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Emilio Gennari As guerras sertanejas de Canudos e Contestado. Ao reproduzir este trabalho, cite a fonte.

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Page 1: As guerras sertanejas de Canudos e Contestado. · - “Parabéns... Por quê?”, indaga o ajudante entre a desconfiança e a possibilidade de ter se livrado de um trabalho

Emilio Gennari

As guerras sertanejas

de Canudos e Contestado.

Ao reproduzir este trabalho, cite a fonte.

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Índice

Apresentação 03

Introdução 04

1. O sertão nordestino entre a seca e o latifúndio 05

2. Antonio Conselheiro 09

3. De Canudos a Belo Monte: a luta pela vida 14

4. As primeiras expedições contra Belo Monte 20

5. O massacre de Canudos 25

6. A vida e as relações nas terras do Contestado 32

7. A construção da estrada de ferro e a atuação de José Maria 38

8. O reduto de Taquaruçu 43

9. Da vitória de Caraguatá às primeiras rendições 49

10. Os últimos suspiros da guerra sertaneja do Contestado 55

Bibliografia 59

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Apresentação.

Quando o peso da exploração aumenta a carga imposta à classe trabalhadora, muitos pensam

em desistir da luta. Pouco a pouco, o desânimo eleva o número de seus adeptos e alimenta em setores

cada vez mais amplos da população o desejo de deixar as coisas acontecerem.

Por não se oporem à correnteza criada pelos fatos, as pessoas se iludem com a possibilidade de

serem poupadas de sua força destruidora, sem perceber que a resignação fortalece o hábito de deixar

passar em silêncio as injustiças que preparam novos e mais pesados sofrimentos.

Preso neste vórtice que arrasta as frágeis esperanças de futuro, o senso comum procura refúgio

na indiferença, na repetição incansável de que as coisas são assim porque é natural que assim sejam,

ou nas lamúrias típicas de quem espera por uma mudança da qual quer aproveitar os benefícios, mas

em cuja construção não está disposto a se envolver.

Ao se desvincular de tudo o que extrapola a rotina diária entre casa, trabalho, escola, religião e

lazer, o mundo do cidadão comum se fecha diante de quem procura alertá-lo dos perigos iminentes. O

seu campo de visão se encurta e, dobrado sobre si mesmo, prefere não ver, não saber, ficar alheio a

tudo o que pode questionar as poucas e débeis seguranças que lhe servem de proteção.

Mas os problemas persistem. Tornam-se cada vez maiores. Avolumam-se a tal ponto que não

há solução sem mais dores e sofrimentos. Aflito, o senso comum busca ignorar o que cresce à sua

volta, pois, em sua visão mágica, o simples lembrar dos perigos ganha as feições de uma ameaça

direta à sua existência.

Felizmente, até mesmo quando o sonho de lutar por uma sociedade da qual seja banida toda

exploração do homem pelo homem parece algo totalmente fora de moda, ou quando as elites se

desdobram para desfigurar o compromisso de quem se nega a ser vítima silenciosa de sua dominação,

há sempre um pequeno barco que, apesar de sua fragilidade, teima em desafiar a correnteza. Nele

remam sem descanso homens e mulheres que procuram despertar os sentimentos de dignidade e

rebeldia que, aos poucos, plantam na garganta dos de baixo a vontade e a força de dizer “Não!” às

investidas que negam a possibilidade de um futuro melhor para todos.

Alimentada pela memória e tradição de luta do passado, esta obstinada tripulação usa a história

como mapa. Ao resgatar os desafios já enfrentados por sua classe, nossos navegantes buscam

aprimorar a percepção dos limites e das possibilidades do presente, certos de que os oprimidos abrirão

os olhos para enfrentar as corredeiras aparentemente instransponíveis que hoje abastecem a opulência

e a dominação de seus opressores.

Cientes do desafio imposto por esta tarefa e diante dos parcos meios de que dispõem, nossos

navegantes encarregam uma coruja de trazer até nós o resultado de seus estudos sobre as guerras

sertanejas de Canudos e Contestado. Através do relato desta sábia representante do mundo das aves,

nos adentraremos na realidade da época, tocaremos as formas peculiares através das quais as

populações envolvidas construíram sua resistência diante dos projetos da elite e acompanharemos as

preocupações do poder em destruir e desqualificar qualquer sinal de suas lutas.

Por isso, cedemos logo a palavra à Nádia, a coruja, para que nos conduza pelos caminhos da

história e ajude a reconstruir a ponte que une os anseios de mudança dos oprimidos de ontem, de hoje

e de sempre.

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Introdução.

Manhã de quinta-feira. As nuvens que cobrem a cidade dão à periferia o tom cinzento que

reflete nas paredes sem cor a sensação de tristeza de seus moradores. Resignados diante de sua própria

sorte, homens e mulheres de todas as idades se dirigem ao trabalho cotidiano torcendo para que São

Pedro segure a chuva por mais um tempo.

Entre os ruídos que acompanham esta desordenada movimentação de pessoas e sentimentos, os

ouvidos distinguem claramente o vociferar típico de uma discussão. Levadas pela curiosidade, as

pernas caminham em direção da janela aberta de uma casa através da qual os olhos assistem atônitos a

uma cena inesperada.

Sentado a mesa, um homem alto e corpulento gesticula animadamente enquanto as palavras

que saem de sua boca traduzem em alto e bom som a negação anunciada pelo menear da cabeça. Em

pé diante dele, com ar decidido e a asa direita apontada para o peito de quem chama de secretário,

uma pequena coruja arregala os olhos e, sem se deixar intimidar pelo tamanho do seu oponente,

ordena:

- “Escreva: Canudos e Contestado!”

- “Não! Não! E não!”, repete o homem com insistência ao mesmo tempo em que faz a caneta

tocar as penas da ave como quem, desembainhada a espada, se prepara para um duelo.

- “Você vai fazer isso sim! - retruca o pequeno ser sem recuar um único centímetro. Resgatar

os enfrentamentos que o povo sustentou para defender as comunidades por ele criadas vai ajudar as

pessoas a perceberem que, a partir de sua dignidade e rebeldia, é possível começar a enfrentar a

situação de morte e exploração em que vivem e dar sérias dores de cabeça aos poderosos que se

fartam às suas custas!”

Sem se dar por vencido, o rosto do secretário assume um ar de reprovação enquanto a boca

prepara palavras duras:

- “Nádia, você ficou louca?!? Quem é que vai se interessar pelos feitos de um bando de

jagunços fanáticos, atrasados e maltrapilhos, alucinados por líderes loucos, desequilibrados e lunáticos

que pregam idéias estranhas, contrárias aos progressos da sociedade de seu tempo e cujo único lugar

seguro seria o manicômio?!?”.

Certo de ter conseguido infligir uma estocada mortal na teimosa insistência da coruja, o

homem deita a caneta na resma de papel e aguarda com expressão irônica a resposta da ave.

Apoiando o queixo numa das asas, Nádia olha disfarçadamente para o alto com um sorriso

capaz de fazer balançar os adversários mais impertinentes. Alguns instantes de silêncio... Um longo

suspiro... E...

- “Parabéns! Você conseguiu!”, diz calmamente a ave.

- “Parabéns... Por quê?”, indaga o ajudante entre a desconfiança e a possibilidade de ter se

livrado de um trabalho.

- “Ora, querido bípede da espécie humana, porque você conseguiu reunir numa única frase os

principais adjetivos que a elite e seus meios de comunicação não cansavam de atribuir aos sertanejos

para semear entre a população as razões que justificariam a dura repressão a ser desencadeada contra

os dois movimentos. Não é uma novidade o fato que os de cima pintam como demônios os que

ameaçam seus interesses antes de desatar os golpes com os quais pretendem silenciar qualquer ato de

rebeldia. Desta forma, toda a responsabilidade pelos horrores cometidos em nome da lei e da ordem

vai recair nas próprias vítimas.

Conseguida esta façanha, ninguém se dá ao trabalho de perguntar as razões pelas quais simples

sertanejos empunharam as armas para defender suas comunidades das tropas oficiais. Menos ainda vai

aparecer alguém que queira saber por que resolveram construí-las, como conseguiram atrair tantos

adeptos e por qual razão era tão necessário destruí-las.

Por este caminho, a exploração que condena os de baixo a condições de vida insustentáveis é

ocultada pelas acusações de banditismo, fanatismo e loucura em nome das quais, as perseguições, os

massacres, as execuções sumárias e os demais meios empregados para silenciar a revolta dos

oprimidos ganham uma áurea de justo castigo para quem ousou desafiar os donos do poder”, conclui

Nádia com a seriedade de quem procura substituir confortáveis aparências pela compreensão mais

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profunda da história.

Desarmado e envergonhado, o secretário abaixa a cabeça em sinal de derrota.

Em silenciosa comemoração, a coruja começa a andar de um lado pra outro. Ave e homem

trocam olhares típicos de quem tem consciência de sua posição, até que, limpada a garganta, Nádia

assume definitivamente o papel de vencedora ao afirmar:

- “Escreva: Capítulo Primeiro...”

1. O sertão nordestino entre a seca e o latifúndio.

- “No século XIX – diz a coruja com a asa apontada para as folhas que aguardam as palavras

do seu relato – os viajantes que atravessam as regiões interioranas do nordeste brasileiro ficam

chocados diante da vida miserável dos seus habitantes. Em todos os municípios, o olhar se depara com

crianças raquíticas, mendigos com membros deformados, homens e mulheres vítimas de doenças

repugnantes.

Apesar das longas jornadas de trabalho sob um sol escaldante, a fome nunca deixa de sentar à

mesa de mais de 80% das famílias sertanejas. Um prato diário de angu de farinha de mandioca

misturado com gordura de cabra é o cardápio que os pobres só podem se permitir em anos de maior

prosperidade. Some isso às dificuldades de acesso à água potável, à precariedade das condições

higiênicas e às disputas sangrentas pela propriedade da terra e não terá problemas em explicar os altos

índices de mortalidade que afligem a região.

É sobre esta base que, tanto o Império, como a República, tecem suas redes de lealdade

política com os senhores locais. Recursos fiscais, concessões de verbas, empréstimos, decisões

favoráveis para a construção de obras públicas e, quando necessário, até o uso de tropas oficias são a

moeda de troca com a qual se fortalece a dependência dos governos central e provincial em relação

aos proprietários locais aos quais cabe a efetiva administração das regiões de cada província.

Além de estimular a corrupção, a busca desenfreada de vantagens financeiras e as constantes

rivalidades políticas, esta situação faz com que, no sertão, a própria justiça seja aplicada por jagunços

contratados por fazendeiros e latifundiários.

Em outras palavras, mesmo sob o governo da República, a máquina administrativa do Estado

fecha os olhos diante das formas pelas quais os coronéis constroem e mantêm uma ordem social

dirigida a favorecer os seus interesses. Em contrapartida, os chefes locais costuram alianças com os

políticos que integram esta máquina conseguindo, à custa de fraudes e intimidações brutais, os votos

de que precisam para se eleger, e, quando isso lhes é requisitado, fazendo contribuições respeitáveis

para garantir a presença de seus representantes no governo do Estado.

O controle quase absoluto dos latifundiários sobre suas áreas de influência leva a população a

dançar conforme a música e a buscar relações amistosas com a elite local. Trata-se, enfim, de conviver

com a exploração com um sentimento que, via de regra, varia entre a submissão resignada e a dívida

de gratidão diante das ações que conferem um semblante caridoso aos proprietários que procuram a

fidelidade dos subordinados ora através do compadrio, ora de favores distribuídos de forma seletiva”.

- “Até agora, não ouvi você falar da seca. Será que a falta de chuva não é o elemento central

para explicar a pobreza da população?” – irrompe o secretário sem fazer cerimônias.

