b sousa santos - introdução a uma ciência pós-moderna

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Page 1: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

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a todo aquele que tem seraacute dado e dado em abundacircncia ao passo que ao que natildeo tem ainda o que tem lhe seraacute tiradoraquo Mt XXV)9) A situaccedilo dos cientistas nos laboratoacuterios das induacutestrias tomou-se pafticularr~nte penosa dadas as pressotildees no sentido d~entabilishydade industn~da investigaccedilatildeo Em vez do laquocomunismogt de Merton a norma passOlgt a ser o segredo (seguido da patente) e em geral a comunicaccedilatildeo enlr os cientistas tomou-se cada aacute mais difiacutecil em consequecircncia da e~plosatildeo da produccedilatildeo Da G6municaccedilatildeo formal passou-se agrave comuni6~ccedilatildeo informal no seip dos pequenos grupos de cientistas funcionanqo como invisibe colleges A investigaccedilatildeo capital-intensiva tornoul~ossiacutevel yIacutevre acesso ao equipamento - a caricatura da igualdadeqe oP9rtunidades

Apesar de tudo a crise dagrave~fadiccedilatildeo mertoniana natildeo teria ecloshylI dido com tanta veemecircncia Ji erttretanto a sociologia da ciecircncia

natildeo se tivesse equipado ~ novas ~ndiccedilotildees teoacutericas que lhe pershy mitissem pensar o feYOacutemeno cientiacutefic~e modo mais adequado

agraves praacuteticas cientiacutefisaacutes dominantes um mO~IDenos apologeacutetico e

mais criacutetico Ent~eu entender tais condiccedilotildeefQram fornecidas pela obra de tlttiacutehn a qual para aleacutem do impacto nasar~s tradicioshynais da reneacutexatildeo epistemoloacutegica jaacute anteriormente assinal~as criou as bases para uma sociologia criacutetica da ciecircncia capaz ela pr-oacutepria

middotIo de subverter a divisatildeo positivista entre epistemologia e sociologia i

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1 da ciecircncia -_- -- shy]

1 1 _ ~ ~ teofia central de Kuhn- exposta em especial na obra inti tillada I I I Thetructure-of Scientific Revolutions publicada pela primeira vez Ili em 1962 (1970) (12) - eacute que o conhecimento cientiacutefico natildeo cresce de

li

1 I

(12) A importacircncia de Kuhn assenta menos na sua originalidade do que no seu i 1 esforccedilo de siacutentese e na sua capacidade para dar focirclego poleacutemico a ideias jaacute presenshy

I

tes nas obras de outros autores No prefaacutecio a The Slruclure Kuhn natildeo deixa de

reconhecer agrande influecircncia que sobre ele exerceu A Koyreacute sobretudo em Les

ElUdes Galileacuteennes 3 vols Paris 1939

No seguimento da discussatildeo com os seus criacuteticos Kuhn alterou sucessivashy

mente a sua teoria em aspectos mais ou menos marginais e em meu entender nem

modo cumulativo e contiacutenuo Ao contraacuterio esse creSCImento eacute

descontiacutenuo e opera por saltos qualitativos que por sua vez natildeo se podem justificar em funccedilatildeo de criteacuterios internos de validaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico A sua justificaccedilatildeo reside em factores psicoloacutegicos e socioloacutegicos e sobretudo na comunidade cientiacutefica enquanto sistema de organizaccedilatildeo do trabalho cientiacutefico Os saltos qualitativos tecircm lugar nos periacuteodos de desenvolvimento da ciecircncia em que satildeo postos em causa e substituiacutedos os princiacutepios teorias e conceitos baacutesicos em que se funda a ciecircncia ateacute entatildeo produzida e que constituem o que Kuhn chama laquoparadigmaraquo

O desenvolvimento da ciecircncia madura processa-se assim em duas fases a fase da ciecircncia normal e a fase da ciecircncia revolucioshynaacuteria A ciecircncia normal eacute a ciecircncia dos periacuteodos em que o parashydigma eacute unanimemente aceite pela comunidade cientiacutefica O parashydigma estabelece simultaneamente o sentido do limite e o limite do sentido e consequentemente o trabalho dos cientistas dirigeshy-se agrave resoluccedilatildeo dos problemas e agrave eliminaccedilatildeo de incongruecircnciasshysegundo os esquemas conceptuais teoacutericos e metodoloacutegicos unishyversalmente aceites Estes aliaacutes presidem tanto agrave definiccedilatildeo dos proshyblemas como agrave organizaccedilatildeo das estrateacutegias de resoluccedilatildeo Os proshyblemas cientiacuteficos transformam-se em puzzles enigmas com um nuacutemero limitado de peccedilas que o cientista - qual jogador de xadrez - vai pacientemente movendo ateacute encontrar a soluccedilatildeo final Aliaacutes a soluccedilatildeo final tal como no enigma eacute conhecida antecipadamente apenas se desconhecendo os pormenores do seu conteuacutedo e do proshycesso para a atingir Deste modo o paradigma que o cientista adquishyriu durante a sua formaccedilatildeo prQfissionaI fornece-lhe as regras do jogo descreve-lhe as peccedilas com que deve jogar e indica-lhe a

sempre no melhor sentido (por exemplo as sucessivas reformulaccedilotildees do conceito de

paradigma) Por isso me reporto ao seu pensamento original e nos paraacutegrafos que se

seguem cito livremente da sua obra_ Para uma discussatildeo das alteraccedilotildees propostas po~

Kuhn (ouporeleaceites) vide W Oiederich (1974) uma visatildeo da discussatildeo de Kuhn

com os seus criacuteticos encontra-se em J Lakatos e A Musgrave (1970)

ISO 151

natureza do resultado a atingir Se o cientista falha como eacute natural

que aconteccedila nas primeiras tentativas tal facto eacute atribuiacutedo agrave sua

impreparaccedilatildeo ou ineacutepcia As regras fornecidas pelo paradigma natildeo

podem ser postas em causa pois que sem elas natildeo existiria sequer o

enigma Assim o trabalho do cientista exprime uma adesatildeo muito

profunda ao paradigma A crenccedila eacute que os problemas fundamentais

foram todos resolvidos pelo paradigma e de uma vez para sempre

Uma adesatildeo deste tipo natildeo pode ser abalada levianamente De resto

a praacutetica quotidiana da comunidade cientiacutefica reforccedila essa adesatildeo a

todo o momento A experiecircncia mostra que em quase todos os casos

os esforccedilos reiterados do cientista individualmente ou em grupo

conduzem agrave soluccedilatildeo dentro do paradigma dos problemas mais

difiacuteceis Por isso tambeacutem natildeo admira que os cientistas resistam agrave

mudanccedila do paradigma O que eles defendem nessa resistecircncia eacute afinal o seu way of life profissional

Mas o decurso da ciecircncia normal natildeo eacute feito soacute de ecircxitos pois

se tal fosse o caso natildeo eram possiacuteveis as inovaccedilotildees profundas que tecircm tido lugar ao longo do desenvolvimento cientiacutefico Ao cientista

laquonormalraquo pode suceder que o problema de que se ocupa natildeo soacute natildeo

tenha soluccedilatildeo no acircmbito das regras em vigor como tal facto natildeo possa ser imputado agrave impreparaccedilatildeo ou ineacutepcia do investigador Esta expeshyriecircncia pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas e

pode suceder aleacutem disso que por cada problema resolvido ou por

cada incongruecircncia eliminada outros surjam em maior nuacutemero e de

maior complexidade ou de impossiacutevel soluccedilatildeo O efeito cumulativo

deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de

crise Incapaz de lhe dar soluccedilatildeo o paradigma existente comeccedila a

revelar-se como a fonte uacuteltima dos problemas e das incongruecircncias

e o universo cientiacutefico que lhe corresponde converte-se a pouco e

pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado

correctamente Neste momento jaacute outro paradigma se desenha muito

provavelmente no horizonte cientiacutefico e o processo em que ele surge

e se impotildee constitui a revoluccedilatildeo cientiacutefica e a ciecircncia que se faz ao

serviccedilo deste objectivo eacute a ciecircncia revolucionaacuteria

O novo paradigma redefine os problemas e as incongruecircncias

ateacute entatildeo insoluacuteveis e daacute-lhes uma soluccedilatildeo convincente eacute nessa base

que se vai impondo agrave comunidade cientiacutefica Mas a substituiccedilatildeo do

paradigma natildeo eacute raacutepida O periacuteodo de crise revolucionaacuteria em que o

velho e o novo paradigma se defrontam e entram em concorrecircncia

pode ser bastante longo Uma vez que cada um dos paradigmas

estabelece as condiccedilotildees de cientificidade do conhecimento produshy

zido no seu acircmbito as provas cruciais aduzidas em favor do novo

paradigma podem facilmente ser consideradas ridiacuteculas triviais ou

insuficientes pelos defensores do velho paradigma O diaacutelogo entre os

cientistas tende para o monoacutelogo na proporccedilatildeo da incomensurabilishy

dade dos paradigmas em confronto Mais ou menos tempo seraacute

necessaacuterio para o novo paradjgma se impor mas uma vez imposto

ele passa a ser aceite sem discussatildeo e as geraccedilotildees futuras de cientisshytas satildeo treinadas para acreditar que o novo paradigma resolveu defishynitivamente os problemas fundamentais Da fase da ciecircncia revolushy

cionaacuteria passa-se de novo agrave fase da ciecircncia normal e portanto ao

trabalho cientiacutefico sub-paradigmaacutetico De iniacutecio existem vastas aacutereas

em que a aplicabilidade do novo paradigma eacute apenas assumida sem

ainda se ter feito qualquer prova nesse sentido Eacute para essas aacutereas que

se orienta a ciecircncia normal Posteriormente os objectos de estudo e

por conseguinte os problemas a resolver vatildeo-se tomando cada vez mais especiacuteficos e complexos

Este processo de desenvolvimento eacute especiacutefico da ciecircncia madura

ou paradigmaacutetica Kuhn distingue desta ciecircncia a ciecircncia preacute-parashy

digmaacutetica como por exemplo o conjunto das ciecircncias sociais Mas

esta fase de preacute-paradigmatismo tambeacutem se verifica na geacutenese das

novas disciplinas cientiacuteficas no domiacutenio das ciecircncias fiacutesicas e natushy

rais com excepccedilatildeo daquelas que se constituem a partir da combishy

naccedilatildeo de teorias de vaacuterias ciecircncias paradigmaacuteticas como eacute o caso da

bioquiacutemica Esta fase eacute caracterizada como a denominaccedilatildeo indica

pela ausecircncia de um paradigma Isto significa que natildeo existe um

conjunto teoacuterico conceptual e metodoloacutegico baacutesico universalmente

aceite Deste modo cada cientista ou cada escola tem de comeccedilar a

153

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partir dos fundamentos A escolha dos fenoacutemenos observados e dos meacutetodos utilizados eacute bastante livre e eacute por isso miacutenima a comparashybilidade das investigmiddotaccediloes Esta fase eacute ultrapagravessada no momento em que surge uma teoria baacutesica que resolve a maioria dos problemas insoluacuteveis para as diferentes correntes ou escolas como foi por exemplo a teoria de Franklin no domiacutenio da electricidade A discishyplina entra na fase paradigmaacutetica e a partir daiacute o seu desenvolv imento

processa-se do modo acima referido O desafio de Kuhn agrave filosofia loacutegico-positivista da ciecircncia reside

em que por um lado o desenvolvimento da ciecircncia natildeo eacute cumulativo e por outro lado a escolha entre paradigmas alternativos natildeo pode ser fundamentada nas condiccedilotildees teoacutericas ele cientificidade uma vez que elas proacuteprias entram em processo de ruptura na fase revolucionaacuteria Deixa de haver criteacuterios universalmente aceites quer para a suficiecircnshycia da prova quer para a adequaccedilatildeo das conclusotildees Estaacute tambeacutem preshyeludido o r~curso aos criteacuterios mais gerais elaborados para a selecccedilatildeo da teoria laquoverdadeiraraquo como sejam a exactidatildeo a simplicidade a fershytilidade a consistecircncia loacutegica etc uma vez que cientistas diferenshytes aplicam diferentemente esses criteacuterios em momentos e situaccedilotildees diferentes Para explicar as razotildees de opccedilotildees cientiacuteficas fundamentais eacute preciso sair do ciacuterculo das condiccedilotildees teoacutericas e dos mecanismos internos de validaccedilatildeo e procuraacute-las num vasto alfobre de factores

socioloacutegicos e psicoloacutegicos O processo de imposiccedilatildeo de um novo paradigma eacute um processo de negociaccedilatildeo entre os diferentes grupos de cientistas Eacute necessaacuterio estudar as relaccedilotildees dentro dos grupos e entre os grupos sobretudo as relaccedilotildees de autoridade (cientiacutefica e outra) e de dependecircncia Eacutenecessaacuterio tambeacutem estudar acomunidade cientiacutefica em que se integram esses diferentes grupos o processo de formaccedilatildeo profissional dos cientistas o treinamento a socializaccedilatildeo no seio da profissatildeo a organizaccedilatildeo do trabalho cientiacutefico etc Nisto consiste a

base socioloacutegica da teoria de Kuhn Eacute dela que parto para elaborar uma alternativa teoacuterica a Merton

natildeo sem antes lhe formular duas criacuteticas aliaacutes evidentes em face do que ficou dito atraacutes Em primeiro lugar Kuhn assume o caraacutecter preacuteshy

-paradigmaacutetico das ciecircncias sociais e logo o seu atraso em relaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais Pelas razotildees que apontei acima a superaccedilatildeo da crise de degenerescecircncia do paradigma da ciecircncia modema pressupotildee uma outra conceptualizaccedilatildeo antagoacutenica desta das relaccedilotildees entre ciecircncias naturais e ciecircncias sociais Em segundo lugar Kuhn submete a concepccedilatildeo positivista da ciecircncia a uma criacutetica radical ao fazer laquodescerraquo o estatuto da invenccedilatildeo validaccedilatildeo e refutaccedilatildeo das teorias

cientiacuteficas agraves vicissitudes da organizaccedilatildeo do conflito e do consenso no seio da comunidade cientiacutefica mas faacute-lo de modo a natildeo problematizar a existecircncia desta no seio da sociedade global Ainda que faccedila refeshyrecircncias dispersas agrave relaccedilatildeo complexa entre a comunidade cieritiacutefica e a sociedade em que se insere natildeo lhe daacute grande importacircncia nem aponta pistas para o seu tratamento sistemaacutetico

Do meu ponto de vista essa relaccedilatildeo eacute central por muitas razotildees que tecircm a ver com as condiccedilotildees sociais da dupla ruptura epistemoshyloacutegica e tambeacutem com o facto de a comunidade cientiacutefica ser hoje atravessada por uma tensatildeo polarizada entre nacionalismo e intershynacionalismo que se natildeo pode esclarecer sem situar geopoliticashymente a produccedilatildeo e a distribuiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Para isso eacute necessaacuterio conhecer as relaccedilotildees que intercedem entre as vaacuterias sociedades nacionais e as hierarquias que entre elas se estabelecem Este tema tem um interesse particular para as sociedades dependenshytes como Portugal Dentre os fundadores da sociologia do conhecishymento Marx eacute sem duacutevida o que mais se preocupa com a constishytuiccedilatildeo social do saber procurando explicaacute-la agrave luz das relaccedilotildees soshy

ciais de produccedilatildeo dominantes numa dada formaccedilatildeo social Por isso me parece justificar-se e ser possiacutevel uma articulaccedilatildeo entre o pensashymento de Kuhn e o pensamento de Marx com vista agrave constituiccedilatildeo de uma sociologia criacutetica da ciecircncia

Kuhn eacute pois um ponto de partida mas natildeo restam duacutevidas de que a investigaccedilatildeo propiciada pela sua teoria jaacute permitiu esclarecer uma

seacuterie de questotildees importarites que natildeo tinham soluccedilatildeo satisfatoacuteria no acircmbito do paradigma loacutegico-empiriacutestico-mertoniano por que razatildeo se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais

155

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I O papel lcntral da lomullidade cientiacutefica adveacutemmiddotmiddotlhe de ser itwtacircnda ele mediuccedilUo cntre o conhecimento cientiacutelico e a sociedade no sculmlo e lia sua tripla identidade socio-econoacutemicajuriacutedilo-poliacuteshyIka e iltkolotildegkocultural I~ nesta perspectiva er-teriori zante que deve

~cr eSludada 1estrutura interna da comunidade cientiacutefica

2 O poder que a ciecircncia exerce na sociedade eacute o produto dialeacutecshyiacuteico da rdaccedill10entre o poder que a iociedade exerce sobre aconlunidade

cientiacutefic c o poder que se exerce no seio desta

3 E1lI ctloa rIS~ do desenvolvimento da ciecircncia ou seja mesmo foru dos periacuteodos uetransiccedilatildeo entre paradigmas cientiacuteficos existem alwrnativa~ le(lIica ~ isto eacute alternativas enlre teorias rivais (e natildeo apcnafi ccedilnlre apIi4uccedil(ies rivais lIa mesma teoria) algumas das quais se impocircem sem que lal se possa atribuir a criteacuterio~ ele suficiecircncia de prova As conlradilfotildees de sobrevivecircncia das teorias meacutetodos e (onmiddotmiddot ~ ccedileilos suo estabclcddos pelo eambiente socialraquo em que a ciecircncia se i desenvolve cm articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees teoacutericas internas

