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1 Para que a vida seja palavra Dossiê Ruy Cinatti 01

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Para que a vida seja palavraDossiê Ruy Cinatti01

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volume 1 | número 1 | jan-jun/2016Belo Horizonte - MG - Brasil

Para que a vida seja palavraDossiê Ruy Cinatti

ISSN 2525-7900

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Organizadores do volumeSilvana Pessôa de OliveiraPatrícia Resende PereiraRoberto Bezerra de Menezes

EdiçãoCentro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG(31) [email protected]

Polo de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporâ[email protected]

Projeto Gráfico e DiagramaçãoRoberto Bezerra de Menezes

EXPEDIENTE

Este volume faz uso de reproduções de telas de Maria Helena Vieira da Silva.

RevisãoIsabella Batista de SouzaMoisés Paim Fonseca

Conselho EditorialSilvana Pessôa de OliveiraWagner MoreiraErick Gontijo CostaPatrícia Chanely Silva RicartePatrícia Resende PereiraRoberto Bezerra de Menezes

ISSN 2525-7900

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Apresentação

Tiago Cabral VieiraO oblíquo no projeto poético de Ruy Cinatti

Roberto Bezerra de MenezesComunhão e solidão em Archeologia ad usum animae, de Ruy Cinatti

Vítor de Carvalho TeixeiraO rol das coisas em Archeologia ad usum animae, de Ruy Cinatti

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SUMÁRIO

Anna Célia Alves de SousaA questão identitária em Archeologia ad usum animae, de Ruy CinattiPatrícia Resende PereiraHorticultura-poesia: a botânica em três poemas de Ruy Cinatti

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Moisés Paim Fonseca“Sempre, o da mansarda”: figurações do poeta em Tempo da cidade, de Ruy Cinatti

Clara Anunciação de VasconcelosReferências bíblicas em Sete septetos, de Ruy Cinatti

Lucas Willian Oliveira MarcianoA simbologia da água na poesia de Ruy Cinatti

Debora Silveira Estanislau VieiraRuy Cinatti: a teoria dos dois mundos em Sete septetos

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Isabella Batista de SouzaNo fundo são tudo máscaras: análise dos textos de “Mon coeur mis a nu”, de Ruy Cinatti

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Cantei como alguém que assobiaE vai distraidamenteDeitando passo a passo contas à vida.

(Ruy Cinatti, O livro do nómada meu amigo)

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Este dossiê com estudos sobre a poesia de Ruy Cinatti nasceu do desejo de marcar, academica-mente, a comemoração do centenário de nascimento do poeta, em 2015. Movidos por esse espírito, pro-pusemos ao Colegiado de Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, a disciplina optativa “A poesia de Ruy Cinatti”, mi-nistrada no primeiro semestre de 2015.

Os textos que integram este primeiro nú-mero da Tamanha Poesia dão conta da riqueza e da diversidade de facetas poéticas que esta obra abarca e são resultado do esforço de análise e reflexão que então se realizou em sala de aula. Autor de vários livros de poesia, publicados entre 1941 e 1984, Cina-tti é, juntamente com Jorge de Sena, um dos poetas centrais para se compreender, no interior da poesia portuguesa do século XX, as conflituosas relações entre ética e estética, entre a palavra empenhada, que se quer coletiva e a emoção subjetiva, que se quer, também, atravessada pelo real, pela História. Abre o volume um conjunto de quatro textos sobre um dos livros póstumos de Cinatti, Archeologia

Apresentação

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ad usum animae (2000). No primeiro deles, Roberto Bezerra de Menezes avalia a tensão existente, nesta poesia, entre, por um lado, uma “ética da comuni-cabilidade”, que se conecta à chamada “poética do testemunho” e, por outro, à presença de uma faceta melancólica, soturna, voltada para a exploração da temática da dor, da morte, do isolamento do sujei-to. Por seu turno, Tiago Cabral Vieira realiza uma minuciosa leitura de alguns poemas, explorando-os quer na sua dimensão temática, quer no âmbito for-mal, estilístico. O texto de Vítor de Carvalho Tei-xeira, por sua vez, empenha-se em apontar, no livro póstumo, a presença de certos procedimentos for-mais, como o uso das enumerações e a listagem de coisas, objetos, seres, que acabam por revelar a face do poeta como colecionador de imagens do tempo e da memória. Por fim, o texto de Anna Célia Alves de Souza perquire a questão do sujeito e de sua identi-dade fraturada tal como se pode vislumbrar em uma série de poemas desta Archeologia cinattiana. Na sequência, Patrícia Resende Pereira, em perspectiva panorâmica, analisa a presença da flora nesta poesia, subliminarmente colocando em relevo a figura do cientista que o poeta Cinatti também foi.

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São analisados poemas dos livros Paisagens timoren-ses com vultos (1974), Tempo da cidade (1996) e Ar-cheologia ad usum animae (2000). O artigo de Isabella Batista de Souza enfoca o texto “Mon coeur mis a nu”, publicado na parte ini-cial de Manhã imensa, livro de 1984. O fio condutor da análise é a metáfora da máscara, considerada na sua dimensão de figura fundamental do imaginário literário do ocidente e redimensionada no poema ci-nattiano. Moisés Paim Fonseca explora pertinentes re-lações poéticas detectáveis no espaço urbano encena-do nesta poesia, com destaque especial para a figura da mansarda, vista como topos privilegiado do poeta e índice de sua solidão e isolamento na polis, como se pode ver nos poemas de Tempo da cidade, livro póstu-mo publicado em 1996. Lucas Willian Oliveira Marciano seleciona poemas de O livro do nómada meu amigo, de 1958, para propor uma interpretação, sob uma perspectiva mítica, da água enquanto presença recorrente e ob-sedante na poética de Ruy Cinatti. Dois textos encerram este volume. O de Cla-ra Anunciação Vasconcelos esforça-se em mostrar a

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produtividade poética contida na utilização da sim-bologia do numeral sete na composição de Sete septe-tos, livro de 1967. Também Debora Silveira Estanis-lau Vieira debruça-se sobre este livro, na tentativa de compreender a importância da metáfora do cego, em destaque no “Primeiro Septeto”, relacionando-o à tradição bíblica e literária. Tudo somado, esperamos que este Para que a vida seja palavra – dossiê Ruy Cinatti auxilie a re-colocar na ordem do dia a poesia deste que Joaquim Manuel de Magalhães acertadamente nomeia como o poeta de uma “poesia em estado de terra”.

Silvana Pessoa de OliveiraPatrícia Resende Pereira

Roberto Bezerra de Menezes

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Apesar de ter sido minimamente organiza-do em vida pelo autor, Archeologia ad usum animae (2000) é o último dos livros póstumos de Ruy Cinat-ti. O livro é considerado o que reúne o maior número de poemas, ainda que, em geral, eles sejam curtos. Aqui, procurou-se pensar duas das tendências do li-vro: o poeta insular, que encena a solidão e o isola-mento, e o poeta da comunhão, que não hesita em reafirmar a necessidade de uma comunidade poética e humana. Há de se frisar, entretanto, que essas duas tendências não estão apartadas no livro, o que será mostrado ao longo do presente texto.

De Archeologia ad usum animae, a crítica cos-tuma estranhar a ausência de uma organização em seções, comum aos livros de Cinatti. Na apresen-tação da obra, Peter Stilwell (2000) acresce a esse estranhamento a mobilidade que o original propõe, tendo em vista que o poeta deixou a página de rosto deslocada, a meio dos poemas, o que, para o crítico, é um indício da possibilidade de haver um início alter-

Comunhão e solidão em Archeologia ad usum animae, de Ruy Cinatti

Roberto Bezerra de Menezes

UniversidadeFederal de MinasGerais

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nativo para a obra. Para isso, também contribui a existên-cia de duas versões de alguns poemas, deixando entrever uma obra ainda em fase de escavação.

Joana Matos Frias (2014) aponta uma ética da co-municabilidade inerente ao fazer poético de Cinatti, in-fluenciado diretamente pelo amigo e também poeta Jor-ge de Sena, com quem compartilhou, ao lado de outros poetas, a feitura dos Cadernos de Poesia. Ela afirma: “[...] a poesia de Cinatti alargou seu círculo ético graças à poé-tica do testemunho que o irmanou, nas décadas de 1940 e 1950, aos poetas dos Cadernos de Poesia com quem par-tilhou esse projecto editorial, e muito em especial a Jorge de Sena [...]” (FRIAS, 2014, p. 144). A poética do teste-munho, então, é o norte que guia a produção poética de Cinatti e vai, deliberadamente, ao encontro da noção de comunhão e de comunicabilidade, tanto na poesia quan-to nos círculos sociais que ela engendra. E para que isso ocorra, é necessária “uma experiência fundada na presen-ça” (FRIAS, 2014, p. 143), posto que ao sujeito lírico cabe o ofício de aliar Poesia e História não pela idealização, mas pelo contato direto e reiterado com as forças reativas do Mundo e do Homem:

No entender de Cinatti, portanto, e des-de muito cedo, a poesia só podia fundar-se na experiência, com a dupla implica-ção espáciotemporal que esse princípio necessariamente exigia: i) a experiência só tem lugar no mundo; ii) não existe ex-periência que não seja temporal. Ou seja,

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para Ruy Cinatti, a experiência enquanto fonte de criação é, essencialmente, o úni-co ponto onde a Poesia e a História se podem encontrar. (FRIAS, 2014, p. 143)

Em Archeologia ad usum animae, encontramos al-guns poemas que colocam, explicitamente, essa tarefa, como é o caso de “Ética poética”, “Mandato social” e “Arte poética”. Neles, tem-se claramente o chamamento do poeta para a poesia do testemunho e da comunhão poé-tica, em que a ética da comunicabilidade se faz presente. A imagem das mãos unidas, em “Ética poética”, demons-tra o nível prioritário da ética que, já no título, antecede a construção de uma poética e dentro da própria palavra “poética” se repete.

ÉTICA POÉTICA

A mãoestende-se à mão,recriaa criação.

O poemasegue o destinoda natureza.

Sereno afirma-seinterjeição,aperto de mão.

O poemaimprimeConvívio. (CINATTI, 2000, p. 81)

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Para o poeta, o convívio faz parte da materialidade do poema, impresso nas letras. Esse convívio é também o responsável por modificar poeta e poema, que, recriado pela união das mãos, a mão do eu-poeta e mão do Ho-mem-Mundo, assume a forma de uma linguagem da ex-periência. A transformação a que o poema é submetido é da ordem do “destino da natureza”, com serenidade e força de interjeição. Essa força inumana também pode ser encontrada no humano. O homem poeta é o responsável por construir as cidades que, no poema “Mandato social”, são as matérias poéticas e concretas vindouras da poesia do testemunho e da comunhão. Ao poeta resta “morrer de pé”, com honra, mas intentando construir os alicerces das cidades poéticas e éticas.

MANDATO SOCIAL

Somos tão poucos mas vale a pena cons-truir cidades.Denunciar a tintagasta em discursos.Os mitos criam-se de baixo pra cima.As plantas enraízame só depois recortam o céuou são colhidas para efeitos vários.O boletim meteorológico diz que vai chover,mas nunca se sabe se vem um ciclone,e então salve-nos Deusse não soubermos preveros alicerces,o boato dito pelo telefone,o sonho, esse mesmo, em que se morre

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de estupidez, o coração a batercomo de cavalo que ganhou a corridae é levado pelo donoao parque do hipódromo.Basta de balancéentre o que é, o que virá, o que não é.Basta de poetas com as mãos cruzadase de operários a cair de sono.Basta de velhotes impotentesa fornicar sabedoria antiga.O mandato social é desobrigacomo na Páscoa a comunhão dos ho-mens.Somos poucos mas vale a pena construir cidadese morrer de pé. (CINATTI, 2000, p. 99-100)

A missão do poeta está explícita no poema: des-cruzar os braços e engendrar a luta em sociedade, luta essa que tem como principal tarefa erigir as cidades, “denunciar a tinta gasta em discursos” levianos e sem a presença da experiência. Se em Platão os poetas são expulsos da pólis para não trazer más influências aos homens, em Cinatti eles estão diretamente implicados na tarefa de erigir uma cidade em combate e mais justa, sem discursos levianos e vazios. O poeta conclama, então, para a elaboração dos alicerces sociais que vão modificar o poema e o mundo, ou seja, o homem. Como disse em sua “Arte poética”: “Ai dos que mastigam só palavras / sem estarem presentes!” (CINATTI, 2000, p. 135). Para ele, é preciso uma “alma experimentada” para poder lidar com a “palavra-língua”,

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as “palavras / de língua viva” (CINATTI, 2000, p. 135). O ofício do poeta é, assim, um trabalho árduo que en-volve uma relação com a língua em plena conexão com o mundo. Dizer sim a tudo é a posição poética de quem não quer abdicar dessa conexão. Frias (2014, p. 147) comunga dessa visão ao dizer que, para Cinatti, “a responsabilidade do poeta reside na condição humana da obra, que é a sua pertença ao mundo”.

Por outro lado, enseja-se também mostrar que em Archeologia ad usum animae há a presença de poemas que revelam um lado melancólico do poeta, em face da morte e da solidão, encenando o fim da vida e a desesperança. Ressalta-se, entretanto, que essa solidão não se confun-de com o nomadismo já explicitamente encenado em sua poesia e parte de sua vida. Essa solidão decorre do embate com a realidade, que o atormenta, e cujo caos ele procura sanar com o mundo ficcional, um ato/palavra em “secreta harmonia”, como se verifica no poema “Cerne”:

E enquanto tenebroso e em afliçãotroco palavras em actose em actos fecundo palavrasdesfiguradasmantenho a secreta harmonia em que construo o mundo e, em vão, recordomais pobre de ilusão, o caminho da es-perança. (CINATTI, 2000, p. 18)

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O “caminho da esperança” ainda se mostra presen-te para o poeta. Entretanto, note-se que há um indício de esmaecimento da ilusão que permitiria construir cidades e mundos. Esse caminho seria muito mais da ordem de uma miragem que da possibilidade. Em tensão com o mundo, o sujeito se encontra “em aflição”, mas não se furta em escre-ver, em trocar “palavras em actos”, criando palavras “des-figuradas”, em harmonia secreta, ausente da compreensão humana imediata. Essa relação denota a angústia do poeta perante a realidade, revelando sua melancolia e desespe-rança com o poder que a linguagem teria para transformar essa situação. Esse tom melancólico se faz presente também no poema “Factos”, em que o poeta se reconhece na sarjeta, caminhando pelas ruas, a ver montras, entretendo ócios: “ando triste e na dependura. / Acaso colho frutos esqueci-dos / apodrecidos no chão.” (CINATTI, 2000, p. 47).