A coruja sorri, pisca os olhos e sem titubear responde:

- “Os seres da sua espécie têm a estranha capacidade de trocar vaga-lumes por faróis de milha

e acabam atribuindo aos caprichos da natureza a responsabilidade pelas desgraças que deveria ser

procurada nas relações que estabelecem entre eles mesmos. Pois, uma coisa é dizer que o problema é a

seca e outra, bem diferente, é afirmar que a escassez de água apenas vem agravar e evidenciar a

realidade de miséria na qual vive o povo simples.

Ninguém duvida que as secas de 1844-1846, 1869-1870, 1877-1879 e 1888-1889, ampliam a

miséria e expulsam multidões de sertanejos para o litoral e as regiões norte e sudeste. O problema é

que a carestia não dá trégua nem mesmo quando as chuvas obedecem ao ritmo normal da natureza da

região. Ou seja, a razão fundamental de tanta pobreza não deve ser atribuída a São Pedro, mas sim aos

proprietários de terras cuja sede de riqueza e de poder retira da maior parte da população as condições

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básicas para plantar, colher e viver.

Não podemos esquecer que o monopólio da terra no Brasil vem de longe, deste antes da

colonização portuguesa. Em 1494, ao assinar o Tratado de Tordesilhas, os reinos de Espanha e

Portugal dividem entre si a propriedade do continente. Com isto, é a coroa a ter o poder de doar

extensões enormes do território nacional às pessoas julgadas merecedoras desta dádiva. É assim que

nobres e homens diretamente ligados à corte concentram em suas mãos parcelas significativas de terra

mesmo que não tenham a menor condição de controlá-las e fazê-las frutificar.

Após quase três séculos, o país conta com uma grande quantidade de regiões oficialmente

desocupadas e desabitadas. Diante da necessidade de aumentar os recursos de seu cofre, o império se

preocupa em fazer com que estes territórios não estejam demasiado disponíveis a qualquer pessoa que

tenha interesse em ocupá-los, mas sim que sejam vendidos a caro preço.

A expansão da cafeicultura proporciona ao governo o momento ideal para realizar este desejo.

A elevação das quantias pagas pelos que querem comprar um pedaço de chão evita que trabalhadores

livres se transformem em proprietários fugindo da condição de vendedores de sua força de trabalho.

Ao aumentar o valor das terras e ao dificultar sua aquisição, a elite busca garantir um amplo

contingente de trabalhadores obrigados a se fixar em suas plantações para poder sobreviver.

É assim que, em 18 de setembro de 1850, é promulgada a lei N.º 601, mais conhecida como

Lei de Terras, que visa assegurar três objetivos básicos: 1. Proibir a aquisição de áreas por outro meio

que não seja a compra, extinguindo, de conseqüência, o regime de posse; 2. Impossibilitar que simples

colonos adquiram os lotes disponíveis ao vendê-los a caro preço, em leilão e mediante pagamento à

vista; 3. Usar os recursos assim obtidos para o financiamento da imigração destinada a substituir os

escravos nas lavouras após o fim do tráfico com a África.

Graças a esta medida, a propriedade fundiária se concentra cada vez mais nas mãos dos

fazendeiros, um grande número de pequenos proprietários e de posseiros é forçado a deixar suas

antigas lavouras para alimentar a quantidade de trabalhadores disponíveis e reduzir os salários a serem

pagos.

Neste contexto, em 1895, o governo da Bahia promulga a lei N.º 286 que estabelece como

devolutas, ou seja como desocupadas ou desabitadas, todas as terras que não são de uso público,

aquelas dos proprietários que não possuem um título legítimo, as posses que não estão fundamentadas

em documentos de valor legal e as áreas indígenas cujas aldeias foram extintas por lei ou acabaram

sendo abandonadas por seus habitantes. A esta norma, em 21 de agosto de 1897, a administração

baiana acrescenta a lei N.º 198 pela qual são consideradas devolutas todas as terras em relação às

quais não há qualquer título legal de propriedade e as que não vierem a ser legalizadas nos prazos

determinados.

Não é necessário ser especialista em questões agrárias para entender que a nova legislação

torna ainda mais precária a situação dos ocupantes pobres de terras familiares (que não dispõem de

documento que comprove a propriedade) e coloca seu futuro à mercê das pressões dos latifundiários e

das personagens politicamente influentes da região onde vivem.

É sobre esta base que vai se montando um cenário no qual a grande maioria dos trabalhadores

agrícolas vai passar a vida inteira como posseiros que devem favores em troca da frágil possibilidade

de manterem o seu acesso a terra, como meeiros obrigados a pagarem o aluguel do terreno tanto em

produtos como em trabalhos para os fazendeiros, como marginalizados constantemente a procura de

emprego e sujeitos a sofrer as penas previstas pelas leis contra a vadiagem, ou flutuando de um setor

para outro em condições que pouco se distanciam da indigência.

Se a isso somamos o fato de que quase todas as terras com acesso à água estão nas mãos dos

latifundiários, não é difícil entender que os períodos de seca só agravam o que já estava ruim

precipitando o povo simples numa situação de penúria insustentável.

- “O fim da escravidão, em maio de 1888, e a proclamação da República, em novembro de

1889... não ajudam a aliviar esta situação?!?” – questiona o secretário com ares de quem aposta nas

possibilidades de mudança trazidas pelos altos representantes da política do país.

- “É exatamente o contrário!” – retruca a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa esquerda.

- “Como assim?!?”.

- “Em primeiro lugar - diz Nádia com expressão compenetrada -, nem a extinção do trabalho

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escravo, nem o fim do império alteram a estrutura agrária e nada ameaça a existência do latifúndio.

Não há terra a ser destinada aos escravos recém-libertados e aos camponeses livres que continuam não

vendo saídas para a situação deplorável em que se encontram. Apesar de representarem um progresso

social, econômico e político para o país, as possibilidades de melhora para as camadas mais baixas da

sociedade são muito reduzidas.

De um lado, o novo regime costura uma aliança entre os empresários da indústria e os

latifundiários (muitos deles ex-escravistas) para garantir a coesão das elites e, de outro, a situação

econômica do nordeste se deteriora em função das dívidas do país e da participação da região na pauta

de exportações”.

- “Daria para ser um pouco mais clara...”

- “Vamos por partes - diz a ave ao apoiar o corpo numa pilha de livros. Contrariando o que

aconteceu em outros países quando da queda do regime monárquico, no Brasil o advento da República

não conta com o apoio popular e sequer desperta qualquer tipo de participação efetiva do povo

simples. Fruto da ofensiva das elites militares e civis, a mudança de regime não traz em seu bojo

nenhuma medida destinada a minorar os sofrimentos das camadas mais baixas da população.

Em sua disputa pelo poder, empresários e latifundiários passam longe de qualquer proposta

que guarde relação com uma possível reforma agrária ou seja destinada a elevar a renda da classe

operária. Ao contrário, a importância crescente do café no conjunto das exportações brasileiras leva a

uma ulterior concentração das terras mais férteis e o lento processo de industrialização busca criar um

grande número de desocupados e desempregados como forma de reduzir os salários e elevar a

exploração.

Do ponto de vista dos direitos políticos, a Constituição de 1891 define como eleitor o cidadão

do sexo masculino, alfabetizado e maior de 21 anos. Além de negar às mulheres o direito ao voto, a

norma legal exclui a esmagadora maioria da população à qual o Estado continua não proporcionando

o acesso à educação básica. Em breves palavras, a Republica cria regras que continuam inviabilizando

na prática o aparente conteúdo democrático de suas formulações políticas.

O afastamento popular em relação ao novo regime ocorre também em função da separação

entre o Estado e a igreja. A liberalização da prática religiosa, a administração dos cemitérios pelas

autoridades municipais, a obrigatoriedade do registro de nascimento e do casamento civil são medidas

que, além de execradas pelo clero católico, ferem o sentimento religioso. Ao promover a

dessacralização do mundo, o caráter leigo da República encontra a resistência de quem, por séculos,

havia aprendido a respeitar e reverenciar o imperador como representante de Deus na terra e defensor

da religião entre os homens. Este choque cultural aglutina setores da população que, diante da

perspectiva de seu ulterior empobrecimento, encontram na religião o elemento que dá identidade e

sentido à sua revolta contra as transformações políticas recém-introduzidas.

Se isso não bastasse, a fragilidade do equilíbrio de poder no interior do novo regime é

agravada pelos sérios problemas que afetam a economia do Brasil. Apesar da grande quantidade de

produtos agrícolas vendidos no mercado mundial, o país continua importando mais do que consegue

vender. Além de elevar as dívidas com a Inglaterra, o governo não tem recursos suficientes para

investir no desenvolvimento de todas as regiões e passa a privilegiar as áreas que mais participam da

pauta de exportações. Estamos falando, por exemplo, de obras de infra-estrutura como estradas de

ferro, redes de telégrafos, melhorias dos portos e ações destinadas ao aproveitamento das vias fluviais.

Com o café representando 61,5% do total comercializado com o exterior, o centro-sul do país acaba

concentrando as verbas destinadas a fortalecer a balança comercial.

Na última década do século XIX, a economia nordestina, baseada na produção de açúcar e

cacau, encontra-se em franca decadência. A participação da Bahia nas exportações nacionais não

passa de 5% e a sua elite não conta com grandes recursos do governo federal. A saída encontrada

pelas administrações locais vai no sentido de elevar a carga de tributos a serem cobrados da população

mais desprotegida já que ninguém ousa impô-los a coronéis e fazendeiros. É assim que, nas feiras

realizadas neste Estado, quem quiser expor e vender produtos deve pagar as taxas impostas pelos

arrecadadores.

Esta situação é agravada pela política financeira adotada pelo regime republicano. Rui

Barbosa, o primeiro a ocupar o cargo de Ministro da Fazenda, autoriza uma emissão desenfreada de

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papel moeda como forma de arcar com os compromissos e as dívidas do Estado. Esta medida dá

origem a um progressivo aumento dos preços que faz disparar o custo de vida. De 1888 a 1890, os

gêneros de primeira necessidade são 62% mais caros e, de 1891 a 1894, a inflação atinge 118%, um

verdadeiro golpe baixo na luta pela sobrevivência dos setores mais empobrecidos. 1

Para o mundo sertanejo, estas transformações significam uma mudança para pior. Diante do

agravar-se da situação de miséria, os ideais republicanos retratados nos discursos indecifráveis e

arrogantes das elites não fazem nenhum sentido para a população pobre da Bahia e do nordeste. Na

base da pirâmide social, as expressões que apelam à volta da monarquia não têm como motivo

inspirador a identidade política do povo com o imperador, mas tão somente a percepção de que, por

mal que estivessem, as coisas não eram tão ruins como sob o novo regime”.

Um breve instante de silêncio se estabelece entre a coruja e seu secretário. As mãos ainda

escrevem as últimas palavras quando a língua deixa escapar uma pergunta:

- “Nádia, se é verdade que a miséria do sertão nordestino deita raízes profundas já na época do

Império, como é que o povo não reagiu antes aos desmandos das elites?”.

- “Bom, pra início de conversa, vale a pena esclarecer que, durante a escravidão, assistimos

sim a inúmeras lutas levadas adiante por escravos insurretos. O que precisa explicar, portanto, é

porque homens e mulheres livres, que vivem na pobreza, têm reações que se colocam bem aquém do

esperado em termos de revolta.

Neste sentido, além dos vínculos de compadrio com coronéis e fazendeiros da região (que

criam relações de dependência e fidelidade) e das necessidades impostas pela sobrevivência, a religião

desempenha um papel fundamental na manutenção da paz social. A grande maioria da população

sertaneja vivencia um catolicismo por ela mesma produzido diante das dificuldades e das crescentes

amarguras do dia-a-dia. Neste se misturam uma resistência estóica aos sofrimentos com a resignação

trazida por esperanças que Deus, a Virgem Maria e os santos protetores irão intervir para o sertanejo

não sucumbir diante dos desafios da vida, vista como um vale de lágrimas.

