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COLÓQUIO Novos Estudos Pessoanos Ponto de Situação 13 FEV ‘20

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C O L Ó Q U I O

Novos Estudos PessoanosPonto de Situação

13 FEV

‘20

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Em Fevereiro de 2017, investigadores dedicados a Fernando Pessoa reuniram-se na Fundação Calouste Gulbenkian para o mais recente Congresso Internacional sobre o escritor. Desde então, anualmente, nessa altura, a Casa Fernando Pessoa procura que se faça um ponto de situação do novo conhecimento nesta área. Pesquisas recentes, novas leituras, últimas publicações são apresentadas e debatidas, actualizando-se em público a investigação sobre Pessoa.

C A S A F E R N A N D O P E S S OA . P T* Foi respeitada a opção ortográfica de cada interveniente.

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ÍndiceANA MARQUES E MANUEL PORTELARepresentação e análise da receção crítica do Livro do Desassossego no Arquivo LdoD .......................................... 5

ANDREA SANCHÉZProvérbios Portugueses de Fernando Pessoa no contexto editorial do modernismo ................................................12

DIEGO GIMÉNEZProblemas de Intertextualidade Filosófica no Livro do Desassossego ............................................................ 21

KAREN PELLEGRINILivro do Desassossego: uma arquitetura das sensações .....................................................................................31

LUÍS ANDRADEFernando Pessoa no Portal Revistas de Ideias e Cultura (ric.slhi.pt) .......................................................... 39

LUIZ FAGUNDES DUARTEEditar a Mensagem, entre outros ....................................................... 46

NUNO AMADOOs Anos da Vida de Ricardo Reis (1887-1936) (resumo) ........................ 53

PEDRO SEPÚLVEDAA crítica pessoana de Eduardo Lourenço revisitada (resumo)........... 54

RUI SOUSAPetrus, Antologiador e Crítico de Fernando Pessoa ........................... 55

TERESA MONTEIROBiblioteca Particular de Fernando Pessoa – últimas aquisições ...........................................................................73

ANTÓNIO FEIJÓHomenagem a George Monteiro (nota de apresentação) ................... 82

Notas Biográficas .............................................................................. 83

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Comunicações e resumos

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ANA MARQUES E MANUEL PORTELA1

Representação e análise da receção crítica do Livro do Desassossego no Arquivo LdoD

1 - Universidade de Coimbra

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A interpretação dos símbolos tem uma geographia2.BERNARDO SOARES, LIVRO DO DESASSOSSEGO

Publicado em dezembro de 2017, após seis anos de desenvolvimento, o Arquivo LdoD apresenta-se atualmente através da seguinte descrição:

O Arquivo LdoD é um arquivo digital colaborativo do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa. Contém imagens dos documentos autógrafos, novas transcrições desses documentos e ainda transcrições de quatro edições da obra. Além da leitura e comparação das transcrições, o Arquivo LdoD permite que os utilizadores colaborem na criação de edições virtuais do Livro do Desassossego. Inclui ainda um módulo de escrita que, futuramente, permitirá aos utilizadores escreverem variações a partir dos fragmentos do Livro. Deste modo, o Arquivo LdoD combina um princípio representacional com um princípio simulatório: o primeiro consiste na representação da história e dos processos de escrita e de edição do Livro; o segundo consiste na possibilidade de os utilizadores assumirem diferentes papéis no processo literário (ler, editar, escrever), usando a flexibilidade do meio digital para experimentarem o Livro do Desassossego como máquina literária3.

O Arquivo LdoD encontra-se neste momento numa segunda fase, que inclui, além do desenvolvimento de novas funcionalidades4, uma componente dedicada ao levantamento de documentação relativa à receção do Livro do Desassossego, e sua integração no Arquivo. Estes documentos dividem-se em três categorias: ensaios sobre o Livro, prefácios de editores, e recensões sobre as diferentes edições. Com o objetivo de integrar os documentos de receção com os documentos de produção autoral e editorial, os documentos de receção foram codificados na linguagem de marcação XML-TEI. A codificação em XML permite não apenas que os textos sejam computacionalmente legíveis, mas permite também que todas as citações do Livro do Desassossego presentes em cada texto crítico se articulem, através de hiperligações, com as respetivas edições do próprio Livro do Desassossego. Assim, poderemos consultar os documentos da receção crítica e entrar no Livro através das citações neles presentes, identificar as passagens do Livro que são mais citadas, os contextos argumentativos em que são citadas e os modos como as citações são materialmente tratadas e integradas num argumento. O que se pretende é compreender como se lê

2 - https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr704/inter/Fr704_WIT_MS_Fr704a_000

3 - https://ldod.uc.pt/about/archive. O Arquivo LdoD foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação “Nenhum Problema Tem Solução: Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego” do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra (CLP). Projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/CLE-LLI/118713/2010) e cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-019715).

4 - Entre as novas funcionalidades integradas no Arquivo LdoD desde a sua publicação, em dezembro de 2017, destacam-se as seguintes aplicações: “Jogo de Classificação LdoD” (2018, https://ldod.uc.pt/classificationGames); “Citações no Twitter” (2018, https://ldod.uc.pt/citations); “Edição Virtual Twitter” (2018, https://ldod.uc.pt/edition/acronym/LdoD-Twitter) e “LdoD Visual” (2019, https://ldod.uc.pt/ldod-visual). No campo da escrita virtual foi também desenvolvida a aplicação “Máquinas do Desassossego” (2014-2018; http://mofd.dei.uc.pt/), embora esta não esteja ainda integrada na plataforma.

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criticamente um texto, identificando os protocolos de leitura através dos quais as interpretações do Livro do Desassossego são produzidas. Se ao nível da representação das quatro edições principais podemos reconhecer a presença de um princípio de meta-edição, ao nível da representação das leituras críticas poderíamos falar de um princípio de metaleitura, isto é, de leitura da leitura, com o objetivo de descrever e modelar práticas específicas de leitura crítica.

As interpretações reconfiguram os textos ativando determinados elementos no seu campo de significantes e põem em prática protocolos de leitura que variam conforme as diferentes comunidades interpretativas. As comunidades interpretativas, conceito proposto por Stanley Fish em 1976, são constituídas por leitores que partilham estratégias de interpretação segundo as ideias ou a visão do mundo que caracterizam essas comunidades. Estas estratégias são dinâmicas, estão em permanente mudança e reformulação, em função de convenções socioculturais e históricas. Stanley Fish refuta a ideia de que a leitura precede a interpretação: o ato de ler e o ato de interpretar são o mesmo, porque ao ler estamos já a pôr em ação as nossas redes de referências. As estratégias de interpretação são a forma da leitura, e nessa medida elas produzem o texto, em vez de, como comummente se assume, emergirem dele (FISH, 1976: 481). As fôrmas com que damos forma ao mundo determinam os modos como extraímos sentido de um texto, e por isso são estratégias não de leitura, na aceção convencional do termo, mas de escrita, no sentido da constituição e atribuição das propriedades de um texto (FISH, 1976: 483). A teoria de Fish retira ao texto literário qualquer identidade inata: o texto não tem sentido em si mesmo, mas o seu sentido também não depende da subjetividade das interpretações individuais, sendo antes contingente dos horizontes das comunidades interpretativas.

A receção crítica, enquanto prática de leitura específica, consiste em processos de citação e intertextualização, de devoração de uns textos por outros. Citar significa privilegiar determinados aspetos de um texto, reconfigurando a hierarquia dos seus elementos, de forma a fundamentar uma interpretação. A seleção de citações de um texto fonte para ancorar determinadas inferências e cadeias associativas no texto do intérprete é um vestígio material do ato de leitura e do campo de forças específico com que esse ato reconstela os elementos do campo textual. A produtividade de uma leitura crítica advém quer de modelos interpretativos mais ou menos partilhados (como o marxismo, a psicanálise, o feminismo ou a desconstrução, por exemplo), quer de intenções e focos de atenção individuais. A incorporação de um texto noutro através da citação constitui um dos processos de produção de intertextualidade, isto é, de criação de vínculos explícitos entre textos5. É também a demonstração da iterabilidade infinita da escrita, isto é, da possibilidade de qualquer texto escrito

5 - Gerard Genette, por exemplo, define intertextualidade de forma restritiva como sendo “a presença efetiva de um texto noutro”, que se manifestaria de três modos: citação, plágio e alusão (GENETTE, 1989: 10).

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ser repetido e ressignificado noutro texto escrito6. A análise destes processos de descontextualização e recontextualização permite observar a produção de intertextualidade como expressão da dinâmica entre escrita e leitura.

Até ao momento presente foram codificados 29 textos de 19 autores, publicados entre 1982 e 2018. No seu conjunto, estes textos citam 410 trechos do LdoD. A partir desta amostra, foi possível constatar que há uma predominância de determinados tópicos de análise, designadamente: a psicologia de Bernardo Soares; a heteronímia e a atribuição de autoria no LdoD; a categorização genológica do Livro; a relação de Pessoa com a língua; ou a autorreflexividade na escrita pessoana. Estes (e outros) tópicos são identificáveis em determinadas passagens que são frequentemente lidas de formas distintas por diferentes autores. Num fragmento intitulado “Reconheço, não sei se com tristeza”, Jacinto do Prado Coelho e Alfredo Margarido sublinham as frases “Não me lembro da minha mãe. Ella morreu tinha eu um anno”. Ambos referem esta citação no contexto do mesmo tópico, que é a psicologia de Bernardo Soares, mas colocam a citação ao serviço de argumentos distintos: para Prado Coelho, a citação ilustra o fingimento associado à génese dos heterónimos. Para Alfredo Margarido, ilustra o que considera ser a “megalomania” de Soares. O facto de ambos os autores recorrerem à mesma citação dentro do mesmo tópico de análise – mas no âmbito de argumentos distintos – demonstra que a função semântica da citação é estabelecida pelo seu contexto, ou seja, que o sentido que lhe é atribuído é sempre localmente específico.

O fragmento “Invejo – mas não sei se invejo” é um dos mais citados, neste caso por 9 autores. Nele, a palavra “Confissões” é sublinhada por 4 autores, no contexto de 3 tópicos temáticos e de 4 argumentos distintos: Jerónimo Pizarro (2018) cita a palavra isolada ao enumerar a variedade de textos presentes no LdoD (confissões, metafísicas, conselhos, abdicações, recordações, etc.), explorando o tópico das temáticas do Livro. Teresa Rita Lopes (2015) cita também a palavra isolada para estabelecer um paralelo com as Confissões de Rousseau, explorando o tópico da influência. Jacinto do Prado Coelho (1982) articula a palavra “Confissões” com as expressões “autobiografia sem factos” e “história sem vida”, para argumentar a favor de uma leitura biografista do Livro, explorando o tópico da genologia. Joana Matos Frias (2018), também no contexto da categorização genológica do Livro, cita todo o parágrafo que contém a palavra “Confissões” e estabelece uma relação entre as mesmas expressões que Prado Coelho destaca, mas fazendo uma leitura inversa, que é a impossibilidade de ler o LdoD biograficamente. O modo como esta palavra é citada permite distinguir três modalidades de enxerto da citação: a palavra isolada, a palavra articulada com outras expressões ou a citação de um parágrafo inteiro, dando destaque a palavras específicas, como acontece com a estratégia utilizada

6 - “As far as the internal semiotic context is concerned, the force of the rupture is no less important: by virtue of its essential iterability, a written syntagma can always be detached from the chain in which it is inserted or given without causing it to lose all possibility of functioning, if not all possibility of ‘communicating,’ precisely. One can perhaps come to recognize other possibilities in it by inscribing it or grafting it onto other chains. No context can entirely enclose it. Nor any code, the code here being both the possibility and impossibility of writing, of its essential iterability (repetition/alterity)” (DERRIDA, 1988: 9).

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por Joana Matos Frias. Neste caso, a situação contextual da palavra destacada (“Confissões”) tende a reduzir a margem de variabilidade nas interpretações dessa palavra. Quanto mais curta a citação, maior a amplitude de sentidos que adquire na recontextualização.

O fragmento intitulado “Gosto de dizer” está também muito presente nos textos críticos, sendo citado por 10 dos 19 autores das recensões e ensaios tratados até à data. Este fragmento foi sublinhado na sua totalidade, sendo que a frase mais citada é “minha pátria é a língua portuguesa”, a qual surge em 5 textos e no contexto de 2 tópicos de análise. Um dos tópicos é a receção do Livro do Desassossego nos anos 80: Joana Matos Frias (2018) cita a expressão em nota de rodapé, afirmando que esta frase tem sido “treslida e mal-amada” e que é um exemplo do modo como o Livro do Desassossego foi recebido nos anos 80. A citação cumpre aqui uma função ilustrativa e metonímica. O segundo tópico, que é o tópico predominante, é a língua, abordada sob 4 perspetivas distintas: Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz (1982) consideram a língua na sua dimensão ortográfica e citam os dois últimos parágrafos do trecho em questão, nos quais Bernardo Soares afirma a importância que atribui à ortografia, para justificar a opção editorial de não atualizar a ortografia original. No ensaio de Richard Zenith (2012), a frase é citada em articulação com outra citação (“Não escrevo em português. Escrevo eu mesmo”), para argumentar a favor da universalidade de Pessoa (sendo “tão português, conseguiu ser o mais estrangeiro, e universal”). Teresa Sobral Cunha (2008) cita a frase na penúltima nota que fecha a introdução à sua edição de 2008 do Livro do Desassossego, no contexto da crítica que tece às edições de Richard Zenith, atribuindo a esta citação uma função metonímica de toda a obra de Pessoa para se referir à importância do Livro enquanto património que é necessário proteger. Aqui a citação é quebrada em duas, de forma a que se adapte à formulação sintática de uma frase da autora. Este mecanismo de citação, muito frequente em alguns textos, consiste numa forma de adaptação e montagem em que citações oriundas de fragmentos distintos, e por vezes bastante distantes uns dos outros em termos da sua localização no Livro, são trabalhadas e integradas no discurso crítico. Finalmente, para Maria Irene Ramalho (1999), a língua é pensada enquanto espaço de projeção da identidade subjetiva. A autora cita a frase referindo-se à forma como Jorge de Sena a interpretou (para Sena, a expressão “minha pátria é a língua portuguesa” não se relaciona com patriotismo, mas antes com o facto de a identidade de Pessoa se consubstanciar na poesia). Aqui verifica-se uma citação da citação. A leitura funciona, neste caso, palimpsesticamente: a citação do Livro do Desassossego é feita a partir da citação de uma citação prévia, integrada no corpo de uma leitura crítica anterior.

A leitura crítica é produzida a partir do texto fonte, mas também a partir de uma crítica desse texto fonte fazendo com que o horizonte de inteligibilidade do Livro do Desassossego seja mediado pelos horizontes de inteligibilidade criados por essa leitura. Este processo é, de certo modo, demonstrativo da socialização da leitura e da necessidade de validação de uma nova leitura num campo de leituras produzidas por intérpretes profissionais, o que demonstra que o discurso crítico é dialógico

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e intertextual, construindo-se o texto como uma constelação de referências que inclui determinados elementos da comunidade de leitores críticos. Este diálogo é diacrónico, estabelecendo ligações com autores de gerações anteriores, o que evidencia os pontos em comum que atravessam escolas e teorias distintas, aferindo os modos como determinadas escolas exerceram influência sobre escolas posteriores. Uma macroanálise que permita visualizar as redes de relações entre leitores do Livro do Desassossego e os seus argumentos poderá revelar não apenas determinadas afinidades quanto a estratégias de interpretação, mas também o modo como alguns argumentos migram de uns textos para outros, replicando-se e transformando-se.

Estes três grupos de exemplos estão longe de ilustrar as possibilidades levantadas pela análise dos mecanismos de citação, sendo antes meramente indicativos do trabalho em curso. Com base nesta pequena amostra, conclui-se que a integração da receção crítica do Livro no Arquivo LdoD permitirá identificar quais são os excertos mais frequentemente analisados e quais os contextos em que surgem, ou, por outro lado, quais são as passagens menos citadas e que refletem determinadas especificidades na interpretação do Livro. Podemos também perceber se diferentes autores constroem os seus textos de forma mais autónoma ou mais dependente do texto fonte (intercalando as suas palavras com palavras citadas); se privilegiam citações curtas ou longas (alargando ou reduzindo a margem de variabilidade nas interpretações); se as citações surgem isoladas, integradas em parágrafos ou associadas a outras citações, e reconhecer as redes de citações que surgem associadas entre si, seja dentro do mesmo texto fonte, seja noutros textos, incluindo textos críticos. Podemos ainda identificar as funções mais frequentemente desempenhadas pelas citações, como as funções metonímica e ilustrativa.

Mas o trabalho de análise metacrítica que estamos a iniciar não tem como horizonte a caracterização dos processos de citação, sendo este apenas um primeiro passo na direção de um estudo mais abrangente: esta análise sugere, por um lado, que é possível traçar uma história da receção do Livro do Desassossego, procurando, por exemplo, identificar se a leitura crítica privilegia diferentes tópicos em diferentes períodos, ou se há mecanismos de citação mais frequentes em diferentes gerações de leitores. Por outro lado, este trabalho sugere também que é possível propor uma teoria da leitura crítica, dando a ver as relações que se estabelecem entre os documentos autorais, os documentos editoriais e os documentos críticos, de forma a compreender como se constrói um argumento a partir de uma rede de referências. Se, no primeiro nível, a análise da receção crítica do Livro do Desassossego nos permite mapear no território textual do livro alguns dos caminhos traçados pelos seus principais intérpretes – isto é, fazer uma história da sua receção crítica –, no segundo nível, a análise permite-nos teorizar sobre a leitura crítica enquanto conjunto de práticas e protocolos destinados a construir argumentos interpretativos – isto é, fazer uma teoria da receção crítica enquanto prática particular de leitura.

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BibliografiaCOELHO, Jacinto do Prado. “Prefácio”, in Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, editado por Jacinto do Prado Coelho. Recolha e transcrição por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. 1.ª edição. Lisboa: Edições Ática, 1982, pp. 7-23.

CUNHA, Teresa Sobral. “Prefácio”, in Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, editado por Teresa Sobral Cunha. 4.ª edição, Lisboa: Relógio d’Água, 2008, pp. 11-42.

LOPES, Teresa Rita. “Introdução ao(s) Livro(s) do Desassossego”, in Fernando Pessoa, Livro(s) do Desassossego, editado por Teresa Rita Lopes. 1.ª edição. São Paulo: Global Editora, 2015, pp. 21-32.

DERRIDA, Jacques. “Signature Event Context” [1972, French original; 1977, first English translation]. Limited Inc. Transl. Samuel Weber and Jeffrey Mehlman. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1988, pp. 1-23.

FISH, Stanley E. “Interperting the Variorum”, Critical Inquiry, vol. 2, n.º 3 (1976), pp. 465-485.

FRIAS, Joana Matos. “A dimensão do desassossego: Bernardo Soares, o menor, e a sua epopeia pobre”, Revista Estranhar Pessoa, n.º 5 (2018), pp. 30-48.

GENETTE, Gérard. Palimpsestos, la literatura en segundo grado, Traducción de Celia Fernández Prieto. Madrid: Taurus, 1989 [1962].

MARGARIDO, Alfredo. “Bernardo Soares: escrever é existir”, Colóquio/Letras n.º 88 (1985). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 78-87.

PIZARRO, Jerónimo. “Livro do Desassossego”, Ler Pessoa, Lisboa: Tinta-da-china, 2018, pp. 141-156.

PORTELA, Manuel e António Rito Silva (orgs.). Arquivo LdoD: Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, 2017. Acedido a 26 de fevereiro de 2020: <https://ldod.uc.pt/>

RAMALHO, Mª Irene. “O Desassossego, a poesia lírica e a identidade do poeta”, O homem e o tempo (Homenagem a Miguel Baptista Pereira), Porto: Fundação Engenheiro António Almeida, 1999, pp. 471-495.

TOCCO, Valeria. “Da bruma para a bruma – pela bruma: traduzir esta espécie de não livro”, Abriu n.º 5, Barcelona: Facultat de Filologia, 2016, pp. 13-25.

ZENITH, Richard. “Introdução”, in Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, editado por Richard Zenith, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, pp. 13-39.

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ANDREA SANCHÉZ7

Provérbios Portugueses de Fernando Pessoa no contexto editorial do modernismo

7 - Universidade de Lisboa

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Mais do que uma tradução, a edição em espanhol de Proverbios Portugueses (Tragaluz, 2019) é uma identificação das equivalências dos provérbios escolhidos por Pessoa em três refraneiros do cânone hispânico. Se bem que esta metodologia revelou numerosas parecenças entre as tradições lusa e espanhola, existe uma diferença chave no volume National Proverbs Spain (1913) que junto a Diego Cepeda, co-tradutor, consultamos para fixar a tradução dos provérbios. Este volume seria o anterior ao trabalho que Pessoa estava a preparar para a coleção National Proverbs do editor Frank Palmer. Como referem Patrício Ferrari e Jerónimo Pizarro, em 1913 Pessoa encontrara um ou vários números desta coleção (2010, p. 8). No entanto, a correspondência relativa ao projeto deixa-nos saber que Pessoa possuía o volume de Espanha, pois na carta de entrega do manuscrito final confessa que perdeu a sua cópia, e que por este motivo não conseguiu verificar repetições entre dita coletânea e a sua: “During a removal I lost my copy of your Spanish proverbs, and have not had therefore occasion to ascertain whether any proverbs are common to that collection and to mine. If any are, please mention them and I will substitute them” (carta enviada em 30 de abril de 1914)8.

