aula 03_sadeck_mudanças e reformas

Upload: josesantos

Post on 08-Jan-2016

14 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

sociologia das instituições

TRANSCRIPT

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 79

    TANTO TEMPO se ouve falar em crise e em reforma do Judicirio que osmais cticos no teriam dificuldades em encontrar argumentos a favordo imobilismo. Os idealistas, por seu lado, continuam propugnando por

    uma justia s realizvel em tempo e locais indefinidos. E os realistas? Teriameles alguma base para contradizer cticos e idealistas, sustentando que nem tudoest perdido e que cintilam luzes mesmo antes do final do tnel?

    O argumento central deste artigo o de que o Judicirio brasileiro, dife-rentemente do que ocorria no passado, est na berlinda e no apresenta mais con-dies de impedir mudanas. Reformas viro e mudanas j esto em curso,algumas mais e outras menos visveis, alterando a identidade e o perfil de umainstituio que sempre teve na tradio uma garantia segura contra as inovaes.

    Para a exposio deste argumento, em primeiro lugar, ser discutida apeculiaridade do Judicirio brasileiro; em seguida, os principais temas em debatenas propostas de reforma; e, por fim, sero salientadas as mudanas em andamentoe as perspectivas de reformas.

    Judicirio: poder de Estado e rgo prestador de serviosO Judicirio brasileiro tem duas faces: uma, de poder de Estado e, outra,

    de instituio prestadora de servios. O modelo de presidencialismo consagradopela Constituio de 1988 conferiu ao Judicirio e aos seus integrantes capacidadede agirem politicamente, quer questionando, quer paralisando polticas e atosadministrativos, aprovados pelos poderes Executivo e Legislativo, ou mesmodeterminando medidas, independentemente da vontade expressa do Executivo eda maioria parlamentar. Por outro lado, a instituio possui atribuies de umservio pblico encarregado da prestao jurisdicional, arbitrando conflitos,garantindo direitos.

    A face poltica do Judicirio foi claramente expressa pela Constituio de1988. A Lei Maior brasileira, tal como as Constituies que resultaram dosprocessos de redemocratizao no sculo XX, muito diferente das precedentes,tpicas do constitucionalismo moderno. Enquanto nas primeiras Constituiesos principais objetivos eram a limitao do poder dos monarcas, a afirmao doimprio da Lei e a proteo das liberdades individuais, as mais recentes guiam-sepor valores democrticos, enfatizando os direitos sociais1. A meta no apenaslimitar o poder absoluto e assegurar direitos, mas ser um instrumento para a rea-lizao da justia social e para a promoo de direitos, incorporando valores daigualdade social, econmica e cultural. Em conseqncia, o foco central passa a

    Judicirio: mudanas e reformasMARIA TEREZA SADEK

    H

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200480

    estar em questes concretas, de natureza social, poltica e econmica, fortalecendoa inclinao do Direito de tornar-se pragmtico, embaando as fronteiras entre oDireito e a poltica. Da, tambm, a tendncia das Constituies mais recentesserem extremamente detalhadas, procurando resolver temas vistos como relevantese especificar metas, regras e polticas de governo.

    A Constituio brasileira de 1988 levou ao extremo as potencialidades doconstitucionalismo caracterstico dos processos de redemocratizao, incorpo-rando ao mximo o paradigma normativo. Efetivamente, alm de garantir osdireitos individuais, tpicos do liberalismo, consagrou uma ampla gama de direitossociais e coletivos e definiu metas. Trata-se de texto essencialmente programtico,com os direitos e deveres individuais e coletivos aparecendo antes mesmo daorganizao do Estado. A verso final, com seus 245 artigos, acrescidos de setentaem suas disposies transitrias, resultou de quase dois anos de trabalho, muitasnegociaes, rdua composio de idias, interesses divergentes e costuras polticas.Somente um texto detalhista poderia sacramentar tantas demandas e garantirformalmente a reconstruo da sociedade e do Estado, tendo por metas o desen-volvimento e a igualdade social2.

    No desenho constitucional aprovado em 1988 algumas caractersticas devemser salientadas:

    todos os princpios democrticos bsicos que sustentam a fundao de umEstado governado pela Lei foram garantidos;

    direitos e garantias fundamentais foram ampliados de modo a incluir umamplo espectro de direitos supra-individuais, tais como direitos difusos ecoletivos, e foram criados instrumentos necessrios para a defesa dessesdireitos;

    a preocupao com a desigualdade social e econmica provocou a inclusono s de preceitos de igualdade jurdica, mas de medidas afirmativas paradiminuir ou solucionar esses problemas;

    foi ampliada a lista de artigos que no podem ser modificados, nem mesmopor emenda constitucional (clusulas ptreas);

    houve ambigidade em relao ao tipo de governo: por um lado, afirmaodo sistema presidencialista e, por outro, criao de instrumentos tpicos dosistema parlamentarista, como as medidas provisrias.

    O tipo de sistema presidencialista escolhido adotou o princpio da separaoe independncia entre os poderes. Tal modelo, contudo, estimula mais o conflitoentre os diferentes ramos do que a cooperao. Isto porque, ao mesmo tempoem que fortaleceu o Legislativo, ampliando sua capacidade de fiscalizar e controlaro Executivo, facultou ao Executivo a possibilidade de legislar por meio de medidasprovisrias. Essas potencialidades aumentaram a responsabilidade do Judiciriode exercer a mediao poltica entre os dois outros poderes e no controleconstitucional dos atos legislativos e de governo3.

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 81

    A extenso e a complexidade dos direitos sociais garantidos, bem como ograu de detalhamento combinados com a capacidade do Judicirio de exercer ocontrole da constitucionalidade das leis e atos normativos, propiciaram umaumento substancial das reas de interveno e atuao pblica deste poder. ALei Maior conferiu capacidade aos magistrados e s cortes judiciais de produziremimpactos sobre o processo de deciso poltica. Em decorrncia, a Constituiotransforma-se em um texto programtico, operando-se um estreitamento da mar-gem de manobra dos polticos e, conseqentemente, ampliando-se o papel polticodo Judicirio.

    Ademais, os imperativos de natureza institucional decorrentes da Cons-tituio de 1988 reforam o papel e o protagonismo polticos do Judicirio e deseus integrantes. O modelo institucional adotado imprime uma face fortementepoltica ao Judicirio. Esta dimenso poltica do Judicirio possui estreita ligaocom o presidencialismo.

    O ativismo judicial no exclusivo de sistemas presidencialistas, podendoocorrer tambm em parlamentares. No presidencialismo, no entanto, o Judicirioapresenta condies de desenvolver ao mximo esta potencialidade, uma vez que definido como um poder independente e encarregado de exercer o controle daconstitucionalidade das leis e dos atos dos demais poderes.

    Por outro lado, o novo Constitucionalismo democrtico impulsiona atendncia de crescente expanso do mbito de interveno do Poder Judicirio.Esse novo Judicirio, com papel ativo na vida coletiva, independe do sistemanormativo, civil law ou common law. A experincia europia recente, em diversospases, com diferentes sistemas jurdicos, mostra, com clareza, a prevalncia destenovo Judicirio ativo, co-autor de polticas pblicas.

    No caso brasileiro, a Constituio de 1988, seguindo estas tendncias,redefiniu profundamente o papel do Judicirio no que diz respeito sua posioe sua identidade na organizao tripartite de poderes e, conseqentemente,ampliou o seu papel poltico. Sua margem de atuao foi ainda alargada com aextensa constitucionalizao de direitos e liberdades individuais e coletivos, emuma medida que no guarda proporo com textos legais anteriores. Dessa forma,a Constituio de 1988 pode ser vista como um ponto de inflexo, representandouma mudana substancial no perfil do Poder Judicirio, alando-o para o centroda vida pblica e conferindo-lhe um papel de protagonista de primeira grandeza.

    O protagonismo do Judicirio, e tambm dos demais agentes do sistemade justia, substantiva-se em um poder at ento desfrutado apenas pelos represen-tantes eleitos pelo povo, seja no Legislativo, seja no Executivo. Como afirmaVieira (1994, p. 76), a democracia constitucional brasileira passou a ser maisconstitucional que democrtica, ou seja, decises majoritrias so limitadas emum alto grau pelo Judicirio ao exercitar sua atribuio de controle daconstitucionalidade. Isto se reflete tanto no Supremo Tribunal Federal comonos demais tribunais sempre que estejam em jogo questes passveis de serem

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200482

    examinadas luz dos preceitos constitucionais e estes, em uma Constituiodetalhista, praticamente tudo abarcam.

