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108 Oficina 5 – KARATÊ-DO NA ESCOLA Victor Lage 1 Juliano Alves Prado 2 Igor Luiz de Bello 3 Sinopse: Atividades relacionadas à prática do Karatê-Do nas aulas de Educação Física Escolar, com vivências e discussão dos aspectos teórico-práticos sobre os fundamentos desta luta e seus possíveis processos de ensino e aprendizagem, por meio de jogos e brincadeiras envolvendo as lutas de maneira lúdica, fornecendo recursos pedagógicos para Professores de Educação Física ou educadores em academias/dojos. Palavras-Chaves: Karatê-Do, Lutas, Brincadeiras de Lutas, Educação Física Escolar. AS LUTAS NO CONTEXTO ESCOLAR: UMA PERSPECTIVA PARA O KARATÊ-DO Atualmente, ainda são raros os cursos de Educação Física que contemplam em sua grade curricular alguma disciplina - obrigatória ou optativa - relacionada às lutas, resultando em certo distanciamento do professor de Educação Física do universo cultural das lutas em geral (GONÇALVES JUNIOR e DRIGO, 2001). Tal ocorrência acaba por difundir menor segurança aos egressos dos cursos de Educação Física no desenvolvimento de conteúdos relacionados a estas práticas corporais no contexto escolar. Assim, tanto lutas de origem afro-brasileira, como a Capoeira, de origem indígena, como o Huka-huka ou Kindene, ou de origem oriental, como o Judô e o Karatê-Do, têm sido pouco abordadas no contexto escolar. No entanto, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), propõem as lutas/artes marciais como um conteúdo possível e atrativo para ser desenvolvido nas aulas de Educação Física. Neste sentido, este esta oficina visa contribuir para a apresentação de uma possibilidade do trabalho com o tema, mais especificamente o Karatê-Do, bem como 1 Professor do Curso de Educação Física das Faculdades Integradas Fafibe (Bebedouro/SP); Vice-Diretor Financeiro da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH); Pesquisador do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF); Pesquisador do Centro de Estudos Shobukan de Artes Marciais (FAMERP). 2 Diretor Técnico da Clínica de Condicionamento Físico e Bem-Estar Amarunthus (Araraquara/SP); Pesquisador do Centro de Estudos Shobukan de Artes Marciais (FAMERP). 3 Instrutor de Atividades Físicas SESC-Araraquara/SP; Personal Trainer da Clínica Personale (Araraquara/SP).

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Oficina 5 – KARATÊ-DO NA ESCOLA

Victor Lage 1 Juliano Alves Prado2

Igor Luiz de Bello3 Sinopse: Atividades relacionadas à prática do Karatê-Do nas aulas de Educação Física Escolar, com vivências e discussão dos aspectos teórico-práticos sobre os fundamentos desta luta e seus possíveis processos de ensino e aprendizagem, por meio de jogos e brincadeiras envolvendo as lutas de maneira lúdica, fornecendo recursos pedagógicos para Professores de Educação Física ou educadores em academias/dojos. Palavras-Chaves: Karatê-Do, Lutas, Brincadeiras de Lutas, Educação Física Escolar.

AS LUTAS NO CONTEXTO ESCOLAR:

UMA PERSPECTIVA PARA O KARATÊ-DO

Atualmente, ainda são raros os cursos de Educação Física que contemplam em

sua grade curricular alguma disciplina - obrigatória ou optativa - relacionada às lutas,

resultando em certo distanciamento do professor de Educação Física do universo cultural das

lutas em geral (GONÇALVES JUNIOR e DRIGO, 2001).

Tal ocorrência acaba por difundir menor segurança aos egressos dos cursos de

Educação Física no desenvolvimento de conteúdos relacionados a estas práticas corporais no

contexto escolar. Assim, tanto lutas de origem afro-brasileira, como a Capoeira, de origem

indígena, como o Huka-huka ou Kindene, ou de origem oriental, como o Judô e o Karatê-Do,

têm sido pouco abordadas no contexto escolar.