A revisão deste volume lança um total de dez repetições com os provérbios 180, 217, 266, 193, 142, 12, 235, 109, 78, 33.9 Como em dada altura mencionamos na nota da tradução ao espanhol, esta série de correspondências questiona a mesma idiossincrasia e nacionalidade dos provérbios. Dita questão é latente na resposta de Frank Palmer à iniciativa de Pessoa, mas o seu cariz não se prende apenas com um ou outro caráter nacional. Ultrapassar esta questão permite-nos ver as decisões editoriais que pairam sobre o projeto, como a de publicar uma edição de Portugal, após uma de Espanha, num mercado de leitores que não distinguia claramente o caráter dos povos ibéricos: “Although I have no doubt whatever that there is a very great distinction between the Spanish and Portuguese peoples, you are probably aware that in England that difference is not actually realised” (carta de 2 de outubro de 1913)10. O trabalho de Pessoa resultou numa versão amplamente diferente da de National Proverbs Spain, mas não foi por ter escolhido os provérbios que mais representassem o espírito dos portugueses e a sua atitude típica perante a vida e os homens: “I may observe that, in choosing them, I had constantly in view that they should be representative, that is to say, that they should be such as to give the reader a clear idea of the character of the Portuguese and of their charactheristic attitude towards life and men” (carta de 30 de abril de 1914). A maior diferença é de natureza editorial e reflete-se no outro critério de escolha, dito por Pessoa na mesma carta: “I have, with one exception, inserted no saying of a literary or cultured cast”. Este critério é o oposto ao que encontramos na nota introdutória do volume dedicado a Espanha, em que se lê: “In the preparation of this collection the utmost care has been taken to unearth those Proverbs which are in danger of falling into disuse and

8 - BNP/E3, 1142-13R.

9 - Numeração dada por Pessoa no manuscrito conservado pela Biblioteca Nacional de Portugal (BNP/E3, 74). Este manuscrito não é a versão final, como concluem Ferrari e Pizarro (2010, p. 7).

10 - BNP/E3, 1152-37r.

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are not widely known. The commonplace Proverbs have in most cases been rejected; little-known sources have been investigated, and every possible effort made to get the cream of the available material (1913, p. 5). Os dois critérios divergem pelos recursos utilizados para a produção de cada coletânea. A diferença é uma diferença de fontes, e são os contextos dessas fontes os que deram como resultado dois livros tão opostos, apesar das suas semelhanças. Para validar esta hipótese aprofundei nas caraterísticas de duas fontes consultadas por Pessoa para coligir os 300 provérbios portugueses: Dizeres do Povo, de António Corrêa d’Oliveira, e A Bibliotheca do Povo e das Escolas. Essa análise foi feita localizando alguns factos históricos em Portugal que estão por trás da nascença destas publicações. Desse modo extraem-se algumas conclusões que podem explicar porquê Pessoa escolheu provérbios de casta popular e não erudita, como fizeram, em contrapartida, os compiladores do volume espanhol.

Na busca de recursos, Pessoa escreve em março de 1914 a António Corrêa d’Oliveira para lhe perguntar pelas fontes que utilizou na elaboração de Dizeres do Povo, um pequeno livro de provérbios comentados, publicado em 1911, que foi bem acolhido em revistas como a Revista Lusitana e A Águia, na qual Pessoa publicou o artigo “A nova Poesia portuguesa no seu aspecto psycologico” (PONTES: 1984). Do pequeno livro de Corrêa identificaram-se dez correspondências com a seleção para National Proverbs (3, 12, 25, 39, 43, 64, 162, 164, 201, 286). Para a sua elaboração, Corrêa de Oliveira extratou quinze provérbios dos Cancioneiros portugueses (PONTES: 1984), obra que figura numa lista de projetos de tradução achada no espólio de Pessoa, datada de 1914. Junto aos cancioneiros está prevista igualmente uma tradução dos versos do folclore português (ver figura 1). Isto torna-se relevante porque quando chegarmos ao contexto editorial das fontes de Provérbios Portugueses, notar-se-á um interesse crescente das improntas nacionais e particulares pelo folclore português, interesse do qual Pessoa talvez fosse consciente e considerasse uma oportunidade para receber alguns rendimentos, como considerou com o projeto National Proverbs, segundo fica registado na lista manuscrita de 1914 intitulada “Income”11 (ver FERRARI e PIZARRO: 2010, p. 12).

11 - BNP/E3, 143-100r.

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Figura 1. BNP/E3, 481-10r

Corrêa d’Oliveira serve-se também da Bibliotheca do Povo e das Escolas cujo número 45 de 1902 é dedicado à Philosophia Popular em Provérbios. A investigação do professor Cruz Pontes deixa-nos saber que esta é a fonte pela qual Pessoa perguntava na carta de 1914 (ver também FERRARI e PIZARRO: 2010, p. 17). Desta publicação Pessoa extrai 90 dos 300 provérbios da seleção que conhecemos pelo manuscrito do espólio (p. 20). Empreendida em 1882 por David Corazzi, a Bibliotheca é uma coleção de opúsculos que abrangem as 64 páginas e vendem-se ao preço de 50 reis cada. Em si, o termo “coleção” é associado a uma estratégia editorial que visa tornar o conteúdo acessível a um vasto número de leitores “em que se considerava o baixo custo, a difusão massiva, o cariz enciclopédico e o formato 15,5 cm x 10,5 cm do denominado livro de bolso” (MOURATO: 2012, p. 39). Na época, as compilações de rifões e sentenças populares apareciam em coleções ou bibliotecas, entre conteúdos de dois tipos: para a instrução e para o entretenimento do povo. Há um surto destas publicações entre o século XIX e o passo para o XX que coincide com a implantação do regime liberal, o qual defendia o ideal de escola para todos (Mogarro e Pintassilgo em MOURATO: 2012). “O Estado liberal assumiu como dever garantir e assegurar a universalização do direito à educação, o que possibilitaria aos indivíduos a igualdade de oportunidades no acesso ao conhecimento” (MOURATO: 2012, p. 13). A regeneração trouxe um pequeno mas considerável processo de industrialização em Portugal que intensificou o aparecimento de iniciativas de educação popular para adultos, as quais representavam, implicitamente, um mecanismo de propaganda do modelo nacional que o regime visava consolidar, inserido nos protótipos republicanos de civilização.

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O modelo, no entanto, beneficiou o setor editorial graças ao desenvolvimento das técnicas de imprensa que introduziu novos papéis e tipografias que tornaram viáveis publicações a preços realmente baixos, entre 12 até 15 mil exemplares no caso da Bibliotheca do Povo e das Escolas (NASCIMENTO: 2001, p. 13). Algumas delas aparecem na capa da Bibliotheca dedicada à Philosophia Popular em Provérbios: “Cada volume abrange 64 páginas, de composição cheia, edição estereotypada.” Por um lado, uma composição cheia dispensa as margens e imagens para incluir a maior quantidade de conteúdo na menor quantidade de páginas em benefício da diminuição de custos. Por outro, a edição estereotipada é uma edição fac-similar que permitia a impressão em massa. Outro aspeto importante: encontra-se na capa o lema “Propaganda de Instrução para Portugueses e Brasileiros” e em baixo, após as descrições do formato, a descrição do conteúdo: “forma um tratado elementar completo n’algum ramo de sciencias, arte ou industrias, um florilégio litterario ou um agregado de conhecimentos úteis e indispensáveis, expostos por forma sucinta e concisa, mas clara, despretensiosa, popular, ao alcance de todas as inteligências”. Estas caraterísticas são aqui salientadas justamente por refletirem o critério de Pessoa de excluir provérbios de casta culta ou literária e por serem os provérbios escolhidos por Pessoa igualmente despretensiosos.

Figura 2. Capa da Bibliotheca do Povo e das Escolas. Volume dedicado à Philosophia Popular em Proverbios.

Ao mesmo tempo, para o fim do século XIX, Portugal ocupava o último lugar na taxa de escolarização e alfabetização na Europa, o qual não encaixava com o modelo de civilização perseguido pelos liberais. Como afirmado por Alan Murphy na sua investigação sobre a relação entre imprensa e civilização, “the full potential of

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modernity is realized only when it is set in a civilisational framework” (2019, p. 67). A palavra “civilização” no caso dos provérbios tem uma manifestação espiritual, aquela que representa o “espírito do povo” como mencionado no volume de National Proverbs Spain: “In no other form, perhaps, can the national traits be so compactly presented as in these saws and proverbs”, mas este espírito precisa de uma materialidade e um veículo de disseminação como foi o livro de bolso e o formato da coleção, que é o objeto que pretendo explorar nesta comunicação. Mencionei anteriormente que as publicações de provérbios ou as coleções às quais pertenciam promoviam conteúdo quer de instrução quer de entretenimento. Durante as duas primeiras décadas do século XX encontramos que estes conteúdos vinham acompanhados por lições de gramática, novelas curtas, jogos de palavras e jogos de sala. Quer dizer, o espaço imaginado para a sua leitura era o tempo de lazer. Isto diz sobre um passo significativo das fontes: do complexo e copioso dicionário de rifões do século XVII para o jornal em que o leitor interagia com os provérbios e os fazia parte do seu quotidiano graças ao médio de reprodução. Esta é outra diferença de relevo entre o volume National Proverbs Spain e a proposta de Pessoa, pois o primeiro tentava resgatar do esquecimento aqueles provérbios em risco de desuso, extraídos das fontes mais antigas que continham “o creme” da oração. Em contrapartida encontramos que Corrêa d’Oliveira começou “acidentalmente” a composição de Dizeres do Povo a trazer todos os dias, na hora do almoço, um provérbio para dizer na mesa, até que um dia decidiu aproveitar esse hábito para escrever um livro que publicou finalmente em 1911 (PONTES: 1984, p. 9). Oito anos antes de Pessoa propor a Palmer a coleção de provérbios portugueses, no Porto, Carolina Michaelis coligia 1011 provérbios que comentaria José Leite de Vasconcelos na Revista Lusitana, fonte também utilizada por Pessoa (p. 11). E no mesmo ano de 1913 publicar-se-ia Língua francesa: colecção de algumas frases da língua francesa que não se podem traduzir literalmente em português e colecção de alguns provérbios que se correspondem exactamente nas duas línguas, entre outras publicações da mesma época. Ora bem, uma das coleções que acho mais interessantes é um caderno manuscrito conservado pela BNP datado por volta de 1920, intitulado Questions, devinettes, provérbios ilustrados, enigmas, passatempos e jogos de sala e atribuído a Bertha G. dos Remédios e Maria Tereza Gomes dos Remédios. Este caderno é particularmente interessante por conter uma lista de 30 provérbios manuscritos tirados de um jogo de jornal que consistiam em completar ou adivinhar provérbios. Desta lista, 11 se correspondem com os provérbios 10, 23, 25, 30, 73, 74, 75, 147, 148, 149, 162 da seleção pessoana. Embora esta não seja uma das fontes utilizadas por Pessoa, abre a possibilidade de incluir os jornais como um dos recursos dos quais Pessoa dispunha para elaborar o seu trabalho. Não é uma fonte “culta ou literária” e isto a ligava ao seu critério. Aliás, por ser uma fonte viva no uso quotidiano da população, demonstra que a grande diferença entre o National Proverbs de Pessoa e o de Espanha é principalmente de fontes, por o primeiro ter sido feito com fontes em desuso e o segundo comportar uma tradição viva na língua e na vida dos portugueses. Em consequência, esse caráter e atitude típica dos portugueses perante o homem e a vida assume-se mais como um caráter das fontes e das circunstâncias mediáticas, e menos como um assunto de idiossincrasias e “propriedade nacional” dos provérbios.

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Figura 3. “Solução dos provérbios ilustrados”. Caderno Questions, devinettes, provérbios ilustrados…

Figura 4. “Solução dos enigmas figurados”. Caderno Questions, devinettes, provérbios ilustrados…

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Figura 5. Exemplo de um provérbio ilustrado tirado do jornal. Na página seguinte, exemplo dos provérbios figurados para solucionar. Caderno Questions, devinettes, provérbios ilustrados…

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BibliografiaANTUNES, Francisco. Língua francesa: colecção de algumas frases da língua francesa que não se podem traduzir literalmente em português e colecção de alguns provérbios que se correspondem exactamente nas duas línguas. 1.ª ed. Lisboa: Liv. Taboense, 1913.

BASTOS, Olimpia Mourato Nabo. Educação e Difusão da Ciência em Portugal A ‘Bibliotheca do Povo e das Escolas’ no Contexto das Edições Populares do Século XIX. Dissertação de mestrado. Instituto Politécnico de Portalegre, Escola Superior de Educação de Portalegre. Portalegre: 2012.

MURPHY, Peter. “Literacy and civilization”. Thesis Eleven. 155.1 (2019), pp. 64-90.

NASCIMENTO, Jorge. “Nota prévia sobre a palavra impressa no Brasil do século XIX-A Biblioteca do Povo e das Escolas”. [Versão electrónica]. Revista Horizontes, 19 (2001), pp. 11-27.

OLIVEIRA, António Correia de (1879-1960) Dizeres do povo. Esposende: Typ. de José da Silva Vieira, 1911.

PESSOA, Fernando. Provérbios Portugueses. Pizarro, Jerónimo y Patricio Ferrari (ed.). Lisboa: Ática, 2010.

Bibliotheca do Povo e das Escolas. Philosophia Popular em Proverbios. N.º 45, 2.º ano, 6.ª série. Lisboa: Direcção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1902.

PONTES, J. N. da Cruz. “Dizeres do Povo” de Corrêa d’Oliveira e uma carta inédita de Fernando Pessoa”. Prelo. 5, Lisboa: INCM, 1984, pp. 7-18.

Questions, devinettes, provérbios ilustrados, enigmas, passatempos e jogos de sala / [compil.] Bertha G. dos Remédios, Maria Tereza Gomes dos Remédios. (1920-1945) Caderno com recortes de ilustrações, palavras cruzadas, etc. coladas e algumas f. manuscritas.

REGINA, Paola. “Imprensa, experiência e formação”. Impulso, Piracicaba 25.63: maio-ago (2015), pp. 159-177.

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DIEGO GIMÉNEZ12

Problemas de Intertextualidade Filosófica no Livro do Desassossego

12 - Universidade de Coimbra

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IBastaria assinalar, se faltassem argumentos, para demonstrar a importância da leitura na construção da obra de Fernando Pessoa, quer as Apreciações Literárias de Fernando Pessoa (2013), editado por Pauly Ellen Bothe, quer a Biblioteca Particular alojada no acervo da Casa Fernando Pessoa, quer o recente arquivo Edição Digital de Fernando Pessoa: Projetos e Publicações, editado por Pedro Sepúlveda (2017). O arquivo disponibiliza, por exemplo, os projetos e as publicações do escritor português, de tal forma que o utilizador pode percorrer os documentos desde as etapas de projeção até à publicação destes. Também, o arquivo contém um índice de nomes e títulos que permitem reconstruir o mapa de relações textuais que nutrem o universo estético pessoano. Como ressalta o professor Manuel Portela, no número 14 da revista Pessoa Plural, sobre dito arquivo:

Um olhar para a frequência das referências a autores, por exemplo, permite identificar referências cruciais para a autoconstrução de Pessoa como autor, quer na relação com os antecessores, quer na relação com os contemporâneos. Edgar Allan Poe, William Shakespeare e John Milton são três das referências mais frequentes na primeira constelação, e Mário de Sá-Carneiro, José de Almada Negreiros e Raul Leal na segunda. Tais redes de relações entre nomes sugerem ainda o modo como a autoria se produz por um efeito de assimilação de um conjunto vasto de leituras e da inserção programática da produção do próprio Pessoa no campo literário através da sua assinatura. A autodescrição de Pessoa-Autor como “não um só escritor, mas toda uma literatura”, que tem como referência imediata a alteridade dos heterónimos enquanto práticas estilísticas e ficcionais de autoria desmultiplicada, teria afinal expressão num processo omnívoro de apropriação e transformação da tradição literária. A rede de relações onomásticas extraída a partir dos projetos de publicação – designadamente das listas e planos editoriais – evidencia esse desejo de antropofagia literária, por exemplo nos planos de tradução, antologia ou edição de obras de outros autores (PORTELA, 2018: 412).

O processo omnívoro pessoano de apropriação não se limita só à tradição literária, mas também atinge a tradição filosófica. Devem considerar-se, no efeito de “assimilação do conjunto de leituras”, as leituras filosóficas que o escritor fez e que compõem parte fundamental na construção de uma obra em que o pensamento está presente de forma manifesta. Nesta comunicação pretende-se analisar, por um lado, a rede intertextual “filosófica” que nutre o Livro do Desassossego, e, por outro lado, enquadrar esse levantamento com a poiesis sensacionista pessoana. Apresentam-se dados provisórios, suscetíveis de serem modificados. A análise deriva do trabalho realizado com as ferramentas de taxonomia e pesquisa que fornece o arquivo digital LdoD do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. A fala apresenta três partes: a introdução, um apontamento sobre a relação entre filosofia e literatura e o levantamento das relações intertextuais e sua problematização.

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No que diz respeito à intertextualidade, segue-se a definição de Genette em Palimpsestos (2010)13. Apesar de a definição de Genette ser precisa e concreta, são necessários alguns esclarecimentos para que a análise possa ser efetuada da forma mais clara possível. Por um lado, quando o teórico francês fala de citação, “(com aspas, com ou sem referência precisa)”, aplica-se, neste caso, só às citações com aspas, agrupadas no grupo C. Quando Pessoa cita o texto de um heterónimo, considera-se autocitação, Ca. No que diz respeito à alusão, contam-se os nomes próprios (a nomeação de um autor determinado faria alusão à sua obra ou teorias por um processo metonímico) e aqueles enunciados não explícitos que pressupõem a compreensão de um outro. Da mesma forma, note-se que, quando Pessoa menciona um nome próprio, pode estar a fazê-lo através de uma fonte secundária. Assim, podem-se dividir as alusões em três grupos: as autoalusões, aquelas que são facilmente reconhecíveis (por exemplo, a menção literal do nome de um filósofo ou uma teoria filosófica) e as que são menos explícitas e literais, Aa, A1 e A2 respectivamente. Deve ter-se presente que a alusão remete para duas dificuldades: o fato de tais relações entre enunciados poderem ser conscientes ou inconscientes por parte de Pessoa, e, também, de dependerem do conjunto de conhecimentos do leitor que analisa as relações textuais em questão.

IIApesar de Pessoa ter afirmado que “era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas”, as fronteiras entre ambas as dimensões do conhecimento são, no mínimo, pardas no que diz respeito à produção de Pessoa. Num artigo publicado no número 20 da revista Colóquio Letras, Benedito Nunes afirma que, no que atinge à relação entre poesia e filosofia na obra de Fernando Pessoa, a questão não pode ser colocada numa polarização entre pensamento e literatura, já que a obra do escritor português, “herdeira do esteticismo de Nietzsche, já participa, em larga escala, do entrelaçamento, hoje consumado na cultura intelectual de Ocidente, paralelamente à crise da metafísica, da literatura com a filosofia” (NUNES, 1974: 33). Dessa forma, seria um erro tentar decifrar um sistema ou uma doutrina filosófica elaborados. Na obra do autor do Livro do Desassossego, “o encontro e o confronto do poético com o filosófico começam a produzir-se rompendo com os moldes tradicionais, descerrando-nos um aspecto daquela situação intelectual da filosofia como obra escrita, e portanto da filosofia como género literário, que Paul Valéry registrou nos seus Cadernos” (NUNES, 1974: 33).

13 - “Quanto a mim, defino-o [nome de intertextualidade] de maneira sem dúvida restritiva, como uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro. Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa); sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio [...]; sua forma ainda menos explícita e menos literal é a alusão, isto é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete” (GENETTE, 2010: 14).

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De aceitar que, no Livro do Desassossego, os moldes tradicionais são insuficientes para abordar esse confronto entre o poético e o filosófico, já que a distinção entre um e outro são oblíquas, aquilo que se propõe aqui é uma abordagem desses textos pessoanos na sua estrutura formal e nos seus modelos de exposição e produção, seguindo o marco teórico traçado por Paul Valéry à luz do levantamento das relações intertextuais “filosóficas”.

O posicionamento nesse debate, no qual não se quer entrar de forma profunda, pois excede os limites e objetivos desta fala, é que, no caso de Pessoa, toda a filosofia é uma forma de literatura e toda a literatura é uma forma de filosofia. Uma premissa de tal tipo depende de uma determinada concepção daquilo que é literatura e filosofia dentro do campo do conhecimento. Esta leitura da obra está em relação, como apontado, ao desafio de Valéry de considerar a filosofia enquanto texto escrito e que será também retomada por Derrida em Margens da Filosofia14.

Considera-se importante fazer esse apontamento porque apresenta um desafio ao ponderar as citações e alusões na obra de Pessoa. De concordar com Nunes, isto é, a polarização entre filosofia e literatura na obra pessoana não é aconselhável, como valorar as citações e alusões não explicitamente feitas por filósofos? Tome-se um breve exemplo:

4-34r

Os versos de Caeiro citados no Livro do Desassossego, “Porque eu sou do tamanho do que vejo”, apresentam uma dimensão filosófica, assim como o pensamento que destila da escrita desse trecho. Discernir a dimensão filosófica que uma relação intertextual pode ter é também uma tarefa que depende do marco conceptual com que se está a analisar a obra. Pela economia do relato, ou por comodidade narrativa, como diria Jorge Luis Borges, a comunicação foca-se nas relações intertextuais com textos de filósofos ou com conceitos específicos de filósofos.

14 - “Estudar o texto filosófico na sua estrutura formal, na sua organização retórica, na sua especificidade e diversidade dos seus tipos textuais, nos seus modelos de exposição e de produção – para além daquilo que outrora se chamava os gêneros – no espaço também das suas encenações e numa sintaxe que não seja apenas a articulação dos seus significados, das suas referências ao ser ou à verdade, mas a ordenação dos seus processos e de tudo o que aí se investiu. Em suma, considerar também a filosofia como ‘um gênero literário particular’, extraindo da reserva de uma língua, arranjando forçando ou desviando um conjunto de recursos tópicos” (DERRIDA, 1991: 334).

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IIIPor enquanto, conseguiram identificar-se 32 trechos que apresentam relações intertextuais evidentes entre textos de filósofos e o Livro do Desassossego, das quais 30 são alusões (AA, A1 e A2) e 4, citações15. Nesses textos são mencionados 27 filósofos ou pensadores que correspondem a diferentes épocas da história da filosofia e nos que contamos também aos heterónimos pessoanos considerados filósofos ou pensadores, nomeadamente António Mora e o Barão de Teive. A seguir, uma amostra de exemplos que podem ser consultados quer mediante as cotas no arquivo LdoD, quer na edição virtual “Intertextualidade Filosófica”, no mesmo arquivo:

Citação (C)

4-537v

Alusão implícita (A2)

1-55r

15 - As categorias podem ser consultadas em https://ldod.uc.pt/edition/acronym/LdoD-InterFil.