A percepção do presente como um momento an-gustiado e de solidão entra em oposição, no poema “Passa-do”, com esse tempo outro, uma espécie de passado-futu-ro, onde “Havia amigos”, havia a partilha e as mãos dadas, “Havia o fundo sentido de existir”:

E eu caminharei num dia abstracto,rumando, singular, onde pastavamcavalos.Eram raiados, então. Havia amigos...Havia o fundo sentido de existir.A solidão era menor que a de hoje.

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[...] (CINATTI, 2000, p. 123)

De modo claro, já no título, a solidão ganha rele-vo no poema homônimo, em que solidão, silêncio e noite estão intrinsecamente ligados, fazendo surgir um inverno fundo.

O meu silêncio é a noite.É de Inverno sem verduranos campos de geada.

O meu silêncio é a noite.É de estrelas reluzentesNo fundo Inverno.

É de noite o meu silêncio.É nocturno o calafrioincerto que a ti me une. (CINATTI, 2000, p. 27)

Nesse poema, há uma presença ausente, com quem o eu-lírico procura se unir a partir do “calafrio incerto” que o acomete na noite silenciosa. Esse tom lírico denota uma subjetividade não mais somente ligada ao mundo e à comunhão em sociedade. Importa também, agora, esse outro, em singular existência, com nuanças amorosas. A noite se configura como espaço de ausência e solidão, um inverno temporal em que não se tem verdura nem poesia. O enlace com o outro, seja um sujeito amoroso ou o leitor, está marcado pela impossibilidade e pela incerteza que a noite de inverno traz. Nota-se, ainda, a dicção melancólica

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de reconhecimento da finitude do sujeito, aquele que se vê em um tempo sem verdura, sem vida e sem força. Pode-se, assim, concluir que, a partir da leitura de alguns poemas de Archeologia ad usum animae, é evidente a tendência da poética de Ruy Cinatti a um “responsável sentimento estético do mundo” (FRIAS, 2014, p. 149). A predominância da preocupação ética é o que caracteriza o fazer poético de Cinatti e somente em segundo plano, e em alguns poucos poemas, como os cá lidos, pode-se perceber essa tendência ao insulamento, que, como se viu, decorre imediatamente da relação do poeta com o mundo e com a partilha, nem sempre em harmonia. Assim, como Frias (2014) aponta, “toda a imagem estética tem a sua ética” (FRIAS, 2014, p. 153) em Ruy Cinatti.

Referências bibliográficas

CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Pre-sença, 2000.

FRIAS, Joana Matos. O olhar responsável e a ética da comunicabilidade na poesia portuguesa pós-modernista. Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 34, n. 52, p. 135-162, 2014.

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Último livro inédito de Ruy Cinatti, Archeo-logia ad usum animae é uma coleção de 117 poemas que, por não estarem explicitamente divididos por algum tipo de recorte temático, aparentam tratar de diversos assuntos sem nenhuma organização articu-lada previamente. No entanto, após uma investigação mais atenta, é possível observar que os poemas do livro se relacionam (alguns de forma bem evidente; outros, nem tanto) ao que Jorge Fazenda Lourenço (2000, p. 159) afirma ser o “tema nuclear da cole-tânea: a criação (e a condição) poética”. Lourenço (2000) continua: “ironia [...] é, aliás, um dos cimen-tos deste livro, e a figura mesma daquela obliquida-de estilística que caracteriza a poesia de Ruy Cinatti (LOURENÇO, 2000).” A ironia existe em razão da forma como Cinatti apresenta o livro, começando pelo título. “Parodiando expressões como ‘ad usum delphini’ ou ‘ad usum scholarum’, que remetem para uma transmissão vigiada do saber”, arqueologia para o uso da alma (traduzido do latim) “evoca a ideia de

O oblíquo no projeto poético de Ruy Cinatti

Tiago Cabral Vieira

UniversidadeFederal de MinasGerais

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guia espiritual” (LOURENÇO, 2000, p. 155). Lourenço (2000, p. 155) ainda diz que “esta arqueologia espiritual é, concentradamente, a revelação de uma poética”. Portanto, é possível ver o conjunto de poemas do livro como a apre-sentação do projeto poético de Cinatti, que pode ser de-finido pela busca de uma unicidade que recusa quaisquer padrões estéticos previamente estabelecidos – mesmo os do Modernismo. A ironia, então, consiste na criação de um guia que é simplesmente o oposto do que deveria ser – ou seja, um manual de como seguir padrões pré-estabe-lecidos – uma vez que Cinatti não segue nenhum estilo senão o próprio.

Joana Matos Frias (2014) comenta que o anda-mento da obra de Cinatti é fortemente marcado pela su-cessão das grandes guerras do século XX (I Guerra, Guer-ra Civil Espanhola e II Guerra), “culminando no 25 de abril de 1974, cuja posteridade sinuosa viria a ser o verda-deiro motivo de seu desencanto” (FRIAS, 2014, p. 144). Lourenço (2000) afirma que “Jorge de Sena fala [sobre Cinatti] numa expressão ‘descontínua’, elíptica, ‘erradia’” (LOURENÇO, 2000, p. 155). O que Ruy Cinatti parece procurar ao longo desse nomadismo poético, de tal ma-neira que ele consiga deixar marcada sua unicidade, é uma poética sinuosa, truncada, ou, como já estabelecido por Loureço (2000), oblíqua, que inflige um castigo ao lei-tor que espera, acostumado com estéticas já estabelecidas, uma poesia reta e aprazível, elaborada conforme padrões com os quais ele já esteja familiarizado. E o poeta não

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faz questão de agradar aqueles que não aceitem seu estilo, pois afirma nos versos de “Resolução”: “Enquanto não me deres o que te peço amada minha sorte, / torço o pescoço a quem ma nega / e sigo adiante, / seguindo caminhos ínvios, / uns com, outros sem norte.” (CINATTI, 2000, p. 14). Os artifícios que refletem essa poética serão explora-dos em alguns poemas a seguir. Antes, deve-se delinear os elementos pelos quais se configura uma poética “oblíqua”.

Por estilo oblíquo, entendamos aqui o uso de pro-cedimentos poéticos que fogem a quaisquer padrões es-tabelecidos – clássicos, românticos ou modernistas. São alguns deles: notável irregularidade rítmica, métrica e de rimas (o que é comum no Modernismo, mas em Ruy Ci-natti parece ser acentuado), uma descontinuidade coesiva – a que se refere Jorge de Sena –, o uso de imagens e me-táforas incomuns para a linguagem poética e, por último, a ironia “que, sendo titular em alguns poemas, passa algumas vezes por mecanismos de sabotagem da sentimentalidade imediata, como a irrisão” (LOURENÇO, 2000, p. 155) que o poeta aplica, muitas vezes, até mesmo a si próprio. Identifiquemos, então, tais procedimentos em alguns dos poemas de Archeologia.

O núcleo da poética de Cinatti tem o ferro como “paradigma interno”, uma vez que ele admira a “pintu-ra rupestre” (trechos de “A quarta idade”). Assim, ele dá indícios de preferir o resultado bruto do trabalho, sem

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elaboração ou polimento contundente. Em “Cerne”, afir-ma: “troco palavras em atos / e em atos fecundo palavras / desfiguradas, / mantenho a secreta harmonia / em que construo o mundo” (CINATTI, 2000, p. 18). Então, a har-monia em que constrói o mundo, ou seja, o cerne de sua elaboração poética, consiste em tornar produtivas (fecun-dar) palavras desfiguradas (incomuns para a linguagem poética).

Lourenço afirma que “Outro aspecto que se liga a este ‘olhar oblíquo’ [...] é o que diz respeito ao regime da linguagem. Uma linguagem ágil, que transita velozmen-te de nível e de registro, assente numa notável labilidade prosódica (CINATTI, 2000, p. 156-157).” Os “ângulos oblíquos” (do poema “Ilusão”), por meio dos quais Cinatti parece enxergar o mundo, dão a impressão de revelar o modo como ele deve transformar esse mundo em lingua-gem. Sua linguagem é “sorte escamoteada” por “volutas subindo” (volutas de fumo), de onde aparecem “Volutas torneando aguda estátua. / Reta imprópria” (volutas de pedra, do poema “Matemática para todos”) (CINATTI, 2000, p. 122). Justamente a reta que forma o ângulo oblí-quo.

O poema “Um soneto” é o que melhor aponta a maneira como a forma em Ruy Cinatti se comporta. Esse soneto não apresenta regularidade métrica, nem de rimas, que são características (por exemplo versos decassílabos e

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esquema de rimas ABAB ABAB CDC DCD) que ge-ralmente acompanham os dois quartetos e dois tercetos. Observa-se, então, a ironia na relação entre título, forma e conteúdo do poema quando ele afirma: “Da minha fan-tasia / mais que uma pétala simulada cai / trêmula, ainda viva, quando a toco / e o contato dos meus dedos a des-trói.” (CINATTI, 2000, p. 25). É como se uma boa ideia lhe surgisse (uma pétala cai de sua fantasia), mas no mo-mento em que ele dá forma a essa ideia, ela é desfigurada e perde sua qualidade inicial, ou seja, quando sua poética tenta dar forma a seus pensamentos (que inicialmente se-riam belos numa concepção clássica ou romântica), eles são “destruídos”. O eu-lírico ironiza o fato de sua poética desfigurar a forma idealizada que é o soneto.

A contundente irregularidade métrica e rítmica pode ser observada em vários outros poemas do mesmo livro além de “Um soneto”, dentre os quais “Didática”, Cerne”, “Melancolia”, “Macbeth”, “Súplica”, “Um amigo morto”, “Advento”, “Novíssimo”, “Fatalidade”, “Propo-sição”, “Desafio”, “Matemática para todos”, “Relação” e “Origem”.

Outro detalhe que vale ser notado é a presença errante das rimas que, quando aparecem, o fazem de for-ma aleatória, como em “fantasia / pertencia / ironia” e “re-partido / sentido”, de “Um soneto” (CINATTI, 2000, p. 25). Mas vários outros poemas, no que diz respeito à rima

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errante, podem servir de exemplo, dentre os quais “Reso-lução”, “Confissão”, “Ilusão”, “Entendimento”, “Oração”, “Parábola”, “Gnose”, “Profecia”, “Encantamento”, “Ante-visão”, “Verificação”, “Imposição”, “Comemoração”, “Chá e simpatia”, “Conselho” e “Singularidade”.

Singularidade esta que é almejada ao longo de toda a Archeologia. O poeta expõe seu estilo único, sua forma oblíqua, por meio da imagem de um “carro de bois”, não se rendendo aos “poemas amados pelos inimigos atuais”, fato que o poema “Modernidade” melhor exemplifica:

Gostaria de escrever poemasamados pelos inimigos atuais.Gostaria, mas não os faço (favores).Se os fizesse seria inimigo de mim próprio,fetalcomo os demais.

Sei que sou lento e que busco a forma num carro de bois.Os vincos abertos na memóriareflectem-se na estrada.[...](CINATTI, 2000, p. 97)

Lourenço diz que o poema, “referindo-se à sua contemporaneidade, afirma-se numa posição de ‘Inde-pendência’ face aos gostos dominantes e às respectivas ideologias [...] [independência esta] que não é mais que uma fidelidade a si próprio enquanto poeta, à identidade

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de uma escrita” (LOURENÇO, 2000, p. 159). No poema “Singularidade”, o poeta declara: “ninguém ouse violen-tar-me. / Sou o que fui, serei: – talvez milagre” (CINA-TTI, 2000, p. 35). E ratifica, em “A quarta idade”: “sou escravo / da minha condição.” (CINATTI, 2000, p. 119).

Em “Descobrimento”, Ruy Cinatti insiste em seu estilo próprio (“calar não calo”), que não tem o esmero da poética clássica, pois não elabora demoradamente (“nem calculo”): “Calar não calo, nem calculo, tenho / uma voz que não se cala” (CINATTI, 2000, p. 42). Do seu proces-so de criação, resulta um produto oblíquo, vindo de “pe-numbras de outra idade”, ou seja, do que existe mas não é perfeito – que é uma definição coerente para o ângulo oblíquo, que não é nulo, mas não também é reto –, e com o qual ele pretende agradar aqueles que o querem “por ser tão simples” (ainda versos de “Descobrimento”): “Uma fi-gura nasce – não a entendo. / Terá, no entanto, intimidade. / Pertenço a quem me quer por ser tão simples. / Penetro penumbras de outra idade.” (CINATTI, 2000, p. 42). Ou como afirma em “Acontecimento”: “Escrevi [...] sem pai-sagens, / sem cheiro a maresia, / mas com o coração / a bater nos dedos” (CINATTI, 2000, p. 67). O eu lírico es-creve sem dar acabamento estético (sem cheiro a maresia, sem paisagens), mas de forma fiel ao seu estilo (“com o coração a bater nos dedos”).

Em “Senso comum”, Cinatti questiona a angus-tiante e demorada elaboração que tanto recusa e que, no fim, é apenas um meio de escapar de uma “verdade dura”:

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“Para quê angustiar palavras / que não condizem com o sofrimento / – pretexto / para iludir verdade dura.” (CI-NATTI, 2000, p. 101). E ironiza quem o repreende por tal postura: “De mau gosto a brincadeira / que implora per-dão, / conselho por não seres tu / deveras condição / que todos de ti esperam.” (CINATTI, 2000, p. 101). Assim como em “Identificação”, em que revela sua “inalterável função / autêntica: comer medronhos”, que “rima senão com a mão / que os leva à boca”. E que tem “a cabeça lou-ca” quem “forja o coração / com esta (outra) forma lenta, minuciosa, exausta / do que somos, conhecemos.” (CINA-TTI, 2000, p. 111).