Nas áreas mais afastadas do litoral e dos grandes centros do interior, os moradores acreditam

que os infortúnios são o resultado da não aceitação do destino pré-determinado de cada um. A seca, a

fome e as doenças são vistas como uma resposta divina a esta atitude e, neste sentido, a própria

subjugação política passa a ser aceita sem maiores protestos. Este conjunto de crenças leva à

percepção de que o ser humano não tem controle sobre os acontecimentos que mudam o rumo da sua

existência e à convicção de que se Deus está mandando o sofrimento é necessário que o povo ore e se

sacrifique ainda mais para merecer as suas bênçãos. As romarias, as procissões e a própria

autoflagelação expressam os desejos intensos que nascem do sofrimento cotidiano e são os meios

pelos quais os sertanejos buscam a purificação do corpo e do espírito, anseiam a obtenção do céu dos

favores que não conseguem na terra e reúnem forças para superar as dificuldades confiando na

proteção divina.

Quando as orações e os demais rituais falham, os devotos sertanejos culpam a si mesmos,

prometem mais abnegação e sofrimento, e apesar das duras provações, homens e mulheres sentem que

suas preces são atendidas toda vez que a chuva cai e faz a terra florescer. As famílias se reúnem,

retornam às terras abandonadas nos períodos de seca, plantam graças aos créditos conseguidos juntos

aos proprietários rurais (que alimentam assim o círculo vicioso de dívidas e obrigações) e vêem o

momento de relativa prosperidade como uma dádiva de Deus que eles não merecem.

Apesar das aparências, o conjunto destas crenças não leva os devotos a enfrentarem a vida com

um sentimento de completa resignação. Se, de um lado, a fé na intervenção das forças sobrenaturais

reduz a necessidade de formas mais aprimoradas de controle político, de outro, a luta e o trabalho

árduo para vencer os obstáculos, o sacrifício pessoal, a partilha dos poucos recursos disponíveis com

parentes distantes ou com vizinhos mais necessitados, revelam aspectos nem sempre evidentes da

religiosidade sertaneja. Quando o dilema central é saber o que Deus deseja do homem para libertá-lo

da insegurança cotidiana que ameaça a sua sobrevivência, em determinadas condições, a religião pode

vir a ser a fonte inspiradora de um mundo novo.

Neste contexto, a expressão se Deus quiser, que encerra a maioria das frases pronunciadas pelo

1 Dados publicados em José Rivair Macedo e Mário Maestri (16), pg. 36.

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povo simples, pode deixar de significar mera submissão à realidade como fruto dos desígnios divinos

ou apoio destes aos projetos das elites no poder. Deus pode não querer determinadas coisas e apontar

outras. Na medida em que isso passa a ser vivenciado coletivamente, tende a ganhar cores e formas

que escapam do controle da ordem dominante e se transformam numa ameaça à manutenção da

mesma”.

- “A hierarquia da igreja católica participa deste processo?”

- “Nada disso – afirma a coruja ao reforçar suas palavras com o menear da cabeça. Ainda que,

neste momento, bispos e padres estejam em rota de colisão com as reformas introduzidas pela

República, eles não têm interesse e inserção suficientes para sequer sugerir esta possibilidade. Todos

os estudos evidenciam uma igreja distante das regiões interioranas. Na Bahia, Estado onde se dará a

guerra sertaneja de Canudos, das 190 paróquias existentes em 1887, 124 não dispõem de um padre

que viva nelas e 80 destas últimas só conhecem a presença de um sacerdote a cada 3 ou 4 anos quando

o vigário ou seus assistentes resolvem passar nas fazendas mais afastadas com o intuito de promover

batizados, casamentos, confissões e celebrar missas. 2

Além das inúmeras vezes em que estas visitas são canceladas, o fato dos rituais acontecerem

sob o olhar atento dos coronéis impede qualquer crítica à atuação destes. Se isso não bastasse, o

próprio esforço iniciado pela igreja católica do Brasil, em 1883, para melhorar a qualidade do clero

local visa combater o avanço de protestantes, espíritas e maçons nas áreas interioranas, abafar a ação

de grupos que estejam dispostos a apoiar a secularização do Estado, combater os desvio do

catolicismo local, mas passa longe de colocar o dedo nas feridas que condenam à miséria centenas de

milhares de pessoas.

De tempos em tempos, as lacunas deixadas pela ausência de um vigário são supridas por

missionários errantes que andam pelas regiões mais remotas e empobrecidas. O problema é que a

maioria deles, oriundos da Itália e da Alemanha, não fala a língua local o tanto que basta para serem

entendidos pelo povo, razão pela qual este esforço acaba sendo totalmente perdido.

O vácuo deixado pela igreja oficial é ocupado pelos beatos, ou seja, por religiosos seculares,

andarilhos e leigos que adotam uma vida de penitências e cujas pregações, terços, celebrações imitam

o comportamento dos padres e fazem avançar a religiosidade popular. O sacrifício e a dedicação em

patamares superiores aos que são vivenciados pela população, atribuem a estas pessoas uma áurea de

superioridade moral e de nobreza que, além de destacá-las entre seus pares, ganha o apoio e a

confiança dos sertanejos.

É neste contexto que, após percorrer uma ampla região do sertão nordestino, um peregrino que

ganha fama e respeito pelos seus conselhos e pela vida ascética que conduz funda no interior da Bahia

uma comunidade que passará a ser conhecida no país inteiro. Vamos tratar disso no próximo capítulo

ao falar justamente desta personagem controversa que responde pelo nome de...”

2. Antonio Conselheiro.

Enquanto o secretário se entrega a uma longa e deliciosa espreguiçada, a coruja, com o queixo

apoiado na ponta da asa esquerda, permanece pensativa por alguns instantes. O ritmado piscar dos

olhos e o franzir das plumas que cobrem o rosto revelam o esforço de rememorar os acontecimentos

que permitem compreender a figura de Antonio Conselheiro. Aos poucos, gestos silenciosos e

movimentos quase imperceptíveis do bico parecem abrir caminhos às palavras destinadas a delinear a

liderança e as escolhas por ele operadas no sertão nordestino.

Finalmente, Nádia pára, emite um longo suspiro e, apontando para a caneta deitada entre as

folhas, diz:

- “O melhor caminho para entender o fundador de Canudos não passa pelo detalhamento de

sua biografia, mas sim pela reconstrução dos aspectos que o aproximam e o fazem dialogar

profundamente com o mundo sertanejo. Por isso, após recuperar brevemente alguns dados que

marcam passagens importantes da sua vida, vamos nos dedicar à tarefa de compreender a prática e a

2 Dados publicados em Robert M. Levine (13), pg. 66.

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postura deste peregrino que, por onde passa, ganha a admiração e o apoio do povo sofrido da região”.

- “Ainda bem...”, deixa escapar o ajudante que torce para ter seu trabalho reduzido ao mínimo

indispensável.

- “Pelos dados disponíveis – diz Nádia ao se movimentar sobre a mesa -, sabemos que Antonio

Vicente Mendes Maciel, que viria a ser conhecido como Antonio Conselheiro, nasce em

Quixeramobim (província do Ceará), no começo de 1828. Filho de comerciante, aprende a ler e a

escrever com um dos amigos do pai sendo reconhecido como aluno sagaz e estudioso.

A sua infância e adolescência são influenciadas pelas lutas sangrentas entre as famílias Araújo

e Maciel. Tendo como fator determinante as disputas por terras e poder político, os Macieis levam a

pior. Através da longa série de enfrentamentos e vinganças que produzem este desfecho, Antonio se

depara com a parcialidade da justiça, a impunidade dos poderosos e as relações de poder que

prevalecem no sertão e nas quais o Estado está sempre do lado dos mais fortes.

É nesta fase difícil que ele conhece a figura que vai influenciar sua formação e com a qual se

encontrará após 1865. Trata-se de José Antonio Pereira Ibiapina, juiz da comarca de Quixeramobim,

que, em vários momentos, se coloca ao lado de sua família e, em 1853, abraça a carreira sacerdotal.

Após ensinar eloqüência sagrada no seminário de Olinda e exercer o cargo de vigário geral do

bispado, o Padre Ibiapina se torna missionário itinerante. Em 28 anos de atividades, percorre os

sertões do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte recolhendo esmolas e materiais de construção para

fundar casas de caridade, levantar igrejas, cemitérios e hospitais. Durante a seca de 1877, dedica seus

esforços a cuidar dos retirantes e chega a ser considerado um homem santo. A morte o encontra em 19

de fevereiro de 1885, na Paraíba, numa das instituições por ele fundadas.

Voltando agora a Antonio Maciel, os historiadores registram que, em 1º de janeiro de 1857, se

casa com Brasilina Laurentina de Lima e se muda para a Fazenda do Tigre, perto de Quixeramobim,

onde abre uma escola primária. Algum tempo após o nascimento do primeiro filho, deixa a fazenda

em direção a Tamboril e, daí, para Campo Grande onde encontra emprego numa casa comercial. Com

a mudança de profissão do dono do estabelecimento, o desemprego bate à sua porta justo na hora em

que nasce o segundo filho. Pressionado pelas dificuldades, tenta ganhar a vida como advogado

provisionado, ou seja, como indivíduo que, apesar de não ser formado em direito, tem permissão para

advogar.

Em 1861, se muda para Ipu onde continua a exercer a mesma profissão. Ao tomar

conhecimento da infidelidade da esposa, ou ter sido abandonado por ela, deixa a cidade para se

instalar na Fazenda Santo Amaro, no termo do Tamboril onde volta a se dedicar ao magistério.

Amargurado com a traição da mulher e indisposto com as autoridades locais por defender no fórum as

vítimas da prepotência dos poderosos, Antonio Maciel deixa o povoado e, por dois anos, passa a viver

em Santa Quitéria.

No arraial, conhece Joana Imaginária, uma mulher que ganha a vida esculpindo imagens de

santos em barro e madeira. Desta relação, nasce um filho, mas, apesar dos laços que se estabelecem

entre os dois, Joana se recusa a seguir o homem que ama quando este, em 1865, inicia, já como

pregador, uma longa peregrinação pelo sertão do Ceará. Ao que tudo indica, neste período, Antonio

teria reencontrado o Padre Ibiapina seguindo-o durante algum tempo e tomando-o como exemplo para

a vida que adotaria anos depois.

As mudanças de residências e o passar por vários municípios do sertão levam o futuro líder de

Canudos a entrar em contato com a realidade e os sofrimentos dos camponeses, com as injustiças dos

latifundiários e com uma forma peculiar de lidar com as necessidades e a religiosidade do povo. Por

estas razões, mais do que um lunático e alucinado, Antonio Maciel é um profundo conhecedor do

sertão e um homem capaz de dialogar com os mais simples”.

- “Sabe, Nádia, o que ainda não está claro é o que ele faz durante as andanças pelo interior do

nordeste...”, aponta o secretário empurrado pela curiosidade.

- “Calma! Uma coisa de cada vez – responde a coruja com um gesto que parece frear a pressa

do seu ajudante. Ao contrário do que contam muitas lendas a respeito de Antonio Conselheiro, ele não

faz milagres, não usurpa funções sacramentais próprias dos sacerdotes, não age como curandeiro, em

nenhum momento assume posturas típicas de um messias e nem se apresenta como um profeta. A sua

pregação religiosa se mantém no interior dos usos e costumes do catolicismo da época, acompanhado

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por conselhos morais e legais. A confiança que inspira as pessoas a procurarem sua orientação não

tem como base o discurso, mas sim a vida ascética alicerçada em rígidas regras de comportamento.