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Alusão Explícita (A1)

6-16r

Auto Alusão (AA)

20-71r

A citação, “com aspas, com ou sem referência precisa” (GENETTE, 2010: 14), é a relação intertextual mais evidente. Cabe, no caso dos trechos selecionados, fazer uma observação sobre o trecho com cota 1-34r, onde Pessoa escreveu no último parágrafo: “«Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens»; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto”. Como consta na edição de Richard Zenith e na edição de Jerónimo Pizarro, a citação é de Chateubriand, e, segundo Zenith, concretamente do “Ensaio histórico, político e moral sobre as revoluções antigas e modernas, consideradas em suas relações com a Revolução Francesa” (2009: 517). Para Pizarro, Pessoa pode ter lido a referência em uma obra francesa sobre autores franceses da sua Biblioteca (2010: 774).

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Sobre as alusões, “um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro” (GENETTE, 2010: 14), a compreensão do trecho que contém a palavra “mónada” supõe a relação com a filosofia de Leibniz para sua apreensão. Da mesma forma, a compreensão do trecho em que Rousseau é mencionado supõe o conhecimento das Confissões e os motivos que levaram o genebrino a escrevê- -las. Finalmente, a compreensão do trecho em que se menciona António Mora supõe o conhecimento da obra de Mora.

Assim como nas citações, as alusões apresentam a mesma dificuldade no que diz respeito à origem da relação intertextual enquanto primeira ou segunda fonte O fragmento com cota 16-61r ilustra essa questão: “Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática”, incluído nas edições de Jerónimo Pizarro (2010) e Teresa Sobral Cunha (2009). A menção ao filósofo grego está relacionada com a Poética de Aristóteles. Porém, nota Pizarro na edição crítica, existe um exemplar na Biblioteca Particular, intitulado Os Dramas Líricos de Ésquilo e em que seu tradutor, John Stuart Blackie, se refere ao estagirita e escreve que o elemento lírico predomina nas construções de Ésquilo (2010: 458). Este exemplo e o anterior chamam a atenção para o cuidado com a identificação das fontes que nutrem as relações intertextuais.

Seria ingénuo pretender identificar todas as intertextualidades que o Livro do Desassossego pode conter. A investigação dessas relações, neste projeto, não visa ser nem totalizante nem teleológica, aliás, porque identificar as referências menos evidentes depende da bagagem de leituras e conhecimentos de cada leitor, como apontado. Pretende-se, com a seleção desses cruzamentos textuais filosóficos, trabalhar com um corpus restrito de trechos para estudar como funciona a produção de pensamento enquanto composição textual, enquanto escrita, e relacionar essa análise com a poiesis sensacionista pessoana16. Nesse sentido, pode-se consultar a relação de trechos, nas fases de escrita da obra, no seguinte gráfico:

Intertextualidade Filosófica nas Fases de Escrita

16 - “O Sensacionismo foi o último ismo criado por Pessoa, na cumplicidade, uma vez mais, do seu compagnon de route, Sá-Carneiro, à semelhança do que aconteceu com outros ismos anteriores, tais como o Paulismo e o Interseccionismo. Pela sua teorização e prática deixou-se Pessoa entusiasmar bastante, já que ele lhe pareceu ser uma hipótese feliz de conciliação de contrários, ajudando-o a construir uma corrente literária […] acolhedora dos ismos de vanguarda. Tendo como princípio fundamental, sentir tudo de todas as maneiras e ser tudo e ser todos, o Sensacionismo foi para Pessoa a arte da soma-síntese, como lhe chamou, um todo no qual as partes, mesmo as mais díspares, se harmonizavam, como se de um atanor alquímico se tratasse” (MARTINS, 2008, p. 786).

B.S. (1929-1934): 18

V.G. (1913-1920): 9

Sem data: 4

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Outras Intertextualidades nas Fases de Escrita

Quadro aproximativo.17

Da seleção das intertextualidades filosóficas, 9 trechos pertencem à fase de Vicente Guedes (1913-1920), 5 estão sem data identificável e 18 pertencem à fase de Bernardo Soares (1929-1934). A causa dessa distribuição pode dever-se a vários motivos: à diferença do número de textos entre fases; à bagagem de leituras que Pessoa pode ter adquirido no intervalo entre 1920 e 1929; e, também, pode explicar-se pela predominância do Sensacionismo no segundo momento de escrita do Livro do Desassossego.

O apontamento do ideal sensacionista, em que Pessoa plasmou seu desejo de ter “a sensibilidade de Mallarmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horácio; ser Homero ao luar. / Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento” (3-12r), não ficou só em um ideal. O poeta realizou esse ideal mediante a composição que se nutriu do “processo omnívoro de leituras” e mediante os diferentes níveis de intelectualização da sensação no processo de composição. Para finalizar, analisar-se-á um trecho do Livro:

Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. (3-25r)

17 - Realizou-se um levantamento ilustrativo de outras relações intertextuais a partir da Edição Crítica do Livro do Desassossego editada por Jerónimo Pizarro (2010), nomeadamente mediante o índice onomástico e sua distribuição nos trechos ordenados cronologicamente. Pretendeu-se constatar a distribuição por datas dos trechos com relações intertextuais, para além das filosóficas, para assim confirmar a tendência para o incremento dessas relações na fase de escrita de Bernardo Soares. O levantamento das “outras intertextualidades”, embora sistemático, não se pretende um levantamento exaustivo, antes meramente ilustrativo da relação das interferências textuais nas fases de escrita do Livro do Desassossego.

B.S. (1929-1934): 113

V.G. (1913-1920): 37

Sem data: 2

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“Por uma imitação de uma hipótese dos clássicos”, remete à assimilação de leituras por parte de Pessoa, àquele movimento plagiotrópico, definido por Haroldo de Campos18, e citado por Rui Torres em Pessoa Ilimitado, segundo o qual existe um “conjunto de textos na literatura portuguesa que encenam a transformação e a devoração da tradição” (TORRES, 2014: 2). Pode afirmar-se que essa antropofagia do passado não se limita só à literatura portuguesa, antes a toda a tradição literária ocidental. Entende-se o conceito plagiotrópico não no sentido usual de cópia ou paródia, mas no sentido de assimilação, de releitura dialogal no tempo. Pessoa seria um exemplo desse movimento não linear omnívoro de tradução da tradição. Nesse sentido, pode dizer-se que, se “a mais eficaz tradução da linguagem de Dante, enquanto resultado esteticamente computável, encontra-se antes, fragmentariamente, em Camões” (CAMPOS, 1997: 48), a mais eficaz tradução da linguagem de Rousseau, Amiel, e outros, encontra-se, fragmentariamente, em Pessoa, enquanto resultado estético. Assim, a prosa poética do Livro do Desassossego, nessa matemática expressiva plagiotrópica, nutre-se da leitura, entre as quais, as filosóficas, que permitem ao poeta ser tudo de todas as maneiras. O pensamento, enquanto composição textual, isto é, enquanto “cogitação escrita”, destila do processo de assimilação da tradição literária e filosófica e dos movimentos de consciência e autoconsciência da sensação no ato de escrita.

18 - “Já a plagiotropia (do grego, plágios, oblíquo, que não é em linha reta), movimento de derivação ou ramificação por obliqüidade (um termo que extraí da botânica), parece-me um conceito adequado para descrever o desenrolar do processo literário como releitura ‘polifónica’, antes por desvios do que por traçado reto, da tradição. Uma ‘semiose ilimitada’ (Peirce) ou ‘infinita’ (Eco), em que cada novo texto funcionaria como interpretante do fundo textual anterior, ao mesmo tempo em que o deslocaria para um novo plano produtivo. É o que também se poderia chamar ‘transculturação’, dado que esse movimento transcorre num espaço não confinado pelas geografias regionais” (CAMPOS, 1997: 49).

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BibliografiaCAMPOS, Haroldo de. O Arco-Íris Branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. São Paulo: Papiro, 1991.

GENETTE, Gerard. Palimpsestos. Belo Horizonte: Viva Voz, 2010.

MARTINS, Fernando Cabral. Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.

NUNES, Benedito. “Poesia e filosofia na obra de Fernando Pessoa”. Colóquio Letras, n.º 20 (1974): pp. 22-34.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Edição de Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Relógio d’Água, 2008.

. Livro do Desassossego. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

. Livro do Desassossego. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2 tomos. Edição Crítica de Fernando Pessoa, serie mayor, vol. XII, 2010.

. Apreciações Literárias de Fernando Pessoa. Edição de Pauly Ellen Bothe. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição Crítica de Fernando Pessoa, serie mayor, vol. IV, 2013.

. Arquivo LdoD. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2016. http://www.ldod.uc.pt

PORTELA, Manuel. “Re-Produzir Pessoa, isto é, P1 + P2 = Autor”. Pessoa Plural, n.º 14 (O./Fall 2018): pp. 402-415. Doi: 10.26300/a107-eb54.

SEPÚLVEDA, Pedro; Henry-Krahmer, Ulrike [eds.] (2017). Edição Digital de Fernando Pessoa. Projetos e Publicações. Coordenação editorial por Pedro Sepúlveda, coordenação técnica por Ulrike Henny-Krahmer. Lisboa e Colónia: IELT, Universidade Nova de Lisboa e CCeH, Universidade de Colónia, <http://www.pessoadigital.pt> [Doi: 10.18716/cceh/pessoa].

TORRES, Rui. “PESSOA ILIMITADO: Intertextualidade, metamorfose, apropriação”. UFP-Porto, 2014. https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/4259/1/rui-torres_pessoa-ilimitado.pdf

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KAREN PELLEGRINI19

Livro do Desassossego: uma arquitetura das sensações

19 - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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A proposta deste texto é apresentar as ideias principais da tese de doutorado que elaboro no momento, pensando de que forma o Livro do Desassossego é esse espaço de compreensão e análise das sensações. Para isso foram selecionados alguns fragmentos do LdD; a edição escolhida é a feita por Jerónimo Pizarro, publicada pela Tinta-da-china em 2013. Os trechos auxiliam os caminhos para compreender de que forma a análise e o estudo das sensações são fundamentais para a leitura do livro e a importância da multiplicidade no Sensacionismo, pensando na ideia de Fernando Pessoa de que “nada existe, nenhuma realidade, somente sensação” (PESSOA: 2017).

É importante ressaltar que a fundamentação teórica desta pesquisa tem como sua estrutura principal o pensamento teórico e crítico desenvolvido por Fernando Pessoa, pensado com o auxílio dos editores críticos da obra pessoana e de teóricos como José Gil, Maurice Blanchot, Rosa Maria Martelo, Ana Kiffer, Cristina Rautter, Gilles Deleuze, entre outros.

O LdD é esse grande processo de aprendizagem que evidencia o trabalho das sensações, matéria-prima que compõe a obra de arte. Processo que transforma aquele que trabalha as sensações em um analisador de sensações, capaz de gerar, a partir desses procedimentos, uma criação artística. Como diz José Gil acerca do laboratório de sensações criado por Pessoa em seu livro Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, “o seu próprio laboratório poético transformou-se em matéria de linguagem; produtor de sensações aptas a se converter em poema” (GIL: s/d).

O pensamento desenvolvido nesse trabalho sobre a realidade parte da proposta feita por Fernando Pessoa. Nela a concepção de sujeito como unidade se dissolve, mostrando o sujeito como uma multiplicidade que se liberta de uma consciência primeira que só reage ao mundo. Para Pessoa, é preciso criar uma consciência da consciência, para sermos capazes de construir nossa realidade a partir das sensações, e transformar esse trabalho em obra de arte.

A sensação necessita de uma consciência capaz de desdobrá-la, misturando-se a ela para que, juntas, possam intelectualizar a sensação. Em um texto sobre o processo da sensação, publicado no compilado de textos Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Fernando Pessoa aponta três passos do processo de análise da sensação comum para que se torne abstrata, que é a sensação estética com poder de expressão.

(1) A sensação, puramente tal.

(2) A consciencia da sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um cunho esthetico.

(3) A consciencia dessa consciencia da sensação, de onde resulta uma intellectualisação de uma intellectualisação, isto é, o poder de expressão (PESSOA: 2009).

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Ter a consciência da sensação vai atribuir a ela um valor artístico; todos podem observar as mesmas coisas, o pôr do sol, um raio, uma forte tempestade, mas, para dar a elas um “cunho estético”, é preciso ter consciência da sensação, daquilo que se está vendo. É graças à ação da consciência, desse processo de intelectualização que o fora se mistura com o dentro e que é possível sentir a chuva em seu corpo, tornando possível, assim, fazer uma análise das sensações.

Com isso, as sensações criam o seu próprio espaço; já não se separa mais as sensações do interior com o exterior. É desse modo que podemos sentir tudo de todas as maneiras. Uma chuva não será mais só um estado de fora do indivíduo, torna-se parte dele, conforme podemos ler no fragmento 55 do LdD: “Chove tanto, tanto. A minha alma é humida de ouvil-o. Tanto... A minha carne é liquida e aquosa em torno à m[inha] sensação d’ella” (PESSOA: 2013).

José Gil traz imagens para percebermos esse processo de consciência da sensação que faz retomar as sensações externas e relacioná-las ao interior do sujeito:

Imaginemos um pôr-do-sol. Posso percepcioná-lo sem experimentar a menor emoção estética. Para que o contrário aconteça é preciso que eu o veja, que o perspective – em resumo, que dele tome consciência – de acordo com uma certa direcção. É preciso que a consciência dessa sensação a oriente, segundo um modo específico, para outras imagens, outras sensações (GIL: 2007).

Quando direcionamos a sensação, podemos misturá-la com outras, abrir a sensação para imagens guardadas dentro de nós e combiná-las com o que sentimos a nossa volta, fazendo, nesse instante, que a sensação se multiplique e saia de um âmbito privado, subjetivo e se encaminhe à criação artística.

Quando se entra nesse processo de se ter consciência de suas sensações, o mundo se desdobra, pois tudo é sempre uma sensação nossa. No fragmento 145, é expresso como o processo da análise das sensações age no corpo daquele que se propõe ao seu estudo.

Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência d’ellas. Sofri sempre mais com a consciencia de estar soffrendo que com o soffrimento de que havia consciencia. A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para a séde do pensamento, e alli vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ella, o regime de consciencia em que passei a viver o que sentia, tornava-me mais quotidiana, mais epidermica, mais titilante a maneira como sentia (PESSOA: 2013).

É importante que se faça uma investigação profunda da importância da consciência na obra de Fernando Pessoa. Além de ela ter o papel de trazer o exterior para o interior e levar o interior para o exterior, há uma valorização da consciência sensitiva, para que a sensação deixe de ser simplesmente subjetiva e possa se transformar em material poético.

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Para que se conquiste esse objetivo é necessário trabalhar as sensações até a exaustão, assim modificamos a maneira de determinar o real, que passa a abranger as sensações como esta possibilidade de produzir realidade. E tudo isso não seria possível sem o processo de multiplicidade que ocorre no sujeito; não é possível ter novas sensações e o mesmo espírito, como é dito no fragmento 85.

A única maneira de teres sensações novas é construires-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se querer sentir outras cousas sem sentires de outra maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma (PESSOA: 2013).

Todo o processo da sensação causa um descolamento no sujeito que a sentiu. A sensação ganha essa vida própria, virando blocos de sensações. Essa é a sensação possível de ser transformada em obra de arte, ela se torna expressão da construção artística. Pessoa em um texto compilado no livro Prosa Íntima e de Autoconhecimento escreve:

Quanto mais decompomos e analisamos as nossas sensações nos seus elementos psíquicos, mais aumentamos a consciência que temos de nós próprios. A arte tem, assim, o dever de se tornar cada vez mais consciente (PESSOA: 2017).

As sensações atravessam os corpos, modificando sua forma, expandindo ou diminuindo suas intensidades. Isso ocorre o tempo todo. O que se diferencia aqui é que o analisador de sensações percebe essas alterações e seleciona aquelas que trazem mais potência para o seu corpo, escolhe os encontros capazes de aumentar cada vez mais a realidade daquele que sabe que sente.

O sujeito singular se torna singular múltiplo, a partir dos atravessamentos que ocorrem no seu corpo, atravessamentos esses que dependem de outros corpos, de forças, humanas e não humanas para ocorrerem. O sujeito que diz eu é sempre coletivo, ele se forma a partir dos encontros dele com outras forças, influenciado pelo lugar que se encontra, por sua época, por seus companheiros, e ao se desdobrar para explorar as sensações ele se aceita múltiplo.

O tempo em que ocorrem as sensações no LdD não é linear, não gira em torno de um único centro que fatia o tempo, em unidades separadas exatas, capazes de voltarem a ser sempre as mesmas. No fragmento 391 do LdD é possível se aproximar da construção do tempo elaborada no desassossego.

Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão eguaes as velocidades identicas com que cahem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente synchronicos os movimentos, que occupam o mesmo tempo, em os quaes fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente (PESSOA: 2013).

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O tempo não é criado só pela escrita, mas o escrever acontece no tempo e ambos são criados simultaneamente: a criação poética não relata os acontecimentos, mas é o próprio acontecimento. Por isso, é possível que o homem dentro de um carro possa estar em uma velocidade diferente da que o carro se encontra. Tudo depende do movimento do fazer poético.

Essa ideia do acontecimento da narrativa é explicada por Blanchot, em seu O livro por vir.

Entretanto, o caráter da narrativa não é percebido quando nele se vê o relato verdadeiro de um acontecimento excepcional, que ocorreu e que alguém tenta contar. A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se (BLANCHOT: 2005).

Para Blanchot, o espaço literário é aquele que se faz fora. É o fora da palavra. A ideia de que a realização da linguagem consiste em seu próprio desaparecimento. Como se tocadas pelo poema o tempo se transmutasse. Como se fossem suspensas, como que tomada em uma nova realidade que é a obra.

Os movimentos que compõem o LdD também são aqueles que compõem a vida. O livro se constrói a partir de sensações do fora, que ao virem de encontro ao corpo são transformadas dentro dele, sendo devolvidas em forma de matéria poética.

No fragmento 109 intitulado “Educação sentimental”, a insistência da necessidade de se multiplicar em outros persiste, apontando para a criação de um outro “eu” capaz de suportar o exaustivo trabalho sensacionista de absorver todas as sensações possíveis, sejam elas quais forem:

Outro methodo, mais subtil esse e mais difficil, é habituar-se a encarnar a dor n’uma determinada figura ideal. Crear um outro Eu que seja o encarregado de soffrer em nós, de soffrer o que soffremos. Crear depois um sadismo interior, masochista todo, que gose o seu soffrimento como se fosse d’outrem (PESSOA: 2013).

Modificar a forma como se sente é o primeiro passo para se modificar a língua. Se continuamos os mesmos, não é possível querer que nossa linguagem seja diferente. Pessoa aponta sempre para aquelas sensações que passam desapercebidas: é a partir dessas sensações que uma outra linguagem deve surgir. É preciso se despersonalizar para que uma outra linguagem possa surgir.

Pessoa é um grande criador de imagens sensíveis. Ele cria pequenas estruturas, linhas mais fixas, mas capazes de movimento, uma arquitetura do Desassossego. O trabalho com a linguagem, a importância de se manter um estilo nos textos do desassossego, revisando os primeiros escritos, para que fosse possível se agenciarem com os outros fragmentos que o compõem, textos ditos da primeira fase do livro,

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como o poema “Na Floresta do Alheamento”. Dessa forma, não importa em que ordem o livro é lido, sempre será possível criar o maior número de relações possíveis entre suas partes, o todo do Livro e o fora dele.

Mantendo essas pequenas estruturas, Pessoa nos orienta em meio ao aparente caos dos textos do Desassossego. Aparente, pois, o Desassossego é uma obra pensada, como se sabe, ao longo de anos. É composto pela matéria-prima da sensação de que o caos é formado, mas com alguma ordem para que se abra a possibilidade da criação; um cosmos composto de sensações ao longo de sua leitura. Assim Pessoa cria casa, estruturas móveis que comportam o seu Livro20.

O LdD é essa obra de arte em que seu autor esmiúça suas sensações e mostra como chegar ao efeito estético máximo, aquele que vai trazer uma maior potência na sensação escolhida para a criação poética.

Pessoa elabora o que chama de Milímetros (sensações de coisas mínimas) ( frag 59). É a partir deles que será possível se desprender da linguagem cotidiana que tenta informar os acontecimentos, as sensações mínimas, ainda capazes de criar sensações estéticas, que não foram capturadas pelo cotidiano. Esse só dá conta das grandes sensações, aquelas que são possíveis de serem sentidas por todos; qualquer um é capaz de sentir uma grande explosão, um acidente de automóvel, a intensidade do preparo de uma grande corrida. Não por uma questão de sensibilidade, mas sim por serem as mais simples de serem sentidas.

Mas só as sensações minimas, e de cousas pequenissimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amôr ao futil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrupulo no detalhe. Mas creio mais – não o sei, e estas são as cousas que eu nunca analyso – que é porque o minimo, por não ter absolutamente importancia nenhuma social ou practica, tem, pela mera ausencia d’isso, uma independencia absoluta de associações sujas com a realidade. O minimo sabe-me a irreal (PESSOA: 2013).

O Livro do Desassossego é este lugar de busca por imagens e sensações concretas. Fernando Pessoa não se interessa por imagens abstratas, vazias de força e incapazes de causar o efeito desejado no leitor: “buscarei o concreto e tudo será visto”. Aqui vê-se a importância da criação de imagens, imagens que permeiam o livro todo. E se “dizer é sempre renovar”, o poeta, analisador de sensações, sabe-se como operador e construtor do real, ele não busca o ponto de partida, começa sempre pelo meio:

20 - Refiro-me aqui aos conceitos de caos e casa, desenvolvidos por Deleuze e Guattari, no livro, O que é a filosofia? nos capítulos: Percepto, Afecto e Conceito, e Do Caos ao Cérebro. A partir desses conceitos é possível compreender de que forma se pode trabalhar com a matéria-prima da obra de arte, criando blocos de sensações possíveis de serem trabalhadas pelos artistas.

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Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal na sua realidade directa; os campos, as cidades, as idéas, são coisas absolutamente ficticias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissiveis todas as impressões salvo se as tornamos literárias (PESSOA: 2013).

Então, se a realidade é aquilo que sentimos, o trabalho com a sensação irá potencializar o que é colocado como real. Ao mesmo tempo que o Livro trabalha as sensações, ele também vai construindo nossa ideia do que é a realidade e a obra.