No entanto, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), propõem

as lutas/artes marciais como um conteúdo possível e atrativo para ser desenvolvido nas aulas

de Educação Física.

Neste sentido, este esta oficina visa contribuir para a apresentação de uma

possibilidade do trabalho com o tema, mais especificamente o Karatê-Do, bem como

1 Professor do Curso de Educação Física das Faculdades Integradas Fafibe (Bebedouro/SP); Vice-Diretor Financeiro da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH); Pesquisador do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF); Pesquisador do Centro de Estudos Shobukan de Artes Marciais (FAMERP). 2 Diretor Técnico da Clínica de Condicionamento Físico e Bem-Estar Amarunthus (Araraquara/SP); Pesquisador do Centro de Estudos Shobukan de Artes Marciais (FAMERP). 3 Instrutor de Atividades Físicas SESC-Araraquara/SP; Personal Trainer da Clínica Personale (Araraquara/SP).

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aperfeiçoar os conhecimento dos processos educativos envolvidos nesta luta de raiz oriental e

em certa medida, estranha à nossa cultura.

Observamos que o Karatê-Do foi introduzido em Tóquio, em 1922, por Gichin

Funakoshi, após anos de intercâmbio com mestres e praticantes de outras lutas, como Aikidô,

Judô e Kendô, que o influenciaram a incorporar também ao Karatê-Do ortodoxo (constituído

basicamente na prática de Katas) os princípios do Budô4, característicos de algumas lutas

orientais japonesas.

Intervenções do Mestre Funakoshi evidenciaram a forte conotação educacional

encontrada na prática do Karatê-Do, procurando formar e aperfeiçoar o caráter, a

personalidade, tendo como objetivo a vida em sociedade.

O Karatê-Do propagou-se por todo o mundo, chegando ao Brasil através das

imigrações japonesas, realizadas na primeira metade do século XX, difundindo-se em todos

os estados brasileiros e, possuindo atualmente cerca de 1.400.0005 (um milhão e quatrocentos

mil) praticantes no Brasil.

Neste panorama, com grande número de adeptos e forte intercâmbio cultural

entre japoneses e brasileiros, compreendemos como viável a introdução dos elementos desta

luta no contexto escolar, criando oportunidade para novos conteúdos numa área que

historicamente, identificou-se com práticas eminentemente esportivas.

Nas últimas décadas, o esporte tem sido o conteúdo mais utilizado nas aulas de

Educação Física e, em certos casos, somente algumas modalidades são contempladas, tais

como o futebol, o basquetebol, o voleibol e o handebol.

Segundo Irene Conceição Rangel Betti (1995) os próprios estudantes

costumam estabelecer uma identificação imediata do significado do componente curricular

Educação Física com o esporte. Para a autora não haveria problemas nisso, desde que

houvesse oportunidade para o conhecimento de outras práticas, e o indivíduo tivesse

condições de optar por elas. No entanto, na escolha dos conteúdos encontra-se pouca

variedade nas modalidades esportivas, e por vezes um mesmo grupo de modalidades (ou

ainda apenas uma modalidade) se repetem ano após ano, sem alterações.

4 Budô é entendido como “essência/espírito” das artes marciais orientais. Ressaltamos que arte marcial é a tradução mais aproximada e usual para o ocidente, e decorre de “Marte”, deus da guerra para os gregos. No entanto, a expressão ocidental arte marcial vincula-se geralmente a técnicas de defesa pessoal, relacionadas ou não a preparação militar, e, portanto, não contempla a amplitude do sentido vinculado ao Budô no presente estudo, que envolve uma sabedoria de vida ou modo de viver. (LAGE, 2005) 5 Dados obtidos junto ao site da FEDERAÇÃO PAULISTA DE KARATÊ. Disponível em: <http://www.midiamix.com.br/karate/apresent.asp>. Acesso em: 25 ago. 2005.

