o desventrar do ser social (trechos)

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O DESVENTRAR DO SER SOCIAL

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© 2015 p.a.marangoni

Marangoni, P.A. 1949-

Capa sobre tela “Lição de anatomia do Dr. van der Meer” de vanMierevelt, 1617.

ebooksmarangoni

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http://[email protected]

printed in Brazil2015

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O DESVENTRAR DO SER SOCIALDa Miséria, da Loucura e do Real

coletânea de p.a.marangoni

Maria da Silva – A conspiração de Santo Antonio doDesamparo – Angústias de um peixe-voador

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APRESENTAÇÃO

Longe da exagerada ficção, as vidas de Maria, J.C. eArthur estão, diria eu, aquém do cruel e indiferente real.É preciso encarar a vida sem o escudo confortável deum suposto Deus e o estelionato das promessas deparaísos pós morte. A duvidosa benesse de umaconsciência fugaz, transitória, presente na inteligênciarudimentar desenvolvida nos humanoides só temproduzido resultados desastrosos em relação aos outrosanimais que se desenvolveram neste mesmo planetinhavulgar; estimulamos e desenvolvemos a agressividadealém corpo com armas de destruição, usamos a mentepara manter um perpétuo cio superlotando a superfícieterrestre além do que ela pode suportar em alimentos eusamos a filosofia equivocadamente partindo de basesfrágeis e insanas que nos colocam como seressuperiores. Não passamos de um corpo abobalhado efrágil arrastado aos trambolhões por um cérebro instávele desordenado, um computador primário infestado devírus e sobrecarregado por arquivos inúteis ecorrompidos.

Maria é uma catadora de lixo. Sem descriçõessupérfluas, assim a imaginação do leitor comporá oambiente lendo o drama com o cenário que conhece,que acontece perto de si, que visualiza no dia a dia e

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cujo cerne desconhece ou finge não conhecer.Diariamente Marias morrem de inanição e doenças nãotratadas, numa breve e trágica passada pela vidalevando consigo toda uma história ignorada pelosdemais distintos cidadãos.

Depois entre na mente do professor J.C. Raciocine emconjunto e acompanhe os passos lógicos econvincentes. Olhe para fora e veja um mundo perversoe ameaçador através da fragilidade do chip orgânicochamado cérebro, de uso contínuo, acumulando osarquivos fragmentados de sonhos desfeitos, ódiosrecalcados, medos, decepções e tristezas sem que sejafeita no decorrer de sua vida útil uma manutençãoefetiva, uma limpeza de disco, uma desfragmentação,um escaneamento com antivírus. J.C. é a vítima e o vilãotambém existe para todos nós que o adulamos,servimos, tentamos conquistar, enchemos-lhe desorrisos e acenos mas é um monstro hipócrita, amoral,cruel, castrador, dissoluto, ditatorial: a Sociedade.

Por fim Arthur e o encarar do real com a coragem devirar as costas para os robotizados cidadãos bem-sucedidos. Via-se como um peixe-voador que havianascido quando principiava a sair d'água para seu salto eque, momentos depois cairia novamente nainconsciência quando voltasse a tocar na superfícielímpida, calma, indiferente de um mar infinito chamadoUniverso. Sabia que nesta reentrada por mais que seagitasse apenas provocaria alguns respingos que logodesapareceriam. Sabia que era nada e tudo ao mesmotempo, pois era de Arthurs, pedras, árvores, água e tudo

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mais que era formado o Todo, peças intercambiáveisconstruindo ao acaso. E o acaso dotara Arthur de umaqualidade duvidosa, a de, neste salto milimétrico eefêmero, fazer uso de uma consciência transitória, ver-se, sentir-se, observar. Era um pobre ser humano, amais inútil das criaturas numa realidade igualmente inútil.

Aceite o desafio de sair de seu falso conforto psicológicoe penetre no mundo miserável da cidadã Maria, naloucura do normal professor J.C. e na real crença dodescrente Arthur. Não os veja como personagensfictícios, eles podem estar presentes em você.

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Sumário

APRESENTAÇÃO...................................................................................7MARIA DA SILVA.................................................................................13A CONSPIRAÇÃO DE SANTO ANTONIO DO DESAMPARO.........65

Nota 1 (Edição).....................................................................65 Nota 2 (Secção de Psiquiatria da Faculdade Dr. Eusébio Figo)...........................................................................................................65

PARTE 1 - TRANSCRIÇÃO – texto de J.C. 54 anos, professor............66 Nota 3 (Editor)......................................................................90 Nota 4 (autoria).....................................................................91

PARTE 2- A VERSÃO OPOSTA..........................................................91 Nota 5....................................................................................93

ANEXO 1 – Análise do Prof. Dr. Ernesto F. Wuller , Chefe da Fundação Corbetta para a Saúde Mental.................................................................94

Notas finais..................................................................…....…..100ANGÚSTIAS DE UM PEIXE-VOADOR...........................................103

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MARIA DA SILVAApenas um retrato do cotidiano

Não se pode afirmar ser “Maria da Silva” um trabalho deficção pois é um retrato do cotidiano sem retoques. Umpequeno livro sobre a curta vida de uma catadora de lixo.Aqui não há descrições supérfluas, assim a imaginaçãodo leitor comporá o ambiente lendo o drama com ocenário que conhece, que acontece perto de si, quevisualiza no dia a dia e cujo cerne desconhece.Diariamente "Marias da Silva" morrem de inanição edoenças não tratadas, numa breve e trágica passadapela vida, levando consigo toda uma história ignoradapelos demais cidadãos. É hora de enxergá-las comoseres humanos e este pequeno livro pode ajudar. Sintoque a obra não é minha, sou apenas o apresentador damensagem de Maria da Silva. Acredito que se algunsleitores após conhecê-la mudarem, que seja apenas aexpressão do olhar para os catadores de lixo – quegarimpam o desprezado, não esmolam – a missão a mimconfiada pelo acaso terá sido cumprida... p.marangoni

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Não é um despertar, não se desperta para um pesadelo.Enrolada num novelo sobre o velho colchão mofado,velada pelos olhos da desgraça, Maria abre os olhosmas não se move. Permanece na posição fetal,esquálidos braços envolvendo os joelhos, fazendo de simesma o reforço ao cobertor esfarrapado, daqueles corcinza e com algumas listras em vermelho, jáesmaecidas.O colchão, apenas a parte de espuma, provavelmentefora verde ou azul e agora marrom, tingido pelo barro docórrego de onde foi retirado. O mofo é contínuo, maspara Maria é o cheiro da segurança, o cheiro de seubarraco.O novelo humano continua quieto. A mente não. Maria éhumana, embora seja difícil para os demais, osescolhidos de Deus, imaginarem ou entenderem que elapensa, tem emoções e sobretudo que visualiza e avaliasua posição no mundo dos homens -sabe que édescartável e tem apenas um desejo: quer ir embora...Maria não queria acordar, levantar-se, ser obrigada aviver. O seu viver se confunde com sobreviver. Apenassobreviver, cada dia por vez, sem tréguas, semdescanso. Ela sabe que para os outros tipos de animaisseria normal a busca diária da comida, mas porquê elatem que suportar isso e para quê? Qual o seu ganho?Qual o seu prazer? Saciar fome, sede, não é prazer,é oatenuar de uma necessidade que ela dispensaria emtroca de não acordar.

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Mas acorda. Uma velha quase adolescente, pele e ossose uma presumível idade entre 18 e 20 anos. Cabelocastanho escuro, fino e liso, pele alvíssima nas partesonde a sujeira das ruas não encardiu. Os seios caídos,alguns poucos dentes, nos olhos apenas uma sombra dedignidade...Abrir os olhos, despertar, é sempre um choquedesagradável, o começo do pesadelo. Gostaria de fecharas pálpebras novamente e apagar a consciência, fugir doreal. Mas sabe que não vai conseguir, quem a despertanão é o sono satisfeito, é o estômago que exige suaperene, insaciável cota.Gêmea da fome, da irmã nada separa e, se para nadajogada foi à terra desde logo aterra a esperança que écara, da cara o sorriso desterra...A contragosto começa a assumir sua sina de ser vivente.Move os olhos. Mas somente os olhos. Sempre na vãesperança de estar apenas tendo um pesadelo, umsonho mau. Acordar assustada numa cama limpa, terirmãos, mãe, pai, casa, comida, saber ler, escrever,cumprimentar as pessoas e ser cumprimentada nasruas, existir de verdade. Ou então porque não setransformar num cão vadio, sem ter que pensar, se ver,se comparar? Não é um cão, mas não é humanatambém, o que ela é, afinal? Se fala, não respondem, àsvezes a escorraçam exatamente como fazem aosanimais de rua, mas também às vezes lhe dão ordenscomo se dá aos humanos. Seus olhos percorrem obarraco, ainda na penumbra. Mais ou menos uma placade compensado -daquelas de construção- de largura, porduas de comprimento. Uns dois metros por quatro. Uma,duas, três... cinco telhas de zinco enegrecidas e