    Assim, ainda que a Constituio de 1988 no tenha alterado nem a estruturanem a composio do STF, ao ampliar o rol de matrias que no podem serobjeto de deliberao do Executivo e do Legislativo, transferiu para os onzeministros da cpula do Judicirio um enorme poder. De forma semelhante, comoresultado deste novo modelo, tmida atuao da Justia Federal sucedeu umaextraordinria onda de interveno dos juzes e Tribunais Federais nas mais variadasreas de poltica pblica.

    A estes aspectos deve-se somar tambm a estrutura monocrtica do Judici-rio brasileiro uma hierarquia na qual as relaes de mando e obedincia soconstrangidas pela garantia de independncia de cada juiz. Este tipo de organizaoestimula a diversidade de decises, quer entre juzes, quer entre tribunais.

    Em sntese, o modelo institucional conferiu ao Judicirio um papel polticorelevante, legitimando a atuao pblica da magistratura e transformando a arenajudicial em um espao que abriga e arbitra o confronto entre as foras polticas.A disputa poltica, em conseqncia, tem como palco, no apenas o Parlamentoou as relaes entre o Congresso e o Executivo, mas tambm varas e tribunais dejustia.

    A Constituio de 1988 garantiu a independncia e a autonomia do Judici-rio. No que se refere estrutura, houve uma ampla reorganizao e redefiniode atribuies nos vrios organismos que o compem. Para comear, o STF,como rgo de cpula, passou a ter atribuies predominantemente constitucio-nais. Logo abaixo na hierarquia, foi criado o Superior Tribunal de Justia, queincorporou parte das atribuies antes concentradas no STF. Foram institudosainda o Juizado Especial de Pequenas Causas e a Justia de Paz remunerada nombito das justias dos Estados, dos Territrios e do Distrito Federal. Desapareceuo Conselho Nacional da Magistratura, para dar lugar ao Conselho da JustiaFederal. O artigo 92 da Constituio assim nomeou os rgos do Poder Judicirio:I. O Supremo Tribunal Federal; II. O Superior Tribunal de Justia; III. Ostribunais regionais federais e juzes federais; IV. Os tribunais e juzes do trabalho;V. Os tribunais e juzes eleitorais; VI. Os tribunais e juzes militares; VII. Ostribunais e juzes dos estados e do Distrito Federal e territrios.

    O STF teve sua competncia ampliada na rea constitucional, tendo emvista a criao do mandado de injuo e o considervel alargamento do nmerode agentes legitimados a propor ao de inconstitucionalidade (anteriormenteatribuio exclusiva do procurador-geral da Repblica)4. Cabe-lhe declarar aconstitucionalidade ou no de leis e atos normativos em tese (ou seja, em aodireta contra a lei em si), atribuio jurdico-poltico prpria de uma Corte Consti-tucional; julgar, em recurso extraordinrio, as causas decididas em nica ou ltimainstncia por outros tribunais, quando a deciso recorrida contrariar dispositivoda Constituio; declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal e/ou

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 83

    julgar vlida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituio; julgaroriginariamente as causas em que a magistratura direta ou indiretamenteinteressada. Foi-lhe extrada, contudo, a funo que desempenhara desde a suacriao, de tribunal unificador da aplicao do direito federal infraconstitucionale retirada a representao avocatria da sua lista de competncias.

    A grande inovao estrutural foi criao do STJ, cujos principais funda-mentos eram descongestionar o STF e assumir algumas das funes antes atribudasao Tribunal Federal de Recursos. um rgo acima dos tribunais federais e dostribunais dos Estados, com atribuies de guardar a legislao federal e de julgarem recurso especial as causas decididas em nica e ltima instncia pelos TribunaisRegionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, dos Territrios e do DistritoFederal. Funcionando ao lado do STJ foi criado o Conselho da Justia Federal,com finalidade de superviso administrativa e oramentria da Justia Federal deprimeira e segunda instncias.

    A Justia Federal, recriada em 1965, foi mantida, sendo extinto o TribunalFederal de Recursos e institudos tribunais regionais federais, com o objetivo dedescentralizar a justia de segundo grau.

    Compem ainda o Poder Judicirio as justias especiais: a do trabalho, aeleitoral e a militar. Conferiu-se aos Estados a organizao de sua justia, cabendos constituies estaduais a definio da competncia dos tribunais, sendo a leide organizao judiciria de iniciativa do Tribunal de Justia. A justia dos Estados formada por rgos de primeiro e segundo grau.

    Ao lado dessas modificaes, tambm foram ampliados instrumentos jur-dicos, responsveis pela efetivao das obrigaes constitucionais. Destacam-se,entre eles: o habeas corpus; o mandado de segurana, individual ou coletivo; omandado de injuno; o habeas data; a ao popular; a declarao de inconstitucio-nalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual; a inconstitucionalidade poromisso.

    Judicirio: crise e propostas de reformaCrticas ao desempenho das instituies encarregadas de distribuir justia

    praticamente acompanharam a instalao e o desenvolvimento dessas organizaesno pas. Desde as primeiras Cortes, criadas ainda no perodo colonial, vozes selevantaram mostrando sua inoperncia e o quanto distavam de um modelo dejustia minimamente satisfatrio. Nos ltimos tempos, entretanto, tornou-sedominante a idia de que essas instituies, alm de incapazes de responder crescente demanda por justia, tornaram-se anacrnicas e, pior ainda, refratriasa qualquer modificao. Nas anlises mais impressionistas sustenta-se, inclusive,que as instituies judiciais ficaram perdidas no sculo XVIII ou, na melhor dashipteses, no XIX, enquanto o resto do pas teria adentrado nos anos 2000.

    A constncia nas crticas justia estatal um denominador absolutamentecomum quando se examinam textos especializados, crnicas e mesmo debates

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200484

    parlamentares, ao longo dos ltimos quatro sculos. Esse trao no singular aoBrasil, ainda que, entre ns, possua caractersticas prprias. Recorrer universali-dade da crtica no significa pretender equiparar experincias, nem diminuir otamanho do problema. Significa, isto sim, focalizar uma questo que relevantee tem mobilizado o interesse de analistas e dirigentes polticos em todos os cantosdo mundo.

    A situao brasileira recente difere de todo o perodo anterior em pelomenos dois aspectos: 1) a justia transformou-se em questo percebida comoproblemtica por amplos setores da populao, da classe poltica e dos operadoresdo Direito, passando a constar da agenda de reformas; 2) tem diminudoconsideravelmente o grau de tolerncia com a baixa eficincia do sistema judiciale, simultaneamente, aumentado a corroso no prestgio do Judicirio.

    possvel sustentar que a peculiaridade do caso brasileiro, como de restoda maior parte dos pases latino-americanos, est na magnitude dos sintomas,indicando a necessidade de reformas. So inmeras as pesquisas de opinioretratando a expressiva insatisfao da populao com a justia estatal. Levanta-mentos de institutos especializados mostram que, em mdia, 70% dos entrevistadosno confiam na justia. Recentes investigaes realizadas pelo Idesp apontamque os indicadores mais gerais so igualmente vlidos para setores de elite. Entreos empresrios, por exemplo, o Judicirio muito mal avaliado, chegando a 89%os que o consideram ruim ou pssimo, em termos de agilidade (Idesp, 1996).

    Mesmo os operadores do sistema de justia, tradicionalmente mais reserva-dos em suas apreciaes e vistos como portadores de forte esprito corporativo,tm reconhecido que as condies presentes so desfavorveis5. Magistrados,Promotores e Procuradores da Repblica tm se mostrado sensveis existnciade uma crise na justia. Sublinhe-se, inclusive, que os operadores do Direito tmsido chamados a interferir no debate e suas associaes representativas tm tidoparticipao ativa quer propondo mudanas, quer impedindo que certas alteraessejam aprovadas.

    A indiscutvel insatisfao com a prestao jurisdicional, embora central naelaborao de qualquer diagnstico, encobre questes diversas, provenientes decausas diferentes, provocando conseqncias distintas. Convm, pois, discerniras questes. Trata-se, certamente, de um problema que no se circunscreve instituio, produzindo efeitos abrangentes, interferindo na ordem legal, passandopela garantia dos direitos individuais e coletivos e at mesmo interpondo sriosobstculos implementao de projetos de desenvolvimento e de insero daeconomia nacional na nova ordem internacional.