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Em acordo, Luiz Gonçalves Junior (2007) comenta ser comum nas aulas de

Educação Física a predominância do esporte como conteúdo por vezes exclusivo, o que acaba

por reduzir o universo da cultura corporal, circunscrevendo-o, não raro, ao contexto cultural

estadunidense e/ou europeu do futebol, voleibol, basquetebol e handebol, em detrimento das

potencialidades que podem ser exploradas ao propor a vivência de outras práticas corporais

(jogos, brincadeiras, danças, lutas), oriundas da diversidade cultural de diferentes povos que

construíram e constroem o Brasil além dos europeus, tais como os indígenas e africanos.

De acordo com Valter Bracht (1992), o esporte possui códigos tais como o

rendimento atlético-desportivo, a competição, comparação de rendimentos e recordes,

regulamentação rígida, sucesso esportivo e sinônimo de vitória, racionalização de meios e

técnicas, os quais podem ser utilizados e condicionados pela Educação Física Escolar,

colocando o professor na condição de professor-treinador e o aluno na de aluno-atleta.

Para Betti (1995):

...a finalidade própria do esporte não é a educação. Apesar de se remeter ao esporte alguns objetivos tais como a saúde, a moral e o valor educativo, ele não o será, a menos que um professor/educador faça dele um objetivo e um meio de educação (...) Se o aprendizado dos esportes restringir-se ao processo de ensino-aprendizado de técnicas, gestos automatizados, onde somente o professor-técnico as conhece e domina, ou seja seu Sentido/Significado é compreendido somente pelo professor e ao aluno cabe apenas executá-las da melhor forma (...). Isto não quer dizer que se queira negar totalmente o esporte mas sim, levantar questões sobre sua orientação no sentido do Princípio do Rendimento e Concorrência, que selecionam os melhores, classificam e relegam os mais fracos. Há necessidade de mudanças tanto da “Ação” prática quanto da “Reflexão” teórica. A transformação didática dos esportes visa, especialmente, a que a totalidade dos alunos possa participar, em igualdade de condições, com prazer e com sucesso, na realização destes esportes (p.26-27).

Além da ausência da diversidade de conteúdos junto à educação física,

percebemos o estabelecimento de uma visão eminentemente biológica de corpo,

excluindo toda a rede de significados, sentidos, expressividade, sensibilidade,

comunicação, inerente ao ser humano.

O corpo nesta nova trajetória ganha outros olhares, fazendo emergir a

idéia da motricidade (movimento intencional de transcendência) e não do movimento,

colocando em debate o paradigma cartesiano de ser humano fragmentado em corpo e mente,

legado de uma visão mecanicista, na qual Manuel Sérgio (1996) afirma ser:

...evidente que o corpo humano não é o que a fisiologia descreve, nem o que a anatomia desenha, nem o que a biologia, em suma, refere. Porque o corpo é a materialização da complexidade humana. (...). De facto, ninguém tem um corpo. Há uma distância iniludível entre mim e um objecto que possuo: posso deixá-lo fora,

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sem deixar de ser quem sou. Com meu corpo não sucede o mesmo: sem ele, eu deixo de ser quem sou. Por isso, o meu corpo não é físico, no sentido cartesiano do termo (...), mas o fundamento de toda a minha existência da minha própria subjetividade... (p.125).

Assim, neste novo paradigma, rompe-se com a dicotomia do ser e se estabelece

uma compreensão de corpo encarnado, conforme apresentada por Maurice Merleau-Ponty

(1969), ou seja: um corpo que olha todas as coisas e que também é capaz de olhar a si, que se

vê vidente, que se toca tateante. Um corpo que não é objeto para um “eu penso”; ele é um

conjunto de significações vividas, pois, como afirma Merleau-Ponty (1996): não reúno as partes de meu corpo uma a uma; essa tradução e essa reunião estão feitas de uma vez por todas em mim: elas são meu próprio corpo (...). Mas eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo (p.207-208).