4 Em ctlda momento histocircrIacutelo a ciecircncia tem lima estrutura pniacute pria que lhe nuumlo permite integrar quaisquer objectivos sodais (k qualquccedilr forma Essa estrutura eacute a medida da autollornia relativa da ciecircncia nos termos da qual a ciecircncia regula o seu desenvolvill1

(1I10

ltlinda qlll~ liatildeo pu~sa determinaacute-lo O trabalho da estrutura interna llil ciecircllcia COf j C numa operaccedilatildeo de t1ltragem -~- conversatildeo 11~t I middotmiddot ~ dom _ opcwccediliio que consiste na transformaccedilatildeo do objectivll snd LI middott~lt~A~~ t r~i-

em objectivo teoacuterico Nas actuais condiccediluumles de produccedilatildeo da ci C lId i ~ gt moderna o ()hj~ctivo f-ioda tpz consigo uma fOya polflica ql H (~ middot ~~~tAf~ estrutura d eutiacutefica tfm de converter em energia produtiva da imiddotmiddot Ild ll i middot~i middotrmiddot~y~ -tl

~middot~~middot~ middotimiddot~~middot

) Sendo enIO que a ciecircncia (~ um dos poderesmiddotmiddotsaberes Lf l l d~~imiddot~middotgtik 111111 ill Ik lo particularmcnte importante analisar as Sl li U 1Itl~i j xf ltI I 111 k I pri v i t1 ~ ildo 11 ~ () l iedmlc contemporlnca (t Pliltllmiddot bullbull I ~~~gt bull~ Jj bull I I 1 I l il11 iacute i l de j l lIIIplkada sohre ti que lIiI rl(ft(lfH~ 1t)D~F IIgt 11 11 1 1 d I I I qll 1111 1110 a ~ lI id(k ci vil I ld~~ II tJ iacutefUacuteeYf~iltmiddot ~~i _ ~ ~ I

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sodedade civil eacute superada e substituiacuteda por outras configuraccedilotildees conceptuais mais complexas Mas o problema subsiste enquanto indagaccedilatildeo sobre o acircmbito e a eficaacutecia da conversuo reguladora de uma dada disciplina cientiacutefica num dado momento histoacuterico

6 A conversatildeo reguladora corresponde no plano socioloacutegico agrave primeira ruptura epistemoloacutegica que por razotildees paralelas varia ele acircmbito e de eficaacutecia Porque o objecto cmpiacuterko que a primeiru ruptura transforma em objecto teoacuterico eacute sempre um objectivo soCial e poliacutetico esta deacutemarc7e epistemoloacutegica eacute o modo (mais ou menos) especiacutefico e autoacutenomo de a ciecircncia viver a sua dependecircncia em relashyccedilatildeo 11s forccedilas sociais que determinam o ritmo e o sentido elo seu descnvolvimento

7 Numa fase de crise paradigmaacutetica da ciecircncia a conversatildeo reguladora e a ruptura epistemoloacutegica que a torna teoricamente possiacutevel assumem um caraacutecter contraditoacuterio tanto mais vincado quanto mais desenvolvida for a disciplina cientiacutefica em causa A contradiccedilatildeo reside no facto de a sofisticaccedilatildeo teoacuterica e os elevados recursos organizativos e tccnoloacutegicos envolvidos na constituiccedilatildeo elos objeclos teoacutericos (a face de autonomia da ciecircncia) se denunciarem como forma de ocultaccedilatildeo da presenccedila determinanle em todo o proshycesso teoacuterico dos objectivos soCiais supostamente apenas presentes no accionamento do processo (a face ele dependecircncia da ciecircncia) No momento em que os instrumentos teoacutericos da autonomia do conhecishymento cientiacutefico se revelam como condiccedilotildees ideoloacutegicas da sua dependecircncia eacute possiacutevel dadas certas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas que a comunidade cientiacutefica assuma plenamente a pertenccedila muacutetua dos objectos teoacutericos e dos objectivos sociais e aja em conformidade trazendo os objectivos sociais enquanto tal para dentro da reflexatildeo epistemoloacutegica e metodoloacutegica e os objectos teoacutericos enquanto tal para dentro dos debates sociais e poliacuteticos onde se formam os objecshyI ivos sociais Agindo assim a comunidade cientiacutefica usa a conversatildeo reguladora como forma de regular a transformaccedilatildeo do conhecimento middotiellliacutefico numa nova configuraccedilatildeo de saber e do mesmo passo a sua

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procircpria llilIISfonnuatildeo numa cmnunidade ckolIacuteka natildeuuml neccl-sariamiddotmiddot mente menos cientiacutefiltu ma ccrWHcnte mai s comunitaacuteria Ete uso

da convels( regllladora eacute possiacutevel no plano Icocircrico rnedianlc tI

~cgll lla mplura epbtemoloacutegka a sociologia criliccedila da ciecircncia tcrn

por tarefa primip1l identificar as condiccedilotildees sociais que a viabilizell1

socialmell l~ dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLiacutelkl

53 CmuHccediluumlti tiochuamps d~~ dupla ruptura eq~ocircsecttt~moloacute8ica

iacute Nus capilulos precedente~ indiquei as condiccediluumlcs lcoacutetcas de ullIa

cOllcepccedilatildeo de ciecircncia pautuda pdo princiacutepio da dU~~1uPtura episH- mnloacutegka Aocircverti repelidas vecs que as condir cs tcoacuterIacute(as seru(j gt~ de pouca ou IIcnhuma eficaacutecia se natildeo estiver l realizadas c~ rIi iiimiddoti~i ~~

condiccedilotildees odai ( foi com base nessa advcr ~ncia que mo~ lrci pur r3_~~ m~cmplo os imites do exerciacutecio da refley idade e da poposla dr UacuteYt~ Giddens sohrc a dupla hermenecircutica C9-tle agora indicar tais CIHIl ti L~T~ ~otildees stJdai s AIItes poreacutem conveacutem r~umir o argumento ~I~ l 1 ~IIi ~~tf~middot~~~ produzlllo f

A coml~ccedilJr dev (~raacute ter-se lre nte em qU(~ con~isle ti dupla ntp~) tu m ccedil I) que se pretende com middot a Disse alraacutes que U1l1a Vl1 rt I U(~ ruptura cpi~tcmoloacutegica o aeL cphlemologicamcnt(maiacutes i11 1l1 lnHW~r t eacute a fllpl ura com a ruptura e iacutestmnol6gica Isto signifiG qUl (1 I li1f 1middotXr ponto de vista (k ixoll d middot ter scntido criar um conhu illHlIltl 11 1I~1i~~X autoacutenomo cm confront ) com o senso comum (pritlliacutel l rlp lllill~~ middot~ -r A

eise conhecimenlo no se destinar a transformar () SI I~ ll rfln1i fF 1 a tmnSrQnnII st~ II I~ (segunda ruptura) Depoi~ ltIv I r ltil~Y~t middot~I~y prodigioo lesei olvirnento dClltiacutefico torna-sccedil illl()I nl~IiHt1r alienante concluir com Wittg(~nstein citado tlll i p tl fI frmiddotW-~ ~(fi~ 1(lIlII1([lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill 1]ntmIt~~