    A dimenso poltica da crise do JudicirioA extrema visibilidade dos problemas decorrentes da dimenso poltica do

    Judicirio, nos ltimos anos, decorre fundamentalmente do fato do pas vivermomentos de ajuste econmico, poltico e social e de adaptao de toda a sua

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 85

    infra-estrutura s exigncias de insero no mercado internacional, sob a gidede uma Constituio excessivamente detalhista. Essa visibilidade tanto maiorquanto mais amplo for o nmero de decises majoritrias definidas pelo Congressoou pelo Executivo que alterem o status quo. Assim, em um pas com uma amplaagenda de reformas e que adote um modelo institucional que alarga o espaopoltico do Judicirio, como o caso do Brasil, os problemas oriundos da dimensopoltica so mais do que esperados, tornam-se inevitveis.

    A tendncia expanso da presena do Poder Judicirio na arena pblicapode ser confirmada pelo expressivo aumento no nmero de aes diretas deinconstitucionalidade o indicador clssico do processo de judicializao da po-ltica. De 1988 a janeiro de 2004 foram impetradas 3.097 aes. A participaode partidos polticos, de governadores de Estado e de confederaes e entidadessindicais tem sido significativa, superando largamente o percentual de aespropostas pelo Procurador-Geral da Repblica, o nico agente, antes da vignciada Constituio de 1988, com legitimidade para propor esse tipo de ao.

    A proposio de aes diretas de inconstitucionalidade no cobre o amplopotencial da dimenso poltica do Judicirio. A concesso de liminares, apossibilidade de decises judiciais paralisando medidas provenientes do Executivoe do Legislativo ou mesmo impondo determinadas resolues preenchem essadimenso, provocando reaes por parte do governo, da classe poltica e de setoresda sociedade. Nesse sentido, so freqentes as crticas segundo as quais vive-seem um manicmio jurdico; a magistratura age ideolgica e irresponsavel-mente, como se os recursos pblicos fossem inesgotveis, ou alheia s conse-qncias de suas decises na economia ou na mquina administrativa; juzesjulgam-se os verdadeiros representantes do interesse do povo.

    Saliente-se que a dimenso poltica do Judicirio provoca reaes, sobretudopor parte do governo e dos partidos de sustentao do Executivo independen-temente do partido ou dos partidos que ocupem esta posio. No por acaso, otema da reforma do sistema de justia tem voltado ao debate obedecendo aosciclos de decises que alteram o status quo, quer por autoria do Executivo, doLegislativo ou do prprio Judicirio. Do ponto de vista do jogo poltico, pode-se mesmo afirmar que esta dimenso apontada como a mais problemtica e,portanto, sujeita a alteraes radicais em um projeto de reforma.

    A dimenso no-poltica da crise do judicirioEsta dimenso contempla as funes do Judicirio relacionadas ao seu papel

    de organismo encarregado de distribuir justia. Desse ngulo, cabe examinar ainstituio como uma agncia pblica prestadora de servios. Grande parte dainsatisfao popular com a justia refere-se a esta dimenso. A ela so dirigidascidas crticas, tais como: a justia tarda e falha; a justia no igual paratodos; a justia elitista; mais vale um mal acordo do que uma boa demanda;para os amigos tudo para os inimigos a lei etc.

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200486

    Para o exame dessa dimenso, uma vez mais, necessrio distinguir algunsaspectos. H que se examinar, de um lado, a demanda por justia e, de outro, oprocessamento desta demanda.

    No que se refere demanda, o crescimento nos ndices de procura pelajustia estatal est altamente relacionado s taxas de industrializao e de urba-nizao. Crescimentos nesses indicadores provocam aumentos no nmero e notipo de conflitos e, conseqentemente, torna-se maior a probabilidade de quelitgios convertam-se em demanda judicial. Essa potencialidade depende, porsua vez, da conscincia de direitos e da credibilidade na mquina judicial. Assim,a mera transformao estrutural por que passou a sociedade brasileira, depredominantemente agrria e rural para industrial e urbana, num intervalo demenos de cinqenta anos, tomando-se 1930 como ponto de partida, justificariaa multiplicao dos conflitos. Tais tendncias foram, no entanto, em grande parte,contidas pela ausncia de vida democrtica e pelo descrdito na justia6.

    As dificuldades de acesso ao Judicirio so constantemente lembradas comoum fator inibidor da realizao plena da cidadania7. O desconhecimento dosdireitos, por um lado, e a percepo de uma justia vista como cara e lenta, deoutro, afastam dos tribunais a maior parte da populao. Da afirmar-se que agrande massa s procura a justia estatal quando no h outra alternativa. Nestascircunstncias, no se trataria de uma utilizao voluntria, para a efetivao dedireitos, mas compulsria. Isto significa que a face do Judicirio conhecida porlargos setores de jurisdicionados no a civil, mas, sobretudo, a criminal8.

    Esta constatao no se aplica, entretanto, a todos os estratos sociais. Hsetores que buscam a justia, extraindo vantagens de suas supostas ou reais defi-cincias, bem como dos constrangimentos de ordem legal. Este o caso tanto decertos rgos estatais como de grupos empresariais. Pesquisa conduzida peloIdesp junto a empresrios, em 1996, revelava que, embora a principal crtica diri-gida ao Judicirio fosse a falta de agilidade, esta deficincia nem sempre era avaliadacomo prejudicial para as empresas. Muitos empresrios admitiram que amorosidade por vezes benfica, principalmente na rea trabalhista9. Tal comoas empresas, tambm o governo e agncias pblicas tm sido responsveis peloextraordinrio aumento da demanda no Judicirio. Calcula-se que o Executivo eo INSS respondem por cerca de 80% das aes judiciais.

    Resumidamente, pode-se sustentar que o sistema judicial brasileiro nosmoldes atuais estimula um paradoxo: demandas de menos e demandas de mais.Ou seja, de um lado, expressivos setores da populao acham-se marginalizadosdos servios judiciais, utilizando-se, cada vez mais, da justia paralela, governadapela lei do mais forte, certamente menos justa e com altssima potencialidade dedesfazer todo o tecido social. De outro, h os que usufruem em excesso dajustia oficial, gozando das vantagens de uma mquina lenta, atravancada eburocratizada.

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 87

    As deficincias do aparelho judicial, somadas aos ritos processuais, criamsituaes de vantagem e/ou privilgios, portanto, de desigualdade. Assim, a amplapossibilidade de recursos facultada pela legislao favorece o ru, o devedor,adiando uma deciso por anos. consensual entre os especialistas a avaliao deque ingressar em juzo, no caso de quem deve, um bom negcio, seja este ruo setor pblico ou particulares.

    Apesar das crticas, todos os nmeros referentes ao Judicirio so grandiosos.So milhares de processos entrados e milhares de julgados. De fato, quando seobserva tanto a movimentao judicial anual quanto a evoluo do nmero deprocessos entrados, no h como fugir de uma primeira constatao: a demandapor uma soluo de natureza judicial tem sido extraordinria e crescente. Aindaque em magnitude relativamente menor, o mesmo pode ser dito sobre os processosjulgados: um volume de trabalho aprecivel.

    Para que se tenha uma idia, de 1990 a 2002, entraram, em mdia, na jus-tia comum de primeiro grau 6.350.598 processos por ano, com clara tendnciade crescimento. Efetivamente, enquanto em 1990 chegaram at o Judicirio3.617.064 processos, em 2002 este nmero mais do que dobrou, atingindo9.764.616. Durante esses anos houve, em mdia, um processo para cada 31habitantes. Embora seja uma mdia e, como tal, esconda diversidades, revela umngulo precioso da justia brasileira: um servio pblico com extraordinria procura.O aumento no volume de processos entrados muito maior do que faria supor ocrescimento populacional. Enquanto o nmero de habitantes no perodo cresceu20%, a demanda pela justia de primeiro grau aumentou 270%.

    Quanto aos processos julgados, sua evoluo acompanhou o crescimentono nmero de entrados, apresentando uma mdia anual de 4.593.839. Entre1990 e 2002 houve um aumento de 311% nos julgados. Contudo, os nmerosreferentes aos julgados, ano a ano, indicam uma defasagem constante quandocomparados aos de entrados: so julgados em mdia 72% dos processos entrados.