Nesta perspectiva, há um corpo (encarnado) e não um físico (no sentido

cartesiano) que se move pela reunião de partes e na ignorância de si, porém irradiando de um

si, percebido no pano de fundo do mundo, com a coesão de uma coisa, de um anexo ou um

prolongamento dele mesmo, incrustados na sua carne, pois o corpo é o lugar de todo o diálogo

que envolve o eu e o mundo, que se movimenta não mecanicamente, mas que é todo em tudo

que faz (MERLEAU-PONTY, 1969; 1996).

Em suma, a presente oficina não tem a pretensão de discutir a

aplicação/execução de simples vivências práticas do Karatê-Do como mais um possível

conteúdo “esportivo” da Educação Física Escolar, nem se tratará, porém, de negar a existência

do esporte, que, aliás, é um fenômeno social do nosso século, mas sim de contribuir para a

valorização de outros conteúdos, como as lutas.

Conforme Felipe Eduardo Ferreira Marta (2004), apesar de na atualidade

muitas pessoas aderirem à prática de uma luta pelo interesse na cultura oriental, outros

interesses vinculam-se a tal, entre eles, a prática pela prática de uma atividade física, o

convívio social, entre outras, o que pode, no ocidente em geral, e mais especificamente no

Brasil, conforme sua apropriação e desenvolvimento até mesmo contrariar as suas raízes

originais.

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De acordo ainda com Marta (2004) o que se observa atualmente no Brasil, é

que as artes marciais, passaram por processo de massificação dos meios de comunicação,

sobretudo via cinema e televisão; e também por um processo de esportivização6.

Neste sentido, percebemos que:

...valores como dignidade, honra, trabalho, pacifismo, formação do caráter, persistência, humildade, são aprendidos na prática do Karatê-Do que mantém as raízes da cultura oriental, ou seja, o Karatê-Do como sabedoria ou modo de viver, em que o “DO” (caminho) se dá nas experiências cotidianas, para além do dojo7, ou seja, não fragmenta a vida em si mesma da atividade (LAGE, 2005, p.23).

Segundo Victor Lage (2006), apesar do ensino das lutas carregarem consigo

um histórico diretivo em função de suas origens e características históricas e culturais, há a

possibilidade e necessidade de trabalharmos com os educandos, nos baseando no diálogo, na

liberdade e na autonomia, conforme propõe Paulo Freire (1996).

Acaba-se por esquecer os diversos contatos e experiências nas múltiplas

manifestações da cultura corporal relacionada às lutas e suas correlações com o cotidiano

dos/as educandos/as; em outras palavras, desconsideram-se os seus saberes de experiências

feitos, por exemplo, aquelas proporcionadas pela própria mídia em desenhos animados, rádio,

jornais, filmes, canais, revistas e sites 8 , ou mesmo nas brincadeiras com movimentos

similares, como um chute no futebol e os toques do pega-pega, como serão visualizados

durante esta oficina.

Ao desconsiderar essas experiências ou ter a crença da necessidade de dominar

os movimentos técnicos das lutas para contemplá-las, o/a educador/a se esquece da

possibilidade de construir este conteúdo com o/a educando/a, de aprender com o/a

educando/a.

Paulo Freire (2005) nos alerta que não há diálogo sem humildade, e esta

última, aliada à solicitude apresentada por Martin Heidegger (1981), torna-se fundamental no

6 “Supervalorização da competição e do elemento espetacular-visual costumeiro no âmbito do esporte de rendimento, vinculado ao interesse da exibição de performance para outrem ou de busca estética compulsiva ao aspecto físico massificado e padronizado pelos meios de comunicação, em detrimento da realização de práticas corporais autônomas e significativas, desenvolvidas pelo prazer desencadeado por elas mesmas, com satisfação pessoal intrínseca” (RODRIGUES e GONÇALVES JUNIOR, 2009). 7 Do significa “caminho” e jo “local”, tratando-se do local para se aperfeiçoar os vários “caminhos”. KISHIKAWA (2004). Na atualidade, porém, é comum o uso da expressão para designar simplesmente o local onde ocorrem os treinamentos. 8 Alguns exemplos de desenhos animados: “Street Fighter”, “Karate Kid”, “Dragon Ball Z”; Revistas: “Tatame”, “Fighter Magazine”, “Nocaute”; Canais televisivos: “Premiere Combate”, “SporTV; Filmes: “Jogo da Morte”, “O grande dragão branco”; “Kung Fu Panda”; Sites: “Bushido-Online.com.br”, “Super Lutas.com.br”; dentre outros exemplos e formas de comunicação, com seu conteúdo direcionados ou não exclusivamente para as lutas.