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amassadas por pedradas compõe o teto. Olha-o quasetodo sem mexer a cabeça. Os vãos, os buracos, tapadoscom pedaços de plástico negro. Agora vai mover acabeça um pouquinho à direita para ver o resto, a tábuada porta. Se estiver lá é porque não roubaram nada estanoite. O pedaço de queijo apodrecido que achou ontemestá garantido embaixo do colchão, mas o resto de seusbens, o pequeno armário de quatro prateleiras, ogarrafão de plástico de 20 litros pela metade com a águada bica, o carrinho de criança transformado emcarregador de papelão, o saco plástico cheio de páginasde revistas com fotos de modelos, podem desaparecercomo outros pertences valiosos para ela. Está tudo láhoje. Suspira. Agora vai ter que se sentar na cama. Vaicomeçar mais um dia. Entende que não há nada maisque ar à sua volta, mas sabe que ao se levantar vaisentir como se o mundo a apertasse, a empurrasse paraalgum canto, como se atrapalhasse os demais, como seocupasse um espaço alheio, é um feto grande semdireitos num mundo ventre que amassa. Respira maisfundo. Estremece, um arrepio percorre o magro corpo. Oar que entra em seus pulmões não é fresco, é espesso,acre, cheiro de urina seca, podridão, cheiro deabandono. Mas é o cheiro que conhece mais, é o cheiroda toca, animal, é o cheiro que lhe dá o máximo deprivacidade que consegue sentir, o mínimo de estarseparada dos demais seres por algumas tábuas, folhasde zinco, plástico, não ser vista, ser ignorada. Um certoprazer de se sentir ignorada porque não está visível,melhor que ao sair, ser ignorada sendo vista. Será que aenxergam como iguais a eles, apenas mais pobre? Seráque a enxergam como uma moça de 20 anos, acho que

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é isso, vinte anos, aquele homem do bar disse: ela deveter uns vinte anos...Acabou-se. Terminou o curto sono.Vamos lá, Maria de vinte anos, diz a si mesma e vem orápido ritual só seu, sua loucura de todas as manhãs,sua esperança de estar apenas sonhando: fechanovamente os olhos, bem apertados e repete, verdade,mentira, verdade, mentira, verdade, mentira! E nesteúltimo grito, levanta-se de um salto e encara o mundo. E,mais uma vez, é verdade...é ela, Maria, apenas um lixo,sozinha, sem nada...Senta-se novamente, solta o corpo, desaba sobre a beirado colchão e murmura: porquê...para quê...quero irembora...dormir sempre, não acordar...Como o estômago, seu sono é sempre vazio, sono semsonho, sono medonho, que ao acabar desemboca nummundo venal e vadio...Cobre seu corpo apenas uma camiseta de malha que umdia foi branca. Olha para suas descarnadas pernasquase translúcidas, veiazinhas azuis, brancura quetermina no pé escuro, encardido, arranhado, feio...Passa a mão pelos seios, quase nada, caídos, murchos,pensa então nas mulheres das revistas e seus corpos.Terão elas menos que seus vinte anos? Com a ponta dalíngua procura os poucos dentes. Distrai-se pensativa.Teima em ignorar o vazio no estômago a lhe chamar, é ochamado que lhe agonia, tenta vaguear com a mente,mas em que pensar se nada tem? A única sensação, oúnico sentimento de que nunca separa é esse vazio,esta força que a faz permanecer dobrada com os braçoscruzados na barriga. Quase sorri com a língua brincandocom os poucos dentes que restam, amolecendo dia a

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dia. Mas o soco no estômago que a fome desfere ébrutal, os vermes se agitam e exigem a diária ração.Fecha de vez o semblante, apaga o esboço de sorriso,esmaga a esperança vã que sonha em cada acordar e ovéu espesso de tristeza cai implacável sobre omaltratado rosto de quase adolescente. Adolescênciaque se tornou passado sem ter sido presente...Enfia a mão sob o colchão, agarra o pedaço de queijo esem sequer olhar para ele o enfia na boca e mastigaligeiramente, engolindo e tentando não sentir o gostopodre.Levanta-se de vez, enfrenta o seu vazio. Bebe algunsgoles d’água tão mecanicamente como fez com o queijo.Não há expressão alguma em seu rosto. Não há sonhospara lembrar, apenas desemboca, é lançada à realidade.Empurra a tábua que se veste de porta, espia o mundo,o mundo dos outros... Coloca a cabeça para fora dobarraco, com cautela. Encara ao longe a riqueza que lheé cega, traçado que foi seu destino com linha torta, sorveo ar, mas é morto o viver a que tudo se nega...Respira profundamente com a sensação de usar algoque não lhe pertence, olha para os edifícios ao longe,conjuntos populares tão inatingíveis para Maria como umpalácio o é para a maioria dos mortais. Imagina lá, emuma das muitas janelas, uma menina de vinte anostambém se levantando e tomando café com leite e pãocom margarina, quanto pão, quanta margarina, quantoleite quiser! Recua, encosta a tábua-porta. Devaneia. Setivesse comida todos os dias, teria seios cheiostambém? Pensa em folhear pela milésima vez suaspáginas arrancadas das revistas, com fotos de moçasbrancas, limpas, cabelos suaves, sorrindo, com os pais e

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irmãos na mesa, tomando café. Devem ter nascido lá,nos prédios do conjunto...Assusta-se. Não há tempo, tem que sair à rua, catarpapelão, latinhas ou os outros pegarão antes dela. Enfiacom destreza a calça comprida masculina e o vestidovelho, estampado com florezinhas azuis e rosas sobre acamiseta. Precipita-se para fora calçando as sandáliasde plástico e puxando o carrinho para o papelão; escoraa porta com um pedaço de pau e sem olhar para trásinicia o caminho para o asfalto, cabeça baixa, braçodireito dobrado sobre o peito, a si mesmo abraça,conforto e defesa, tentando romper a força de um mundoque a recusa, que nada com ela reparte.Recebe nos sujos trapos a tepidez do sol, solitária,estremecida, no beco onde a turba palpita está só eprincipia a caminhar, frouxa, lassa...-Maria Linguiça!Pequenos demônios em forma de crianças sujas,descalças, seminuas, surgem do nada como se sempreestivessem na espreita. Os rotos que se sentem maisfortes diante do esfarrapado...Seu braço se cola com mais força ao corpo, a mãofechada, agarrando-se ao vestido. Fixa o olhar no chão,acelera o passo cambaleante na tortuosa trilha de terra.Nada pensa a não ser no objetivo, a calçada lá embaixo,no asfalto.-Maria Palito!Começa a correr, o carrinho que puxa vai aostrambolhões, ora sobre as quatro rodas, ora de lado,arrastado.Algumas pedras são lançadas pelos moleques, umalaranja apodrecida, mole, a atinge em cheio nas costas.

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Gargalhadas. Maria continua, não se volta, não ergue acabeça, não fala. Aprendeu com os cães de rua a serhumilde para não apanhar mais, como eles, aguentarcalada ser chamada de vadia enquanto luta por umasobrevivência que não quer, não pediu. Aprendeu a sermuda aos que não a ouvem.Sai em busca da esquiva comida, garimpeiracambaleante, lambendo a alma ferida, uma felinadecadente que caça papéis, garrafas, lixo...Ofegante, chega finalmente à parte baixa, à calçada;agora, no meio da multidão finalmente se sente umpouco mais segura, pois está sozinha, sabe que é quaseinvisível, é só não ficar no caminho dos humanos quenunca se desviam.Ocupa seu lugar -o meio-fio- e inicia a caçada: papéis,latas, lixo, descartáveis e desprezados como ela, únicadádiva que o planeta lhe concede, pois não tem quepedir nem ouvir a eterna negação, apenas recolhe,silenciosa. É o maná dos bastardos de Deus que nãovem dos céus, cresce diuturnamente nas sarjetas.Divina bondade para Maria e os cães...Dois copos plásticos, uma garrafa, duas, cabeça baixa(pés que passam rente à Maria, sapatos, sandálias,unhas pintadas) agora o cesto de lixo preso ao poste, ocaminhão da limpeza só passa mais tarde. É bom, tempapelão aos montes, já amarrados, o ruim é ter queerguer a cabeça, os cabelos escorridos, a bocadesdentada.(troncos que passam rente à Maria, paletós,blusas, gravatas, colares. Braços alvos, limpos,pulseiras, relógios. Sutiãs, rendas, seios...)Agarra os fardos de papelão quase pelo tato, como umacega, evita a faca cravada na alma que é a ocasional e