Em “Didáctica”, o ato de marcar passo é metafo-rizado para a imagem de um estacionamento. A metáfora não é imprópria, mas está longe de ser comum para a lin-guagem poética. Talvez o sentido popularmente difundido – de lugar onde se estacionam carros – da palavra não faça o leitor estabelecer uma relação direta com o conceito de estaticidade. Um detalhe que caracteriza o estranhamento da metáfora é a forma brusca com que é introduzida a imagem do estacionamento, já que não são apresentadas outras imagens que remetam de forma clara à ideia de estaticidade – é difícil estabelecer, pelo menos de forma direta, uma relação entre “múmia” e estaticidade. Exem-plos de poemas em que processos semelhantes ocorrem são “Em penúltima análise”: “Os meus poetas são melhor que o milho [...] No tempo em que as vacas não pariam /

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e as vitelas eram desbragadas,” (CINATTI, 2000, p. 10); “Confissão”: “tendo a minha vida por assento”(CINATTI, 2000, p. 38); “Complexidade”: “De amor e pão sinto-me aguado”(CINATTI, 2000, p. 48); e “Efeito”: “nem o vento assoma / ao centro dos olhos.” (CINATTI, 2000, p. 50). Em “Contraprova”, o eu-lírico ironiza o estranhamento que causam suas imagens:

Já que não me queres, associa gatos com cães, ratos com gatos.

Terás entre todas as certezas, uma que se oculta e denuncia,outra que conta uma simples história.[...](CINATTI, 2000, p. 63)

Então, ou o leitor aceita o seu estilo oblíquo – cer-teza que conta uma simples história – ou ficará fadado a encontrar associações metafóricas padronizadas onde elas não existem – certeza que se oculta e denuncia. E afir-ma, em “Arqueologia dominical”, que “iguarias do mar são como as rosas. / Servem de recurso / ao coração quente de um poeta.” (CINATTI, 2000, p. 116). Ou seja, ele declara que não só o que é belo na natureza (as rosas) podem ser matéria de poesia, mas também banalidades (iguarias do mar), por mais incomuns que sejam, se o poeta assim o quiser, uma vez que ele gosta “de pescar as iguarias / que o mar oferece.”(CINATTI, 2000, p. 116).

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No poema “Advento”, a descontinuidade da qual fala Jorge de Sena aparece de forma bastante evidente. A coesão do poema é simplesmente cortada por uma senten-ça que intencionalmente não tem relação com o que vinha sendo apresentado anteriormente para, no fim, o poema ser retomado por uma “oração ou vida atropelada / sempre e sem fim”:

O tempo é de oraçãoque desafia os meus lábios secosde tanto pedir.

Beboo quê? – Digo:bebo, sem querer, o tempo.Sou uma planta mirrada.Não posso perder tempo.Estou cheiinho de sede.Nem só querendo posso.Não gosto de nada.

Oração ou vida atropeladasempre e sem fim quase...(CINATTI, 2000, p. 40)

“Ponteio nostálgico”, a começar pelo título, é outro exemplo de descontinuidade coesiva. Cada es-trofe trata de um tema que não possui vínculo direto com o de outra, como se o poeta fizesse de cada estrofe um ponto independente. “Encantamento” é outro óti-mo exemplo de quebra da coesão uma vez que a última

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estrofe desvia do caminho semântico pelo qual o poema se guiava desde o início:

Andar, andar, andar, até instante.Pára de pasmo e segue adiantecom múltiplas quedas pelo caminho

Pára, andando, andando, andando,O vago pensamento não suplantao teu destino.

Frente, frente, frente!Defronte um moinhoque gira, gira, girae mói...

– Cristo, ouve.– Filho, escuta.(CINATTI, 2000, p. 46)

O poeta, sem o medo que, nos versos de “Desafio”, “tem rédeas que moderam / ímpetos divinos, / a flora má-gica, / os momentos líricos que obliquamente distanciam” (CINATTI, 2000, p. 70), ratifica que rejeita os padrões pré-estabelecidos, e que é guiado pela “mão imensa”, de “Retrato Romântico”:

[...]Já nesse tempo relembravapoderes ignotos concedidos.A liberdade, sim, de revoltar-me contra tiranos estabelecidos.

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Tão grande, a mão imensa entrou na tra-ma.Fez-se pequena, tomou-me os dedoscomo pequena, altiva, aguda chama, aos poucos alteando os dedos ledos.(CINATTI, 2000, p. 69)

É importante notar, entretanto, que Cinatti busca seu estilo singular (a mão imensa) por vontade própria, não porque não seja capaz de escrever conforme algum estilo padronizado. Seriam os “poderes ignotos concedidos” apenas um desejo de subversão? Talvez esse verso também revele o fato de que, ao invés de ser incapaz de escrever seguindo algum padrão, a voz do poema simplesmente quer fazê-lo de acordo com sua própria vontade, ideia que também pode ser observada em “Antevisão”: “Palavras tenho / que nunca uso, / nem quando anseio / o que recuso.” (CINATTI, 2000, p. 51). Ele não se rende ao desejo – nem quando anseia o que recusa – de escrever de forma correta (ou reta) – “palavras tenho que nunca uso” (CINATTI, 2000, p. 51). Ou seja, ele nunca usa uma determinada capacidade que possui, mesmo quando instigado pelo desejo de aplicá-la.

Outro poema que aborda esse viés temático é “Tragédia”, em que o poeta revela a angústia, a amargura do paradoxo que consiste na recusa de algo imprescindível (ideia que aparece também em “Transe” e “Em penúltima análise”). A seguir, o poema “Tragédia”:

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E o tempo, o próprio tempo sequioso, [boquiaberto, ladeia muros, amplia-se em desertovivo solilóquio que me acomoda os passos,em derredor penumbra, afinidade.

Branco como a cal que o comemorasinto nele a verdade, o pasmo do encontro e bebo água ungida por cadáveresalheado da vida que suporto.

E vou deslumbrado pelo mundo,recolhendo ossos, desfazendo pegadas, refazendo o ser que me enamora,tecendo a minha própria eternidade.(CINATTI, 2000, p. 91)

Há de se notar a ironia da tragédia, que acontece quando, após o pasmo do encontro (com a necessidade imposta pelo tempo), o eu-lírico se vê obrigado a aceitar fazer algo imprescindível (beber água), por mais que re-cuse desviar-se do próprio caminho (alheado da vida que suporta), o que se torna algo extremamente amargo (que é beber água ungida por cadáveres). Vale notar também que “cadáveres” tem uma carga semântica que remete ao passado, à herança deixada pelos antepassados. E por mais que o eu-lírico se recuse a aceitá-la, não é possível viver inteiramente sem ela. Ainda assim, a unicidade do seu es-tilo não é abandonada. Tecendo sua própria eternidade, ele erige sua própria poética por meio de uma imprescin-dível assimilação de poéticas anteriores (ossos, pegadas) e

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da consolidação de um estilo próprio (por isso ele refaz o ser que o enamora). Importante perceber que esse é um dos poucos poemas em que aparece uma linguagem mais contida e com bom acabamento estético, que, por fugir do estilo usual de Cinatti, acaba por refletir a tragédia do eu-lírico que se vê obrigado a render-se ao tempo, à herança.

Archeologia ad usum animae apresenta-se como um guia às avessas: um manual de como não seguir ou-tros manuais. Seu estilo oblíquo, descontínuo e errante não permite que ele siga nenhum rumo pré-estabelecido, nenhuma direção senão aquela apontada pela sua própria mão imensa. Ou não permite ainda que o poeta fale por uma voz emprestada, mas somente pela sua própria, que ele tenta fazer única. Para concluir, retoma-se aqui o que Jorge de Sena advoga no prefácio de Paisagens timorenses com vultos: “Neste, como nos seus outros livros, o que im-porta e vale é o poeta que os escreve. Bem, mal? Isso são categorias que só servem para os poetas que falam com vozes emprestadas, e não para os que, em décadas de ho-nestidade, criaram a sua mesma” (SENA, 1996, p. 8).

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Referências bibliográficas

CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Pre-sença, 2000.

CINATTI, Ruy. Paisagens timorenses com vultos. Lisboa: Relógio D’Água. 1996.

LOURENÇO, Jorge Fazenda. Notas para uma arqueo-logia de Ruy Cinatti. In: CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Presença, 2000.

FRIAS, Joana Matos. O olhar responsável e a ética da comunicabilidade na poesia portuguesa pós-modernista. Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 34, n. 52, p. 135-162, 2014.

SENA, Jorge de. Nota de abertura. In: CINATTI, Ruy. Paisagens timorenses com vultos. Lisboa: Relógio D’Água, 1996.

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O rol das coisas em Archeologia ad usum animae, de Ruy Cinatti

Em 1973, o poeta português Ruy Cinatti co-munica, em Conversa de rotina, os seus planos de or-ganizar e publicar Archeologia ad usum animae (Ar-queologia para uso da alma). No entanto, o livro só foi publicado postumamente, resultado da combina-ção de duas versões deixadas no espólio do poeta. O posfaciador, Jorge Fazenda Lourenço (2000), tece observações sobre a organização dos poemas de Ar-cheologia ad usum animae e considera que mesmo não sendo dividido por seções, como foi hábito de Cina-tti nas suas outras obras, o livro guarda uma unidade temática que amarraria todo esse corpo textual. O núcleo da obra estaria, na concepção de Lourenço (2000), na criação e na condição poética, para dizer que a coletânea não é uma compilação de papéis avulsos, apanhados e dispostos ao acaso. O grupo de textos nasce das deliberações e escolhas do próprio Cinatti.

Entretanto, em seus poemas temos uma ideia de dispersão e fragmentação, expressa por um con-

Vítor de Carvalho Teixeira

UniversidadeFederal de MinasGerais

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junto de listas e enumerações que simula um inventário de guardados. Aqui, neste pequeno texto, vamos pensar as imagens de instabilidade trabalhadas por Cinatti que vão ao encontro de uma poética das listas, a imagem de um colecionador e a sua estreita relação com a memória. Sele-cionamos para análise uma lista de imagens da imaginação e outra de um conjunto de fragmentos resgatados de um ambiente inóspito. Para isso, partimos da distinção entre listas práticas e listas poéticas, discutida por Umberto Eco (2013) na sua obra Confissões de um jovem romancista.

Eco (2013) estabelece uma diferença entre as lis-tas práticas e poéticas. As primeiras guardariam uma re-ferência obrigatória com o objeto, são listas finitas que correspondem à matéria física, uma vez que congregam um universo delimitado que tem origem no seu contexto de construção. As listas poéticas, por sua vez, não estão restritas a um conjunto de objetos do mundo. Essas listas são abertas e guardam uma potência de reprodução que é descrita pelo teórico italiano como um pressuposto de “etcetera final” (ECO, 2013, p. 110). Esse pressuposto diz da instabilidade das listas poéticas, que sempre consideram a adição ou a subtração de um item, uma característica ou mesmo uma propriedade daquele conjunto que se quer retratar.

Cinatti se apresenta como um poeta consciente das forças paradoxais desse etcetera. Assim, podemos notar

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que a casa é uma imagem utilizada nos poemas “Cerne” e “Obstinação” para contrapor essa instabilidade:

CERNE

E enquanto tenebroso e em afliçãotroco palavras em actose em actos fecundo palavrasdesfiguradas,mantenho a secreta harmoniaem que construo o mundo e, em vão, re-cordomais pobre de ilusão, o caminho da es-perança.(CINATTI, 2000. p. 18)

OBSTINAÇÃO

Da vida tiro o que me sustenta. O resto – exíguo – que o engorgitem sábios e sereias, vampiros.

Eu não desisto do que me ultrapassa, nem com gemidos.Tenho uma alma furta-cores que avança, que me ilumina.

Tenho, além disso, a casa fechada, que não vendo, alugo ou dou de graça, senão a quem souber abrir a portacom chave falsa.(CINATTI, 2000, p. 58)

Entre os ecos e os ruídos, a enumeração dos rastros e as imagens de instabilidade, o poeta parece querer fixar o múltiplo e tentar sobreviver ao caos da diversidade. Quan-

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do ergue um pequeno universo, de harmonia particular, Cinatti retoma a imagem de proteção e acalanto da casa. Esse universo é um depósito seguro para os objetos, para as palavras e os gestos que nutrem e constroem o mundo do poeta.

A entrada da casa está vedada e só usando uma chave forjada podemos fazer ceder a porta para a visita de estranhos. A falsificação é o único meio possível para acessar aquele ambiente reservado ao poeta, que não ven-de, aluga ou cede o seu lar. A imaginação, a simulação de uma realidade como uma construção particular, aparece como uma chave para a leitura. Em “Arqueologia domini-cal”, lemos que

[...]E vá de imaginar fundos do mar,levantar esqueletos, escombros de navio,pedras de sepulcro,com o influxo aberto nas narinasque cheiram ocultotesouro simples,âncoras enterradasna areia lisa, um peixe preso nos tentáculosde uma medusa, rosa-mulher que se atravessana neblina espessado fundo do mar. [...](CINATTI, 2000, p. 116)

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O conjunto de imagens do poema “Os atlantes” também trabalha com a recolha e o registro dos fragmen-tos materiais do mundo a que o poeta tem acesso, mas na perspectiva de um escavador, que reconstrói um mundo:

Retirámos troféus da cova funda, dolménica por causa da idade.Não encontrámos vestígios segurosde ter servido a casa dos mortos.

O relatório diz: item – vasosvazios, campaniformes; pontas de seta, punhais, braceletesem bronze e cobre; brincos de jaspe e estrelas-ídoloem xisto compacto; item – uma pintura rupestre com um navioem altas ondas, limpo, levantado,com figuras humanas apontando a uma linha de terra a ocidente. Ondas pintadas de branco; os homens e o navio a vermelho-ocre;a terra distante cor de névoa ou cinzaem fundo basalto.(CINATTI, 2000, p. 132)

A ideia de colecionador de Walter Benjamin (1993) também é interessante para pensarmos a poesia de Cinatti. O filósofo alemão considera que o dono de uma coleção se integra afetivamente naquele conjunto de ob-jetos, se realiza dentro dele e deixa que a coleção revele traços pessoais do seu possuidor.