Usando como única vestimenta um hábito de brim americano azul, Antonio não come carne, se

alimenta de cereais, não dorme em camas ou redes, mas prefere uma mesa, um banco ou o próprio

chão duro, nos quais deita sem travesseiro ou coberta. O regime sóbrio e mortificante que assume se

manifesta até mesmo nos momentos de aceitar as esmolas que lhe são oferecidas. Ao contrário do que

costuma ocorrer com os demais beatos e peregrinos, ele só fica com quanto é estritamente necessário

ao seu sustento entregando a maior parte dos recursos para a ajuda dos necessitados e a construção de

igrejas e cemitérios.

- “Socorrer quem precisa e construir igrejas... até dá pra entender, mas... cemitérios?!? Pra que

gastar dinheiro com isso?”

- “O que para a sua cabecinha parece um verdadeiro absurdo – diz a ave sem se impacientar –

é justamente uma das atividades de maior impacto entre os moradores da região. Para a sociedade

sertaneja, o enterro é um rito extremamente importante a

tal ponto que, em alguns casos, as famílias chegam a

vender grande parte dos seus pertences para garantir um

lugar melhor ou uma cerimônia mais digna a um ente

querido que venha a falecer.

O problema está no fato de que, com o crescimento

da população, o elevado índice de mortalidade e a falta de

recursos para ampliar os cemitérios existentes, os mortos

neles enterrados são exumados após um par de anos e,

caso suas famílias não disponham de recursos para cobrir

as taxas cobradas, os restos mortais são levados para

ossuários comuns. Ao proporcionar mais espaço para as

sepulturas permanentes, o Conselheiro não só utiliza os

recursos disponíveis para atender uma necessidade

coletiva, como faz desta atitude um meio que aprofunda o

seu contato com o mundo e a religiosidade dos sertanejos.

Some todos estes elementos e entenderá porque as

pessoas paralisam as ocupações normais para se dirigir às

vilas nas quais o peregrino vai passar. E você sabe que

quando muita gente se vincula a um culto ou a um líder

religioso é porque, via de regra, há razões que superam o

âmbito da religião propriamente dita”.

- “O que você quer dizer com isso?”

- “Simples, querido bípede da espécie humana. Basta percorrer a trajetória pela qual Antonio

Mendes Maciel se transforma em Antonio Conselheiro para perceber que sua intervenção não se dá no

campo estritamente religioso, mas toca em aspectos que incomodam as elites locais.

Sabemos, por exemplo, que em suas pregações anteriores a maio de 1888, Antonio se

posiciona contra a escravidão que ainda marca presença em vários engenhos da região e, além de

condená-la, dá abrigo a negros fugitivos, transformando-se assim em problema para os proprietários

da região.

Apesar de não termos relatos sobre uma prática política propriamente dita, há vários indícios

de que o povo se aproxima do Conselheiro ao ver que suas pregações não se limitam a questões

espirituais descoladas da realidade social e que ele não pode ser confundido com um líder político

tradicional, fiel aos interesses e às práticas dos coronéis. Por isso, quanto maiores a resistência do

clero e a intervenção das autoridades policiais, mais aumenta o número de seguidores do peregrino.

Esta capacidade de aglutinar pessoas e desafiar alguns aspectos da ordem social transforma

Antonio numa ameaça. Não por acaso, suas atividades no sertão baiano são bruscamente

interrompidas em Itapicuru quando a polícia efetua a sua detenção sob a falsa acusação dele ter

matado a própria mãe e a mulher que o havia deixado. Imediatamente levado a Salvador, e daí para o

Ceará, o peregrino é acompanhada por um ofício enviado pelo secretário de segurança da Bahia,

Gravura de Antonio Conselheiro

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Vicente Paulo Descals Teles, em 5 de junho de 1876, que reconhece implicitamente a impossibilidade

de sustentar as razões que levaram à sua prisão. Após descrever o caso, o documento traz a

recomendação de que, mesmo depois de comprovar sua inocência, o Conselheiro seja impedido de

voltar à Bahia, pois seu retorno traria certamente resultados desagradáveis.

Constatada a improcedência da acusação, já que a mãe havia morrido quando Antonio tinha 6

anos e a ex-esposa permanecia viva, a justiça do Ceará o absolve. Libertado, o peregrino volta ao

sertão da Bahia onde sua chegada é festejada pelos antigos seguidores. Longe de desqualificá-lo

perante a população, as falsas acusações e a prisão o projetam como vítima inocente dos poderosos e

acabam fortalecendo o seu prestígio.

Na medida em que as pessoas voltam a se avolumar em volta dele, as autoridades eclesiásticas

começam a ficar apreensivas. Em 1882, o arcebispo da Bahia proíbe aos católicos de se reunirem para

ouvir as pregações do Conselheiro, mas suas determinações ficam sem efeito. A desobediência às

ordens superiores não tem sua origem na identificação dos padres com a pregação do peregrino, mas

tão somente na aceitação pura e simples de que é ele que as multidões querem ouvir e seguir. De um

lado, alguns sacerdotes procuram a convivência pacífica com ele ora para tentar obter dividendos

políticos, ora para garantir a reforma de cemitérios, capelas e a realização de obras de caridade; e, de

outro, como o Conselheiro nada pede para si e, em seus sermões, promove batizados, casamentos,

novenas, festas, desobrigas e demais celebrações que aumentam os magros recursos das paróquias do

interior, não são poucos os padres que julgam contraproducente obedecer às ordens do bispo.

Cinco anos depois, a diocese da Bahia investe novamente contra o peregrino. Em 11 de junho

de 1887, uma carta enviada ao presidente da província, João Capistrano Bandeira de Melo, traz um

pedido de providências diante da necessidade de conter o indivíduo Antonio Vicente Mendes Maciel

que, pregando doutrinas subversivas, faz grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de

suas obrigações e arrastando-o após si. 3

Se é verdade que pouco sabemos sobre as pregações do Conselheiro, sobretudo, quanto ao seu

conteúdo e alcance no que diz respeito à projeção de uma sociedade igualitária, é também verdade que

as reações das autoridades locais, dos fazendeiros e dos altos representantes da igreja oficial revelam

não se tratar de um beato qualquer ou de um pregador fanático. A elite demonstra saber que está

diante de alguém que, ao dialogar através da fé e da religião com as camadas mais pobres do sertão,

transforma o sonho de viver sem humilhações e sem sofrimentos num movimento que faz a ordem de

exploração vigente se sentir ameaçada pelos que sempre haviam baixado a cabeça em sinal de

resignada submissão”.

- “Mas, será que isso basta para justificar uma intervenção armada contra o Conselheiro e seus

seguidores? – pergunta o secretário na tentativa de adiantar o expediente.

- “A gota que faz o vaso transbordar – adverte Nádia sem alterar o tom e o ritmo do relato – cai

diante da reação do Conselheiro à elevada carga de impostos cobrada pelo governo da República.

O primeiro incidente ocorre em Chorrochó em cuja feira, de acordo com as normas legais, os

mercadores são obrigados a pagar dois impostos: um para expor os seus produtos e outro para pesá-los

e vendê-los. Valendo-se de sua autoridade, os oficiais cobram a quantia de 100 Reis de uma sertaneja

pelo uso de uma porção de terreno onde vai colocar uma esteira que, na avaliação da própria

vendedora, não vale mais do que 80 Reis. Ao comentar o acontecido numa de suas pregações, o

peregrino assim descreve o sentido daquela ocorrência que, horas antes, havia causado profunda

revolta entre os feirantes: Eis aí a República, o cativeiro, trabalhar somente para o governo. É a

escravidão anunciada pelos mapas [do recenseamento] que começa. Não viram a tia Benta [a

vendedora da esteira], é religiosa e branca, portanto a escravidão não respeita ninguém. 4

A condenação pública da política fiscal republicana é apenas o prelúdio do que vai acontecer

em 1893, na Vila de Bom Conselho. Como em todo o interior da Bahia, na falta de jornais, os editais

que anunciam a cobrança dos impostos municipais são afixados em painéis de madeira e expostos ao

conhecimento público nas praças ou em lugares onde costuma haver grande concentração de pessoas.

Ao tomar conhecimento dos mesmos, os conselheiristas arrancam as tábuas com os editais e

3 Trecho extraído de Edmundo Moniz (18), pg. 35.

4 Trecho extraído de Marco Antonio Villa (23), pg. 52.

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queimam tudo numa fogueira sob os olhares atentos das autoridades locais que não têm policiais

suficientes para reprimir o protesto. A insatisfação popular contra o que a nova ordem política traz em

termos de piora das condições de vida ganha neste gesto de rebeldia a sua primeira expressão pública.

Os pronunciamentos do Conselheiro a este respeito levam a população de vários municípios das

redondezas a agir de forma parecida. Mesmo não sabendo quantos povoados aderem a este

movimento de desobediência civil e quanto tempo este consegue resistir às pressões políticas e

policiais, a queima dos editais constitui uma transgressão da ordem que interpreta e materializa a

demanda popular de acabar com os impostos. Mas, para o poder constituído, destruir um bem público

e incentivar a população a desobedecer às autoridades é um delito que deve ser punido com rigor.

Cientes da gravidade do gesto, Antonio e seus seguidores abandonam a cidade. O governador

da Bahia, Rodrigues Lima, é prontamente avisado do acontecido pelo juiz de direito da comarca,

Arlindo Leone, que solicita o envio de tropas

a fim de reprimir o grupo. Atendendo ao

pedido, 35 praças, bem armadas e treinadas,

saem de Salvador sob o comando do tenente

Virgilio de Almeida ao qual é dada a ordem

de prender o Conselheiro e desbaratar sua

gente que não passaria de umas 200 pessoas.

Confiando numa vitória rápida, as

forças oficiais atacam os rebeldes em

Masseté, um pequeno povoado entre Cumbe e

Tucano. As informações relativas a este

confronto são poucas e imprecisas. O que se

sabe com certeza é que, na noite de 26 de

maio de 1893, a tropa é desbaratada pelos

conselheiristas com tiros de bacamartes,

porretes, facões e outras armas improvisadas.

A corajosa resistência dos sertanejos é

suficiente para garantir a vitória, mas não

para encerrar o episódio. Ao receber a notícia

da derrota, o governador solicita ao presidente da República, o Marechal Floriano Peixoto, ajuda

federal para combater os rebelados. Uma nova expedição com 80 soldados é montada às pressas e

enviada ao sertão baiano, mas, temendo que a repressão ao movimento alastre ainda mais a

inconformidade do povo do sertão, as autoridades decidem interromper a marcha dos soldados.

Assustada pelo potencial de desobediência civil dos fiéis sertanejos, a cúpula da igreja católica

da Bahia começa a se aproximar das autoridades do Estado republicano, duramente criticado quando

de suas primeiras medidas secularizantes, e dos coronéis, tão incomodados quanto ela pelo movimento

conselheirista.

Profundo conhecedor do sertão, Antonio Conselheiro procura um lugar para viver com sua

gente. Após longa e penosa caminhada, o peregrino chega com seus seguidores na Fazenda Velha,

uma área praticamente abandonada nas proximidades do povoado de Canudos".

- "Uma espécie de terra de ninguém...".

- "Na verdade - rebate a coruja ao parar diante do seu ajudante -, o lugar onde o Conselheiro

estabelece a sua comunidade pertence à baronesa de São Francisco do Conde, cujas melhores terras

estão na região do Recôncavo. Desconhecemos as razões pelas quais ela não se dispõe a investir nesta

área, mas não é difícil supor que guardam estreita relação com a estagnação da economia baiana,

agravada pela ocorrência das secas e pela distância o litoral.

Situado a cerca de 270 quilômetros de Salvador, o lugar é cercado por irregularidades do

relevo, por uma vegetação típica das regiões semi-áridas que, somada ao solo seco e, às vezes,

pedregoso, apresenta uma paisagem triste e monótona.

O estado em que se encontra o povoado não contribui para melhorar a impressão de desolação

e abandono. De acordo com os estudiosos, o nome do arraial vem de uma planta facilmente

Quadro retratando a pregação do Conselheiro

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encontrada nas imediações e conhecida pelo nome de canudos-de-pito por ser usada na fabricação de

uma espécie de cachimbo fumado pelos moradores. Em 1893, o local conta com cerca de 50 casebres,

erigidos nas imediações de uma velha igreja, que abrigam cerca de 250 pessoas envolvidas em

atividades de subsistência.