O Livro vai ser o lugar em que uma unidade do sujeito é sempre questionada. Como o autor já busca “sentir tudo de todas as maneiras”, ele se sabe múltiplo, mas a questão é: como colocar essa multiplicidade na escrita? Como passar essa força criadora para palavras que já vêm carregadas de conceitos? Para isso não basta escrever “nós”, é preciso mudar como pensamos e usamos a língua.

Se quiser dizer que existo, direi “Sou eu”. Mas se quizer dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a funcção divina de se crear, como hei de empregar o verbo “ser” senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triumphalmente, anti-grammaticalmente supremo, direi “Sou-me”. Terei dito uma philosophia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta phrases? (PESSOA: 2013)

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BibliografiaBLANCHOT, Maurice. O Livro por Vir. trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 34, 2010.

GIL, José. Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações. Lisboa: Relógio d’Água, s/d.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Jerónimo Pizarro (org.). Rio de Janeiro: Tinta-da-china, 2013.

. Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Richard Zenith (ed.) e Manuela Rocha (trad). Porto: Assírio & Alvim, 2017.

. Sensacionismo e Outros Ismos. Edição Crítica de Fernando Pessoa Volume X. Jerónimo Pizarro (ed.). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009.

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LUÍS ANDRADE21

Fernando Pessoa no Portal Revistas de Ideias e Cultura (ric.slhi.pt)

21 - Universidade Nova de Lisboa

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Agradeço o convite da Casa Fernando Pessoa para participar em Colóquio destinado a fazer o ponto de situação dos estudos pessoanos, que tem lugar no Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, numa aproximação justa entre os locais vizinhos que celebram poeta e pintora que obtiveram, nos tempos modernos, fama universal.

Esta satisfação converteu-se, ao longo da jornada de hoje, num prazer muito profundo ao ver o auditório ocupado por jovens investigadores e ao aperceber-me de como se sentem tomados pela obra de Pessoa, produzem investigação de grande qualidade e exercitam as virtudes proporcionadas pela mutação digital.

O meu contributo é adjacente aos temas discutidos na medida em que não sou especialista em estudos pessoanos e vou abordar tão-só a presença dos escritos de Fernando Pessoa nos websites do Portal Revistas de Ideias e Cultura – http://ric.slhi.pt – que coordeno.

De qualquer modo, as afinidades entre o programa de trabalhos que dirijo e a obra de Fernando Pessoa, designadamente a parte que publicou em vida, tornam-se patentes se considerarmos que o ortónimo e os heterónimos pessoanos principais se deram a conhecer em páginas de revistas.

Basta ter em consideração a edição de Mensagem e outros poemas publicados em vida22 do meu companheiro de mesa e colega Luiz Fagundes Duarte para verificar que os projectos de publicação em livro que Pessoa alimentou ao longo da vida não se concretizaram.

Ficou a Mensagem dada à estampa já no seu último ano de vida, a que alude, no início de 1935, em célebre carta a Casais Monteiro quando escreve “não foi feliz a estreia que de mim fiz com um livro”23.

Mas se a Mensagem se apresenta inequivocamente como obra impressa singular, já o seu teor só parcialmente é original, na medida em que o autor inclui, na sua composição, poemas anteriormente publicados, mais ou menos refundidos.

A vida literária pública de Pessoa ter tido lugar quase exclusivamente em revistas, muitas das quais por si fundadas e dirigidas, não pode deixar de merecer atenção pois reveste-se de significado e envolve consequências relevantes para a aclaração tanto da circunstância dos seus escritos quanto da interpretação da sua obra.

22 - Fernando Pessoa, Mensagem e poemas publicados em vida, edição de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2018.

23 - Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935. Espólio de Adolfo Casais Monteiro, E5/2791/1.

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As revistas de ideias e culturaAs revistas de cultura são uma parcela fundamental de uma modernidade vivida tão intensamente que postergava o devaneio de qualquer opera magna. A novidade, o cosmopolitismo, os ritmos urbanos, as doutrinas emancipatórias, o valor da imagem, as novas linguagens literárias e artísticas converteram as revistas nas personagens colectivas de uma era candente em que “o presente é todo o passado e todo o futuro”, como Álvaro de Campos deixou assinalado na Ode Triunfal24.

Quando Pessoa fala de “nós os de Orpheu”25 resume este ambiente peculiar que marca a sua obra e teceu o ambiente cultural moderno. O mesmo ocorre, com mais pormenor, quando se refere a Athena como “uma revista puramente de arte, isto é, nem de ocasião e início como o Orpheu, nem quase de pura decoração como a admirável Contemporânea”, dirigida a três públicos, “um que vê, outro que lê e outro que não há [...] o primeiro quer ver, o segundo quer conhecer e o terceiro quer compreender”26.

Se transferirmos esta classificação tripartida para a recepção contemporânea das revistas em que Pessoa escreveu talvez possamos dizer igualmente que estas se tornaram particularmente visíveis, nomeadamente os títulos já citados, e que a sua leitura tem feito progressos notáveis, e mais irá fazer, se considerarmos a nova geração de estudiosos que se lhe dedica, mas que a sua compreensão apresenta algumas lacunas, nomeadamente a que é inerente à apreensão da natureza muito peculiar da atmosfera pública em que os autores se firmaram em revistas, se sujeitam às suas vicissitudes, se confrontaram com títulos similares e se dirigiram a públicos mais ou menos imaginários e fiéis.

Ao invés do que muitas vezes se supõe, o papel desempenhado pelas revistas não expressou unicamente concomitância, mas também consonância e, sobretudo, contumácia. Nos tempos modernos, os periódicos de cultura não foram meios singelos, mas parte da matéria de uma criação que se sujeitou necessariamente às suas regras, às suas contingências e a todas as suas restantes particularidades.

Porém, o assunto que irei abordar não se prende com a relevância que uma análise pluridisciplinar, eventualmente centrada na sociologia da cultura nas primeiras décadas do século XX, pode emprestar à compreensão da obra pessoana.

O que interessa, agora, é considerar as revistas enquanto fontes da história literária e intelectual, na medida em que esta modalidade editorial coloca, por si mesma, um conjunto relevante de problemas heurísticos e hermenêuticos.

24 - Álvaro de Campos, “Ode Triunfal”, Orpheu, n.º 1, Janeiro-Fevereiro-Março de 1915, p. 77.

25 - Fernando Pessoa, “Nós os de Orpheu”, Sudoeste. Revista Portuguesa, n.º 3, Novembro de 1935, p. 3.

26 - “A revista Athena e o que nos afirmou Fernando Pessoa”, Diário de Lisboa, 3 de Novembro de 1924.

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A lista é, a este propósito, muito extensa. Por um lado, cada revista encerra em si um projecto em que a afirmação e a descoberta individual se tornam indissociáveis do resultado colectivo. Como se de tinas amplas dedicadas à revelação de retratos de grupo se tratasse. Ao mesmo tempo, cada um destes periódicos é, pela sua natureza, uma entidade complexa: não só pelo somatório das vozes que lhe dão expressão, mas também nos diferentes géneros e registos que elege. Como se estivéssemos face a álbuns com composições caleidoscópicas. Por fim, cada título desenha, na cadência das suas edições, ou pela sucessão dos que o precederam, como Pessoa indica no anúncio de Athena citado, a fluência dos movimentos que fazem as mudanças de sensibilidade, interesse e opinião. Como se cada série de edições trouxesse apensa a recém-inventada moviola.

O Portal Revistas de Ideias e CulturaO tema desta comunicação situa-se, pois, na zona de intersecção entre a produção pessoana publicada em vida e algumas das questões suscitadas por uma vida intelectual que ocorre sobretudo em periódicos culturais.

Fazemo-lo num quadro mais amplo, o do Portal Revistas de Ideias e Cultura, em que conferimos um lugar de relevo aos títulos de periódicos em que Pessoa publicou, movidos por três objectivos: primeiro, dar a conhecer os fundamentos e o resultado prático do estudo e da reprodução destas fontes primordiais da cultura portuguesa contemporânea; de seguida, submeter o nosso trabalho à vossa apreciação crítica, bem como atender a recomendações que possam melhorá-lo e complementá-lo; por fim, manifestar a nossa disponibilidade para acolhermos propostas de trabalho colaborativo.

As revistas são reconhecidamente fontes ingratas. Basta recordar a quantidade de títulos publicados, a multitude de articulistas e de publicistas a que a assinatura em letra de forma dava existência ou jactância sociais, a dialéctica entre gerações e as dissidências respectivas protestadas em órgãos próprios, a extensão de muitas das colecções, a articulação entre texto e imagem, a sucessão de ciclos editoriais ou o alinhamento de iniciativas afins para o verificar.

Foi para apreender a configuração deste modo de vida cultural particularmente intenso, no respeito pela sua índole, dificilmente compatível com as modalidades tradicionais da história cultural, que o Seminário Livre de História das Ideias, da FCSH, concebeu o Portal Revistas de Ideias e Cultura com que pretende abarcar, estudar e divulgar as principais publicações periódicas da nossa história intelectual recente.

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A natureza original da abordagem desenvolvida é fruto do advento das Humanidades Digitais e dos novos horizontes que estas abriram à investigação ao permitirem reproduzir de forma estruturada grandes massas de informação.

A investigação desenvolvida é isomórfica com os próprios websites publicados, pois a metodologia de investigação e de edição segue padrões simétricos, em que se conjugam cinco componentes principais.

Em primeiro lugar, pretende-se reunir colecções completas dos títulos a editar, que não se encontram disponíveis, frequentemente, nas próprias instituições de referência. O objectivo consiste tanto em ter uma fonte íntegra para estudar quanto facultá-la de forma universal. Já contamos com vários exemplos em que só o nosso Portal assegura este desiderato27.

Em segundo lugar, visa-se proceder ao mapeamento integral do conteúdo de cada revista segundo critérios académicos e biblioteconómicos consolidados, pelo que todas as peças publicadas, independentemente da sua natureza textual ou gráfica, são objecto de um analítico específico. A base de dados sistémica assim constituída surge convertida, na edição web, em oito índices de pesquisa simples ou avançada que permitem consultar cada título ou os conjuntos de títulos que se queiram agregar.

Em terceiro lugar, faz-se a revisão geral das fontes e da literatura crítica conexas com cada revista estudada, desde logo, como incumbência intrínseca ao processo de investigação e de edição nas suas diferentes fases. Uma selecção das matérias assim coligidas fica disponível nas secções do website que reproduzem documentos, testemunhos, estudos, além de indicarem a geografia histórica do periódico.

Em quarto lugar, procura-se observar o universo das revistas novecentistas segundo constelações programáticas, de modo a delinear quadrantes doutrinários, estéticos ou cívicos tidos por particularmente relevantes – o que se reflecte, na estrutura do portal, no item Movimentos, que colige documentação comum a cada uma das correntes consideradas e que serve de enquadramento aos títulos nelas reunidos.

Por fim, facultam-se instrumentos que possibilitam a interpelação qualitativa e problemática das bases de dados e que asseguram a recolha da informação necessária para lhes responder.

27 - É o que se verifica, por exemplo, com A Águia, cujo n.º 10-11, da 4.ª série, datado Jul.-Out. de 1929, que foi apreendido na tipografia, mas consta no website respectivo.

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Fernando Pessoa no Portal Revistas de Ideias e CulturaFernando Pessoa está presente, hoje, no portal RIC através de 34 textos publicados em oito revistas – A Águia, Orpheu, Eh Real!, Exílio, Centauro, Portugal Futurista, Contemporânea e Seara Nova (postumamente) – que passarão, em breve, a 47 peças,

com a colocação em linha do website dedicado a Athena.

Além de poemas e artigos reproduzidos nas suas edições originais, o portal incluiu um conjunto muito variado de documentos e de testemunhos de autoria de Fernando Pessoa, reunidos na secção Magasin dos websites dedicados a A Águia, 21 cartas dirigidas a Álvaro Pinto; a Orpheu, o célebre horóscopo e testemunho; a Contemporânea, correspondência com José Pacheco e com Armando Côrtes-Rodrigues; a Portugal Futurista, testemunho sobre o seu desaparecimento. É de notar que os dossiers com materiais conexos com as revistas republicadas se destinam tão-só a facultar aos leitores documentação particularmente relevante, sem qualquer pretensão de constituir registos ou arquivos sistemáticos.

Fernando Pessoa encontra-se presente no portal RIC igualmente de forma indirecta, ou seja, como nome citado em 82 artigos. Além de referências entre contemporâneos, temos mais de meia centena de artigos publicados em O Tempo e o Modo, em que ensaístas tão distintos quanto Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira, José Bento, Jorge de Sena ou Almeida Faria evocam a sua obra.

Este panorama geral é necessariamente provisório, já que uma das características fundamentais das Humanidades Digitais reside em proporcionar uma edição sempre em progresso, ao invés do que acontece com as obras impressas.

Avançaremos para outras revistas em que Pessoa tenha deixado a sua marca, bem como para aquelas que estão ligadas “aos de Orpheu”, do mesmo modo que o estudo de outros títulos relevantes da cultura portuguesa contemporânea, em que se inclui a construção de bases de dados, permitirá fixar novos segmentos pertinentes para o estudo da recepção da sua obra28.

Embora os poemas, as narrativas e os artigos publicados por Fernando Pessoa em vida sejam bem conhecidos e estejam amplamente divulgados, cremos que o acesso universal à sua versão original pode contribuir para o seu estudo, por atender à condição em que foram dados à estampa, já que o acesso às fontes iniciais se mostra, muitas vezes, problemático.

28 - Com a publicação dos websites dedicados a Athena, Altitude, Sol Nascente e Ler, prevista para meados de 2020, o portal passará a fazer constar 127 referências à Fernando Pessoa.

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Por fim, quero reiterar o meu agradecimento à Casa Fernando Pessoa, e à sua directora, Dr.ª Clara Riso, pelo convite para participar no simpósio. Faço-o pelos motivos já indicados, mas também porque o trabalho que desenvolvemos só faz sentido se for realizado em diálogo com todos os que tomem a cultura portuguesa contemporânea como matéria de reflexão e de estudo.

Reitero, pois, que contamos com as vossas críticas, sugestões, autorizações para reprodução de estudos, mesmo propostas de colaboração próxima que se mostrarão decerto mutuamente proveitosas.

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LUIZ FAGUNDES DUARTE29

Editar a Mensagem, entre outros

29 - Universidade Nova de Lisboa

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Sendo a obra mais conhecida de Fernando Pessoa, e o único livro de poesia em português publicado em vida do autor (1934), a Mensagem tem uma longa história genética (o seu poema mais antigo data de 1913, e vários deles já haviam sido publicados, isoladamente ou em conjuntos, antes de serem integrados no livro), e inclui pelo menos um poema que poderia ser assinado pelo heterónimo Ricardo Reis (“Os deuses vendem quando dão”). A Mensagem é, assim, a obra de uma vida e de uma personalidade, pelo que faz sentido editá-la em conjunto com os poemas que o seu autor foi publicando dispersamente, com o seu nome, entre 1902 e 1935, incluindo as traduções que fez de poemas de autores de língua inglesa e espanhola. É isso que foi feito no volume Mensagem e Poemas Publicados em Vida (DUARTE: 2018), objecto desta apresentação.

Com efeito, entre Julho de 1902 – quando, aos 14 anos, publicou o seu primeiro poema – e Novembro de 1935 – mês e ano em que saiu o seu último poema em vida –, Fernando Pessoa apenas trouxe a público 125 poemas com atribuição ortónima, sendo que, destes, 18 foram publicados mais do que uma vez, em datas e contextos diferentes, o que nos dá, em termos absolutos, um total de 107 poemas, incluindo os 44 da Mensagem (14 deles já publicados, dispersos ou em conjuntos, anteriormente à composição do livro); mas mesmo que consideremos que a cada republicação de um poema correspondem outras tantas reavaliações, por vezes com alterações profundas (como acontece com o poema “A Ceifeira”, que perdeu uma estrofe entre a primeira e a segunda publicações), e assim “outros” textos, temos um total de poemas publicados em vida do poeta que fica muito aquém daquilo que por ele fora planeado só na casa dos 20 anos de idade, num projecto elaborado por volta de 1915 e intitulado “As Septe Salas do Palacio Abandonado”30: entre 186 e 226 textos, conforme as várias versões deste projecto. Porém, dos poemas (ou, na maioria dos casos, intenções de poemas) distribuídos pelo autor pelas “sete salas” (cada uma com seu nome, equiparáveis a capítulos ou livros), apenas 48 terão sido efectivamente escritos e foram seguramente publicados31 – mas a eles se juntarão, no mesmo período, 34 traduções de poemas de outros poetas32, que vão desde os conhecidos oito epigramas de autores gregos da Antiguidade, com dois a quatro versos cada, até à opulenta “Epístola ao Conde de Olivares”, de Francisco de

30 - Este é, sem dúvida, o projecto mais ambicioso elaborado por Pessoa para as suas obras, tanto ortónimas como dos heterónimos. Veja-se, no espólio do Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal, os documentos E3/ 48E-1r-7r, 48E-7v, 48E-12r, e 48E-20r.

31 - Sobre esta matéria, veja-se a introdução a DUARTE: 2018, pp. 7-24.

32 - Publicadas em BIOC: [1911-1912]. É possível que ainda venham a encontrar-se nesta obra outras traduções da autoria de Pessoa publicadas sem o nome do tradutor. Sobre esta matéria, veja-se também SARAIVA: 1996.

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Quevedo, praticamente desconhecida33.

Posto isto, e perante a necessidade de preparar e editar um livro – ou vários livros – com materiais dispersos com os quais o seu autor por várias vezes elaborou projectos para livros diferentes, mas que, salvas algumas excepções, não só não concretizou como foi publicando, dispersamente, os textos que os constituiriam (eventualmente aqueles que achava que estavam em melhores condições para virem a público), assim os esvaziando – como se há-de proceder?

O critério que espontaneamente ocorre ao filólogo que se remete a tal façanha será, na realidade, o mais evidente e é o que tem vindo a ser aplicado no projecto da Edição Crítica de Fernando Pessoa: separar aqueles textos que o autor publicou em vida, com o juízo e a auctoritas que a ele, e apenas a ele, compete, daqueles que essa mesma auctoritas entendeu não publicar, ou porque não estariam em condições, ou porque ainda não encontrara a melhor solução arquitectónica para os apresentar a público de uma maneira coesa e ideologicamente sustentável. Projectos como o das Septe Salas, não concretizado, ou como o da Mensagem, concretizado, sim, mas já no fim da vida (1934) e utilizando, em grande parte, materiais antigos e inicialmente não relacionáveis entre si (de que serão exemplo o conjunto Mar Portuguez, publicado em 1922 mas contendo materiais que remontam, pelo menos, a 1918, ou o poema “D. Fernando, Infante de Portugal” que, com o título “Gladio”, data de 1913, foi preparado para publicação em 1917, e publicado, ainda com este título, em 1924), são caracterizados por evidentes posições ideológicas do autor, sejam elas entendíveis a partir de perspectivas políticas ou estéticas. O que, na época em que viveu o nosso poeta – contemporâneo da instauração, agonia e fim da I República, e da preparação, instituição e consolidação do Estado Novo – não era assunto de somenos importância. A obra de Pessoa, em todos os géneros por que se dispersa, é disso um fiel e atento documento.

Por isso, a constituição de um livro, para Pessoa, não era uma tarefa de mera recolha e articulação de materiais disponíveis e relativamente solidários entre si, a que se dá um título comum, mas um projecto global ao serviço do qual são postos os materiais disponíveis – ou para o qual se criam novos –, e apenas quando eles correspondem, de facto, ao projecto ideológico definido e perseguido. E se, mesmo que do ponto de vista formal e estético se tratem de obras acabadas e perfeitas, elas não correspondem ao projecto ideológico traçado, não há livro – ficando assim os

33 - Autores e seus poemas traduzidos pelo jovem Pessoa: Alfred Lord Tennyson (“Godiva”), James Russell Lowell (“On a portrait of Dante by Giotto”), Garcilaso de la Vega (quatro sonetos), Luís de Góngora (Romance XXIII, “Frescos airecillos”), Francisco de Quevedo (“Epístola Satírica y Censoria” ao Conde de Olivares, e o soneto “Á Roma Sepultada en sus Ruinas”), Shelley (“To a Skylark”), William Wordsworth (“Lucy”), Samuel Coleridge (fragmentos do poema “Christabel”), Thomas Moore (“The Last Rose of Summer”), Ramón de Santiago (“La Loca de Bequeló”), Alejandro Magariños Cervantes (primeira parte do poema “La Gloria”), Robert Browning (“Up at a Villa – Down in the City”), Elizabeth Barrett Browning (“Catarina to Camoens”), John Greenleaf Whittier (“Barbara Frietchie”) e Rudyard Kipling (“Recessional”), publicados em BIOC: [1911-1912]; oito epigramas, de diferentes autores, a partir de The Greek Anthology, de W. R. Paton, publicados na revista Athena, I, 1, Dez. 1924; três poemas de Edgar Allan Poe (“The Raven”, “Annabel Lee” e “Ulalume: a ballad”), em Athena, I, 4, Jan. 1925; e um de Aleister Crowley (“Hymn to Pan”), aparecido na revista Presença, 33, Jul.- Out., 1931.

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materiais disponíveis para publicações avulsas, à peça ou em pequenos conjuntos, onde funcionam pelo seu valor absoluto e já não na relatividade de elementos de um todo, ou então são condenados ao limbo da verdadeira “arca de sonhos” – ou Palacio Abandonado – que, no caso de Pessoa, é o seu espólio.

O volume Mensagem e Poemas Publicados em Vida (DUARTE: 2018) parte deste princípio metodológico: uma coisa são os textos – neste caso, poemas – que Fernando Pessoa, num dado contexto histórico, social e estético, entendeu publicar com o seu nome, e outra coisa são os que não publicou. Estes últimos têm vindo a ser editados criticamente por outras pessoas; chegou agora a vez dos primeiros – os Poemas Publicados em Vida34, incluindo o livro de poesia mais referenciado de Pessoa, a Mensagem, bem como os poemas alheios que de outras línguas – o inglês e o espanhol – verteu para português.

