o menino plebeu (trechos)

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Volume I — Série Cidadela O Menino Plebeu

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Primeiro livro da Série Cidadela, O Menino Plebeu conta a jornada mágica de um menininho humilde por um mundo diferente de todos os outros — o mundo onde vivemos. Ao acordar, na manhã seguinte, bem longe da Plebe, acreditando estar num

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Page 1: O Menino Plebeu (trechos)

Volume I — Série Cidadela

O Menino Plebeu

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CAPÍTULO IAQUELE EM QUE UMA PREDIÇÃO

É REALIZADA...

Do alto despejava-se o vento sobre a cidadela. Lá embaixo podia-se ver uma pequena comitiva, perambulando entre caminhos feitos de tijolos marrons. De tempos em tempos, mais e mais crianças se fundiam ao grupo, que já havia contraído em torno de dez participantes. À frente, no comando do grupo, vinha o famoso Bobo da Corte, vestido como deve ser um: com calças e camisas multicoloridas e sapatos com os bicos em forma de gancho; na cabeça pendia-lhe um barrete de três pontas. E por último, como todos devem saber: os guizos, que iam desde as pontas do barrete até o gancho de seus sapatos. Seu rosto estava hoje coberto por maquiagem simples: só pó branco no rosto, sem a habitual pintura extravagante. Tocava uma clarineta, como dizia a plebe, a clarineta que não desafinava nunca!

Não se sabia se a combinação do som dos guizos com o da clarineta, ou se o vento manso e tranquilizante é que hipnotizava tal público juvenil. Fato era que nenhuma — nem a mais amuada criança — resistia àquilo. Eles andaram, andaram e tornaram a andar, com o vento manso já citado fazendo as folhas levantarem do chão e correrem em espirais.

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— Lá está — disse o Bobo da Corte, em tons graves e soberbos. — Onde o vento se curva, onde as silhuetas régias se encontram e onde tudo faz sentido mesmo sem fazer. Está aí, gente, o Grão-Império! Onde ora reina o Mor-Rei!

Ao terem plena visão de um formidável castelo a projetar sua gigantesca sombra, todos eles suspiraram um “OHHH!!!” nos mesmos tons graves e soberbos do Bobo da Corte, e se puseram a apreciar. Altas torres douradas; grandes muros arborizados; magníficas janelas ornadas pelas mais finas e elegantes cortinas... e o mais importante: o nobilíssimo, puríssimo, riquíssimo e belíssimo: O ESTANDARTE DA ALTA CLASSE DOS SANGUES NOBRES E MOR-REIS INQUESTIONÁVEIS E INDESTRONÁVEIS. Ninguém de verdade sabia como reagir ou mesmo o que seria tal título de honraria, mas como tinha um nome muito bonito e era praticamente impronunciável se você estivesse cansado de tanto correr, ficaram todos satisfeitos com o que viram.

Antes que as crianças saiam dali, pois se enfadam rápido, é melhor explicar quais as formas que o estandarte possui. Na verdade, o estandarte da alta classe dos sangues nobres e mor-reis inquestionáveis e indestronáveis, era apenas um farrapo velho mas dourado (e isso muda tudo), com letras garrafais, que formam essa redundante e pleonástica frase.

Já que tinham visto a coisa mais incrível que poderiam ver, o Bobo da Corte não achou lá muito

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importante mostrar o resto das coisas que cercavam a cidadela. Mas como, sabe-se, as crianças não esquecem as promessas que fazemos a elas, e nem se impressionam ao máximo com o que há de mais impressionante porque ainda querem se impressionar com as outras coisas sem graça, ele, bobo como era, não ia dar essa bobeada. Assim, levou-os para ver a igreja.

— Meninos, aí está a coisa — anunciou o Bobo da Corte, com a expressão coberta de tédio e desgosto. — Onde o vento faz a curva exatamente para não precisar ventar aí, onde as sombras não ousam ficar e onde nada faz sentido mesmo fazendo. Aí está, a velha igrejinha capenga.

