluir isto, onde o raciocnio excede o sonho: que a actual corrente literria, das que precedem as grandes pocas criadoras das grandes naes de quem a civilizao filha.28

    Na ltima srie do artigo A Nova poesia portuguesa psicologicamente

    considerada, Fernando Pessoa rene todos os artigos anteriores e conclui

    argumentando que qualquer fenmeno literrio

    corrente, ou grupo, ou

    individualidade

    susceptvel de ser considerado sob trs aspectos para ser

    completamente compreendido. Esses trs pontos de vista so o psicolgico, o

    literrio e o sociolgico.29

    O tecido literrio de Pessoa formado pelos significantes e significados

    das variantes psicolgica, literria e sociolgica. Assim, o resultado um tecido

    literrio uno e renovado, cuja trama vista de trs maneiras distintas e entrecruzadas. A primeira variante para Fernando Pessoa a metafsica

    28 PESSOA. A Nova poesia portuguesa, Pg. 48

    29 Idem. Pg. 28

    30 Idem. Pg.64

  • conceito do universo e das coisas que subjaz s manifestaes dessa corrente. A segunda a esttica, como modo de ser literrio , e a terceira a

    sociologia, que significa as teorias sociais .30

    Nestes argumentos, Fernando Pessoa vai alm de uma anlise da

    poesia saudosista finissecular. Atravs da sua compreenso, configura o seu

    processo proftico ao afirmar que a nossa poesia caminha para o auge: o

    grande poeta proximamente vindouro, que encarnar esse auge, realizar o

    mximo equilbrio da subjectividade e da objectividade .31 Pessoa assinala ainda neste texto que a nova poesia portuguesa deve conciliar esses contrrios

    subjetividade e objetividade

    por meio da emoo e da inteligncia. A nova

    poesia portuguesa, uma vez equilibrada na Alma e na Natureza, fundamentada

    em uma anlise comparativa com a poesia inglesa e o romantismo francs se

    firmar como a poesia nacional.

    A tessitura dos artigos A Nova poesia portuguesa est esmiuada em

    cartas escritas por Pessoa a lvaro Pinto, ento dirigente da Renascena Portuguesa e secretrio da revista A guia. Foram trocadas correspondncias,

    no perodo de 25 de abril a 04 de dezembro de 1912, especificamente sobre

    esse texto crtico e sobre o texto em prosa Na Floresta do alheamento.

    Como sabido, muitos dos documentos de Pessoa no so datados e

    exigem muita percia do investigador para torn-los datveis. Ao contrrio, as

    cartas enviadas a lvaro Pinto esto todas datadas, o que um lenitivo para os seus estudiosos. Elas revelam o processo editorial desses artigos; a

    demora em escrev-los, os percalos e mesmo os problemas enfrentados com

    os prprios editores.

  • Em 25 de abril de 1912, Pessoa escreve a lvaro Pinto explicando que no mandara o artigo sobre A Nova literatura portuguesa sociologicamente

    considerada e dando como novo prazo o final do mesmo ms.

    Como, porm, V...compreende, a elaborao raciocinativa de um assunto originalmente concebido difcil, e especialmente difcil quando consideraes de espao tipogrfico entram

    isto , tm de ser levados em conta

    na elaborao do raciocnio. (...) Como foi no dia 7 de Abril que recebi as provas do meu primeiro artigo, e elas revistas, chegaram a tempo de no demorar a sada de A guia, creio (a no ser que o nmero 5 saia antes do habitual dia 15) que, dando 7 dias de margem para a composio tipogrfica do artigo, dou amplo tempo ao compositor. 32

    H nesta carta duas informaes, para alm da questo tipogrfica. A

    primeira diz respeito continuao dos seus estudos e escritos sobre a poesia

    portuguesa, cuja segunda parte seria enviada no final do ms de abril. A segunda diz respeito ao artigo Reincidindo... que foi publicado em maio de

    1915, como resposta a um artigo de O Dia, de Lisboa, j mencionado anteriormente, na nota de p-de-pgina de n 17.

    Dois meses depois, em 24 de junho de 1912, Fernando Pessoa envia mais uma de suas cartas a lvaro Pinto sobre o artigo que, na seqncia dos anteriores, se intitula A Nova poesia portuguesa no seu aspecto psicolgico.

    Apesar da minha toda vontade em satisfazer a promessa de enviar o meu artigo no dia que indiquei, tenho encontrado dificuldade, de ordem racionativa, na execuo do escrito. Entre o fazer um artigo cuja imperfeio torturaria tanto o meu senso intelectual como a minha noo do que devido guia, e no o fazer, escolhi, ainda que magoado por ter de faltar ao que prometera, o no enviar a tal colaborao para este ms. D-se o caso de ser o mais difcil e importante, por incluir a caracterizao da nova corrente literria. 33

    31 PESSOA. Correspondncias 1905- 1922. Pg.. 240

    32 PESSOA. Correspondncias 1905-1922. Pg. 41

    33PESSOA. Correspondncias 1905-1922. Pg. 41 34Idem.Pg. 45

  • Outra carta datada de 29 de agosto de 1912, Fernando Pessoa envia

    ainda ao secretrio da revista A guia, solicitando que una seus ltimos artigos em apenas um nmero, evitando, inclusive, a no compreenso por outros

    crticos ou editores. So os artigos sobre os aspectos psicolgicos,

    sociolgicos e a influncia da Renascena Portuguesa na Histria da Literatura

    Portuguesa.

    Estimaria muito, e agradecia muito, eu, e o raciocinador que h em mim, se o meu amigo pudesse conseguir que num s nmero viessem

    como, pela lgica, devem ser

    os trs captulos do artigo que para a, em duas remessas enviei. (...) Creio que faziam justia, de algum modo, Renascena. Os outros tambm a faziam, mas faziam-na errado, o que, para mim, no a fazer. 34

    O ano de 1913 rico em exemplos epistolares sobre o caminho editorial

    de Fernando Pessoa e dos intelectuais do Porto. Mas, uma carta especial

    para o Livro do desassossego. A indagao ao secretrio d A guia cada vez

    mais freqente, j que Pessoa percebe que sua literatura no comunga com o gosto do grupo do Porto.

    O meu amigo sabe que nada mais estimo do que absoluta franqueza nesses assuntos. O Na Floresta do alheamento ser ultra-excessivo, em matria de requinte, para que achem prudente que A guia o insira? Diga-mo francamente. 35

    Em 25 de maio de 1914, Pessoa escreve a lvaro Pinto, perguntando da possibilidade de publicar algo seu: uma pea sua, O Marinheiro, de um ato de

    gnero especial chamado pelo autor de esttico . Este mesmo drama foi

    publicado em 1915, no n. 1 de Orpheu.