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indesejada troca de olhares, lâmina que gira por dentrocom mais dor ainda se os olhos são de moças de vinteanos, pintados, cílios e sobrancelhas tratadas, oparadoxo do perfume suave acompanhando o ar de nojo,repulsa, medo...Maria não queria acordar para isso, desculpar-se a todomomento por existir, por tornar o dia das pessoas quepassam mais feio, porque não se transforma numaplanta, numa flor?Uma latinha! Duas, três, restos de festa! O estômagocolado às costelas, assume o comando, empurra océrebro para o lado. Célere, as apanha, amassando umaa uma com os pés -esquece as moças, esquece atransmutação em flor- coloca-as separadas num saco,valem mais, quase um pão! A crescente expectativa dealimentar-se vai transformando-a num autômato cego esurdo com tudo que não seja o valioso lixo. Maria deixade ser a mocinha dos sonhos frágeis e dos pesadelosbrutalmente reais, assume a figura trôpega de MariaPalito, Maria Linguiça, afoita, atarefada, amarrando osfardos de papelão no frágil carrinho -o anterior, herdadonão sabia de quem, fora roubado- e a manhã transcorrecomo num transe. Depois da passagem dos caminhõesde lixo seu garimpo torna-se mais árduo, mais incerto,alonga os trajetos estéreis em busca de lanchonetes,restaurantes, bares, onde a sujeira nas calçadas serenova rapidamente, é preciso alcançar este maná antesdos concorrentes mais fortes. É preciso respirar fundo,tomar o fôlego que não tem justamente nos momentosem que a fraqueza aperta mais, em que a fome maisaflige, que a faz, às vezes, esperançosa, ingênua edesesperada olhar para os humanos que comem nos

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balcões em busca de um improvável convite: quer umpedaço? Porque guarda na memória a vez que, a únicavez em toda sua pequena vida, que uma menina repartiucom ela um sanduíche de pão, manteiga, queijo,presunto, uma coisa deliciosa...Meio dia, meio vida, meia morte, aperta a fome.Maria calcula o volume que tem de papelão, aquantidade de latinhas e plástico, sabe exatamente oque precisa para que o homem do depósito lhe dê odinheiro justo para o lanche, sem troco. Outras vezesficara até o final do dia mas sempre o dinheiro recebidoera o mesmo, as moedas de sempre, na pesagem rápidae imprecisa. Mas é por volta da metade do dia, noimperativo de recolher as abundantes e valiosas latinhaspara completar o carregamento que sente que suapresença começa a incomodar mais,é enxotada parafora das calçadas por gestos de porteiros, não a queremno caminho e na visão dos fregueses que vêm almoçar.Desfila então pelos belos restaurantes, passa sem olhar,ultrajada pelas madames nobres, elegantes, que comoos próprios restaurantes, sobre um interior podre, umabela fachada...É quando, mesmo sem olhar sente mais o desprezo, onojo, a irritação das senhoras que não gostam de repartiro mesmo ar que ela respira, se sentem indignadas.Algumas param nas portas do carro, eretas, sem semover, as duas mãos segurando a bolsa defronte aocorpo, olham para o funcionário e em seguida paraMaria, nariz para cima, arrogantes, esperandoprovidências. O segurança ou porteiro, solícitos, servis,com os braços estendidos lateralmente desviam Mariasem tocá-la, como se conduzindo uma manada, para

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que a satisfeita humana entre no estabelecimento.Meio dia, madames, Maria, meio vida, meia morte, arotina diária sem escapatória da fome e humilhação.Planeta dentro de planeta, nada lhe diz respeito à suavolta, o mesmo sol que aos outros bronzeia sua pelegreta, seus lábios seca e seca é a revolta...Acrescida deste peso injusto que a esmaga, Mariafinalmente empurra o carrinho completo, é hora dapermuta no depósito que recebe, a rouba e insulta...Entra pelo portão, entra na fila. Outro bastardo de Deuschega depois dela, sujo, barbado e feroz. Rosna e semcerimônia arrasta o carrinho de Maria para trás. Ela nadadiz, abaixa mais o focinho. Se tivesse cauda a colocariaentre as pernas, mas não tendo, procura repassar estapostura, é melhor que apanhar. O dono do depósito ri,cumprimenta o recém-chegado com um palavrão. Pesatudo com cuidado, entrega duas notas e algumasmoedas. Era menos material do que Maria tem, massabe que só vai ganhar as moedas do lanche, sereclamar não ganha nada.-E aí Linguiça, vai se encher de pinga hoje?Coloca o papelão na balança, dá um tapa no peso quecorre no braço de medição, nem mesmo olha oresultado, abre o saco das latinhas, despeja no monte aolado. Enfia a mão no bolso, retira as moedas que Mariaconhece, duas grandes e uma pequena e as coloca nasmagras mãos estendidas. Mostra uma nota, o coraçãoda menina acelera, os olhos cheios de esperança egratidão antecipada miram o homem, na expectativa.-Desce essas calças, Linguiça, quero ver o que temembaixo!Os dois ajudantes param de trabalhar e soltam gritos de

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escárnio, olhando para ela.Debaixo de gargalhadas a constrangida Maria agarraseu carrinho e desabala a correr, moedas firmementepresas na mão. Vai direto à praça onde um companheirode desgraça tenta sobreviver com uma grelhaimprovisada de carvão e uma caixa de isopor com carnee refresco.No carrinho da esquina, sem porteiro, é bem recebidapelo irmão de desprezo, irmão sobrevivente, vai comprarpão, carne, aliviar a sede, aplacar o estômago queresmunga.O segurança, um cão magro deitado na grama abana orabo em saudação à madame que chega. A freguesa fielé recebida com um sorriso e o velho capricha noespetinho de carne de terceira que começou a prepararassim que avistou Maria. Esta lhe estende as moedas erecebe uma garrafinha de líquido amarelo gelado, ofertada casa. Sentada no chão aplaca sua sede sentindo ocheiro bom do churrasco, antevendo o melhor momentodo dia. Com habilidade o homem corta um pão eprendendo o espetinho com ele, desliza a haste debambu, deixando somente a carne no interior. O cãomagro descura da segurança, seus olhos fixam a carne,não mexe um músculo do corpo. Maria evita olhar paraele, mas não consegue -recorda-se sempre da meninaque lhe ofereceu um pedaço do sanduíche- e antes dedar a primeira mordida estende-lhe um pedacinho, quedesaparece numa abocanhada relâmpago. Agora, emsilêncio, em paz, Maria cidadã que trabalhou desde amadrugada e pagou pela refeição, com as inevitáveislágrimas que sempre aparecem neste momento, mastigaseu pão lentamente, procurando saborear cada pedaço,

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entre goles de refresco. Teriam as elegantes madamesnos caros restaurantes pago também tão dignamentesuas refeições?O calor no estômago, os goles de refresco, enlaçamMaria com uma sensação boa, de paz, não senteagressividade do vendedor nem do cão, por momentosestá vestida de gente, alguém que existe, trabalha epaga sua comida.Suspira...Mastiga os últimos bocados com uma gratidão que nãoentende por quê ou para quem, mas é como se sente,grata...Mas, menina velha na vida, sabe que já ocupou o lugarque pagou, agora que já se serviu é hora de voltar paracasa, para seu ninho.Mas não aguentará voltar à toca. O corpo exige agoraseu prêmio, está feliz, está bem, não quer se mover. Ocalorzinho, a carícia no estômago... as leves pernas tãofinas agora, depois do calvário percorrido, estãopesadas. Os restaurantes. As madames... Detém-se umpouco antes, não quer atrapalhar. Junto do poste, aolado da lixeira, cheiro amigo... na sarjeta, semconcorrência. Senta. Sente-se. Consente-se amolecer.As pernas formigam, as pálpebras caem. Lentamente seestende na calçada, o descanso, prêmio merecido... oalimento quente parece que percorre seu corpo, abraça-o, acarinhando. Como é bom comer, pensa Maria, otrabalho compensado. Deixa-se afundar no negrume quea vai tomando, dormirá um pouquinho e sabe queacordará fortalecida para voltar ao ninho e lá se entocarna segurança da solidão, envolvida pelo nada.Mas só o corpo vai desfalecendo, não a consciência, as

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palavras a chicoteiam, ali exposta aos humanos, sem asprotetoras tábuas do barraco:-Vagabunda!-Olha a indolência desta...-Está faltando polícia!-Estão faltando cadeias!-É de tirar o apetite!-Esse povo vive bebendo, como podem!?Mas o consolo na barriga lhe sorri, dá as mãos para afadiga e Maria adormece, com um esboço de sorriso...agora está em seu paraíso.Acorda com um forte pontapé.Tomada por um choque confuso, o paraíso é inferno, onegrume, claridade que fere, o torpor, uma dor aguda nacoxa, a rua, um palco de ópera bizarra onde o silêncio éatropelado por um coral de engalanadas madames quecantam com estridência:De pé, andando vagabunda,Aqui não fica, não é seu lugar,Sua figura de pobre imunda,espanta nosso apetite, nos faz vomitar!O maestro, em traje de gala chuta Maria enquanto grita:fora do palco, fora do palco!Tropeça na consciência e cai esparramada na realidadesólida, dura, vê acima de si um segurança, terno pretobarato fantasiando um irmão em desgraça adestradopara cão de guarda.-Fora da calçada!Escorraçada com gana e maldade para que o espetáculosatisfaça à exigente plateia, Maria reage com adignidade e o desprezo de um silêncio amargo, deixa nabainha do sofrimento contumaz o punhal de um olhar

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carregado de porquês que penetraria no âmago dossentimentos encarcerados do cão de guarda, apenas umoutro infeliz sobrevivente.Ambos são dois cristãos em mais um Coliseu que Deusconsente...