1 Llll lltlIWa sabedoria du Inllndo do lOIlHIII fltll ( ~ l~ p I 1111 )11 ll1atllreza Ta faclo vecircst 1J(H l ll(ii~~~i ~

~~~~ ~

-se agrave hegemonia incondicional do saber cientiacutefieo e agrave consequente

marginalizaccedilatildeo de outros saberes vigentes na sociedade tais como o saber religioso artiacutestico literaacuterio miacutetico poeacutelico e poliacutetico que

em eacutepocas anteriores tinham em conjunto sido responsaacuteveis pela sabedoria praacutetica (a phOnesis) ainda que restrita camadas privileshygiadas da sociedade A vocaccedilatildeo teacutecnica e inslr mental do conhecishymento cientiacutefico tornou possiacutevel a sobreviv leia do homem a um

niacutevel nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado

muito aqueacutem da promessa teacutecnica) mas rque concretizada sem o conLributo de outros saberes aprendei os a sobreviver no mesJl10

processo e medida em que deixaacutemo de saber viver Um conhecishy

mento anoacutenimo reduziu eacute praxis uuml t cnita O ser possiacutevel este diagnoacutesti o significa jaacute de si yue o parashy

digma da ciecircncia que presidiu a este processo histoacuterico se encontra em crise e que a crise natildeo eacute peraacutevcl mediante simples reforl1las

pareiais do paradigma Estai os pois numa fase de transiccedilatildeo parashy

digmiacutetica que como qUlller outra eacute caracterizada pela reconcepshy

tual~zaccedililo da ( iecircn~ia que xiste em funccedilatildeo de ul1ll~n(lva ciecircncia cujo perhl apenas se vlSlurn m Tal rcconceptllUltzaccedilao resulta do conshyjunto das eondiccedilotildees te ricas analisadas nos capiacutetulos precedenles e que agora se resume

I A episten 610gia representa em qualquer das suas correntes

a consciecircncia d ciecircncia moderna Problematiza a validade do conheshy

cimento cien fico mas natildeo o sentido deste no mundo contemporacircshy

neo Pelo c ntraacuterio pressupotildee como dado e evidente esse sentido

quando eacute erto que o conhecimento cientiacutefico eacute cada vez mais incotnshy

preensfL I e incomensuraacutevel em face dos demais conhecimentos que

lircul n na soeiedade A plOblematizaccedilatildeo do sentido da ciecircncia

l ~ i 1 que a epistemologia seja ela proacutepria submetida agrave reflexatildeo lcrllIenecircutica

2 A reflexatildeo hermenecircutica cumpre-se desconstruindo os objecshy1(1 1(lIacuteric os que a ciecircncia constroacutei sobre si proacutepria e consequenshy

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

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mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

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O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

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bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

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Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

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As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

7

Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

8

Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 2: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

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a todo aquele que tem seraacute dado e dado em abundacircncia ao passo que ao que natildeo tem ainda o que tem lhe seraacute tiradoraquo Mt XXV)9) A situaccedilo dos cientistas nos laboratoacuterios das induacutestrias tomou-se pafticularr~nte penosa dadas as pressotildees no sentido d~entabilishydade industn~da investigaccedilatildeo Em vez do laquocomunismogt de Merton a norma passOlgt a ser o segredo (seguido da patente) e em geral a comunicaccedilatildeo enlr os cientistas tomou-se cada aacute mais difiacutecil em consequecircncia da e~plosatildeo da produccedilatildeo Da G6municaccedilatildeo formal passou-se agrave comuni6~ccedilatildeo informal no seip dos pequenos grupos de cientistas funcionanqo como invisibe colleges A investigaccedilatildeo capital-intensiva tornoul~ossiacutevel yIacutevre acesso ao equipamento - a caricatura da igualdadeqe oP9rtunidades

Apesar de tudo a crise dagrave~fadiccedilatildeo mertoniana natildeo teria ecloshylI dido com tanta veemecircncia Ji erttretanto a sociologia da ciecircncia

natildeo se tivesse equipado ~ novas ~ndiccedilotildees teoacutericas que lhe pershy mitissem pensar o feYOacutemeno cientiacutefic~e modo mais adequado

agraves praacuteticas cientiacutefisaacutes dominantes um mO~IDenos apologeacutetico e

mais criacutetico Ent~eu entender tais condiccedilotildeefQram fornecidas pela obra de tlttiacutehn a qual para aleacutem do impacto nasar~s tradicioshynais da reneacutexatildeo epistemoloacutegica jaacute anteriormente assinal~as criou as bases para uma sociologia criacutetica da ciecircncia capaz ela pr-oacutepria

middotIo de subverter a divisatildeo positivista entre epistemologia e sociologia i

h)

1 da ciecircncia -_- -- shy]

1 1 _ ~ ~ teofia central de Kuhn- exposta em especial na obra inti tillada I I I Thetructure-of Scientific Revolutions publicada pela primeira vez Ili em 1962 (1970) (12) - eacute que o conhecimento cientiacutefico natildeo cresce de

li

1 I

(12) A importacircncia de Kuhn assenta menos na sua originalidade do que no seu i 1 esforccedilo de siacutentese e na sua capacidade para dar focirclego poleacutemico a ideias jaacute presenshy

I

tes nas obras de outros autores No prefaacutecio a The Slruclure Kuhn natildeo deixa de

reconhecer agrande influecircncia que sobre ele exerceu A Koyreacute sobretudo em Les

ElUdes Galileacuteennes 3 vols Paris 1939

No seguimento da discussatildeo com os seus criacuteticos Kuhn alterou sucessivashy

mente a sua teoria em aspectos mais ou menos marginais e em meu entender nem

modo cumulativo e contiacutenuo Ao contraacuterio esse creSCImento eacute

descontiacutenuo e opera por saltos qualitativos que por sua vez natildeo se podem justificar em funccedilatildeo de criteacuterios internos de validaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico A sua justificaccedilatildeo reside em factores psicoloacutegicos e socioloacutegicos e sobretudo na comunidade cientiacutefica enquanto sistema de organizaccedilatildeo do trabalho cientiacutefico Os saltos qualitativos tecircm lugar nos periacuteodos de desenvolvimento da ciecircncia em que satildeo postos em causa e substituiacutedos os princiacutepios teorias e conceitos baacutesicos em que se funda a ciecircncia ateacute entatildeo produzida e que constituem o que Kuhn chama laquoparadigmaraquo

O desenvolvimento da ciecircncia madura processa-se assim em duas fases a fase da ciecircncia normal e a fase da ciecircncia revolucioshynaacuteria A ciecircncia normal eacute a ciecircncia dos periacuteodos em que o parashydigma eacute unanimemente aceite pela comunidade cientiacutefica O parashydigma estabelece simultaneamente o sentido do limite e o limite do sentido e consequentemente o trabalho dos cientistas dirigeshy-se agrave resoluccedilatildeo dos problemas e agrave eliminaccedilatildeo de incongruecircnciasshysegundo os esquemas conceptuais teoacutericos e metodoloacutegicos unishyversalmente aceites Estes aliaacutes presidem tanto agrave definiccedilatildeo dos proshyblemas como agrave organizaccedilatildeo das estrateacutegias de resoluccedilatildeo Os proshyblemas cientiacuteficos transformam-se em puzzles enigmas com um nuacutemero limitado de peccedilas que o cientista - qual jogador de xadrez - vai pacientemente movendo ateacute encontrar a soluccedilatildeo final Aliaacutes a soluccedilatildeo final tal como no enigma eacute conhecida antecipadamente apenas se desconhecendo os pormenores do seu conteuacutedo e do proshycesso para a atingir Deste modo o paradigma que o cientista adquishyriu durante a sua formaccedilatildeo prQfissionaI fornece-lhe as regras do jogo descreve-lhe as peccedilas com que deve jogar e indica-lhe a

sempre no melhor sentido (por exemplo as sucessivas reformulaccedilotildees do conceito de

paradigma) Por isso me reporto ao seu pensamento original e nos paraacutegrafos que se

seguem cito livremente da sua obra_ Para uma discussatildeo das alteraccedilotildees propostas po~

Kuhn (ouporeleaceites) vide W Oiederich (1974) uma visatildeo da discussatildeo de Kuhn

com os seus criacuteticos encontra-se em J Lakatos e A Musgrave (1970)

ISO 151

natureza do resultado a atingir Se o cientista falha como eacute natural

que aconteccedila nas primeiras tentativas tal facto eacute atribuiacutedo agrave sua

impreparaccedilatildeo ou ineacutepcia As regras fornecidas pelo paradigma natildeo

podem ser postas em causa pois que sem elas natildeo existiria sequer o

enigma Assim o trabalho do cientista exprime uma adesatildeo muito

profunda ao paradigma A crenccedila eacute que os problemas fundamentais

foram todos resolvidos pelo paradigma e de uma vez para sempre

Uma adesatildeo deste tipo natildeo pode ser abalada levianamente De resto

a praacutetica quotidiana da comunidade cientiacutefica reforccedila essa adesatildeo a

todo o momento A experiecircncia mostra que em quase todos os casos

os esforccedilos reiterados do cientista individualmente ou em grupo

conduzem agrave soluccedilatildeo dentro do paradigma dos problemas mais

difiacuteceis Por isso tambeacutem natildeo admira que os cientistas resistam agrave

mudanccedila do paradigma O que eles defendem nessa resistecircncia eacute afinal o seu way of life profissional

Mas o decurso da ciecircncia normal natildeo eacute feito soacute de ecircxitos pois

se tal fosse o caso natildeo eram possiacuteveis as inovaccedilotildees profundas que tecircm tido lugar ao longo do desenvolvimento cientiacutefico Ao cientista

laquonormalraquo pode suceder que o problema de que se ocupa natildeo soacute natildeo

tenha soluccedilatildeo no acircmbito das regras em vigor como tal facto natildeo possa ser imputado agrave impreparaccedilatildeo ou ineacutepcia do investigador Esta expeshyriecircncia pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas e

pode suceder aleacutem disso que por cada problema resolvido ou por

cada incongruecircncia eliminada outros surjam em maior nuacutemero e de

maior complexidade ou de impossiacutevel soluccedilatildeo O efeito cumulativo

deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de

crise Incapaz de lhe dar soluccedilatildeo o paradigma existente comeccedila a

revelar-se como a fonte uacuteltima dos problemas e das incongruecircncias

e o universo cientiacutefico que lhe corresponde converte-se a pouco e

pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado

correctamente Neste momento jaacute outro paradigma se desenha muito

provavelmente no horizonte cientiacutefico e o processo em que ele surge

e se impotildee constitui a revoluccedilatildeo cientiacutefica e a ciecircncia que se faz ao

serviccedilo deste objectivo eacute a ciecircncia revolucionaacuteria

O novo paradigma redefine os problemas e as incongruecircncias

ateacute entatildeo insoluacuteveis e daacute-lhes uma soluccedilatildeo convincente eacute nessa base

que se vai impondo agrave comunidade cientiacutefica Mas a substituiccedilatildeo do

paradigma natildeo eacute raacutepida O periacuteodo de crise revolucionaacuteria em que o

velho e o novo paradigma se defrontam e entram em concorrecircncia

pode ser bastante longo Uma vez que cada um dos paradigmas

estabelece as condiccedilotildees de cientificidade do conhecimento produshy

zido no seu acircmbito as provas cruciais aduzidas em favor do novo

paradigma podem facilmente ser consideradas ridiacuteculas triviais ou

insuficientes pelos defensores do velho paradigma O diaacutelogo entre os

cientistas tende para o monoacutelogo na proporccedilatildeo da incomensurabilishy

dade dos paradigmas em confronto Mais ou menos tempo seraacute

necessaacuterio para o novo paradjgma se impor mas uma vez imposto

ele passa a ser aceite sem discussatildeo e as geraccedilotildees futuras de cientisshytas satildeo treinadas para acreditar que o novo paradigma resolveu defishynitivamente os problemas fundamentais Da fase da ciecircncia revolushy

cionaacuteria passa-se de novo agrave fase da ciecircncia normal e portanto ao

trabalho cientiacutefico sub-paradigmaacutetico De iniacutecio existem vastas aacutereas

em que a aplicabilidade do novo paradigma eacute apenas assumida sem

ainda se ter feito qualquer prova nesse sentido Eacute para essas aacutereas que

se orienta a ciecircncia normal Posteriormente os objectos de estudo e

por conseguinte os problemas a resolver vatildeo-se tomando cada vez mais especiacuteficos e complexos

Este processo de desenvolvimento eacute especiacutefico da ciecircncia madura

ou paradigmaacutetica Kuhn distingue desta ciecircncia a ciecircncia preacute-parashy

digmaacutetica como por exemplo o conjunto das ciecircncias sociais Mas

esta fase de preacute-paradigmatismo tambeacutem se verifica na geacutenese das

novas disciplinas cientiacuteficas no domiacutenio das ciecircncias fiacutesicas e natushy

rais com excepccedilatildeo daquelas que se constituem a partir da combishy

naccedilatildeo de teorias de vaacuterias ciecircncias paradigmaacuteticas como eacute o caso da

bioquiacutemica Esta fase eacute caracterizada como a denominaccedilatildeo indica

pela ausecircncia de um paradigma Isto significa que natildeo existe um

conjunto teoacuterico conceptual e metodoloacutegico baacutesico universalmente

aceite Deste modo cada cientista ou cada escola tem de comeccedilar a

153

I ~ ~ ~ ii

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i ~ Ii ~ ii ~ f1 1 ~ ~ ~ ~ I r ~ I lIl

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152

partir dos fundamentos A escolha dos fenoacutemenos observados e dos meacutetodos utilizados eacute bastante livre e eacute por isso miacutenima a comparashybilidade das investigmiddotaccediloes Esta fase eacute ultrapagravessada no momento em que surge uma teoria baacutesica que resolve a maioria dos problemas insoluacuteveis para as diferentes correntes ou escolas como foi por exemplo a teoria de Franklin no domiacutenio da electricidade A discishyplina entra na fase paradigmaacutetica e a partir daiacute o seu desenvolv imento

processa-se do modo acima referido O desafio de Kuhn agrave filosofia loacutegico-positivista da ciecircncia reside

em que por um lado o desenvolvimento da ciecircncia natildeo eacute cumulativo e por outro lado a escolha entre paradigmas alternativos natildeo pode ser fundamentada nas condiccedilotildees teoacutericas ele cientificidade uma vez que elas proacuteprias entram em processo de ruptura na fase revolucionaacuteria Deixa de haver criteacuterios universalmente aceites quer para a suficiecircnshycia da prova quer para a adequaccedilatildeo das conclusotildees Estaacute tambeacutem preshyeludido o r~curso aos criteacuterios mais gerais elaborados para a selecccedilatildeo da teoria laquoverdadeiraraquo como sejam a exactidatildeo a simplicidade a fershytilidade a consistecircncia loacutegica etc uma vez que cientistas diferenshytes aplicam diferentemente esses criteacuterios em momentos e situaccedilotildees diferentes Para explicar as razotildees de opccedilotildees cientiacuteficas fundamentais eacute preciso sair do ciacuterculo das condiccedilotildees teoacutericas e dos mecanismos internos de validaccedilatildeo e procuraacute-las num vasto alfobre de factores

socioloacutegicos e psicoloacutegicos O processo de imposiccedilatildeo de um novo paradigma eacute um processo de negociaccedilatildeo entre os diferentes grupos de cientistas Eacute necessaacuterio estudar as relaccedilotildees dentro dos grupos e entre os grupos sobretudo as relaccedilotildees de autoridade (cientiacutefica e outra) e de dependecircncia Eacutenecessaacuterio tambeacutem estudar acomunidade cientiacutefica em que se integram esses diferentes grupos o processo de formaccedilatildeo profissional dos cientistas o treinamento a socializaccedilatildeo no seio da profissatildeo a organizaccedilatildeo do trabalho cientiacutefico etc Nisto consiste a

base socioloacutegica da teoria de Kuhn Eacute dela que parto para elaborar uma alternativa teoacuterica a Merton

natildeo sem antes lhe formular duas criacuteticas aliaacutes evidentes em face do que ficou dito atraacutes Em primeiro lugar Kuhn assume o caraacutecter preacuteshy

-paradigmaacutetico das ciecircncias sociais e logo o seu atraso em relaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais Pelas razotildees que apontei acima a superaccedilatildeo da crise de degenerescecircncia do paradigma da ciecircncia modema pressupotildee uma outra conceptualizaccedilatildeo antagoacutenica desta das relaccedilotildees entre ciecircncias naturais e ciecircncias sociais Em segundo lugar Kuhn submete a concepccedilatildeo positivista da ciecircncia a uma criacutetica radical ao fazer laquodescerraquo o estatuto da invenccedilatildeo validaccedilatildeo e refutaccedilatildeo das teorias

cientiacuteficas agraves vicissitudes da organizaccedilatildeo do conflito e do consenso no seio da comunidade cientiacutefica mas faacute-lo de modo a natildeo problematizar a existecircncia desta no seio da sociedade global Ainda que faccedila refeshyrecircncias dispersas agrave relaccedilatildeo complexa entre a comunidade cieritiacutefica e a sociedade em que se insere natildeo lhe daacute grande importacircncia nem aponta pistas para o seu tratamento sistemaacutetico

Do meu ponto de vista essa relaccedilatildeo eacute central por muitas razotildees que tecircm a ver com as condiccedilotildees sociais da dupla ruptura epistemoshyloacutegica e tambeacutem com o facto de a comunidade cientiacutefica ser hoje atravessada por uma tensatildeo polarizada entre nacionalismo e intershynacionalismo que se natildeo pode esclarecer sem situar geopoliticashymente a produccedilatildeo e a distribuiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Para isso eacute necessaacuterio conhecer as relaccedilotildees que intercedem entre as vaacuterias sociedades nacionais e as hierarquias que entre elas se estabelecem Este tema tem um interesse particular para as sociedades dependenshytes como Portugal Dentre os fundadores da sociologia do conhecishymento Marx eacute sem duacutevida o que mais se preocupa com a constishytuiccedilatildeo social do saber procurando explicaacute-la agrave luz das relaccedilotildees soshy

ciais de produccedilatildeo dominantes numa dada formaccedilatildeo social Por isso me parece justificar-se e ser possiacutevel uma articulaccedilatildeo entre o pensashymento de Kuhn e o pensamento de Marx com vista agrave constituiccedilatildeo de uma sociologia criacutetica da ciecircncia

Kuhn eacute pois um ponto de partida mas natildeo restam duacutevidas de que a investigaccedilatildeo propiciada pela sua teoria jaacute permitiu esclarecer uma

seacuterie de questotildees importarites que natildeo tinham soluccedilatildeo satisfatoacuteria no acircmbito do paradigma loacutegico-empiriacutestico-mertoniano por que razatildeo se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais

155

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154

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~ ( - lt~- 1 M Y vV e J-E

I O papel lcntral da lomullidade cientiacutefica adveacutemmiddotmiddotlhe de ser itwtacircnda ele mediuccedilUo cntre o conhecimento cientiacutelico e a sociedade no sculmlo e lia sua tripla identidade socio-econoacutemicajuriacutedilo-poliacuteshyIka e iltkolotildegkocultural I~ nesta perspectiva er-teriori zante que deve

~cr eSludada 1estrutura interna da comunidade cientiacutefica

2 O poder que a ciecircncia exerce na sociedade eacute o produto dialeacutecshyiacuteico da rdaccedill10entre o poder que a iociedade exerce sobre aconlunidade

cientiacutefic c o poder que se exerce no seio desta

3 E1lI ctloa rIS~ do desenvolvimento da ciecircncia ou seja mesmo foru dos periacuteodos uetransiccedilatildeo entre paradigmas cientiacuteficos existem alwrnativa~ le(lIica ~ isto eacute alternativas enlre teorias rivais (e natildeo apcnafi ccedilnlre apIi4uccedil(ies rivais lIa mesma teoria) algumas das quais se impocircem sem que lal se possa atribuir a criteacuterio~ ele suficiecircncia de prova As conlradilfotildees de sobrevivecircncia das teorias meacutetodos e (onmiddotmiddot ~ ccedileilos suo estabclcddos pelo eambiente socialraquo em que a ciecircncia se i desenvolve cm articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees teoacutericas internas

4 Em ctlda momento histocircrIacutelo a ciecircncia tem lima estrutura pniacute pria que lhe nuumlo permite integrar quaisquer objectivos sodais (k qualquccedilr forma Essa estrutura eacute a medida da autollornia relativa da ciecircncia nos termos da qual a ciecircncia regula o seu desenvolvill1

(1I10

ltlinda qlll~ liatildeo pu~sa determinaacute-lo O trabalho da estrutura interna llil ciecircllcia COf j C numa operaccedilatildeo de t1ltragem -~- conversatildeo 11~t I middotmiddot ~ dom _ opcwccediliio que consiste na transformaccedilatildeo do objectivll snd LI middott~lt~A~~ t r~i-

em objectivo teoacuterico Nas actuais condiccediluumles de produccedilatildeo da ci C lId i ~ gt moderna o ()hj~ctivo f-ioda tpz consigo uma fOya polflica ql H (~ middot ~~~tAf~ estrutura d eutiacutefica tfm de converter em energia produtiva da imiddotmiddot Ild ll i middot~i middotrmiddot~y~ -tl

~middot~~middot~ middotimiddot~~middot

) Sendo enIO que a ciecircncia (~ um dos poderesmiddotmiddotsaberes Lf l l d~~imiddot~middotgtik 111111 ill Ik lo particularmcnte importante analisar as Sl li U 1Itl~i j xf ltI I 111 k I pri v i t1 ~ ildo 11 ~ () l iedmlc contemporlnca (t Pliltllmiddot bullbull I ~~~gt bull~ Jj bull I I 1 I l il11 iacute i l de j l lIIIplkada sohre ti que lIiI rl(ft(lfH~ 1t)D~F IIgt 11 11 1 1 d I I I qll 1111 1110 a ~ lI id(k ci vil I ld~~ II tJ iacutefUacuteeYf~iltmiddot ~~i _ ~ ~ I

li lI I IIoI n

11 ) Iwd ld I qli II 111 11 11 iII di I ilI uacutenl lllt C Hli l fdV~jmiddotmiddotf~7J JnmiddotW middotmiddotmiddot I iacute I

sodedade civil eacute superada e substituiacuteda por outras configuraccedilotildees conceptuais mais complexas Mas o problema subsiste enquanto indagaccedilatildeo sobre o acircmbito e a eficaacutecia da conversuo reguladora de uma dada disciplina cientiacutefica num dado momento histoacuterico

6 A conversatildeo reguladora corresponde no plano socioloacutegico agrave primeira ruptura epistemoloacutegica que por razotildees paralelas varia ele acircmbito e de eficaacutecia Porque o objecto cmpiacuterko que a primeiru ruptura transforma em objecto teoacuterico eacute sempre um objectivo soCial e poliacutetico esta deacutemarc7e epistemoloacutegica eacute o modo (mais ou menos) especiacutefico e autoacutenomo de a ciecircncia viver a sua dependecircncia em relashyccedilatildeo 11s forccedilas sociais que determinam o ritmo e o sentido elo seu descnvolvimento

7 Numa fase de crise paradigmaacutetica da ciecircncia a conversatildeo reguladora e a ruptura epistemoloacutegica que a torna teoricamente possiacutevel assumem um caraacutecter contraditoacuterio tanto mais vincado quanto mais desenvolvida for a disciplina cientiacutefica em causa A contradiccedilatildeo reside no facto de a sofisticaccedilatildeo teoacuterica e os elevados recursos organizativos e tccnoloacutegicos envolvidos na constituiccedilatildeo elos objeclos teoacutericos (a face de autonomia da ciecircncia) se denunciarem como forma de ocultaccedilatildeo da presenccedila determinanle em todo o proshycesso teoacuterico dos objectivos soCiais supostamente apenas presentes no accionamento do processo (a face ele dependecircncia da ciecircncia) No momento em que os instrumentos teoacutericos da autonomia do conhecishymento cientiacutefico se revelam como condiccedilotildees ideoloacutegicas da sua dependecircncia eacute possiacutevel dadas certas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas que a comunidade cientiacutefica assuma plenamente a pertenccedila muacutetua dos objectos teoacutericos e dos objectivos sociais e aja em conformidade trazendo os objectivos sociais enquanto tal para dentro da reflexatildeo epistemoloacutegica e metodoloacutegica e os objectos teoacutericos enquanto tal para dentro dos debates sociais e poliacuteticos onde se formam os objecshyI ivos sociais Agindo assim a comunidade cientiacutefica usa a conversatildeo reguladora como forma de regular a transformaccedilatildeo do conhecimento middotiellliacutefico numa nova configuraccedilatildeo de saber e do mesmo passo a sua

II li

procircpria llilIISfonnuatildeo numa cmnunidade ckolIacuteka natildeuuml neccl-sariamiddotmiddot mente menos cientiacutefiltu ma ccrWHcnte mai s comunitaacuteria Ete uso

da convels( regllladora eacute possiacutevel no plano Icocircrico rnedianlc tI

~cgll lla mplura epbtemoloacutegka a sociologia criliccedila da ciecircncia tcrn

por tarefa primip1l identificar as condiccedilotildees sociais que a viabilizell1

socialmell l~ dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLiacutelkl

53 CmuHccediluumlti tiochuamps d~~ dupla ruptura eq~ocircsecttt~moloacute8ica

iacute Nus capilulos precedente~ indiquei as condiccediluumlcs lcoacutetcas de ullIa

cOllcepccedilatildeo de ciecircncia pautuda pdo princiacutepio da dU~~1uPtura episH- mnloacutegka Aocircverti repelidas vecs que as condir cs tcoacuterIacute(as seru(j gt~ de pouca ou IIcnhuma eficaacutecia se natildeo estiver l realizadas c~ rIi iiimiddoti~i ~~

condiccedilotildees odai ( foi com base nessa advcr ~ncia que mo~ lrci pur r3_~~ m~cmplo os imites do exerciacutecio da refley idade e da poposla dr UacuteYt~ Giddens sohrc a dupla hermenecircutica C9-tle agora indicar tais CIHIl ti L~T~ ~otildees stJdai s AIItes poreacutem conveacutem r~umir o argumento ~I~ l 1 ~IIi ~~tf~middot~~~ produzlllo f

A coml~ccedilJr dev (~raacute ter-se lre nte em qU(~ con~isle ti dupla ntp~) tu m ccedil I) que se pretende com middot a Disse alraacutes que U1l1a Vl1 rt I U(~ ruptura cpi~tcmoloacutegica o aeL cphlemologicamcnt(maiacutes i11 1l1 lnHW~r t eacute a fllpl ura com a ruptura e iacutestmnol6gica Isto signifiG qUl (1 I li1f 1middotXr ponto de vista (k ixoll d middot ter scntido criar um conhu illHlIltl 11 1I~1i~~X autoacutenomo cm confront ) com o senso comum (pritlliacutel l rlp lllill~~ middot~ -r A

eise conhecimenlo no se destinar a transformar () SI I~ ll rfln1i fF 1 a tmnSrQnnII st~ II I~ (segunda ruptura) Depoi~ ltIv I r ltil~Y~t middot~I~y prodigioo lesei olvirnento dClltiacutefico torna-sccedil illl()I nl~IiHt1r alienante concluir com Wittg(~nstein citado tlll i p tl fI frmiddotW-~ ~(fi~ 1(lIlII1([lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill 1]ntmIt~~

1 Llll lltlIWa sabedoria du Inllndo do lOIlHIII fltll ( ~ l~ p I 1111 )11 ll1atllreza Ta faclo vecircst 1J(H l ll(ii~~~i ~

