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1 O LAZER NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DOS PERSONAGENS DE MAURÍCIO DE SOUSA Robson Amaral da SILVA 1 Luiz GONÇALVES JUNIOR 2 As HQ e os seus personagens fazem parte do mundo infantil muito antes do que se imagina e. acabam se tornando “velhos conhecidos” das crianças por estarem estampados em uma infinidade de produtos, além das próprias revistas. Sendo assim, este estudo teve por objetivo compreender o modo, através do qual, os personagens da “Turma da Mônica” de Maurício de Sousa influenciam as crianças na compreensão da prática social lazer, a partir de intervenções realizadas junto a crianças, em oficinas de HQ. O trabalho combinou pesquisa bibliográfica e de campo. Nove crianças, com idades entre 08 e 10 anos, residentes no Jardim Iguatemi em Araraquara/SP, participaram do estudo. Os dados coletados demonstram que a compreensão do lazer é fortemente influenciada pelas HQ, e que existem neste gênero literário, mensagens e valores que podem tanto ir no sentido da legitimação e continuidade da ordem socialmente estabelecida, como favorecer a reflexão-ação crítica. Descritores: Processos Educativos, Histórias em Quadrinhos, Lazer e Educação Palavras iniciais Os personagens das Histórias em Quadrinhos (HQ) estão presentes no mundo das crianças desde cedo, por vezes, antes da figura do professor no ambiente escolar. Os personagens costumam ser “velhos conhecidos” das crianças por estarem na televisão, no cinema, na internet. Fazem-se presentes também desenhados em guarda-chuvas, bonés, camisetas, meias, mochilas, embalagens de produtos alimentícios (bolachas, balas, chicletes, macarrão instantâneo...), entre outros, ou seja, em uma infinidade de “apetrechos” para consumo, além é claro, das próprias 1 Especializando em Lazer pela EEFFTO/UFMG; NEFEF/DEFMH/UFSCar; [email protected] 2 PhD em Ciências Sociais; NEFEF-DEFMH-PPGE/UFSCar; SPQMH; [email protected]

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O LAZER NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

DOS PERSONAGENS DE MAURÍCIO DE SOUSA

Robson Amaral da SILVA1

Luiz GONÇALVES JUNIOR2

As HQ e os seus personagens fazem parte do mundo infantil muito antes do que se imagina e. acabam se tornando “velhos conhecidos” das crianças por estarem estampados em uma infinidade de produtos, além das próprias revistas. Sendo assim, este estudo teve por objetivo compreender o modo, através do qual, os personagens da “Turma da Mônica” de Maurício de Sousa influenciam as crianças na compreensão da prática social lazer, a partir de intervenções realizadas junto a crianças, em oficinas de HQ. O trabalho combinou pesquisa bibliográfica e de campo. Nove crianças, com idades entre 08 e 10 anos, residentes no Jardim Iguatemi em Araraquara/SP, participaram do estudo. Os dados coletados demonstram que a compreensão do lazer é fortemente influenciada pelas HQ, e que existem neste gênero literário, mensagens e valores que podem tanto ir no sentido da legitimação e continuidade da ordem socialmente estabelecida, como favorecer a reflexão-ação crítica. Descritores: Processos Educativos, Histórias em Quadrinhos, Lazer e Educação

Palavras iniciais

Os personagens das Histórias em Quadrinhos (HQ) estão presentes no mundo das

crianças desde cedo, por vezes, antes da figura do professor no ambiente escolar. Os personagens

costumam ser “velhos conhecidos” das crianças por estarem na televisão, no cinema, na internet.

Fazem-se presentes também desenhados em guarda-chuvas, bonés, camisetas, meias, mochilas,

embalagens de produtos alimentícios (bolachas, balas, chicletes, macarrão instantâneo...), entre

outros, ou seja, em uma infinidade de “apetrechos” para consumo, além é claro, das próprias

1 Especializando em Lazer pela EEFFTO/UFMG; NEFEF/DEFMH/UFSCar; [email protected] 2 PhD em Ciências Sociais; NEFEF-DEFMH-PPGE/UFSCar; SPQMH; [email protected]

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revistas de HQ. Dessa maneira, a criança pode ir imaginando e construindo as características de

cada personagem que vê, ainda que não tenha acesso a HQ em si.

Em outras ocasiões, quando do contato com a mesma, passam a ter mais elementos dos

personagens e suas características, a partir do aspecto físico e vestuário, das expressões, das

condutas e atitudes, da seqüência de acontecimentos, das tramas que se desenvolvem em cada

quadrinho. Além disso, as crianças podem identificar o papel de cada personagem no contexto

das HQ, fazendo dessa maneira, a sua própria leitura, sem que rigorosamente, saiba ler.