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[...] para o colecionador [...] a posse [é] a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas den-tro dele; é ele que vive dentro delas. E assim, erigi diante de vocês uma de suas moradas, que tem livros como tijolos, e agora, como convém, ele vai desaparecer dentro dela. (BENJAMIN, 1993, p. 235)

Para o colecionador, o livro faz parte da sua prate-leira, mas não com o intuito de fazer dele um mero ade-reço, ornamento. O colecionador pretende guardar aquele objeto na segurança do lar, a estante abriga o livro e o protege da descontinuidade, o que parece ser um traço re-levante da obra de Cinatti na sua relação com a memória e com o guardar.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esqueci-dos. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e po-lítica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, v. 1, São Paulo: Brasiliense, 1993.

CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Ed. Presença, 2000.

ECO, Umberto. Minhas listas. In: ECO, Umberto. Confis-sões de um jovem romancista. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

LOURENÇO, Jorge Fazenda. Posfácio. In: CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Ed. Presença, 2000.

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Da impossibilidade de ser o que se pretende

A impressão geral obtida através da leitura de Archeologia ad usum animae é de que se trata de um guia para “escavação” da alma; a sequência interna em que se encadeiam os poemas indica a direção por essa busca pela origem primeira. Porém, essa bus-ca pela identidade é permeada por vários obstácu-los, sobretudo o da impossibilidade de ser o que se pretende, da impraticabilidade de viver uma essência que seja, por excelência, verdadeira. É possível dizer que em alguns momentos o poeta faz menção à poética do fingimento, ao refe-rir-se à necessidade humana de usar máscaras que possibilitem ou viabilizem o convívio, como em “Di-dáctica”: “Do indivíduo que em mim vive / ao in-divíduo que em mim mora / dividido entre pessoa e / máscara [...]” (CINATTI, 2000, p. 15). Existe, ainda, a concepção da brevidade da vida relacionada à incapacidade humana de transformação, daí a pro-

A questão identitária em Archeologia ad usum animae, de Ruy Cinatti

Anna Célia Alves de Sousa

UniversidadeFederal de MinasGerais

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posta de Cinatti de que gastamos a maior parte da vida refletindo o que devemos mudar, ensimesmados, porém estacionados no tempo:

[...] marca passoquem fica ou contaanedotas, quem confirmaa sua múmia antes de mortoe diz, no entanto: ó naturezatransforma-me− sem ver que a natureza morrede ano a anoou no curto intervalo em que vivemossem nos transformarmos.

Marcar passo é signo certode estacionamento. (CINATTI, 2000, p. 15)

É possível dizer que o suposto pensamento de con-seguir ser somente o que não se quer apenas não habitaria o indivíduo enquanto este fosse inconsciente de sua con-dição, ou seja, nos primeiros anos de vida. Assim que o su-jeito adquire uma consciência, descobre-se humano, passa a ser atormentado pela ideia de que nunca conseguirá ser o que pretende, vivendo uma espécie de assujeitamento à vida, ou às forças que a regem. Nota-se também como o poeta aproxima o enten-dimento inelutável da morte ao da não aceitação à vida; da mesma forma que o indivíduo não teria controle sobre o fim de sua existência, também não teria o poder de se

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negar a nascer, como podemos ver no poema “Maldição”: “Forte contra a morte, incombatível, / tal o sim que se diz à vida, / nascemos sem parentes, nem receio, / sem delírios de ser antes de sermos / o que não queremos” (CINATTI, 2000, p. 23). O que uniria o sujeito ao todo seria, justa-mente, essa predestinação de, supostamente, vir e retornar ao mesmo lugar da mesma maneira. Sermos todos huma-nos é o que nos faz iguais, é o que nos faz compartilhar desse medo de ignorar o que viria depois do fim. No poema de título “Teleologia”, que, segundo o dicionário, seria a teoria a qual explica os seres pelo fim a que aparentemente são destinados, torna-se mais evidente o conceito dessa possível predestinação, e há a sugestão de que implicitamente a essa possível previsão para o destino humano existe uma quebra dessa expectativa sempre que o indivíduo consegue viver, realmente, sua essência: “Perigos não previstos / surgem nos abismos / da realidade. / Si-nistras aves, a verdade simples, / descem abismos / sempre quando somos.” (CINATTI, 2000, p. 34).

O desdobramento do sujeito

Em seu primeiro livro de poemas, Nós não somos deste mundo, publicado em 1941, já é possível perceber um sentimento de não pertencimento do sujeito que se mostra conflituoso em ter que viver em um mundo que parece não

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agregá-lo. Joana Matos Frias (2014) mencionando João Rui de Sousa explica: “é mesmo à luz desse enlace [‘nós não somos deste mundo, mas é no mundo que eu vivo’], dessa consciência duma fundamental dualidade a que não pode furtar-se, que Cinatti explicita todo um longo curso testemunhante do tal mundo em que vive” (FRIAS, 2014, p. 151). Tal dualidade que é retratada em “Um soneto”: “[...] existem diferentemente, / como eu vivo, repartido / entre o bem, o mal e o sem sentido / terror que gera a ironia, / trespassa a dor da carne habituada / a afirmar-me singular, igual.” (CINATTI, 2000, p. 25). E em “Dualis-mo, unidade”:

Um saleiro.Um pimenteiro.Dentro sal num.Noutro pimenta.A mesma cor.O mesmo efeitoexperimentado.[...]A nenhum doua minha escolha.Sirvo-me inteiro.Tempero.(CINATTI, 2000, p. 73)

Torna-se evidente a intenção do poeta de apresen-tar um ser que só é completo por meio da fusão de dois. Apesar de habitar apenas um corpo, esse sujeito bipartido questiona a lógica da matemática, ao indicar que somar

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dois e três totalizaria quatro, uma vez que esse “dois” re-presentaria um único sujeito que se sente dividido, como podemos constatar em “Renovo periódico”: “[...] Dois e três deviam ser cinco / São apenas quatro / porque assim o sinto [...]” (CINATTI, 2000, p. 104); e em “Matemática elementar”:

Eu, somos dois, não há que ver. A coisafoi decidida quando acrediteique tu ou vós ou eles ou eu ou nóséramos amigos-parentes-irmãospor leis secretas da imaginação.[...]Se me trovar num só pluralizado,em somatórios sou persuasivo.No resto, o coração se decida,se é que o coração se pluraliza.Dito isso, dou por terminado,feliz de me sentir por dois tocado. (CINATTI, 2000, p. 110)

Poética do testemunho como consequência da alterida-de na obra de Ruy Cinatti

É inevitável não pensar que a poética do testemu-nho de Cinatti é construída sobre as bases de uma relação que se estabelece entre o poeta, desdobrado, com o mundo próprio e o alheio. O poeta português exalta um indivíduo que, segundo Matos Frias (2014), abdica da solidão para viver em comunhão.

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Assim, destacam-se alguns poemas os quais exa-lam um tom panfletário, no sentido de que estimulam a necessidade de uma espécie de tomada de consciência, a qual culmine numa mudança social. Explicita-se uma in-satisfação em figurar um mundo em que o poeta não tenha capacidade de mudá-lo ou inspirar alguma transformação. Cinatti problematiza a função da poesia, e sobretudo do poeta, para uma possível melhoria no cenário social, como podemos ver em “Ética poética”: “A mão / estende-se à mão, / recria / a criação. [...] / O poema / imprime / con-vívio.” (CINATTI, 2000, p. 81). E em “Mandato social”:

[...] Basta de balancéentre o que é, o que virá, o que não é.Basta de poetas com as mãos cruzadase de operários a cair de sono[...]Somos poucos mas vale a pena construir cidadese morrer de pé. (CINATTI, 2000, p. 99)

Nesse ínterim, nota-se o poeta português em al-ternância entre sentimentos como de partilha e de reclu-são, tomado, muitas vezes, por um medo de estar sempre aquém das expectativas, tanto suas, quanto a dos outros. Portanto, Archeologia ad usum animae parece representar a vitória da comunhão sobre a solidão, como se o poeta, ser desadaptado, após ter levado uma vida errante e solitá-

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ria, tentasse vencer a crise, o conflito de sentir-se dois, ao vislumbrar a possibilidade de uma reconstrução identitá-ria. Vê-se, então, a tentativa de Ruy Cinatti em fazer uma poesia de força integradora, de algum modo funcionando como elo entre os indivíduos, detentora de um poder re-formador, capaz de recriar o mundo.

Referências bibliográficas

CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Pre-sença, 2000.

FRIAS, Joana Matos. O olhar responsável e a ética da comunicabilidade na poesia portuguesa pós-modernista. Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 34, n. 52, p. 135-162, 2014.

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Horticultura-poesia: a botânica em três poemas de Ruy Cinatti

Este texto tem como propósito investigar a maneira como as plantas aparecem na obra poética de Ruy Cinatti. Pode-se notar que a botânica é uma temática constante em seus livros, seja nos concen-trados em Timor-Leste, onde passou parte da vida, quando trabalhava como funcionário do governo português no país, ou em Portugal. Em razão disso, têm-se como ponto de partida três poemas, publi-cados em livros que abarcam diferentes propostas poéticas: “Acácia rubra”, de Paisagens timorenses com vultos, concentrado no Timor; “Receita de herbaná-rio”, de Tempo da cidade, no qual Lisboa é o espaço principal; e “Origem”, de Archeologia ad usum animae, de 2000, em que, ao contrário dos outros dois livros, não se tem um país definido.

Nos três poemas investigados, pode-se notar que “Acácia rubra” é o único associado diretamente ao Timor, além de ser também o único concentrado em apenas uma só planta, no caso, a árvore acácia. No poema, publicado em Paisagens timorenses com

Patrícia Resende Pereira

UniversidadeFederal de MinasGerais

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vultos, tem-se uma árvore sem odor e som, como compro-va a primeira estrofe: “Odor e som / de acácia rubra: / só o que nela não existe.” (CINATTI, 1996, p. 103). Contudo, ainda persiste a cor da planta, como é ressaltado pelo poe-ta logo adiante: “somente a cor / nela persiste / e a figura / de árvore maior.” (CINATTI, 1996, p. 103).

Nota-se, nesse sentido, que pouco da acácia rubra persistiu, apenas a sua cor e o seu tamanho. Por esse mo-tivo, percebe-se que o poeta sente falta do odor e do som, agora retirados da árvore, como se pode notar por meio dos versos: “Porquê o odor? / Porquê o som? / Porquê a cor ouvindo a música?” (CINATTI, 1996, p. 103). Destaca-se, ainda, que, em uma das estrofes, a acácia chega a perder a sua cor, esta que, até então, persistia: “Acácia rubra / de vagens pretas, / nua de cor, / de flores, folhagem.” (CINA-TTI, 1996, p. 103). Portanto, nada resta da acácia, pois nem mais o vermelho de suas flores foi capaz de resistir.

Enfatiza-se que esse lamento relaciona-se à pro-posta de Cinatti no livro Paisagens timorenses com vultos, no qual está inserido o poema em pauta. Conforme des-taca a estudiosa Letícia Villela Lima da Costa (2004), em seu estudo sobre as plantas na obra de Cinatti, há, nos poemas sobre o Timor, uma aliança entre o homem e a natureza. “É justamente essa aliança Homem-Natureza que o poeta procura fazer nos poemas que escreve sobre Timor, lugar onde viveu durante muitos anos e que amou

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de tal forma, que dedicou grande parte da sua vida e obra à sua reconstrução [...].” (COSTA, 2004, p. 40).

Assim, há no poema uma tentativa de fazer a acá-cia rubra voltar a ser como era antes, o que é ressaltado quando, na última estrofe, lê-se: “Meu o aroma / que já lhe empresto. / Só minha a música / com que a liberto.” (CINATTI, 1996, p. 104). Dessa forma, o poeta empresta para a acácia o seu aroma e vê na sua própria música uma forma de libertar a árvore, agora sem som, odor e cor.

É preciso destacar que se pode relacionar a acácia rubra à história do próprio Timor, tendo em vista que o país estava em uma situação complicada quando a primeira edição de Paisagens timorenses com vultos foi publicada, em 1974. Nesse período, o Timor ainda lutava para se tornar independente de Portugal e estava sob a iminência de uma invasão da Indonésia, o que aconteceu no final de 1975.

Por isso, podemos pensar que a acácia rubra, o Timor antes com odor, som e cor, agora permanece sem nenhum dos três elementos, situação que pode ser apa-ziguada, de certa forma, pela voz do poeta, que procura denunciar o que está acontecendo, especialmente quando se tem em mente que “Só minha a música / com que a liberto.” (CINATTI, 1996, p. 104). Assim sendo, a voz do poeta procura denunciar os problemas que acometem o Timor, na tentativa de fazer com que o país tenha condi-ções de se libertar, tal como acontece com a acácia rubra.

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Nota-se que a mesma tentativa de se fazer uma denúncia não pode ser verificada em “Origem”, presente em Archeologia ad usum animae, de 2000. Último poema da coletânea, “Origem” tem início quando o poeta passa o dia à procura de coisas, ao invés de habitá-las: “Um dia in-teiro à procura de coisas / em que habitar coisa nenhuma.” (CINATTI, 2000, p. 144). No entanto, as plantas fazem o contrário, pois têm um lugar para habitar, como cita o poeta, logo nos versos seguintes: “vasos no telhado / com agriões, coentros, salva-rosa, / poejos, iguarias, / jardim em baixo, da janela à rua [...].” (CINATTI, 2000, p. 144).

Como enfatiza Jorge Fazenda Lourenço (2000), no prefácio da obra, o título, “Origem”, e a primeira estro-fe, ambientada em um jardim, fazem referência ao Gênesis: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden, para o cultivar e guardar.” (GÊNESIS, 2:15). As-sim sendo, pode-se notar que o poema em questão se re-fere à própria construção poética empregada por Cinatti, como se o poeta estivesse em um jardim, criando e dando vida aos elementos.