É neste cenário nada animador que o líder religioso funda o arraial de Belo Monte, nome que

traduz e registra a esperança daqueles sertanejos cuja vida, até então, só havia conhecido sofrimentos

e tristezas”, conclui a ave deixando pairar no ar um silêncio de reflexão e expectativa.

Cutucado pela vontade de se ver livre do trabalho, o secretário não consegue frear a língua que,

sem fazer cerimônias, solta uma nova pergunta:

- “E...será que vai dar pra saber logo o que vai ser deste povoado?”.

Impermeável a qualquer tentativa de apressar o relato, Nádia pisca os olhos e se dirige a passos

lentos para a base da pilha de livros que se ergue num canto da mesa. Senta. Recosta o corpo com o

cuidado de quem procura a melhor posição e, ao emitir um longo suspiro, diz:

- “A impaciência não costuma ser boa conselheira quando dedicamos nossos esforços para

entender os movimentos sociais que marcam a história. Por isso, no lugar de tentar se esquivar das

tarefas que o aguardam, seria melhor se conseguisse manter atentos os bilhões de neurônios de sua

massa cinzenta. Digo isso porque, em mais alguns instantes, vamos delinear as relações que se

desenvolvem nesta nova comunidade no próximo capítulo, cujo título é...”

3. De Canudos a Belo Monte: a luta pela vida.

Sem dar o braço a torcer, o ajudante se ajeita na cadeira. O seu rosto assume uma expressão

irônica, típica de quem se prepara para devolver com a mesma moeda uma repreensão considerada

injusta.

Impenetrável, a coruja observa atentamente cada um de seus movimentos com a simplicidade e

a firmeza oriundas de longas horas de estudo e pesquisa. Silenciosa, aguarda as palavras que a boca

humana está prestes a pronunciar. Um minuto depois, seus ouvidos captam os tons maliciosos da nova

questão:

- “Nas páginas anteriores, você disse que o Conselheiro é um profundo conhecedor do sertão

nordestino. Mas, pela descrição de Canudos, parece que a Fazenda Velha é um lugar inadequado à

construção de uma comunidade que almeja ser um sinal de esperança para aquele povo sofrido. Será

que ele não enfiou o pé na jaca ao escolher por sonho o que não passa de um pesadelo?”, questiona o

secretário ao secar as gotas de veneno que escorrem dos lábios.

- “O que mais me impressiona nos bípedes da sua espécie é a extraordinária capacidade de usar

jacas como sapatos sem perceber o desconforto deste tipo de calçados – retruca a ave num sorriso

sério e desconcertante. Se a sua preguiça crônica tivesse deixado você abrir um único mapa da região,

já teria percebido que, apesar da distância da estação ferroviária de Queimadas e da capital, o arraial

se encontra numa região por onde passam as estradas do Cambaio, Calumbi, Massacará, Jeremoabo,

Uauá e Juazeiro, Canabrava e Várzea da Ema. Ou seja, Belo Monte será erguida num cruzamento de

caminhos que, apesar das dificuldades de acesso oferecidas pela caatinga e pelas montanhas que

atravessam, colocam o povoado em comunicação com os principais municípios das redondezas e com

o vale do rio São Francisco, abrindo reais possibilidades de estabelecer relações comerciais.

Se isso não bastasse, o terreno escolhido fica nas margens do rio Vaza-Barris que entre

dezembro e maio, período das chuvas, alcança os 100 metros de largura e em cujo leito, no restante do

ano, basta escavar de três a quatro palmos para que a água surja do solo nas que os moradores locais

chamam de cacimbas.

Nas proximidades do arraial, é fácil encontrar o sal da terra, o salitre, em quantidade suficiente

para ser usado como tempero e como matéria-prima para os curtumes que utilizam também a casca da

favela, uma árvore tão abundante que chega a dar o nome ao morro em cujo sopé são construídas as

casas dos novos moradores. As folhas desta mesma planta, depois de secas, perdem suas

características urticantes e são usadas na alimentação do gado.

Estas condições, por si só, são suficientes para que Antonio Conselheiro use as esmolas

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recebidas a fim de introduzir a criação de cabras na vida econômica de Belo Monte. Por sua fertilidade

e capacidade de adaptação, este animal oferece não só leite e carne aos sertanejos, como uma

importante fonte de renda através da venda do seu couro. Não por acaso um número significativo de

moradores vai ser empregado na criação de cabras e nos curtumes cuja produção é comercializada nos

principais mercados da região.

Na faixa verde às margens do rio, os canudenses plantam roças de mandioca, milho, feijão,

batata, abóbora, cereais, cana-de-açúcar, melancia, enfim, o indispensável para buscar a auto-

sustentação do povoado. No centro do arraial, há forjas onde se fabricam foices, enxadas, facões e

outros objetos de uso comum, além de oficinas que consertam armas de fogo e produzem pólvora com

o enxofre trazido de Juazeiro.

A propriedade coletiva da terra, das pastagens, dos rebanhos, das plantações e o trabalho em

mutirão são elementos essenciais para vencer as adversidades do clima. Retirado o necessário para o

sustento, os recursos oriundos da venda dos excedentes, do comércio das peles de cabras e de parte

dos salários recebidos pelos moradores que se empregam nas fazendas vizinhas são depositados num

fundo comum destinado a manter a parcela da população que não tem condições de subsistir

dignamente pelo próprio trabalho.

Resumindo, em Canudos, há quanto basta para viver em condições melhores do que as

anteriores na medida em que os poucos recursos disponíveis são potencializados por uma organização

econômica alicerçada na responsabilidade de cada indivíduo pela manutenção da coletividade”.

- “E isso funciona...?”, indaga o secretário em busca de algo que justifique suas colocações

anteriores.

- “Tanto é verdade que funciona que, em pouco tempo, Belo Monte ganha fama de terra da

Área de influência do movimento conselheirista

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promissão. O consenso e a coesão das pessoas que vão se integrando à comunidade são garantidos

pela pregação religiosa do Conselheiro que define as linhas gerais do comportamento da população.

Ele próprio é quem resolve as disputas internas e, embora temido, nunca emprega a violência como

castigo. Além da ausência de autoridades policiais, coronéis e cobradores de impostos, o fato de

ninguém passar fome, o medo de serem expulsos do povoado, a proibição dos prostíbulos e das

bebidas alcoólicas garantem a redução dos conflitos e a manutenção de um clima de tranqüilidade e

trabalho. Prova disso é que em Belo Monte há uma cadeia que os moradores chamam de poeira por

estar sempre vazia.

Em caso de assassinato ou de alguém que procura escapar da justiça escondendo-se na

comunidade, o Conselheiro manda que este indivíduo seja expulso e entregue às autoridades da

comarca de Monte Santo para ser julgado de acordo com a lei. Esta tentativa de manter uma relação

de boa vizinhança com o

poder constituído cessa

totalmente após a primeira

expedição militar contra

Canudos e raramente se torna

uma via de mão dupla. Nos

períodos que antecedem as

investidas das tropas, muitos

homens leais ao líder de Belo

Monte são presos pelas forças

policiais acusados de

vadiagem ou pela simples

suspeita de serem procurados

por causas desconhecidas. É

com ações deste tipo que as

autoridades pressionam ou

manipulam os supostos réus

para que, ao acusarem outros

membros da comunidade,

dêem as razões de que a

polícia precisa para entrar no

arraial. Com o tempo, essa postura ganha o apoio das famílias mais abastadas da região que se

encarregam de espalhar boatos a respeito de supostos crimes cometidos pelos conselheiristas a fim de

criar um clima que justifique os abusos a serem cometidos.

Os moradores de Belo Monte são livres de ir e vir e ninguém é obrigado a participar dos

momentos de oração coletiva. A vida sexual dos habitantes não é rígida. O concubinato e as uniões

livres são tolerados e bastante difundidos. Casa quem quer e ninguém faz distinção entre mãe solteira

e a que tem filhos nascidos de uma união estável, entre um filho natural e um legítimo. Todos são

acolhidos e tratados sem discriminação.

Contrariamente ao que costuma ocorrer no sertão nordestino, a educação das crianças ganha

grande importância no interior do povoado. Antonio Conselheiro funda duas escolas e acompanha

pessoalmente o ensino estendido aos adultos que desejam aprender a ler e a escrever.

No arraial, circula livremente tanto o dinheiro do Império como o da República. Oriundo das

doações dos novos moradores, que depositam no caixa comum mais da metade de seus bens, de

esmolas e do comércio realizado com os municípios das redondezas, as duas moedas não têm

serventia nenhuma no interior da comunidade. Além dos princípios religiosos que dificultam a

acumulação e a ostentação da riqueza, as necessidades são supridas pela troca simples que dispensa o

uso do dinheiro. Por sua vez, a administração do povoado goza de tanto crédito que, quando

necessário para as compras nas cidades vizinhas, utiliza-se um vale impresso por Antonio Vila Nova,

o principal comerciante do arraial.

É por este conjunto de fatores que os caminhos para Belo Monte se enchem de crentes e

peregrinos que querem viver na comunidade do Conselheiro. Entre eles há brancos, negros, pardos,

Uma das raras fotos do arraial de Canudos

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cafuzos, mamelucos, indígenas, ex-escravos, oriundos de grupos étnicos e estratos sociais bastante

heterogêneos. Homens e mulheres de todas as idades e profissões são acolhidos sem distinção e

encontram aí refúgio e alívio para seus sofrimentos. Aos poucos, as casas desordenadamente

construídas chegam a ocupar uma área de 53 hectares. Em 1895, a população oscila entre 5.000 e

8.000 habitantes. Feitas de barro e madeira, as moradias têm cerca de 40 metros quadrados de área

dividida em 2 ou 3 cômodos. Os móveis são rústicos e improvisados com pedaços de lenha. Os

alimentos são preparados num fogão feito de 3 ou 4 pedras alinhadas e consumidos em pratos ou

recipientes de barro, madeira ou folhas-de-flandres. Longe de uma situação de luxo ou abundância, a

luta pela vida em Belo Monte se dá sob padrões bem conhecidos pelos pobres do sertão. A grande

diferença é que no arraial ninguém passa fome, não se recebem ordens dos manda-chuvas locais e a

solidariedade ajuda a vencer o desafio diário de derrotar as condições adversas que, na antiga

Canudos, produziam miséria e atraso”.

- “Também, com alguém que tem uma guarda armada e se faz passar por messias não deve ser

difícil botar ordem na bagunça”, insinua o ajudante ao recuperar parte da história oficial em tom de

aberta provocação.

- “Em primeiro lugar – retruca Nádia empenhada a frear a própria irritação -, a chamada

Guarda Católica, que constitui uma espécie de milícia permanente do Conselheiro, não cumpre

funções de polícia nem, muito menos, se dedica à repressão com a finalidade de manter a ordem.

Inicialmente composto por ex-soldados e por aqueles que se destacam no uso das armas, este

contingente é destinado à proteção das igrejas, da casa do Conselheiro e dos próprios moradores

contra as agressões que podem vir de fora do povoado. Na medida em que qualquer pessoa pode

entrar e sair da comunidade e que as tropas oficiais já atacaram os conselheiristas, nada impede que as

elites e suas forças armadas usem esta movimentação para organizar novas investidas. Daí a

necessidade de ter um grupo armado cuja prerrogativa é a defesa do arraial e não a repressão interna.

O número de pessoas que vai se dedicar às atividades militares aumenta após as primeiras

expedições contra Belo Monte e o armamento disponível (velhos mosquetes e bacamartes usados para

caçar, lanças, foices, estacas de madeira e ferramentas agrícolas) ganha em número e qualidade graças

à quantidade de suprimentos bélicos deixada nos campos de batalha pelas tropas oficiais em retirada.