Ao fazerem vislumbre da igreja, imediatamente, com tédio e desgosto, as crianças soltaram uma exclamação de “HUHH...”, que amuaria o mais extrovertido dos seres. Não havia nada para se olhar. Se ao menos tocassem os sinos no campanário...

E assim pensou o Bobo da Corte: Não são os anjos e os santos que atraem as crianças para ver uma igreja, e nem tampouco o padre! O bom é o sino!

Então, disse a suas crianças:— Esperem... esperem que o máximo que se pode

obter de uma igreja com campanário será podido obter — e um risinho arteiro lhe passou pelas faces.

E lá se foi o Bobo, balançando-se em seus guizos, para dentro da igreja. Os garotos entraram em rumorejo e os ânimos foram elevando-se, mas ninguém articulou

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nada por um tempo. Depois, um dedo surgiu do meio da acalorada aglomeração, pertencente a um menino loiro e raquítico, de faces rubras e sorriso fácil e encantador.

— Ele foi tocar o sino — opinou.Já uma menina, de cabelos castanhos e olhos de

mel, florzinha nos cabelos e de aspecto astuto, discordava. Esperou todos se calarem, para que fosse o centro das atenções. Olhou um a um e disse:

— É óbvio que ele foi chamar o padre — Sorriu brilhantemente, como para conquistar a todos. — E o padre nos ensinará obediência, santidade e outras coisas do tipo. Eles devem ter um acordo para nos ensinar a postura da fidalguia.

— Impossível! — berrou um garoto gordo e amuado, de cabeça grande e olhos curiosos. — Os fidalgos nascem assim, sabendo. Está no sangue, que é azul, se não me engano.

— Todos os sangues são vermelhos — protestou outro garoto.

— Ah, não são não — defendeu-se o garoto gordo e amuado, ameaçando chorar. — Todos dizem que os fidalgos têm sangue azul, e a voz do povo é a voz de Deus.

— Ó, quanta bobagem! — começou inquieta a garota astuta. — O sangue não é azul de verdade, essa é apenas uma expressão que se usa para fazer a gente acreditar que eles têm ainda maior poder sobre nós — e fez uma cara de quem sabe muito das coisas, que

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lembrou levemente o gosto de azedo. — Chamam isso de propaganda enganosa.

— Mas... — ia tentando o gordo garoto. Mas ela, com toda a sua inteligência, foi muito

cruel:— Não há mas nem meio mas. Você está errado!Nisso o garoto se pôs a chorar, o que o deixou mais

amuado do que nunca. Ninguém usou de solidariedade com o garoto, mas vendo que o choro seria tão grande que poderia inundar a cidadela, que era pequeninha, o menino loiro veio em sua defesa:

— Não chore, pois você pode estar certo...— Duvido muito... — retrucou a menina, com

muito desdém.— É mesmo? — se interessou aquele outro garoto.— É. Como podemos saber a verdade se somos tão

pequenos e fracos e o mundo tão grande?— É verdade! — exclamou o garoto, limpando as

lágrimas dos olhos e reavendo suas esperanças em estar certo.

— Faz algum sentido... — disse aquele outro. — Pode haver verdades das quais não conhecemos... não é, turma?

A turma, que ele esperava que continuasse firmemente ali, já desaparecera.

— Há quanto tempo eles se foram?— Foi quando o Bobo da Corte nos deixou —

disse o Garoto Amuado, que já havia se livrado das

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lágrimas. — Eu os vi sair de fininho. Talvez morem do lado afastado da plebe e acharam que já estava ficando tarde.

— Ah, não — discordou a menina. E não precisou olhar para todos e esperar ser o centro das atenções, pois já o era sem esforço, visto que já não havia muita gente para fazer-lhe concorrência; mas isso tirou metade da graça de ser sabichona. — Eu bem vi, eles se foram assim que este aí começou a falar de sangue. Não gostaram do assunto porque lembrou-lhes tragédias passadas, ou porque sabem que nunca serão fidalgos.

— Isso é o que você pensa saber — disse o Menino Loiro, que era tão pequenininho que demorou um pouco até o resto das crianças verem que era ele quem falava. — Como haveríamos de saber se somos meras crianças e o mundo tão amplo em razões?