Aparentemente, a tarefa de editar criticamente obras publicadas pelo autor é coisa fácil: bastaria recolher os respectivos testemunhos impressos e organizá-los por datas de publicação, ou de acordo com eventuais disposições deixadas pelo autor. Mas o olho do filólogo, que é diferenciado, tem obrigação de ver mais do que o do leitor não diferenciado: deve, sempre que para tal tem materiais e utensílios – e neste caso tem-nos –, evitar a tentação da imitação (ou seja, limitar-se a reproduzir o que já existe) e assumir o dever da interpretação.

Primeiro, porque, em boa parte, os poemas que Pessoa publicou em vida dispõem de originais autógrafos, que podem e devem ser descritos e interpretados pelo filólogo com vista a que o leitor tenha uma noção, o mais possível objectiva, da história genética que de cada um se pode contar; para que mais não servissem, essa seria uma boa utilidade dos manuscritos e outros materiais autógrafos, e é por alguma razão que há autores – como Pessoa – que os guardam, enquanto outros há que o não fazem. Utilizemo-los, então.

Segundo, porque, em diversos momentos e circunstâncias, e como foi referido, Pessoa entendeu publicar e republicar o mesmo texto, mantendo-o no essencial mas, em certos casos, introduzindo-lhe pequenas alterações – como, por exemplo, a pontuação, ou a maiusculação ou minusculação de determinados conceitos –, ou grandes alterações – como a sua integração em conjuntos poemáticos diferentes, ou a mudança de título para o adaptar ao novo contexto (como aconteceu com o poema “Gladio”/ “D. Fernando, Infante de Portugal”, já referido), ou mesmo a eliminação de estrofes (como no caso do poema “A Ceifeira”); é por essa razão que o leitor encontrará nesta edição crítica o mesmo poema em lugares diferentes, com a mesma lição ou com lição alterada: se, em absoluto, se trata do mesmo poema, a relatividade dos contextos em que aparece e reaparece, mesmo sem alterações textuais,

34 - Fernando Cabral Martins preparou e publicou o volume Ficções do Interlúdio 1914-1935 (MARTINS: 1998), onde reúne, com uma falha ou outra, compreensíveis, os poemas publicados dispersamente por Fernando Pessoa, em seu nome ou em nome de Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.

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transforma-o em outro. Assumamo-lo, então.

E terceiro, porque ficamos com a sensação de que os poemas que nesta edição se coligem são uma e a mesma coisa: expressões documentadas de um percurso poético, no qual será difícil distinguir o poeta do homem que o constitui. Esse percurso, de que haja documentos, durou 33 anos – de 1902 a 1935 – e inclui tanto poemas soltos (ou que como tais foram publicados) como conjuntos de poemas dotados de título e de coesão interna, mas que, como as histórias genéticas de cada um, quando disponíveis, o provam, foram compostos em momentos diferentes.

A Mensagem reúne poemas escritos entre 1913 e 1934, cobrindo assim um período de mais de 20 anos; ou seja, aquilo que viria a ser a Mensagem, e que uma tradição pouco cuidada nos condicionou a lê-la como uma peça de concepção e construção homogéneas, afinal ocupou Fernando Pessoa durante uns bons dois terços de toda a sua carreira como poeta.

Ocupando-se este volume dos poemas ortónimos publicados em vida do autor, o critério de ordenação dos poemas só poderá ser o da data de publicação. O que nos põe um outro problema: como encaixar a Mensagem neste critério? – dado que, tendo sido esta publicada em 1934, Pessoa ainda traria a lume dois poemas depois dela (“Intervalo” e “Conselho”, de Abril e Novembro de 1935, podendo este último ter sido o derradeiro escrito por Pessoa). Porém, a solução parece pacífica: tendo presente que os poemas da Mensagem foram sendo compostos em paralelo a toda a restante produção do autor, a solução filologicamente mais correcta será (como o foi) dividirmos o livro em três partes: na primeira, os poemas publicados, soltos ou em pequenos conjuntos, entre 1902 e 1935, respeitando os conjuntos e a devida cronologia de publicação; na segunda, a Mensagem, naturalmente com a estrutura original; e na terceira, as traduções, também por ordem cronológica da publicação, que passam, pela primeira vez, a integrar o cânone pessoano. O facto, já referido, de alguns dos poemas terem tido dupla e até tripla publicação, foi resolvido também de uma maneira pacífica: a primeira publicação de cada um recebe o seu número de ordem natural na sequência global, enquanto as segunda e terceira mantêm o mesmo número, mas seguido dos modificadores a ou b: a título de exemplo, e seguindo a ordem cronológica das suas três impressões, o poema “Gladio” tem o n.º 37 na primeira (provas de Orpheu, 3, 1917), o n.º 37a na segunda (Athena, 3, 1924), e o n.º 37b na terceira (Mensagem, agora como “D. Fernando, Infante de Portugal”).

Temos, desta maneira, respeitadas umas tantas vontades do autor: são seguidas as datas de publicação dos poemas (se Pessoa entendeu publicar um dado poema numa dada data, por vezes anos depois de o ter composto, é porque entendeu ser esse o momento adequado); são mantidos os conjuntos constituídos e publicados (se Pessoa entendeu que um dado poema, já publicado num determinado contexto, podia funcionar num outro contexto, é porque entendeu que o poema funcionaria

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igualmente bem em ambos)35; e ficamos com a consciência relativamente sossegada ao verificar que tais conjuntos não deveriam ser desfeitos, mesmo em situação de repetição, na medida em que alguns deles já estariam previstos, mutatis mutandi, no grande projecto das “Septe Salas”, e até em outros, mais pequenos, onde já aparecem, com alguma frequência, títulos como “Ficções do Interludio”, “Mar Portuguez” ou “Além-Deus”.

Como esta edição é de perfil crítico-genético – identifica e descreve todos os manuscritos autógrafos disponíveis e todos os impressos conhecidos, registando as respectivas lições genéticas –, e reproduz as grafias dos originais – o que, tudo junto, a restringe a um público mais especializado –, será publicada em breve uma nova, nela baseada, mas desprovida de notas e de aparatos de variantes, e com grafia actualizada, destinada ao público em geral.

35 - Nesta matéria, felizmente, pessoa não foi inovador: já o fizera Antero de Quental – para cuja poesia Pessoa chegou a preparar um projecto de edição, documentado em E3/48B-65… –, que em vários casos repetiu o mesmo poema em livros diferentes. Veja-se DUARTE: 2016; 2017; 2018.

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BibliografiaBIOC, Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Colecção das produções literarias mais célebres do mundo, na qual estão representados os autores mais afamados dos tempos antigos, medievais e modernos. Lisboa-Rio de Janeiro-São Paulo-Londres-Paris: Sociedade Internacional, vols. i-xxiv, [1911-1912].

DUARTE, Luiz Fagundes. Antero de Quental. Poesia Completa. Poesia I, Odes Modernas e Primaveras Românticas; Poesia II, Sonetos Completos; Poesia III, Poemas Dispersos, Alterados ou Destruídos. Edição de […]. Lisboa: abysmo/ Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, 2016; 2017; 2018.

DUARTE, Luiz Fagundes. Fernando Pessoa. Mensagem e Poemas Publicados em Vida. Edição de […]. Edição Crítica de Fernando Pessoa, vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018.

MARTINS, Fernando Cabral. Fernando Pessoa. Ficções do Interlúdio 1914-1935. Edição de […]. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998; 2.ª ed., 2012.

SARAIVA, Arnaldo. Fernando Pessoa Poeta-Tradutor de Poetas. Os poemas traduzidos e o respectivo original. Porto: Lello Editores, 1996.

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NUNO AMADO36

Os Anos da Vida de Ricardo Reis (1887-1936)

36 - Universidade Católica Portuguesa

RESUMOO argumento decisivo de Os Anos da Vida de Ricardo Reis (1887-1936) é o de que Reis e Caeiro correspondem ao lado de fora e ao lado de dentro, respectivamente, de uma mesma criatura dual. Entendido como um prolongamento da criatura una que até aí se chamava Alberto Caeiro, Reis é no fundo aquilo que Caeiro passa a ser depois de reparar na fronteira entre o mundo exterior ao alcance dos olhos e a interioridade que se oculta por detrás deles. Não obstante a pouca participação de Álvaro de Campos nesta metamorfose, o drama em gente de Pessoa é assim encarado como uma tentativa insólita de redescrever, usando poetas em vez de frases, a vexata quaestio da aquisição da autoconsciência.

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PEDRO SEPÚLVEDA37

A crítica pessoana de Eduardo Lourenço revisitada

37 - Universidade Nova de Lisboa

RESUMODe uma pesquisa no acervo de Eduardo Lourenço à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal resultou a preparação de uma nova edição dos seus ensaios de crítica pessoana, cujo primeiro volume, Pessoa Revisitado. Crítica Pessoana I (1949-1982), irá ser publicado muito em breve, contemplando tanto publicações anteriores como vários textos inéditos. Extremamente difíceis de catalogar, as leituras de Lourenço caraterizam-se por uma articulação de diversas perspetivas, subordinadas a um foco singular na dimensão textual, literária e filosófica da obra pessoana. Esta apresentação pretende sublinhar alguns dos traços marcantes destas leituras, partindo de um conhecimento mais abrangente dos textos propiciado pela nova edição.

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RUI SOUSA38

Petrus, Antologiador e Crítico de Fernando Pessoa

38 - Universidade de Lisboa

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O percurso da recepção crítica de Fernando Pessoa desenvolveu-se a partir do esforço programático desenvolvido por importantes personalidades da cultura portuguesa do século XX no sentido de fixarem uma determinada interpretação da vida e da obra de Pessoa, confundindo as ideias fundamentais do poeta com agendas particulares.

Pessoa, individualmente e enquanto vulto proeminente do Orpheu, foi uma figura fundamental na definição dos paradigmas norteadores da revista Presença e da leitura particular que os seus principais doutrinadores foram fazendo da literatura portuguesa contemporânea ao fixarem a categoria historiográfica do Modernismo. Foi também um nome tendenciosamente aproveitado por alguns círculos associados ao regime do Estado Novo e, sobretudo, por alguns dos detractores do regime que, sem conseguirem enquadrar devidamente a singularidade do poeta nas suas grelhas ideológicas, optaram por identificá-lo com os princípios do salazarismo. Não pode, ainda, dissociar-se de outros contextos representativos do percurso literário português de Novecentos, no decurso do qual Pessoa, os seus críticos e os seus mais expressivos contemporâneos, como Pascoaes ou Sá-Carneiro, foram recorrentemente utilizados como pedras basilares de discursos alheios e como leitmotivs, quer da aproximação ao cânone estabelecido no qual o seu peso continua a crescer exponencialmente, quer da recusa desse mesmo cânone e sobretudo de algum excesso de omnipresença da atenção votada a Pessoa e companhia heterónima.

Devem lembrar-se, entre outros, os seguintes exemplos:1. o esforço surrealista para a constituição de um espaço próprio no âmbito da

modernidade e da vanguarda artística portuguesa, face ao predomínio neo-realista, aos resquícios presencistas e à sufocante atmosfera derivada dos valores culturais edificados pelo Estado Novo, percurso que exigiu em certos momentos a definição de vias alternativas para a evolução literária portuguesa, com a valorização superlativa de Mário de Sá-Carneiro ou a convocação de concorrentes programáticos, como Pascoaes, linha seguida também por outros circuitos, como o discurso memorialístico de José Gomes Ferreira, no qual Raul Brandão e Pascoaes são tidos como uma via paralela de Modernismo;

2. o peso que Pessoa ocupou na imagem autoral de autores fundamentais como Sophia de Mello Breyner ou Jorge de Sena, cujo percurso deriva necessariamente de formas significativas de incorporação do poeta nos seus universos próprios, em termos de arte poética, de intertextualidade poética ou de labor crítico sistemático;

3. a insistência no caso de Pessoa como reflexo maior de uma gesta identitária tipicamente portuguesa, correspondendo o seu génio maior a uma forma modelar e necessária de interrogação sobre Portugal, situada algures entre o nacionalismo mítico e um apelo mais sociológico, alimentado por uma formação de certo modo estrangeirada. É este o eixo pelo qual dois dos grandes pensadores da identidade nacional, Eduardo Lourenço e José Gil, seguiram, articulando esforços de síntese da essência portuguesa com abordagens mais ou menos sistemáticas a Pessoa, um precursor nessa mesma procura global de compreensão de Portugal.

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4. Finalmente, percebe-se a marca de um Pessoa emblematicamente escolhido ao nível das estratégias de afirmação daqueles que serão, muito provavelmente, os mais relevantes rivais do panorama cultural português. De facto, a intertextualidade crítica de José Saramago e a insistência paródica de António Lobo Antunes, em termos de uma negação regular e provocatória do peso da herança pessoana e do seu próprio relevo ou qualidade enquanto criador, iluminam muito do que são as duas formas ainda hoje seguidas para a abordagem ao fenómeno Pessoa.

Num percurso que vai do pioneirismo inestimável de José Régio, Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro à verdadeira dispersão de grupos de investigação dedicados, quer a aprofundar o que a obra pessoana ainda tem por revelar, quer à revisão crítica dos principais monumentos operativos da exegese pessoana, são vários os poetas, romancistas, críticos, editores e académicos nos quais os exercícios de aproximação a Pessoa constituem uma parte considerável, ou mesmo quase absoluta, do que de relevante legaram à posteridade e mesmo da imagem que deles foi sendo construída. O adjectivo ‘pessoano’, aplicado de um modo cada vez mais indistinto, é o espelho mais popularizado deste fenómeno. Que, como todos os grandes enredos envolvendo personagens de diferentes gerações, nacionalidades e tendências ideológicas, não deixou apenas os seus indiscutíveis e as suas verdadeiras ovelhas sagradas; passou, também, por alguns esquecidos ou pelo menos pouco ou nada reconhecidos pelo seu papel e pela sua singularidade. É o caso da personalidade que volto a abordar neste breve texto, na esteira das considerações que já teci a seu respeito (SOUSA, 2019).

Precisamente por já ter considerado nesse trabalho sobre Petrus alguns aspectos fundamentais, desde logo a peculiaridade da definição conceptual de uma verdadeira linha editorial pessoana, fortemente implicada numa interpretação também ela programática de Pessoa, não aprofundo neste novo contributo questões relacionadas com a composição dos livros ou com algumas excentricidades marcantes da sua veia de editor empenhado39. Importa-me, sobretudo, considerar com alguns exemplos significativos dois aspectos que me parecem importantes no âmbito de

39 - Petrus, nome de guerra do portuense Pedro Veiga (1910-1987), estruturou as dezenas de antologias dedicadas à divulgação da obra de Fernando Pessoa em diversas colecções, a saber: “Colecção ‘Universo’” (Análise da Vida Mental Portuguesa, 1950, acompanhado pelo suplemento A Civilização Portuguesa entre o Passado e o Futuro); “Colecção Quinhentista” (O Encoberto. Poema que em Versos Lusiadas Compoz Fernando Pessoa, 1950); “Colecção ‘Arcádia’” (Apreciações Literárias, 1951); “Documentos Literários” (Ultimatum de Alvaro de Campos Sensacionista, 1951); “Obras Fundamentais da Cultura Portuguesa. Colecção Antologia” (Sociologia do Comércio, 1951); “Colecção ‘Tendências’” (Crónicas Intemporais, 1952; Hyram: Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas, 1953); “Documentos para a História” (Defesa da Maçonaria, 1952 e uma outra edição, também de 1952, intitulada A Maçonaria vista por Fernando Pessoa); “Páginas Livres” (Elogio da Indisciplina, 1953); “Parnaso Livre” (Poemas Insubmissos, 1953); “Documentos Políticos” (O Interregno, 1953); “Edições ‘Acropole’” (Ensaios Políticos: Ideias para a Reforma da Política Portuguesa, 1954); “Parnaso Jardim de Poesia” (Distância Constelada, 1955); e “Arte e Cultura” (além de Sarça Erótica, de 1959, reunindo textos de diversos autores desde António Nobre, incluindo Pessoa e Campos, devem referir-se Livro do Desassossego, 1961; O Banqueiro Anarquista: Páginas Escolhidas, 1961; Almas e Estrelas; Horas Espirituais, 1966; O Marinheiro, 1966). Devem acrescentar-se colecções nas quais Pessoa é um dos autores representados, como “Selecções ‘Périplo’” (Nas Encruzilhadas do Mundo e do Tempo, 1959). Marca, também, presença na colecção de seis volumes Os Modernistas (1954-1961), na qual são reunidos programaticamente textos de intervenção e de polémica que abrangem os principais documentos e autores do Modernismo e do Surrealismo em Portugal. Sem indicação explícita de pertencerem a qualquer destas colecções, devem ainda mencionar-se Antologia A Maçonaria Vista por Fernando Pessoa e Norton de Matos (1952), Poemas Ocultistas de Fernando Pessoa (1952), Exórdio em Prol da Filantropia e da Educação Física (1956) e Apologia do Paganismo (1957).

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uma revalorização da obra de Petrus e de uma eventual integração do seu exercício hermenêutico no panorama global da história da crítica pessoana, cujos primeiros esboços começam já a ser preparados, por exemplo nos mais recentes números da revista Estranhar Pessoa40.

Esses dois eixos são, respectivamente, a consciência que Petrus tinha do contraste entre o seu projecto e o que de mais avançado se fazia em torno de Pessoa, contraste esse suficientemente expressivo para justificar um gesto quase missionário de abordagem à obra de Pessoa a partir de um novo ponto de vista, mais global; e a evidente presença de uma linha ideológica nas suas escolhas e nos seus comentários, notas e posfácios, de que resulta um acentuado interesse em convocar Pessoa para a afirmação de um conjunto de princípios polémicos e heterodoxos, mesmo ou sobretudo se esses princípios são encarados como efeitos de uma iluminação do verdadeiro espírito do poeta face a assuntos menos lidos da sua criação plural41.

No que respeita à primeira dessas duas componentes, deve sublinhar-se, como já o fiz no anterior trabalho, que, sobretudo nos livros integralmente dedicados a criações pessoanas, Petrus procura situar-se activamente como um nome fundamental numa cronologia adequada da evolução dos discursos crítico e editorial em torno de Pessoa. Com efeito, é notório o conhecimento dos trabalhos anteriores e contemporâneos da sua própria produção editorial. São exemplos destas duas

40 - Veja-se que o projecto Estranhar Pessoa, na sua apresentação, parte da pertinente percepção de uma necessidade, a saber, a “revisão exaustiva da discussão em torno da obra de Fernando Pessoa, tomando como pontos de acesso as noções de autor, heterónimo, livro, edição e fragmento”. Simultaneamente urgência crítica e método individual e colectivo de trabalho, muito significativo no modo como se definiram desenvolvimentos directamente relacionados com esses pressupostos, como as dissertações dos mais jovens representantes da equipa ou o perfil crítico seguido pelos livros da colecção Pessoana (INCM), a proposta deste estranhamento passa tanto pelo desejo de uma leitura de compreensão de Pessoa e dos seus processos como por um olhar apurado aos dois extremos da sua inscrição no percurso histórico da Literatura Portuguesa: por um lado, a consideração do que em Pessoa é fruto de um diálogo produtivo, entre o reconhecimento, a emulação e a superação dos seus grandes precursores nacionais e internacionais; por outro lado, um esforço de “revisão exaustiva” ou mesmo de consciente “substituição” do percurso crítico em torno de Pessoa e dos equívocos promovidos pelos grandes hermeneutas pessoanos. Como sublinham Caio Gagliardi e Pedro Sepúlveda, na introdução ao terceiro de três cadernos dedicados a um trabalho reconhecidamente metacrítico, convocado pela supremacia da proliferação de edições de acrescentos à obra pessoana face a estudos significativos da obra, “Direcionar a atenção mais sistemática à crítica pessoana, tal como procuramos realizar nesta série de cadernos, não significa, ao contrário do que se possa pensar, desviar o olhar da obra enquanto tal. Trata-se de compreender que a obra em si mesma, entrevista de uma perspectiva pretensamente autônoma e original, como uma mata virgem que se oferecesse ao explorador incauto, é uma utopia vazia, uma concepção carente de sentido de realidade. A nossa própria perspectiva não é senão resultado do acúmulo de leituras cristalizadas com o passar dos anos. O que muitas vezes damos como autênticas são ideias que não vão além de lugares-comuns e intuições alheias, então assumidas como próprias” (SEPÚLVEDA, 2019: 5). A ausência de Petrus nos três números propostos é representativa do interesse deste trabalho em acompanhar esses pressupostos, dando-lhes um novo ângulo de visão.

41 - No final da minha intervenção no encontro Novos Estudos Pessoanos. Ponto de Situação de 2020, o professor Ivo Castro, dando conta de um certo desconhecimento da componente interventiva de Petrus, essencialmente entendido como um editor clandestino e de circulação muito circunscrita e com pouco reconhecimento por parte dos estudos pessoanos, acentuou aquele que lhe parecia o mais original problema levantado pelos aspectos que sublinhei: a hipótese de o trabalho de Petrus poder ser entendido como um ponto de vista alternativo à linha seguida pelas edições da Ática, responsáveis pela fixação de uma ideia de Pessoa que é em grande medida a que ainda hoje perdura. Petrus seria, assim, uma espécie de voz silenciada e, nessa medida, um vencido no quadro global da tradição crítica pessoana, mesmo ou sobretudo se os seus propósitos e observações poderiam ter sido encarados como fecundos e pertinentes e, eventualmente, ter influenciado outros leitores, ainda por conhecer. Por exemplo os que, como António J. Miranda, terão tido acesso ao trabalho de Petrus e conseguido um arquivo editorial capaz de rivalizar com aquele que se encontra disponível na própria Biblioteca Nacional de Portugal.

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vertentes, respectivamente, a convicção de que o seu projecto vem complementar e corrigir algumas imperfeições das edições da Ática, que desde 1942 tem revelado o continente pessoano a um público mais vasto, e a sua menção constante à biografia Vida e Obra de Fernando Pessoa – História de uma Geração (1950), da autoria de João Gaspar Simões, e aos textos revelados por Maria Aliete Galhoz, na recolha Obra Poética (1960).