Se a organização interna caminha para a construção de uma sociedade igualitária, isso se deve

não só à liderança do Conselheiro que, como já disse, exerce um papel fundamental, mas ao trabalho

árduo de dezenas de pessoas. Entre os nomes registrados pela história, está o de João Abade, um dos

comandantes da Guarda Católica, encarregado de acolher os recém-chegados e zelar pelo bem-estar

dos moradores como uma espécie de prefeito cuja autoridade e respeito vêm do envolvimento ativo e

criterioso na solução dos problemas coletivos.

Além dele, temos Manoel Quadros, profundo conhecedor da flora medicinal. É ele quem vai

assumir o papel de curandeiro da comunidade, tomando conta da farmácia, medicando os portadores

de alguma enfermidade e mantendo informado o Conselheiro sobre a situação dos doentes.

Antonio Bento, mais conhecido por Bentinho, dedica o seu tempo às funções religiosas e a

percorrer diariamente a cidade para conversar com os moradores, conhecer suas angústias e transmitir

ao Conselheiro um quadro preciso do que está ocorrendo em Belo Monte.

Para as funções tipicamente militares, temos os Macambiras, ambos com o nome de Joaquim.

Pelo conhecimento que detêm das trilhas e caminhos do sertão, o pai vai se destacar como hábil

organizador de emboscadas e o filho pela ação destemida na qual, com outros 10 combatentes,

procura apoderar-se de um canhão usado pelas tropas oficiais em ataques devastadores.

Ao lado deles, Antonio Fogueteiro, aliciador de combatentes; Chico Ema que dirige a rede de

espionagem nos povoados por onde passam as tropas do exército; e Pajeú, ex-soldado de linha,

escolhido pelo Conselheiro para comandar as ações militares nas quais se distingue sempre pela

capacidade de orientar os homens sob o seu comando, pela coragem e espírito de iniciativa nos

momentos mais difíceis.

Entre as mulheres, Maria Francisca de Vasconcelos e Marta Figueira são as professoras

encarregadas de dirigir as duas escolas e, durante os conflitos, trabalham incansavelmente para

socorrer os feridos. Ao lado delas, encontramos Maria Rita, de 18 anos, que troca a roupa de chita

pelo traje de couro dos combatentes e se destaca nos enfrentamentos pela coragem e pela pontaria, e

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Santinha que organiza um piquete feminino devidamente armado para recolher os feridos e levar para

o arraial os cadáveres dos sertanejos caídos em batalha.

Enfim, a construção de Belo Monte como comunidade ordeira e trabalhadora, pronta a

defender a vida que nela ganha as cores da igualdade e da autonomia, se torna possível não só pelos

fiéis ardorosos e abnegados que seguem o Conselheiro, mas por um conjunto de pessoas que assumem

esta tarefa e a ela se dedicam integralmente”.

- “E, quanto ao messianismo...?!?”, insiste o secretário num tom que insinua um esquecimento

proposital da coruja.

Nádia levanta e caminha vagarosamente em sua direção. Em seguida, olha para o alto, emite

um longo suspiro e, fixando o olhar no ajudante, aponta a asa direita em sua direção dizendo:

- “A sua cabeça-de-vento está muito enganada se acha que estou me furtando a entrar nesta

discussão cujos elementos têm servido para desqualificar a dedicação e o esforço popular despendidos

na construção de Belo Monte.

Neste sentido, não faltam interpretações que sublinham a existência entre os conselheiristas da

espera milenarista, ou seja, de uma crença numa idade futura em que todos os males seriam

corrigidos, as injustiças reparadas, as doenças curadas e a morte já não teria poder algum. O fato de

alguns moradores acreditarem nesta visão de futuro não significa que o Conselheiro e Belo Monte

assumam o milenarismo como identidade que orienta a vida no arraial.

De sua criação, em 1893, à sua destruição quatro anos mais tarde, não há elementos para

provar que os conselheiristas se consideram uma comunidade de eleitos à espera da salvação. Apesar

de ser um dos alicerces que garantem a união e a coesão dos sertanejos, a vivência das práticas

religiosas não está fundamentada nesta visão de mundo e da história.

Do mesmo modo, em todos os relatos da época, nas notícias dos jornais, nos documentos

oficiais, nos depoimentos e testemunhos de quem viveu ou ouviu falar de Belo Monte, não há

referência alguma a uma suposta liderança messiânica de Antonio Conselheiro. Só na última

expedição contra o arraial, os militares, intrigados com a tenacidade da resistência dos moradores,

procuram associar esta reação inesperada a alguma forma de fanatismo religioso.

Em seu trabalho jornalístico, o próprio Euclides da Cunha se depara com depoimentos que o

deixam intrigado na medida em que negam os pressupostos sobre os quais fundamenta a sua leitura

dos acontecimentos. Numa reportagem de 19 de agosto de 1897, quando a guerra ainda está em curso,

o autor de Os Sertões transcreve as palavras de Agostinho, um garoto de 14 anos capturado durante os

enfrentamentos e levado a Salvador como prisioneiro. Após descrever as principais figuras do arraial,

a organização econômica da comunidade e outros detalhes da vida em seu interior, o menino dá

respostas que deixam de queixo caído seus interlocutores. Diante delas, Euclides escreve: Terminamos

o longo interrogatório inquirindo acerca dos milagres do Conselheiro. Não os conhece, não os viu

nunca, nunca ouviu dizer que ele fazia milagres. E ao replicar um dos circunstantes que aquele

declarava que os jagunços mortos ressuscitariam, negou ainda. Mas o que promete ele afinal aos que

morrem? A resposta foi absolutamente inesperada: salvar a alma. 5 Com suas colocações, Agostinho

põe em cheque os argumentos que apontam o fanatismo religioso como a razão de ser da vida e da

luta dos conselheiristas.

Se isso não bastasse, analisando o conteúdo dos sermões do Conselheiro que chegaram até nós,

não é difícil constatar que suas reflexões não se distanciam do catolicismo tradicional e não

apresentam formas de messianismo. Neles encontramos citações bíblicas e dos Padres da igreja, como

Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e São João Crisóstomo, além da reafirmação de temas

clássicos do catolicismo como a importância da confissão, da missa e dos sacramentos que não se

distanciam da pregação da igreja oficial da época. O próprio Frei Evangelista de Monte Marciano,

enviado a Belo Monte com outros dois religiosos, acaba referendando esta interpretação, ele que seria

o maior interessado em apresentar como herética a prática do Conselheiro para fortalecer os

argumentos das forças que se opõem ao arraial.

Resumindo, podemos afirmar que o surgimento e a resistência de Belo Monte devem ser

procurados, de um lado, no fascínio exercido pela liderança do Conselheiro. O seu exemplo e os

5 Texto extraído de Marco Antonio Villa (23), pg. 240.

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profundos vínculos com a religiosidade do povo sofrido do sertão transformam o arraial na

concretização da esperança de vida e liberdade do sertanejo, oprimido pelo latifúndio, pelo Estado e

por uma igreja distante e ausente. De outro, a resistência dos conselheiristas demonstra o quanto este

projeto é assumido por toda a população que está disposta a defender com o próprio sangue as

conquistas consolidadas em Belo Monte”.

Com a testa apoiada na mão esquerda, o homem procura esconder a vergonha que seus olhos

revelam após as palavras da coruja. A direita ainda está traçando as últimas linhas quando os lábios

tentam redimir o secretário com uma nova questão:

- “Você acabou de falar da visita de um Frei a Canudos. Será que daria para aprofundar um

pouco mais este assunto...?”.

- “Com certeza! – afirma prontamente Nádia para não fazer pesar no ajudante o sentimento de

mais uma derrota. No processo de reaproximação ao Estado Republicano, a igreja baiana se dispõe a

tentar esvaziar a comunidade que se reúne em volta do Conselheiro.

Em 1895, Dom Jerônimo Tomé da Silva assume a direção da diocese da Bahia e recebe do

governador um ofício no qual o próprio Rodrigues Lima pede que seja organizada uma missão

religiosa com o objetivo de convencer o que ele chama de fanáticos a desertarem do arraial e voltarem

à obediência das leis e das autoridades do país.

O bispo aceita a incumbência e envia a Canudos uma missão formada por dois capuchinhos

italianos, Frei João Evangelista de Monte Marciano e Frei Caetano de São Leo. Os religiosos chegam

no dia 13 de maio e são cordialmente recebidos pelo Conselheiro que os convida a conhecer as obras

da nova igreja e os deixa livres de realizar a missão religiosa da qual estão incumbidos.

O abismo que separa as concepções dos freis do mundo sertanejo não aparece apenas nas

dificuldades do primeiro de se expressar em português e nos sermões prenhes de ameaças celestiais,

mas na própria forma de descrever as obrigações religiosas. Ao falar sobre a necessidade do jejum,

Frei João convida os conselheiristas a agirem com ponderação, pois, nessas ocasiões, a igreja permite

o uso de líquidos em quantidade moderada, uma xícara de café pela manhã e carne na janta. Os

costumes do país de origem do religioso não lhe permitem perceber que para sertanejos castigados

pela seca e a fome, o que a igreja oficial chama de jejum é, na verdade, um verdadeiro banquete.

Os padres se dedicam a confessar, batizar e casar sem que a comunidade revele sinais de

rejeição. Os problemas começam quando eles passam a defender o governo, condenam o fato dos

conselheiristas não se submeterem às leis e às autoridades, pregam contra as pessoas que andam

armadas pelo arraial e aconselham as famílias a abandonarem Canudos para voltar às terras de origem.

A reação dos moradores é imediata. Um coro reafirma o apoio de Belo Monte ao seu líder e o

clima esquenta ao redor dos religiosos. A calma é restabelecida pela pronta intervenção do

Conselheiro disposto a evitar qualquer ato de violência contra os freis, aos quais oferece todas as

garantias necessárias para continuarem a missão religiosa. Mas, no dia 20 de maio, os religiosos

deixam o arraial escoltados pela Guarda Católica que tem a missão de garantir sua incolumidade.

Diante do fracasso, Frei João transforma o relatório da missão num processo de

desqualificação da liderança do Conselheiro e da vivência dos moradores. Insiste na necessidade de

restabelecer no povoado dos Canudos o prestígio da lei, as garantias do culto católico e os nossos

foros de povo civilizado. Para ele, a seita político-religiosa estabelecida e entrincheirada nos

Canudos, não é só um foco de superstição e fanatismo e um pequeno cisma na igreja baiana; é,

principalmente, um núcleo de aparência desprezível, mas um tanto perigoso e funesto de ousada

resistência e hostilidade ao governo constituído do país. E conclui afirmando que é aquilo um estado

no Estado. 6 Em português claro, para restabelecer a ordem, o poder público deve, urgentemente,

destruir Belo Monte.

Não é necessário ser sociólogos ou cientistas políticos para entender que a tentativa do

Conselheiro de criar uma comunidade igualitária desperta o temor das elites que vivem da exploração

dos camponeses. A fama do líder carismático está se espalhando por toda a Bahia e já atinge outros

estados do nordeste. Ao tornar-se um referencial para os pobres do sertão, a antiga Canudos se

transforma numa ameaça real para os representantes do poder local e regional, temerosos que as idéias

6 As citações do relatório foram extraídas de Marco Antonio Villa (23), pg. 79.

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e o exemplo de Belo Monte possam dar vida a outras comunidades.

Diante das pressões que se avolumam, o conflito violento parece inevitável. É disso que vamos

tratar no quarto capítulo ao falar de...”

4. As primeiras expedições contra Belo Monte.

- “Bom, Nádia, costuma-se dizer que, para começar, toda guerra precisa de um pretexto –

afirma o secretário ao deixar no ar um clima de expectativa. Como é que a elite vai justificar um

ataque armado contra sertanejos pacíficos que trabalham para viver em paz?”.