(CONTINUA)

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A CONSPIRAÇÃO DE SANTOANTONIO DO DESAMPARO

Nota 1 (Edição)

Publico na íntegra o arquivo de texto contido no pendriveanexado ao processo batizado de “Conspiração”, arqui-vos que me foram cedidos em CD pelo Exmo. Sr Delega-do de Polícia de nossa cidade, com autorização do MMSr Juiz da Comarca de Piracema de Água Abaixo, a cujajurisdição pertence Santo Antonio do Desamparo. Foi de-positada em juízo a quantia simbólica de R$200,00 (du-zentos reais) relativos aos direitos autorais que possama ser reclamados, com ciência de possíveis reajustes su-jeitos à negociação.

Nota 2 (Secção de Psiquiatria da FaculdadeDr. Eusébio Figo)

O objetivo não é desnudar um ser humano ou julgá-lo. Apresente edição produzida a nosso pedido para uso in-terno da Faculdade como complemento paradidático visafornecer aos alunos subsídios para que, ao empreenderessa trágica viagem a uma mente sob ataque do impon-derável, entender a nossa própria fragilidade e acolherseus futuros analisandos não como doentes mas comoirmãos numa caminhada cheia de obstáculos chamadaVida onde o Bem e o Mal são tratados e computados emarquivos muitas vezes corrompidos em nossos cérebros,

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máquinas vulneráveis aos ataques virais.

PREFÁCIO

Paranoia. S. f. Psiq. Psicopatia, de que há várias formasclínicas, caracterizada pelo aparecimento de ambiçõessuspeitas, que se acentuam, evoluindo para delírios per-secutório e de grandeza estruturados sobre base lógica.(Aurélio)

Abra essa obra. Não se trata de um livro e sim da portapara o interior de uma mente alheia. Entre, raciocine emconjunto e acompanhe os passos lógicos e convincentesda vítima. Olhe para fora e veja um mundo perverso eameaçador...

PARTE 1 - TRANSCRIÇÃO – texto de J.C. 54 anos,professor.

RELATÓRIO DE ACUSAÇÃO PARA SER ENTREGUEAO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONUCOM GRAVES ACUSAÇÕES CONTRA A PREFEITURAMUNICIPAL, POLÍCIA E ORGANIZAÇÃO CRIMINOSADESCONHECIDA NA CIDADE DE SANTO ANTONIODO DESAMPARO, MINAS GERAIS, BRASIL.

Não dá mais, urge deixar anotado, de alguma forma al-guém tomará conhecimento do que estão fazendo comi-go caso passem à violência e eu apareça morto. Falodos psicopatas que me cercam e vigiam. A gota d'águafoi a poucos minutos, começando o dia. Nem a tranquili-dade do café da manhã tenho mais mesmo com a casatoda fechada, levantando-me sem ruído. Embora tenhavasculhado a casa toda e não conseguido encontrar

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onde colocaram as câmeras, estão me filmando de algu-ma maneira, posso sentir suas risadas idiotas. O que ga-nham com isso? Prazer em suas vidas vazias? Volta emeia olho para algum ponto de onde provavelmente po-dem me ver e com a maior expressão de desprezo queconsigo, balanço negativamente a cabeça e às vezes,quando exageram, respondo com um gesto obsceno queembora me desgoste tais atos sei que eles merecem,não há outra maneira de tratá-los, pelo menos saberãoque eu sei de suas ações contra mim. A caixinha de fil-tros de café era nova, fechada. Tenho certeza porquequando fui comprá-la verifiquei cuidadosamente depoisque um indivíduo alto, magro, de uns 50 anos permane-ceu um longo tempo defronte à prateleira dos filtros. Eraum deles. Passei várias vezes por ele e não parei, atéque desistiu e saiu de lá e então pude apanhar a minhacaixa. Mas certamente ele deve ter aberto várias e retira-do alguns filtros, feito alguma coisa pior; pelas gravaçõeseles sabem que ontem eu usei meu último filtro de papele teria que comprar mais. Mas examinei minuciosamentee escolhi uma lá detrás, talvez intocada. E eu estava cer-to, pois hoje claramente senti que estavam me vigiando,aguardando alguma coisa quando fui preparar meu café.E apesar de todas as precauções, me pegaram nova-mente, mais uma brincadeira boba, ridícula, uma agres-são à minha tranquilidade, à tranquilidade que tenho di-reito, por quê fazem isso, eu nada fiz a eles, tudo isso érecalque, inveja pelo que consegui, pelo que sou? Esta-va escrito na caixa: “aperte aqui para abrir” Apertei enada aconteceu, apertei mais e a tampa virou para den-tro hermeticamente fechada, devem ter usado uma colaforte. Forcei o máximo que pude e ela finalmente se ras-

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gou toda, estragando a embalagem! Foi aí que dei umbasta, é preciso passar à ofensiva, decidi que vou deixaranotado passo por passo deles, eu rirei por último poisum dia os malditos saberão que eu sabia de tudo, nãoestava sendo enganado, os verdadeiros palhaços erameles. E vou ficar atento a cada detalhe, não é possívelque o objetivo seja somente diversão, querem me enlou-quecer, talvez provocar meu suicídio, tenho que desco-brir a razão que deve ser algo muito importante que des-conheço. Importante pelo grupo de pessoas envolvidasnessa operação, pela sua movimentação para me seguirem todos os lugares, o custo dos materiais eletrônicosusados para espionagem.

Pesquisei e vi que existem câmeras do tamanho de umacabeça de alfinete, aparelhos que rastreiam o telefone,outros que amplificam os sons, até de meus passos den-tro da casa. Tenho que me preparar, enganá-los o tempotodo, vencer essa luta. Pode ser que buscam algo es-condido, enterrado nos porões ou nas paredes. Dinheiro,ouro, documentos? Seriam antigos nazistas? Moro numacasa antiga, pode haver algum segredo que desconheço.Enquanto escrevo vou batendo os pés compassadamen-te no assoalho de madeira, confundirei os que estão naescuta, pensarão que estou andando, pendurei coberto-res à volta de meu computador e eles não terão certezade onde estou. Obviamente o computador em que escre-vo este relatório não é o mesmo que ligo à Internet, nãosou estúpido. Cada parte que termino passo para o pen-drive que por enquanto levo o tempo todo comigo até en-contrar um esconderijo seguro. Retirei o invólucro deplástico dele, fica só o chip e a conexão usb, pequenos osuficiente para serem engolidos em caso de perigo. A de-

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núncia será feita, ganharei a luta, mexeram com quemnão deviam. Estou com um gosto estranho na boca.Será o café? Podem ter contaminado a água, seria muitofácil, o encanamento é público.

Voltei. Estou completamente alerta. Salvei o texto anteri-or assim que veio o gosto ruim na boca e deduzi correta-mente que poderia ser algo na água. Peguei o pendrive-nada pode ser deixado de lado, nem por minutos, tudopode acontecer- e fui espiar a rua pelas frestas da jane-la. Da entrada da água em minha casa onde está o reló-gio de leitura até o meio da rua, há um corte claro na cal-çada e no asfalto, indicando que foi escavado e fechadoposteriormente. Parece um serviço antigo, mas pode tersido camuflado para que assim parecesse. Se fizeramisso ontem, foi depois das 23 horas, até esta hora fui di-versas vezes espiar pelas janelas da frente e traseiras,andando no escuro, luzes apagadas, embora tenha ciên-cia que podem estar usando câmeras com infravermelhopara visão noturna. Mas se contavam com luzes acesase o equipamento é comum, ganharei terreno até instala-rem outras. Se mexeram na água, pode ter sido instala-do algum tipo de mecanismo que vai soltando pouco apouco alguma droga, tudo parecerá normal, enlouquece-rei paulatinamente. Decisão: usarei a água só para ba-nhos e lavagem de roupa, passarei a beber água mine-ral. Mas mudarei de supermercado, não voltarei no quemexeram na caixinha de filtros do café, vou confundi-los.Agora, senhores, é gato e rato!

Mas porque não me envenenam de uma vez? Ou inva-dem a casa e me matam? E se é para conseguir algoque está na casa, não seria mais fácil se oferecer para

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comprá-la? Transcrevo aqui minhas deduções para quefique claro que estou plenamente consciente do que estáacontecendo e tenho mantido o raciocínio claro e coe-rente. Sei que não sou nenhum paranoico, mas provavel-mente estou lidando com psicopatas, talvez uma seita,uma sociedade secreta. E o caso da água demonstraque a Prefeitura está envolvida, talvez a própria Polícia,não posso contar com ninguém por isso a importânciaem deixar tudo registrado. Estou intrigado. Nenhumaoferta de compra da casa. Nenhuma tentativa de me as-sassinarem. Por que observam todos os meus passos?Por que estão tentando me drogar ou enlouquecer? Ob-viamente querem-me vivo em suas mãos mas não deforma violenta, como se sem minha concordância nãoconseguissem o seu objetivo. Interrogar-me? Mas nadasei de nada, não tenho segredos!