    35 PESSOA. Correspondncias 1905-1922. Pg. 101

    36 Idem.. Pg.116

    37 PESSOA. Correspondncias 1905-1922. Pg.130-131

  • Dentro em pouco mandar-lhe-ei, para a Renascena, caso queira editar, um escrito meu. (...) Claro est que o amigo com toda a franqueza me dir, depois de ler a pea, se convm realmente edit-la. Exijo, e no me ofenderei com uma recusa uma franqueza absoluta. A pea formar uma mera plaquette. No lha remeto para A guia porque para esse fim , alm de extensa, vagamente imprpria. 36

    A sua ltima carta enviada a lvaro Pinto datada de 12 de novembro de 1914. Ela compara os textos Na Floresta do alheamento e o outro drama

    esttico O Marinheiro. Em uma nica missiva, Pessoa relata o seu desagrado

    com o grupo da Renascena e se d como indisponvel para continuao

    desse seu trabalho.

    H meses escrevi para a, ao meu Amigo, como de costume, perguntando-lhe se a Renascena editaria uma plaquette minha, e expliquei que se tratava de um drama que num acto, de um gnero a que eu chamo esttico , e sobre cuja forma e feitio eu disse, para dele dar alguma idia, que se assemelhava, como com efeito se assemelha, ao escrito Na Floresta do alheamento que publiquei n A guia. Depois disto, pedia eu na carta referida que o meu Amigo me dissesse francamente se a Renascena podia ou queria editar aquele trabalho. Fiz esta pergunta porque tomei os seus anteriores oferecimentos sobre editar trabalhos meus como referindo-se a trabalhos de crtica ou sociologia, e no as produes propriamente literrias. Eu acrescentei, at, que de modo algum me ofenderia com uma recusa. Sei bem a pouca simpatia que o meu trabalho propriamente literrio obtm da maioria daqueles meus amigos e conhecidos, cuja orientao de esprito lusitanista ou saudosista. 37

    E, depois de situar as verdadeiras razes de divergncia entre ele e o

    grupo do Porto, Fernando Pessoa d por terminada a sua carta e sua relao

    com o grupo da Renascena.

    Quanto ao referido trabalho, ou outros trabalhos quaisquer, permita-me o Amigo que lhe pea para colaborar comigo em no falarmos mais nisso. Cessei. (...) No podendo ter a maravilhosa e natural sade de no ter opinio nem sonhos, esforcemo-nos ao menos por adquirir a artificial sade da renncia. Desculpe-me ter-lhe tomado tanto tempo, e ter acabado de modo to indecorosamente literrio. 38

    A bibliografia que possibilitou conhecer as cartas enviadas por Fernando

    Pessoa a muitos de seus remetentes no viabilizou todavia, que fossem

    38PESSOA. Correspondncias 1905-1922. Pg . 132

  • encontradas as cartas respostas. Foi o que se deu com a correspondncia

    entre o autor estudado e o secretrio da revista A guia.

  • 2.2. NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

    A primeira publicao de um texto literrio de Fernando Pessoa foi Na

    Floresta do alheamento (Anexo 5), no nmero 20 da revista A guia, em agosto de 1913. Levou a sua assinatura e uma indicao em letras maisculas

    para o L. do D. e cujo tema central o desassossego do eu . Ao ler o texto Na Floresta do alheamento percebe-se que o seu

    contedo se encontra no Livro do desassossego: o tdio, a morte, o tempo, o

    amor. Nos projetos de Pessoa para publicao do Livro este trecho aparece como parte do seu corpus. Conhecer este texto o primeiro passo para

    conhecer o Livro do desassossego. Apontar alguns pontos desta plaqueta

    importante para quem l essa obra de Pessoa.

    Na Floresta do alheamento um brevirio do Interseccionismo, que

    simboliza a inquietao de quem o escreveu. A sua estrutura apresenta a

    predominncia dos verbos no pretrito imperfeito e no infinitivo, acentuando a

    imperfeio da vida e a noo de que apenas as sensaes podem reg-la.

    Neste texto no h definio de tempo: pois este esttico. As descries de

    espao e tempo so feitas por imagens fragmentadas e instantneas, que

    aparecem e desaparecem em meio s reflexes do sujeito enunciador. Uma boa definio sobre o significado de Na Floresta do alheamento

    feita pelo prprio autor em carta enviada a Joo Lebre de Lima39:

    A propsito de tdios, lembra-me perguntar-lhe uma coisa... Viu, num nmero do ano passado, de A guia, um trecho meu chamado Na Floresta do alheamento? Se no viu, diga-me. Mandar-lho-ei. Tenho imenso interesse em que v. conhea esse trecho. o nico trecho meu publicado em que fao eu o tdio, e do sonho estril e cansado de si prprio mesmo ao ir comear a sonhar-se, um motivo e o assunto. No sei se lhe agradar o estilo em que o trecho est escrito: um estilo especialmente meu, e que aqui vrios rapazes

    39 PESSOA. Correspondncia 1905-1922. Pg. 114

  • amigos, brincando, chamam o estilo alheio , por ser naquele trecho que aparece. E Referem-se a falar em alheio , escrever em alheio , etc. 40

    O mote do texto Na Floresta do alheamento o desassossego, que

    tambm o ttulo escolhido para o livro que nunca existiu materialmente

    O

    Livro do desassossego.

    Aquele trecho pertence a um livro meu, de que h outros trechos escritos mas inditos, mais de que falta ainda muito para acabar; esse livro chama-se Livro do desassossego, por causa da inquietao e incerteza que a sua nota predominante. No trecho publicado isso se nota. O que em aparncia um mero sonho, ou entressonho, narrado,

    sente-se logo que se l, e deve, se realizei bem, sentir-se atravs de toda a leitura

    uma confisso sonhada da inutilidade dolorosa fria estril de sonhar.41

    A construo dramtica do texto se d entre a viglia, o sono e o acordar.

    Fernando Pessoa faz uso desses estgios do sono para descrever a sua

    realidade agonizante.

    Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, modo de eu viver, diz-me que muito cedo ainda. Sinto-me febril de longe. Peso-me no sei qu... Num torpor lcido, pesadamente incorpreo, estagno, entre o sono e a viglia, num sonho que a sombra de sonhar. Minha ateno bia entre dois mundos e v cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um cu, e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu no sei onde estou nem o que sonho.42

    O texto procura absorver a sua expresso de ver e sentir o mundo.