- “A justificativa para a primeira expedição contra os conselheiristas será oferecida pelo juiz de

direito Arlindo Leone, o mesmo que havia assistido impotente à destruição dos editais que

anunciavam a cobrança de impostos.

Em outubro de 1896, o Conselheiro está prestes a terminar a nova igreja do arraial, destinada a

abrigar o crescente número de moradores e visitantes de Belo Monte. Com as paredes prontas, o líder

envia Joaquim Macambira a Juazeiro para negociar com o coronel João Evangelista Pereira de Melo a

compra das madeiras para o telhado. Paga a quantia necessária, espera que o material seja despachado

pelo rio São Francisco até Jacaré, onde seria retirado e levado a Belo Monte pelos conselheiristas.

Alegando falta de gente para transportar a carga, o coronel não entrega a mercadoria na data

marcada. Desejando terminar logo a construção, o Conselheiro manda avisar que, se o problema é a

falta de pessoal, ele enviaria o seu povo para retirá-la em Juazeiro. Não há nada que aponte no líder

uma atitude de ameaças, mas tão somente de cobrança e cumprimento de um acordo comercial.

Todavia, as suas palavras são maldosamente interpretadas não pelo coronel, mas sim pelo juiz

Arlindo Leone que, há tempo, queria dar uma lição aos conselheiristas. A notícia da vinda para

Juazeiro é transformada em boato pelo qual o próprio Conselheiro estaria se dirigindo à cidade à

frente de homens armados para uma expedição punitiva que castigaria o juiz e saquearia o comércio.

Aproveitando-se do temor que se apodera dos moradores, o juiz pede ao governador Luiz Viana que

tome providências imediatas para defender Juazeiro desta ameaça de invasão.

A resposta do governador, porém, não atende aos desejos de Leone, pois o primeiro promete o

socorro militar necessário só no caso dos boatos virem a se confirmar. Inconformado, o juiz procura o

general Frederico Sólon Ribeiro que envia um contingente de 100 soldados sob o comando do tenente

Manuel da Silva Pires Ferreira com a ordem de agir conforme a orientação do próprio juiz.

A tropa desembarca em Juazeiro no dia 7 de novembro de 1896 e encontra a cidade em

polvorosa, com muita gente querendo sair dos arredores por acreditar que os enfrentamentos seriam

iminentes. Mas, cinco dias depois, não há o menor sinal nem do líder de Belo Monte, nem dos

supostos jagunços que estariam a caminho com o intuito de devastar a cidade.

Arlindo Leone está em maus lençóis. Não só o ataque conselheirista não havia ocorrido, como

nada aponta que este possa se realizar. Por sua vez, Pires Ferreira não quer voltar a Salvador de mãos

abanando, sem a honra de uma vitória sobre os revoltosos e tendo que confessar a inutilidade da

expedição.

Ciente de poder contar com o apoio de Sólon, a saída encontrada pelo juiz parece resolver o

problema de ambos: já que o inimigo não aparece, é necessário procurá-lo em sua toca. Ou seja, se os

conselheiristas não vão até Juazeiro, será a tropa que aí se encontra a marchar em direção a Canudos.

Despreparada, sem conhecer a região e tendo que enfrentar cerca de 200 quilômetros de

terreno hostil e despovoado bem na época do estio, a expedição sai da cidade em 12 de novembro de

1896. Uma semana depois, o contingente chega em Uauá, cidade cujos habitantes, em sua maioria

partidários do Conselheiro, não vêem com bons olhos a presença dos militares e, antes da chegada

destes, se refugiam em Belo Monte levando informações preciosas sobre as tropas.

Na madrugada do dia 20, uma procissão de algumas centenas de pessoas se aproxima de Uauá

rezando, cantando e carregando uma grande cruz de madeira acompanhada pela bandeira do divino.

Temendo uma emboscada, os soldados reagem disparando ininterruptamente contra a

multidão. Os conselheiristas reagem. A Guarda Católica, armada de bacamartes, pistolas, facas,

facões, foices, forquilhas de madeira e machados dirige o ataque servindo-se de apitos com os quais

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comanda a execução de suas manobras.

Os enfrentamentos se prolongam por mais de cinco horas. Os soldados esgotam suas

munições, mas conseguem repelir os conselheiristas que, de acordo com algumas fontes, deixam mais

de 70 mortos e amargam um elevado número de feridos. Apesar da vitória, Pires Ferreira ordena a

retirada temendo a chegada de possíveis reforços frente aos quais os militares cansados, sem víveres e

sem munições não teriam condições de opor resistência.

Antes de deixar Uauá, os soldados saqueiam as casas, apanham dinheiro e objetos de valor e,

em seguida, incendeiam a cidade para castigar a população que havia se mostrado hostil à sua

presença. Em marcha forçada, a tropa volta a Juazeiro, faminta, com o fardamento rasgado e frustrada

por ter sido obrigada a uma retirada humilhante”.

- “O que não consigo entender – diz o secretário ao abrir os braços – é como uma procissão

pode derrotar um contingente do exército...?”.

- “Simples! – responde a coruja sem pestanejar. O fato é que não se trata de uma procissão de

beatos fanatizados prontos a combater confiando só na proteção divina, sem táticas e instruções

militares. De acordo com alguns historiadores, é difícil acreditar que idosos, mulheres e crianças

tenham vencido a centena de quilômetros que separa Belo Monte de Uauá a passo de procissão para

enfrentar um combate com tropas armadas de fuzis a repetição. Para eles, a hipótese mais provável é

que, sabendo da aproximação e da intenção dos militares, o Conselheiro tenha decidido enfrentá-los

num ataque inesperado fora do reduto. Desta forma, o grosso da procissão seria formado pela Guarda

Católica integrada por um núcleo militar disciplinado e selecionado, em volta do qual se articulam as

pessoas aptas a participar de um enfrentamento armado”.

- “Se, apesar de recuar, os conselheiristas conseguem fazer o exército se retirar, os comandos

militares não devem se conformar com uma situação tão incômoda...”, indaga o ajudante ao prever o

futuro desenrolar dos acontecimentos.

- “Você tem razão – confirma a ave ao fortalecer as palavras com o menear afirmativo da

cabeça. A derrota da expedição capitaneada por Pires Ferreira repercute intensamente no sertão e

chega a ter ressonância nas grandes cidades do país. Raras vezes, as forças repressivas do Estado

haviam sido derrotadas. A tradição de vitórias fáceis com a fuga dos revoltosos e a prisão dos líderes é

substituída por um enfrentamento no qual são os sertanejos a tomarem a iniciativa.

Os acontecimentos de Uauá não só elevam a popularidade do Conselheiro e a autoconfiança da

população de Belo Monte, como aumentam as levas de migrantes que se dirigem ao reduto. Ao

informar os superiores sobre a situação na cidade, o delegado de polícia de Pombal diz: A população

deste município e dos limítrofes ficarão reduzidas a menos da metade, tendo em vista os numerosos

grupos que têm saído em direção a Canudos. (...). Todos os dias chegam a esta vila notícias

verdadeiras trazidas por pessoas que moram à margem das estradas que conduzem a Canudos, da

passagem de grandes grupos de homens armados, que se dirigem para ali, no empenho por eles

confessado de se baterem e morrerem pelo seu Bom Jesus. 7

Enquanto o governador da Bahia ainda julga ser possível encontrar uma solução pacífica, o

general Frederico Sólon não aceita que o exército da República tenha sido vencido pelo que ele

considera não passar de um bando de jagunços. No seu entender, em Uauá, a Pátria e a República

haviam sido derrotadas e isso torna necessária uma ação punitiva rápida e esmagadora.

Com base nestas ponderações, é organizada uma segunda expedição sob o comando do major

Febrônio de Brito. O contingente conta com 600 homens, 3 metralhadoras, fuzis a repetição, dois

canhões e mais de um milhão de cartuchos, munição suficiente para matar toda a população baiana da

época.

Certa da vitória, a coluna deixa Queimadas em 12 de janeiro de 1897. A intenção do major é

de chegar em Canudos o mais rapidamente possível e, por isso, opta pela estrada que atravessa a serra

do Cambaio, caminho mais curto, mas certamente mais difícil. Para acelerar a marcha, deixa em

Monte Santo um terço das munições e não se preocupa em angariar maiores quantidades de

mantimentos junto aos proprietários locais. No entender de Febrônio, a destruição de Belo Monte seria

um passeio.

7 Trecho extraído de Marco Antonio Villa (23), pg. 146.

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Cientes da impossibilidade de enfrentar as tropas em campo aberto, os conselheiristas adotam

uma nova tática: aproveitar os acidentes do terreno para desgastar a tropa e desferir o golpe final antes

que a mesma chegue no arraial. Armados de espingardas antigas, os piquetes sertanejos usam pontas

de chifre, seixos rolados e pontas de prego como projéteis. Divididos em grupos de 20 a 30 homens,

esperam os soldados em pontos previamente estudados do terreno nos quais a caatinga e as montanhas

oferecem abrigos naturais de onde é possível atacar de surpresa para, em seguida, se retirar em

segurança. Desta forma, os revoltosos atacam duas vezes as tropas oficiais que, ao verem a sua

retirada, acreditam ter conseguido impor uma derrota.

Na medida em que as munições já não são tão fartas e os víveres começam a ficar escassos, os

oficiais se vêem forçados a apressar a marcha. Cansados e famintos, os soldados se aproximam de

Belo Monte. Antes de avistar o povoado, são recebidos a tiro pelos conselheiristas que, aproveitando

as trincheiras naturais formadas pelo terreno acidentado, desfecham o ataque definitivo.

Contando com um número reduzido de armas de fogo e munições, os sertanejos só dispararam

contra os soldados que estão a descoberto e ao alcance de seus fuzis rudimentares. Para driblar a

dificuldade de recarregar os bacamartes, se reúnem em grupos de 3 a 4 combatentes. Enquanto um

atira, os demais, sentados no fundo da trincheira, preparam as armas para um novo disparo e, caso o

atirador venha a ser atingido, um deles está pronto a substituí-lo.

Diante da intensidade do tiroteio, os soldados do exército são levados a crer que o Conselheiro

conta com 4.000 homens armados (quando, na verdade, estes não passam de algumas centenas) e que

cada sertanejo atingido volta a reerguer-se invulnerável e terrível para continuar a luta. Em meio à

poeira e à fumaça levantadas pelos disparos dos canhões, os militares não percebem que a apontarem

novamente a espingarda contra eles não é o atirador recém-baleado, mas sim um companheiro de luta

que acaba de assumir o lugar deste entre as pedras que servem de trincheira.

A lenda do que passa a ser conhecido como atirador fantástico se espalha e abate o moral da

tropa que, castigada pela fome e com poucas munições, vê a retirada como única saída possível.

Durante a viagem de volta, os homens de Febrônio são atacados pela última vez em Bendegó de

Baixo. Abatida física e psicologicamente, a expedição alcança Monte Santo em condições lastimáveis.

Os sertanejos conseguem uma segunda vitória. As notícias dos enfrentamentos atraem para

Belo Monte um número ainda maior de pessoas que chegam esperançosas e alegres de poder fazer

parte do arraial.

Enquanto isso, tanto o governo da Bahia, como o Comando do Exército, concordam que é

preciso organizar sem demora uma expedição capaz de dar uma lição definitiva aos insubmissos

moradores de Belo Monte. A pessoa escolhida para dirigir as operações militares é o coronel paulista

Antonio Moreira César”.

- “Esse que é o tal corta-cabeças?”.