O argumento ganha reforço quando se pensa na estrofe seguinte, na qual se lê: “Diria que estas plantas me suplicam / o fulgor íntimo / de lhes falar em tom de fa-mília / que remanesce num veio longínquo.” (CINATTI, 2000, p. 144). Nesses versos, observa-se o desejo do poeta de falar com as plantas, como se estivesse criando-as por

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meio das palavras, assim como, na Bíblia, fez Deus quando criou a Terra.

A sua condição de criador aparece mais uma vez na estrofe seguinte, na qual se lê: “Minha a fantasia: / hor-ticultura-poesia.” (CINATTI, 2000, p. 144). A horticultu-ra-poesia seria, então, a capacidade do poeta em criar den-tro do seu jardim, este carregado de poesia. Em razão disso, na última estrofe o poeta entende que estaria à procura de coisas que o denunciam, como, por exemplo, a própria lin-guagem poética. “Portanto, um dia entregue à procura de coisas / que me denunciam.” (CINATTI, 2000, p. 144). Enfatiza-se que, para Lourenço (2000), ainda no prefácio do livro, o jardim de Cinatti faz referência ao “cultivo da alma (do espírito da criatividade), que o jardim – afinal, o poema – encerra, sendo um refúgio (ou um exílio) interior, representa a paz possível perante o sofrimento e os males do mundo.” (LOURENÇO, 2000, p. 167). Nesse sentido, a poesia seria uma forma de encontrar um refúgio inte-rior, ao mesmo tempo em que também é usada como meio para denunciar os problemas do mundo.

Já “Receita de herbanário”, de Tempo da cidade, encontra em Lisboa o seu cenário principal. No poema em questão, nota-se que as plantas aparecem associadas à tentativa de ser livre, de sair da cidade, talvez Lisboa, cenário do livro, e ir para outro local, onde há o convívio com a natureza. Dessa maneira, o poeta age como um her-

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banário, alguém especializado em estudar e vender plantas medicinais, e, por isso mesmo, associado ao poder de cura. Cita-se a primeira estrofe:

Doa a quem doer,liberto-me da mortequando a cultivo pressurosoe adubo com requintes de afoitoàs súbitas mudanças do tempo:vento, sol na eira, as vinhas da ira.

(CINATTI, 1996, p. 69).

O simples ato de plantar tem condições de fazer com que o poeta se liberte da morte, mesmo que seja ne-cessário lidar com as súbitas mudanças do tempo. Percebe-se, ainda, que, ao iniciar a estrofe com “doa a quem doer”, tem-se uma referência a uma expressão frequente da lín-gua portuguesa, na qual se faz alguma coisa independente do outro gostar ou não. Por isso, entende-se que há quem não aprova o fato de o poeta plantar, aqui entendido como sair da cidade e ser livre no campo. O argumento ganha reforço quando se pensa nos seguintes versos, que com-põem a terceira estrofe:

[...]Altos pinheiros cerrados,covarde labéu no rosto,o anjo perseguidor a simular recusa,

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as garras sujasda cidade irmanada ao tédiocom a voz do pai denunciando o espanto:filho vivendo fora deste mundocoágulos de ar liberto,fora das águas turvas,

(CINATTI, 1996, p. 69-67)

Nota-se que o poeta se sente perseguido por al-guém, aqui o anjo que simula recusa e que tem as garras sujas de uma cidade mergulhada no tédio. Nesse cenário, a voz do pai indica o seu espanto ao perceber que o filho vive fora deste mundo, pautado pelo tédio. Fora das águas turvas, o filho vive uma liberdade em que até os coágulos estão livres. É possível pensar, então, que o verso “doa a quem doer” pode ser dirigido ao pai, espantado diante do comportamento do filho, agora livre, longe da cidade do tédio. Ao se estabelecer relação entre a vida de Cinatti e o poema, infere-se que a liberdade de que fala pode estar relacionada às longas viagens com as quais se viu envolvi-do, tendo em vista que poeta nômade é uma das formas usadas para se referir a ele.

Na última estrofe, percebe-se que o poeta está nos altos montes, onde colhe as plantas: “só médico instante / de flâmula esticada aos quatro ventos / com o signo a um canto, / ambivalente / maligno vínculo inciso.” (CINAT-TI, 1996, p. 70). Nota-se que o verso “só médico instante”

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se refere ao tratamento proporcionado pelas plantas, aqui a liberdade, como se plantá-las fosse uma forma de ser livre. A flâmula esticada aos quatro ventos, tal como se o poeta estivesse, realmente, no cume de um monte, contribui para que se tenha a sensação de liberdade proporcionada. A li-berdade tem condições de colocar fim ao maligno vínculo, que, até então, ligava o poeta a uma cidade pautada pelo tédio. Por isso mesmo, o poeta planta, uma maneira de li-bertá-lo do tédio e uma forma de se livrar da morte, fazer do seu espírito livre.

Considerações finais

Pode-se notar, nesse sentido, que a botânica é usa-da por Cinatti como ponto de partida para alguma discus-são proposta. No primeiro poema aqui investigado, “Acá-cia rubra”, de Paisagens timorenses com vultos, percebe-se que a árvore serve como meio para discutir a problemática que envolve Timor-Leste, país que aprendeu a amar, como afirma a estudiosa Letícia Costa (2004). Dessa forma, o poema coloca em destaque as características da árvore, agora perdidas por razões não explicitadas, mas que po-dem retornar, assim que o poeta lhe ceder o aroma e a música, tornando a acácia livre, o que podemos inferir que seja a sua tentativa de expor os problemas do Timor por meio de seus livros de poesia.

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A mesma liberdade procurada por Cinatti pode ser conferida em “Receita de herbanário”, de Tempo na cidade, no qual o simples ato de plantar é considerado pelo poeta uma forma de se libertar, de sair da cidade, aqui enten-dida como um lugar pautado pelo tédio, e ir atrás de sua liberdade. A proposta se torna mais clara quando se pensa nos versos nos quais se explicita que, à medida que planta, o poeta se liberta da morte, como se fosse a mesmice da vida na cidade do tédio. Na última estrofe, quando sobe ao cume da montanha para colher as plantas, o poeta está plenamente livre, pois os quatro ventos sopram a flâmula.

Já no último poema em questão, “Origem”, de Ar-cheologia ad usum animae, as plantas servem como ponto de partida para pensar o próprio processo de criação poé-tica, no qual o poeta se vê envolvido em um jardim, este associado ao Jardim do Éden; assim como Deus criou o mundo por meio das palavras, os versos indicam que o poeta sente o desejo de falar com as plantas com uma voz íntima. A sua poesia seria, então, horticultura-poesia, um refúgio das coisas do mundo, ao mesmo tempo em que é usada para denunciá-las.

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Referências bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. A. T. Gênesis. São Paulo: Editora Canção Nova, 2012.

CINATTI, Ruy. Archeologia ad usum animae. Lisboa: Pre-sença, 2000.

CINATTI, Ruy. Paisagens timorenses com vultos. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1996.

CINATTI, Ruy. Tempo da cidade. Lisboa: Presença, 1996.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Ruy Cinatti: O enge-nheiro das flores. 2004. 87 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Departamento de Letras, Ponti-fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2004.

LOURENÇO, Jorge Fazenda. Prefácio. In: CINATTI, Ruy. Archeologia ad Usum Animae. Lisboa: Presença, 2000.

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O objetivo deste texto é discutir a relação en-tre a epígrafe de Manhã imensa, livro de Ruy Cinatti publicado em 1983, e a ideia de máscara presente nos textos que entremeiam “Mon coeur mis a nu”, poema inicial da referida obra.

Antes de iniciar a análise proposta, alguns apontamentos devem ser feitos. Como se trata de um poema atravessado por outros textos, é necessário um breve percurso geográfico do poema e de outras in-formações que serão relevantes para a realização do trabalho. A intenção é tornar evidente a organização dos elementos do poema de Cinatti – dessa forma, não é essencial, nesse primeiro momento, analisá-lo, embora isso possa ocorrer de maneira breve. Mais adiante, os elementos que relacionam a epígrafe e a ideia de máscara serão abordados detalhadamente.

Posto isso, nosso percurso se inicia com a epí-grafe de Manhã imensa, que tem alguns versos reti-rados da peça O grande teatro do mundo, do espanhol Pedro Calderón de la Barca: “Y pues representacio-nes / es aquesta vida toda, / Meresca alcanzar perdon

No fundo são tudo máscaras: análise dos textos de “Moncoeur mis a nu”, de Ruy Cinatti

Isabella Batista de Souza

UniversidadeFederal de MinasGerais

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/ de las unas y las otras” (CALDERÓN apud CINATTI, 1983, p. 07). A epígrafe nos coloca frente à ideia da vida como representação – como atuação – em que cada in-divíduo representa um papel. Ora, não é esse o lugar da máscara? O lugar da atuação, da representação teatral; a máscara é a indumentária, o acessório utilizado na repre-sentação.

Em seguida, nos deparamos com o título do pri-meiro poema do livro: “Mon coeur mis a nu”, que faz uma alusão direta à recolha de trechos escritos por Baudelaire ao longo de sua vida, uma espécie de Livro do desassossego francês. Porém, quando viramos a página, o que se encon-tra não é o poema e seus versos, mas um texto que se inti-tula “Excerto de uma carta-meditação para uma amizade ausente na qual se insere o poema que se lhe deu motivo: ‘Mon coeur mis a nu’.” (CINATTI, 1983, p. 11). Nesse texto, também chamado pelo poeta de memória descritiva, ele coloca suas meditações sobre o poema e cita aconteci-mentos ligados ao seu surgimento. O que merece desta-que, agora, é o modo como a memória descritiva cerca o poema, ou seja, situa-se em seu entorno – antes e depois. Nele, o poeta define o próprio ato de analisar seu trabalho:

Para que possas compreender o poema para além de sua assimilação imediata, precedê-lo-ei de uma espécie de sumá-rio ou memória descritiva, como se usava antigamente à frente de cada capítulo. Isto quer dizer que lhe vou apor uma máscara. É muito possível que essa más-

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cara revele uma vivência diferente da que o poema significa verdadeiramente. (CINATTI, 1983, p. 11)

Em suma, temos, primeiro, uma epígrafe e um tí-

tulo bastante sugestivos; em segundo lugar, a memória des-critiva que envolve o poema – e que devemos dividir em dois momentos, um em que o poeta descreve cada estrofe e outro quando relata algumas experiências relacionadas ao poema; e, por último, há que se lembrar, o poema. Esse é, pois, o percurso geográfico que precisava ser entendido de modo a não prejudicar nosso objetivo de compreender essas diversas facetas que influenciam na construção dos sentidos de “Mon coeur mis a nu”. A epígrafe do livro foi retirada da peça O grande teatro do mundo. Escrita em meados do século XVII, é um dos autos sacramentais mais famosos do espanhol Pedro Calderón de la Barca, célebre escritor dramático do perío-do barroco. Como aponta Sônia Regina Nogueira (2002), em seu artigo intitulado “Os signos da representação tea-tral: Calderón de La Barca”, os autos sacramentais eram criados com objetivo de pregar as normas estabelecidas pela Igreja, no contexto da Contra-Reforma, e pelo Esta-do. Dessa forma, a peça de Calderón servia para mostrar ao público a maneira correta de agir e garantir um lugar no Paraíso.

Entretanto, não é esse caráter didático que nos in-teressa neste trabalho e sim o metalinguístico. Há, na peça, um mise en abîme, o que torna possível uma reflexão meta-

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teatral bastante complexa: dentro da própria apresentação, uma encenação é montada para refletir sobre os papéis que são interpretados durante a vida – o teatro está dentro do próprio teatro. Em O grande teatro do mundo há diversos personagens que representam as camadas sociais e suas respectivas funções, como o lavrador, o rico, o pobre, entre outros. Encontra-se, ainda, o Autor, aquele que cria tudo, mas é também personagem; e o Mundo, que distribui os papéis que cada personagem deve representar; por exem-plo, ao lavrador dá a enxada; ao rei, o ouro; ao pobre, nada. A vida humana, na obra de Calderón, é como um teatro, onde cada um representa um papel. Logo, a peça asseme-lha-se à vida e atuar é viver.

Isso nos leva precisamente à imagem da máscara colocada em “Mon coeur mis a nu”. Em uma de suas afir-mações, no início da memória descritiva, o poeta afirma: “Mas as pessoas, menos ou mais que as palavras, também são símbolos, na medida em que, como pessoas, todos nós usamos máscaras” (CINATTI, 1983, p. 11). Há uma re-lação entre o que é símbolo e o que é máscara. Para a crí-tica Bella Jozef (2007, p. 15), “o homem e suas produções culturais se dão enquanto máscaras, cuja face verdadeira é máscara também”. As pessoas, como na peça de Cal-derón, estão sempre com máscaras, interpretando o papel que lhes foi dado; as palavras, paralelamente, são símbolos, “ambivalência imagística” como diz o próprio poeta – a palavra é imagem e carrega um significado não-motivado; significado e significante.

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No trecho que se segue, ainda na primeira parte da memória descritiva, essa relação “símbolos-palavras”, pala-vra-máscara, também é evidente:

Não posso dizer nada, porque não sou capaz. Será possível descrever uma vi-vência como se descreve uma planta ou uma pedra? Nós comunicamos através de símbolos. A palavra é um símbolo, tu sabes. O poema, ou os seus excertos, apareceu-me, assim, aos pedaços e com imagens tão pouco habituais que me dei-xaram varado. O próprio ritmo não con-seguia religá-las. Resolvi eliminar algu-mas dessas imagens. Disse que não seria capaz, mas não é verdade. (CINATTI, 1983, p. 11)

Além da palavra-máscara, há alguns outros pon-tos evidentes nesse trecho. Primeiramente, a concepção de poesia – que é vivência, algo que não é controlado pelo poeta, mas também trabalho, já que o poeta é aquele capaz de eliminar parte da vivência de modo a torná-la poesia de fato (o poema é refeito pelo poeta, antes nem o rit-mo conseguia religar as imagens). Está claro que há um questionamento sobre o que é fazer poesia e como se deve fazê-la. Também em outro momento do texto, podemos perceber uma definição do que é fazer poesia: o poeta é o colaborador de Deus na Criação – o interessante é pensar Deus como símbolo máximo daquele que cria, e entender que o poeta não está sujeito a Ele, pelo contrário, participa no processo de criação, coopera.