— É, quem sabe...— Ah, de novo não! Sabem o que vocês são? (E

esta é toda a verdade) Vocês são uns bobos, isso sim! Uns bobocas!

— Me chamou, mocinha? — Era o Bobo da Corte quem acabara de chegar. Foi logo capaz de perceber que suas crianças haviam sumido, mas mais depressa soube que elas voltaram ao castelo. — E obrigado por me promover. Porque como sabem, eu só irei ser promovido à boboca da corte quando eu fizer a piada-maior, mas ainda estou longe disso.

— Por que demorou? — perguntou o Garoto

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Gordo, olhando-o com desconfiança e curiosidade.— Os bobos da corte só aparecem quando são

bem-vindos. Tenho que esperar que alguém peça a minha presença, e esta astuta menina assim o fez.

— Obrigada — ela disse, em um grande esforço para parecer bem-agradecida. — Mas o que você foi fazer lá dentro? Chamar o padre para nos ensinar a dar valor às coisas simples?

— Eu bem que tentei — disse o Bobo da Corte, com um olhar muito lastimoso e sentido —, mas o padre me disse que isso caiu de moda. E como eu lhe disse que cair de moda era uma expressão igualmente caída de moda, pois agora se usa o termo “fora de moda”, ele disse-me que a moda vai e volta e, assim sendo, o termo “cair de moda” poderia perfeitamente estar de volta à moda. — Ele olhou para as crianças, que já estavam cansadas daquilo. O menino raquítico quase caía em sua pequeneza. O gordo entrou no auge do amuamento. O outro já se mandou, pois com o nome “Outro” a que foi batizado, não teria mesmo importância nesta história. A menina, mais esperta que os outros, tratou de cair por ali num cochilo, para forçar o Bobo a avançar mais depressa em seu falatório. — Eu sei que vocês gostariam muito de saber como terminou nossa discussão sobre modismos, então eu vou justamente poupar-lhes de detalhes e dizer-lhes que no fim ficou decidido que a moda não existe, o que existe é o que as pessoas dizem... Ah, bem em tempo!

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De cima do campanário viu-se cair uma espécie de pólen rosa, que lentamente foi chegando até lá embaixo; mas como o vento dessa região tinha o prazer incalculável em espiralar tudo quanto é coisa, o pólen que caía não caiu, mas rodou em espirais até se transformar em um redemoinho. E aquilo foi causando prazer aos meninos, que tiveram a sensação de que as coisas simples não tinham saído, caído ou ficado fora de moda. Então, para fechar com chave-de-ouro, badalou-se o sino. O que matou três, três coelhos em uma só cajadada. Primeiro serviu para mostrar que as coisas simples estavam dentro de moda. Depois serviu para comprovar que o sino é a melhor coisa na igreja para as crianças. E por último, fez com que os três meninos esquecessem o Grão-Império.

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— Você, menina! Sua grande qualidade é a inteligência. É uma garota de tutano você... — Ela, de costas para o Bobo da Corte, disse “Obrigada”, e como estava mesmo de costas, nem precisou fingir ser bem-agradecida. — Seus argumentos são precisos, suas abordagens são diretas, seus conceitos são fundamentados. Você será, com algum esforço, a pessoa mais inteligente deste mundo! — Ela montou uma feição de “eu já sabia” no rosto. — E além de tudo, você é linda, esplendidamente linda!

Os meninos foram apreciá-la mais cuidadosamente,

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pois como todo mundo sabe, os homens só percebem o quanto uma mulher é bonita quando alguém já percebeu à frente, e aí costuma ficar tarde. Ainda mais em crianças. As crianças meninos jamais olham as crianças meninas; o que geralmente acontece é o inverso: as meninas percebem quem são os meninos mais legais, olham para eles, e, por serem legais, subentendem que sejam bonitos — o que se inverte drasticamente na fase adulta.

— Não recomendo, porém — continuou o Bobo da Corte —, que use sua beleza para conseguir o que quer. Sua inteligência lhe servirá melhor. Ela que vai lhe levar a ser poderosa. Mas... (e como todos sabem, quando alguém tece elogios a seu respeito e logo em seguida diz “mas”, significa que você tem que correr para o buraco mais próximo e se esconder da humilhação) mas você tem um gênio forte. É muito arrogante e presunçosa! As pessoas não gostam de concordar com esse tipo de gente, faz com que se sintam inferiorizadas.

