august strindberg - meia folha de papel (sagas)

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August Strindberg Meia folha de papelConto do livro "Sagas"

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Page 1: August Strindberg - Meia Folha de Papel (Sagas)

MEIA FOLHA DE PAPEL

A ÚLTIMA LEVA da mudança partira, e o inquilino, um jovem

com véu de luto no chapéu, vagava pelo apartamento mais

uma vez, para certificar-se de que não esquecera nada. Não,

não esquecera nada, absolutamente nada; e saiu para o ves-

tíbulo, decidido a não mais pensar na vida que levou nesse

apartamento. Mas lá, junto ao telefone, a metade de uma

folha de papel estava pregada com tachas. O papel estava

coberto por várias caligrafias; algumas eram muito elegantes,

a tinta; outras foram rabiscadas a lápis ou caneta vermelha.

Aquela meia folha de papel contava a bela história que se

desenrolou no curto período de dois anos; ali estava tudo que

ele tentava esquecer: um pedaço de vida humana, ocupando

a metade de uma folha de papel. Desprendeu a folha; era um desses papéis de rascunho

amarelo-claros, que brilham. Colocou-a em cima da cornija

da lareira e, apoiado, leu a folha. Primeiro estava escrito o

nome dela: Alice. Para ele, o nome mais belo do mundo,

porque era o nome de sua noiva. E o número — 15. 11. Parecia

o número de um salmo na igreja. Em seguida, "banco". Era

o seu trabalho, o sagrado trabalho que lhe provia o pão, o lar

e a esposa, sua razão de viver. Mas o banco havia falido, e o

nome estava riscado; ele se salvara em outro banco, após um

curto periodo de muita preocupação. A hora chegou; a floricultura, o cocheiro — era a época do

noivado, quando seus bolsos estavam cheios. A seguir, a loja

de móveis, a loja de tapetes, a casa montada. A empresa de

transportes: o casal se muda. A bilheteria da Ópera: 50. 50. Os dois são recém-casados

http://aparedeeosanguedela.blogspot.com

“Meia folha de papel”, de August Strindberg. Do livro “Sagas”, editora Hedra, 2008.

Tradução de Carlos Rabelo.

Page 2: August Strindberg - Meia Folha de Papel (Sagas)

MEIA FOLHA DE PAPEL

e vão a Opera aos domingos. Os melhores momentos juntos

eram passados lá, em silêncio, quando se imaginavam em

meio à beleza e harmonia do outro lado da cortina, naquele

mundo de faz-de-conta. A seguir vem um nome riscado. Um amigo que ganhou

certo renome, não soube lidar com o sucesso e caiu, desampa-

rado; depois, precisou viajar para longe. Como isso é delicado! Aqui alguma novidade parece ter entrado na vida do casal.

Está escrito com uma caligrafia de mulher e a lápis: "Par-

teira". Mas que parteira? — Sim, aquela de capa longa e com

o rosto amigável e simpático que vinha silenciosa, e nunca

passava pela sala, preferindo ir até o quarto pelo corredor.

Abaixo do nome dela estava escrito "Doutor L". Pela primeira vez surge o nome de um parente: "Mamãe".

Era a sogra que, sendo discreta, ausentara-se para não inco-

modar os recém-casados; mas quando chamada, na hora da

necessidade, veio de bom grado, pois precisavam dela. Depois começa um grande rabisco azul e vermelho. Agên-

cia de emprego: a criada se mudou, ou uma nova foi chamada.

Farmácia. Hum! As coisas pioram. A companhia de laticínios.

Aqui um pedido de leite, livre de micróbios. Loja de especiarias, açougueiro... A casa começa a ser

gerida pelo telefone, pois a patroa não está mais no seu lugar.

Não. Ela está de cama. Não conseguiu ler o que vinha mais adiante, porque seus

olhos começaram a se turvar, como deve acontecer aos que se

afogam quando tentam ver através da água salgada. Estava

escrito: "funerária". Já diz o bastante! Um grande e um

pequeno. Subentenda-se: caixões. E em parênteses estava

escrito: "de cinzas". Depois mais nada! Cinzas às cinzas, e é

assim mesmo. Apesar disso, pegou aquele papel amarelo e deu-lhe um

beijo. Depois, colocou-o no bolso da camisa. Em dois minutos,

revivera dois anos de sua vida. Quando saiu para a rua, não

Page 3: August Strindberg - Meia Folha de Papel (Sagas)

STRINDBERG

estava mais cabisbaixo; pelo contrário: tinha a cabeça erguida

como um homem feliz e orgulhoso, pois sentia que, apesar de

tudo, havia possuído o que há de mais belo. Quantos infelizes

nunca o possuíram!

http://aparedeeosanguedela.blogspot.com

“Meia folha de papel”, de August Strindberg. Do livro “Sagas”, editora Hedra, 2008.

Tradução de Carlos Rabelo.