O confronto polémico com as leituras predominantes, nomeadamente devido à pouca atenção votada às produções que transcendiam o universo poético do ortónimo e dos heterónimos e à interpretação equivocada das posições políticas de Pessoa, plasma-se, por vezes, no diálogo directo com figuras notáveis, como Adolfo Casais Monteiro42. Petrus cultivou deliberadamente a intenção de se encontrar permanentemente numa situação instável e polémica, contrária aos ventos dominantes. O seu papel deriva dessa postura, na medida em que, reconhecendo-se sobretudo como editor, não se limitava a antologiar textos dispersos ou raros, ou a comentar as suas características e os motivos pelos quais urgia dar-lhes uma nova atenção. O seu empenho em afirmar-se como um arguto promotor de pontes entre textos publicados em vida, mas ignorados ou deslocados da sua devida compreensão, é um tópico essencial para que se compreenda a sua acção paralela aos grandes focos de interesse e o seu desejo de contribuir para uma menorização do ímpeto dispersivo proporcionado pelas lacunas dos editores oficiais.

O contraponto que Petrus estabelece parte da ideia de que a singularidade da perspectiva de Pessoa a respeito da condição humana e da sua projecção no devir da existência só poderia ser devidamente compreendida se os hermeneutas passassem a ter em conta os diversos contributos do poeta, dispersos em diferentes periódicos nem sempre devidamente lembrados. A insistência do seu labor editorial é, assim, um ligeiro desvio correctivo ao padrão seguido pelos grandes teóricos e editores das primeiras duas décadas de crítica pessoana, preocupados quase em exclusivo com o problema da heteronímia, a sua interpretação à luz de diversos critérios e escolas e, em geral, uma tentativa de normalização de uma suposta anomalia, tendência denunciada por Eduardo Lourenço no seu mais icónico livro de estudos pessoanos, Pessoa Revisitado (1973):

De uma maneira, por assim dizer, fatal, passou-se insensivelmente do campo da análise da heteronímia ao do seu desmascaramento, já com forte coloração pejorativa e, em seguida, à desmistificação não só do jogo heteronímico como do processo poético que ele estrutura, finalmente submetido a uma espécie de desmitificação. Tudo se passa como se os críticos, inconscientemente, tivessem querido punir Pessoa de ter levado consigo a chave de um labirinto onde eles se perdem. […]

Na realidade, e por diversas que sejam em profundidade, subtileza ou coerência, estas três formas de interpretação [Gaspar Simões, Prado Coelho e Mário Sacramento], momentos densos e estruturados de outras mais correntes que as ecoam

42 - A este respeito, cf. MORAIS (2014: 93-94).

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ou delas se distinguem mal, têm algo de comum: todas interrogam Pessoa, todas põem ao poeta e à sua criação questões que são mais delas que dele, todas o convocam com um máximo de boa consciência diante da instância crítica (LOURENÇO, 2000: 26-27).

Petrus antecipava, no início da década de 1950, não apenas a consciência de que Pessoa era uma personalidade singular, cujo génio deveria ser compreendido em função do próprio continente textual produzido, mas também a convicção de que a lucidez do poeta correspondia a uma visão polémica mas avisada dos factos experienciados no seu tempo e, acima de tudo, a certeza de que urgia uma divulgação sistemática da totalidade dessa obra, através de um esforço editorial mais consistente. Petrus talvez não ambicionasse ser esse editor capaz de dar à estampa a totalidade de um universo literário e filosófico complexo, até pelas circunstâncias da sua carreira de editor marginal e pouco apreciado nos circuitos com acesso privilegiado ao espólio de Pessoa. O seu papel era, acima de tudo, o de revelar em sucessivas antologias “algumas das mais raras e quem diz raras, pode igualmente dizer desconhecidas páginas” da múltipla produção pessoana, dispersa em revistas de circulação restrita e totalmente esquecidas pelo público, mesmo o dos apreciadores do poeta (PETRUS apud PESSOA, 1952: 96).

Petrus parece convencido de que os próprios críticos associados ao presencismo, apesar do seu pioneirismo inegável, não haviam contribuído devidamente para a proposta delineada numa nota publicada no número 47 da Presença, na qual a recente morte do poeta era lembrada:

Por isso pedíamos então a Fernando Pessoa que reünisse em outros livros outros dos seus poemas –, ajudando assim o público a entendê-lo e a conhecê-lo melhor. Entretanto, Fernando Pessoa morreu. […]. Cabe agora àqueles que têm a honra de possuir ou manusear os seus manuscritos, a fervorosa obrigação de publicar a obra de que Fernando Pessoa nos deu tão preciosos fragmentos. Só depois de ela publicada poderão ser tentados os estudos de conjunto que exige (PRESENÇA, 1935: 15).

Os propósitos de Petrus acompanham este repto ao mesmo tempo que denunciam a circunscrição das edições e dos esboços de estudos de conjunto a essa, de resto expressa, vontade de atentar essencialmente nos poemas. Precisamente por esse motivo, a sua concentração não passa, ao contrário do que será a prática tanto das Obras Completas, da Ática, como de outra edição monumental contemporânea do seu esforço editorial, a Obra Poética seleccionada e organizada por Maria Aliete Galhoz (1960), por essa componente ainda hoje superlativamente valorizada, a par do Livro do Desassossego, que Petrus também publicou, numa edição que deveria

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constar com outro reconhecimento no elenco das várias versões possíveis43.

É evidente, por exemplo, que o grande estudo contemporâneo das edições de Petrus, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, de Jacinto do Prado Coelho, abordara duas vertentes essenciais de uma mesma questão – a diversidade convergente do pensamento pessoano – a partir do ortónimo e dos heterónimos nucleares. Por outro lado, Petrus vinha também confirmar que a acção de Jorge de Sena não esgotara, de modo algum, o muito que havia a saber sobre o pensamento doutrinário pessoano. O seu foco não é, também, neste sentido, o conteúdo de Páginas de Doutrina Estética (1946). Passa, antes, pela necessidade de uma extensão do leque, valorizando outras dimensões da sua vasta produção em vida e pela revelação de componentes de algum modo inesperadas, como Exórdio em Prol da Filantropia e da Educação Física (1956). Está em causa, como o próprio define, a revelação de uma outra faceta do génio pessoano: a sua capacidade para, ao longo de mais de duas décadas de páginas dispersas por efémeras revistas portuguesas, manter uma “personalidade política” e uma “posição perante as correntes políticas” coerente, para cuja análise concorre necessariamente “a conjugação de textos de mui diversa índole e expressão” (PETRUS apud PESSOA, 1952: 99).

A teoria da edição de Petrus é radicalmente oposta à dos seus pares no palco dos estudos pessoanos das décadas de 1950 e de 1960. Contemporâneo dissidente do primeiro grande retrato de Pessoa, fixado pelos que o conheceram em vida e pelos seus primeiros críticos notáveis, Petrus critica tanto as opções editoriais promovidas pela concorrência como o alcance de certos paradigmas teóricos e a estreiteza crítica de certos leitores de Pessoa.

Numa nota publicada em Hyram. Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas (1953), por exemplo, Petrus assinala como principal fonte de problemas nas edições da Ática uma certa incapacidade dos seus organizadores, incapazes de ler plenamente Pessoa e de darem honestamente conta dessas limitações. O teor da nota permite, também, evidenciar a rigorosa actualização de Petrus, dado que a sua denúncia de certas práticas de Eduardo Freitas da Costa, autor de Fernando Pessoa: Notas para uma

43 - A sua pioneira edição do Livro do Desassossego está fundamentada em tudo quanto se sabia do conteúdo da obra duas décadas antes da edição de Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha e Jacinto do Prado Coelho (1982). Considerando a recolha como de “páginas escolhidas”, Petrus antecipa, com assinalável lucidez, discussões contemporâneas, nomeadamente quanto à organização dos trechos, ao correspondente entendimento das diferentes fases de composição da obra e aos autores fictícios aos quais esta foi atribuída em diferentes ocasiões. É ainda ensaiado o problema da coincidência entre o período de Bernardo Soares e aquele em que também se produziram os textos do Barão de Teive. Um ano depois de Maria Aliete Galhoz ter dado a conhecer fragmentos de A Educação do Stoico, na Obra Poética (1960), Petrus serve-se dessa recolha para dar ao seu volume a seguinte arrumação, única no quadro das distintas opções defendidas pelos sucessivos organizadores, de Jacinto do Prado Coelho a Teresa Rita Lopes: “Prefácio ao Livro de Desassossego”, constituído pelos dois trechos nos quais se traça o essencial da figura de Vicente Guedes; “Prefácio às ‘Ficções do Interlúdio’”, com as menções a Soares e a Teive; o trecho “Na Floresta do Alheamento” (1913), publicado n’A Águia; fragmentos do “Livro do Desassossêgo”, reunindo os nove trechos atribuídos por Pessoa a Bernardo Soares, dados à estampa nas revistas Presença e Descobrimento, apresentados aqui de acordo com uma organização definida por Petrus; “Páginas do Diário Lúcido. Páginas do Livro do Desasocego”, reunindo outros trechos atribuídos a Vicente Guedes e publicados em 1938, no primeiro número da revista Mensagem; e “Dum Epistolário da Angústia”, reunindo cartas trocadas entre Pessoa e dois companheiros de Orpheu, Armando Côrtes-Rodrigues e Mário de Sá-Carneiro, nas quais a composição do Livro do Desassossego é o tema central. A edição inclui, também, passagens do prefácio a “Ficções do Interlúdio”.

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Biografia Romanceada (1951) e responsável pelo sexto volume das Obras Completas, Poemas Dramáticos de Fernando Pessoa (1952), é pouco posterior a essa primeira abordagem editorial, entre outros, ao Fausto pessoano:

Salvo, portanto, o respeito devido pelas boas invenções que com a divulgação daqueles textos houve, parece que tal orientação devia ser banida em absoluto – devendo os editores das O.C., sempre que no corpo da obra não queiram inserir os fragmentos que reputam ininteligíveis, fazê-lo em roda-pé ou em apêndice. Assim seria seu esforço editorial digno de louvor (PETRUS apud PESSOA, 1953: 203-204).

Quanto à crítica a assuntos de índole teórica, veja-se, por exemplo, o conteúdo do “Antelóquio” à edição do Exórdio, na qual a crítica aos procedimentos alheios serve os propósitos de justificação do seu próprio projeto, visto como um esforço de diálogo correctivo:

Estas páginas são desconhecidas e por muita gente serão tidas por insignificantes. Juízo precipitado porque não só não são insignificantes, como são mesmo o contrário disso. / À biografia do Escritor trazem elas um subsídio pessoal de interesse tanto maior quanto nenhuma das suas biografias, desde esse farto manancial recolhido nem sempre com segurança, valha a verdade, pelo incansável esforço e talento de J. Gaspar Simões, aos dados subsidiários trazidos a público por outros publicistas, lhes faz a menor referência (PETRUS apud PESSOA, 1956: 7).

Já vinha de longe este confronto com a imagem de Pessoa que Gaspar Simões procurara fixar e que, segundo Petrus, deturpava, ignorava e esquecia propositadamente traços essenciais para qualquer visão de conjunto apreciável. Em 1952, na primeira recolha em volume das “Crónicas da Vida que Passa”, nas quais Pessoa desenvolvera um trabalho propositadamente polémico de erosão de alguns lugares-comuns do imaginário nacional nos mesmos anos em que participara na transgressão colectiva do Orpheu, Petrus comentava o seguinte, sublinhando a pouca atenção votada à componente política de Pessoa.

Não houve, evidentemente, a intenção de trazer a público um juízo parcial, de ocultar algo da sua personalidade ou do seu pensamento, como fizeram os periodistas do Bandarra e os primeiros editores do poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes […]. Aqui houve simplesmente uma questão de orientação, e de perspectiva e também, porventura deficiência nos elementos de trabalho que estiveram ao alcance daquele infatigável e pródigo escritor. Efectivamente, J. Gaspar Simões que tam atentamente estudou o fenómeno poético em F. Pessoa, quando entra no terreno das suas ideias políticas e tinha fatalmente que entrar […] tergiversa e dá-nos de Pessoa um perfil político obscuro e contraditório – cheio de empastelamentos que denunciam não a complexa fisionomia do doutrinador, mas muito simplesmente a falta de visão e de profundidade do próprio biógrafo neste domínio, que íntimo de Pessoa […] – pois tinha nas fibras do pensamento a intuição do político – já em Gaspar Simões é secundário, circunstancial e mesmo insignificativo (PETRUS apud PESSOA, 1952: 100-101).

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Críticas que não escondem um outro aspecto particularmente caro a Petrus: as lacunas e equívocos de Gaspar Simões não eram da mesma ordem dos propositados esforços de acomodação de Pessoa aos interesses do regime vigente. Com efeito, não se trata no caso de Gaspar Simões de uma apologia ideológica de certos textos, ou mesmo de um exercício derivado da leitura forçada de excertos escolhidos e da truncagem de outros mais reveladores, mas de duas diferentes questões mutuamente implicadas: por um lado, a construção por parte do biógrafo de um determinado perfil de Fernando Pessoa, assente nos traços fundamentais expostos ainda em vida do poeta, nos ensaios publicados em Temas (1929) e em O Mistério da Poesia (1931); por outro lado, a estreiteza dessa visão, incapaz de acompanhar a plenitude da riqueza de Pessoa. Simões não era, portanto, um doutrinador, mas apenas um crítico e um biógrafo menos capaz do que seria desejável, sobretudo quando o alvo era alguém incapaz de ser absorvido pelas grelhas teóricas do tipo de monomania que Eduardo Lourenço denunciaria em 1973.

O significado das páginas que se propõe dar a conhecer são, nesta perspectiva, ilustrativas de uma inteireza crítica de que Pessoa foi dando provas e cujos vestígios não haviam dado frutos quase vinte anos depois da sua morte. Em 1951, num dos textos contextualizadores que acompanham a antologia Sociologia do Comércio, Petrus serve-se da nota biográfica composta por Pessoa no dia 30 de Março de 1935 para dimensionar o peso da componente do pensamento político e económico expressa nos textos publicados na Revista de Comércio e Contabilidade (1926) e reunidos pela primeira vez em volume. Ao salientar esses textos, Petrus consegue, a um tempo, reagir a outros retratos biográficos de Pessoa, criticar implicitamente a tradição editorial anterior e aproximar a sua própria capacidade de leitura da lucidez crítica pessoana:

Por isso, a designação de liberal dentro do conservantismo, como é cognominado por Pessoa o conservador britânico, é perfeita e inteiramente explicável porque no mundo político o conservantismo inglês não aplaude nem transige com os regimes europeus reaccionários. O Liberalismo é, de resto, e na sua essência, uma doutrina profundamente conservadora – e o sufrágio popular, em que fundamentalmente assenta, um dos travões mais eficazes que opõe a investida aguerrida dos pioneiros do rasgado e impetuoso progresso democrático, capitulado, não raras vezes, de licencioso. […] Ora a sumária análise das páginas quase ignoradas que esta antologia resgata do olvido, permite perfeitamente reivindicar para Pessoa a posição consciente que ele próprio e admiravelmente definiu nas palavras translatas (PETRUS apud PESSOA, 1951: 106-107).

Petrus aproveita um conjunto de textos particulares, e a análise da sua excentricidade no quadro do pensamento político e económico em Portugal, para uma série de derivas mais ou menos evidentes. Uma delas é a que permite deslocar Pessoa do paradigma representado pelo Estado Novo. Se é verdade que Petrus reconhece em Pessoa uma figura absolutamente isolada da sua geração, defendendo uma ideologia política pouco defensável por outros companheiros de geração e totalmente estranha

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ao panorama cultural português, esse exotismo epistemológico não o conduz a identificar-se com os regimes totalitários. Talvez por ser tão alheio aos interesses das diversas capelas ideológicas em conflito no início da segunda metade do século XX, como o havia sido de resto no seu próprio momento histórico, Pessoa acaba por ser, segundo Petrus, ambiguamente adoptado pelas gerações subsequentes, entre os que viam nele “o prenúncio duma mudança de rumo no mundo das ideias” e o facto de ter produzido uma obra “disputada pelas capelas literárias e políticas”, vítima de um nocivo processo de sobreinterpretação generalizada, ainda que com diferentes rostos:

Com Fernando Pessoa, porém, e talvez porque a sua valorização literária se deveu, fora de qualquer dúvida, ao interesse criado em torno da sua poesia, e primordialmente da que ele apresentou como sua, sem heteronimismo […], sua obra de pensador foi por tanto tempo ignorada que, à sombra dessa ignorância, fácil foi inculcá-lo disto e daquilo – de tudo quanto Fernando Pessoa, na verdade, não foi nem pensou nunca ser (PETRUS apud PESSOA, 1957: 124).

Nesta passagem, Petrus é ainda mais cirúrgico na crítica que opta por fazer aos críticos de Pessoa. Como já referi, este projecto procura tanto quanto possível distanciar-se da centralidade conferida ao fenómeno da poesia de Pessoa, incluindo a discussão do problema da heteronímia. Neste livro, no qual são publicados alguns dos mais notáveis textos em prosa dedicados ao problema do Paganismo, incluindo composições assumidas por Campos, Reis ou Mora, o ângulo de observação procura integrar essas componentes num itinerário muito mais amplo do que o contexto do drama em gente propriamente dito. Petrus tem em mente nestas considerações um outro alvo ao qual contrapõe o ponto de vista civilizacional de Pessoa: o nacionalismo específico do Estado Novo, ao qual Mensagem tendia a ser associada. A “valorização literária” da poesia de Pessoa a que Petrus se refere é, essencialmente, a que procura justificar um suposto conservadorismo passadista e afim da mitologia retrógrada idealizada por Salazar. É a esse núcleo ideológico que o projecto editorial de Petrus procura extrair Pessoa.

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Para tal tarefa, focada também na descrição do tipo de tradicionalismo pessoano e da sua concepção do passado dos povos devedor do paganismo antigo e não da via cristã seguida pela ideologia oficial, Petrus opta por convocar aquele que será o mais polémico escrito político publicado em vida de Pessoa, no qual se propõe uma defesa da Maçonaria, ou, mais exactamente, uma crítica severa dos modelos de governo que procuravam sobrepor excessivamente as concepções dos governadores aos pressupostos particulares dos seus mais apurados pensadores. Num dos vários livros dedicados à publicação de “A Maçonaria”, Petrus associa a necessidade de dar a conhecer integralmente este texto ao modo como Pessoa fora indevidamente deturpado. Por nos parecer extremamente interessante, citaremos com alguma extensão considerações de Petrus que ajudam a situar com inequívoca clareza a globalidade dos seus propósitos:

[…] há, não obstante, nesta publicação algo de estranho e grave, muito embora, até hoje tenha passado desapercebido dos escritores políticos, dos críticos da Maçonaria e dos apreciadores e devotos (que os há) da obra de Fernando Pessoa, mesmo daqueles que publicamente se consideram melhores informados. Com efeito, o folheto «A Maçonaria vista por Fernando Pessoa», tal é o seu nome de baptismo, omite precisamente a parte derradeira, a mais séria, de resto, do eloquente artigo do heterodoxo e herético poeta da Mensagem, substituindo mesmo frases inteiras latejantes de ironia por expressões verbalmente frouxas e sem significação.

Em resumo: o célebre folheto é uma fraude ao fazer passar por fiel e íntegro um texto truncado e grosseiramente adulterado […] O problema dá que pensar pois é realmente extraordinário que se tivesse sacrificado exactamente a parte mais profunda do trabalho de Fernando Pessoa em proveito do seu aspecto anedótico, de efémero interesse aliás (PETRUS apud PESSOA, 1952: 36-37).

Se é evidente nesta passagem a já mencionada crítica não apenas aos censores deliberados de Pessoa, como os que haviam polemizado com o poeta na sequência da publicação deste texto no Diário de Lisboa e que Petrus faz questão de recordar cuidadosamente nas linhas gerais das suas respostas, mas também aos supostos cultores da sua obra que continuavam a desconhecer a amplitude da sua obra, uma passagem subsequente não deixa margem para dúvidas:

Por isso a presente edição é biblicamente a primeira que vem a público dessas páginas hoje pouco menos que ignoradas e que tão importante contribuição fornecem para se avaliar da posição filosófica do seu autor e do conteúdo universalista do seu mundo ideológico.

Apressados críticos e biógrafos para quem os mais importantes textos ideológicos foram de somenos importância para espartilharem as ideias de Fernando Pessoa nos manequins que conceberam e vulgarizaram como sua representação mental deviam antes de darem à luz os seus diagnósticos políticos repensar este e outros documentos de vital importância para a tradução dum pensamento que, se teve muito de contraditório, jamais foi, em certo sentido, ambíguo e confuso (PETRUS apud PESSOA, 1952: 37).

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Temos, portanto, três questões a reter: parece claro que o alvo principal destas afirmações deverá ser Gaspar Simões, o único verdadeiramente reconhecível como “crítico e biógrafo”, o que permite fazer do presencista um dos mais recorrentes alvos de Petrus, a par de Adolfo Casais Monteiro, esse com um pouco mais de agressividade; à cegueira dos editores e críticos pessoanos deverá contrapor-se um outro paradigma, preocupado não apenas em repor o genuíno sentido das palavras de Pessoa, mas em fazê-lo pensando num público desejavelmente mais vasto e mais informado; finalmente, Petrus considera o estudo por si desenvolvido essencial também de modo a libertar Pessoa das abstracções tendenciosas que os críticos haviam construído de modo a projectarem em seu nome os próprios pressupostos.

Em Hyram, o estatuto de pioneiro editor dos mais significativos trechos do pensamento pessoano, sobretudo nos âmbitos menos valorizados pela crítica oficiosa, é claramente delimitado:

De quantas páginas sobre ciências herméticas, Fernando Pessoa escreveu e vieram a público aos baldões da mais incerta e irregular das publicidades, devassando o mundo misterioso que se ocula à vista dos profanos, Hyram guardará – para o entendimento dos eleitos e para a devoção dos que se dizem admiradores do Pensador impar que foi esse homem raro e triste, criador sarcástico de ironias e de paradoxos desconcertantes – as mais significativas e as mais surpreendentes (PETRUS apud PESSOA, 1953: 196).