    Sentindo tudo e a si mesmo. Em Na Floresta do alheamento, a descrio que

    feita dos sentidos, sobretudo a do sono, revela a instabilidade e a falta de

    realidade que o sujeito enunciador sofre. Um oxmoro une os estados de torpor, sono e viglia, transformando-os em outra realidade:

    Com uma lentido confusa acalmo. Entorpeo-me. Bio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espcie de realidade surge, e eu em meio dela, no sei de que onde que no este.... Surge mas no apaga esta, esta de alcova tpida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha ateno algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam. 43

    40 Idem. Ibidem.

    41 PESSOA. Correspondncia 1905-1922. Pg. 114

    42 PESSOA. O Livro do desassossego, 1999. Pg.452

    43PESSOA. Idem. Pg. 453

  • Em seus primeiros pargrafos j esto representados os sentidos, as sensaes atravs do sonho.

    O meu corpo antigo, modo deu eu viver, diz-me que muito cedo ainda. (...) a profundeza de um mar e a profundeza de um cu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu no sei onde estou nem o que sonho. (...) Um vento de sombras sopra cinzas de propsitos mortos sobre o que eu sou de desperto. 44

    O amor s desengano.

    Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos ns...No tiremos do dedo o anel mgico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento... E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge entre ns outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbao e mais triste da nossa tristeza. 45

    O texto descrito no mais profundo tdio.

    Ali vivemos um tempo que no sabia decorrer, um espao para que no havia pensar em poder medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extenso que desconhecia os hbitos da realidade do espao...Que horas, companheira intil do meu tdio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!...Hora de cinza de esprito, dias de saudade espacial, sculos interiores de paisagem externa...e ns no nos perguntvamos para que era aquilo, porque gozvamos o saber que aquilo no era nada. 46

    A finitude humana e a indeterminao do tempo esto claras no texto.

    Reparvamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entrenhado em ns do que a conscincia de o ouvirmos. E assim o murmrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo montono e esquecido do mar eterno punham nossa vida abandonada uma aurola de

    44 PESSOA. O Livro do desassossego, 1999. Pg. 453

    45 Idem . Pg. 456

    46 Idem. Pg. 455

    47 Idem. Pg.455.

  • no o conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de no ser nada, de no ter desejos nem esperanas, de nos termos esquecidos da cor dos amores e do sabor dos dios. Julgvamo-nos imortais...47

    um texto de angstia e morte: Que ntida de outra e de ela essa trmula paisagem transparente! E quem essa mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que que tenho um momento de mo perguntar? Eu nem sei quer-lo saber... A alcova vaga um vidro escuro atravs do qual, consciente dele, vejo essa paisagem... e essa paisagem conheo-a h muito, e h muito que com essa mulher que desconheo erro, outra realidade atravs da irrealidade dela.. (...) Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher. Um grande cansao um fogo negro que me consome...Uma grande nsia passiva a vida falsa que estreita...48

    A floresta alheia a fronteira entre a vida e a morte.

    De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento varre um fumo, e esse fumo a viso ntida e escura da alcova em que sou actual, destes vagos mveis e reposteiros e do seu torpor nocturno. Depois esse vento passa e torna a ser toda s ela a paisagem daquele outro mundo... 49

    Em Na Floresta do alheamento, o desengano o caminho mais fcil

    para a vida.

    A nossa vida no tinha dentro. ramos fora e outros. Desconhecamo-nos, como se houvssemos aparecido s nossas almas depois de uma viagem atravs dos sonhos... Tnhamos nos esquecido do tempo, e o espao imenso empequenara-se-nos na ateno. Fora daquelas rvores prximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes ltimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor de olhar aberto que se d s coisas que existem?...50

    A Floresta do alheamento construda por uma estrutura textual de

    imagens, e a essncia de seu texto est nas sensaes expostas em cada

    48 PESSOA. O Livro do desassossego, 1999. Pg. 455

    49 Idem. Ididem.

    50 Idem. Ibidem.

    51 Idem. Ibidem.

  • frase: E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueo, ao t-la que tenho

    saudades dela, ao percorr-la que a choro e a ela aspiro.... 51

    Fernando Pessoa finaliza esse drama potico com frases que revelam a

    imperfeio humana, o efmero do sonho, do tdio e da morte.

    Desenganemo-nos da esperana, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e no sacia, e at da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera. Desenganemo-nos, Velada, do nosso prprio tdio, porque se envelhece de si prprio e no ousa ser toda a angstia que . No choremos, no odiemos, no desejemos... Cubramos, Silenciosa, com um lenol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeio... 52

    52 PESSOA. Livro do desassossego.1999. Pg. 453

  • 2.3. DUAS CARTAS

    O Livro do desassossego, em sua forma editorial foi organizado com

    documentos que comprovam a sua existncia pelo seu autor. Entre estes

    documentos esto duas cartas de enorme significado para a construo do

    memorial do desassossego.

    A primeira data de 3 de fevereiro de 1913, enviada de Paris, por seu

    amigo Mrio de S-Carneiro. Trata-se de uma carta de admirao, de

    confisso e de preocupao com o trabalho de Pessoa. S-Carneiro reflete a

    necessidade que h de publicao da obra de seu amigo, baseado nos artigos

    escritos para a revista A guia, referindo-se srie da Nova poesia portuguesa e a Na Floresta do alheamento.

    O trecho expressa, nitidamente, toda a admirao intelectual de S-

    Carneiro pelo poeta do alheamento. Esta estima e cumplicidade intelectual

    desses dois poetas gerou a pgina principal do Modernismo portugus.

    Recebi a sua carta anteontem. No sei como agradecer-lhe. E s lhe digo que ela me causou uma grande alegria porque nos d sempre grande prazer sabermos que temos quem nos estime e nos compreende. Obrigado. Em primeiro lugar quero-lhe falar das suas poesias. Elas so admirveis, j se sabe, mas o que mais aprecio nelas a sua qualidade. Eu me explico. Os seus versos so cada vez mais seus. O meu amigo vai criando uma nova linguagem, uma nova expresso potica e

    veja se compreende o que eu quero significar

    conseguiu uma notvel fora de sugerir que a beleza mxima das suas poesias sonhadas. muito difcil dizer o que quero exprimir: entre os seus versos correm nuvens.53

    A seqncia um trecho confessional de S-Carneiro:

    53 S-CARNEIRO. Cartas a Fernando Pessoa. 1973. Pg. 62

    54 Idem. Ibidem.

  • Quantas vezes em frente dum espelho

    e isto j em criana

    eu no me perguntava olhando a minha imagem: Mas o que ser-se eu; o que sou eu? E sempre, nestas ocasies, de sbito, me desconhecia, no acreditando que eu fosse eu, tendo a sensao de sair de mim prprio. Concebe isto?54

    A admirao do poeta, que vivia em Paris em fins de 1912, no poupou

    seu amigo de uma crtica severa sobre suas publicaes.