Sendo assim, as crianças, mesmo que não alfabetizadas, passam a viver o mundo das HQ

e assimilar conceitos, atitudes e não obstante, a ordem social por elas veiculadas.

Partindo desses princípios esta pesquisa teve por objetivo compreender o modo, através

do qual, os personagens de Maurício de Sousa influenciam as crianças na compreensão da prática

social do lazer, a partir de intervenções realizadas junto a crianças em oficinas de HQ.

O estudo justifica-se pela possibilidade/necessidade de uma (re)leitura crítica da realidade

ao correlacionarmos as mensagens contidas nas HQ, com situações do nosso cotidiano, inclusive

a vivência do lazer por parte do público infantil.

Um pouco sobre o lazer

O lazer é um fenômeno gerado historicamente e que ao longo dos tempos adquiriu

diferentes conotações dadas as distintas sociedades, com suas peculiaridades sócio-econômicas,

políticas e culturais, nas quais ele se manifestou e ainda se manifesta. Sendo assim, diversos

conceitos/compreensões são possíveis. No entanto, observamos que ao longo do seu

desenvolvimento histórico, alguns aspectos tornaram-se proeminentes para o estudo deste

fenômeno: tempo, espaço/lugar, atitude e manifestações culturais.

Neste sentido, compartilhamos neste estudo com a proposição de Gomes (2004), que nos

apresenta cada um destes quatro aspectos de modo inter-relacionados, nos atentando que o lazer

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é uma dimensão da cultura construída socialmente em nosso contexto. O aspecto tempo

corresponde ao desfrute do momento e não se limita a períodos institucionalizados para o lazer.

O aspecto espaço/lugar vai além do espaço “físico” do qual os sujeitos se apropriam

transformando-o em um ponto de encontro e de convívio social para o lazer. A atitude é fundada

no lúdico, que se constitui enquanto expressão humana de significados da/na cultura tendo como

referência o brincar consigo, com os outros e com a realidade. Por fim, temos as manifestações

culturais que são os conteúdos vivenciados como fruição da cultura no lazer oportunizando a

diversão, o descanso e o desenvolvimento.

Tal autora conceitua o lazer como “uma dimensão da cultura constituída por meio de

vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou

grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações,

especialmente com o trabalho produtivo” (GOMES, 2004, p.125).

Entendendo as HQ

Ao examinarmos a literatura referente às HQ veremos que esta apresenta uma gama de

definições que acabam por refletir o próprio desenvolvimento cronológico do conceito.

Anselmo (1972) aponta que as HQ se situam na categoria de narração figurada, aquela

que pode ser pintada, esculpida, gravada, desenhada, bem como impressa ou fotografada.

Para Anselmo (1975, p. 38), as Histórias em Quadrinhos são:

(...) a um só tempo, a arte e o MCM3 que, usando predominantemente personagens irreais, desenvolvem uma seqüência dinâmica de situações, numa narrativa rítmica em que o texto, quando este existe, tanto pode aparecer como legenda abaixo da imagem, como em outros espaços a ele destinados ou em balões ligados por um apêndice à pessoa que fala (ou pensa). Para atingir sua finalidade básica – a rapidez da sua compreensão

3 MCM se refere a sigla de Meio de Comunicação de Massa.

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– as HQ lançam mão de símbolos, onomatopéias, códigos especiais e elementos pictórios que lhes garantem uma universalidade de sentido.

Entretanto, adotaremos para este estudo, o conceito de HQ emitido por Iannone e

Iannone (1994): “história contada em quadros (vinhetas), ou seja, por meio de imagens, com ou

sem texto, embora na concepção geral o texto seja parte integrante do conjunto. Em outras

palavras, é um sistema narrativo composto de dois meios de expressão distintos, o desenho e o

texto” (p.21).

Um pouco de História... em Quadrinhos

A gênese das Histórias em Quadrinhos é matéria controvertida e de difícil consenso.

Neste estudo, no entanto, estaremos localizando o seu início no século XIX, quando se dá o

advento do processo de comunicação de massa.

No princípio, os desenhistas desenvolviam as ilustrações para retratar cenas ou contar

histórias. Não eram raras às vezes que tudo era contado em um só quadrinho. Em outras, as

ilustrações apareciam em seqüência, sem legendas. Enfim, inúmeros artistas trabalhavam com

ilustrações – ora contando histórias sem legenda, ora ilustrando textos – que foram

consideravelmente difundidas nos livros e na imprensa (IANNONE e IANNONE, 1994).