~~~~ ~

-se agrave hegemonia incondicional do saber cientiacutefieo e agrave consequente

marginalizaccedilatildeo de outros saberes vigentes na sociedade tais como o saber religioso artiacutestico literaacuterio miacutetico poeacutelico e poliacutetico que

em eacutepocas anteriores tinham em conjunto sido responsaacuteveis pela sabedoria praacutetica (a phOnesis) ainda que restrita camadas privileshygiadas da sociedade A vocaccedilatildeo teacutecnica e inslr mental do conhecishymento cientiacutefico tornou possiacutevel a sobreviv leia do homem a um

niacutevel nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado

muito aqueacutem da promessa teacutecnica) mas rque concretizada sem o conLributo de outros saberes aprendei os a sobreviver no mesJl10

processo e medida em que deixaacutemo de saber viver Um conhecishy

mento anoacutenimo reduziu eacute praxis uuml t cnita O ser possiacutevel este diagnoacutesti o significa jaacute de si yue o parashy

digma da ciecircncia que presidiu a este processo histoacuterico se encontra em crise e que a crise natildeo eacute peraacutevcl mediante simples reforl1las

pareiais do paradigma Estai os pois numa fase de transiccedilatildeo parashy

digmiacutetica que como qUlller outra eacute caracterizada pela reconcepshy

tual~zaccedililo da ( iecircn~ia que xiste em funccedilatildeo de ul1ll~n(lva ciecircncia cujo perhl apenas se vlSlurn m Tal rcconceptllUltzaccedilao resulta do conshyjunto das eondiccedilotildees te ricas analisadas nos capiacutetulos precedenles e que agora se resume

I A episten 610gia representa em qualquer das suas correntes

a consciecircncia d ciecircncia moderna Problematiza a validade do conheshy

cimento cien fico mas natildeo o sentido deste no mundo contemporacircshy

neo Pelo c ntraacuterio pressupotildee como dado e evidente esse sentido

quando eacute erto que o conhecimento cientiacutefico eacute cada vez mais incotnshy

preensfL I e incomensuraacutevel em face dos demais conhecimentos que

lircul n na soeiedade A plOblematizaccedilatildeo do sentido da ciecircncia

l ~ i 1 que a epistemologia seja ela proacutepria submetida agrave reflexatildeo lcrllIenecircutica

2 A reflexatildeo hermenecircutica cumpre-se desconstruindo os objecshy1(1 1(lIacuteric os que a ciecircncia constroacutei sobre si proacutepria e consequenshy

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

502

mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

3

O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

503

bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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WIllIi _____ _d

fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

4

Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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5

As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

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As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

7

Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

8

Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 3: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

natureza do resultado a atingir Se o cientista falha como eacute natural

que aconteccedila nas primeiras tentativas tal facto eacute atribuiacutedo agrave sua

impreparaccedilatildeo ou ineacutepcia As regras fornecidas pelo paradigma natildeo

podem ser postas em causa pois que sem elas natildeo existiria sequer o

enigma Assim o trabalho do cientista exprime uma adesatildeo muito

profunda ao paradigma A crenccedila eacute que os problemas fundamentais

foram todos resolvidos pelo paradigma e de uma vez para sempre

Uma adesatildeo deste tipo natildeo pode ser abalada levianamente De resto

a praacutetica quotidiana da comunidade cientiacutefica reforccedila essa adesatildeo a

todo o momento A experiecircncia mostra que em quase todos os casos

os esforccedilos reiterados do cientista individualmente ou em grupo

conduzem agrave soluccedilatildeo dentro do paradigma dos problemas mais

difiacuteceis Por isso tambeacutem natildeo admira que os cientistas resistam agrave

mudanccedila do paradigma O que eles defendem nessa resistecircncia eacute afinal o seu way of life profissional

Mas o decurso da ciecircncia normal natildeo eacute feito soacute de ecircxitos pois

se tal fosse o caso natildeo eram possiacuteveis as inovaccedilotildees profundas que tecircm tido lugar ao longo do desenvolvimento cientiacutefico Ao cientista

laquonormalraquo pode suceder que o problema de que se ocupa natildeo soacute natildeo

tenha soluccedilatildeo no acircmbito das regras em vigor como tal facto natildeo possa ser imputado agrave impreparaccedilatildeo ou ineacutepcia do investigador Esta expeshyriecircncia pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas e

pode suceder aleacutem disso que por cada problema resolvido ou por

cada incongruecircncia eliminada outros surjam em maior nuacutemero e de

maior complexidade ou de impossiacutevel soluccedilatildeo O efeito cumulativo

deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de

crise Incapaz de lhe dar soluccedilatildeo o paradigma existente comeccedila a

revelar-se como a fonte uacuteltima dos problemas e das incongruecircncias

e o universo cientiacutefico que lhe corresponde converte-se a pouco e

pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado

correctamente Neste momento jaacute outro paradigma se desenha muito

provavelmente no horizonte cientiacutefico e o processo em que ele surge

e se impotildee constitui a revoluccedilatildeo cientiacutefica e a ciecircncia que se faz ao

serviccedilo deste objectivo eacute a ciecircncia revolucionaacuteria

O novo paradigma redefine os problemas e as incongruecircncias

ateacute entatildeo insoluacuteveis e daacute-lhes uma soluccedilatildeo convincente eacute nessa base

que se vai impondo agrave comunidade cientiacutefica Mas a substituiccedilatildeo do

paradigma natildeo eacute raacutepida O periacuteodo de crise revolucionaacuteria em que o

velho e o novo paradigma se defrontam e entram em concorrecircncia

pode ser bastante longo Uma vez que cada um dos paradigmas

estabelece as condiccedilotildees de cientificidade do conhecimento produshy

zido no seu acircmbito as provas cruciais aduzidas em favor do novo

paradigma podem facilmente ser consideradas ridiacuteculas triviais ou

insuficientes pelos defensores do velho paradigma O diaacutelogo entre os

cientistas tende para o monoacutelogo na proporccedilatildeo da incomensurabilishy

dade dos paradigmas em confronto Mais ou menos tempo seraacute

necessaacuterio para o novo paradjgma se impor mas uma vez imposto

ele passa a ser aceite sem discussatildeo e as geraccedilotildees futuras de cientisshytas satildeo treinadas para acreditar que o novo paradigma resolveu defishynitivamente os problemas fundamentais Da fase da ciecircncia revolushy

cionaacuteria passa-se de novo agrave fase da ciecircncia normal e portanto ao

trabalho cientiacutefico sub-paradigmaacutetico De iniacutecio existem vastas aacutereas

em que a aplicabilidade do novo paradigma eacute apenas assumida sem

ainda se ter feito qualquer prova nesse sentido Eacute para essas aacutereas que

se orienta a ciecircncia normal Posteriormente os objectos de estudo e

por conseguinte os problemas a resolver vatildeo-se tomando cada vez mais especiacuteficos e complexos

Este processo de desenvolvimento eacute especiacutefico da ciecircncia madura

ou paradigmaacutetica Kuhn distingue desta ciecircncia a ciecircncia preacute-parashy

digmaacutetica como por exemplo o conjunto das ciecircncias sociais Mas

esta fase de preacute-paradigmatismo tambeacutem se verifica na geacutenese das

novas disciplinas cientiacuteficas no domiacutenio das ciecircncias fiacutesicas e natushy

rais com excepccedilatildeo daquelas que se constituem a partir da combishy

naccedilatildeo de teorias de vaacuterias ciecircncias paradigmaacuteticas como eacute o caso da

bioquiacutemica Esta fase eacute caracterizada como a denominaccedilatildeo indica

pela ausecircncia de um paradigma Isto significa que natildeo existe um

conjunto teoacuterico conceptual e metodoloacutegico baacutesico universalmente

aceite Deste modo cada cientista ou cada escola tem de comeccedilar a

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152

partir dos fundamentos A escolha dos fenoacutemenos observados e dos meacutetodos utilizados eacute bastante livre e eacute por isso miacutenima a comparashybilidade das investigmiddotaccediloes Esta fase eacute ultrapagravessada no momento em que surge uma teoria baacutesica que resolve a maioria dos problemas insoluacuteveis para as diferentes correntes ou escolas como foi por exemplo a teoria de Franklin no domiacutenio da electricidade A discishyplina entra na fase paradigmaacutetica e a partir daiacute o seu desenvolv imento

processa-se do modo acima referido O desafio de Kuhn agrave filosofia loacutegico-positivista da ciecircncia reside

em que por um lado o desenvolvimento da ciecircncia natildeo eacute cumulativo e por outro lado a escolha entre paradigmas alternativos natildeo pode ser fundamentada nas condiccedilotildees teoacutericas ele cientificidade uma vez que elas proacuteprias entram em processo de ruptura na fase revolucionaacuteria Deixa de haver criteacuterios universalmente aceites quer para a suficiecircnshycia da prova quer para a adequaccedilatildeo das conclusotildees Estaacute tambeacutem preshyeludido o r~curso aos criteacuterios mais gerais elaborados para a selecccedilatildeo da teoria laquoverdadeiraraquo como sejam a exactidatildeo a simplicidade a fershytilidade a consistecircncia loacutegica etc uma vez que cientistas diferenshytes aplicam diferentemente esses criteacuterios em momentos e situaccedilotildees diferentes Para explicar as razotildees de opccedilotildees cientiacuteficas fundamentais eacute preciso sair do ciacuterculo das condiccedilotildees teoacutericas e dos mecanismos internos de validaccedilatildeo e procuraacute-las num vasto alfobre de factores

socioloacutegicos e psicoloacutegicos O processo de imposiccedilatildeo de um novo paradigma eacute um processo de negociaccedilatildeo entre os diferentes grupos de cientistas Eacute necessaacuterio estudar as relaccedilotildees dentro dos grupos e entre os grupos sobretudo as relaccedilotildees de autoridade (cientiacutefica e outra) e de dependecircncia Eacutenecessaacuterio tambeacutem estudar acomunidade cientiacutefica em que se integram esses diferentes grupos o processo de formaccedilatildeo profissional dos cientistas o treinamento a socializaccedilatildeo no seio da profissatildeo a organizaccedilatildeo do trabalho cientiacutefico etc Nisto consiste a

base socioloacutegica da teoria de Kuhn Eacute dela que parto para elaborar uma alternativa teoacuterica a Merton

natildeo sem antes lhe formular duas criacuteticas aliaacutes evidentes em face do que ficou dito atraacutes Em primeiro lugar Kuhn assume o caraacutecter preacuteshy

-paradigmaacutetico das ciecircncias sociais e logo o seu atraso em relaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais Pelas razotildees que apontei acima a superaccedilatildeo da crise de degenerescecircncia do paradigma da ciecircncia modema pressupotildee uma outra conceptualizaccedilatildeo antagoacutenica desta das relaccedilotildees entre ciecircncias naturais e ciecircncias sociais Em segundo lugar Kuhn submete a concepccedilatildeo positivista da ciecircncia a uma criacutetica radical ao fazer laquodescerraquo o estatuto da invenccedilatildeo validaccedilatildeo e refutaccedilatildeo das teorias

cientiacuteficas agraves vicissitudes da organizaccedilatildeo do conflito e do consenso no seio da comunidade cientiacutefica mas faacute-lo de modo a natildeo problematizar a existecircncia desta no seio da sociedade global Ainda que faccedila refeshyrecircncias dispersas agrave relaccedilatildeo complexa entre a comunidade cieritiacutefica e a sociedade em que se insere natildeo lhe daacute grande importacircncia nem aponta pistas para o seu tratamento sistemaacutetico

Do meu ponto de vista essa relaccedilatildeo eacute central por muitas razotildees que tecircm a ver com as condiccedilotildees sociais da dupla ruptura epistemoshyloacutegica e tambeacutem com o facto de a comunidade cientiacutefica ser hoje atravessada por uma tensatildeo polarizada entre nacionalismo e intershynacionalismo que se natildeo pode esclarecer sem situar geopoliticashymente a produccedilatildeo e a distribuiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Para isso eacute necessaacuterio conhecer as relaccedilotildees que intercedem entre as vaacuterias sociedades nacionais e as hierarquias que entre elas se estabelecem Este tema tem um interesse particular para as sociedades dependenshytes como Portugal Dentre os fundadores da sociologia do conhecishymento Marx eacute sem duacutevida o que mais se preocupa com a constishytuiccedilatildeo social do saber procurando explicaacute-la agrave luz das relaccedilotildees soshy

ciais de produccedilatildeo dominantes numa dada formaccedilatildeo social Por isso me parece justificar-se e ser possiacutevel uma articulaccedilatildeo entre o pensashymento de Kuhn e o pensamento de Marx com vista agrave constituiccedilatildeo de uma sociologia criacutetica da ciecircncia

Kuhn eacute pois um ponto de partida mas natildeo restam duacutevidas de que a investigaccedilatildeo propiciada pela sua teoria jaacute permitiu esclarecer uma

seacuterie de questotildees importarites que natildeo tinham soluccedilatildeo satisfatoacuteria no acircmbito do paradigma loacutegico-empiriacutestico-mertoniano por que razatildeo se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais

155

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I O papel lcntral da lomullidade cientiacutefica adveacutemmiddotmiddotlhe de ser itwtacircnda ele mediuccedilUo cntre o conhecimento cientiacutelico e a sociedade no sculmlo e lia sua tripla identidade socio-econoacutemicajuriacutedilo-poliacuteshyIka e iltkolotildegkocultural I~ nesta perspectiva er-teriori zante que deve

~cr eSludada 1estrutura interna da comunidade cientiacutefica

2 O poder que a ciecircncia exerce na sociedade eacute o produto dialeacutecshyiacuteico da rdaccedill10entre o poder que a iociedade exerce sobre aconlunidade

cientiacutefic c o poder que se exerce no seio desta

3 E1lI ctloa rIS~ do desenvolvimento da ciecircncia ou seja mesmo foru dos periacuteodos uetransiccedilatildeo entre paradigmas cientiacuteficos existem alwrnativa~ le(lIica ~ isto eacute alternativas enlre teorias rivais (e natildeo apcnafi ccedilnlre apIi4uccedil(ies rivais lIa mesma teoria) algumas das quais se impocircem sem que lal se possa atribuir a criteacuterio~ ele suficiecircncia de prova As conlradilfotildees de sobrevivecircncia das teorias meacutetodos e (onmiddotmiddot ~ ccedileilos suo estabclcddos pelo eambiente socialraquo em que a ciecircncia se i desenvolve cm articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees teoacutericas internas

4 Em ctlda momento histocircrIacutelo a ciecircncia tem lima estrutura pniacute pria que lhe nuumlo permite integrar quaisquer objectivos sodais (k qualquccedilr forma Essa estrutura eacute a medida da autollornia relativa da ciecircncia nos termos da qual a ciecircncia regula o seu desenvolvill1

(1I10

ltlinda qlll~ liatildeo pu~sa determinaacute-lo O trabalho da estrutura interna llil ciecircllcia COf j C numa operaccedilatildeo de t1ltragem -~- conversatildeo 11~t I middotmiddot ~ dom _ opcwccediliio que consiste na transformaccedilatildeo do objectivll snd LI middott~lt~A~~ t r~i-

em objectivo teoacuterico Nas actuais condiccediluumles de produccedilatildeo da ci C lId i ~ gt moderna o ()hj~ctivo f-ioda tpz consigo uma fOya polflica ql H (~ middot ~~~tAf~ estrutura d eutiacutefica tfm de converter em energia produtiva da imiddotmiddot Ild ll i middot~i middotrmiddot~y~ -tl

~middot~~middot~ middotimiddot~~middot

) Sendo enIO que a ciecircncia (~ um dos poderesmiddotmiddotsaberes Lf l l d~~imiddot~middotgtik 111111 ill Ik lo particularmcnte importante analisar as Sl li U 1Itl~i j xf ltI I 111 k I pri v i t1 ~ ildo 11 ~ () l iedmlc contemporlnca (t Pliltllmiddot bullbull I ~~~gt bull~ Jj bull I I 1 I l il11 iacute i l de j l lIIIplkada sohre ti que lIiI rl(ft(lfH~ 1t)D~F IIgt 11 11 1 1 d I I I qll 1111 1110 a ~ lI id(k ci vil I ld~~ II tJ iacutefUacuteeYf~iltmiddot ~~i _ ~ ~ I

li lI I IIoI n

11 ) Iwd ld I qli II 111 11 11 iII di I ilI uacutenl lllt C Hli l fdV~jmiddotmiddotf~7J JnmiddotW middotmiddotmiddot I iacute I

sodedade civil eacute superada e substituiacuteda por outras configuraccedilotildees conceptuais mais complexas Mas o problema subsiste enquanto indagaccedilatildeo sobre o acircmbito e a eficaacutecia da conversuo reguladora de uma dada disciplina cientiacutefica num dado momento histoacuterico