    O que preciso, meu querido Fernando, reunir, concluir os seus versos e public-los, no perdendo energias em longos artigos de crtica nem to pouco escrevendo fragmentos admirveis de obras admirveis, mas nunca terminadas. preciso que se conhea o poeta Fernando Pessoa, o artista Fernando Pessoa

    e no o crtico s

    por lcido e brilhante que ele seja. Atenda bem nas minhas palavras. Eu reputo mesmo um perigo para o seu triunfo a sua demora em aparecer como poeta.55

    Mrio de S-Carneiro faz referncia aos artigos escritos por Pessoa n A

    guia, ao drama Na Floresta do alheamento e a outros fragmentos

    que pelo

    texto de sua carta parece conhecer cujo projeto era o Livro do desassossego. E de forma muito clara conclui o seu pargrafo sobre o assunto:

    Habituado a ser considerado como o belo crtico, os outros tero estpida mas instintivamente repugnncia em o aceitar como poeta. E voc pode encontrar-se o crtico-poeta e no o poeta-crtico. Por isso, embora em princpio eu concorde com a sua resoluo de no publicar versos seno em livro, achava prefervel

    se no v possibilidade de o ver sair num espao breve

    a insero de algumas de suas poesias (ainda que poucas) na guia. Seria pour prendre date como poeta.56

    A segunda carta foi escrita por Fernando Pessoa para Madalena

    Nogueira, sua me, em 5 de junho de 1914, quando esta ainda morava na frica do Sul. Abaixo da data em que foi escrita h a indicao L. do D. , o que

    55 S-CARNEIRO. Cartas a Fernando Pessoa. 1973. Pg. 63

    56 Idem. Ibdem.

  • d a entender que havia interesse de Fernando Pessoa em inclu-la, em pelo

    menos em algumas passagens, no Livro do desassossego.

    Entre o relato do seu sentimento de solido e o seu comicho

    intelectual , Fernando Pessoa revela a sua dvida entre publicar o seu livro ou

    permanecer indito.

    Mesmo a circunstncia de eu ir publicar um livro vem alterar a minha vida. Perco uma coisa

    o ser indito. E assim mudar para melhor, porque mudar mau, sempre mudar para pior. E perder um defeito, ou uma deficincia, ou uma negao. Sempre perder. Imagine a Mam como no viver, de dolorosas sensaes quotidianas, uma criatura que sente desta maneira!57

    Fernando Pessoa toma como referncia o que seus amigos escrevem

    sobre a sua vida intelectual e o seu futuro como poeta.

    Que serei eu daqui a dez anos

    de aqui a cinco anos mesmo? Os meus amigos dizem-se que eu serei um dos maiores poetas contemporneos

    dizem-no vendo o que eu j tenho feito, no o que poderei fazer (se no eu no citava o que eles dizem...) Mas sei eu ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a glria saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podrido. 58

    Esta carta enviada sua me consta nas edies que foram publicadas

    do Livro do desassossego. Os organizadores destas edies assim o fizeram

    por terem encontrado no seu original as seguintes informaes: para o ''L do

    D.", nota e cpia de carta para Pretria . Na edio princeps, de 1982, de

    Jacinto do Prado Coelho, ela est localizada no Volume I, no corpo do livro,

    com nmero de fragmento 10, pginas 8 -11.

    Na edio organizada por Teresa Sobral Cunha, a mesma carta consta

    do Volume I, pginas 118 e 119, da autoria de Vicente Guedes. O ttulo foi

    57 PESSOA. Correspondncias 1905-1922, 1999. Pg.117-118.

    58 Idem. Ibidem

  • grafado entre parnteses (cpia duma carta para Pretria de 5-6-1914) - com um sinal de asterisco e explicao ao p-de-pgina sobre a missiva.

    Richard Zenith, que publicou o Livro do desassossego, em 1998,

    transcreveu a carta no item III do Apndice ao qual denominou Outros textos e

    fragmentos no integrados no corpus .

    Nos documentos pesquisados sobre o Livro, estas duas cartas formaram

    um elo de ligao na vida literria do autor. A primeira porque diz respeito

    fase embrionria do Livro, e a segunda d conta de como Pessoa percebe a

    vida ao publicar um livro: Neste caso o Livro do desassossego.

  • 3. No Caminho do Desassossego

    Cheguei quele ponto em que o tdio uma pessoa, a fico encarnada do meu convvio comigo.

    BERNARDO SOARES

    Em 1932, Fernando Pessoa escrevia a Joo Gaspar Simes sobre

    como pretendia publicar a sua obra fazendo uma ressalva sobre o Livro do

    desassossego: Sucede, porm, que o Livro do desassossego tem muita coisa

    que equilibrar e rever, no podendo eu calcular, decentemente, que me leve

    menos de um ano a faz-lo .1 Passados mais de setenta anos desta afirmao

    do autor, esta obra inacabada foi editada e reeditada, por renomados

    estudiosos de Pessoa. Cada qual com a sua interpretao pessoal para uma

    organizao entendida como definitiva, consagrando o Livro do desassossego

    como a prosa pessoana.

    A afirmao de Pessoa j seria suficiente para que fossem aceitos como definitivos os documentos escritos e separados em envelopes contidos em sua

    j famosa arca, como sendo para o Livro do desassossego. um equvoco tambm considerar o Livro de a prosa pessoana. Pessoa escreveu muita coisa

    em prosa. A prosa desse "indisciplinador de almas" vai alm do Livro do

    desassossego. Em 1976, Cleonice Berardinelli 2 organizou e prefaciou um livro

    1 SIMES, Joo Gaspar. Cartas de Fernando Pessoa a Joo Gaspar Simes. Lisboa: Publicaes

    Europa-Amrica, 1957. pg. 117. 2 BERARDINELLI, Cleonice. Alguma Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1990.

  • contendo textos em prosa de Fernando Pessoa, desde a sua adolescncia at

    o ltimo ano de vida.

    Para editar uma obra preciso respeitar o desejo do autor, e Fernando Pessoa continua a existir em seus papis, em documentos epistolares e em

    testemunhos registrados pelos que com ele conviveram. preciso l-lo para compreender e respeitar a forma final que ele gostaria que fosse dada sua

    obra. Ivo Castro3, esclarece essa questo editorial afirmando que, na verdade,

    apenas o que o prprio autor preparou e classificou em definitivo poderiam ser

    considerados, e mesmo assim tendo o autor revisto suas provas e

    acompanhado de perto a leitura de sua publicao. No foi este o caso. O Livro

    do desassossego marcado pelo modo de trabalho de seu autor, que sempre

    atribuiu maior valor redao do que publicao de seus apontamentos.