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Em segundo lugar, ainda referente ao longo trecho citado, há um caráter metalinguístico muito forte. Além de ser um texto que comenta a si mesmo, como vimos anteriormente, há uma superposição de textos, um cercea-mento de informações e explicações, que deixa a leitura mais complexa e torna os significados móveis, impossíveis de se fixar nesse ou naquele sentido.

Isso é reforçado no final da memória descritiva quando o poeta nos apresenta uma nova informação: [o poema é] “mais simples e mais complexo que a sua me-mória descritiva, menos e mais sugestivo do que a máscara que lhe pus.”(CINATTI, 1983, p. 19). Enfim, afirma o poeta: “No fundo, são tudo máscaras: o poema e a memó-ria descritiva.” (CINATTI, 1983, p. 19). Paradoxalmente, tudo se confunde e se diferencia, a memória descritiva era, inicialmente, uma máscara, mas uma que guiaria o leitor, ajudando-o a ir além da “assimilação imediata”. Porém, ao fim, o poema também se torna máscara e é, pois, inútil procurar uma verdade única para seu significado – se é que ela existe. Até mesmo porque são muitas as leituras e tradições dentro do poema: há a mexicana, quando é men-cionado o vulcão Popocatepétl; francesa, relembrando à re-ferência a Baudelaire; russa, quando se apropria dos versos de Maiakovski; e espanhola, com o auto sacramental de Calderón. Nesse sentido, o mundo de Cinatti é diferente do apresentado por Calderón: ele condensa culturas não europeias com a greco-latina e apresenta, claramente, uma ampla tradição literária em suas referências.

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Portanto, conclui-se que a máscara deve ser vista como um recurso que auxilia em uma leitura múltipla do poema, amplia as possibilidades de sentido; uma indica-ção das significações – e não uma simples indumentária que esconde um sentido verdadeiro absoluto e inatingível. Lembrar isso é muito importante já que Cinatti tem sido tão limitado ao rótulo de poeta católico nas leituras de sua poesia.

Referências bibliográficas CINATTI, Ruy. Manhã imensa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1983.

JOZEF, Bella. A máscara e o enigma. Londrina: Eduel, 2007.

NOGUEIRA, Sônia Regina. Os signos da representação teatral: Calderón de La Barca. In: CONGRESSO BRA-SILEIRO DE HISPANISTAS, Associação Brasileira de Hispanistas, 2., São Paulo, 2002. Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-t&pid=MSC0000000012002000200041&lng=en&nr-m=abn>. Acesso em: 28 dez. 2015.

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Deixe-me ir Preciso andar

Cartola

Tempo da cidade é o segundo inédito publica-do após a morte de Ruy Cinatti, tal como está des-crito no prefácio de sua primeira edição, por Peter Stilwell, pesquisador e organizador dos originais. Não por acaso, esse livro compõe-se por três conjun-tos de poemas: “Casa”, “Rua” e “Horizonte”. Desde sua apresentação, proponho que sejamos vigilantes nesta leitura, pois sabemos: tratando-se de poesia, cada miudeza vale um abismo. Há aí, logo no título da obra e na composição de seu índice, uma inclina-ção temática inteligentemente arquitetada: é antes o lugar da cidade, o espaço em si, o elemento estru-turador do livro − lemos tempo da cidade, como se o local urbano fosse o regente máximo de seu par

“Sempre, o da mansarda”: figurações do poeta em Tempo da cidade, de Ruy Cinatti

Moisés Paim Fonseca

UniversidadeFederal de MinasGerais

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indissociável, o tempo. Nesse jogo contrastivo de lugar-tempo, considero: o agrupamento dos poemas, assim dis-posto, pode nos sugerir em linhas bem gerais a intenção de explorar algo da vista citadina partindo de uma micro paisagem para se chegar a uma macro paisagem. Nesse sentido, o que se fará por aqui é, basicamente, delinear a figuração do Cinatti que sobre esses espaços escreve (casa – rua – horizonte); procurando dar mais atenção ao seu comportamento no ambiente caseiro, o primeiro estágio do seu itinerário pela cidade. Daí, após bosquejar o com-portamento do poeta, nesse primeiro momento, é possível que o leitor se sinta mais preparado para companhar Ci-natti pela “Rua” a escrever sobre o “Horizonte”.

Iniciemos esse trajeto partindo do poema inaugu-ral de Tempo da cidade:

FASTIO

Quem me faz descer desta mansarda já,onde me icei?Farto estou já de estar sozinhoa caçar moscas,como se minha fosse a voz iradaque assim me mantémdivinizado.(CINATTI, 1996, p. 17)

O clima de negatividade começa a ser estabeleci-do já no título: “Fastio” nos remete à repugnância, ao té-

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dio, ao aborrecimento. É essa a ambientação proposta por Cinatti, desde sua apresentação, confirmada logo a seguir, no apelo dos dois primeiros versos. Vendo-se “farto”, o poeta questiona quem o faz sair dali, do seu recolhimento, como se esse sujeito se encontrasse num estado de estagnação, e não obstante: resignação. É justamente aí, nesse movi-mento de descida, que se inicia o seu percurso, o itinerário que sustentará o conjunto todo desses poemas. Mas antes de dar um passo à frente, questiono: a mansarda do Cina-tti é abrigo ou é clausura?

O lar funesto de “Fastio” é comum, por exemplo, à morada do narrador de Os cus de Judas, chamaremos-no Lobo Antunes. A partir do trecho a seguir, é possível per-ceber alguma similaridade entre esses dois sujeitos, no que diz respeito ao modo como eles encaram sua própria casa:

Esta espécie de jazigo onde moro, assim vazio e hirto, oferece-me, aliás, uma sen-sação de provisório, de efémero, de inter-valo, que, entre parênteses, me encanta: posso ainda considerar-me um homem para mais tarde, e adiar indefinidamen-te o presente até apodrecer sem nunca haver amadurecido, de olhos brilhantes de juventude e de malícia como os de certas velhas da aldeia. Pelas janelas sem cortinas vejo, deitado na cama, os operá-rios que constroem o prédio em frente e principiam a trabalhar muito mais cedo do que eu, a fitarem-me do outro lado

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da rua numa inveja admirada. Mulheres ensonadas sacodem das varandas panos enérgicos e exaustos. Rebocadores mi-núsculos, com hérnias da coluna, puxam gordos navios pacíficos na direção da barra. Provavelmente, até no cemitério reina uma chocalhante atividade mati-nal de esqueletos de família, catando-se mutuamente os vermes num cuidado de mandris. E somente eu, único habitante desta casa deserta, me permito genero-samente os doces langores da preguiça porque apenas desibernarei à noite, no bar onde nos encontrámos, debaixo des-ses candeeiros Arte Nova e dessas cenas de caça, de nariz mergulhado no vodka com laranja de um pequeno-almoço tar-dio. (ANTUNES, 2010, p. 125-126)

“Espécie de jazigo” e “casa deserta” estabelecem uma comparação entre as atividades de seu lar e o que acontece em túmulos. É essa uma aclimatação fúnebre di-vidida pelos dois sujeitos. Vale destacar que, obviamente, há grande diferença entre eles – o que, de certo modo, não anula a pertinência da comparação; pelo contrário, como veremos. Lobo Antunes, na situação descrita ante-riormente, acaba de retornar a Lisboa, após servir, a con-tragosto, às forças armadas portuguesas, como médico, na África, durante a Guerra Colonial. Do poeta Ruy Cinatti, ao contrário, sabe-se que dedicou muito de sua vida ao Timor, acompanhando boa parte da trajetória dessa co-lônia, também portuguesa, compartilhando com o povo

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timorense as suas dores, seus sonhos e sua cultura. Cina-tti cantou muitos poemas ao Timor; pelo menos quatro livros com essa intenção podem ser aqui citados: Uma sequência timorense (1970); Paisagens timorenses com vul-tos (1974); Timor-amor (1974); e o póstumo Um cancio-neio para Timor (1996). Ao contrário de Lobo Antunes, estamos falando de um poeta nitidamente apaixonado pela colônia que frequentou. E a conclusão é esta: talvez por isso a angústia sugerida na situação d’ Os cus de Ju-das ganhe um tom mais pungente quando nos atemos ao contexto de Cinatti, pois maior seria seu drama nesse lar mansarda em que agora está, e volto a refletir, abrigado ou enclausurado.

Esmiuçando ainda mais essa proposta, chega-se a uma palavra núcleo do poema: mansarda. Morada dis-tinta, da mansarda vê-se longe, através de sua janela alta, que possibilita uma vista de rapina, cujo rasante pode ser vitorioso, e daí a ave revoa com a presa entre as garras, ou inglório, e nesse caso a ave adeja para a própria morte. O alto da mansarda é o local do observador, mas também do precário, pois a mansarda é geralmente simples, há nela algo assim de provisório, e também de vagabundo, de boêmio. Quando pensa-se em mansarda, creio, não se é invadido pela mesma ideia de opulência vinculada a imagens como uma cobertura luxuosa; um sobrado no-bre; ou até mesmo uma torre garbosa de feiticeiro. No caso do poeta, aposto que seja no máximo uma torre de

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marfim. Para prosseguir, resgatemos da “Tabacaria” uma consideração sobre a mansarda:

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundoNão estão nesta hora gênios-para-si-mesmos [sonhando?Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,E quem sabe se realizáveis,Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos [de gente?O mundo é para quem nasce para o conquistarE não para quem sonha que pode conquistá-lo, [ainda que tenha razão.Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.Tenho apertado ao peito hipotético mais [humanidades do que Cristo,Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant [escreveu.Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,Ainda que não more nela;Serei sempre o que não nasceu para isso;Serei sempre só o que tinha qualidades;Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a [porta ao pé de uma parede sem porta,E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,E ouviu a voz de Deus num poço tapado.(PESSOA, 2001, p. 363-364)

Nesses versos, Álvaro de Campos nos amplia a vis-ta para o termo mansarda: Cinatti, acredito, é um desses gênios recolhidos, de frente com a sua convição de ser o exímio criador, aquele que veio se plantar como uma árvo-re frondosa; encarando suas próprias ambições, frustrações

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e desejos. Mas vale ressaltar: esse reconhecimento da ge-nialidade própria é muito mais prepotência que devoção. De volta à sua cidade, após anos de luta no Timor e no amor, tudo que lhe resta são memórias e toda a solidão de seu lar. É esse o momento em que o sujeito reflete sobre sua trajetória pela produção poética que exerceu durante toda a vida, e concluir-se-á o da mansarda, o gênio secreto, sem reconhecimento, isolado numa cripta a gerar versos. O lugar da mansarda, por si só, evidencia que temos nesse livro, Tempo da cidade, um sujeito melancólico. Todas essas considerações, veremos, serão esclarecidas a seguir, a partir da leitura de outros poemas. Por isso tão importante uma apreciação atenta desse primeiro momento, ou seja, de Ci-natti em “casa”.

A última estrofe do segundo poema do livro, “Novo dia”, propõe-nos algo sobre o cotidiano do poeta:

Medito na vidaano após ano.Um mês repetidosempre um desengano.

(CINATTI, 1996, p. 18)

Enclausurado nessa mansarda, o poeta vê-se tolhi-do pelo ambiente funesto. Essa situação o deixa descrente, minguando a sua esperança. Cinatti não é o sujeito empe-nhado nas tarefas cotidianas. Sozinho, é ele “um homem para mais tarde”, tal como diz Lobo Antunes de si mes-

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mo. Sempre adiando, deixando que o tempo se cumpra, se consuma. Tempo este cujos ministérios, apesar de inven-cíveis, estão subordinados à cidade. Seguindo essa análise, pode-se dizer que, em casa, é o silêncio o preenchimento mais substancial:

TAREFA

Entro em casa: é o silêncioque me comporta: tecladoà porta do esquecimentoe tanta coisa lembrada...

O que a fazer há de urgente,na rua, é como um pianoouvido na melodiaconhecida que me acicata.E aspiro títulos de livroslidos, relidos, olvidadose um quadro desgraçadoda minha vida perdida.

Entro em casa: é o silêncioque se apodera de mim,reavendo no futurotão pouca vida cumprida.(CINATTI, 1996, p. 25)

O poeta parece nos insinuar que o final da linha para ele está próximo, a essa altura da vida. Resignação e apatia perante o mundo tornam-no tíbio. Sempre o sujei-to que anula e se desvia do presente; imerso no “vazio e hirto”, com uma sensação “de provisório, de efémero, de intervalo”, ainda nas palavras de Antunes.

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A imagem da mansarda é retomada, a seguir, o que confirma sua pertinência:

Vamos então padecercom os pés no tectodo vão do quarto-mansardae um toque pulmonarpara garantir legendatão nobre!

(CINATTI, 1996, p. 27)

Após tirar os pés do teto e colocá-los na rua, a man-sarda ainda ressoará nos versos posteriores, metendo-o a perambular por Lisboa na ânsia pela ante-manhã, possí-vel sinal de esperança. Porém, aquele que valentemente acompanhar o poeta pela “Rua”, enquanto escreve sobre o “Horizonte” lisboeta, arderá junto a Cinatti por uma noite imensa, enorme de escuridão. Os primeiros passos foram dados; um esboço inaugural da figuração subjetiva já foi vislumbrado. Cabe agora ao leitor vaguear pela poesia sem tempo da cidade.

Visitemos o poeta, ele merece.

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Referências bibliográficas

ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janei-ro: Objetiva, 2010.

CINATTI, Ruy. Tempo da cidade. Lisboa: Editorial Pre-sença, 1996

PESSOA, Fernando. Tabacaria. In: GALHOZ, Maria Aliete.(Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2001.