    Embora a justia de primeiro grau concentre a maior parte dos processos, tambm aprecivel a movimentao dos tribunais. Comparando-se o incio dadcada com o final, os resultados so sempre significativos. Entraram, em 1990,125.388 processos nos Tribunais de Justia do pas. Este nmero cresceu mais dequatro vezes em 2000, passando para 545.398. Quanto aos processos julgados,registrava-se em 1990 um total de 114.237; em 2000, atingiu-se trs vezes emeia mais: 410.304 julgamentos.

    Tal como se passa na justia dos Estados, aprecivel o movimento pro-cessual da justia federal. O nmero de processos distribudos no primeiro grauaumentou mais de cinco vezes de 1989 a 2002, assim como o de julgados. Adefasagem entre distribudos e julgados sempre considervel: em mdia, sojulgados 57% dos entrados. No que se refere aos tribunais regionais, enquantoem 1989 foram distribudos 96.021 processos, em 2002, este nmero passoupara 538.104 um volume cinco vezes maior. Durante todo o perodo, alta a

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200488

    diferena entre o nmero de processos entrados e julgados tanto no pas comoem cada tribunal.

    Repetem-se, em relao ao Superior Tribunal de Justia, as mesmas consta-taes: uma movimentao excepcional, com crescimentos vertiginosos nos vo-lumes de processos distribudos e julgados, e nmeros multiplicando-se a cadaano. A mais alta corte de justia do pas apresenta totais que surpreenderiam aqualquer estudioso do sistema de justia. Em 1940, chegavam at o STF 2.419processos; em 1950, 3091; em 1960, 6.504; em 1970, 6.367; em 1980, 9.555;em 1990, 18.564; em 2000, 105.307; em 2001, 110.771; em 2002, 160.453.Trata-se, como se percebe, sobretudo a partir de 1980, de um crescimento extraor-dinrio, demonstrando a intensa utilizao desse tribunal. Os nmeros dejulgamentos so igualmente surpreendentes: 1.807 em 1940; 3.371 em 1950;5.747 em 1960; 6.486 em 1970; 9.007 em 1980; 16.449 em 1990; 86.138 noano de 2000; 109.692 em 2001; 283.097 em 2002.

    A estrutura para o processamento de demandasEste o angulo que apresenta os sintomas mais visveis do que se convencio-

    nou chamar de crise do Judicirio. Diz respeito a uma estrutura pesada, semagilidade, incapaz de fornecer solues em tempo razovel, previsveis e a custosacessveis para todos.

    A despeito de se verificar tendncias ascendentes na demanda e na ofertade servios em todas as instncias e em todas as justias, a imagem de absolutainoperncia, com descompasso expressivo entre a procura e a prestao jurisdicional.Calcula-se que, caso cessassem de ingressar novos casos, seriam necessrios decinco a oito anos, dependendo do ramo do Judicirio e da unidade da federao,para que fossem colocados em dia todos os processos existentes. Como explicaresta situao crtica?

    Com freqncia, aponta-se o nmero insuficiente de juzes como um dosfatores mais importantes para justificar a baixa agilidade no desempenho doJudicirio10. Muitos integrantes do sistema de justia apegam-se a esta carnciapara explicar a crise. De fato, o Brasil apresenta uma relao bastante desfavorvelentre o nmero de magistrados e o tamanho de sua populao. Ademais, o baixonmero de juzes um problema reconhecido pelo prprio poder pblico, jque, em todas as unidades da Federao, h vagas abertas. Apesar da inegveldesvantagem da situao brasileira quando confrontada com a de outros pases,estudos comparativos internacionais demonstram no haver correlao significativaentre o nmero de juzes e a eficincia e a confiana da populao no sistemajudicial (Buscaglia et al., 1995).

    Embora seja difcil apontar uma nica causa como responsvel pelosproblemas de distribuio de justia, seria impossvel ignorar o papel desem-penhado pelos prprios magistrados no exerccio de suas atribuies. Referimo-nos a dois aspectos: ao recrutamento e mentalidade, variveis com forte influncia

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 89

    na forma de perceber e de lidar com as questes relacionadas distribuio dejustia.

    O recrutamento, no caso brasileiro, uma atribuio da prpria instituio.O ingresso na carreira depende de concurso pblico, para o qual estariamteoricamente habilitados os bacharis em Direito. A proliferao de faculdades,sobretudo a partir dos anos de 1970, no foi acompanhada de igual preocupaocom a qualidade dos cursos. Este fenmeno explicaria, em boa medida, o reduzidondice de aprovados nos concursos de ingresso e, conseqentemente, a vacnciaem todas as regies do pas. Mas certamente est a apenas parte da explicao.Haveria que se considerar tambm fatores estranhos a uma prova de proficincia,como, por exemplo, uma poltica deliberada para impedir o crescimento exageradono nmero de integrantes da instituio e seus efeitos deletrios sobre o prestgioe as deferncias tpicos de um grupo pequeno e mais homogneo. Esta hipteseganha fora quando se considera que o sistema de recrutamento adotado no paspermite o acesso de profissionais extremamente jovens11, sem a obrigao depassagem por escolas de formao, isto , sem a sujeio a um processo formal desocializao interna corporis.

    Quanto mentalidade, o Judicirio no difere, neste aspecto, de outrasinstituies igualmente fechadas, com traos aristocrticos. O figurino da insti-tuio tem se mostrado um ponto problemtico, uma vez que, longe de encorajaro substantivo, prende-se forma; em vez de premiar o compromisso com o real,incentiva o saber abstrato. O descompasso entre o valorizado pela instituio e asmudanas vividas pela sociedade responde, em grande parte, pela imagem negativada magistratura junto populao. Sublinhe-se, contudo, que nos ltimos anostm crescido as reaes internas a esse modelo. Tanto assim que, hoje, dificilmente,pode-se afirmar que a magistratura constitua um corpo homogneo. Ao contrrio,no apenas multiplicaram-se os grupos internos, como muitos juzes tm semostrado crticos da instituio e sensveis a propostas de mudana, mesmo queafetem diretamente interesses corporativos e tradicionais. Ainda que esses gruposno sejam majoritrios, constata-se uma significativa renovao interna, no sentidode um maior pluralismo12 e a uma conseqente quebra no modelo de mentalidadetradicional. Esta mudana no deve ser vista como apenas positiva. Ela embuteriscos, sobretudo se implicar uma ampliao do espao de partidrios de umdireito alternativo, comprometidos com uma concepo de justia social, quetem no magistrado um paladino13, ou ainda de juzes que, ao abandonar a discrio,guiem-se pela presena na mdia e pela nsia de substituir a classe poltica, cons-tituda pelo mandato popular.

    Outros fatores poderiam concorrer para a explicao da falta de agilidadeda estrutura burocrtica do Judicirio. Dentre eles, saliente-se: escassez de recursosmateriais e/ou deficincias na infra-estrutura; o conjunto de problemas relacio-nado esfera legislativa propriamente dita e aos ritos processuais.

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200490

    Mesmo reconhecendo a importncia dos recursos materiais, estudoscomparativos internacionais demonstram que incrementos em recursos noprovocam iguais ganhos em agilidade e previsibilidade dos servios prestados.

    Quanto aos problemas relacionados esfera legislativa, considera-se que amorosidade da justia tambm tem a ver com as normas processuais, isto , comos efeitos e dificuldades que podem decorrer das prprias etapas e garantiasespecificadas em lei. A discusso dessas normas tem como horizonte a possvelsimplificao do processo, com a implantao de procedimentos mais rpidos,simples e econmicos.

    Alm da instabilidade legal que tem marcado o pas, o excesso de formali-dades tambm contribui para retardar o trabalho da justia. Depoimentos devrios membros do Judicirio e de estudiosos apontam na direo da necessidadede uma reformulao na lei processual vigente, buscando simplific-la, removendodiversos bices legais que impedem a agilidade dos diversos juzes, nos vriosgraus de jurisdio. Investigaes comparativas concluem que esses problemasmostram-se centrais como entrave agilidade do Judicirio. No caso brasileiro,os dados disponveis sugerem que o nmero de recursos possveis, mais do quecontribuir para a garantia de defesa de direitos, tem propiciado a litigncia de mf, o adiamento de decises. Da os congestionamentos na justia de segundograu e o retardamento, por anos, na obteno de sentenas definitivas.

    Propostas de reformaO captulo referente ao sistema de justia da Constituio de 1988 foi o

    que recebeu o maior nmero de propostas de reviso, por ocasio da reformaconstitucional de 199314 foram ao todo 3.917 emendas. Um nmero nadadesprezvel, mas de todo incongruente com o resultado ento alcanado: nenhumaalterao.