    Alguns dos fragmentos pertencentes a esta obra foram publicados por Pessoa

    e outros tantos deixados em desordem. Este universo de registros, legados

    como testamento pelo autor, colocam sempre em discusso a existncia de

    uma edio definitiva que Pessoa no pde ou no quis equilibrar e rever.

    Em setembro de 2004, no colquio Fernando Pessoa: outra vez te

    revejo... realizado no Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro,

    Foram contemplados os textos de O Eu Profundo, Os Outros Eus, Idias Estticas da Arte e da Literatura, Idias Filosficas, idias Polticas, Teoria e Prtica do Comrcio e sua Fico (onde est includo o Livro do desassossego)

    3 CASTRO, Ivo. Editar Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990.

    4 DUARTE, Luiz Fagundes. Pessoa Desassossegado. Rio de Janeiro: Real Gabinete Portugus de Leitura,

    setembro de 2004. (texto cedido, sob reserva, pelo autor a esta mestranda)

  • Luiz Fagundes Duarte4, em sua conferncia, discorreu sobre as edies

    crticas do Livro do desassossego.

    No vou dizer, claro, que seja coisa de doidos a j longa tradio de edies da obra de Pessoa

    embora o conhecimento que tenho dos materiais autgrafos do escritor, das hesitaes e incongruncias que neles se encontraram, das fortssimas diferenas que freqentemente existem entre a verso final da pequena parte da obra publicada em vida e os respectivos manuscritos autgrafos ainda conservados (o que por vezes retira o tapete ao editor, que assim deixa, nas situaes de dvida, de poder contar com o argumento dos hbitos autorais como guia de bem trabalhar o texto), do complicado cdigo de sinais grficos que sabemos que representam intenes do autor mas que ele no descodificou e que, por isso, para ns pouco mais so do que marcaes de hipteses, da grande variao de letras e de materiais e suportes de escrita, das possibilidades de leitura que permitem aos editores, enfim -, mas, recordando Ravel, conhecer as caractersticas dos manuscritos autgrafos de Pessoa, e arriscar a realizao de uma edio crtica e rigorosa da sua obra a partir dos suportes que a contm, se no de tornar o fillogo em doido (j que o verdadeiro fillogo tem que estar preparado para tudo), pelo menos uma das maneiras possveis de conhecer a obra pessoana: mesmo na imensa confuso em que os deixaram quem pela primeira vez desfez que esvaziou os envelopes em que o autor os havia arrumado os papis autgrafos pessoanos que continuam a ser a partitura onde se encontra a grande sinfonia de Fernando Pessoa.5

    Neste pargrafo, Luiz Fagundes Duarte, sintetizou as grandes questes

    que se formam em torno do critrio utilizado para editar o Livro do

    desassossego. E no toa que faz essas referncias. A partir do legado

    documental de Pessoa, do estudo pioneiro feito por Jorge de Sena6, passando

    pela edio princeps de Jacinto do Prado Coelho at a mais recente de Richard

    Zenith, independente de suas qualidades, todas apresentaram ao pblico em

    geral verses diferentes de uma mesma obra.

    O leitor, cujo interesse est sobretudo na obra e no autor, dar sempre benefcio dvida em qualquer edio que leia. Essas edies formam um

    cruzamento de justificativas editoriais, cujas respostas iro de zero a infinito.

    5 DUARTE, Luiz Fagundes. Pessoa Desassossegado. Rio de Janeiro: Real Gabinete Portugus de Leitura,

    setembro de 2004. Pg. 2 6 SENA, Jorge de. Fernando Pessoa C Heteronmia. Lisboa: Edies 70, 2000. 3 Edio.

  • Interessa a esse leitor saber como e de que forma cada um dos editores do

    Livro do desassossego deu substncia deciso do prprio Fernando Pessoa:

    A organizao do livro deve basar-se numa escolha, rgida quanto possvel, dos trechos variadamente existentes, adaptando-se, porm, os mais antigos, que falhem psicologia de Bernardo Soares, tal como agora surge, a essa vera psicologia. parte isso, h que se fazer uma reviso geral do prprio estilo, sem que ele perca, na expresso ntima, o devaneio e o desconexo lgico que o caracterizam. 6

    O desejo de Fernando Pessoa era fazer um livro desconexo, adaptando alguns trechos que falhassem ao semi-heternimo Bernardo Soares, como

    tambm a reviso geral do prprio estilo.

    Na dcada de 50, Jorge de Sena chegou a assumir a tarefa de editar o

    Livro do desassossego, a partir de um trabalho de pesquisa e cpia dos textos

    feita por Maria Aliete Galhoz. Todavia, aps entreveros editoriais, acabou por

    desistir. Mas o seu estudo ponto de partida para quem se ocupa do L. do D..

    Comum aos seus sucessores, uma das afirmativas de Sena o binmio

    desassossego-Pessoa.

    Seria por certo um exagero considerar-se que o desassossego de Fernando Pessoa estar todo no livro que ele imaginou com esse ttulo, ou no que como Livro , ele alguma vez chegou a ser. Esta obra fragmentria no seno mais uma das suas vrias obras por pessoas vrias. 7

    A primeira edio do Livro foi a publicada em 1982, organizada por

    Jacinto do Prado Coelho, a partir do trabalho de pesquisa e de fixao de texto

    de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Esta publicao um marco

    editorial na obra de Fernando Pessoa. Da vieram novas edies do L. do D. e

    novos estudos sobre Pessoa.

    7 SENA. 2000. Pg. 145

  • A fortuna crtica amealhada desde o afloramento macio de sua poesia

    multiplica-se a partir dessa edio princeps e no pra de crescer a polmica

    em relao ao autor e sua obra. O II Congresso Internacional de Estudos

    Pessoanos, realizado em Nashville, em 1984, teve como tema central o Livro

    do desassossego. Neste Congresso, Eduardo Loureno apontou para a

    importncia dessa edio:

    Em boa hora os responsveis pela existncia literria de O Livro do desassossego no-lo ofereceram. No que a j conhecida textualidade pessoana tenha esgotado o encanto e o mistrio que so consubstanciais. Mas os telogos pessoanos, que todos ns somos um pouco, comeavam a moer a mesma farinha e a percorrer, talvez com excessiva confiana, as veredas imbalizveis de uma aventura culturalmente terminada. Parecia ter chegado o tempo de aprender mais (e sobre) quem se ocupa com Pessoa que sobre o prprio Pessoa, o que sem ser escandaloso

    at porque tambm inevitvel

    remetia (remete) o texto para o pretexto, a voz que nos interpela e convoca para o discurso que a devora e apaga. 8