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ato de educar. Diferente da expressão conhecida como “dar voz” aos/as educandos/as, é

necessário ouvi-los, reconhecer o Outro e a sua possibilidade de ser mais, partindo do

entendimento de que a autossuficiência é incompatível com o diálogo, e a própria educação

“não pode ser um ato arrogante” (FREIRE, 2005, p.92).

Consideramos que o constante diálogo entre todos favorece ao

desenvolvimento de processos educativos relacionados a autonomia, cooperação,

solidariedade, respeito e, partindo do saber de experiência feito, no qual o planejamento e

desenvolvimento das atividades exigirá uma participação contínua e ativa dos integrantes, os

quais propõem, modificam, criam, discutem e dialogam sobre diversos conteúdos da

Educação Física, como as brincadeiras, os jogos e também as lutas.

Os jogos e brincadeiras são atividades entendidos por nós como uma

interessante possibilidade de intervenção para as lutas. O lúdico como expressão humana de

significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro, com o contexto,

reflete as tradições, os valores, os costumes e as contradições presentes em nossa sociedade.

Assim o lúdico é construído culturalmente e oferece oportunidade para (re)organizar a

vivência e (re)elaborar valores (PINTO, 2007), questionando que tipo de lúdico está sendo

provido nesta sociedade e, nesta esteira, que brincadeiras e lutas.

Sobre o tema, Pinto (2007) rechaça a escolha de brincadeiras com perspectivas

utilitaristas, como um meio de “evasão da realidade” (p.143), mascarando injustiças sociais e

estimulando a passividade, sublinhando as ideologias dominantes perceptíveis na sociedade

de consumo.

Na presente proposta, as vivências em Karatê-Do na escola serão estruturadas

com os próprios participantes ou mesmo, propondo-se alguns temas, construindo e

combinando-se em grupo as possíveis situações e “regras”, junto com as implicações acerca

das decisões tomadas pelo próprio grupo.

Para brincar, segundo Silvino Santin (2001), não precisamos de treinamento,

de instrução, de iniciação; quem brinca gosta de liberdade de sonhar e de inventar, o que

significa sentir, amar, viver e vibrar, e não executar tarefas; é uma experiência pessoal, não se

trata apenas de uma emoção, de um sentimento, um prazer, mas de um conjunto de valores

que são experimentados por aquele que brinca. Nela “não se excluem o esforço, o sacrifício, a

frustração, porque fazem parte da paisagem lúdica que é uma forma de viver” (p.57).

Sendo assim, não consideramos as práticas culturais como lúdicas em si, mas a

“interação do sujeito com a experiência vivida, que possibilita o desabrochar da ludicidade”

(GOMES, 2004, p.145), ou, em outras palavras, não se pode dizer que “há uma atividade

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lúdica, pois não são as atividades, mas os valores vividos e realizados por aquele que brinca

que torna lúdica a ação” (SANTIN, 2001).

Partindo desta concepção de lúdico como experiência vivida, o lúdico pode ser

entendido como linguagem humana, podendo manifestar-se de diversas formas: oral, escrita,

gestual, visual, artística, dentre outras; e ocorrer em todos os momentos da vida: no trabalho,

lazer, escola, família, política, ciência etc. (GOMES, 2004).

A brincadeira apresenta imprecisões na sua definição, porém, neste estudo, a

compreendemos como possibilidade para o lúdico, o qual é um componente da cultura

historicamente situado e pode significar uma “experiência revolucionária” (GOMES, 2004,

p.144), pois permite ao ser humano não só consumir cultura, mas também criá-la e recriá-la,

vivenciando valores e papéis externos a ela, re-significar o próprio mundo, desconstruir e re-

construir a realidade (MARCELLINO, 2003).