Em 1897, Rudolph Dirks, desenhista da equipe do Morning Journal, apresentou um modelo

cômico-gráfico que posteriormente ficaria conhecido como HQ. As HQ eram publicadas nos

jornais no formato “tablóide”, ou seja, em um espaço equivalente a uma página do suplemento

dominical. Entretanto, com o passar do tempo, dois fatores contribuíram para a evolução dos

quadrinhos como o conhecemos atualmente: o primeiro deles seria o surgimento constante de

novos desenhistas que acabaram criando um clima propício à expansão e renovação dessa forma

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de arte; o segundo seria o interesse dos donos de jornais por novidades que resultassem no

incremento das vendas (IANNONE e IANNONE, 1994).

No Brasil acredita-se que a revista “O Tico Tico” teria sido a primeira no mundo a

apresentar HQ completas. Lançada em 1905, ela trazia contos, textos informativos e curiosidades

sobre assuntos destinados, principalmente, às crianças. No início, os desenhistas nacionais

acabavam por somente copiar, em papel vegetal, os originais americanos, encaixando nos espaços

adequados, os textos traduzidos. (IANNONE e IANNONE, 1994).

Procedimentos

A coleta de informações conjugou pesquisa bibliográfica e de campo segundo as

diretrizes de Marconi e Lakatos (1990). Logo após o contato com cada criança e seu responsável,

informamos o objetivo, os procedimentos da intervenção e recolha de dados para a pesquisa, e

garantimos substituição dos nomes das crianças participantes por nomes fictícios, resguardando

sua identidade. Somente participaram do estudo àquelas crianças que livremente se dispuseram e

que assinaram, junto com seus respectivos responsáveis, o termo de consentimento livre e

esclarecido. Ainda nesse primeiro momento, foi delimitado o conjunto (seriação) das Revistas de

HQ da “Turma da Mônica” de Maurício de Sousa que foram utilizadas durante as atividades e

que estavam subordinados à disponibilidade e acesso às mesmas.

Em um segundo momento ocorreram às intervenções propriamente, designadas

“Oficinas de HQ”. Participaram destas, nove crianças entre oito e dez anos, residentes no Jardim

Iguatemi, região periférica da cidade de Araraquara, interior de São Paulo. Ao longo do

desenvolvimento da pesquisa foram realizadas dez intervenções, entre setembro e novembro de

2006, sendo uma por semana. As oficinas de HQ tinham duração de cinqüenta minutos cada

sessão.

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Em todos os encontros foram explicitadas as atividades a serem desenvolvidas e, ocorria

leitura e releitura de uma HQ previamente selecionada (pelos pesquisadores ou pelas próprias

crianças), dentro do conjunto de Revistas de HQ adquiridas. A cada sessão, diferentes

intervenções aconteceram no âmbito das Oficinas de HQ, com o intuito de se concretizar os

objetivos inicialmente propostos para este estudo. Diálogos entre os participantes, produção de

textos e desenhos, vivência de jogos e brincadeiras experienciadas pelos personagens das HQ.

Esta etapa do estudo contou com o auxílio de diários de campo (FALKEMBACH, 1987;

BOGDAN e BIKLEN, 1994) para anotações sistemáticas dos acontecimentos ocorridos durante

as intervenções.

Por fim, ocorreram as entrevistas semi-estruturadas (NEGRINE, 2004) com as crianças

visando identificar como as mesmas compreendem o fenômeno lazer a partir das intervenções

realizadas durante as oficinas de HQ, sendo para isto realizadas as seguintes questões

orientadoras: 1) O que são HQ para você?; 2) O que significa, para você, a oficina de HQ? e 3)

Descreva situações vividas pelos personagens das HQ que na sua compreensão caracterizam-se

como lazer.

Apresentação e discussão dos resultados

Os resultados foram organizados em três categorias (GOMES, 1994) que emergiram a

partir dos depoimentos das crianças entrevistadas, que por sua vez, desvelaram suas perspectivas

acerca do fenômeno lazer a partir das intervenções com HQ dos personagens de Maurício de

Sousa.

A - O prazer associado à leitura de HQ

Das nove crianças participantes do estudo, oito fizeram asserções convergentes na

formação desta categoria, observando que a leitura de HQ se associa à prazer e a diversão,

conforme expressa Gabriela: “eu acho que a História em Quadrinho é diversão. Eu gosto de História em

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Quadrinho, né? Eu gosto de ler História em Quadrinho (…)”, e prossegue, dizendo: “(…) História pra

mim é tudo porque a leitura é tudo. Aí eu gosto de História, ahhhh! (...). Paola afirma que: “Você se distrai

pra ler os livros. É muito legal isso”. Karine também expressa sua satisfação em ler HQ: “É uma leitura

como qualquer outro livro que a gente lê, se interessa e acaba gostando”.