Discretamente pesquisei na Internet como se buscassealgum romance sobre segredos que o corpo humanopode conter e descobri muita coisa sobre chips implanta-dos nas pessoas. Passei a tarde pensando nisso, nãoseria no meu cérebro, pois neste caso poderiam me con-trolar e não seria necessário todo este cerco, as filma-gens, os aparatos e a sabotagens para me descontrolar,a menos que o chip seja de algum grupo rival, mas aí euteria essas informações repassadas eletronicamentepara me proteger. Meu medo é que com minha resistên-cia e inteligência que provavelmente eles não contavampassem a radicalizar suas ações. Mas tenho raciocinadoe não chego a nenhuma conclusão coerente pois mesmose fosse um chip, minha morte resolveria a questão, sa-queariam meu túmulo à noite, tranquilamente ou retirari-am na própria funerária, dependendo de quem estiver

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envolvido.

Estive sentado na sala a noite toda, amanheceu, nem aomenos jantei buscando colocar as ideias em ordem arespeito do chip. Nada. Irei eliminando por partes todasas possibilidades para chegar a uma razão concreta,descobrir o objetivo deles e organizar minha defesa. Dei-xarei por ora a hipótese do chip de lado, não encontreinenhum evento em minha vida que proporcionasse algu-ma chance de ser injetado com alguma coisa, pelo me-nos na fase adulta. Se fosse em criança os problemas játeriam aparecido mas só agora, poucos meses depoisque me aposentei e tenho ficado recluso em casa é queos indícios de ser espionado começaram. Por que estourecluso? E o que tem lá fora para ver? Pensem bem.Pessoas feias, mal-educadas, crianças barulhentas, vio-lência, drogas. Aqui dentro tenho meu mundo perfeito,pelo menos até há pouco. Mas lutarei por ele.

Finalmente uma luz: se é com a casa e não a compramnem me matam é porque não querem aparecer, se en-volver, preferem que tudo pareça muito natural. Genteimportante envolvida...

Organizei tudo em partes como decidira, primeiro ataca-rei a hipótese da casa. Serrei um pedaço de caibro deuns 20 centímetros, peroba rígida, e durante o dia batinas paredes, palmo por palmo, atento a algum som oco.Não me preocupei em disfarçar, quero que saibam queestou na ofensiva, que desconfio e posso estar no cami-nho certo, quero que saibam que estão lidando com al-guém inteligente, um opositor a ser respeitado. Marqueicom um pedaço de carvão todos os pontos onde o somfoi estranho, são até agora 32 só no porão, que ainda

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não terminei. Estou exausto, mas é uma questão de vidaou morte. Estou me alimentando mal, fui pego de surpre-sa e tenho poucos víveres. A água mineral acabou, estoubebendo refrigerantes. Terei que ferver a água várias ve-zes para usá-la pois uma fervura simples não resolve,visto o caso do café. Mas talvez tenha só ficado o gostosem mais efeitos. Não me deixo sugestionar.

Quarto dia vasculhando as paredes, finalmente mapeeitodos os pontos ocos, 61 ao todo. Sentei no sofá paradescansar mas dormi, vencido pelo cansaço. Agora épartir para a perfuração das paredes, também tem váriospontos marcados no chão do porão e por sorte o assoa-lho da casa é de madeira, limpo por baixo, o que mepoupou muito trabalho. O teto não vai ser preciso pois jáo vasculhei anteriormente em busca das câmeras, masfoi infrutífero o esforço, foi como buscar uma agulha numpalheiro escuro e cheio de fios, alguns podem até ser de-les, mas não consegui diferenciar. Tomei uma resoluçãoao pensar nos fios: desligarei a energia assim que aca-bar o que tenho de comida na geladeira, sem alimenta-ção as baterias das câmeras e outros aparelhos eletrôni-cos começarão a falhar e acabarão nulos. Escreverei osrelatórios em um caderno, prontos para serem passadospara o computador e aí então ligo a energia, escrevo ra-pidamente e desligo novamente. Acredito que os cincoou seis minutos escrevendo não será suficiente para queas baterias deles recarreguem, já que estão continuada-mente em operação.

Terei que sair para comprar alimentos, sei que não meatacarão. Mas e a casa? Não me transformarei num pa-ranoico como querem: a casa pode ficar sozinha, pois o

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que tinha que ser feito infelizmente já fizeram, com ascâmeras e demais parafernálias eletrônicas. Eles de al-guma forma entram e saem na casa quando querem. Eos pontos marcados nas paredes devem estar deixando-os enlouquecidos! Que se divirtam, estou no comandoagora!

Voltando. Fiz tudo muito rápido. Fingi que estava limpan-do as portas da entrada e da cozinha, mas já as haviatrancado e discretamente colei com fita adesiva transpa-rente um fio de cabelo indo da porta ao batente. Se fo-rem abertas o fio se soltará ou romperá e ficarei sabendoda invasão. Depois liguei o carro, abri o capô do motorcomo se estivesse fazendo manutenção e ao mesmotempo abri o portão e com a vassoura ensaiei uma lim-peza na calçada. E em alguns segundos corri para o car-ro, sai, tranquei o portão e acelerei rumo à saída da cida-de. Um olho na estrada e um no retrovisor. Acho que osconfundi. Diminui a velocidade e ostensivamente dei aseta para a direita, curvei à esquerda e voltei para a ci-dade, saindo pelo lado oposto. Querem brincar senho-res? Estamos brincando! Em uma cidadezinha vizinhacomprei muita carne seca, caixas de água mineral, velas,ferramentas que vou precisar e um saco de arroz de 60quilos.

Antes de abrir a porta chequei os fios de cabelo que co-locara. Intactos... Não posso subestimá-los. Detectarame entraram pelo telhado. Provavelmente trocaram as câ-meras por outras de visão noturna. Mas agora vou desli-gar a energia da casa, lá nos fusíveis do relógio. Conta-gem regressiva para os aparelhos de espionagem come-çar a apitar. Um verdadeiro jogo de xadrez, a cada movi-

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mento do inimigo, uma manobra de mestre. Primeiragrande vitória! Chega a ser fascinante, não fosse essaameaça sinistra que paira no ar, a minha busca pelosmotivos, até agora infrutífera. Por quê é a grande per-gunta. Começarei as escavações.

O primeiro dia foi cansativo, comecei usando um marteloe uma talhadeira mas não deu certo e então passei ausar somente uma picareta, basta algumas pancadas ejá posso ver os tijolos. Mas a ferramenta é bastante pe-sada, dormi com fortes dores, meu braço direito está rígi-do. A fumaça das velas também me enjoou um pouco,provoca tosse, mas sem energia elétrica tenho que usá-las. Os malditos até a isso me obrigaram, viver sem ele-tricidade. Mas não posso apelar para ninguém, não seiaté que ponto essa organização ou seita é poderosa,quem é membro, de repente posso pedir ajuda justamen-te para o inimigo. Mas hoje, segundo dia, me sinto maisforte, menos cansado, o trabalho até agora sem resulta-dos prossegue mais acelerado, já pesquisei metade doporão. Os pontos que deram os sinais de serem ocossão apenas cacos de tijolos ou falhas na argamassa, re-mendos de encanamento e trincas antigas. Mas irei emfrente até descartar esta hipótese, não me deixarei aba-ter, quantos mais subsídios recolher, quanto mais moti-vos descartar, mais perto estarei da verdade.

Afinal estava mais cansado que pensava, acordei so-bressaltado com um ruído e não sabia onde estava, qua-se entrei em pânico. Por segundos foi aterrador, perdidonuma completa escuridão, julguei estar cego, permanecicongelado sem mover um músculo até ter consciênciaque anoitecera e eu havia adormecido no porão. Estou

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coberto de poeira, faminto e dolorido, estava deitado nomeio de cacos de reboco e tijolos. Não tenho coragemde enfrentar um banho frio, malditos, transformaram mi-nha vida num inferno mas minha mente continua sólida,lúcida. Vou para cama.

A manhã já vai alta. Dormi muito, o cansaço venceu atéa fome, farei o almoço agora, independente da hora. Emuito café. Nada de banho, consegui dormir sem ele edaqui a pouco estarei novamente empoeirado, não étempo de preocupações com a higiene. Estou um poucoalarmado, agora vejo que ontem eu fiquei completamen-te vulnerável, nem raciocinei na hora e agora começo apensar no tal barulho que me acordou. Seriam eles? Po-dem muito bem ter pensado que eu estava morto, poisadormecera sobre o entulho das paredes quando aindaera dia e com as velas me iluminando. Se as bateriasdas câmeras ainda estavam boas, ficaram horas me ob-servando inerte. E se foram eles que fizeram o barulho,podem ter vindo trocar as baterias por outras novas, denada me valeu o sacrifício desses dias sem energia. Mastudo tem demostrado que estou sendo monitorado, deveter sido um barulho muito forte para que eu tenha saídodaquele estado de torpor.

Bingo! Minha mente é maravilhosa! Tomando café e co-mendo, repentinamente mais uma luz! É claro que comtudo o que fizeram até agora, não cometeriam erros pri-mários como fazer barulho, foi de propósito, eles meacordaram, se preocuparam comigo, de nada sirvo mor-to, querem-me vivo! Com o passar das horas vendo-mecaído, decidiram fazer algum ruído forte para se certifica-rem que eu estava apenas dormindo. Com isso, duas

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certezas: as câmeras continuam com bateria e eles es-tão sempre próximos. Mas tive uma ideia que vai deixá-los apavorados se realmente me querem vivo: encenareiminha morte.