    O ano de 1986 foi marcado por novas edies do Livro do

    desassossego. No Brasil, Leyla Perrone-Moyss9 publicou uma edio com

    308 fragmentos, em ordenao temtica, tal como a portuguesa de Jacinto do

    Prado Coelho com uma organizao subdividida em tpicos. Perrone-Moyss

    atribuiu, conscientemente, sua edio critrios prprios de estruturao

    obra desestruturada de Fernando Pessoa:

    Esta edio do Livro do desassossego discutvel. Como todas, passadas ou futuras, por uma razo ou por outra. (...) Poder, isto sim, haver edies mais completas, mais fiis aos originais, edies preparadas e apresentadas com todo o aparato crtico que a cincia textual permite. Mas esta uma edio voluntariamente incompleta e decididamente pouco cientfica. No uma edio para especialistas ou estudiosos da obra de Pessoa; apenas uma edio corrente, feita para os amadores do Poeta, que so legio em nosso pas. 10

    8 LOURENO, Eduardo. Fernando, Rei da nossa Baviera. Lisboa; Casa da Moeda. Editora Nacional, 1993. Pg. 78

    9 PESSOA, Fernando. O Livro do desassossego.So Paulo: Editora Brasiliense, 1996. Pg. 34

    11 PESSOA, Fernando. O Livro do desassossego. Lisboa: Editorial Comunicao, 1986.

  • No mesmo ano, em Portugal, Maria Alzira Seixo11, publicou o Livro do

    desassossego de Bernardo Soares. Igualmente baseada na organizao da

    edio princeps a sua diferena se faz sobretudo pelas sugestes para anlise

    literria do texto e tambm pelo apndice bibliogrfico elaborado por Jos

    Blanco. A sua organizao foi feita com a seleo de 200 fragmentos dos dois

    volumes da edio de 1982, formando, pois, uma antologia capaz de dar uma

    compreenso geral da obra. uma edio menos erudita e com menor aparato crtico, voltada para um pblico iniciante, mais precisamente de estudantes do

    Portugal dos anos 80.

    Em 1990, Teresa Sobral Cunha12 publica a sua edio do afamado Livro.

    A sua organizao foi pautada nas centenas de textos desconexos inditos e

    ditos que Pessoa deixou em sua arca. Sobral Cunha publica o Livro do

    desassossego como dois livros de dois autores; o semi-heternimo Bernardo

    Soares e o heternimo Vicente Guedes. Do seu ponto de vista, baseada em

    sua investigao nos documentos histricos, h a evidncia clara de que

    Pessoa tinha mais do que um livro, isto : o percurso possvel de um livro, fiel,

    at o fim, ao estdio incipiente ('em preparao') de que partiu, e em manifesta homologia com quem, falando do destino prprio, negou a evoluo, mas no a

    viagem . 13

    A idia de que Pessoa tivesse como projeto um ttulo para dois livros e no apenas um j estava contido no estudo de Jorge de Sena:

    que o livro a que pertence o trecho de 1913 no , todavia, o mesmo a que pertencem os outros

    mas um dos ncleos de que, como de outros projectos iniciais, brotou o Fernando Pessoa verdadeiramente grande e liberto de

    14 SENA. 2000. Pg. 145.

    15 PESSOA, Fernando. O Livro do desassossego. Lisboa: Assrio e Alvim, 1998. Pg. 32

  • esteticismos a que, no entanto, devera a conscincia de si mesmo como artista, que primeiro adquiriu. A transformao do Livro do desassossego , pois, da maior importncia para distinguirmos a transformao do Pessoa esteticista e simbolista, no grande modernista que ele foi.14

    Em 1998, Richard Zenith15 publica a sua verso do Livro do

    desassossego. Para alm de consultar os manuscritos da obra de Pessoa,

    Zenith teve a possibilidade de acrescentar sua organizao os estudos

    prestimosos das edies anteriores. Em sua introduo, defende que o Livro

    no existe materialmente, o que existe a sua subverso e negao, o livro

    em potncia, o livro em plena runa, o livro-sonho, o livro-desespero, o antilivro,

    alm de qualquer literatura 16.

    Esta organizao de Richard Zenith desafia o leitor a um suposto

    quebra-cabea sem soluo. Cada leitor pode montar um Livro do

    desassossego pessoal. Esta proposta j havia sido eliminada por Jacinto do Prado Coelho em sua Nota sobre a Ordenao do Texto:

    A ordem aleatria da inventariao do esplio literrio de Fernando Pessoa parece-me de rejeitar in limine, j que, desorientando a leitura, obrigaria cada leitor a fazer ele prprio uma montagem um jogo de puzzle que, alm de penoso, exigiria um poder de construo de que s disporiam leitores privilegiados. 17

    A organizao dessas edies do L. do D., sobretudo as realizadas por

    Jacinto do Prado Coelho, Teresa Sobral Cunha e Richard Zenith formam um

    estudo parte do estudo do prprio Livro. Leyla Perrone-Moyss e Maria

    Alzira Seixo so claras, nas introdues ao livro, no interesse para o qual se

    votam suas edies. Para se conhecer como se concretizaram os conceitos

  • dados ao livro necessrio se considerar trs pontos: a autoria, o corpus e a

    organizao do texto.

    3.1. A AUTORIA

    O surgimento da Histria da Literatura, no sculo XIX, veio auxiliar

    sobremaneira aqueles que se ocupam da edio de textos literrios. Mesmo

    sendo uma disciplina datada, Vanda Anastcio alerta para a importncia da

    mudana, ao longo do tempo, dos parmetros que a regem:

    A Histria Literria deve, pois, ser encarada como um campo de estudos em permanente reconfigurao, dada a tenso inevitvel entre o significado adquirido por uma dada obra no contexto da sua poca e as reavaliaes posteriores que sucessivas geraes dela vo fazendo. 18

    Para o caso do Livro do desassossego h um outro apontamento de

    Vanda Anastcio igualmente relevante:

    imperioso e necessrio procederem continuamente ao estudo das obras, no apenas daqueles autores que foram considerados de primeira grandeza pelas Histrias Literrias que nos precederam, mas tambm daqueles que, por desconhecimento do que escreveram, por motivos ideolgicos, devido a reputaes fantasiosos, pela influncia das modas, da organizao dos curricula escolares ou, muito simplesmente, porque os seus textos no tm edies acessveis, foram sendo relegados para o esquecimento, ou considerados menores .