É neste quadro que deve também inscrever-se um outro gesto essencial nas dezenas de edições pessoanas produzidas por Petrus entre 1950 e 1966 e que não deixa de ser irónica, atendendo a alguns reparos do editor aos seus adversários na arena da crítica pessoana: com maior ou menor fundamento nos textos de Pessoa, e independentemente do valor dos seus contributos e da eventual lucidez das suas abordagens, existe também, para Petrus, “Um Fernando Pessoa”, se quisermos recorrer à designação de Agostinho da Silva. Este Pessoa é sintetizado com grande acerto no momento em que o texto de apresentação de Hyram desliza para o texto em defesa da Maçonaria, um dos mais reeditados por Petrus e provavelmente o equivalente à carta sobre a génese dos heterónimos na economia interna da sua proposta: “[…] em todos os momentos em que entra na batalha das idéas e dos costumes o fiz em obediência a um impulso de alma puro e incontível, isso parece-nos incontestável – pois sempre o vemos nas posições mais arriscadas e do lado menos seguro e proveitoso” (199). Um Pessoa não apenas iconoclasta mas também, de algum modo, consciente ou inconscientemente vítima de um instinto para a escolha de causas marginais que o deixavam num isolamento ainda maior. Que, se tinha defeitos e defendia causas e ângulos de observação que não agradavam particularmente a Petrus, como faz saber em Ensaios Políticos (1954), o fazia muitas vezes em virtude do tempo histórico vivido num Portugal que dificultava o acesso aos grandes centros culturais e, por isso, conduzia a imprecisões, erros analíticos, incongruências judicativas (PETRUS apud PESSOA, 1954: 143-147).

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A identificação dessas limitações é essencial, por exemplo, para o argumento de que Pessoa, apesar de certas ideias liberais e mesmo aristocráticas, não deveria ser colado ao culto do chefe dos fascismos europeus:

Se podemos aceitar que, para fins políticos, tendia para os regimes em que o povo se sente naturalmente consubstanciado com o dirigente, apelando, portanto, para fórmulas arcaicas, mas sempre válidas nas nações de formação política rudimentar ou ainda em gestação, a verdade é que suspendeu também a sua adesão às doutrinas do poder pessoal, firmando primeiro a necessidade do governante exprimir pela sua fusão psicológica com o povo, os anseios nacionais, criando assim uma soberania popular de natureza pronunciadamente mística. […] PETRUS apud PESSOA, 1954: 163).

Repare-se no discreto movimento analítico empreendido por Petrus para deslocar Pessoa precisamente para o espaço que mais lhe convinha. Primeiro, o poeta é valorizado pela sua excepcionalidade crítica e pelo facto de ter introduzido na discussão das ideias em Portugal novos vocabulários e ferramentas. Depois, é valorizada a sua coragem e, ao mesmo tempo, a sua predilecção intrínseca pelas correntes de opinião menos favorecidas. Em terceiro lugar, esse isolamento permite, por um lado, desculpar alguns aspectos menos adequados aos ideais do próprio Petrus e, por outro, aproximar Pessoa do confronto com aquele que é considerado o verdadeiro alvo, a doutrina totalitária do culto do chefe. Conduzido da melhor forma esse evidente processo de neutralização de alguns pormenores e de exacerbação de outros, Pessoa poderá ser visto como promotor fundamental de uma visão civilizacional cujos contornos fundamentais podem ser resumidos na ideia de que “Pessoa deu actualidade a um problema que a cultura oficial ignora e que o exame penetrante da idiossincrasia nacional revela existir […] por corresponder a uma corrente profunda que os tempos não apagaram” (PETRUS apud PESSOA, 1957: 123).

O tom não anda longe daquele a que Pessoa recorre em muitas das suas páginas votadas a questões religiosas, políticas e à construção de uma visão mítica do futuro da nacionalidade portuguesa norteada pelo seu espectro presente e futuro e pela reconversão do conteúdo de toda a história de Portugal e do Ocidente dele derivada. O essencial das perspectivas de Petrus a este respeito, por exemplo no que concerne a uma leitura do Paganismo como espelho fundamental de uma exigência vitalista de liberdade de pensamento e de expressão, foi já comentada num outro texto que dediquei a Petrus. Para a conclusão deste texto, interessa-me, ainda, convocar outra publicação na qual Pessoa é explicitamente cruzado com o movimento ideológico ao qual Petrus esteve ligado, a Renovação Democrática. As profundas aproximações entre o contexto do poeta do Orpheu e aquele em que o movimento jovem com origens no Porto foi germinando, e um devido enquadramento da recepção de Pessoa não apenas por Petrus, mas por outros vultos associados à Renovação Democrática, ainda estão por fazer e ficarão, eventualmente, para futuros trabalhos. Petrus dá algumas pistas relevantes, a que não daremos seguimento para já.

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Em 1982, naquele que corresponde a uma espécie de canto do cisne e de testamento ideológico, Petrus, assinando, quer com o nome de guerra, quer com o seu nome civil, Pedro Veiga, publicou o breve volume Afinidades Políticas, Religiosas e Filosóficas entre Fernando Pessoa e a Renovação Democrática. Na capa, sintetizava do seguinte modo os princípios norteadores de toda a sua postura como intelectual activo e ciente de uma missão relevante, entre espíritos pouco ou nada lembrados: “Republicano Antifascista, 1925, Promotor dos Movimentos Republicanos de 1932, 1945, 1953 e 1969, Democratista, Antiliberal, Anticorporativista e Antisocialista. Candidato do Povo à Assembleia Nacional”. Tratava-se do produto de uma comunicação apresentada nos Estados Unidos, em 1982, nas Universidades da Califórnia e de Vanderbilt.

Antecipando o conteúdo geral do volume, Petrus incluiu, antes mesmo de uma tabela com o elenco parcial dos colaboradores da Renovação Democrática, o esboço da presença de Fernando Pessoa na vida social portuguesa, com dois eixos representativos: primeiro, como “datas significativas”, aqueles que, segundo Petrus, corresponderiam a etapas decisivas do percurso pessoano (1912, A Águia; 1914, A Renascença; 1915, Orpheu; 1917, Portugal Futurista; 1924, Athena; 1928, Presença; 1934, Mensagem; 1935, Diário de Lisboa, cronologia que sublinha boa parte dos momentos fulcrais da tradição editorial pessoana e acrescenta um dos grandes cavalos de batalha de Petrus, a intervenção pessoana em defesa das associações secretas); depois, uma outra síntese, com inspiração evidente nas notas biográficas do próprio Pessoa, com particular incidência para a já mencionada nota de 1935:

Liberal ConservadorRepublicano AristocrataAnti-socialistaAnticomunistaNacionalista MíticoSuper Camões da Nova IdadeAntidemagógico e AntiafonistaDoutrinário sem público nem adeptosPagão e Politeísta (PETRUS, 1982: 5).

Importantes para o panorama ideológico pessoano que Petrus comentará em seguida para proceder a aproximações e distanciamentos significativos entre as teses de Pessoa e as do seu próprio grupo, estas ideias gerais definem uma empenhada leitura do poeta, no essencial coincidente com a que desde 1950 começara a configurar nas suas antologias. Assinalam-se quatro pilares, a peculiaridade de um pensamento político constituído por um misto de negações e de introduções de modelos pouco comuns em Portugal, a proeminência de um ícone da literatura portuguesa fielmente identificado com as afirmações produzidas nas páginas de A Águia, em 1912, a convicção de que Pessoa era tanto um doutrinário consciente como uma voz isolada e a apologia do Paganismo como esteio aglutinador de todas essas vias.

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É este Pessoa, e a sua aproximação aos propósitos heterodoxos da Renovação Democrática, que se encontra no horizonte de alguns acertos de contas relevantes que Petrus opta por fazer, na linha do que fizera ao longo do diálogo com os críticos pessoanos, conforme traçado ao longo deste texto. Ao apresentar como um dos membros da Renovação Democrática Adolfo Casais Monteiro, Petrus sente necessidade de explicar, numa extensa nota de rodapé contextualizadora, qual o papel do crítico nesse movimento. Ao fazê-lo, as rectificações necessárias ecoam os comentários às imperfeições de leitura e de edição da Presença:

Devido às suas relações com os camaradas da Faculdade de Letras do Porto, o Casais foi igualmente dos primeiros participantes. Mas não foi um fundador. Encontrou o grupo já feito e o ideário definido. Salientou-se logo por apanhar em falso o Alfredo Pimenta, (‘’) e, como era um cavalo de cem moedas, investiu, todo brigão e façanhudo, aquele erudito escritor que afirmou que a ‘Presença era a sucursal literária da Renovação Democrática’. O Casais e todos os outros presencistas levaram-se dos diabos. Então eles, tiveram tanto trabalho em levantar uma igrejinha livre de contactos políticos, só literária, só estética, só nefelibata, e vinha aquele espadaúdo mata moiros acusar a Presença do feio pecado de fazer política ou de ser política, e política da oposição, do reviralho, dos que pensavam em termos de futuro.

Vendo friamente as coisas, no são, Casais não tinha razão, pois as aparências favoreciam o Pimenta. (‘’) A Presença não era realmente o órgão literário da Renovação, mas aquele presencista não era o único que na Revista sustentava o ideário da Renovação. Esta folha agrupava nada menos de oito renovadores: o Marinho, o Luís Guedes, o Lobo Vilela, o Casais, o Magalhães, o Delfim, o Carlos Queiroz, o Rodrigues de Freitas, senão mais. Isto atenua e explica o erro do crítico. Simplesmente, o Casais era o Director e os outros não eram e tinha, como aliás os restantes maiorais, um conceito errado da unidade indivisível do homem, que não é formado por compartimentos estanques, mas por uma solidária conjunção de tecidos intelectuais e orgânicos. O homo intellectualis não pode ser espiritualmente um e politicamente outro. Separar a literatura e a Arte da Política é dividir a alma humana ao meio, e isso não é possível. Por isso, as teorias políticas da Presença eram fundamentalmente erradas. Quando Eduardo Lourenço veio, com poderosa sagacidade, atribuir à Presença o viso de contra revolucionária e não de 2.ª Revolução Modernista, como se proclamava, enaltecendo-se com a colaboração de Fernando Pessoa e Almada Negreiros, que, esses sim, desencadearam a do Orpheu, que foi a única, no esteio de Marinetti e de todos os ismos seus contemporâneos, mal sabia que tinha criado um dos nós vitais da vida literária contemporânea (PETRUS, 1982: 9).

A extensão do excerto justifica-se pelo que permitirá comentar, em conclusão. Destaco os aspectos fundamentais desta polémica contextualização crítica, que são também os que mais significativamente merecem ser retidos no confronto com a actividade editorial de Petrus, iluminando as suas escolhas, a sua agenda muito evidente e os seus alvos recorrentes:

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1. O peso de Adolfo Casais Monteiro, o mais saliente alvo de Petrus, a par de Gaspar Simões, é tendencialmente desvalorizado ou justificado por equívocos de leitura e manifestações de oportunismo de que resulta um perfil de oportunista pouco adequado a uma compreensão adequada de Fernando Pessoa e do seu multifacetado projecto intelectual. Com efeito, Casais Monteiro, e Carlos Queiroz, são considerados, numa outra passagem do texto, como os únicos membros da Renovação Democrática com contacto privilegiado com Pessoa, mas também os mais incapazes para perceber a sua singularidade marginal: “de entre os Renovadores e o Poeta só Adolfo Casais Monteiro ou Carlos Queiroz mantêm e conhecem o Ignorado pensador, cidadão dos cafés, escritor inédito, insubmisso e original, que apontava a outros ideias (sic) que eles repudiavam, e se desentranhava em política das raízes do cabelo às unhas dos pés” (PETRUS, 1982: 16).

2. Essa crítica a Casais Monteiro é, ao mesmo tempo, um ponto de partida para uma mais abrangente crítica à Presença, entre a evidência de que esta foi muito mais do que os seus mais lembrados doutrinadores quiseram deixar como memória colectiva e a convicção de que esse presencismo reduzido aos preconceitos de alguns não tinha nada que ver com Fernando Pessoa, o Orpheu e o Modernismo. Repare-se como, à semelhança das críticas à biografia de Gaspar Simões ou às opções editoriais da Ática, sempre relacionadas com a leitura imperfeita e lacunar de Pessoa ou com a truncagem de certas passagens representativas, o defeito maior da Presença é o de ignorar valências do pensamento pessoano incapazes de serem acomodadas e devidamente digeridas. A polémica com Alfredo Pimenta e os renovadores é, também, a polémica mais vasta que, como Petrus assinala criteriosamente, conheceu um ponto alto no célebre artigo de Eduardo Lourenço publicado em 1960 no Comércio do Porto, “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português”: a discussão sobre se os presencistas, tanto enquanto criadores como enquanto doutrinários, deveriam ser considerados continuadores da manifestação modernista em Portugal ou um fenómeno de natureza radicalmente oposta e, no essencial, muito mais passadista.

3. Finalmente, e é esse o ponto que mais contribui para o que tenho considerado neste texto, o contraste converge para um domínio muito particular, o da associação entre a criação artística e a expressão de perspectivas do autor acerca de problemas políticos, ou seja, o problema do escopo a atribuir ao papel do artista em sociedade e, também, o da inteireza ou não da voz interventiva do autor. É de algum modo irónico que Petrus pareça inverter algumas das incompreensões dos presencistas face a Pessoa, nomeadamente a questão da sinceridade poética, condenando-os por terem desenvolvido uma ideologia muito menos apta à expressão sincera do artista, na medida em que desvaloriza algumas das suas faculdades e pensamentos e tende a propor uma fractura permanente entre diferentes núcleos dessa sinceridade, que não precisam necessariamente de ser apartados. Se a incompreensão presencista se situava no problema da heteronímia, e da difícil aceitação de um criador que se exprimia através de vozes

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poéticas distintas e por vezes contraditórias, considerando contudo ser sincero em todas elas, neste caso o procedimento doutrinário de que davam testemunho produziria, segundo Petrus, uma espécie de heteronimização defeituosa e ao sabor de conveniências prévias. Ao contrário de Pessoa, capaz de conjugar diferentes “tecidos intelectuais e orgânicos” num universo poético e interventivo situado entre uma “unidade indivisível” e uma convergência profunda entre compartimentos tornados vasos comunicantes, a Presença parecia querer isolar o indivíduo de si mesmo, separando uma visão do intelectual herdada do nefelibatismo finissecular e um empenhamento político exercido numa esfera sempre deslocada do plano da criação.

Como penso ter deixado claro ao longo deste texto, no momento em que a crítica pessoana começa a ser sujeita a escrutínio e a exercícios relevantes de arrumação historiográfica, importa que esse trabalho não seja marcado pela incompletude e pela ignorância relativamente a alguns nomes que, apesar de menos lembrados por se situarem nas margens dos pontos de vista dominantes, contribuíram para revelar Pessoa e abordá-lo em toda a sua inteireza, sem preconceitos dogmáticos e em alternativa a correntes com inevitáveis limites e cuja erosão se deu ainda em vida dos seus protagonistas. Uma abordagem a Petrus deverá, de acordo com o que se sugeriu no final do texto, passar também por uma mais ampla e informada atenção ao seu percurso intelectual e ao palco no qual se procurou inscrever, em contacto com os mais importantes vultos da intelectualidade portuguesa do seu tempo mas em divergência crítica com a grande maioria. Como Pessoa, de resto. Precisamente por isso, tal como Pessoa, o seu percurso se foi fazendo da coragem de procedimentos editoriais transgressivos e do relativo esquecimento ou desvalorização que sofreram, num primeiro momento para o poeta, com uma mais evidente e porventura inevitável expressão para o seu editor e crítico. Nada disto significa, evidentemente, que Petrus deva ser lido como um apto herdeiro das teses programáticas pessoanas, até porque seria fugir em parte ao conteúdo do que a obra de Pessoa revelou, em parte sem que o próprio Pedro Veiga conseguisse aceder-lhe. Mas a agudeza crítica de Petrus conseguiu, com notável acuidade, proceder a aproximações com fundamento, que devem ser conhecidas, para que o Pessoa das décadas de 1950 e de 1960 não seja apenas o de Gaspar Simões, Casais Monteiro, Prado Coelho ou Jorge de Sena. Porque as vidas que devem em parte a sua iluminação profunda foram muitas mais do que já se sabe, e por vias muito menos validadas pelas instâncias académicas convencionais.

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BibliografiaLOURENÇO, Eduardo. Pessoa Revisitado. Lisboa: Gradiva, 2000.

MORAIS, Ricardo Belo de. “Petrus, o Mais Excêntrico dos Pessoanos”. Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 4 (Primavera 2014): pp. 88-102. https://doi.org/10.7301/Z0N0150D

NÃO ASSINADO. “Fernando Pessoa”. Presença, vol. 2, n.º 47 (Dezembro de 1935): 15. https://digitalis-dsp.uc.pt/bg4/UCBG-RP-1-5-s1_3/UCBG-RP-1-5-s1_3_master/UCBG-RP-1-5-s1/UCBG-RP-1-5-s1_item1/P611.html

PESSOA, Fernando. Apologia do Paganismo. Edição de Petrus. Porto: Editorial Cultura, 1957.

. Exórdio em Prol da Filantropia e da Educação Física. Edição de Petrus. Porto: Editorial Cultura, 1956.

. Ensaios Políticos: ideias para a reforma da política portuguesa. Edição de Petrus. Porto: Centro Editorial Português, 1954.

. Hyram: Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas. Edição de Petrus. Porto: Centro Editorial Português, 1953.

. Crónicas Intemporais. Edição de Petrus. Porto: Centro Editorial Português. 1952.

. Sociologia do Comércio. Edição de Petrus. Porto: Centro Editorial Português, 1951.

PETRUS. Afinidades políticas, religiosas e filosóficas entre Fernando Pessoa e a Renovação Democrática. Porto: Centro Editorial Português, 1982.

SEPÚLVEDA, Pedro. “Introdução”. Revista Estranhar Pessoa, n.º 6 (Abril 2019): pp. 6-8 http://estranharpessoa.com/revista

SOUSA, Rui. “Uma leitura da recepção de Fernando Pessoa: Petrus na Colecção de António Júlia Miranda”. Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 16 (Outono 2019): pp. 316-368 10.26300/zhc4-kh43

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TERESA MONTEIRO44

Biblioteca Particular de Fernando Pessoa – últimas aquisições

44 - Casa Fernando Pessoa

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Mais um ano nos encontramos para falar sobre a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. Saber que novidades 2019 trouxe.

No ano passado, realizaram-se quatro leilões com peças da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa tendo resultado na aquisição de catorze novos títulos que estão agora à guarda da Casa Fernando Pessoa (CFP).

Dois leilões presenciais pela José F. Vicente, Leilões em 19 de Junho e em 5 de Dezembro e dois leilões em linha, pela BestNet Leilões em 7 de Setembro e 10 de Outubro.

Para os bens classificados, as aquisições foram feitas pela Câmara Municipal de Lisboa, através do Gabinete da Senhora Vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, com a legislação referente a esta situação: Lei n.º 107/2001 que no seu artigo 37.º enumera e hierarquiza as entidades que podem exercer Direito de Preferência. A saber, o Estado, as Regiões Autónomas e os Municípios na sua área de influência; e o Decreto n.º 21/2009 que declara o espólio de Fernando Pessoa como Tesouro Nacional e que no seu artigo 1.º lista os bens classificados e as suas características, sendo de reter a marca autógrafa.

Sob este perfil foram adquiridas onze peças.

Para peças sem marca autógrafa e sem estarem ao abrigo do Direito de Preferência a EGEAC, E.M. – Empresa de Gestão Equipamentos e Animação Cultural que tutela a CFP, adquiriu três peças. É o caso de dois títulos que contêm dedicatórias a Pessoa e de um opúsculo, apresentados adiante.

Gostaria, em primeiro lugar, de me focar no critério, princípio e metodologia seguidos. O critério base foi a não-dispersão da colecção, aliada ao princípio de não nos revermos em mercado especulativo. Quer isto dizer que a nossa intenção era adquirir o maior número possível de peças, mas por um valor que considerássemos justo. E esta questão liga-nos à metodologia seguida.

Havendo a notícia de um leilão, a primeira coisa que fazemos é a consulta do seu catálogo. Ver que peças pertencem à Biblioteca Particular de Fernando Pessoa – a realçar que o catálogo que constitui esta colecção é formado por peças que estão à guarda da Casa, via compra da Câmara Municipal de Lisboa, em 1989, via doação de 84 títulos em 2015 por parte dos herdeiros e via doação de particular, de um título, também em 2015. É, portanto, necessário ver se as obras já estão no catálogo, se são inéditos ou se são peças cuja localização se encontra desconhecida. Em seguida, urge perceber que peças são estas, qual a sua importância. Para tal, pedimos o parecer do investigador António Cardiello. Pedimos também o parecer de Pedro de Azevedo, leiloeiro, livreiro com quem temos trabalhado ao longo dos últimos anos e que nos balizou os valores médios razoáveis para cada obra considerando proveniência, relevância no conjunto e raridade, num mercado que ultimamente tem sofrido grandes oscilações.

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É ainda de destacar o contacto e acompanhamento institucional por parte da Biblioteca Nacional de Portugal.

Num outro ângulo, cabe ainda assinalar o trabalho que a Casa tem realizado com os títulos que já estão há mais tempo connosco e que tem que ver com a questão da divulgação/programação. Não basta adquirir estas obras: há que divulgá-las e traçar programação nesse sentido. A destacar o ciclo Aulas de Poesia Mundial que entra agora no seu terceiro ano, em que uma vez por mês é escolhido um título ou um autor da Biblioteca Particular para ser trabalhado por um especialista. Nestas aulas é exposto o título ou os títulos a que a aula se refere, acautelando questões de conservação e preservação e desde que o seu estado físico assim o permita.

Também gostaria de deixar a curiosidade de que a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa participou em sete exposições em Portugal e no estrangeiro, entre 2014 e 2019, e foi objecto do filme O Passageiro, de Luís Alves de Matos.

Passo agora à segunda parte desta intervenção com a apresentação das catorze peças adquiridas.