Notamos também que em sua fala demonstra, além do gosto pela leitura de HQ, a

compreensão de que não se trata de literatura inferior ou menos interessante que outras.

No entanto, por nossa experiência enquanto ex-alunos e atuais professores da instituição

escolar, percebemos que esta tem marginalizado algumas formas de leitura, como das HQ. Tal

gênero literário é entendido como de menor relevância na preparação para exames, concursos, ou

futura profissão que acaba por estereotipar a literatura escolar.

Em acordo, Magalhães (1982) nos alerta de que negando esta modalidade da literatura

(HQ), a escola:

(...) contribui para caracterizá-la como sendo de livre consumo, buscada assídua e espontaneamente pelo seu destinatário que participa ativamente na escolha e aquisição desses impressos. Segregando o gênero, a escola estimula seu papel de importância como resposta a um vazio que os textos consagrados por ela não conseguem preencher satisfatoriamente: o prazer de ler (p. 83).

Segundo Café (2001), devemos resgatar o elemento lúdico da cultura como uma condição

para reunificar aspectos dos seres humanos que se encontram fragmentados pelas sociedades

atuais.

No entanto, Oliver e Marcellino (1996) e Gonçalves Junior (2004), salientam que a escola

tem estado preocupada apenas com o que a criança “vai ser quando crescer”, ou seja, com sua

preparação para o trabalho na vida adulta, impossibilitando ou dificultando a ampliação do

universo de manifestação do elemento lúdico, do brinquedo, do jogo e da festa no seu seio.

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Desta maneira, devido ao caráter “não-sério” desse gênero literário, o sistema capitalista

procura bani-lo da vida escolar, devido a sua incompatibilidade com a racionalidade do sistema

produtivo.

Alertamos, por outro lado, que as HQ podem nos fazer crer não possuir nenhum

compromisso ou intenção de propagar uma forma de pensar o mundo, ao que Dorfman e

Mattelart (1977) argumentam que algumas características presentes nestas produções acabam por

difundir, de maneira dissimulada, a doutrina capitalista.

B – As oficinas de HQ como momento de aprendizagem

A referida categoria contou com asserções de sete participantes, ora refletindo a

compreensão que estas crianças possuem de que os personagens das HQ possuem coisas a

ensinar para elas, ora dos aprendizados realizados no decorrer dos dez encontros da oficina.

Gabriela, por exemplo, comenta que gosta “(...) de ver tudo o que eles fazem. As brincadeiras e

fazer também as brincadeiras, tudo o que eles fazem e divertir (...)”. Rita diz que “(...) a gente aprende bastante

com os personagens que é, a gente vê o que eles estão fazendo (...)”. Enquanto Matheus alega que “(...) é um

tipo de atividade que nóis cata um livrinho sobre a Mônica e trabalha sobre aquilo”.

As HQ difundem uma visão de mundo, e quando as crianças têm condições de ler as

“historinhas” da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, foco do estudo, acabam assimilando, a

partir dos conteúdos transmitidos, relações e papéis sociais estabelecidos, como também a

concepção de lazer presente nesta visão.

Charlot (1979) afirma que os processos educativos transmitem modelos de

comportamento que predominam em uma dada sociedade. Neste contexto, as HQ difundem

modelos de trabalho e de lazer, dentre outras práticas sociais.

Alguns participantes do estudo visualizaram nas oficinas um espaço privilegiado para a

ampliação dos seus conhecimentos referentes às HQ. De acordo com Karine, as oficinas de HQ:

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“(...)Significa que a gente aprende mais sobre as Histórias em Quadrinhos (...)”. Para Rita “as Oficinas são uma

(...) forma que a gente faz pra aprender sobre as Histórias em Quadrinhos, sabe? Saber o que eles estão falando

faz (...) fazer desenho, aprender a fazer desenho das histórias!”.

Ressaltamos neste momento que as ações empreendidas durante as intervenções foram

realizadas sempre respeitando os saberes dos educandos, os gostos e interesses com-partilhados.

Sendo assim Freire (2005), afirma que:

Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já não valem (p.79).

Demonstramos, agindo desta maneira, no âmbito das relações estabelecidas com as

crianças participantes do estudo, uma intencionalidade de fazer as oficinas com e, não para estas.

Desta forma, valorizamos as opiniões expressas pelas mesmas, bem como aprendemos e

ensinamos neste rico contato.