6 A conversatildeo reguladora corresponde no plano socioloacutegico agrave primeira ruptura epistemoloacutegica que por razotildees paralelas varia ele acircmbito e de eficaacutecia Porque o objecto cmpiacuterko que a primeiru ruptura transforma em objecto teoacuterico eacute sempre um objectivo soCial e poliacutetico esta deacutemarc7e epistemoloacutegica eacute o modo (mais ou menos) especiacutefico e autoacutenomo de a ciecircncia viver a sua dependecircncia em relashyccedilatildeo 11s forccedilas sociais que determinam o ritmo e o sentido elo seu descnvolvimento

7 Numa fase de crise paradigmaacutetica da ciecircncia a conversatildeo reguladora e a ruptura epistemoloacutegica que a torna teoricamente possiacutevel assumem um caraacutecter contraditoacuterio tanto mais vincado quanto mais desenvolvida for a disciplina cientiacutefica em causa A contradiccedilatildeo reside no facto de a sofisticaccedilatildeo teoacuterica e os elevados recursos organizativos e tccnoloacutegicos envolvidos na constituiccedilatildeo elos objeclos teoacutericos (a face de autonomia da ciecircncia) se denunciarem como forma de ocultaccedilatildeo da presenccedila determinanle em todo o proshycesso teoacuterico dos objectivos soCiais supostamente apenas presentes no accionamento do processo (a face ele dependecircncia da ciecircncia) No momento em que os instrumentos teoacutericos da autonomia do conhecishymento cientiacutefico se revelam como condiccedilotildees ideoloacutegicas da sua dependecircncia eacute possiacutevel dadas certas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas que a comunidade cientiacutefica assuma plenamente a pertenccedila muacutetua dos objectos teoacutericos e dos objectivos sociais e aja em conformidade trazendo os objectivos sociais enquanto tal para dentro da reflexatildeo epistemoloacutegica e metodoloacutegica e os objectos teoacutericos enquanto tal para dentro dos debates sociais e poliacuteticos onde se formam os objecshyI ivos sociais Agindo assim a comunidade cientiacutefica usa a conversatildeo reguladora como forma de regular a transformaccedilatildeo do conhecimento middotiellliacutefico numa nova configuraccedilatildeo de saber e do mesmo passo a sua

II li

procircpria llilIISfonnuatildeo numa cmnunidade ckolIacuteka natildeuuml neccl-sariamiddotmiddot mente menos cientiacutefiltu ma ccrWHcnte mai s comunitaacuteria Ete uso

da convels( regllladora eacute possiacutevel no plano Icocircrico rnedianlc tI

~cgll lla mplura epbtemoloacutegka a sociologia criliccedila da ciecircncia tcrn

por tarefa primip1l identificar as condiccedilotildees sociais que a viabilizell1

socialmell l~ dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLiacutelkl

53 CmuHccediluumlti tiochuamps d~~ dupla ruptura eq~ocircsecttt~moloacute8ica

iacute Nus capilulos precedente~ indiquei as condiccediluumlcs lcoacutetcas de ullIa

cOllcepccedilatildeo de ciecircncia pautuda pdo princiacutepio da dU~~1uPtura episH- mnloacutegka Aocircverti repelidas vecs que as condir cs tcoacuterIacute(as seru(j gt~ de pouca ou IIcnhuma eficaacutecia se natildeo estiver l realizadas c~ rIi iiimiddoti~i ~~

condiccedilotildees odai ( foi com base nessa advcr ~ncia que mo~ lrci pur r3_~~ m~cmplo os imites do exerciacutecio da refley idade e da poposla dr UacuteYt~ Giddens sohrc a dupla hermenecircutica C9-tle agora indicar tais CIHIl ti L~T~ ~otildees stJdai s AIItes poreacutem conveacutem r~umir o argumento ~I~ l 1 ~IIi ~~tf~middot~~~ produzlllo f

A coml~ccedilJr dev (~raacute ter-se lre nte em qU(~ con~isle ti dupla ntp~) tu m ccedil I) que se pretende com middot a Disse alraacutes que U1l1a Vl1 rt I U(~ ruptura cpi~tcmoloacutegica o aeL cphlemologicamcnt(maiacutes i11 1l1 lnHW~r t eacute a fllpl ura com a ruptura e iacutestmnol6gica Isto signifiG qUl (1 I li1f 1middotXr ponto de vista (k ixoll d middot ter scntido criar um conhu illHlIltl 11 1I~1i~~X autoacutenomo cm confront ) com o senso comum (pritlliacutel l rlp lllill~~ middot~ -r A

eise conhecimenlo no se destinar a transformar () SI I~ ll rfln1i fF 1 a tmnSrQnnII st~ II I~ (segunda ruptura) Depoi~ ltIv I r ltil~Y~t middot~I~y prodigioo lesei olvirnento dClltiacutefico torna-sccedil illl()I nl~IiHt1r alienante concluir com Wittg(~nstein citado tlll i p tl fI frmiddotW-~ ~(fi~ 1(lIlII1([lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill 1]ntmIt~~

1 Llll lltlIWa sabedoria du Inllndo do lOIlHIII fltll ( ~ l~ p I 1111 )11 ll1atllreza Ta faclo vecircst 1J(H l ll(ii~~~i ~

~~~~ ~

-se agrave hegemonia incondicional do saber cientiacutefieo e agrave consequente

marginalizaccedilatildeo de outros saberes vigentes na sociedade tais como o saber religioso artiacutestico literaacuterio miacutetico poeacutelico e poliacutetico que

em eacutepocas anteriores tinham em conjunto sido responsaacuteveis pela sabedoria praacutetica (a phOnesis) ainda que restrita camadas privileshygiadas da sociedade A vocaccedilatildeo teacutecnica e inslr mental do conhecishymento cientiacutefico tornou possiacutevel a sobreviv leia do homem a um

niacutevel nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado

muito aqueacutem da promessa teacutecnica) mas rque concretizada sem o conLributo de outros saberes aprendei os a sobreviver no mesJl10

processo e medida em que deixaacutemo de saber viver Um conhecishy

mento anoacutenimo reduziu eacute praxis uuml t cnita O ser possiacutevel este diagnoacutesti o significa jaacute de si yue o parashy

digma da ciecircncia que presidiu a este processo histoacuterico se encontra em crise e que a crise natildeo eacute peraacutevcl mediante simples reforl1las

pareiais do paradigma Estai os pois numa fase de transiccedilatildeo parashy

digmiacutetica que como qUlller outra eacute caracterizada pela reconcepshy

tual~zaccedililo da ( iecircn~ia que xiste em funccedilatildeo de ul1ll~n(lva ciecircncia cujo perhl apenas se vlSlurn m Tal rcconceptllUltzaccedilao resulta do conshyjunto das eondiccedilotildees te ricas analisadas nos capiacutetulos precedenles e que agora se resume

I A episten 610gia representa em qualquer das suas correntes

a consciecircncia d ciecircncia moderna Problematiza a validade do conheshy

cimento cien fico mas natildeo o sentido deste no mundo contemporacircshy

neo Pelo c ntraacuterio pressupotildee como dado e evidente esse sentido

quando eacute erto que o conhecimento cientiacutefico eacute cada vez mais incotnshy

preensfL I e incomensuraacutevel em face dos demais conhecimentos que

lircul n na soeiedade A plOblematizaccedilatildeo do sentido da ciecircncia

l ~ i 1 que a epistemologia seja ela proacutepria submetida agrave reflexatildeo lcrllIenecircutica

2 A reflexatildeo hermenecircutica cumpre-se desconstruindo os objecshy1(1 1(lIacuteric os que a ciecircncia constroacutei sobre si proacutepria e consequenshy

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

502

mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

3

O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

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bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

4

Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

6

As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

7

Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

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Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 4: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

partir dos fundamentos A escolha dos fenoacutemenos observados e dos meacutetodos utilizados eacute bastante livre e eacute por isso miacutenima a comparashybilidade das investigmiddotaccediloes Esta fase eacute ultrapagravessada no momento em que surge uma teoria baacutesica que resolve a maioria dos problemas insoluacuteveis para as diferentes correntes ou escolas como foi por exemplo a teoria de Franklin no domiacutenio da electricidade A discishyplina entra na fase paradigmaacutetica e a partir daiacute o seu desenvolv imento

processa-se do modo acima referido O desafio de Kuhn agrave filosofia loacutegico-positivista da ciecircncia reside

em que por um lado o desenvolvimento da ciecircncia natildeo eacute cumulativo e por outro lado a escolha entre paradigmas alternativos natildeo pode ser fundamentada nas condiccedilotildees teoacutericas ele cientificidade uma vez que elas proacuteprias entram em processo de ruptura na fase revolucionaacuteria Deixa de haver criteacuterios universalmente aceites quer para a suficiecircnshycia da prova quer para a adequaccedilatildeo das conclusotildees Estaacute tambeacutem preshyeludido o r~curso aos criteacuterios mais gerais elaborados para a selecccedilatildeo da teoria laquoverdadeiraraquo como sejam a exactidatildeo a simplicidade a fershytilidade a consistecircncia loacutegica etc uma vez que cientistas diferenshytes aplicam diferentemente esses criteacuterios em momentos e situaccedilotildees diferentes Para explicar as razotildees de opccedilotildees cientiacuteficas fundamentais eacute preciso sair do ciacuterculo das condiccedilotildees teoacutericas e dos mecanismos internos de validaccedilatildeo e procuraacute-las num vasto alfobre de factores

socioloacutegicos e psicoloacutegicos O processo de imposiccedilatildeo de um novo paradigma eacute um processo de negociaccedilatildeo entre os diferentes grupos de cientistas Eacute necessaacuterio estudar as relaccedilotildees dentro dos grupos e entre os grupos sobretudo as relaccedilotildees de autoridade (cientiacutefica e outra) e de dependecircncia Eacutenecessaacuterio tambeacutem estudar acomunidade cientiacutefica em que se integram esses diferentes grupos o processo de formaccedilatildeo profissional dos cientistas o treinamento a socializaccedilatildeo no seio da profissatildeo a organizaccedilatildeo do trabalho cientiacutefico etc Nisto consiste a

base socioloacutegica da teoria de Kuhn Eacute dela que parto para elaborar uma alternativa teoacuterica a Merton

natildeo sem antes lhe formular duas criacuteticas aliaacutes evidentes em face do que ficou dito atraacutes Em primeiro lugar Kuhn assume o caraacutecter preacuteshy

-paradigmaacutetico das ciecircncias sociais e logo o seu atraso em relaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais Pelas razotildees que apontei acima a superaccedilatildeo da crise de degenerescecircncia do paradigma da ciecircncia modema pressupotildee uma outra conceptualizaccedilatildeo antagoacutenica desta das relaccedilotildees entre ciecircncias naturais e ciecircncias sociais Em segundo lugar Kuhn submete a concepccedilatildeo positivista da ciecircncia a uma criacutetica radical ao fazer laquodescerraquo o estatuto da invenccedilatildeo validaccedilatildeo e refutaccedilatildeo das teorias

cientiacuteficas agraves vicissitudes da organizaccedilatildeo do conflito e do consenso no seio da comunidade cientiacutefica mas faacute-lo de modo a natildeo problematizar a existecircncia desta no seio da sociedade global Ainda que faccedila refeshyrecircncias dispersas agrave relaccedilatildeo complexa entre a comunidade cieritiacutefica e a sociedade em que se insere natildeo lhe daacute grande importacircncia nem aponta pistas para o seu tratamento sistemaacutetico

Do meu ponto de vista essa relaccedilatildeo eacute central por muitas razotildees que tecircm a ver com as condiccedilotildees sociais da dupla ruptura epistemoshyloacutegica e tambeacutem com o facto de a comunidade cientiacutefica ser hoje atravessada por uma tensatildeo polarizada entre nacionalismo e intershynacionalismo que se natildeo pode esclarecer sem situar geopoliticashymente a produccedilatildeo e a distribuiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Para isso eacute necessaacuterio conhecer as relaccedilotildees que intercedem entre as vaacuterias sociedades nacionais e as hierarquias que entre elas se estabelecem Este tema tem um interesse particular para as sociedades dependenshytes como Portugal Dentre os fundadores da sociologia do conhecishymento Marx eacute sem duacutevida o que mais se preocupa com a constishytuiccedilatildeo social do saber procurando explicaacute-la agrave luz das relaccedilotildees soshy

ciais de produccedilatildeo dominantes numa dada formaccedilatildeo social Por isso me parece justificar-se e ser possiacutevel uma articulaccedilatildeo entre o pensashymento de Kuhn e o pensamento de Marx com vista agrave constituiccedilatildeo de uma sociologia criacutetica da ciecircncia

Kuhn eacute pois um ponto de partida mas natildeo restam duacutevidas de que a investigaccedilatildeo propiciada pela sua teoria jaacute permitiu esclarecer uma

seacuterie de questotildees importarites que natildeo tinham soluccedilatildeo satisfatoacuteria no acircmbito do paradigma loacutegico-empiriacutestico-mertoniano por que razatildeo se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais

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I O papel lcntral da lomullidade cientiacutefica adveacutemmiddotmiddotlhe de ser itwtacircnda ele mediuccedilUo cntre o conhecimento cientiacutelico e a sociedade no sculmlo e lia sua tripla identidade socio-econoacutemicajuriacutedilo-poliacuteshyIka e iltkolotildegkocultural I~ nesta perspectiva er-teriori zante que deve

~cr eSludada 1estrutura interna da comunidade cientiacutefica

2 O poder que a ciecircncia exerce na sociedade eacute o produto dialeacutecshyiacuteico da rdaccedill10entre o poder que a iociedade exerce sobre aconlunidade

cientiacutefic c o poder que se exerce no seio desta

3 E1lI ctloa rIS~ do desenvolvimento da ciecircncia ou seja mesmo foru dos periacuteodos uetransiccedilatildeo entre paradigmas cientiacuteficos existem alwrnativa~ le(lIica ~ isto eacute alternativas enlre teorias rivais (e natildeo apcnafi ccedilnlre apIi4uccedil(ies rivais lIa mesma teoria) algumas das quais se impocircem sem que lal se possa atribuir a criteacuterio~ ele suficiecircncia de prova As conlradilfotildees de sobrevivecircncia das teorias meacutetodos e (onmiddotmiddot ~ ccedileilos suo estabclcddos pelo eambiente socialraquo em que a ciecircncia se i desenvolve cm articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees teoacutericas internas

4 Em ctlda momento histocircrIacutelo a ciecircncia tem lima estrutura pniacute pria que lhe nuumlo permite integrar quaisquer objectivos sodais (k qualquccedilr forma Essa estrutura eacute a medida da autollornia relativa da ciecircncia nos termos da qual a ciecircncia regula o seu desenvolvill1

(1I10

ltlinda qlll~ liatildeo pu~sa determinaacute-lo O trabalho da estrutura interna llil ciecircllcia COf j C numa operaccedilatildeo de t1ltragem -~- conversatildeo 11~t I middotmiddot ~ dom _ opcwccediliio que consiste na transformaccedilatildeo do objectivll snd LI middott~lt~A~~ t r~i-

em objectivo teoacuterico Nas actuais condiccediluumles de produccedilatildeo da ci C lId i ~ gt moderna o ()hj~ctivo f-ioda tpz consigo uma fOya polflica ql H (~ middot ~~~tAf~ estrutura d eutiacutefica tfm de converter em energia produtiva da imiddotmiddot Ild ll i middot~i middotrmiddot~y~ -tl

~middot~~middot~ middotimiddot~~middot

) Sendo enIO que a ciecircncia (~ um dos poderesmiddotmiddotsaberes Lf l l d~~imiddot~middotgtik 111111 ill Ik lo particularmcnte importante analisar as Sl li U 1Itl~i j xf ltI I 111 k I pri v i t1 ~ ildo 11 ~ () l iedmlc contemporlnca (t Pliltllmiddot bullbull I ~~~gt bull~ Jj bull I I 1 I l il11 iacute i l de j l lIIIplkada sohre ti que lIiI rl(ft(lfH~ 1t)D~F IIgt 11 11 1 1 d I I I qll 1111 1110 a ~ lI id(k ci vil I ld~~ II tJ iacutefUacuteeYf~iltmiddot ~~i _ ~ ~ I

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11 ) Iwd ld I qli II 111 11 11 iII di I ilI uacutenl lllt C Hli l fdV~jmiddotmiddotf~7J JnmiddotW middotmiddotmiddot I iacute I

sodedade civil eacute superada e substituiacuteda por outras configuraccedilotildees conceptuais mais complexas Mas o problema subsiste enquanto indagaccedilatildeo sobre o acircmbito e a eficaacutecia da conversuo reguladora de uma dada disciplina cientiacutefica num dado momento histoacuterico

6 A conversatildeo reguladora corresponde no plano socioloacutegico agrave primeira ruptura epistemoloacutegica que por razotildees paralelas varia ele acircmbito e de eficaacutecia Porque o objecto cmpiacuterko que a primeiru ruptura transforma em objecto teoacuterico eacute sempre um objectivo soCial e poliacutetico esta deacutemarc7e epistemoloacutegica eacute o modo (mais ou menos) especiacutefico e autoacutenomo de a ciecircncia viver a sua dependecircncia em relashyccedilatildeo 11s forccedilas sociais que determinam o ritmo e o sentido elo seu descnvolvimento

7 Numa fase de crise paradigmaacutetica da ciecircncia a conversatildeo reguladora e a ruptura epistemoloacutegica que a torna teoricamente possiacutevel assumem um caraacutecter contraditoacuterio tanto mais vincado quanto mais desenvolvida for a disciplina cientiacutefica em causa A contradiccedilatildeo reside no facto de a sofisticaccedilatildeo teoacuterica e os elevados recursos organizativos e tccnoloacutegicos envolvidos na constituiccedilatildeo elos objeclos teoacutericos (a face de autonomia da ciecircncia) se denunciarem como forma de ocultaccedilatildeo da presenccedila determinanle em todo o proshycesso teoacuterico dos objectivos soCiais supostamente apenas presentes no accionamento do processo (a face ele dependecircncia da ciecircncia) No momento em que os instrumentos teoacutericos da autonomia do conhecishymento cientiacutefico se revelam como condiccedilotildees ideoloacutegicas da sua dependecircncia eacute possiacutevel dadas certas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas que a comunidade cientiacutefica assuma plenamente a pertenccedila muacutetua dos objectos teoacutericos e dos objectivos sociais e aja em conformidade trazendo os objectivos sociais enquanto tal para dentro da reflexatildeo epistemoloacutegica e metodoloacutegica e os objectos teoacutericos enquanto tal para dentro dos debates sociais e poliacuteticos onde se formam os objecshyI ivos sociais Agindo assim a comunidade cientiacutefica usa a conversatildeo reguladora como forma de regular a transformaccedilatildeo do conhecimento middotiellliacutefico numa nova configuraccedilatildeo de saber e do mesmo passo a sua

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procircpria llilIISfonnuatildeo numa cmnunidade ckolIacuteka natildeuuml neccl-sariamiddotmiddot mente menos cientiacutefiltu ma ccrWHcnte mai s comunitaacuteria Ete uso

da convels( regllladora eacute possiacutevel no plano Icocircrico rnedianlc tI

~cgll lla mplura epbtemoloacutegka a sociologia criliccedila da ciecircncia tcrn

por tarefa primip1l identificar as condiccedilotildees sociais que a viabilizell1

socialmell l~ dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLiacutelkl

53 CmuHccediluumlti tiochuamps d~~ dupla ruptura eq~ocircsecttt~moloacute8ica

iacute Nus capilulos precedente~ indiquei as condiccediluumlcs lcoacutetcas de ullIa

cOllcepccedilatildeo de ciecircncia pautuda pdo princiacutepio da dU~~1uPtura episH- mnloacutegka Aocircverti repelidas vecs que as condir cs tcoacuterIacute(as seru(j gt~ de pouca ou IIcnhuma eficaacutecia se natildeo estiver l realizadas c~ rIi iiimiddoti~i ~~

condiccedilotildees odai ( foi com base nessa advcr ~ncia que mo~ lrci pur r3_~~ m~cmplo os imites do exerciacutecio da refley idade e da poposla dr UacuteYt~ Giddens sohrc a dupla hermenecircutica C9-tle agora indicar tais CIHIl ti L~T~ ~otildees stJdai s AIItes poreacutem conveacutem r~umir o argumento ~I~ l 1 ~IIi ~~tf~middot~~~ produzlllo f

A coml~ccedilJr dev (~raacute ter-se lre nte em qU(~ con~isle ti dupla ntp~) tu m ccedil I) que se pretende com middot a Disse alraacutes que U1l1a Vl1 rt I U(~ ruptura cpi~tcmoloacutegica o aeL cphlemologicamcnt(maiacutes i11 1l1 lnHW~r t eacute a fllpl ura com a ruptura e iacutestmnol6gica Isto signifiG qUl (1 I li1f 1middotXr ponto de vista (k ixoll d middot ter scntido criar um conhu illHlIltl 11 1I~1i~~X autoacutenomo cm confront ) com o senso comum (pritlliacutel l rlp lllill~~ middot~ -r A

eise conhecimenlo no se destinar a transformar () SI I~ ll rfln1i fF 1 a tmnSrQnnII st~ II I~ (segunda ruptura) Depoi~ ltIv I r ltil~Y~t middot~I~y prodigioo lesei olvirnento dClltiacutefico torna-sccedil illl()I nl~IiHt1r alienante concluir com Wittg(~nstein citado tlll i p tl fI frmiddotW-~ ~(fi~ 1(lIlII1([lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill 1]ntmIt~~

1 Llll lltlIWa sabedoria du Inllndo do lOIlHIII fltll ( ~ l~ p I 1111 )11 ll1atllreza Ta faclo vecircst 1J(H l ll(ii~~~i ~