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Na mitologia grega, os elementos da nature-za assumem papel importante para a cosmogonia e para o entendimento de fatos da vida. A água, sejam rios, mares e oceanos, é representada como entidade, ser de extrema importância para o ciclo da vida. Em várias narrativas gregas, a simbologia da água como criadora da vida é recorrente. Tal simbologia tam-bém é perceptível em poemas de Ruy Cinatti, poeta português que tem forte relacionamento com o mar.

Há várias versões de mitos que explicam a ori-gem do mundo. Em uma delas, apresentada por Tho-mas Bulfinch (2006) em O livro de ouro da mitologia, é dito que, no início, a Terra, considerada achatada e redonda, era atravessada de leste a oeste pelo Mar Mediterrâneo e sua continuidade. Circundando a Terra, da direção sul para a direção norte na parte ocidental e da norte para a sul na parte oriental, havia o rio Oceano, que alimentava o mar e todos os rios do planeta. Assim, a água era responsável pela fertilização do planeta, o que permitia o surgimento da vida na Terra.

A simbologia da água na poesia de Ruy Cinatti

Lucas Willian Oliveira Marciano

UniversidadeFederal de MinasGerais

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A água também está associada ao nascimento de di-vindades. Oceano e Tétis, titã que era uma porção de água do próprio Oceano, deram origem a uma extensa prole: rios, ninfas dos oceanos; Gaia (a Mãe Terra); Nereu (primeiro deus dos mares). É também da água que surge Afrodite, deusa que representa o amor, a sexualidade e a beleza. Em uma das ver-sões sobre o surgimento da deusa, narra a mitologia que Ura-no, deus primordial, foi traído por seus filhos e posteriormente esquartejado por sua prole. O sangue que jorrou caiu no mar, e da espuma da água originou-se Afrodite, surgindo de dentro de uma concha.

É a água, no formato de chuva, que também traz à vida o herói Perseu. Sua mãe, Dânae, era filha do rei Acrísio, rei de Argos. Ao consultar o Oráculo, o rei foi avisado de que sua morte se daria pelas mãos de seu neto. Não tendo neto, mas querendo evitar o trágico destino, o rei aprisionou sua filha no alto de uma torre. Zeus, o deus dos raios, vendo a situação de Dânae, transfigurado em chuva, fez com que a princesa tivesse um filho.

Não só relacionada à vida em primeira instância está a água, mas também ao renascimento, à segunda vida, caso do rei Midas, amaldiçoado com a habilidade de transformar tudo que tocasse em ouro. A cura para seu mal foi banhar-se no rio Pactolo, que lavaria a culpa e o castigo do rei, trazendo-lhe de volta a sua humanidade, uma forma de renascimento.

Como exposto, a importância da água para a mitolo-gia grega é inegável. Desde a origem da Terra até a origem de entidades míticas, desde a fertilidade até a renovação,

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este elemento natural se faz presente. A seguir, ver-se-á que Cinatti atribui simbologia semelhante à água em seus poemas. Nascido em Londres, em 1915, Cinatti sempre teve uma relação próxima com a água. Quando moço, o futuro poeta deveria ingressar na Marinha, seguindo um desejo do pai. Entretanto, opta por estudar agronomia. Em seu primeiro ano de faculdade, participa do I Cruzeiro de Férias às Colónias Portugueses da África Ocidental e a partir daí decide dedicar-se profissionalmente aos territó-rios além-mar. Então, apaixona-se por Timor-Leste, onde exerce o cargo de secretário de gabinete do governador.

Cinatti passa várias temporadas em Timor (1946-1947, 1951-1955, 1958, 1961-1962 e 1966). Tendo como ponto de partida as irregularidades praticadas pelos portu-gueses na colônia que tanto o atraiu, escreveu seu terceiro livro de poesia, O livro do nómada meu amigo. É justamente nessa obra que a relação com a água se faz presente; é o mar que leva Cinatti à ilha de Timor, lugar em que se en-tra em equilíbrio com a natureza.

Para a análise aqui apresentada, foram seleciona-dos quatro poemas de Cinatti, todos presentes em O livro do nómada meu amigo. São eles: “O sopro interior”, “Mo-mento intemporal”, “Eros” e “Transfiguração”. Como fora dito, o livro mencionado acima tem forte relação com as viagens de Cinatti a Timor. Nos qua-tro textos, embora de formas diferentes, a água é um sím-bolo marcante.

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Por mais que não esteja ligada diretamente à cria-ção da vida, no poema “O sopro interior”, a água parece assumir um papel de iniciadora de uma jornada. Tal poe-ma, que se assemelha a uma narração, mostra a cena de um barco que, sobre o rio, navega aos cuidados do olhar do eu-lírico:

Passa um barco no rio. Volto a vê-loDepois, só nas velas insufladas,Por sobre a multidão, o casario,Outras faces da vida afeiçoadas.

Vai depois seguindo a sua rota.Esqueço-me dele. Entanto surgePor onde não há rio nem gaivotas.

Porém,Coloco-o sobre as nuvens e assoproNas velas brancas o destino amado. (CINATTI, 1958)

O barco, que num primeiro momento é conduzido pelo rio, conecta-se ao eu-lírico. Embora a voz no poema perca a embarcação, seja por ela estar fora do campo de visão, seja por estar longe do pensamento, ela acaba por voltar, mostrando-se como algo importante, marcante. Aqui, tal barco é protago-nista e termina por ter um caminho já traçado, levado por um sopro de ar. A situação narrada pode ter relação com as viagens de Cinatti a Timor. Além disso, ela se mostra como o início de uma jornada e, por que não dizer, de uma nova vida.

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A história do poema não termina; pelo contrário, há ideia da continuidade dada pelo sopro. Logo, há um caminho que começou a ser vivido e que continuará a ser descoberto. Essa fluidez é a mesma presente nos mitos cosmogônicos, da água que jorra vida no mundo. Assim como o Oceano, é o rio que, ainda que posto em segundo plano no poema, dá início à jornada apresentada.

Se em “O sopro interior” expõe-se uma vivência, em “Momento intemporal”, o eu-lírico se mostra como um ser que se entrega à morte. Entretanto, a temática do texto não é melancólica ou mórbida. O desejo pela morte é encerrado com uma metáfora envolvendo o mar:

A solidão, e o que há de mais aberto:Rosa por desfolhar,  Quero-a eu agora - e ao largo vento A roda dos sonhos confiar. Quero-a como a morte pressentida. E a cadência da onda transmitida Ao fundo do mar.(CINATTI, 1958)

Aqui, a onda, ou melhor, sua cadência, pode ser representativa da vida. Esta é encerrada quando se toca o fundo do mar. Com tal metáfora, Cinatti cria uma ima-gem agradável para a finitude. O poeta joga com a flexi-bilidade da água, elemento que é facilmente moldado, não apresenta resistência.

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Pode-se observar que, no mesmo poema, a nature-za é bastante presente. Esse aspecto revela duas caracterís-ticas. A primeira é a relação do texto com a vida profissio-nal de Cinatti, agrônomo de formação e, logo, próximo das coisas naturais. A segunda é a semelhança com os mitos, que tomam por base a natureza para explicar o surgimento dos seres.

Em outro poema, “Eros”, a referência à mitologia grega fica mais clara. Tomando por base o mito de Narci-so, Cinatti cria um jogo envolvendo imagem e água:

Tomo de mim a parte que compete À minha imagem, só por ti sonhada. Olho-a depois como quem reflecte N’água a face ignorada.(CINATTI, 1958)

No poema, tem-se um conflito na construção da imagem do eu-lírico. Há um interlocutor que idealiza a voz no texto. Contudo, é o próprio eu-lírico que renega tal imagem. Desta forma, é construída a visão de um Narci-so às avessas, ou um anti-Narciso. Conta a mitologia que Narciso era um jovem caçador, de ego inflamado e desde-nhoso das ninfas. Como castigo por suas atitudes, a deusa da vingança o sentenciou a ter um amor não correspon-dido. Sendo assim, o jovem apaixonou-se por sua imagem refletida em um lago de águas prateadas e suntuosas. O amor excessivo ao próprio reflexo foi o que deu fim à vida

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de Narciso, que definhou diante das águas do lago. No poema “Eros”, por outro lado, a imagem projetada na água é negada. Assim, tem-se a impressão de que o eu-lírico se desfaz do aspecto divino que lhe foi atribuído. Sobre a ne-gação da imagem, também se pode dizer que o poeta pre-fere sua humanidade. Ainda, considerando a água como a ruína de Narciso, não aceitar a própria imagem refletida no espelho d’água seria não se entregar à própria morte.

No quarto poema analisado, “Transfiguração”, a representação da água assume um tom lírico. Também, a alusão a uma passagem mítica pode ser notada:

Esta chuva que cai e cerra o horizonte, Que fecha e oculta o que talvez amasse — O que poderia amar perdidamente, O que poderia ver e humanamente [amar!... Esta chuva que continuamente cai, Quanta doçura nela encontro, Quantos iluminados gestos sem saber, Quanto mistério, cor, descanso e aroma, Quanta presença frente à limpidez que [se admira, Frente à mulher que em nosso peito [prepara uma límpida festa E nos convida a amar com os olhos [rasos de água!(CINATTI, 1958)

Como apresentado, na mitologia grega, a água as-sume, em alguns mitos, a função fertilizadora. É o que acontece na já mencionada história de Dânae, em que o

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filho da jovem lhe foi dado através de Zeus, que a engra-vidou sob a forma de chuva. Tal cena se repete no poema de Cinatti: a chuva parece uma entidade que adquire ca-racterísticas humanas, como a capacidade de amar. É ela que cai sobre os amantes e parece se misturar a eles, pois há uma transição marcada no poema entre a chuva, o su-jeito e a amada. A chuva também é retratada de forma ambígua. Ela traz mistério, pois encobre os amantes, mas, ainda, representa limpidez. Este efeito se dá justamente pela mescla dos seres envolvidos, uma vez que não se sabe a quem ou a quê as características estão sendo atribuídas. Nesse jogo, toma-se por base a fluidez da água, bem como sua característica solvente, que funde os amantes. É essa fusão que se observa no mito de Dânae, quando Zeus fe-cunda a jovem princesa. Aqui também a água é o fluido que mistura os amantes.

Em seus poemas, Cinatti apresenta uma relação intensa com a natureza. Tal relação se dá justamente por sua formação profissional e por suas visitas a Timor-Les-te. Na análise exposta, foi possível perceber que a água, citada de várias formas, assume um papel importante nos poemas. Esse elemento é representado de formas similares às presentes nos mitos gregos. A água, para a mitologia, é entidade que permite a vida, e em Cinatti, também se vê a representação de tal líquido como vital, fertilizador, instrumento que propicia jornadas/vivências.

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Referências bibliográficas

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histó-rias de deuses e heróis. Tradução de David jardim. 34 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

CINATTI, Ruy. O livro do nómada meu amigo. 1 ed. Lis-boa: Guimarães Editores, 1958.

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Sete notas, sete acordes, sete poemas

O título Sete septetos traz consigo uma impor-tante simbologia acerca do número sete e a composi-ção e organização do livro em análise. Começaremos pelo significado da palavra septeto, que está relaciona-da com o campo semântico da música, estabelecen-do, assim, uma clara ligação com a poesia. Segundo o dicionário Houaiss (2009, p. 1731), septeto é uma “composição para sete executantes (vozes ou instru-mentos)”, pode ser também o “conjunto vocal ou ins-trumental desses sete executantes”.

Notamos que o livro Sete septetos é composto por sete poemas, que, por sua vez, são divididos em

Referências bíblicas em Sete septetos, de Ruy Cinatti

Clara Anunciação de Vasconcelos

UniversidadeFederal de MinasGerais

A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas.

Padre Antônio Vieira, em “Sermão de todos os santos”

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sete partes. De acordo com o crítico e poeta José Blanc de Portugal (1967), os sete poemas são como as partituras de uma música, que, juntas, compõem uma sinfonia, encerra-da na sétima parte do sétimo poema:

O teu amor por mim já não tem nome.Cada letra é um mistério tremendo.Quando dizes Ruy,ouço dizer Amor!Sete!(CINATTI, 1986, p. 81)

Neste poema, o eu-poético parece se referir a um amor romântico, amor este que é desenvolvido no livro, segundo o escritor José Blanc de Portugal (1967, p. 02), na tentativa de distrair o real, através da “ilu-são amorosa do amor vivido”. No entanto, o que nos interessa aqui é analisar a simbologia do número sete.

Destacamos que o sete é a primeira referência bíblica apresentada em Sete septetos. O número indica o tempo levado por Deus para a criação do mundo, conforme o livro do Gênesis 2:2-3: “E havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, des-cansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fi-zera”. Nesse sentido, é possível notar que o número sete representa o fim de uma obra, seu término e sua coroação.

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Sendo assim, a expressão “Sete!”, que encerra o li-vro, também representa o fim de um ciclo, a conclusão de uma tarefa. É o último acorde da composição de Cinatti.

“O cego não vê com os olhos/ A cegueira vê”

O cego é uma figura marcante no primeiro poema de Sete septetos, assim como na Bíblia, mas com significado bastante diferente. Na Bíblia, o cego é aquele que está nas trevas, na escuridão, e apenas a palavra de Deus pode curá-lo, trazê-lo à luz, como vemos em Isaías 29:18: “Naquele dia os surdos ouvirão as palavras do livro, e os cegos, livres já da escuridão e das trevas, as verão”. Já quando se pensa na obra de Cinatti, o cego se relaciona com a sabedoria, da mesma maneira como acon-tece na Antiguidade Clássica. Lá, o cego é capaz de en-xergar aquilo que os outros não veem, pois ele “é aquele que ignora as aparências enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer sua realidade secreta, profunda, proibida ao comum dos mortais” (CHEVA-LIER; GHEERBRANT, 2006, p. 217). É possível comprovar tal afirmativa quando pen-samos nos seguintes versos, da sétima parte do sétimo poema:

O coração do cego vêlevantar-se palmo a pálpebrao pano sagrado, liso.

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Vê o teatro de Deus.