C - Compreensões acerca do fenômeno lazer

Esta categoria é composta por sete depoimentos.

Michelly compreende o lazer como tempo/espaço propício para “ajudar os outros”.

Acreditamos que esta compreensão do que vem a ser lazer para Michelly foi influenciada

pelas HQ lidas durante as oficinas (sem desconsiderar outros espaços), uma vez que, as

“historinhas” da “Turma da Mônica” apresentam muitas situações de jogos e brincadeiras que

envolvem, por vezes, tramas em que os personagens se ajudam mutuamente em prol de um

objetivo comum. Neste sentido, as próprias oficinas de HQ se constituíram em um

tempo/espaço para desenvolvimento de atitudes/ações cooperativas.

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Entendemos que ajudar o próximo deveria ser algo valorizado e incentivado nas vivências

de lazer, o que poderia possibilitar passarmos ao questionamento da estrutura social vigente, em

particular nos apercebendo de:

(...) um conjunto de variáveis, tendo como pano de fundo as limitações econômicas, formando um todo inibidor, quer em termos da quantidade, e principalmente, da qualidade de participação. A classe, o nível de instrução, a faixa etária, o sexo, entre outros, limitam o verdadeiro lazer a uma minoria da população (...)” (MARCELLINO, 2000a, p.55).

Ou seja, acreditamos que através de manifestações culturais vivenciadas coletivamente

temos a possibilidade de potencializar novas compreensões sobre a realidade.

Outra compreensão de lazer, esta manifestada por Gabriela, esboça que “(...) cada um tem

sua opinião que é lazer (...)” sendo difícil conceituá-lo. Mas entende ser característica central “(...)

brincar, se divertir, é ser feliz, então pra mim nas historinhas eles praticam lazer toda hora, então lazer pra mim é

isso: é brincar, se divertir, fazem tudo que eles fazer na historinha em quadrinho, então pra mim é tudo isso (...)”.

Depoimento semelhante é dado por Rita ao argumentar que: “Nas Histórias em Quadrinhos é eles

fazem, eles brincam, eles fazem muitas brincadeiras que é o lazer pra eles e pra mim também”. Aline nos diz

que lazer é: “Brincadeiras (...) ir ao cinema, (...) passear, ir nos lugares”.

De acordo com Café (2001) a tendência de compreender “o lazer prioritariamente com o

divertimento e descanso, estendendo-o, algumas vezes, ao esporte e à arte” (p.40), estes enquanto

produtos, é acentuada pelos meios de comunicação de massa.

A relação estabelecida entre lazer e prazer nos discursos das crianças participantes acabam

nos remetendo a uma das características que definem uma atividade de lazer: o hedonismo.

Gutierrez (2001) cita que “é possível uma ampla reflexão no campo das ciências humanas

sem a preocupação específica com a questão do prazer. Não é possível, contudo, pensar em lazer

sem se preocupar com esta questão” (p.23). O mesmo autor explicita ainda que “O prazer é uma

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categoria fundamental para pesquisa do objeto lazer. Não existe lazer sem a expectativa de

realizar alguma forma de prazer. Isto é justamente o que lhe confere especificidade e o distingui

das outras atividades sociais” (p.13).

Alertamos, porém conforme o próprio Gutierrez (2001), bem como Marcellino (2000b) e

Camargo (2003), que uma atividade de lazer não pressupõe necessariamente a consumação do

prazer.

Palavras Finais

De acordo com os dados apresentados e discutidos ao longo do estudo, percebemos que

as “historinhas” apresentam uma série de modelos de práticas sociais que são veiculadas através

do mundo das HQ de Maurício de Sousa, dentre elas, a do lazer.

No entanto, assim como nas pesquisas de estudiosos do lazer, as crianças também não

têm um consenso sobre o conceito de tal fenômeno.

De uma forma ou de outra, seja através da leitura ou da vivência de brincadeiras dos

personagens, a influência exercida pelas HQ na formação da compreensão do lazer é fortemente

influenciada. E, percebemos, através das entrevistas, que existem nas HQ mensagens e valores

que podem tanto ir no sentido da legitimação e continuidade da ordem socialmente estabelecida,

como favorecer a reflexão-ação crítica.

Nosso estudo reconhece e propõe que as revistas de HQ sejam também uma

possibilidade de material pedagógico, para educadores e/ou educadoras, a fim de possibilitar

reflexão, por parte das crianças, das próprias HQ, como também dos elementos constitutivos do

lazer, de maneira crítica e criativa.

De todo modo entendemos a necessidade de mais estudos dedicados a temática das HQ,

que carece de outros aprofundamentos.

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