~~~~ ~

-se agrave hegemonia incondicional do saber cientiacutefieo e agrave consequente

marginalizaccedilatildeo de outros saberes vigentes na sociedade tais como o saber religioso artiacutestico literaacuterio miacutetico poeacutelico e poliacutetico que

em eacutepocas anteriores tinham em conjunto sido responsaacuteveis pela sabedoria praacutetica (a phOnesis) ainda que restrita camadas privileshygiadas da sociedade A vocaccedilatildeo teacutecnica e inslr mental do conhecishymento cientiacutefico tornou possiacutevel a sobreviv leia do homem a um

niacutevel nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado

muito aqueacutem da promessa teacutecnica) mas rque concretizada sem o conLributo de outros saberes aprendei os a sobreviver no mesJl10

processo e medida em que deixaacutemo de saber viver Um conhecishy

mento anoacutenimo reduziu eacute praxis uuml t cnita O ser possiacutevel este diagnoacutesti o significa jaacute de si yue o parashy

digma da ciecircncia que presidiu a este processo histoacuterico se encontra em crise e que a crise natildeo eacute peraacutevcl mediante simples reforl1las

pareiais do paradigma Estai os pois numa fase de transiccedilatildeo parashy

digmiacutetica que como qUlller outra eacute caracterizada pela reconcepshy

tual~zaccedililo da ( iecircn~ia que xiste em funccedilatildeo de ul1ll~n(lva ciecircncia cujo perhl apenas se vlSlurn m Tal rcconceptllUltzaccedilao resulta do conshyjunto das eondiccedilotildees te ricas analisadas nos capiacutetulos precedenles e que agora se resume

I A episten 610gia representa em qualquer das suas correntes

a consciecircncia d ciecircncia moderna Problematiza a validade do conheshy

cimento cien fico mas natildeo o sentido deste no mundo contemporacircshy

neo Pelo c ntraacuterio pressupotildee como dado e evidente esse sentido

quando eacute erto que o conhecimento cientiacutefico eacute cada vez mais incotnshy

preensfL I e incomensuraacutevel em face dos demais conhecimentos que

lircul n na soeiedade A plOblematizaccedilatildeo do sentido da ciecircncia

l ~ i 1 que a epistemologia seja ela proacutepria submetida agrave reflexatildeo lcrllIenecircutica

2 A reflexatildeo hermenecircutica cumpre-se desconstruindo os objecshy1(1 1(lIacuteric os que a ciecircncia constroacutei sobre si proacutepria e consequenshy

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

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mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

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O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

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bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

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Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

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As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

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Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

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Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 5: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

~ ( - lt~- 1 M Y vV e J-E

I O papel lcntral da lomullidade cientiacutefica adveacutemmiddotmiddotlhe de ser itwtacircnda ele mediuccedilUo cntre o conhecimento cientiacutelico e a sociedade no sculmlo e lia sua tripla identidade socio-econoacutemicajuriacutedilo-poliacuteshyIka e iltkolotildegkocultural I~ nesta perspectiva er-teriori zante que deve

~cr eSludada 1estrutura interna da comunidade cientiacutefica

2 O poder que a ciecircncia exerce na sociedade eacute o produto dialeacutecshyiacuteico da rdaccedill10entre o poder que a iociedade exerce sobre aconlunidade

cientiacutefic c o poder que se exerce no seio desta

3 E1lI ctloa rIS~ do desenvolvimento da ciecircncia ou seja mesmo foru dos periacuteodos uetransiccedilatildeo entre paradigmas cientiacuteficos existem alwrnativa~ le(lIica ~ isto eacute alternativas enlre teorias rivais (e natildeo apcnafi ccedilnlre apIi4uccedil(ies rivais lIa mesma teoria) algumas das quais se impocircem sem que lal se possa atribuir a criteacuterio~ ele suficiecircncia de prova As conlradilfotildees de sobrevivecircncia das teorias meacutetodos e (onmiddotmiddot ~ ccedileilos suo estabclcddos pelo eambiente socialraquo em que a ciecircncia se i desenvolve cm articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees teoacutericas internas

4 Em ctlda momento histocircrIacutelo a ciecircncia tem lima estrutura pniacute pria que lhe nuumlo permite integrar quaisquer objectivos sodais (k qualquccedilr forma Essa estrutura eacute a medida da autollornia relativa da ciecircncia nos termos da qual a ciecircncia regula o seu desenvolvill1

(1I10

ltlinda qlll~ liatildeo pu~sa determinaacute-lo O trabalho da estrutura interna llil ciecircllcia COf j C numa operaccedilatildeo de t1ltragem -~- conversatildeo 11~t I middotmiddot ~ dom _ opcwccediliio que consiste na transformaccedilatildeo do objectivll snd LI middott~lt~A~~ t r~i-

em objectivo teoacuterico Nas actuais condiccediluumles de produccedilatildeo da ci C lId i ~ gt moderna o ()hj~ctivo f-ioda tpz consigo uma fOya polflica ql H (~ middot ~~~tAf~ estrutura d eutiacutefica tfm de converter em energia produtiva da imiddotmiddot Ild ll i middot~i middotrmiddot~y~ -tl

~middot~~middot~ middotimiddot~~middot

) Sendo enIO que a ciecircncia (~ um dos poderesmiddotmiddotsaberes Lf l l d~~imiddot~middotgtik 111111 ill Ik lo particularmcnte importante analisar as Sl li U 1Itl~i j xf ltI I 111 k I pri v i t1 ~ ildo 11 ~ () l iedmlc contemporlnca (t Pliltllmiddot bullbull I ~~~gt bull~ Jj bull I I 1 I l il11 iacute i l de j l lIIIplkada sohre ti que lIiI rl(ft(lfH~ 1t)D~F IIgt 11 11 1 1 d I I I qll 1111 1110 a ~ lI id(k ci vil I ld~~ II tJ iacutefUacuteeYf~iltmiddot ~~i _ ~ ~ I

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sodedade civil eacute superada e substituiacuteda por outras configuraccedilotildees conceptuais mais complexas Mas o problema subsiste enquanto indagaccedilatildeo sobre o acircmbito e a eficaacutecia da conversuo reguladora de uma dada disciplina cientiacutefica num dado momento histoacuterico

6 A conversatildeo reguladora corresponde no plano socioloacutegico agrave primeira ruptura epistemoloacutegica que por razotildees paralelas varia ele acircmbito e de eficaacutecia Porque o objecto cmpiacuterko que a primeiru ruptura transforma em objecto teoacuterico eacute sempre um objectivo soCial e poliacutetico esta deacutemarc7e epistemoloacutegica eacute o modo (mais ou menos) especiacutefico e autoacutenomo de a ciecircncia viver a sua dependecircncia em relashyccedilatildeo 11s forccedilas sociais que determinam o ritmo e o sentido elo seu descnvolvimento

7 Numa fase de crise paradigmaacutetica da ciecircncia a conversatildeo reguladora e a ruptura epistemoloacutegica que a torna teoricamente possiacutevel assumem um caraacutecter contraditoacuterio tanto mais vincado quanto mais desenvolvida for a disciplina cientiacutefica em causa A contradiccedilatildeo reside no facto de a sofisticaccedilatildeo teoacuterica e os elevados recursos organizativos e tccnoloacutegicos envolvidos na constituiccedilatildeo elos objeclos teoacutericos (a face de autonomia da ciecircncia) se denunciarem como forma de ocultaccedilatildeo da presenccedila determinanle em todo o proshycesso teoacuterico dos objectivos soCiais supostamente apenas presentes no accionamento do processo (a face ele dependecircncia da ciecircncia) No momento em que os instrumentos teoacutericos da autonomia do conhecishymento cientiacutefico se revelam como condiccedilotildees ideoloacutegicas da sua dependecircncia eacute possiacutevel dadas certas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas que a comunidade cientiacutefica assuma plenamente a pertenccedila muacutetua dos objectos teoacutericos e dos objectivos sociais e aja em conformidade trazendo os objectivos sociais enquanto tal para dentro da reflexatildeo epistemoloacutegica e metodoloacutegica e os objectos teoacutericos enquanto tal para dentro dos debates sociais e poliacuteticos onde se formam os objecshyI ivos sociais Agindo assim a comunidade cientiacutefica usa a conversatildeo reguladora como forma de regular a transformaccedilatildeo do conhecimento middotiellliacutefico numa nova configuraccedilatildeo de saber e do mesmo passo a sua

II li

procircpria llilIISfonnuatildeo numa cmnunidade ckolIacuteka natildeuuml neccl-sariamiddotmiddot mente menos cientiacutefiltu ma ccrWHcnte mai s comunitaacuteria Ete uso

da convels( regllladora eacute possiacutevel no plano Icocircrico rnedianlc tI

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por tarefa primip1l identificar as condiccedilotildees sociais que a viabilizell1

socialmell l~ dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLiacutelkl

53 CmuHccediluumlti tiochuamps d~~ dupla ruptura eq~ocircsecttt~moloacute8ica

iacute Nus capilulos precedente~ indiquei as condiccediluumlcs lcoacutetcas de ullIa

cOllcepccedilatildeo de ciecircncia pautuda pdo princiacutepio da dU~~1uPtura episH- mnloacutegka Aocircverti repelidas vecs que as condir cs tcoacuterIacute(as seru(j gt~ de pouca ou IIcnhuma eficaacutecia se natildeo estiver l realizadas c~ rIi iiimiddoti~i ~~

condiccedilotildees odai ( foi com base nessa advcr ~ncia que mo~ lrci pur r3_~~ m~cmplo os imites do exerciacutecio da refley idade e da poposla dr UacuteYt~ Giddens sohrc a dupla hermenecircutica C9-tle agora indicar tais CIHIl ti L~T~ ~otildees stJdai s AIItes poreacutem conveacutem r~umir o argumento ~I~ l 1 ~IIi ~~tf~middot~~~ produzlllo f

A coml~ccedilJr dev (~raacute ter-se lre nte em qU(~ con~isle ti dupla ntp~) tu m ccedil I) que se pretende com middot a Disse alraacutes que U1l1a Vl1 rt I U(~ ruptura cpi~tcmoloacutegica o aeL cphlemologicamcnt(maiacutes i11 1l1 lnHW~r t eacute a fllpl ura com a ruptura e iacutestmnol6gica Isto signifiG qUl (1 I li1f 1middotXr ponto de vista (k ixoll d middot ter scntido criar um conhu illHlIltl 11 1I~1i~~X autoacutenomo cm confront ) com o senso comum (pritlliacutel l rlp lllill~~ middot~ -r A

eise conhecimenlo no se destinar a transformar () SI I~ ll rfln1i fF 1 a tmnSrQnnII st~ II I~ (segunda ruptura) Depoi~ ltIv I r ltil~Y~t middot~I~y prodigioo lesei olvirnento dClltiacutefico torna-sccedil illl()I nl~IiHt1r alienante concluir com Wittg(~nstein citado tlll i p tl fI frmiddotW-~ ~(fi~ 1(lIlII1([lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill 1]ntmIt~~