    No podemos esquecer que o discurso crtico historicamente condicionado, que cada poca e cada historiador valoriza determinados autores e deixa cair outros ao esquecimento e que esta escolha no depende de um qualquer valor intrnseco dos textos, mas daquilo que diferentes editores, em diversas pocas, procuram neles.19

    18 ANASTCIO, Vanda. A Histria Literria e de alguns dos seus problemas. Brotria: Cristianismo e

    Cultura, volume 157, Lisboa, julho de 2003, pg. 57 19

    Idem. Ibidem. 20

    SENA. 2000. Pg. 145.

  • Pessoa no deu por terminado seu projeto do livro e tambm no definiu efetivamente sua autoria. .

    A complexidade do estudo para a formao de uma obra, ademais em

    estado bruto como o Livro do desassossego, exige cuidado em suas

    consideraes: todas devem ser vlidas, at que se possa extrair o sumo

    dessas informaes.

    Nas investigaes feitas a partir do esplio de Fernando Pessoa o Livro

    pode ser contextualizado historicamente. Mas o trabalho complexo, por se

    tratar de muitos autores em apenas uma pessoa. Igualmente laboriosa a

    tarefa de anlise dos textos encontrados no esplio e cuja incluso no Livro polemizada por crticos de Fernando Pessoa. Na mesma esteira desses

    documentos esto os textos ditos atribudos ao livro e que foram publicados

    em 1929, na Soluo Editora; em 1930, na revista Presena; em 1931, na

    Descobrimento; em 1932, outra vez na Presena. Estes foram publicados sob o

    nome de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa. Esta dvida se reflete na investigao cronolgica e ainda no foi respondida: os

    textos escritos na fase viva de Soares pertencem ao mesmo perodo ps-

    simbolista e decadentista de Fernando Pessoa. Assim tambm como havia

    dvida de Fernando Pessoa quanto aos textos que ele prprio considerava

    mais modernistas, aos quais acrescentava inscries como Livro do

    desassossego ou A.C.? . A grande dvida se todos estes textos pertencem

    ao Livro de projeto inacabado pelo autor. Em seu estudo pioneiro, Jorge de Sena20 identifica trs fases distintas na

    confeco do Livro: uma primeira, de responsabilidade de Vicente Guedes,

  • muito simbolista e esteticista, concebida anteriormente descoberta da

    heteronmia profunda de que a grandeza de Pessoa se faria, marcada por

    fragmentos que, exceo de Na Floresta do alheamento e Marcha fnebre

    para o Rei Lus Segundo da Baviera, so apenas trechos inacabados ou nem

    sequer sados de um embrionrio comeo, escritos de 1912 a 1914 e com

    vrios outros trechos de temas recorrentes at o ano de 1917. Uma segunda

    fase, entre 1917 e 1929, durante a qual o Livro teria ficado em dormncia

    hesitante e muito fragmentria (a ponto de nada ser datado); e uma terceira fase, j assumida por Bernardo Soares, marcada por fragmentos mais cuidadosamente elaborados. mister lembrar o que escreveu o prprio Pessoa em Nota para o L.do D.

    H que estudar o caso de se se devem inserir trechos grandes, classificveis sob ttulos grandiosos, como Marcha fnebre do Rei Lus Segundo da Baviera, ou a Sinfonia de uma noite Inquieta. H a hiptese de deixar como est o trecho da Marcha fnebre, e h a hiptese de a transferir para outro livro, em que ficassem os Grandes trechos juntos. 21

    Em 1982, respeitando no apenas o estudo de Jorge de Sena, mas

    como tambm o trabalho da primeira manipulao do esplio feita,

    pioneiramente, por Maria Aliete Galhoz, a edio da Editora tica atribuiu a autoria do livro ao semi-heternimo Bernardo Soares.

    Richard Zenith seguiu o mesmo caminho trilhado por Jacinto do Prado

    Coelho e acrescentou sua edio, em apndice, textos de autoria de Vicente

    Guedes publicados na edio de Teresa Sobral Cunha.

    Em apndice publicam-se: 1) um trecho e dois textos prefaciais que nomeiam Vicente Guedes, excludos do envelope com material do Livro reunido por Pessoa, 2) cpia de uma carta dirigida a me de Pessoa e rotulada L. do D., 3) matria fragmentria mais pertinente. O Apndice tambm contm um texto com Idias metafsicas do livro do desassossego, e vrios

    21 PESSOA. 1999. Pg. 505

  • escritos de Pessoa (notas, trechos de prefcios, passagens de cartas) relativos ao Livro ou a

    Bernardo Soares.22

    Os textos atribudos a Vicente Guedes, em apndice, so os seguintes:

    AP1. O encontro entre Fernando Pessoa e Vicente Guedes; AP2. A

    apresentao do livro e do prprio Guedes e o AP3. onde Guedes se apresenta

    como morador da Baixa e empregado do comrcio.

    AP.2. ...este livro suave.

    quanto resta e restar duma das almas mais subtis na inrcia, mais debochadas no puro sonho que tem visto este mundo. Nunca

    eu o creio

    houve criatura por fora humana que mais complexamente vivesse a sua conscincia de si prpria. Dandy no esprito, passeou a arte de sonhar atravs do acaso de existir. Este livro a biografia de algum que nunca teve vida... De Vicente Guedes no se sabe nem quem era, nem o que fazia, nem (*) Este livro no dele: ele. Mas lembremo-nos sempre de que, por detrs de tudo quanto aqui est dito, coleia na sombra, misterioso

    Para Vicente Guedes ter conscincia de si foi uma arte e uma moral; sonhar foi uma religio. Ele criou definitivamente a aristocracia interior, aquela atitude de alma que mais se parece com a prpria atitude de corpo de um aristocrata completo. 23

    A edio do Livro, na organizao de Teresa Sobral Cunha, publicada

    no Brasil24, em 1996, foi dividida em dois volumes: o primeiro volume com

    textos atribuveis a Vicente Guedes, O segundo com aqueles declaradamente

    escritos por Bernardo Soares. O volume I, de Vicente Guedes, conforme Sobral

    Cunha25, teve seus critrios baseados em seu trabalho de investigao que

    permitiram ir acrescentando textos reconhecveis como sendo para o Livro,

    mesmo quando no intitulados L.do D., como muitas vezes Fernando Pessoa

    usava. O Volume II contempla todos os trechos que, segunda a organizadora,

    pertencem exclusivamente a Bernardo Soares. Estes trechos parecem

  • atribuveis ao semi-heternimo em razo de sua datao explcita (1929) ou aqueles aferidos como sendo da mesma ocasio.

    Com o acrscimo dos textos nomeados e os outros identificados

    entendidos por Sobral Cunha como pertencentes ao Livro do desassossego,

    este passa a ter, efetivamente, dupla autoria: Vicente Guedes e Bernardo

    Soares. As afinidades de ambos so vrias, pois ambos se aproximam do

    ortnimo, so funcionrios do comrcio e moradores da baixa lisboeta.