— E o que posso fazer? — perguntou, não conseguindo segurar a razão que tinha goela abaixo. — Mentir e dizer que não estou certa quando estou? Se eu estiver com a razão e souber disso, não a jogarei fora.

Sem nem notar que argumento a menina havia utilizado, o Bobo da Corte seguiu falando:

— Humildade e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

— O ditado não é assim! — ela protestou, porque

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sabe das coisas, e não podem errar ou inventar ao seu lado.

— Está confirmado o que estou dizendo — disse o Bobo da Corte, balançando a cabeça em desafio. — Só porque você conhece as verdades não quer dizer que precise ser grosseira ao contradizer aquele que errou. Você sabe quem é Deus, não sabe?

— Mas é claro que sei — e se virou para frente. O Bobo indicou através de gestos para que os

outros se virassem também.— E você sabe que Ele criou tudo e, portanto, sabe

de tudo?— Lógico — respondeu de nariz em pé.— Então! Você gostaria que Deus ficasse o tempo

todo dizendo o que você está fazendo de errado?— É — disse conformada. — Eu não gostaria.— Então vamos ao próximo menino! — E ficou

cara a cara com o amuamento e a gordura do menino. — Você vai ser poeta, compositor, cantor, ator e escritor. Porque esse tipo de gente gosta muito de se fazer de fraco. E quando se tornar tudo isso, poderá demonstrar as fragilidades dos humanos ao mundo, mas espero que não para fazê-los mais fracos. Pois existe uma coisa chamada conselho inverso. Você diz para as pessoas se jogarem do abismo e elas logo se afastam dele. Você mostra a fraqueza e elas já tratam de ficar fortes. Você tem futuro, garoto!

— Mesmo?

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— Mesmo! — confirmou alegremente. — Mas você é muito, muito, muito amuado. E digo mais: amuadíssimo!

O menino desatou a chorar. Seus cabelos ficaram amuados... seus olhos ficaram amuados... suas ventas ficaram amuadas... suas orelhas... nem se fala!, muito amuadas! E quando ia chegar à barriga, o ponto mais crítico, resolveram intervir.

— Segurem-no! — ordenou o Bobo. O menino loiro e raquítico e a menina astuta

seguraram as mãos dele e fixaram-lhe um olhar penetrante. E sabe-se que quando alguém chega perto da gente para consolar, o resultado é chorar ainda mais e abraçar o consolador e soluçar, não foi diferente com ele.

Passado um tempo, para que o choro pudesse diminuir, chegou a vez do menino loiro, raquítico e de faces rubras. O sol lá atrás no horizonte já estava quase sumindo e o céu tinha uma cor misturada de azul e laranja, que ia formando um roxinho lindo com a chegada da noite. O Bobo da Corte não tinha prestado maiores atenções àquele menino, ou porque não deu muito trabalho ou porque era mesmo meio invisível quando lhe convinha. Assim, teve a certeza de que já sabia o que se tornaria tal menino, já que fazer muitas análises, por vezes, atrapalha o parecer final.

— Você será mor-rei!— Como posso — perguntou o menino, olhando

para o chão, desesperançado e pusilânime —, se eu sou

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tão pequeno e o mundo tão vasto?O Bobo da Corte se fechou em copas e nada mais

disse. Foi-se embora e deixou os pequenos refletindo sobre sua predição mais curta e ciente.

Mais tarde naquele dia, o pequeno menino plebeu cochilava em seu dormitório, que se resumia a um fino colchão, cheio de buracos, em cima do chão pedregoso e frio. Como se não bastasse a dificuldade de dormir naquelas condições, seus pensamentos ficaram vagando por um mundo diferente. Ser mor-rei? Que ideia! Mas apesar do absurdo total da previsão, ele ficou ali, imaginando como seria sua vidinha caso viesse a se tornar mor-rei. E permaneceu acordado madrugada afora.

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