    Como conseqncia, a proposta de emenda constitucional relativa aoJudicirio tramita no Congresso Nacional h mais de uma dcada, a partir de umprojeto apresentado por Hlio Bicudo em 1992, ento deputado federal pelo PTde So Paulo. Esse primeiro projeto sofreu inmeras modificaes, at finalmenteser votado na Cmara dos Deputados, em junho de 2000. Tantas foram s alte-raes e de tal magnitude que possvel afirmar que entre o primeiro projeto e oaprovado praticamente no h semelhanas. Mais do que isso: aps o perodo dereviso constitucional, sucederam-se trs relatores15 e apesar de todos pertencerema partidos governistas, resultaram trs propostas absolutamente diferentes entre si.Em junho de 2004, o texto encontrava-se no Senado, na Comisso de Constitui-o, Justia e Cidadania, aguardando parecer do relator, podendo, inclusive, serinteiramente modificado.

    As solues propostas, para efeito de discusso, poderiam ser agrupadasem dois grupos: as judiciais propriamente ditas e as extrajudiciais, a englobandodesde sistemas alternativos para a soluo de disputas at modificaes legislativas.

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 91

    As propostas de reforma denominadas judiciais procuram dar maioreficincia ao Poder Judicirio a partir de intervenes internas, na prpria insti-tuio. Abrangem, assim, iniciativas diversas, desde alteraes nas competnciasde seus organismos at modificaes na estrutura da instituio. Entre elasdestacam-se: transformao do STF em uma Corte de Justia; introduo dasmula de efeito vinculante; da smula impeditiva de recurso; do incidente deconstitucionalidade; eliminao de juzes classistas na Justia do Trabalho; extinoda Justia Militar; fim do poder normativo da Justia do Trabalho; criao de umrgo de controle externo do Poder Judicirio.

    No que se refere ao perfil institucional do Judicirio, a proposta com maiorpotencialidade de alterar as relaes entre este poder e os poderes propriamentepolticos diz respeito transformao do STF em uma Corte Constitucional.Esta modificao teria por finalidade dois objetivos: restringir a atuao do rgoa questes estritamente constitucionais, deixando de ser um Tribunal de ltimainstncia para qualquer tipo de demanda e redefinir o exerccio do controle daconstitucionalidade. Com o primeiro objetivo, seria reduzido significativamenteo nmero de processos que chega at a mais alta corte de justia. No atual modelo,toda e qualquer matria pode, atravs de recursos, chegar at o STF, obrigandoseus ministros a lidar com um rol to amplo de questes que no encontra paralelonas demais democracias. A redefinio do controle da constitucionalidade, porsua vez, alteraria profundamente toda a engenharia institucional. Os partidriosmais radicais desta alterao inspiram-se em um modelo no qual o controle daconstitucionalidade das decises polticas deve limitar-se a princpios que ponhamem risco a continuidade democrtica e o Estado de Direito. Nessa alternativano caberia ao Judicirio pronunciar-se sobre toda e qualquer questo, passandoa adquirir as decises majoritrias (aprovadas no Congresso ou propostas peloExecutivo) prevalncia sobre as judiciais. Seria, pois, reduzida a possibilidade deativismo do Judicirio e, ao mesmo tempo, seriam flexibilizados os preceitosconstitucionais e reduzido o nmero de clusulas ptreas.

    Em uma outra verso, seria reforado o papel do STF e dos Tribunais supe-riores, facultando a essas cortes a emisso de Smulas e a elas atribuindo efeitovinculante para os demais rgos do Judicirio e para a Administrao Direta eIndireta de todas as esferas do poder pblico. Alcanar-se-ia, assim, a uniformi-zao dos julgados e condicionar-se-iam as aes administrativas do poder pblico.A deciso de um tribunal superior teria que ser obrigatoriamente seguida no jul-gamento de um caso semelhante. Essas smulas teriam fora de lei.

    A smula de efeito vinculante (stare decisis) vista por seus defensores comoindispensvel para garantir a segurana jurdica e evitar a multiplicao, consideradadesnecessria, de processos nas vrias instncias. Tal providncia seria capaz deobrigar os juzes de primeira instncia a cumprir as decises dos tribunaissuperiores, mesmo que discordassem delas, e impediria que grande parte dosprocessos tivesse continuidade, desafogando o Judicirio de processos repetitivos.

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200492

    Seus oponentes, por seu lado, julgam que a adoo da smula vinculante engessariao Judicirio, impedindo a inovao e transformando os julgamentos de primeirograu em meras cpias de decises j tomadas. Dentre os que contestam tal expe-diente, h os que aceitam a smula impeditiva de recurso, um sistema em que ojuiz no fica obrigado a seguir o entendimento dos tribunais superiores e doSTF, mas permite que a instncia superior no examine o recurso que contrarie asua posio.

    Outra modificao de grande amplitude seria a criao de incidente deinconstitucionalidade, que permitiria ao STF, provocado pelo Procurador-Geralda Repblica, Advogado da Unio, Procurador-Geral ou Advogado-Geral doEstado, determinar a suspenso de processo em curso perante qualquer juzo outribunal, para proferir deciso exclusivamente sobre a questo constitucionalsuscitada, obrigando os demais rgos do Judicirio a adotar a mesma interpre-tao no julgamento de casos concretos.

    Essas propostas encontram resistncias por parte da magistratura, sobretudode primeira instncia, de setores do Ministrio Pblico e de amplo grupo dejuristas, particularmente da OAB. Tais inovaes, na opinio de seus oponentes,afrontariam duas garantias constitucionais: a) a separao de poderes, uma vezque daria poder normativo aos tribunais uma prerrogativa do Legislativo; b) oprincpio do duplo grau de jurisdio, j que retiraria dos magistrados o poderde decidir livremente, segundo a lei e o seu convencimento pessoal. Alega-seainda que essas solues visam a fortalecer o rgo de cpula do Judicirio epropiciar agilidade aos tribunais, implantando uma ditadura e impedindo aautonomia do juiz e, conseqentemente, a oxigenao da instituio.

    No que se refere ao conjunto de problemas denominados estruturais,tambm amplo o leque de propostas, abrangendo desde alteraes na estruturado poder Judicirio at modificaes nas competncias de certos rgos. Assim,h projetos com o objetivo transformar o STF em Tribunal Constitucional, noestilo dos modelos europeus, composto por juzes com mandato fixo. Essatransformao faria com que o STJ fosse ampliado, cabendo a ele a uniformizaoda jurisprudncia relativa legislao federal e proteo das liberdadesfundamentais. Trata-se de proposta polmica, encontrando ferrenhos adversriosno interior da magistratura e entre juristas.

    Quanto s justias especiais, a soluo que sempre obteve um maior nmerode adeptos era a que determinava a extino do cargo de juiz classista na Justiado Trabalho. Tal demanda, de fato, acabou sendo efetivada, por meio de EmendaConstitucional, em dezembro de 1999, deixando, pois, de constar da propostade Reforma do Judicirio. H ainda emendas visando a alterar os artigos 111,112, 113 e 114 da Constituio Federal para extinguir o TST, a representaoclassista em todos os graus de jurisdio e o poder normativo da Justia do Tra-balho. Essa inovao, que mudaria efetivamente o perfil institucional da Justiado Trabalho, visa a possibilitar a implantao definitiva da negociao coletiva

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 93

    em matria trabalhista. Argumentam seus defensores que, desta forma, o pasdaria um salto de qualidade nas relaes de trabalho, assemelhando-se ao queocorre nos pases capitalistas avanados. Ali, a legislao limita-se a normas gerais,assim como restrita a interveno de terceiros nas relaes trabalhistas.

    No que se refere Justia Militar, h propostas pretendendo reduzir acompetncia de seus juzes, redefinindo os tipos de crimes sujeitos a seu julga-mento, quando cometidos por militares ou policiais militares. H tambmpropostas objetivando incluir a Justia Agrria entre os rgos do Judicirio.

    A democratizao do Poder Judicirio, no sentido de abertura de suas portaspara os setores mais carentes da populao, inspira propostas que prevem acriao de novos Juizados Especiais, especialmente na justia trabalhista. Essesjuizados foram implantados na justia federal e comearam a operar em janeirode 2002.