1 Llll lltlIWa sabedoria du Inllndo do lOIlHIII fltll ( ~ l~ p I 1111 )11 ll1atllreza Ta faclo vecircst 1J(H l ll(ii~~~i ~

~~~~ ~

-se agrave hegemonia incondicional do saber cientiacutefieo e agrave consequente

marginalizaccedilatildeo de outros saberes vigentes na sociedade tais como o saber religioso artiacutestico literaacuterio miacutetico poeacutelico e poliacutetico que

em eacutepocas anteriores tinham em conjunto sido responsaacuteveis pela sabedoria praacutetica (a phOnesis) ainda que restrita camadas privileshygiadas da sociedade A vocaccedilatildeo teacutecnica e inslr mental do conhecishymento cientiacutefico tornou possiacutevel a sobreviv leia do homem a um

niacutevel nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado

muito aqueacutem da promessa teacutecnica) mas rque concretizada sem o conLributo de outros saberes aprendei os a sobreviver no mesJl10

processo e medida em que deixaacutemo de saber viver Um conhecishy

mento anoacutenimo reduziu eacute praxis uuml t cnita O ser possiacutevel este diagnoacutesti o significa jaacute de si yue o parashy

digma da ciecircncia que presidiu a este processo histoacuterico se encontra em crise e que a crise natildeo eacute peraacutevcl mediante simples reforl1las

pareiais do paradigma Estai os pois numa fase de transiccedilatildeo parashy

digmiacutetica que como qUlller outra eacute caracterizada pela reconcepshy

tual~zaccedililo da ( iecircn~ia que xiste em funccedilatildeo de ul1ll~n(lva ciecircncia cujo perhl apenas se vlSlurn m Tal rcconceptllUltzaccedilao resulta do conshyjunto das eondiccedilotildees te ricas analisadas nos capiacutetulos precedenles e que agora se resume

I A episten 610gia representa em qualquer das suas correntes

a consciecircncia d ciecircncia moderna Problematiza a validade do conheshy

cimento cien fico mas natildeo o sentido deste no mundo contemporacircshy

neo Pelo c ntraacuterio pressupotildee como dado e evidente esse sentido

quando eacute erto que o conhecimento cientiacutefico eacute cada vez mais incotnshy

preensfL I e incomensuraacutevel em face dos demais conhecimentos que

lircul n na soeiedade A plOblematizaccedilatildeo do sentido da ciecircncia

l ~ i 1 que a epistemologia seja ela proacutepria submetida agrave reflexatildeo lcrllIenecircutica

2 A reflexatildeo hermenecircutica cumpre-se desconstruindo os objecshy1(1 1(lIacuteric os que a ciecircncia constroacutei sobre si proacutepria e consequenshy

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

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mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

3

O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

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bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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WIllIi _____ _d

fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

4

Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

6

As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

7

Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

8

Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

9

A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 6: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

II li

procircpria llilIISfonnuatildeo numa cmnunidade ckolIacuteka natildeuuml neccl-sariamiddotmiddot mente menos cientiacutefiltu ma ccrWHcnte mai s comunitaacuteria Ete uso

da convels( regllladora eacute possiacutevel no plano Icocircrico rnedianlc tI

~cgll lla mplura epbtemoloacutegka a sociologia criliccedila da ciecircncia tcrn

por tarefa primip1l identificar as condiccedilotildees sociais que a viabilizell1

socialmell l~ dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLiacutelkl

53 CmuHccediluumlti tiochuamps d~~ dupla ruptura eq~ocircsecttt~moloacute8ica

iacute Nus capilulos precedente~ indiquei as condiccediluumlcs lcoacutetcas de ullIa

cOllcepccedilatildeo de ciecircncia pautuda pdo princiacutepio da dU~~1uPtura episH- mnloacutegka Aocircverti repelidas vecs que as condir cs tcoacuterIacute(as seru(j gt~ de pouca ou IIcnhuma eficaacutecia se natildeo estiver l realizadas c~ rIi iiimiddoti~i ~~

condiccedilotildees odai ( foi com base nessa advcr ~ncia que mo~ lrci pur r3_~~ m~cmplo os imites do exerciacutecio da refley idade e da poposla dr UacuteYt~ Giddens sohrc a dupla hermenecircutica C9-tle agora indicar tais CIHIl ti L~T~ ~otildees stJdai s AIItes poreacutem conveacutem r~umir o argumento ~I~ l 1 ~IIi ~~tf~middot~~~ produzlllo f

A coml~ccedilJr dev (~raacute ter-se lre nte em qU(~ con~isle ti dupla ntp~) tu m ccedil I) que se pretende com middot a Disse alraacutes que U1l1a Vl1 rt I U(~ ruptura cpi~tcmoloacutegica o aeL cphlemologicamcnt(maiacutes i11 1l1 lnHW~r t eacute a fllpl ura com a ruptura e iacutestmnol6gica Isto signifiG qUl (1 I li1f 1middotXr ponto de vista (k ixoll d middot ter scntido criar um conhu illHlIltl 11 1I~1i~~X autoacutenomo cm confront ) com o senso comum (pritlliacutel l rlp lllill~~ middot~ -r A

eise conhecimenlo no se destinar a transformar () SI I~ ll rfln1i fF 1 a tmnSrQnnII st~ II I~ (segunda ruptura) Depoi~ ltIv I r ltil~Y~t middot~I~y prodigioo lesei olvirnento dClltiacutefico torna-sccedil illl()I nl~IiHt1r alienante concluir com Wittg(~nstein citado tlll i p tl fI frmiddotW-~ ~(fi~ 1(lIlII1([lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill 1]ntmIt~~

1 Llll lltlIWa sabedoria du Inllndo do lOIlHIII fltll ( ~ l~ p I 1111 )11 ll1atllreza Ta faclo vecircst 1J(H l ll(ii~~~i ~

~~~~ ~

-se agrave hegemonia incondicional do saber cientiacutefieo e agrave consequente

marginalizaccedilatildeo de outros saberes vigentes na sociedade tais como o saber religioso artiacutestico literaacuterio miacutetico poeacutelico e poliacutetico que

em eacutepocas anteriores tinham em conjunto sido responsaacuteveis pela sabedoria praacutetica (a phOnesis) ainda que restrita camadas privileshygiadas da sociedade A vocaccedilatildeo teacutecnica e inslr mental do conhecishymento cientiacutefico tornou possiacutevel a sobreviv leia do homem a um

niacutevel nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado

muito aqueacutem da promessa teacutecnica) mas rque concretizada sem o conLributo de outros saberes aprendei os a sobreviver no mesJl10

processo e medida em que deixaacutemo de saber viver Um conhecishy

mento anoacutenimo reduziu eacute praxis uuml t cnita O ser possiacutevel este diagnoacutesti o significa jaacute de si yue o parashy

digma da ciecircncia que presidiu a este processo histoacuterico se encontra em crise e que a crise natildeo eacute peraacutevcl mediante simples reforl1las

pareiais do paradigma Estai os pois numa fase de transiccedilatildeo parashy

digmiacutetica que como qUlller outra eacute caracterizada pela reconcepshy

tual~zaccedililo da ( iecircn~ia que xiste em funccedilatildeo de ul1ll~n(lva ciecircncia cujo perhl apenas se vlSlurn m Tal rcconceptllUltzaccedilao resulta do conshyjunto das eondiccedilotildees te ricas analisadas nos capiacutetulos precedenles e que agora se resume

I A episten 610gia representa em qualquer das suas correntes

a consciecircncia d ciecircncia moderna Problematiza a validade do conheshy

cimento cien fico mas natildeo o sentido deste no mundo contemporacircshy

neo Pelo c ntraacuterio pressupotildee como dado e evidente esse sentido

quando eacute erto que o conhecimento cientiacutefico eacute cada vez mais incotnshy

preensfL I e incomensuraacutevel em face dos demais conhecimentos que

lircul n na soeiedade A plOblematizaccedilatildeo do sentido da ciecircncia

l ~ i 1 que a epistemologia seja ela proacutepria submetida agrave reflexatildeo lcrllIenecircutica

2 A reflexatildeo hermenecircutica cumpre-se desconstruindo os objecshy1(1 1(lIacuteric os que a ciecircncia constroacutei sobre si proacutepria e consequenshy

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

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mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

3

O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

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bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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WIllIi _____ _d

fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

4

Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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5

As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

6

As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

7

Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

8

Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

9

A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 7: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

medieval a natureza fora em certo sentiduacute lU milagre constante cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~

intervenccedilatildeo divina O espiacuterito renascentista e moderno tambeacutem l considera maravilhosa a natureza mas por uma razatildeo diferente I acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas leis O nascimento do meacutetodo cientiacutefico repousa na nossa convicccedilatildeo II de que ii natureza natildeo eacute arbitraacuteria mas profundamente respeitadora ~ de leis

Quando os homens dizem que a natureza n1io eacute arbitraacuteria mas segue leis consistentes querem implicitamente significar que as suas leis satildeo inteligiacuteveis para o espiacuterito humano (Se os homens natildeo conseguem compreender como funciona uma lei da natureza natildeo podem reconhececirc-la como lei pensam-na como arbitraacuteria) Por isso a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida por leis solicitou os homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir as suas leis ambas essenciais para o meacutetodo cientiacutefico r shy

POI um lado a convicccedilatildeo de que a natureza eacute regida- por leis estimulou os homens a olharem atentamente os fenoacutemenos naturais para observar e para experimentar com o fim de constatar de que maneiras ela se repete - para descobrir praticamente o moshydelo que preside agrave sua consistecircncia E por outro lado estimulou os homens para pensarem para laacute dos modelos praacuteticos para anashylisarem e raciocinarem com o fim de descobrir a sua organizaccedilatildeo simples e racional - para descobrirem leis inteligiacuteveis A combinashyccedilatildeo do empiacuterico e do racional perfaz o meacutetodo cientiacuteficoacute~---

middotTiagraveccedilacircmoacutes- es1atildeConexatildeoentre -experimematildeccedilatildeotilde empmcagrave e invesshytigaccedilatildeo racional que faz o progresso cientiacutefico Em nossa opiniatildeo a combinaccedilatildeo bem sucedida de ambos eacute primeiramente prefigurada na figura de Leonardo No seacuteculo seguinte ao da sua morte a combinaccedilatildeo desses dois modos inspirou os pioneiros da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nas ciecircncias fiacutesicas Copeacuternico Kepler e sobretudo Galileu A sua obra alcanccedilou o seu ponto final noutra eacutepoca da histoacuteria a eacutepoca da Royal Society e da realizaccedilatildeo eminente de Isaac Newton

A investigaccedilatildeo empiacuterica e a racional continuaram a ser conshyjuntamente necessaacuterias para o desenvolvimento da ciecircncia Sempre que uma foi alargada agrave custa da outra o progresso tornou-se unishylateral Assim a predominacircncia da investigaccedilatildeo racional demashysiadamente pouco sustentada pela experimentaccedilatildeo em Descartes e seus seguidores foi uma limitaccedilatildeo para a ciecircncia francesa quase ateacute ao tempo da Revoluccedilatildeo Francesa O meacutetodo cartesiano ela duacutevida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- dicionais acerca do funcionamento da natureza mas natildeo podia criar um sistema positivo e praacutetico de leis naturais

Em contrapartida a decadecircncia da Royal Society em Inglaterra no seacutec XVIII levou a que a investigaccedilatildeo racional fosse subestishy

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mada Isso deL inteligecircncias ascedentes da Inglaterra e da Ameacuteshyrica cerca de 1760 um pendor predominantemente praacutetico e uma perspectiva empirista da ciecircncia Em consequecircncia as realizaccedilotildees teacutecnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e eacutetico e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade industrial primitiva

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O movimento fundamental do espiacuterito ocidental desde o Renasshycimento em direcccedilatildeo a uma perspectiva da natureza governada por leis consistentes tambeacutem se fez sentir nas ciecircncias humanas A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligiacuteveiS tarComo a natureza fiacutesica Em especial os homens acreditaram desde o I Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- nas De algum modo as leis da sociedade natildeo podem ser arbitraacuterias devem derivar conformar-se e fundamentalmente satisfazer as necessidades e as aspiraccedilotildees dos indiviacuteduos O uso exactamente igual da mesma palavra laquoleiraquo para a governaccedilatildeo e para a ciecircncia implica que o governo deve ser como a ciecircncia e deve aprender a conformar-se com a natureza da sua mateacuteria Deste ponto de vista que penetrou o espiacuterito ocidental desde o Renascimento a legislaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo de eacuteditos mas no fundo de investishy

- gatildeccedilatildeo e o estado se quer sobreviver natildeo deve impor as suas leis mas sim descobri-Ias na natureza das relaccedilotildees humanas I

Haacute poreacutem um aspecto no qual a evoluccedilatildeo das ciecircncias humashynas diferiu da das ciecircncias fiacutesicas desde o Renascimento As ciecircncias humanas natildeo integraram a investigaccedilatildeo empiacuterica e a investigaccedilatildeo racional Aqueles que praticaram ou pelo menos advogaram o estudo empiacuterico das sociedades humanas divorciaram-no totalmente da anaacutelise racional frequentemente com base em que esta tende a ser inflectida por juiacutezos a priori e morais E por outro lado aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na anaacutelise rashycional das motivaccedilotildees dos indiviacuteduos tenderam a separar os seus trabalhos da proacutepria sociedade como versatildeo distorcida ou irreleshyvante da sua Utopia ideal Podemos ignorar aqui as moderaccedilotildees necessaacuterias que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos capiacutetulos e adoptar a seguinte classificaccedilatildeo lata Assim Maquiavel ~ cuja laquonova estrada deu iniacutecio ao estudo empiacuterico do poder poliacutetico ~ despreza aqueles que buscam motivos racionais por detraacutes dos poliacuteshyticos Bayle e de alguma forma Montesquieu deram vida agrave trashydiccedilatildeo empiacuterica que foi entatildeo estabelecida na sua forma moderna por Adam Smith Haacute tambeacutem um vislumbre do desprezo de Mashy

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bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

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Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

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As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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_ __ _- _ shy

no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

7

Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

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Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 8: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

bull _ __ __ t~u -1LdltaU aas motlvaccedilotilde acionais em Burke e mais do que um vislumbre em Hegel em ambos o trabalhar empiacuterico da histoacuteria eacute objecto de uma admiraccedilatildeo miacutestica que negaria em uacuteltima anaacutelise o estudo cientiacutefico

A anaacutelise racional da sociedade como construccedilatildeo que serve e satisfaz as1eCecircssieacuteladeacutes-Ilumanas comeccedila tambeacutem no Renascimento com Thomas More e seus colegas humanistas entre os quais Erasmo Prolongaacutemos esta anaacutelise atraveacutes de Hobbes e de Locke cujas deduccedilotildees poliacuteticas diferentes nascem igualmente da analogia com as ciecircncias fiacutesicas da eacutepoca de Newton Daiacute a anaacutelise da sociedade era continuada por Voltaire e pelos filoacutesofos que prepashyraram o ambiente intelectual para a Revoluccedilatildeo Francesa conshycorrendo igualmente e mais directamente para o espiacuterito de homens como Franklin e Jefferson que expressam o ambiente da Revoshyluccedilatildeo Americana A sua ra~izaccedil1Q final eacute obtida por Jeremy Bentharn que desprezava-de tal modo todas as formas existentes de sociedade e apesar disso era tatildeo aacutevido de ser praacutetico no seu racionalismo Em Bentham o sistema eacute ainda dominado pela ciecircncia newtoniana Soacute depois de Kant ter proporcionado uma dialeacutectica mais subtil da relaccedilatildeo do observador cientiacutefico agravequilo que observa daquele que conhece ao que eacute conhecido eacute que Hegel pocircde chegar a uma dialeacutectica da histoacuteria que tentava introduzir um racionashylismo mais depurado

Haacute muitas razotildees pelas quais as eiecircncias humanas natildeo conseshyguiram dar conta tatildeo satisfatoriamente do seu domiacutenio de investishygaccedilatildeo como as ciecircncias fizeram para os seus Uma razatildeo importante eacute a que apontaacutemos As ciecircncias humanas natildeo conseguiram encontrar ~ um meacutetodo tatildeo coerente corno o das ciecircncias naturais porque natildeo 1 reuniram os dois modos de investigaccedilatildeo o empiacuterico e o racional Haacute ainda uma falha maior nas ciecircncias humanas a tentativa de construir uma anaacutelise racional da sociedade a partir das motivaccedilotildees 1 dos indiviacuteduos ficou separada do estudo praacutetico do funcionamento t em larga escala dos estados e das comunidades

Esta contiacutenua separaccedilatildeo da investigaccedilatildeo racional e empiacuterica em ciecircncias humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um eloI loacutegico uma forma de passar racionalmente do motivo para a acccedilatildeo

suficientemente subtil para convir ao material humano O simples raciociacutenio de causa e efeito que desde o tempo de Hobbes deu coerecircncia agraves ciecircncias fiacutesicas eacute demasiado grosseiro para dar conta da interrelaccedilatildeo das motivaccedilotildees humanas numa sociedade alargada Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciecircncias humanas seja estatiacutestico e venha a implicar algo de tatildeo radical como a aplishycaccedilatildeo de grandes maacutequinas computadoras aos problemas sociais e econoacutemicos Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais proshy

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fundo p conjugar as investigaccedilotildees empiacuterica e racional nas ciecircn- l eias humanas

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Na sua confiante busca pelas leis da natureza fiacutesica e humana as ciecircncias ocircesenharam um outro percurso Foi o da secularizaccedilatildeo do ~amento e a sua emancipaccedilatildeo de eacuteditos absolutos que natildeo estatildeo abertos agrave investigaccedilatildeo Maquiavel e Galileu BayJe e Locke Franklin Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso permaneceu poderoso e inesgotaacutevel desde o Renascimento Foi poderoso na literatura na arte e tambeacutem na filosofia

Haacute um sentido em que por paradoxal que pareccedila este movishymento de secularizaccedilatildeo foi tambeacutem poderoso nas mutaccedilotildees religioshysas do periacuteodo coberto por este livro O movimento humanista de Erasmo e dos seus contemporacircneos era certamente um movimento de secularizaccedilatildeo pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas eram em si mesmas virtudes humanas naturais Neste sentido o humanismo era e eacute exactamente o que o seu nome traz impliacutecito o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o criteacuterio do que eacute bom justo e belo Este desejo implica que afinal cada homem deve julgar por si mesmo em questotildees de verdade e de justiccedila tal como em questotildees de gosto