Portanto, este consumo e (re)criação da cultura levantam discussões sobre

quais brincadeiras estão sendo contemplados nas escolas, centros comunitários, espaços de

lazer em geral (clubes, academias, etc.), na própria mídia (revistas, gibis, televisão, etc.)

dentre outros, e quais as concepções de ser humano e sociedade explícitos ou implícitos em

suas vivências, pois, seja nos bairros centralizados, nas praças, nos condomínios fechados,

nos quintais ou nas escolas, as brincadeiras ocorrem entre as mais diversas pessoas e faixas

etárias, as conversas entre si, revivendo brincadeiras antigas, populares, do bairro ou

comunidade, criando e recriando/inventando outras; combinando, discutindo e interpretando a

multiplicidade de oportunidades envolvidas nelas, tornando-as relevantes como prática social

a ser investigada, bem como as suas possíveis relações a outras manifestações culturais: as

lutas.

O questionamento dessas influências e a proposta a partir das brincadeiras,

segundo Dulce Mara Critelli (1981), se fazem na preocupação com a educação mesma e não

com o nosso engajamento num apenas construir técnicas e métodos de ensinar.

Luiz Gonçalves Junior, Glauco Nunes Souto Ramos e Yara Aparecida Couto

(2003) entendem que a instrução e a educação são fenômenos distintos. A primeira preocupa-

se com o treinar, o adestrar, o informar... Enquanto que a segunda prima pelo tirar de dentro

para fora, como indica a etimologia da palavra, proveniente do latim: ex-ducere, ou seja, “o

sair de um estado de existência para outro” (p.30). Assim, a educação tem como fundamento

o cotidiano da existência do ser, do ser-com-os-outros, do estar solícito, do colocar-se na

perspectiva do outro e estabelecer a intersubjetividade.

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Reconhecemos os desafios e crenças dispostos anteriormente neste texto, mas

identificamos como primordiais a elaboração e execução comprometidas de novas

perspectivas no trabalho com a Educação Física e com as lutas particularmente.

REFERÊNCIAS BETTI, Irene C. R. Esporte na escola: mas é só isso, professor? Motriz, Rio Claro, v.1, n.1, p.25-31, 1995. BRACHT, Valter. Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: educação física / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. CRITELLI, Dulce M. Para recuperar a educação: uma aproximação à ontologia Heideggeriana. In: HEIDEGGER, M. Todos nós... ninguém: um enfoque fenomenológico do social. São Paulo: Moraes, 1981, p. 59-72. FEDERAÇÃO PAULISTA DE KARATÊ. Disponível em: <http://www.midiamix.com.br/karate/apresent.asp>. Acesso em: 25 ago. 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia da autonomia. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. GONÇALVES JUNIOR, Luiz. A motricidade humana no ensino fundamental. In: I Seminário Internacional de Motricidade Humana: passado-presente-futuro, 2007, São Paulo. Anais do I Seminário Internacional de Motricidade Humana: passado-presente-futuro. São Paulo: ALESP, 2007. v.1. p.29-35. GONÇALVES JUNIOR, Luiz; DRIGO Alexandre J. A já regulamentada profissão de Educação Física e as Artes Marciais. Motriz, Rio Claro, v.7, n.2, p.131-132, 2001. HEIDEGGER, Martin. Todos nós... ninguém. São Paulo: Moraes, 1981. KISHIKAWA, Jorge. Shinhagakure: pensamentos de um samurai moderno. São Paulo: Conrad Livros, 2004. LAGE, Victor. O Karatê-Do e os seus processos educativos na educação física escolar. 2006. 82 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Educação Física) - Centro de Ciência Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2006. MARCELLINO, Nelson C (org.). Repertório de atividades de recreação e lazer: para hotéis, acampamentos, clubes, prefeituras e outros. Coleção Fazer/Lazer. Campinas: Papirus, 2002.

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