1. ATHENAAthena: revista de arte / propr. Sociedade Editora Athena; dir. Fernando Pessoa e Ruy Vaz. – V. 1, n.º 1 (Out. 1924) – v. 1, n.º 5 (Fev. 1925). – Lisboa: Imprensa Libanio da Silva, 1924-1925. – v. ; 25 cm. – Contém anotações manuscritas. – Antiga cota 0-28 MN. – Exemplar encadernado contendo todos os números da revista. – Mensal

2. BACON VS. SHAKSPERE [i. é SHAKESPEARE]Bacon vs. Shakspere [i. é Shakespeare]: noteworthy opinions, pro and con. / compiled and edited by Edwin Reed. – Boston: Coburn Publishing Co, 1905. – 76 p. – Contém assinatura de posse de Fernando Pessoa. – Contém traços verticais. – Encadernado

3. CHESTERTON, G. K., 1874-1936George Bernard Shaw / Gilbert K. Chesterton. – London: John Lane This Bodley Head; New York: John Lane Co : Toronto ; Bell & Cockburn, 1914. – Contém assinatura de posse de Fernando Pessoa datada

4. FRITH, Henry, 1840- How to read Character in Features, Forms and Faces: a guide to the general outlines of physiognomy / by Henry Frith. – London: Ward, Lock & Co., 1891. – iv, 112, [10] p. – Contém assinatura de posse de Fernando Pessoa. – Contém anotações manuscritas. – Contém sublinhados. – Contém traços verticais. – Cota antiga 1-166 MN. – Encadernado

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5. GIERKE, Otto, 1841-1921Political theories of the middle age / Otto Gierke; trad. with an introd. by Frederic William Maitland. – Cambridge : University Press, 1913. – XLV, 197 p. – Contém assinatura de posse de Fernando Pessoa. – Antiga cota 3-84MN. – Encadernado

6. HOLLANDER, Bernard, 1864-1934Scientific phrenology: being a practical mental science and guide to human character : an illustrated text-book / Bernard Hollander. – London: Grant Richards, 1902. – xiv, 307, [1] p. – : il. – Contém assinatura de posse datada de Fernando Pessoa, 13 de Junho de 1905. – Contém anotações manuscritas. – Contém sublinhados. – Contém traços verticais. – Encadernado

7. HUGO, Victor, 1802-1885Les chansons des rues et des bois / Victor Hugo. – Paris: J. Hetzel, [s.d.]. – (Oeuvres complètes de Victor Hugo. Poésie). – Antiga cota 8-622MN. – Encadernado

8. JUNQUEIRO, Guerra, 1850-1923A morte de D. João / Guerra Junqueiro. – 8.ª edição emendada e com o retrato do autor. – Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1908. – Contém dedicatória datada de Fernando Pessoa a sua mãe. – A cota 8-287 diz respeito também a este título, mas trata-se da 7.ª edição datada de 1903, que contém assinatura de posse de Alexander Search. – Antiga cota 8-624 MN. – Encadernado

9. ORPHEUOrpheu: afina a lira. – (Madrid: Imprimerie Universel, s.d.) . – [8] p. – Antiga cota 8-638 MN. – Brochado

10. SANTA-RITA, Augusto de, 1888-1956A rosa de papel: mysterio n’um cantico : poêma dramatico em prosa e verso / Augusto de Santa-Rita. – [Porto]: Renascença Portuguesa, 1917. – 61 p. : il. ; 24 cm. – (Theatro Lyrico). – Contém dedicatória datada a Fernando Pessoa. – Antiga cota 8-650 LMR. – Brochado

11. SILVA, Ricardo Espírito Santo, 1900-1955Eduardo Malta: 24 reproduções / com um estudo crítico de Ricardo Espírito Santo Silva. – Lisboa : A. de Albuquerque, 1932. – 1 vol. (15, [1] p.) : 24 est., il. sépia ; 18 cm. – Estudo crítico em português, francês e inglês. – Contém dedicatória a Fernando Pessoa. – Antiga cota 7-13 MN. – Brochado

12. TCHEKHOFF, Anton, 1860-1904Plays: Uncle Vanya, Ivanoff, The Sea-Gull, The Swan Song / by Anton Tchekoff ; translated from the Russian, with an introduction by Marian Fell. – London: Duckworth & Co., 1915. – 233 p. – Contém assinatura de posse de Fernando Pessoa. – Contém aposto selo “The Only English library established 1855, M. Lewtas & Taboada, 138, Rua do Arsenal, 144”. – Contém sublinhados. – Contém traços verticais. – Antiga cota 8-655. – Encadernado

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13. UNAMUNO, Miguel de, 1864-1936Por Tierras de Portugal y de España / Miguel de Unamuno. – Madrid : V. Prieto, 1911. – 296, [1] p. ; 20 cm. – (Biblioteca Renacimiento). – Contém assinatura de posse. – Antiga cota 8-660MN

14. WESTCOTT, William Wynn, 1848-1925An introduction to the study of the kabalah: with eight diagrams / William Wynn Westcott. – Second edition. – London: John M. Watkins, 1926. – iv, 76 p. – Contém anotações manuscritas. – Contém sublinhados. – Contém traços verticais. – Antiga cota 8-663 MN. – Encadernado

Para agilizar esta apresentação decidimos formar grupos. O primeiro, é o grupo dos mais solicitados para exposições, significa isto que se olharmos sob o ponto de vista estrito das estatísticas das obras, que não tínhamos em nossa posse, mais solicitadas para exposições corresponde a estes três títulos: Orpheu Afina a Lira, Athena e Por Tierras de Portugal y de España de Miguel de Unamuno.

Começando pela Orpheu Afina a Lira, trata-se de um opúsculo raro. Uma sátira à revista Orpheu. É constituído por 6 páginas escritas, mais a capa.

Para melhor perceber esta peça, podemos compará-la com duas outras existentes no espólio de Fernando Pessoa à guarda na Biblioteca Nacional, BNP Esp. E3. Trata-se de dois cadernos com recortes de imprensa que Sá-Carneiro coleccionava e que depois passou a Fernando Pessoa e onde colaram dezenas de recortes de artigos que foram publicados na imprensa nacional e da Galiza sobre a revista Orpheu.

É a este panfleto que Sá-Carneiro se referia na sua carta a Pessoa datada de 23 de Agosto de 2015 em que diz “[…] Pelas coisas que me diz terem saído vejo que se falou bastante do Orfeu – muito sintomático do sucesso a venda publica – logo: como «negócio» – dum panfleto sobre o caso. Embora sem interesse gostava de o ver. Decerto você o arquivou no entretanto […]”.

Excerto da carta de Sá-Carneiro para Pessoa em 23 de Agosto de 1915 in SILVA, Manuela Parreira da, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.

Passemos agora à Athena, que é uma peça que compila todos os números da revista e está encadernada a couro.

Publicada em Lisboa, entre 1924-1925, por Fernando Pessoa e Ruy Vaz, que foram seus diretores, respetivamente nas áreas da literatura e das artes plásticas.

É a revista que lança Ricardo Reis no seu primeiro número com 20 odes, e Alberto Caeiro com O Guardador de Rebanhos e Poemas Inconjuntos nos números 4 e 5. Temos aqui também o ortónimo enquanto poeta, Ela Canta Pobre Ceifeira, e enquanto tradutor,

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de Edgar Allan Poe, por exemplo; textos de Álvaro de Campos, O que é a Metafísica?, também como exemplo. A importância desta peça é o seu denominador comum: Pessoa perfeccionista. Lançada que estava a revista, ainda assim, Pessoa continua a trabalhar sobre os textos já publicados apondo-lhes vasta marginália.

Assim, esta revista é particularmente importante pelo lançamento de dois heterónimos, Reis e Caeiro, e por mostrar Pessoa no papel de director literário. A acrescentar, o facto deste exemplar, em concreto, ser suporte de vasta marginália, como atrás referido.

Por fim, Miguel de Unamuno com o seu Tierras de Portugal y de España, que tem assinatura de posse de Pessoa e que inúmeras vezes no passado recente foi solicitado para exposições em Portugal e Espanha. Livro em que Unamuno expressa a sua análise sobre a identidade portuguesa, sobre a sua literatura e sobre algumas terras visitadas.

O grupo que se segue é o grupo dos livros oferecidos à mãe.

O primeiro Les Chansons des Rues et des Bois, da autoria de Victor Hugo, foi uma oferta à mãe no aniversário de 1911. Trata-se de uma compilação poética do famoso escritor francês.

Existem seis títulos deste autor na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa.

O segundo é também de um autor muito representado na Biblioteca Particular, Guerra Junqueiro, com onze títulos. É uma oferta à mãe no aniversário de 1909 de um livro editado em 1908. A mãe não o terá lido, uma vez que contém páginas por abrir.

A destacar que Pessoa já tinha na sua biblioteca a edição de 1903 desta obra, curiosamente com a assinatura de posse de Alexander Search e com vastos sublinhados e traços verticais.

Seguem-se os livros de frenologia e fisionomia. Scientific phrenology: being a practical mental science and guide to human character : an illustrated text-book, da autoria de Bernard Hollander, e How to read character in features, forms and Faces: a guide to the general outlines of physiognomy, da autoria de Henry Frith. Temas de que Pessoa gostava particularmente, se atendermos à existência de outros títulos sobre estes assuntos ou autores na sua colecção.

É exemplo desse interesse o facto de Scientific phrenology ter a assinatura de posse do dia em que fez 17 anos, portanto 13 de Junho de 1905. Será nesse Verão, a 20 de Agosto, que se dará o seu regresso definitivo a Lisboa.

O título How to read character in faces, features & forms, sobre fisionomia, tem duas assinaturas de Fernando Pessoa em que o acento circunflexo ainda é utilizado.

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Contém vasta marginália, particularmente no estudo sobre narizes. A ligação entre a sua forma e a informação que daí se poderia extrair sobre a personalidade psicológica do indivíduo era algo que interessava Fernando Pessoa.

Um outro grupo bastante interessante também é o grupo dos livros cuja localização se desconhece.

A equipa que fez a digitalização da Biblioteca Particular em 2008/10 listou um conjunto de 94 títulos de obras cujo paradeiro é desconhecido.

Duas obras aparecem agora em leilão. São apresentadas em seguida. A primeira encontrava-se incluída naquela listagem; a segundo encontrava-se em parte incerta.

O título Bacon versus Shakespeare é mais uma obra a juntar às quase duas dezenas já existentes no catálogo de ou sobre Shakespeare e sobre a autoria da sua obra.

Editado em 1905, sob autoria de Edwin Reed, assinado por Pessoa, contém traços verticais. Diz-nos António Cardiello que é um argumento central de um amplo leque de textos e inspiração para teorias sobre pseudonímia e heteronímia, e que revela processos de leitura muito preciosos nas passagens sobre Byron, Emerson e Apollinaire, quando estes reflectem sobre o génio de Bacon.

Já em relação a George Bernard Shaw, é um livro editado em 1914 e cuja capa se encontra à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, BNP Esp. E3.

Diz-nos também Cardiello, no seu parecer, que as notas manuscritas de Pessoa mostram o interesse pelo biografado nas suas vertentes filósofo, dramaturgo e artista.

A destacar também o próprio autor do livro, Gilbert Chesterton, por estar representado na Biblioteca Particular de Pessoa com outros títulos e temas.

Nesta apresentação, segue-se o grupo das dedicatórias.

A Rosa de Papel, de Augusto de Santa-Rita, é uma peça não só rara como também de elaboração cuidada, editada em 1917 e que revela a influência das correntes decadentista e simbolista.

Também o título Eduardo Malta, um catálogo e crítica sobre o seu trabalho, tem uma dedicatória de Ricardo Espírito Santo Silva a Fernando Pessoa.

Uma das funções das dedicatórias nos livros é a de mostrar a familiaridade e relações entre os autores e os dedicados. Também nestas duas dedicatórias essa questão está presente. A palavra “admiração” utilizada em ambas iguala as dezenas de dedicatórias existentes noutros livros da Biblioteca Particular.

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Por fim, três títulos soltos, uma introdução ao estudo da cabala que faz grupo com outros cinco já existentes na colecção. An introduction to the study of the Kabalah: with eight diagrams, da autoria de William Wynn Westcott. É um bom exemplo de um livro que pertence à Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, embora não tenha assinatura de posse. Possui marcas autógrafas e outras anotações várias.

Segue-se Political theories of the middle age, de Otto Gierke, que contém assinatura de posse e, tal como é indicado no título, foca-se na análise de teorias políticas da Idade Média.

Por último, Plays: Uncle Vanya, Ivanoff, The Sea-Gull, The Swan Song, de Anton Tchekoff, é sobre literatura russa, teatro. Contém assinatura de posse e traços verticais principalmente na peça Uncle Vanya.

Apresentados que estão os 14 títulos, termina-se esta apresentação com algumas breves considerações técnicas.

Por motivo de transferência de posse das obras torna-se necessário proceder à alteração das cotas destes títulos.

Aquando da constituição do catálogo online da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, criaram-se extensões alfabéticas, MN (Manuela Nogueira) e LMR (Luís Miguel Rosa), nas cotas de livros digitalizados que se encontravam fisicamente na posse da família.

A partir do momento em que se dá a actual mudança de posse, a parte alfabética das cotas deixa de existir para os livros que passam a estar à guarda da Casa Fernando Pessoa.

Tomando como exemplo a revista Athena, a sua cota era 0-28MN, pois estava na posse de Manuela Nogueira, sobrinha e herdeiro do escritor. Apesar de já estar digitalizada e incluída no catálogo da CFP, passa agora para a cota 0-28.

Mantivemos as duas cotas para efeitos de informação e pesquisa – dados que estão devidamente assinalados no corpo dos registos de cada título.

Finaliza-se esta apresentação com o exemplo de um registo em que as alterações estão assinaladas a encarnado.

Resta dizer ainda que temos estado a afinar as imprecisões existentes no nosso catálogo, a introduzir novas informações, como a indicação de existência de assinatura de posse de Fernando Pessoa, marginália ou dedicatórias, por exemplo, e também a alterar a classe CDU (Classificação Décimal Universal) sempre que se justifique.

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Introduzimos ainda informação sobre a forma de entrada das obras, nomeadamente em relação aos leilões de 2019.

1-176 Cota 8-663 MN Cota antiga WESTCOTT, William Wynn, 1848-1925 An introduction to the study of the kabalah : with eight diagrams / William Wynn Westcott. – Second edition. – London : John M. Watkins, 1926. – iv, 76 p. – Contém anotações manuscritas. – Contém sublinhados. – Contém traços verticais. – Antiga cota 8-663 MN. - Encadernado.

Exemplar adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa no leilão de 18 e 19 de Junho de 2019 promovido pela Leiloeira José F. Vicente.

Todas estas ajudas e informações estarão disponíveis no sítio da Casa Fernando Pessoa.

Qualquer dúvida ou informação, estamos ao dispor.

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ANTÓNIO FEIJÓ45

Homenagem a George Monteiro

45 - Universidade de Lisboa

NOTA DE APRESENTAÇÃOGeorge Monteiro (1932 - 2019), professor de Estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade Brown nos EUA, foi um importante estudioso e especialista de Pessoa. Lembraremos nesta sessão o homem que foi e o trabalho que fez.

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Notas biográficas

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ANDREA SANCHÉZ Licenciada em Literatura Hispânica com ênfase em edição e jornalismo. Trabalha na criação de espólios eletrônicos e gestão de conteúdos digitais para redes sociais. Foi bolseira do Programa Elipsis para editores do British Council e do programa em Língua e Cultura Portuguesa do Instituto Camões na Universidade Estadual Londrina. Atualmente é mestranda em Ciências da Documentação e Informação na Universidade de Lisboa e traduz autores portugueses e brasileiros para o espanhol.

ANTONIO CARDIELLOMODERADOR

É investigador bolseiro da FCT com um projecto de pós-doutoramento no Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa onde é membro integrado do grupo de pesquisa “Questões da Subjectividade: Filosofia e Literatura”. Co-director do projecto de digitalização da biblioteca particular de Fernando Pessoa (online desde 2010), editou Una Stirpe incognita (EDB Edizioni, 2016) e co-editou Nietzsche e Pessoa. Ensaios (Tinta-da-china, 2016), Philosophy in the Condition of Modernism (Palgrave Macmillan, 2018) e a primeira edição crítica de Obra Completa de Álvaro de Campos (Tinta- da- -China, 2014).

ANTÓNIO FEIJÓ Professor da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa. É actualmente Pró-reitor da Universidade. Autor de livros sobre autores modernistas (Wyndham Lewis, Fernando Pessoa), de dramaturgias para cena e de traduções (Shakespeare, Wilde, Ashbery).

ANA MARQUES Doutorada em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo defendido a tese Literatura e Cibernética: para uma poética dos processos generativos automáticos, dedicada ao estudo dos processos de digitalização e automação da escrita em contexto literário, sob a orientação científica de Manuel Portela. Actualmente trabalha sobre a receção crítica do Livro do Desassossego, no âmbito do Arquivo LdoD: Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego, do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra.

MANUEL PORTELA Dirige o Programa de Doutoramento FCT em Materialidades da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É diretor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas e investigador do Centro de Literatura Portuguesa. É autor de Scripting Reading Motions: The Codex and the Computer as Self-Reflexive Machines (MIT Press, 2013) e coordena, com António Rito Silva, o Arquivo LdoD: Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego (CLP, 2017). É cofundador e atual diretor da revista MATLIT: Materialidades da Literatura.

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DIEGO GIMÉNEZ Doutorado em Literatura e Pensamento na Universidade de Barcelona com uma tese sobre o Livro do Desassossego. Licenciado em Filosofia e Mestre em Estudos Literários na mesma universidade. Trabalhou na redacção de LaVanguardia.com e co-fundou a Revista de Letras. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e investigador no projecto financiado pela FCT «Nenhum Problema tem Solução: Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego» da Universidade de Coimbra. Actualmente é pesquisador de pós-doutoramento no Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra com uma bolsa da FCT.

KAREN PELLEGRINI Doutoranda pelo Programa de Estudos Pósgraduados em Literatura e Crítica Literária – PUC São Paulo e bolseira CAPES. Atualmente investigadora pela Universidade Nova de Lisboa com bolsa CAPES de doutoramentosanduíche. Concluiu o mestrado pelo Programa de Literatura e Crítica Literária com a Dissertação; Fernando Pessoa e o Desassossego em: Na Floresta do Alheamento. Participa do Grupo de Estudos de Poética (PUC-SP/ CNPQ).

LUÍS ANDRADE Luís Andrade dirige o portal Revistas de Ideias e Cultura, é doutor em História e Teoria das Ideias, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (aposentado), coordenador do Grupo de Investigação Pensamento Moderno e Contemporâneo do CHAM – Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, bem como do Seminário Livre de História das Ideias. A sua investigação tem-se dirigido para o pensamento político contemporâneo e para a história intelectual do século XX.

LUIZ FAGUNDES DUARTE É professor da Universidade Nova de Lisboa. Filólogo, tem-se dedicado ao estudo de manuscritos autógrafos de diversos escritores portugueses e à edição crítica de obras de Antero de Quental (Poesia Completa, 3 vols., 2016-2018), Eça de Queiroz (A Capital!, 1992), Fernando Pessoa (Poemas de Ricardo Reis, 1994, 2015; Mensagem e Poemas Publicados em Vida, 2018), e Vitorino Nemésio (Poesia, 4 vols., 2006-2009). De entre a sua obra ensaística, destacam-se os livros A Fábrica dos Textos. Ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz (1993), Retratos Imperfeitos (2017), Do caos redivivo. Ensaios de crítica textual sobre Fernando Pessoa (2018) e Os Palácios da Memória. Ensaios de crítica textual (2019).

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NUNO AMADO Professor na Universidade Católica Portuguesa. Completou o seu doutoramento no Programa em Teoria da Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com uma tese intitulada Ricardo Reis (1887-1936). Em 2008, obteve no mesmo programa o grau de Mestre com uma dissertação sobre Franz Kafka. É investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e colabora regularmente com a equipa do projecto Estranhar Pessoa.

PATRÍCIA SOARES MARTINS MODERADORA

É professora auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestre em Literatura Francesa (1984) e Doutorada em Teoria da Literatura, pela mesma Universidade (1999). Publicou em 2003 a tese de doutoramento com o título Blanchot: a Possibilidade da Literatura (Edições Vendaval). Coordenou entre 2010 e 2017 os três números da publicação Central de Poesia, consagrada a Fernando Pessoa e à recepção pessoana. Entre as suas publicações mais recentes contam-se “António Ferro e Colette: um encontro na modernidade” (Colóquio Letras, nº 180, 2012), “O Texto-Molde: Escrita-Leitura de L’Arrêt de Mort de Maurice Blanchot” (in AAVV, Morte e Espectralidade nas Artes e na Literatura, Edições Húmus, 2019), “Al Berto: uma poética da metamorfose” (in AAVV, Al Berto: “O que vejo já não se pode cantar”, não (edições), 2019).

PEDRO SEPÚLVEDA Professor Auxiliar no Departamento de Estudos Portugueses da NOVA FCSH e investigador do IELT, da mesma faculdade. O seu trabalho centra-se na modernidade literária e filosófica, com acento particular na obra de Fernando Pessoa. Coordena o projeto de investigação Estranhar Pessoa e a edição digital dos projetos editoriais e publicações em vida de Pessoa (pessoadigital.pt), encontrando-se presentemente a preparar a edição dos ensaios de crítica pessoana de Eduardo Lourenço, em dois volumes, no âmbito da sua Obra Completa publicada pela Gulbenkian.

RITA PATRÍCIO MODERADORA

Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou, em 2016, Apontamentos. Pessoa, Nemésio, Drummond; e, em 2012, Episódios. Da teorização estética em Fernando Pessoa. É autora de vários ensaios, em volumes colectivos e em revistas especializadas, decorrentes dos seus estudos sobre literatura portuguesa moderna e contemporânea, nomeadamente sobre Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio. Integra o Projecto Estranhar Pessoa.

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RUI SOUSA Nasceu em 1985. Concluiu recentemente Doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura pela FLUL, com uma tese dedicada ao conceito de Libertino em Luiz Pacheco. Investigador (CLEPUL). Participou na antologia 1915 – O Ano do Orpheu e em números recentes da Pessoa Plural, tendo também publicado o ebook Os Bastidores de Orpheu (1911) e explorado a presença do livre-pensamento e das relações entre Pessoa e Francisco Sanches. Da investigação desenvolvida no mestrado resultou o livro A Presença do Abjecto no Surrealismo Português (2016).

TERESA MONTEIRO Bibliotecária na Casa Fernando Pessoa desde 2010. Desenvolve trabalho de pesquisa, aquisições, tratamento técnico, referência, gestão de colecções e sua divulgação. Tem especial foco nos trabalhos e dinâmicas que envolvem colecções especiais e patrimoniais, em particular a Colecção José Blanco e a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. Tem articulado a presença da Casa Fernando Pessoa no RNOD e EUROPEANA.

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