(CONTINUA)

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ANGÚSTIAS DE UM PEIXE-VOADOR

O mais patético dos animais, o Homem-peixe-voador,neste salto de um segundo de consciência transitóriacoleciona tudo o que pode amealhar, penas ao vento,grãos de poeira, alguma folha que porventura esteja aboiar na superfície. Esbarra no peixe que salta ao lado,toma-lhe a frente. E depois se dissolve na água comalguns respingos que rapidamente desaparecem. Se nomicro momento antes de tocar a cabeça no oceano doNada perguntássemos a cor do maravilhoso céu queacabara de percorrer, não saberia a resposta...

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Transitoriedade é a palavra que bem definia Arthurporque assim se sentia: um ser passando de uma formapara outra. Via-se como um peixe-voador que havianascido quando principiava a sair d'água para seu salto eque, momentos depois cairia novamente nainconsciência quando voltasse a tocar na superfícielímpida, calma, indiferente de um mar infinito chamadoUniverso. Sabia que nesta reentrada por mais que seagitasse apenas provocaria alguns respingos que logodesapareceriam. Sabia que era nada e tudo ao mesmotempo, pois era de Arthurs, pedras, árvores, água e tudomais que era formado o Todo, peças intercambiáveisconstruindo ao acaso. E o acaso dotara Arthur de umaqualidade duvidosa, a de, neste salto milimétrico eefêmero, fazer uso de uma consciência transitória, ver-se, sentir-se, observar. Era um pobre ser humano, amais inútil das criaturas numa realidade igualmente inútil.

Mais que tudo, ele usava a capacidade de observar emsuas longas caminhadas sem rumo. Já se achara: peixe-voador. Também se via, refletido nas vitrines como umconjunto andante de sapatos, calças e camisa;procurava sentir-se e muitas vezes, propositalmente, nãose desviava dos transeuntes em sentido contrário paracertificar-se que existia e era visto. O resultadoaumentava suas dúvidas, pois terminava invariavelmenteem encontrões, como se fosse invisível aos demais.Existiria ele apenas quando do encontro? Ou otranseunte pertencia a outras esferas e não o via? Das

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dúvidas, resultantes do importuno cérebro carregadoacima do conjunto de calça e camisa, a mais importanteseria se era ele igual aos demais seres supostamentehumanos. Comportavam-se como imortais, não daespécie de peixe-voador momentâneo que eram, masuma espécie de golfinho ou baleia, que saltam, respirame cujo mergulho de volta não parece definitivo, com apretensão de aparecer outra e outra vez. Talvez por issoamealhassem tudo o que podiam, esbarravam-se,procuravam passar à frente uns dos outros durante apequena aparição no indiferente Universo. Arthur atéagora só tinha uma certeza: dos que mergulharamdurante sua vida, nenhum voltara à superfície...Saberiam eles que eram peixes voadores que sóexistiriam durante o salto ou realmente não eram comoArthur, que se perguntado saberia a cor do céu, o cheirodas flores, o andar das formigas. Porque ele era umobservador de tudo que podia ser visto, de tudo que seencontrava à sua volta e que o prêmio-castigo daconsciência transitória permitia ver e sentir. Nadaprocurava mudar, quer pela inutilidade quer pela perdade tempo, tão exíguo. Tentava apenas olhar para todosos lados que pudesse, ávido de conhecimento mas semdesejo de alterar. Um passageiro não deve aspirarmudar a cor ou a performance da nave onde viaja.Porque sabia ser apenas mais um transeunte entreinfinitos, viajando no acaso.

Aos cinquenta anos, nada amealhara e sobrevivia graçasa pequenos trabalhos de carpintaria, à casa e um poucode renda deixada pelos previdentes pais, que já nãoeram jovens quando nasceu, gravidez tardia de um

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casamento tardio, preocupados com o futuro do filhointrovertido.-Oras Charlotte, sejamos sinceros –sorrindo, desabafavao pai- nosso Arthur é no mínimo estranho!Recém-saído da adolescência e órfão, logo abandonou auniversidade onde tentou cursar Filosofia mas nãoencontrara utilidade em nenhuma matéria. Alunobrilhante na escola, foi tido como contestador no cursosuperior, com os mestres pífios e restritos vingando-senas notas sempre baixas e as observações com queprocuravam justificá-las: fugiu do assunto... E Arthurachava que eram os mestres e os filósofos estudados éque fugiam ao assunto, com pensamentos que não iamalém da casca do ser humano, quando somos parte doTodo, do Universo. Estudando apenas a unha do gigantenunca chegaremos a conhecê-lo! -protestava Arthur.Aliás, sua busca era também por alguma supostautilidade em viver, que talvez houvesse mas ninguém lheensinara. Tentou ainda trabalhar em escritórios,balconista e finalmente encontrara um pouco de paz emserviços braçais, pouca conversa e mais resultados; foipedreiro e depois carpinteiro onde se mostrou um hábilprofissional. Mas cansado de ser repreendido por mudaras plantas originais por conta própria buscando maispraticidade, resolveu ficar em casa, sem horários epatrões, realizando pequenos consertos para avizinhança. Mais e mais se desligava da desvairadasociedade.

Arthur meditava. Volta e meia deixava-se vagar junto aospensamentos, esquecido do corpo físico. Por isso muitasvezes permanecia estático, até mesmo, quando ainda ospais eram vivos e procuravam tirá-lo do aparente torpor,

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ouvindo dos médicos, psicólogos, psiquiatras os maisdiversos disparates sobre sua pessoa: autista,introvertido, ligeiro retardo mental. Arthur simplesmentepensava, cismava. E para isso não era necessáriolocomover-se, movimentar braços e pernas,complementos inúteis que pouco durariam e nadaconstruiriam que não se dissolvesse no tempo infinito doUniverso.Cansou-se de ser detido:-identidade!-por quê?-recebemos uma denúncia de comportamento estranhoem via pública.-não estou fazendo nada.-por isso mesmo.-mas sou obrigado a fazer alguma coisa?-o senhor está parado na calçada olhando para umaárvore há mais de uma hora, segundo a denúncia.-é crime olhar para uma árvore?-erhh, ahh, não, mas é que... Identidade!-sem identidade não se pode olhar uma árvore?-lhe prendo por desacato!-perguntar a uma autoridade que deve servir ao cidadãoé desacato?-acompanhe-me, o senhor está preso!

E lá ia Arthur, sem demostrar a mínima preocupação ouconstrangimento, acompanhando o confuso policial até apresença da autoridade de plantão, onde esperava porhoras, pacientemente, olhar perdido, retomando ospensamentos interrompidos. Era um cérebro instaladoem um barco de carne e ossos ao sabor das ondas

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sociais, pronto a saborear as mais diversas paisagenscomo pano de fundo ao seu filosofar. Questionamentosde terceiros eram apenas o murmúrio do mar, assoviosdos ventos. Deixar-se levar preso era como serrebocado, sem precisar remar...

Gostava de andar pelos parques, observando ospasseadores de cães. Para ele era um retrato perfeito daloucura vivida sem ser sentida, o passeador de cãestransmitia uma imagem dupla face divertida epreocupante ante o absurdo da coisa: de um lado umadezena de animais de vários portes, força, gostos,instintos, obrigados a se espremerem contra a pelagemalheia sem poder marcar seu território e sem escolher orumo, por mais que puxassem de seu lado e tentassemdemostrar sua vontade; de outro lado o suposto animalsuperior, apenas um, preso a várias guias que apesar devariantes de força, acabavam todas seguindo um mesmocaminho. Arthur invertia a dupla face e via um homemsendo conduzido por várias guias, seguras pela Crença,pelos Dogmas, pelas Leis, pelas Regras Não Escritas,pelo Medo, pelas Ilusões. A guia mais forte e que pareciadeterminar a trilha a seguir era a das Ilusões. Nãochegava à conclusão quem puxava quem nesta guia,quem verdadeiramente estava na coleira. A Ilusãodominava ou o Homem a puxava? Embora em outrascoleiras como a Lei, o Homem tentasse arrastar-se poroutros caminhos, parecia satisfeito em enfiar a cabeçorravazia na Ilusão, vontade própria... Não havia cães, eramhomens levando homens a passear num caminho semvolta e sem ponto de chegada. A caminhada era para ogrande Nada.

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Nos mesmos parques por horas observava as formigas esuas tomadas de decisões, sempre aparentementefáceis e rapidamente transmitidas às demais para quenão repetissem o erro. Por vezes as grossas gotas dachuva pesada que se anunciava e espantava a todos osfrequentadores, trazia novidades à observaçãomicroscópica e lá ficava Arthur, aos poucos seencharcando, encantado com as medidas emergenciaisdas formigas. Os humanos, rapidamente desapareciam,salvo um ou outro solícito ou irreverente indagando:-o senhor está bem?-precisa de ajuda?-sai da chuva otário!-e aí tio, vai se molhar!Arthur não respondia, entretido, e não foram poucas asvezes que foi praticamente arrastado para debaixo dealguma árvore ou quiosque. -o senhor pode adoecer!-por quê?-a água! A água!Mas nosso corpo é constituído de até 75% de água,somos seres líquidos, respondia, antevendo o olhar deespanto de seu interlocutor, que geralmente ou sorria ouesbugalhava os olhos e discretamente ia embora, certoque falava com um louco ou um drogado.