    A criao de um rgo externo de controle do Judicirio , sem dvida, aproposta que mais tem provocado discusses. Desde que foi apresentadaencontrou ardorosos defensores e recebeu uma avalanche de protestos. Seusadeptos sustentam que, dos trs poderes, o Judicirio o mais estvel e o quetem menos mecanismos de controle e de fiscalizao, seja por parte da sociedade,seja de outros poderes. Essa proposta j sofreu uma srie de modificaes, tantono que se refere denominao do rgo encarregado de exercer controle, comoquanto s suas competncias e participao de membros externos instituio.

    As solues extrajudiciais contemplam iniciativas que vo da esfera legislativapropriamente dita at a criao de novos espaos para a soluo de disputas.Problemas decorrentes da legislao tm sido repetidas vezes apontados comosrios obstculos ao bom funcionamento da justia. Parece existir um relativoacordo quanto ao fato de que grande parte da legislao brasileira vigente desatualizada, tendo sido elaborada para uma sociedade que pouco se parececom a atual, obrigando juzes a aplicar normas em muitos casos ultrapassadas.Advoga-se que o pas deveria acompanhar uma tendncia mundial no sentido deum enxugamento da legislao, de uma reduo da intermediao judicial, dalivre negociao e da auto-resoluo dos conflitos.

    Na esfera legislativa tornou-se imprescindvel ajustar a lei aos imperativosda justia, sem que isto implique diminuir o respeito ao devido processo legal eao direito de defesa. A lei processual brasileira permite, de fato, uma pletora derecursos. Pode-se, como lembram seus crticos, at fazer embargo de declaraode despacho a embargo de declarao. Esta estratgia tem claramente comoobjetivo ganhar tempo, retardando a sentena final.

    Ainda em relao legislao processual, h propostas que buscam limitaras possibilidades de medida liminar ou cautelar. Muitos juristas julgam que todasas situaes jurdicas hoje so passveis de serem postas em suspenso por medidaliminar ou cautelar, sendo at mesmo executadas em favor do autor antes que oru tenha sido ouvido.

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200494

    H tambm forte demanda de desburocratizao das exigncias legais.Considera-se que a simplificao dos procedimentos pode significar economiade tempo e de custos, sem colocar em risco garantias prprias do devido processolegal e direitos individuais.

    Quanto aos mecanismos alternativos de soluo de disputas, medidas jvm sendo implementadas no sentido de institucionalizar a conciliao, anegociao e a arbitragem. O juzo arbitral, a chamada Lei Maciel, j foi,inclusive, regulamentado. Mas o pas ainda est muito distante de aproveitartodo o potencial das solues alternativas para a soluo de disputas (ADR).

    Essas propostas, classificadas em judiciais e extrajudiciais, no esgotam oamplo leque de alteraes que tem por meta modificar o Poder Judicirio e o sis-tema de justia em geral. H outraspropostas, como por exemplo: alterao dosdispositivos relativos promoo dos magistrados; introduo de participaodo Ministrio Pblico no concurso de provas e ttulos para ingresso na carreirada magistratura; modificao de dispositivo referente ao vitaliciamento do magis-trado; estabelecimento de investidura temporria para os Ministros dos STF e doSTJ; proibio de realizao de sesses secretas, pelos tribunais, para tratar deassuntos administrativos; extenso para os Ministrios Pblicos dos Estados e doDistrito Federal do mecanismo de confirmao pelo Poder Legislativo da escolhado Procurador-Geral, hoje existente para o Ministrio Pblico Federal; quarentenapara juiz que se aposenta; quarentena para nomeao para qualquer tribunal dequem tenha exercido mandato eletivo ou ocupado cargo de ministro de Estado.

    Ao lado de temas que exigem mudanas constitucionais ou na legislaoordinria, h aqueles que modificariam o Judicirio no sentido de transform-loem uma mquina mais moderna e menos avessa s inovaes tecnolgicas. Esseproblema, tal como os demais, no novo, mas acentuou-se nos ltimos anos.Atualmente, o anacronismo da mquina judicial atinge muito mais a primeirainstncia do que os tribunais, ainda que tambm nesses ainda no se tenhaaproveitado por inteiro as vantagens da informatizao.

    Parece inquestionvel que a atual estrutura do Judicirio no tem sidocapaz de atender minimamente s exigncias de um servio pblico voltado paraa cidadania. O atual modelo, contudo, no provoca malefcios de forma homo-gnea. H indcios de que a morosidade e a possibilidade de um grande nmerode recursos, retardando uma deciso final, tm favorecido os principais usuriosdo Judicirio. foroso reconhecer, entretanto, que a pauta de reformas amplae que dificilmente se obter consenso. Os apoios so precrios, com composiesque se modificam de acordo com o item em discusso.

    Mudanas e perspectivas de reforma primeira vista, no haveria como se contrapor ao argumento segundo o

    qual o Judicirio deve ser retratado como uma instituio muito refratria smarcas do tempo. Essa imagem, contudo, vem sofrendo abalos, por vezes

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 95

    imperceptveis, outras visveis, mas sempre com capacidade de colocar em xequetraos velhos, que se queria antigos.

    Do ponto de vista da quebra de velhos traos, duas experincias devem sersublinhadas: os Juizados Especiais e as iniciativas de alguns magistrados de colocarem prtica sistemas de gerenciamento e agilizao de varas, cartrios e tribunais,bem como de dar prioridade a formas alternativas de soluo de disputas.

    Os Juizados Especiais representam a mais importante mudana vivida peloJudicirio, tanto no que se refere ampliao do acesso justia estatal como naprpria concepo de justia. Efetivamente, criados ainda sob o regime militar,em 1984, no Ministrio da Desburocratizao, como Juizados de Pequenas Causas,tinham por finalidade abrir as portas do Judicirio para novas demandas dereduzido valor econmico e propiciar respostas eficientes, orientadas pelosprincpios da conciliao, da oralidade, da simplicidade dos procedimentos, daceleridade e amplitude dos poderes do juiz. A Constituio de 1988 reconheceuos xitos da experincia e consagrou esses Juizados em dois dispositivos (arts.24, n. X, e 98, n. I).

    Em 1995, foi promulgada a Lei 9.099 dispondo sobre os Juizados EspeciaisCveis e Criminais. A alterao mais significativa na parte civil consistiu na amplia-o de sua competncia. Passou a chamar de causas de menor complexidade oque a lei anterior denominava de pequenas causas. A ampliao da competncia para causas at quarenta salrios mnimos; possibilidade de execuo, sem processode conhecimento, de ttulo executivo extrajudicial; acesso de micro-empresas pode significar um desvirtuamento das finalidades expressas na criao dessesjuizados, sobretudo a de facilitar o acesso Justia do cidado comum e principal-mente dos mais humildes.

    Sublinhe-se que o objetivo central desses juizados no resolver a crise doJudicirio, mas democratizar o acesso, propiciar um espao para o desenvolvimentode uma nova mentalidade e para o tratamento processual mais adequado de cau-sas de menor complexidade, tornando a instituio um servio pblico capaz dechegar a solues de controvrsias (julgamento e execuo), de forma barata erpida.

    Para a consecuo dessa finalidade maior, o legislador criou um micro-sistema processual, privilegiando: o acesso direto e gratuito do interessado; ainformalidade; a simplicidade e a celeridade processuais; a valorizao da concilia-o e da soluo amigvel, com a criao da figura de conciliador; instituiu umsistema recursal diferenciado, formado por juzes de primerio grau de jurisdio;previu as figuras de rbitro e de juiz leigo. Alm disso, cumpre ao sistema informare orientar os usurios e garantir a efetiva participao da comunidade naadministrao da Justia.

    A participao da comunidade, a adoo de meios alternativos de soluode conflitos (principalmente a conciliao e o arbitramento) e ainda as tendncias

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200496

    a maior informalidade e a menor legalismo constituem a grande inovao dessesjuizados. Trata-se, fundamentalmente, de uma experincia que depende e gerauma nova mentalidade nos operadores do Direito, mais aberta e menos formalista,principalmente nos juzes, serventurios da justia, advogados, procuradores epromotores, substituindo a postura de rbitro, em um jogo de soma zero, poruma de pacificao, em uma arena de composies e acertos.

    Na experincia concreta, h Estados que conseguiram avanar mais e outrosmuito pouco na organizao dos juizados e na consecuo de suas finalidades. Arigor, isto indica que ainda baixo o seu grau de institucionalizao, estando su-jeitos oscilao da vontade poltica dos dirigentes do Judicirio local.