A convicccedilatildeo de que o homem natildeo pode aceitar a autoridade mas deve formar os seus proacuteprios juiacutezos mspirou--lteforma e as suas diferentes expressotildeesincluindo a sua expressatildeo extrema na Revoluccedilatildeo Puritana em Inglaterra Segundo esta convicccedilatildeo as revoshyluccedilotildees da feacute e as revoluccedilotildees sociais vatildeo de matildeos dadas e assim as vimos Mesmo a uacuteltima Revoluccedilatildeo Industrial recebeu a sua energia de uma eacutetica proacutepria que desviou o caraacutecter das virtudes cristatildes em direcccedilatildeo da economia da frugalidade e da resignaccedilatildeo A este respeito John Wesley no seacuteculo XVIII foi tatildeo inovador como Lutero e Calvino no seacuteculo XVI

A secularizaccedilatildeo t pois uma faceta desse humanismo militante que o Renascimento introduziu e do qual de algum modo todos os personagens deste livro satildeo testemunhas Natildeo eacute uma afronta aos valores tradicionais mas um desejo do espiacuterito humano de se exashyminar a si mesmo e encontrar uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre os seus dons e os seus valores Quando pintavam homens e mulheres tatildeo belos os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude secular eacute uma forma de orgulho nos dons que nos fazem humashynos E a obra de filoacutesofos cientistas e historiadores diz-nos hoje que a relaccedilatildeo do homem com a natureza e consigo mesmo natildeo estaacute preacute-determinada mas serve para estudar o homem o formar e assim o enriquecer

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

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As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

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Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

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Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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As novas atitudes 3~ntiacutefi~~~~_JEE~2Luida tiveram efeito em todos osaspectos da actividade do homem O tema da filosofia da pintura e da literatura mudaram durante o periacuteodo de que trata este livro Eacute evidente que nenhum escritor medieval teria podido escrever uma tese sobre electroacutenica mas eacute igualmente vershydade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance moderno Tal como as mudanccedilas de perspectiva desde o Renascishymento afectaram o conteuacutedo daquilo que os homens pensam e escrevem assim afectaram a maneira como pensam e escrevem O estilo de um homem ou de uma eacutepoca espelham o pensamento e onde melhor captamos esse pensamento o seu colorido e a sua personalidade inconsciente eacute quando lemos em primeira matildeo como eacute que o homem e a eacutepoca se expressaram com as suas proacuteprias palavras

A escrita esplecircndida e apaixonada dos isabelinos eacute em certo sentido a uacuteltima expressatildeo do alto Renascimento o seu estilo eacute mais claacutessico que moderno Depois a Revoluccedilatildeo Puritana reflecte-se nas pessoas e maneiras da Royal Society que consideravam uma questatildeo de principio escrever simples e praticamente acerca de facshytos simples e praacuteticos O estilo de Pascal bem como o estilo de Jefferson derivam de um modelo rigoroso que suspeitava de qualshyquer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles olhavam como implicando a convicccedilatildeo pela sua simples enunciashyccedilatildeo) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar E eacute notaacutevel que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na saacutetira mordaz de Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin

O novo estilo de facto tem uma inclinaccedilatildeo particular para a saacutetira e era dessa maneira usado quase no iniacutecio da Revoluccedilatildeo Cientifica por Galileu 110S seus Diaacutelogos A forma dialogal tambeacutem se liga particularmente como Soacutecrates mostrara muitos seacuteculos antes agravequele meacutetodo de questiona a opiniatildeo aceite acerca da natu reza das coisas meacutetodo que Descartes consolidou no meacutetodo filoshysoacutefico da duacutevida Na saacutetira e no diaacutelogo o meacutetodo da duacutevida exibe-se nas obras-prTiTIatildeSda literatrnafrancesa anterior agrave Revolushyccedilatildeo Francesa pela matildeo de Pascal de Voltaire Montesquieu e mesmo Beaumarchais Exactamente como os filoacutesofos puseram as novas ideias da ciecircncia e da secularizaccedilatildeo no conteuacutedo da Encycloshypedia assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo

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As alteraccedilotildees na perspectiva que o homem tinha do mundo torshynaram-se concretas na acccedilatildeo no derrube de velhas instituiccedilotildees e

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no desenvo~ lento de instituiccedilotildees SOCiaiS novas que podiam meshylhor dar corpo agraves novas aspiraccedilotildees do homem Com efeito a prishymeira expressatildeo das novas ideias era habitualmente a criacutetica natildeo dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituiccedilotildees cristatildes existentes Erasmo e os humanistas natildeo atacaram somente os ideais

1 da virtude monaacutestica criticaram a forma como os mosteiros viviam na praacutetica Lutero natildeo atacou o catolicismo romano opocircs-se ao que considerava os seus abusos Significativamente a Reforma comeccedilou por uma questatildeo acerca de um abuso circunstancial do poder papal uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgecircncias

Mais directamente o nascimento da atitude cientiacutefica levou agrave formaccedilatildeo de novas instacircncias para debate de ideias Alargaram-se passo a passo das cortes dos priacutencipes nas cidades-estado de Itaacutelia agraves sociedades cientiacuteficas reais em Inglaterra e em Franccedila aos salotildees em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e agraves acashydemias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da Ameacuterica no fim do seacuteculo XVIII Segundo estas etapas foi criada a tradiccedilatildeo de comunicaccedilatildeo da informaccedilatildeo e do debate que se exprime hoje naturalmente nas instituiccedilotildees ocidentais parlamentos universidades clubes e jornais

loram tambeacutem criadas instituiccedilotildees que diziam mais directashymente respeito ao trabalho cientiacutefico instituiccedilotildees tatildeo rigorosas que se podem chamar invenccedilotildees sociais e que eram destinadas a exploshyrar as invenccedilotildees teacutecnicas da ciecircncia Entre estas instituiccedilotildees conshytam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de Itaacutelia os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no seacuteculo XVII as sociedades por quotas do seacuteculo XVIII e as faacutebricas de grande dimensatildeo que foram a invenccedilatildeo mais importante da Revoluccedilatildeo Industrial Estas instituiccedilotildees econoacutemicas foram por seu turno estabelecendo novas instituiccedilotildees sociais como a Lunar Society e outras semelhantes associaccedilotildees de trabalhadores e as escolas de Robert Owen Tudo isto satildeo criaccedilotildees humanas formadas com o fim de exprimir a personalidade em mutaccedilatildeo do homem apesar de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se congregavam r-----shy

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Em cada transformaccedilatildeo do periacuteodo coberto por este livro os homens tiveram em mente uma uacutenica intenccedilatildeo visar a sua 2lQp[ia humanidade Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~ inspirar ao homem o sentimento de que haacute uma figura do homem o homem essencial a que ele proacuteprio deve aspirar O Renascimento fez das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

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O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

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Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

10

A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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Page 10: B Sousa Santos - Introdução a uma ciência Pós-Moderna

_____v Uc-o UI CUlacircccedilaO nIst6ncmiddot lma das ideias mais importanshytes foi a que o homem em cada geraccedilatildeo teve de si mesmo

O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutalishydade do condoltiere que persistiu no ocidente talvez seja inseparaacuteshyvel da admiraccedilatildeo ocidental pelo poder sobre a natureza e sobre os homens Algo deste sentido do poder do domiacutenio das teacutecnicas e desejos da vida mundana estaacute presente nos homens ideais do Renasshycimento - no laquohomem nOVOl de Calvino por exemplo e no solshydado puritano Uma direcccedilatildeo diferente se estabeleceu com o ideal Tudor do cavalheiro que permaneceu vivo ateacute hoje bem como no ideal seisceacutentista do habilidoso Esta orientaccedilatildeo conduz do humashynista do seacuteculo XVI ao filoacutesofo do seacuteculo XVIII e onde se vecirc melhor eacute nos dissidentes ingleses tolerantes racionais livres conshyvictos e rectos bem como nos homens da Revoluccedilatildeo Americana

A dissidecircncia religiosa das igrejas e a dissenccedilatildeo fundamentada do humanismo informaram ambas este ideal por exemplo ao encorajar o individualismo religioso e poliacutetico Outras instituiccedilotildees ameaccedilaram deformar estes ideais por exemplo o arrebanhar hoshymens nas faacutebricas que tornou tatildeo faacutecil primeiro tratar o trabalho humano e posteriormente o proacuteprio homem como uma mercashydoria As distorccedilotildees totalitaacuterias das naccedilotildees industriais modernas Alemanha e Ruacutessia por exemplo derivam sem duacutevida em parte desta confusatildeo do homem com as maacutequinas na faacutebrica e da represhysentaccedilatildeo do estado como uma espeacutecie de faacutebrica

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Em SOO anos desde Leonardo duas ideias acerca do homem foram especialmente importantes A primeira eacute a in~sordfl~iordf no pleno desenvolvimento da personalidade humana O indiviacuteduo eacute estishymadotildepotilde-r-sT-mesmecirci--0s-seus-Pooercsect- ciiacuteatildeatildeoTes satildeo considerados o nuacutecleo do seu ser O livre desenvolvimento da personalidade indishyvidual eacute louvado como um ideal desde os artistas renascentistas ateacute aos isabelinos e desde Locke e Voltaire ateacute Rousseau Esta visatildeo do homem desenvolvendo-se livremente feliz na revelaccedilatildeo dos seus proacuteprios dons eacute compartilhada por homens tatildeo diacutespares como Thomas Jefferson e Edmund BurkeEacute a imagem que Hegel tem dos heroacuteis da eacutepoca de Napoleatildeo e - embora isso seja uma surpresa para aqueles que natildeo o leram - que Karl Marx tem dos operaacuterios e trabalhadores que idealizou

Assim a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras mais importantes ao longo do periacuteodo estudado neste livro e assim permaneceu ateacute hoje Os homens viram-se ocupando o mundo com um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses dons no decorrer das suas proacuteprias vidas Este acabou por ser o

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iIi

object impliacutecito da vida dos indiviacuteduos realizar os dons especiacuteshyficos de que um homem eacute dotado

A auto-realizaccedilatildeo do indiviacuteduo tornou-se parte de uma ideia mais vasta mais integradora a auto-realizaccedilatildeo do homem Pensashymos no homem como uma espeacutecie particularmente dotada com dons humanos Alguns desses dons fiacutesicos e mentais satildeo-nos explishycitamente elucidados pela ciecircncia alguns deles os esteacuteticos e os eacuteticos tentamos senti-los e lutamos por expressaacute-los nos nossos espiacuteshyritos e alguns outros os culturais oferecem-se-nos pelo estudo da histoacuteria A totalidade destes dons eacute o homem como tipo ou espeacutecie e a aspiraccedilatildeo do homem como espeacutecie tornou-se a realizaccedilatildeo do que haacute de mais humano nesses dons

A ideia da auto-realizaccedilatildeo humana inspirou tambeacutem o progresso cientiacutefico e teacutecnico Pensamos por vezes que o progresso eacute ilusoacuterio e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensaacuteveis aos homens civilizados nos uacuteltimos 500 anos satildeo apenas uma acumushylaccedilatildeo repetida de luxos inuacuteteis Mas natildeo foi essa a intenccedilatildeo dos espiacuteritos de cientistas e teacutecnicos nem foi esse o verdadeiro efeito dessas invenccedilotildees na sociedade humana A intenccedilatildeo e o efeito foi libertar o homem de fatigante escravidatildeo de ganhar o seu sustento a fim de lhe dar oportunidade de viver Desde Leonardo a Franshyklin o inventor tem querido dar e conseguiu-o a mais e mais pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas o melhor que outrora era monopoacutelio dos priacutencipes

Soacute raramente um pensador dos uacuteltimos 500 anos fugiu a este ideal de poder e realizaccedilatildeo humanos Calvino foi talvez o tal penshysador que lhe fugiu e acreditou como na Idade Meacutedia que o homem vem a este mundo como um ser completo incapaz de qualshyquer evoluccedilatildeo que valha a pena E eacute significativo que o estado que Calvino organizou tenha sido consequentemente um estado totashylitaacuterio Pois se o homem natildeo pode evoluir e natildeo tem em si nada que seja pessoal e criador natildeo haacute ocasiatildeo para lhe dar liberdade

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A segunda das grandes ideias enformadoras que esta histoacuteria expotildee eacute a ideia de liberdade Vemos que de facto a realizaccedilatildeo humana ecircli1aICatildenccedilavel sem liberdade de tal modo que estas duas ideias estatildeo unidas Natildeo poderia haver desenvolvimen to da per~(lshy

nslidRde dos ineacutellviacutetluos realizaccedilatildeo das caracteriacutesticas em que um homem difere de um outro sem a liberdade de cada homem cresshycer no seu proacuteprio sentido

O que eacute verdade nos indiviacuteduos eacute verdade nos grupos humanos Um estado ou uma sociedade natildeo pode mudar sem que se decirc aosIseus membros liberdade de julgar de criticar e de buscar para si

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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mesmos um novo estatuto Eacute por io que a insistecircncia das ideias expressas ao longo do periacuteodo de que trata este livro foi na direcccedilatildeo da liberdade como expressatildeo da individualidade Algumas vezes os homens tentaram encontrar a liberdade atraveacutes de caminhos calmos de mudanccedila como fizeram os humanistas no princiacutepio da Reforma e os industriais contestataacuterios do seacuteculo XVIII Noutros momenshytos o impulso para a liberdade foi explosivo intelectualmente exploshysivo na eacutepoca isabelina e da Revoluccedilatildeo Cientiacutefica economicamente explosivo na Revoluccedilatildeo Industrial e politicamente expiosivo nas outras grandes revoluccedilotildees do nosso periacuteodo desde o tempo dos puritanos agrave eacutepoca de Napoleatildeo

Apesar disso o nosso estudo mostra que a liberdade eacute uma ideia maleaacutevel e enganadora cujos defensores se podem por vezes iludir ateacute supor que a obediecircncia agrave tirania eacute uma forma de liberdade Tal ilusatildeo enleou homens tatildeo diferentes como Lutero e Rousseau Hegel e Marx Filosoficamente natildeo haacute com efeito liberdade ilimitada Mas vimos que haacute uma liberdade que pode ser definida sem conshytradiccedilatildeo e que pode por isso ser um fim em si mesma Essa eacute a liberdade de pensar e falar o direito de contestar

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A evidecircncia da histoacuteria eacute forte as sociedades que garantem a expressatildeo de ideias novas satildeo mais desenvolvidas e criativas As sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orgashy

nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por vezes desagradaacuteveis Pode parecer curioso que os governos de certos pltliacuteses decircem um estatuto especial agrave oposiccedilatildeo o Canadaacute como a Gratilde-Bretanha paga actualmente um salaacuterio ao chefe da oposiccedilatildeo Aliaacutes esta legalidade da oposiccedilatildeo este equiliacutebrio entre poder e COIlshy

testaccedilatildeo eacute o nuacutecleo da tradiccedilatildeo ocidental As grandes eacutepocas criativas tenderam a ser aquelas em que a

dissenccedilatildeo fundamentada foi bem-vinda Uma das liccedilotildees que a hisshytoacuteria aqui nos daacute eacute que tal dissenccedilatildeo eacute criativa em todos os domiacuteshyllios A arte do Renascimento ia de matildeos dadas no tempo e no espaccedilo com a sua ciecircncia Os poetas e aventureiros isabelinos eram contemporacircneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz em Inglaterra - Francis Bacon William Gilbert e WiIIiam Harvey O movimento romacircntico na poesia no fim do seacuteculo XVIII coincishydiu com a aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees e ambos se nutriram e deram forccedila agraves revoluccedilotildees da eacutepoca

Chegamos aqui a uma conclusatildeo curiosa que haacute uma tradiccedilatildeo do pensamento ocidental desde o Renascimento que eacute uma tradiccedilatildeo de contestaccedilatildeo - isto eacute uma tradiccedilatildeo de pocircr em causa o que eacute tradicional Apesar de tudo esta conclusatildeo natildeo eacute tatildeo paradoxal

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como 1 ce Pois descobrimos que as ideias natildeo seguem uma pro- gressatildeo linear e que a sua histoacuteria natildeo eacute uma estrada incaracteriacutes- 1 tica A histoacuteria faz-se de conflitos e a histoacuteria das ideias eacute um con- 1 flito de espiacuteritos I

O conflito de espiacuteritos ainda eacute uma frase ab~tracta - tatildeo abs- II tracta como a histoacuteria das ideias Por detraacutes dos espiacuteritos haacute homens as ideias satildeo feitas sustentadas e defendidas por homens Ler a I

histoacuteria das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos eacute violentaacute-Ia As ideias satildeo tatildeo humanas tatildeo poderosas tatildeo conshyflituais e indestrutiacuteveis como as emoccedilotildees O objectivo deste livro foi apresentar as ideias no seu total enquadramento de homens de grupos de homens e de acontecimentos Os homens que escolhemos natildeo estavam isolados o que disseram era tambeacutem dito por outros No entanto eacute importante que tenha sido dito por homens singulares que puseacutemos em evidecircncia para O nosso estudo deixaram a marca do seu estilo nas ideias que exprimiram Por conseguinte a nossa histoacuteria eacute em parte nas suas paacuteginas uma homenagem ao homem Mas eacute tambeacutem mais e maior que isso Eacute uma homenagem a todos os homens que viveram e vivem pelas ideias e que por outro lado criam e datildeo vida a outras ideias

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