Na loucura da metrópole, seu meditar volta e meia erainterrompido pelo estardalhaço dos helicópteros, no seuvai e vem levando pessoas ocupadas, que numa posiçãoprivilegiada de águias em voo, não tiravam os olhos depapéis a serem assinados ou estudados. Eram homensse complicando cada vez mais. Voar... O tigre almeja

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voar? Convencia-se mais e mais da insatisfaçãohumana, o homem era o único animal descontenteconsigo mesmo. Lera em algum lugar que o helicópteroera uma máquina que voava graças a forçascontraditórias e bastava algum pequeno problema e tudose destruía rapidamente sem aviso. E o comparava comas mulheres, com quem tivera pequenas experiênciastodas elas desastrosas, forças conflitantes a quembastava uma pequena falha para tudo vir abaixo. Isto emtempos idos quando ainda tentava interagir com osdemais para descobrir até que ponto ia sua normalidadeoficial, no estranho padrão exigido pela sociedade.Desistira delas –não sem pesar- após a última, a quem-prometera a si mesmo- tratou com aplicação, semcometer os erros anteriores apontados por iradascompanheiras em queda vertiginosa e rodopiante. Tudofora impecável por algum tempo até que, do nada, osmesmos problemas surgiram, como se repetido tivessetodos os erros, todas as falhas anteriormente lançadasem sua cara e que o deixava totalmente perplexo. Donada o nada distorcido estava contra ele e ela era avítima... Sentiu que finalmente estava entendendo asmulheres, um comportamento cíclico no qual pouco ounada importava o que ele fizesse ou deixasse de fazer.Nenhum curso ou esforço bastaria para aprender apilotá-las...

Arthur, um homem-trator, máquina mais grosseira edireta, desistiu por completo daqueles seres estranhos,helicópteros de hormônios conflitantes que sedesmantelavam no ar se um parafusinho afrouxasse.Descobriu que não bastava sentir a delícia do calor doscorpos, o enrodilhar-se em silêncio, a companhia

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contínua, as mãos dadas, o envelhecer juntos:-Você tem que ter mais ambição, Arthur! -Não se vive de amor, Arthur!-Precisamos ter um carro!-Quero vencer sozinha!

E ele concluíra que o desenvolvimento do cérebroafastara os machos e as fêmeas, que cada vez mais setransformavam em espécimes diferentes, incompatíveis.Só se lembrava delas quando o bater das pás dasmáquinas voadoras o tirava do quase transe observador.O mundo tornou-se assexuado para ele e ficou mais fácilde suportar, ciente que no curto voo de peixe sobre ooceano, qualquer tentativa de interação com humanosapenas tumultuaria seu efêmero planar...

Cada vez mais se afastava de sua espécie e seacercava dos ditos animais irracionais. Destes, as quemais lhe ensinavam eram as formigas e também seencantava com o cão, que sabia se equilibrar entre onatural e a plena loucura dos homens, algo difícil paraArthur, que sem ser uma formiga que pode ignorar o serhumano, também não era um sábio cão. Passou aestudar os cães, conversar com eles que quase semprelhe ouviam com atenção e as formigas, que o ignoravamsolenemente.

Certo dia, sentado no banco de um parque, curvadoobservava uma linha de formigas. Seguiam céleres pelochão, forçando-o a desviar o pé, numa atitudecondescendente de "ser superior", pensamento que logo

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corrigiu com uma série de questionamentos. Olhou paraseu sapato: couro, borracha, cola sintética, fibras,plástico. Meias, algodão industrializado, calças idem,cinto de couro, metal, e assim foi, desde os pés tentandoresgatar toda a complicada cadeia de eventos que foramnecessários para que ele estivesse simplesmentevestido. E as formigas nuas, cuidando da vida...

Voltou para casa -veículos, asfalto, semáforos, postes,sinalizações- cérebro fervilhando: tijolos, cimento, telhasde barro, vidros, fios elétricos. Pensou nos relógios,celulares, óculos. E as formigas nuas indo e vindo.Passou pelo ainda imprescindível supermercado -trocade papel moeda por serviços, comida industrializada.Pegou a chave, desligou o alarme, abriu a porta de suacasa e entrou. E as formigas, todas iguais, se recolhendoao formigueiro. Um suficiente furo na terra. Todasdevidamente alimentadas, alojadas, com papel socialdefinido em prol do bando. Olhou pela janela da sala,humanoides apressados ao fim de um dia de trabalho,disputa para um acúmulo individual inútil, já que são tãomortais como as formigas.

Fechou as cortinas e abriu outra para o mundo atravésde um controle remoto. A televisão se iluminou ecomeçou a falar apressadamente: as autoridadescomunicam o encontro de índios isolados no distanteBrasil. Distante de onde? -Arthur perguntou-se. Para osbrasileiros, nós é que moramos distante, pensou com umsorriso... Fotos de satélite, sobrevoo de aeronaves. E osíndios com suas malocas e plantações à volta,

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descansando nas redes. Todos iguais, alimentados ealojados como as formigas, sem estudo, sem salário,sem roupa, sem problemas, a não ser os "seressuperiores" já pensando em “ajudá-los” lá de cima comseus rádios, computadores... Na selva, quantas espigasde milho vale um não comestível computador? -meditavaArthur. Quantas raízes de mandioca vale um inútil avião?Com os olhos fechados aproveitando o calor do sol, omesmo sol e calor do jardim de sua casa, o que importaum satélite? Há apenas algumas décadas atrás, nãoexistia o imprescindível computador, o absolutamentenecessário telefone celular. E os índios estavam lá, nasredes, como agora. Afinal, quem precisa cada vez maisde tantos complementos, ferramentas e assessórios paraexistir é um ser inferior, incompleto e que se torna mais emais dependente, regredindo. Muito aquém das formigase dos índios, estáveis num patamar, seres já completos...Arthur exultava com a claridade que penetrava em suamente, como conseguia repentinamente ver-se de forapara dentro, como muitas de suas insistentes perguntaseram respondidas, e respondidas pelas formigas e pelosditos selvagens! Assim iluminado, feliz, Arthur decidiu sedespir de tudo que é caro aos humanos, quaseenvergonhado de sua espécie. Queria experimentar,dentro do possível e sem confrontos, um comportamentoanimal do qual poderia experimentar no meio humanocircundante, o canino: comer, beber, passear, dormir,sempre no presente, absolutamente sem futuroprevisível; ser formiga, cuidar da toca, limpa e protegida,sem supérfluos; ser uma águia, olhando de cima, visãoprivilegiada, a desordenada correria dos homens... Fugirdas ameaças, não guardar rancor dos ataques gratuitos,

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enrodilhar-se e descansar imediatamente quando vier avontade ou o cansaço, não processar os alimentos,libertar-se dos complementos inúteis.

No primeiro sábado seguinte, manhã se anunciandocheia de luz, céu azul sem nuvens a borrá-lo, a ruatranquila de classe média iria experimentar uma agitaçãopassageira mas incomum. Na típica casa de doispavimentos, ombro a ombro com as vizinhas, jardim bemcuidado na frente, a porta abriu-se com decisão puxadapor Arthur, olhar brilhante, meio sorriso nos lábios,formigas e índios na cabeça. Respirou fundo. Colocou asmãos na cintura, ar de quem vai iniciar uma grande obra.Sumiu por uns instantes e voltou carregando a televisãoe a depositou com cuidado, no limite entre o gramado ea calçada, no lugar destinado normalmente ao lixoreciclável. Retornou para o interior da residência e voltoucom um eletrodoméstico. E outro, mais outro. Todoscolocados em absoluta ordem, lado a lado, como numafeira de garagem. Um vizinho de frente apareceu àjanela e logo a seguir sua esposa que como um cuco derelógio esticou a cabeça para fora, curiosa. Um ciclistaparou e quando Arthur voltava com uma cadeira,perguntou se era uma venda.

- Não - foi a resposta sucinta de Arthur, que balançounegativamente o focinho e continuou em seu vai e vem.O ciclista farejando algo no ar insistiu:-Está mudando?-Não - foi a resposta sucinta de Arthur, que novamentebalançou negativamente o focinho e continuou em seuvai e vem.

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O ciclista, aborrecido com a aparente falta de educaçãode seu interlocutor, endireitou o corpo e ia pressionar opedal para ir embora quando pensou na terceira opção,pela qual valia a pena se aborrecer mais um pouquinho.Era um sábado morno mesmo, qualquer novidadeserviria para distração em seu habitual passeio. Esperouque um pesado sofá fosse largado sobre o gramado edisparou:- Está jogando fora?!- Sim - foi a resposta sucinta de Arthur, que após um leveabano mental da cauda, continuou em seu vai e vem. Enquanto a casa era calma e metodicamente esvaziada-mesas, sofás, todos os relógios, de parede, mesa, pulso–ausências indispensáveis para a nova vida- e atémesmo talheres, o até então tranquilo ciclista setransformou, agitado. Primeiro tomou posse do bemdesejado, a televisão, das grandes, que aparentava estarquase nova. Não sabia o que fazer, largou a bicicleta,colocou a TV na calçada, olhou para a bicicleta, olhoupara os lados, mudou o aparelho para o meio fio eencostando-se em seus dois bens, sacou um aparelhocelular da cintura e discou freneticamente.Os vizinhos da frente que aparentemente continuavam avigiar os movimentos de Arthur, logo decodificaram aeuforia do ciclista e saíram porta afora, diretos para obutim que se anunciava farto. Como o atarefado peixe-voador-canino respondera seus entusiastascumprimentos com um abanar de cauda mental,atiraram-se ao ciclista:-Ele está jogando fora?!-Está, mas a TV -e fez uma pausa olhando para oslados- e o toca CDs são meus!