    A despeito das deficincias, os juizados tm permitido: o ingresso de novasdemandas; a ampliao do acesso da populao; a constituio e o desenvolvimentode novas formas de justia, gerando caractersticas novas, capazes de convivercom as antigas, mas colocando em xeque valores obsoletos.

    Tal como os Juizados Especiais, experincias de colocar em prtica princpiosde gerenciamento e racionalizao de procedimentos, e de valorizar a conciliaotm mostrado resultados concretos: aumentos de produtividade e, maissignificativo, concretizao no juzo comum de uma nova mentalidade menosformalista, menos burocrtica e mais atenta s demandas da cidadania.

    Essas prticas, com alto potencial de questionar obsolescncias e imprimiruma nova identidade ao Judicirio, no dependem de mudanas constitucionais,mas de vontade poltica ou de abertura da instituio para conquistas damodernidade.

    Quanto s alteraes na Constituio, apesar da crescente insatisfao como Judicirio, projetos de reforma no conseguiram adquirir o status de prioridade.Em uma agenda repleta de demandas por mudanas, outros foram os alvosprincipais. A reforma do Judicirio e das instituies do sistema de justiapermanece na pauta do Congresso Nacional desde 1992 e nada indica que avotao do projeto como um todo ser concluda num futuro prximo.

    O governo Luiz Incio Lula da Silva, contudo, tem dado sinais de quemudanas no Judicirio devem ser implementadas, mesmo que isto impliqueconfrontos com a instituio e o fatiamento da proposta de emenda constitucio-nal. De fato, iniciativas governamentais deram mais concretude reforma. Dentreelas, a mais importante foi criao, em maio de 2003, da secretaria de Reformado Judicirio, no mbito do Ministrio da Justia. Essa secretaria tem coordenadodiscusses sobre o tema e apresentado sugestes que prescindem de mudanasconstitucionais, como por exemplo, melhorias na gesto com a modernizao ea informatizao de varas, fruns e tribunais.

    Por outro lado, aps o governo Lula da Silva, recrudesceram acentuada-mente as crticas ao Judicirio. O prprio presidente proferiu avaliaes negativas.As crticas foram constantes durante todo o primeiro ano de mandato, a ponto

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 97

    de se criar uma situao que alguns chegaram a qualificar como de criseinstitucional. Tais crticas no foram exclusividade do Executivo. Tambm noLegislativo vrios pronunciamentos tiveram por tema as deficincias do Judicirio.Alm disso, em outubro de 2003, houve uma proposta de uma representante daONU de se fazer uma espcie de auditoria no Judicirio, em funo da impunidadecriminal. Tambm a secretria-geral da Anistia Internacional, ao entregar o rela-trio da entidade, cobrou do presidente Lula a reforma do Judicirio, especial-mente na rea criminal, alm da adoo de polticas que assegurem o acesso dosmais pobres Justia.

    Integrantes do Judicirio, como no poderia deixar de ser, reagiram scrticas, particularmente as oriundas do Poder Executivo. As respostas mais sperasvieram do ento presidente do STF, Maurcio Correa, e do presidente daAssociao dos Magistrados do Brasil, Claudio Baldino Maciel.

    Do ponto de vista do jogo poltico, na disputa Executivo e Judicirio, abalana tem pendido claramente a favor do governo, que rene inmeras vanta-gens. Para comear, so praticamente unnimes as crticas ao Judicirio. Ade-mais, por ocasio da discusso da Reforma Previdenciria, o Judicirio ficou coma imagem ainda mais desgastada, uma vez que suas posies foram vistas comoessencialmente corporativas e de defesa de privilgios. A magistratura chegou,inclusive, a ameaar o governo com uma greve, que acabou sendo cancelada. Talreao com traos de comportamento fortemente sindicalista acentuou aimagem negativa do Judicirio junto opinio pblica.

    Da tica do governo, a reforma do Judicirio daria vigor a uma agendapositiva. Na presente conjuntura, os interesses da magistratura podem ser maisfacilmente neutralizados e identificados como particularistas, sectrios e contrriosaos princpios da igualdade e dos interesses sociais. A gesto de Maurcio Corrana presidncia do STF acabou por fornecer mais argumentos para os partidriosda reforma. Durante seu mandato, o ministro revelou exacerbado corporativismo,nimo para disputas e provocou, com suas manifestaes e reaes, excessivapresena nos noticirios. A defesa dos interesses da magistratura, ainda quelegtima, transpareceu como reivindicao corporativa em pr, no de direitos,mas de regalias e privilgios.

    Some-se, ainda, aos fatores favorveis reforma, o impacto provocado peloltimo escndalo envolvendo juzes, conhecido como operao Anaconda e aocorrncia de uma onda reformista do sistema de justia atingindo vrios pasesda Amrica Latina16. Ademais, buscam-se aliados junto prpria magistratura,tendo por base a percepo de que h um grupo de descontentes com a situaoatual e, tambm, que possvel valorizar e multiplicar experincias inovadoras.

    Para o governo ou, mais especificamente, para a Secretaria de Reforma doJudicirio, a reforma deveria ser fatiada. Isto , deveriam ser discutidos e votadosprimeiramente os pontos sobre os quais h acordo, ou pelo menos possibilidadesde se atingir uma ampla maioria de votos. Alm disso, essa estratgia distingue

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200498

    mudanas que necessitam de reforma constitucional de mudanas infra-cons-titucionais.

    No que se refere mudana constitucional, alguns temas so consideradosprioritrios para o governo: a criao de um rgo de controle externo; a federa-lizao dos crimes contra os direitos humanos; a quarentena de ingresso e desada dos magistrados; a smula impeditiva de recursos; uniformizao dos critriosde ingresso na magistratura e no Ministrio Pblico; autonomia das defensoriaspblicas.

    Esses temas esto longe do consenso. Assim, por exemplo, se considervelo apoio criao de um conselho para exercer a fiscalizao do Judicirio, soapreciveis as divergncias quanto composio desse rgo. Segundo o relatrioda deputada Zulai Cobra Ribeiro, aprovado na Cmara dos Deputados e emdiscusso no Senado, o conselho seria composto por quinze membros: novejuzes, dois representantes da OAB, dois membros do Ministrio Pblico e doiscidados, um indicado pela Cmara e outro pelo Senado. O governo e o PTprefeririam um conselho em que os juzes fossem minoria, mas, face s resistncias,sobretudo por parte da magistratura, tm apoiado a proposta que tramita noCongresso, insistindo na necessidade de sua aprovao imediata, com poder,inclusive, para demitir juzes corruptos.

    Os magistrados, por seu lado, esto divididos. Pondere-se, contudo, que j possvel registrar mudanas e, mais do que isto, o placar contrrio ao controleexterno verificado no STF alterou-se a partir de maio de 2004, com a aposentadoriacompulsria de Maurcio Correa, que sempre se manifestou radicalmente contrrioa esse mecanismo. Seu substituto, como os trs ltimos j nomeados, foi indicadopelo presidente Lula da Silva. Alm disso, o novo presidente do STF, N. Jobim, o principal aliado do governo para a criao de um rgo de controle externo.A mesma tendncia verifica-se no STJ. Face, pois, s alteraes na correlao deforas, parece cada vez mais difcil descartar algumas alteraes constitucionais,entre elas, a criao de um rgo de controle externo do Judicirio.

    Fortalece-se, assim, a hiptese segundo a qual os ventos de mudana tmatingido e continuaro a atingir o Judicirio. Poucas vezes o debate esteve toacalorado, tantos buscaram negociar e assim alterar suas posies iniciais, eprojetos, ou pelo menos itens de projetos, ganharam tanta concretude, permitindoconcluir que dificilmente uma instituio to cristalizada como o Judiciriopermanecer imune a alteraes. As mudanas em curso e o rompimento com omarasmo so passos surpreendentes para os cticos; pequenos para os idealistas;necessrios, bem-vindos, mas insuficientes para garantir uma justia mais clere,imparcial e de amplo acesso para os realistas, orientados pelos princpios repu-blicanos. preciso mais o clamor da cidadania.

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 99

    Notas

    1 O paradigma desse novo modelo de Constituio a Lei Fundamental de Bonn, de1949. A Constituio portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978 so recorrentementeapontadas como exemplos que se enquadram nesse padro.