    Inclusive o encontro deles com Fernando Pessoa muito semelhante. Os dois

    conheceram Pessoa em um restaurante onde faziam suas refeies dirias.

    Nos fragmentos datados possvel perceber que ambos so decadentistas. A

    estratgia editorial de publicao do Livro em dois volumes chamou ateno do

    pblico para este plano de Pessoa de dupla autoria.

    As trs edies do Livro do desassossego, resultado de um magistral

    trabalho de investigao histrico-literrio e de restaurao textual tentando

    estabelecer uma cronologia dessa obra de Pessoa, formam uma fonte

    inesgotvel de discusso autoral.

    Georg Rudolf Lind, que em 1985, publicou a verso alem da obra de

    Pessoa, ao concluir a sua traduo para a edio de 1982, defendeu a idia de

    que no se deveriam misturar os textos ps-simbolistas da primeira fase e os

    textos de Bernardo Soares de 1929-1934:

    Prado Coelho tem razo quando afirma que alguns (poucos) textos de B. Soares revelam os mesmos traos estilsticos que os da primeira fase, mas, apesar disto, quo longe anda o moralista dos anos trinta do sonhador amaneirado da Floresta do alheamento! Acho muito provvel que o prprio poeta tivesse aproveitado mais do que vestgio da primeira fase, se tivesse tido tempo para uma redaco definitiva do L. do D.. As consideraes filosfico-moralsticas de Bernardo Soares so uma coisa: as fantasias do jovem poeta so um prenncio desta segunda-fase, um mero esboo, e destoam tanto da fase definitiva que a sua ordenao num grupo parte poderia ter mostrado nitidamente e com maior poder de convico o avano da obra, a obra em progresso .26

  • Em Persona 9, Jacinto do Prado Coelho d uma explicao para sua

    organizao dos fragmentos do desassossego em livro uno:

    G.R. Lind chama, em tom depreciativo, o sonhador amaneirado da Floresta do alheamento , quer porque relegar para outro apndice os fragmentos que registram os sucessivos projectos de Pessoa teria talvez mais inconvenientes do que vantagens para uma progressiva, desejvel, aproximao do leitor em relao ao L. do D., enquanto livro in progress.27

    sobre a questo da existncia e autoria que Richard Zenith inicia sua introduo edio de 1998. A sua proposta que talvez nenhum Livro do

    desassossego teria sido publicado.

    Tivesse Pessoa preparado o Livro do desassossego para publicao e este seria decerto um livro menor. Previu uma escolha, rgida quanto possvel, dos trechos variadamente existentes , a adaptao dos mais antigos vera psicologia de Bernardo Soares e uma reviso geral do prprio estilo (...) Esta operao resultaria num verdadeiro livro, polido e fluido, com talvez metade das pginas que afinal tem, e talvez metade da sua graa e gnio. Eliminando o que tem de fragmentrio e lacunar, o livro ia ganhar fora, sem dvida, mas corria o risco de se tornar mais um livro, em vez da obra nica que .28

    Os argumentos so muitos para justificar a autoria a ser dada pelos organizadores do Livro, e podem ser encontrados no legado do prprio

    Fernando Pessoa. Ivo Castro, em conferncia no Encontro Internacional do

    Centenrio de Fernando Pessoa, afirma que, para editar Fernando Pessoa,

    necessrio ter em sua organizao: Introduo, Texto Crtico e Aparato Crtico.

    E, um apndice poder complementar o volume.29

    O modelo editorial apresentado por Ivo Castro corresponde ao utilizado

    pela Equipa Pessoa que vem elaborando a edio crtica da obra do autor.

    Recorrer s suas explicaes tericas importante para qualquer estudioso

    das publicaes de Fernando Pessoa.

    31CASTRO. 1989, pg. 30

  • A Introduo ser basicamente filolgica: falar dos testemunhos e do seu estado, expor aqueles casos de fixao do texto mais complexos e reveladores dos mecanismos de criao, dar aquelas informaes de carter geral que no so de repetir em todos lugares a que respeitam. No Apndice renem-se fragmentos isolados que no foram utilizados no estabelecimento de nenhum texto (...)30

    Nas condies deixadas pelo prprio Pessoa, o Livro do desassossego, em

    sua ltima forma irrealizada31, ainda deixa muito o que discutir quanto a sua

    autoria.

    3.2. O Corpus

    Jacinto do Prado Coelho, na Nota sobre a ordenao dos textos32,

    explica que o problema da primeira edio do Livro foi a construo da obra e a

    configurao de seu autor, deixando claro que a questo da autoria ainda seria

    motivo de investigao. A construo do corpus das edies do Livro uma

    tarefa que de igual forma permanece em constante estudo.

    O corpus da edio princeps foi ordenado por manchas temticas de

    maneira que ao leitor fosse possvel uma leitura homognea do texto, como por

    exemplo: as de carter autobiogrfico e confessional, textos sobre a

    diversidade do eu e a sua descoberta atravs do disfarce, textos sobre o eu e

    a circunstncia na roda dos dias 33, rejeitando-se, pois, nessa colaborao de Prado Coelho, a adoo de uma ordem cronolgica, pelo que explica:

    Em primeiro lugar, a grande maioria dos textos e fragmentos a integrar nem se encontravam datados e nem eram datveis. Certo que, tanto pela anlise dos contedos como pelo exame pericial da letra, do papel, e eventualmente da tinta, se poderia tentar situ-los em determinado perodo da vida de Pessoa. Mas valeria a pena? Seria pertinente a inteno? Nada garante que ele, chegado o momento, at a morte adiado, de proceder organizao do Livro , os submetesse a uma cronologia veraz, de historiador, que nem sequer a sua memria estaria apta a reconstiutir.34

    34 Idem. pg. 32

  • Prado Coelho aponta ainda para a questo do fingimento em Pessoa em

    relao a uma possvel ordenao cronolgica. No h garantia de que, se

    Pessoa estabelecesse uma cronologia para o Livro do desassossego, esta no

    fosse mais um fingimento to comum ao poeta.

    A edio de Teresa Sobral Cunha, em seus dois volumes, est baseada

    no ncleo original do Livro do desassossego, o que representaria a escolha do

    poeta, explcita em sua carta enviada a Joo Gaspar Simes: Estou

    comeando a classificar meus papis .35 A partir deste ncleo, a investigadora

    pessoana acrescentou textos que entendeu reconhecveis como do

    desassossego mesmo no indicados como L. do D., como muitas vezes o

    Fernando Pessoa usava. Para