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Os dois ignoraram de imediato o ciclista e atacaram osofá de dois lugares, Chesterfield legítimo de couro e jáatravessando a rua gritaram ao novo dono da TV:-As poltronas são nossas, é um conjunto!Em momentos chegou uma pequena camionete,chamada pelo ciclista, o que causou desespero ao casalque transportava já a primeira poltrona. Enquanto omarido arrastou sozinho a poltrona, a mulher cuco voltouapressada e aboletou-se no sofá restante, abraçada aum processador de vegetais, mantendo um olhar ferozpara os dois que já carregavam o veículo. Em poucotempo cerca de uma dúzia de respeitáveis cidadãos sedigladiavam, com os olhos açambarcando mais do queseus braços podiam segurar, enquanto Arthur, já com atarefa de limpar seu canil-toca-ninho concluída, deitou-sede bruços na soleira da porta, braços cruzados sob oqueixo, orelhas em pé, olhos atentos e passou aobservar divertidíssimo, os estranhos humanosamealhando tudo para o nada. Ali, rés ao chão deitado,tinha um novo ângulo de visão nem um poucodesfavorável como se poderia pensar. Sapatos,sandálias, pernas como máquinas de vai e vêm escravascomandadas por cérebros apressados aboletados lá emcima do corpo, que sem um plano de ação precisotransformavam uma simples reta –o caminho mais curto-numa série de idas e vindas, rodopios, marchas à récômicas, numa dança que assim vista confirmava ao –canino- Arthur, suas dúvidas sobre a superioridadehumana. Pensou: -minhas amigas formigas fariam demaneira mais organizada e provavelmente a limpeza jáestaria terminada. Em verdade quase nada levariam poissó o essencial lhes interessa...

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Pouco se preocuparam com Arthur ou ocumprimentaram. Até mesmo -notou ele- procuravamnão olhar em sua direção, aliás, não se olhavam comose avestruzes com a cabeça metida num buraco fossem,tentando crer que se não vissem também não eramvistos naquele saque apressado e socialmenteconsiderado um ato de segunda classe reservado aosmais necessitados. Alguns falavam alto, sem dirigir-se aalguém específico explicando que iriam doar parapobres, para um asilo, ou que a empregada estavaprecisando daquele item ferozmente abocanhado.Mentalmente Arthur corria em círculos, pulava naspessoas, saia em disparada e depois voltavarepentinamente, língua de fora, ofegante. Livre, feliz,cheio de energia para gastar consigo mesmo, semnenhum sofá social nas costas, sem ter que carregaruma camionete com pedaços de vida para remendar asua. Estava leve como nunca experimentara antes, cadavez menos identificado com aqueles incongruentes serescobertos de desejos, empáfia, preconceitos, avaroscolecionadores de inutilidades.

Depois, os respingos da agitação desapareceram e ospequenos círculos formados na superfície do OceanoUniverso se dissolveram rapidamente. Apenas uma jarrade louça com formato de pera amarelada e cujo caboimitava uma folha verde restou na calçada. Desprezada,a jarra teimava em permanecer ali como uma prostitutavelha que, sem inspirar desejos, oferecia-seesperançosa em liquidação. Arthur colocou-a na cesta demateriais recicláveis com o pensamento que ali ou nocentro de uma mesa, o objeto tinha a mesma falta de

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função como um homem na posição de rei ou mendigo.Quimeras, nuvens que podem, por minutos, esconder osol mas que depois se dissolvem ou passam,empurradas até por uma fraca brisa.

Arthur entrou em sua toca, fechou atrás de si a barreiraque mantinha os predadores do lado de fora. Percorreucom uma suavidade de felino os aposentos vazios,contemplou as paredes nuas e tudo parecia maior, maissilencioso, mais seu, mais aconchegante como se a casao abraçasse. O sentimento era que o vazio revelava-semais cheio, sem marcas de posse que induzissem econduzissem o pensar. Agora era sua imaginaçãoilimitada que preenchia o espaço e a casa nuncapareceu tão completa, tão sua. Num canto ficara a caixacom tudo o que era pessoal de seus pais, papéis,documentos, fotos, não se achou no direito de descartá-los. Centenas de livros de política, religião, filosofia,psicologia e até psiquiatria, onde procurara, como nummanual de usuário, conhecer sua espécie, embora compoucos resultados. Ferramentas de carpinteiro, algumaspanelas e uns poucos talheres, pois não tinha garrassuficientemente fortes para descartá-los por completocomo gostaria e o velho aquecedor elétrico, uma vezque, homo sapiens, já não tinha a pelagem espessa paraprotegê-lo dos rigorosos invernos. Arthur não sonhava deforma inconsequente, era prático, simplificava com oobjetivo de poupar-se, não de se colocar em umasituação ridícula, insustentável ou de pouca duração. Porisso não aceitara os teóricos mestres e filósofos, irreais.Num saco plástico dependurado na parede, tudo o queainda era necessário para viver sem problemas e

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confrontos com o mundo dos homens: o cartão decrédito, as contas de água e energia elétrica, osimpostos urbanos, sua identidade, coleiras com que eraidentificado entre os cidadãos. Arthur sabiaperfeitamente que deveria reservar esses 10% dehomem prisioneiro de sua sociedade se quisesse vivercomo os ainda naturais animais sem ser considerado umlouco ou -mais perigoso ainda- alguém que queira fugirdas guias do Grande Passeador de Cães. Cairiairreversivelmente nas garras do Leviatã, dado comoincapaz e colocado prisioneiro nas jaulas hospitalarescomo um objeto sem mente, sem jamais voltar a sentir ovento no rosto, respirar o ar frio das manhãs no campo,deitar-se na grama, sujar-se no barro frio, enfiar-sedebaixo de uma cachoeira, pensar contemplando o azuldo céu, recolher-se ao entardecer à sua toca com seucheiro e segurança. Não se permitiria passar pordemente ou inconsequente hippie, no máximo poralguém exótico quando de suas forçadas incursões aomundo dito civilizado.

Deixara um colchão de casal no centro do quarto e nasala maior uma mesinha, uma cadeira, canetas ecadernos, muitos cadernos vazios para serempreenchidos de vida. Sem que sua experiência fosseaproveitada por seus angustiados iguais, ele seriaapenas mais um ser egoísta que amealha avaramente.Lamentava não ter tido habilidade suficiente para pilotaraquelas máquinas complicadas, as mulheres-helicóptero,que poderiam ter contribuído com sua visão certamentediferenciada dos homens-trator, máquinas mais rudes ediretas. Mas era muito difícil e improdutivo manter na

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mesma oficina de mentes, máquinas de engrenagensnão intercambiáveis que a seu ver dava prejuízos àEspécie na busca de encontrar-se e o embate macho-fêmea os distanciava das soluções. A solução, se nãoera exequível o intercâmbio, que, pelo menos, sesomasse os resultados de ambos para o bem comum.Talvez se uma mulher um dia lesse suas anotações,sonhava Arthur...

Se conseguisse passar adiante mesmo que para umaúnica pessoa suas descobertas, sensações, deduções ese esta pessoa em posse de tais informações pudessepular etapas e pensar mais à frente, adquirindo maisprofundidade que Arthur e, seguindo seus passos, deixaracumulado para os que se seguissem, aos poucosteriam num tempo infinito e sem pressa, uma legião depeixes-voadores conscientes de seu curto voo e danecessidade de não desperdiçá-lo com acrobaciasaéreas inúteis.

Queria que seus escritos fossem lidos e compreendidos,mas não queria criar uma geração de tolinhos radicaiscomo os que têm a pretensão de julgar que o homempode destruir o planeta, este bloco bruto que nem tomaconhecimento dos arranhões humanos e climáticos emsua superfície:

- Tudo o que fizermos fisicamente de bom ou de ruimnão passará de um pequeno bolor sobre uma pedra, aTerra, que por sua vez não passa de uma manchinhainsignificante na pele do Universo. A empáfia humana

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preza realizações perecíveis em detrimento da únicaevolução que é a mental...

Talvez num tempo tão longo que ainda inimaginável paranós, o animal homem mais consciente deixaria de sereproduzir e se dissolveria para sempre, mantendoapenas suas ondas pensantes a vagar pelo espaço, sema carga pesada, vulnerável e desgastante do tolamentevaidoso corpo humano e seus complementos.

(CONTINUA)

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Ebook: http://www.hotmart.net.br/produto/p2645109p/O-desventrar-do-ser-social--coletanea/---1733734--

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