    2 Mesmo que se saliente que as Constituies da segunda metade do sculo XX somuito mais extensas do que suas antecessoras, a Constituio argentina possui apenas129 artigos e dezessete dispositivos transitrios e resultou de uma discusso entrejuristas de cada partido antes de ser levada ao Parlamento

    3 Para a discusso do modelo de controle da constitucionalidade adotado e suasconseqncias para a vida pblica e para a governabilidade, ver Arantes, 1997.

    4 Aps a Constituio de 1988 passaram a ser nove os possveis titulares de ao diretade inconstitucionalidade: o presidente da Repblica; a Mesa do Senado Federal; aMesa da Cmara dos Deputados; a Mesa da Assemblia Legislativa; o Governadorde Estado; o Procurador-Geral da Repblica; o Conselho Federal da Ordem dosAdvogados do Brasil; partido poltico com representao no Congresso Nacional;confederao sindical ou entidade de classe de mbito nacional.

    5 O Idesp realizou uma srie de pesquisas junto aos operadores do direito. Todas elastiveram o apoio da Fundao Ford e da Fapesp. Os dados relativos opinio damagistratura, colhidos em 1993, encontram-se em Sadek (1995b). A opinio dosintegrantes dos Ministrios Pblicos dos Estados (pesquisa feita em 1996) est emSadek (1997). Os resultados da pesquisa realizada em 1997 junto aos integrantes doMinistrio Pblico Federal encontram-se em Sadek e Castilho (1998).

    6 Efetivamente, dados do IBGE de 1988 mostram que a maior parte dos litgiossequer chega a uma Corte de Justia apenas 33% das pessoas envolvidas em algumtipo de litgio procuram soluo no Judicirio.

    7 Cappelletti e Garth (1988, p. 12), em texto que se tornou referncia obrigatriapara os estudiosos do sistema de justia, afirmam que a titularidade de direitos destituda de sentido na ausncia de mecanismos para sua efetiva reivindicao. Oacesso justia pode ser encarado como o requisito fundamental o mais bsico dosdireitos humanos de um sistema jurdico moderno e igualitrio que pretenda ga-rantir, e no apenas proclamar os direitos de todos.

    8 Carvalho (1997, p. 105) baseado em dados de pesquisa conclui que o sistema dejustia inacessvel grande maioria dos brasileiros. Para eles, existe o CdigoPenal, no o Cdigo Civil.

    9 Solicitados a avaliar os resultados econmicos das aes propostas por suas empresasnos ltimos dez anos, 59% responderam que os benefcios superaram os custos; 11%que os custos superaram os benefcios; 13% que os custos e benefcios foramaproximadamente iguais; 17% no souberam avaliar (Idesp, 1996).

    10 Dados oficiais de 2004 indicam que o Brasil possui um juiz para cada 25 mil habitantes,havendo vacncia na justia dos Estados, na federal e na trabalhista. O dficit chegaa 21% na justia comum.

  • MA R I A T E R E Z A SA D E K

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004100

    11 Dados da pesquisa Idesp (Sadek, 1995b) realizada junto magistratura mostramque 55% dos juzes ingressaram no Judicirio com trinta anos ou menos. Segundoresultados da pesquisa de Vianna et al. (1997) observa-se uma tendncia derecrutamento de integrantes cada vez mais jovens: enquanto em 1985/1986 osingressantes com trinta anos ou menos correspondiam a 29,3% do total, nos concursosentre 1993/1994 eles passaram para 48%.

    12 A pluralidade de opinies pode ser confirmada nos resultados de pesquisa realizadapelo Idesp em 2000, junto a 738 juzes, de primeira e segunda instncias, em onzeEstados da federao. A anlise das opinies sobre a reforma do Judicirio est emSadek, Arantes e Pinheiro, 2001.

    13 Pesquisas do Idesp mostraram que tem crescido o grupo de magistrados que julgaque o juiz no pode ser um mero aplicador da lei, deve ser sensvel aos problemassociais. Para a comparao ver Sadek, 1995a e Sadek, Arantes e Pinheiro, 2001.

    14 O processo de reviso da Constituio, previsto pelo Ato das Disposies Cons-titucionais Transitrias, teve inicio em 13/10/1993 e encerrou em 31/5/1994.Nesta fase especial, o Congresso Nacional, reunido em sesso unicameral, poderiaaprovar mudanas na Constituio pelo voto da maioria absoluta de seus membros.Um processo normal de emendas Constituio deve respeitar a regra de votaoem dois turnos, nas duas casas legislativas, por meio de maioria qualificada de 3/5,nas quatro votaes.

    15 Jairo Carneiro do PFL da Bahia foi escolhido relator em 1995. Sucederam-lhe doisdeputados federais do PSDB de So Paulo: Aloysio Nunes Ferreira e Zulai CobraRibeiro.

    16 Na Argentina, o presidente Kirchner promoveu mudanas no Judicirio assim queassumiu o cargo. Dois magistrados renunciaram ao cargo de ministro da CorteSuprema de Justia, devido a acusaes. No incio de dezembro de 2003, o Senadodestituiu um ministro da Corte Suprema de Justia. Molin OConnor foi consideradoculpado das nove acusaes que pesavam contra ele. O juiz criou a maioria auto-mtica, pela qual cinco dos nove magistrados sempre votavam a favor do Executivodurante o governo C. Menem (1989-1999). No Paraguai, o presidente Duarte Frutosliderou um processo de limpeza. Como resultado, em quatro meses, de agosto quando assumiu o poder at o final de novembro de 2003, dos nove ministros daCorte Suprema, trs renunciaram e trs foram submetidos a um julgamento polticona Cmara dos Deputados e no Senado.

    Bibliografia

    ARANTES, Rogrio Bastos. Judicirio e Poltica no Brasil. So Paulo, Sumar/Fapesp/Educ, 1997.

    CAPPELLETTI, Mauro e BRYANT, Garth (eds.).Access to Justice. Milan/Alphenaan-denrij, Dott Giuffr/Sijthoff and Noordhoff, 1978.

    CARVALHO, Jos Murilo. Cidadania: tipos e percursos, em Estudos Histricos, Riode Janeiro, vol. 9, n. 18, 1996.

  • J U D I C I R I O: M U D A N A S E R E F O R M A S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 101

    IDESP Relatrio de Pesquisa Justia e Economia , So Paulo, 2000.

    PINHEIRO, Armando Castelar (org.). Reforma do Judicirio Problemas, desafios,perspectivas . Book Link, 2003.

    SADEK, Maria Tereza (org.). O Judicirio em debate. So Paulo. Idesp/Sumar, 1995a).

    . (org.). Uma introduo ao estudo da Justia. So Paulo, Sumar/Ford, 1995b.

    . O Ministrio Pblico e a justia no Brasil. So Paulo, Idesp/Sumar, 1997.

    SADEK, Maria Tereza e CASTILHO, Ela Wiecko de. O Ministrio Pblico Federal e aadministrao da Justia no Brasil. So Paulo, Sumar, 1998.

    SADEK, M. T., ARANTES, R. B. e PINHEIRO, A. C. Os juzes e a reforma do Judicirio,So Paulo, Tribunal de Alada Criminal, 2001.

    VIANNA, Luis Werneck et al. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro,Revan/IUPERJ, 1997.

    VIEIRA, Oscar Vilhena. Imprio da Lei ou da Corte. Revista USP, Dossi Judicirio,n. 21, 1994.

    RESUMO O JUDICIRIO brasileiro, diferentemente do que ocorria no passado, est naberlinda e no apresenta mais condies de impedir mudanas. Reformas viro e mudanasj esto em curso, algumas mais e outras menos visveis, alterando a identidade e o perfilde uma instituio que sempre teve na tradio uma garantia segura contra as inovaes.

    ABSTRACT THE JUDICIAL Branch of the Brazilian government, unlike in the past, is nowin a not-so-flattering spotlight and no longer able to prevent changes. Reforms willcome and changes are already happening, some more and some less visible, altering theidentity and the profile of an institution that had always counted on tradition as anassured guarantee against innovation.

    Maria Tereza Sadek doutora em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo (USP),pesquisadora snior do Instituto de Estudos Econmicos, Sociais e Polticos (Idesp) eorientadora cientfica do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej). professora da ps-graduao do Departamento de Cincia Poltica da USP e autora devrias obras, entre elas: Maquiavel, Maquiavis: a tragdia octaviana (1978), PensamentoPoltico Clssico (com Clia G. Quirino, 1980), O Judicirio em debate (org., 1995) eMaquiavel: a poltica como ela (1996).

    Texto recebido e aceito para publicao em 15 de junho de 2004.