Morre de olhos abertos.(CINATTI, 1986, p. 73)

Portanto, a verdade não é vista por meio dos olhos, mas, sim, do coração e é por ele que o teatro de Deus, que pode tanto ser entendido como o plano divino como a farsa dele, é revelado. Destacamos que essa noção de ce-gueira, aqui desenvolvida, em muito pode se relacionar com um fragmento do livro Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, no qual se lê:

É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes. (LISPECTOR, 1980, p. 88)

Quando se pensa no livro de Cinatti, podemos notar que, na terceira estrofe do primeiro poema, temos a cegueira como algo que não nos impede de enxergar, pois a visão pode se realizar por meio de outros órgãos do sentido e também pela palavra, como veremos a seguir:

Porquê os olhos, se os seios saltampara as mãos?Porquê os seios se os olhos faltam na face?

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Dedos, boca, órgãos ou sentidos,mas só olhos quando neles mete os dedos e lembra.Que instinto arrasta o meu cego às fon-tes da vida,se tem ouvido, tacto e tem palavra?

Se ouve um gritoa mão fechao que dissimula.

Sente no seu, outro corpoque tacteia.E socorre-se dos sonsou do jeito musical,na sua boca sabora mel ou amarga corde grito paralisadopelo voltar da cabeça.

Na sua mente,pluralizados pela dor,seios.Obsessão de cego,condição de ver.(CINATTI, 1986, p. 73)

O não enxergar implica no tocar, no saborear, no sen-

tir, fazendo-nos pensar, assim, que temos uma imagem eróti-ca neste poema, relacionada à cegueira. Notamos, então, que em Cinatti a cegueira nem sempre será uma punição contra os pecadores ou algo que precisa ser curado através da luz divina, da palavra de Deus, mas pode ser algo que nos faz experimentar sensações que a visão jamais permitiria.

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Semen est verbum

O sétimo septeto é um poema que se inicia com uma referência bíblica, pois é dedicado a Nossa Senhora, a Virgem Maria. Essa suspeita se confirma quando notamos que, entre as partes um e quatro, o poema faz referência a Mãe, que, escrito com a primeira letra em maiúsculo, tra-ta-se de uma clara alusão a Nossa Senhora. Já na quinta, o poeta passa a falar de si mesmo ao traçar uma minibio-grafia. Na parte seguinte, contudo, temos um trecho que em muito se assemelha às cantigas de amor ao apresentar um homem submisso que se humilha para ter a atenção da mulher amada. Na sétima e última parte, como vimos anteriormente, podemos ver uma cena de amor idealizado.

Analisaremos a quarta parte, intitulada “A segunda lança”, na qual se lê os seguintes versos:

Dizem os Azandes, tribo do Sudão, não ser a lança de ferro, mas a segunda lança (isto é, a intenção da lança de ferro), a causa da morte do elefante.

Mãe! Tenho uma lança de ferro que se mul-tiplicacomo o grão de milho,como o grão de trigo,como qualquer semente.

Aquele que tu visteacorrentadoe por quem choraste,

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como se as correntes prendessem e ferissemas tuas mãos, os teus pés.O teu filho já é livre, Mãe!O teu filho tem uma lança de ferroque se multiplicacomo a semente!

A minha lança de ferroque já é uma hoste de homensvai restituir o povo à tua terra, Mãe!

É por mim que também luto, Mãe!Para que a vida sejapalavra,semente apenas.

A minha lança de ferro,aquela que eu conquisteié o meu braço lançadopelo teu amor, minha Mãe!

É Cristo, crucificado,a minha segunda lança!(CINATTI, 1986, p. 73)

A epígrafe com a qual o excerto tem início faz re-ferência a uma crença popular de origem africana sobre o poder da lança. A proposição assegura que não é a lan-ça física que tem o poder de matar o elefante, mas sim a intenção de quem a manuseia, que é, metaforicamente, a segunda lança, esta dona do poder de tirar a vida do outro. Na última estrofe, a lança reaparece, dessa vez como Jesus, representando a palavra de Deus, a segunda lança do poe-ta.

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A lança nos remete à célebre cena bíblica em que um soldado romano fere Jesus com esta arma para certifi-car-se da morte do Messias, como vemos em João 19:34: “Mas um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água”. Há, ainda, mais referências bíblicas nesta parte do poema. Na primeira estrofe, temos a “lança de ferro que se multiplica como o grão de milho, como o grão de trigo”, o que nos lembra a parábola do semeador, na qual a pala-vra de Deus, representada metaforicamente pela semen-te, quando encontra terra boa, dá frutos e se multiplica “a cem, a sessenta e a trinta por um” (Mateus, 13:8). Tal alusão fica evidente nos versos “O teu filho tem uma lança de ferro/ que se multiplica / como a semente!/ (...) / Para que a vida seja / palavra, / semente apenas”. (CINATTI, 1986, p. 73).

Notamos que as imagens bíblicas são marcantes em Sete septetos, no entanto, o poeta nem sempre as trará em seu sentido bíblico como vemos em alguns dos poemas investigados. O próprio Cinatti afirmou em uma entre-vista que ele não é um “poeta católico”, mas um “católico poeta”, ou seja, ele não é um poeta religioso, mas um reli-gioso que faz poesia.

Sua literatura não é de catequese. Porém, o poeta se revela através da sua religiosidade. Ruy Cinatti não pretende ser um poeta missionário, mas um missionário poeta.

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Referências bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

CINATTI, Ruy. Antologia poética. Organização e posfá-cio: Joaquim Manuel Magalhães. Editorial Presença: Lis-boa, 1986.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicio-nário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Obje-tiva, 2009.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

PORTUGAL, José Blanc de. Crítica literária. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1967.

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Sete septetos, publicado em 1967, destaca-se previamente por seu título. Dentro da concepção bíblica o número “sete” conota realização, perdão e ainda refere-se à questão do ciclo. Assim, a Bíblia apresenta o “sete” como um número perfeito, indi-cando que este estaria presente desde a criação do mundo até o juízo final. Além do título, o livro tam-bém recebeu sete divisões. Já a palavra “septetos” faz alusão a uma composição musical regida por sete vozes ou instrumentos. Por isso, acreditamos que a escolha por esse título foi intencional, no sentido de comparar a criação divina com o fazer poético.

Em cada septeto, percebemos uma relação possível com a tradição católica que compõe o su-jeito poético cinattiano. Dos elementos simbólicos inclusos na poética de Cinatti, ressaltaremos, em es-pecial, duas figuras emblemáticas que destacarão a limitação humana, o cego, e a corrupção de valores, D. Eufémia:

Ruy Cinatti: a teoria dos dois mundos em Sete septetos

Debora Silveira Estanislau Vieira

UniversidadeFederal de MinasGerais

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O passo alinhavado do cego,abatido pela ponta da bengala,é vermelho e branco quando ele passadeterminado, tatibitate o passo,alinhada a parede.[...]

Noite iluminada, clara,Não é o cego que a vê, mas está mais perto [...](CINATTI, 1986, p. 69)

Nesse “Primeiro septeto”, o poeta expõe a insufi-ciência da humanidade por meio de um personagem sim-bólico e intrigante: o cego. Esse personagem aparecerá em diversos momentos. No poema, o cego poderá ser confor-mado à perspectiva bíblica, ou seja, alguém destituído da luz, da clareza, do entendimento, como também assumi-rá em outros momentos a metáfora da condição humana desprovida do entendimento.

Outra personagem importante para demonstrar a condição pretensamente pecaminosa e corrupta da huma-nidade é denominada D. Eufémia, que recebe toda uma representação simbólica:

D. Eufémia, famosa beneméritada praça de Lisboa,agraciada com a gloriosacomenda da TransumânciaEspanhola,Negociava em cadáveresque exibia, solícita, numa cadeia de talhos

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dos supermercadosparoquiais. [...](CINATTI, 1986, p. 75)

Em “A Empresária ou o Segundo Arquétipo”, poema do qual foram retirados os versos acima, o poeta é irônico e critica as práticas do colonialismo. D. Eufé-mia tem a profissão de açougueiro de cadáveres. Assim pode-se fazer uma leitura ligada à colonização, na qual D. Eufémia vai comercializando os corpos para benefício próprio. O poema critica a metrópole que explora as co-lônias e, além disso, a condescendência da religião frente aos abusos cometidos pelo poder imperial, mostrando que os corpos eram comercializados nos “supermercados pa-roquiais”. Aqui o poeta continua ironizando: “[...] A tra-ma era sempre urdida ∕ com sacramentos, ∕ preces antigas, ∕ como manda a tradição [...]” (CINATTI, 1986, p. 77). É como se a colonização não tivesse um projeto específico, na verdade o interesse era de alcançar fiéis, uma missão maior, como mandava a tradição.

Há momentos do livro em que o poeta se põe como divindade. Mais uma vez o mundo religioso se transfigura no mundo poético. Essa dualidade tão presente em Sete septetos nos faz pensar na teoria dos dois mundos de Pla-tão. Segundo essa perspectiva, Platão nos apresenta dois mundos: mundo sensível e mundo inteligível, ou mundo das ideias. O grande filósofo, através de suas observações,

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percebeu que alguns fenômenos estavam em constante mudança, e havia algo que nunca se modificava. A primei-ra parte é o mundo dos sentidos, do qual não podemos ter senão um conhecimento aproximado ou imperfeito, já que deles fazemos uso. Nesse mundo dos sentidos os seres e as coisas são instáveis, simplesmente surgem e desaparecem. A segunda parte é o mundo inteligível, o mundo das ideias gerais, daquilo que é inalcançável. Assim, há na poética de Cinatti, em especial em Sete septetos, essa metáfora dos dois mundos, que seriam caracterizados como: mundo da tradição religiosa e mundo da liberdade poética; parece-nos que o poeta está sempre oscilando entre essas duas possi-bilidades.

O “Sétimo septeto” destaca ainda mais essa cos-movisão cristã. De início, ocorre a dedicatória “Para Nossa Senhora”. O poeta escolhe como musa inspiradora a Mãe de Cristo:

Mãe!Tenho uma lança de ferroque se multiplicacomo grão de milho,como o grão de trigo,como qualquer semente.

Aquele que tu visteacorrentadoe por quem choraste,como se as correntes prendessem e ferissemas tuas mãos, os teus pés [...](CINATTI, 1986, p. 79-80)

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Para evidenciar essa dicotomia entre o mundo da tradição religiosa e o mundo da liberdade poética, pode-mos observar o poema “A Segunda lança” (p. 79-81). A começar pelo título e pela temática da dor, o poeta se co-loca como um ser divinizado, o próprio Cristo, que carrega dentro de si a dor, as feridas e as correntes. A “lança de ferro” pode lembrar a lança que fere Cristo: “Contudo um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água” ( João 19:34); ou a lança que feriu o poe-ta, destinando-o a cumprir uma missão, libertar o povo timorense com a palavra. Dessa forma, pode-se perceber pelo menos duas lanças diferentes: a primeira lança seria a literal, pertencente à tribo dos Azandes (citada no poema) e a segunda lança seria a tarefa do poeta, dos que se con-fundem com a missão salvadora de Cristo; ambos, poeta e Jesus, foram feridos por ela para cumprir o destino: “O teu filho já é livre, Mãe ∕ O teu filho tem uma lança de ferro ∕ que se multiplica ∕ como semente! [...] / É Cristo, crucificado, / a minha segunda lança!” (CINATTI, 1986, p. 80).

Outro ponto importante nesse poema pode ser observado na ambiguidade da figura da mulher que pode representar Nossa Senhora, a cidade e/ou a pátria, a pro-genitora. Em: “Aquele que tu viste ∕ acorrentado ∕ e por quem choraste” (CINATTI, 1986, p. 79), a mãe assume a representação de Maria, a Mãe de Cristo. Já em “A minha

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lança de ferro ∕ que é já uma hoste de homens ∕ vai restituir o povo à tua terra, Mãe!”(CINATTI, 1986, p. 80), a mãe é personificada na pátria ou na cidade. Em ambas as situa-ções ela é apresentada como a progenitora, seja de Cristo, seja do poeta, seja da cidade ou da nação.

No poema a seguir, “O Mundo”, podemos perceber claramente a representação de Cristo, bem como o ques-tionamento do poeta sobre o seu sacrifício, o que resultou em sangue derramado, já que ainda existem escravos pe-nando, há desigualdade entre classes e tudo se mantém em desordem como outrora:

Raça de escravos penandona cidade,enquanto as folhas caeme renascemna cidade!E a verdade, sempre noiva,envelhecena cidade!

Valeu a pena o sangue derramado? [...](CINATTI, 1986, p. 78-79).

A crítica do poeta se intensifica nos versos seguin-tes: “Senhor, onde deixaste tua Mãe, ∕ agora que ressusci-taste? ∕ Foi em Belém?... ∕ No Calvário?... [...]” (CINAT-TI, 1986, p. 79), nos quais ele questiona o preço pago em detrimento da dor causada à Mãe (Nossa Senhora), assim como a “despreocupação” do Cristo com sua progenitora,

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a qual não se sabe onde foi deixada, se em Belém, lugar de nascimento, ou se no Calvário, lugar de morte. O poe-ta pergunta se valeu a pena o sangue derramado, mas de certa forma ele responde que a consequência do sangue derramado foram discussões entre doutores e procissões realizadas por padres: “E os doutores discutem ∕ nas as-sembleias ∕ da Cidade... ∕ E padres dirigem procissões / pela cidade... [...]” (CINATTI, 1986, p. 79). E a Mãe? O san-gue derramado ocasionou lamento e dor, em troca de uma humanidade que não compreende e nem sequer valoriza esse sacrifício.

Em virtude dos fatos mencionados foi possível compreender melhor a teoria dos dois mundos em Sete septetos. Essa teoria criada por Platão, mas readaptada em Cinatti, permitiu-nos comprovar a intersecção entre a tra-dição religiosa e a liberdade poética. Pensamos em “liber-dade poética”, já que Ruy Cinatti critica, ironiza e satiriza o discurso religioso, tal como se apresenta na Bíblia, numa clara demonstração de que a tradição sagrada pode ser questionada, adaptada e reconstruída poeticamente.

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Referências bibliográficas

BÍBLIA. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Al-meida. Rio de Janeiro: 1948. Editora SBB.

CINATTI, Ruy. Antologia poética. Organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães. Lisboa: Presença, 1986.

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