- “Exatamente! Corta-cabeças é a alcunha que Moreira César havia recebido pelas

desumanidades praticadas durante a repressão da Revolução Federalista, em Santa Catarina. Militar

prestigiado, o coronel tem o perfil que se encaixa perfeitamente nos planos de destruição que estão

sendo preparados pela elite. Cabe a ele comandar 1300 homens armados com 6 canhões Krupp,

pistolas e fuzis a repetição, além de 16 milhões de cartuchos e 73 tiros de artilharia. Com este arsenal

e confiante na experiência acumulada, Moreira César vê Canudos como um levante banal que pode ser

facilmente esmagado e, ao mesmo tempo, como a ocasião para fazer da vitória o trampolim que lhe

assegura um papel de destaque no campo político e militar.

À frente de suas tropas, o coronel alcança Monte Santo em 18 de fevereiro de 1897. Na cidade,

sofre um ataque epilético que voltará a se repetir quatro dias depois. Desta base de operações, o

contingente segue para Cumbe e, em seguida, parte rumo a Belo Monte em marchas forçadas de dez

quilômetros diários pelos difíceis caminhos do sertão. Em 2 de março, a coluna alcança Rancho do

Vigário, a 19 quilômetros de Canudos, de onde sai no dia seguinte em direção ao povoado. Apesar de

ter sofrido ataques esporádicos de destacamentos conselheiristas, os militares não amargam perdas

significativas.

Enquanto a terceira expedição está a caminho, Antonio Conselheiro toma as medidas

necessárias para defender o reduto. Com a ajuda de seus principais combatentes, manda abrir

trincheiras nos lugares que julga serem mais indicados e fortalece os pontos cruciais com pedras

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justapostas deixando entre estas o espaço suficiente para que os atiradores possam fazer passar os

canos dos fuzis. Além disso, escolhe algumas áreas onde os arbustos são mais altos e frondosos, os

espinheiros mais densos e os capinzais podem servir de esconderijos improvisados. Trata-se de

transformar a caatinga em aliado que permita aos sertanejos atacarem de surpresa e fugirem sem

serem vistos. Diante do poder de fogo do inimigo e da escassez de munições, a ordem entre os

conselheiristas é de atirar só quando se tem certeza de não perder o disparo alvejando de preferência

os oficiais facilmente distinguíveis pelas insígnias militares.

Ao chegar em Angico, a tropa de Moreira César se divide em duas colunas, ficando a segunda

sob as ordens do coronel Pedro Nunes Tamarindo. De início, os oficiais do contingente capitaneado

por Moreira César acreditam que a tropa acamparia para descansar da penosa caminhada, mas

vencendo os últimos acidentes do terreno, a marcha prossegue. Ao atingir o topo do morro da Favela,

o corta-cabeças decide atacar Canudos naquele mesmo dia.

Após pesado bombardeio da artilharia, a infantaria começa a se dirigir ao arraial. Alguns

soldados chegam a penetrar numa parte da cidade, quando, de repente, encontram-se em meio a um

intenso tiroteio que provoca pesadas baixas. Na tentativa de alterar o rumo dos combates, Moreira

César ordena uma carga de cavalaria. Mas esta, ao entrar nos becos estreitos do arraial, se torna alvo

fácil dos conselheiristas. Desapontado, o coronel acredita poder salvar o ataque com sua presença à

frente dos soldados. Montado a cavalo, parte para a zona de combate, mas antes de alcançar o seu

destino, é atingido por um disparo e acaba morrendo. Diante dos acontecimentos, os oficiais ordenam

a retirada.

Itinerário das expedições militares

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Ao tomar conhecimento do falecimento do comandante, os soldados se apavoram e iniciam

uma fuga desordenada para escapar dos conselheiristas que começam a persegui-los. No desespero,

tiram as fardas para não serem identificados e abandonam tudo o que representa um peso para a

marcha. Pouco a pouco, os caminhos percorridos pela terceira expedição se enchem de cadáveres,

fardas, fuzis, munições e pertences dos militares. Ao todo, os conselheiristas conseguem apreender

mais de 300 armas e 34 caixas de cartuchos. O arsenal destinado a transformar em pesadelo o sonho

de uma vida melhor, será usado agora para defender Belo Monte”.

- “O que não consigo entender – comenta o secretário ao coçar a cabeça – são as razões pelas

quais tropas numericamente superiores e bem armadas são derrotadas por sertanejos que lutam com

armas rudimentares...”.

- “A resposta à sua indagação deve ser procurada, de um lado, nos erros dos comandos

militares e, de outro, na motivação que anima os combatentes.

Os relatórios dos oficiais que chefiam as operações no campo de batalha são unânimes em

afirmar que o fuzil Mannlicher, uma das principais armas em dotação do exército não funcionou de

acordo com o esperado. Apesar da capacidade de penetração do seu projétil, do alcance e da precisão

de tiro, vários de seus componentes se revelaram extremamente frágeis e transformaram uma arma a

repetição numa carabina de tiro único ou até mesmo num mero suporte para a baioneta.

Se o armamento não inspirava confiança, o fardamento não era nada adequado à vida nos

sertões. Enquanto a roupa de couro dos conselheiristas resistia sem problemas aos espinhos e demais

obstáculos das caatingas, além de se disfarçar facilmente no ambiente circunstante, as fardas de tecido

colorido acabavam cortadas ou rasgadas pela vegetação e não havia maneira de fazer com que

pudessem ser mimetizadas.

Sem conhecer a região, sem estudar o terreno e as características do inimigo, os comandantes

se deixaram levar pelas opiniões das autoridades que acreditavam poder dominar facilmente os

conselheiristas e destruir o seu reduto. Enquanto os sertanejos mudavam de tática a depender das

condições do enfrentamento e realizavam ações próprias da guerrilha, as tropas oficiais se

comportavam como se estivessem enfrentando uma guerra convencional onde o desfecho vitorioso

costumava ser conseguido pela carga de baionetas. Ninguém pensava em se infiltrar nas linhas

inimigas, nem de aproveitar os acidentes do terreno, e as instruções oficiais ordenavam que ninguém

podia procurar abrigo durante os assaltos e os ataques. Esta concepção da guerra acabava expondo

sobremaneira os soldados aos tiros dos conselheiristas entrincheirados sem que a artilharia pudesse

socorrer as colunas oficiais.

A fome e as dificuldades de abastecimento podem ser explicadas pelo fato do Exército não ter

nesta época a preocupação permanente de garantir linhas de suprimentos. Esperava-se poder

improvisar tudo e, desta forma, poucos se atentavam ao fato de que seria impossível encontrar

alimento e transporte para centenas de homens em pleno sertão.

Ainda que as expedições reunissem efetivos cada vez maiores, os batalhões eram formados por

pessoas literalmente catadas a laço em todo o território nacional. A falta de instrução e treinamento

adequados fazia com que boa parte dos praças não conseguisse suportar os rigores do clima quente e a

alimentação precária. Se isso não bastasse, os soldados rasos recebiam um soldo miserável (quase

equivalente ao preço de um par de sapatos) e muitos recrutas haviam sido enganados ou alistados à

força. Acrescente agora o fato de que parte deles era partidária ou simpatizante do Conselheiro e verá

que não é difícil entender nem o grande número de desertores, nem o fato da disciplina ser mantida só

na base de castigos rigorosos.

Por outro lado, os sertanejos de Belo Monte, profundos conhecedores da região, conseguiam

transformar as adversidades da natureza em poderoso aliado de suas forças e, graças à constante

adaptação de suas formas de luta, multiplicavam a capacidade de combate enfraquecendo o inimigo

com ataques rápidos e inesperados. Mas o elemento central em volta do qual se movimenta toda a sua

mobilização e preparação militar está no fato de que, à diferença dos soldados, eles se batem por um

ideal. O heroísmo e o sacrifício que se manifestam em cada combate revelam que os conselheiristas

estão cientes de que, naquela guerra, não há um possível caminho do meio. Ou eles saem vitoriosos ou

são definitivamente destruídos”.

Pronunciadas as últimas palavras, Nádia deixa que o silêncio permita ao seu ajudante terminar

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de escrever.

Com o queixo apoiado na mão esquerda, o secretário percorre com os olhos as reflexões da

coruja. Tudo parece sugerir um acirrar-se dos enfrentamentos. Cutucada pela curiosidade, a língua

solta um “Pelo visto, a coisa vai esquentar...” que devolve à ave o comando da situação.

- “E muito – confirma Nádia em tom de pesar. As vitórias conseguidas não impedem que

contra Belo Monte já tenha sido decretada uma sentença de morte. A decisão de arrasar o reduto

ganha novas dimensões com o passar dos dias. As elites não têm tempo a perder e, poucas semanas

após a derrota da terceira expedição, preparam uma quarta, bem maior e melhor aparelhada. É sobre

ela que vou falar no próximo capítulo ao relatar os caminhos que preparam...”

5. O massacre de Canudos.

Compenetrada, a coruja pisca os olhos, franze a testa e gesticula com a expressão típica de

quem costura a memória de datas, personagens e acontecimentos. Instantes intermináveis fustigam o

desejo humano de conhecer o fim desta história.

Mergulhada em seus pensamentos, Nádia dá as costas ao seu ajudante enquanto os sons

indecifráveis que saem do seu bico parecem resgatar do passado o que o presente teima em

desconhecer. De repente, ergue a asa, gira o corpo e fixando o olhar nas folhas empilhadas debaixo da

caneta afirma decidida:

- “Após a derrota da terceira expedição, a elite se apressa em mudar a razão oficialmente

apresentada para explicar sua guerra contra os sertanejos de Belo Monte. Enquanto se intensificam os

preparativos para mais uma investida do exército, Canudos deixa de ser considerado um foco de

ladrões e assassinos para ser transformado no maior inimigo da República. Num movimento que

acompanhará, passo a passo, os fatos produzidos entre março e outubro de 1897, jornais, peças de

teatro e intervenções públicas das autoridades apresentam Belo Monte como símbolo do retrocesso, da

ignorância, do atraso, de tudo o que se opõe aos ideais iluminados da República e cuja destruição se

faz necessária para vingar a honra nacional pisoteada. Motivo de sátira e gozação, o arraial

transforma-se em assunto do dia e a guerra passa a ser utilizada até mesmo como motivo de

propaganda para vender sapatos e bilhetes da loteria.

Os jornais das principais cidades brasileiras não poupam tinta para denunciar o caráter

monarquista de Belo Monte e sublinhar o perigo que os sertanejos representam para a ordem

republicana. Dia após dia, são fabricadas e veiculadas imagens aterradoras sobre o arraial e o

armamento utilizado pelos rebeldes, acusados de empregar balas explosivas como munição para seus

modernos fuzis.

Cartas apócrifas, atribuídas a supostos apoiadores do Conselheiro, são publicadas para provar a

existência de um complô monarquista para a restauração da ordem imperial. O líder oculto desta trama

seria o Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel e genro de Dom Pedro II, auxiliado por grupos como a

Unión Internacional de los amigos del Império no Brasil e o Comitê Imperialista. As operações bélicas

do arraial estariam sendo sustentadas com recursos vindos do exterior, através de simpatizantes

sediados em Argentina, Portugal, Inglaterra, França e Estados Unidos.

Estas notícias dão origem a uma onda de revolta contra os defensores do antigo regime.

Redações de jornais monarquistas do Rio de Janeiro e São Paulo são destruídas e alguns de seus

diretores e redatores assassinados. Em Petrópolis, o palácio que havia servido de residência à Princesa

Isabel é apedrejado por manifestantes apesar de, há muito tempo, estar sendo ocupado pela delegação

russa, o que provoca um acidente diplomático entre os dois países.

Pouco a pouco, a ficção toma conta da realidade e assume o papel de verdade dos fatos. Na

confusão que se cria, basta ser baiano para ser apontado e execrado como monarquista e

conselheirista. Antonio Vilanova, Pajeú, João Abade e, sobretudo, Antonio Conselheiro, transformam-

se em personagens familiares da política nacional. Seus nomes são seguidamente citados pelos jornais,

nas passeatas e nas tribunas das grandes cidades como inimigos da República e da civilização. De

matéria em matéria, de discurso em discurso, a elite trabalha a idéia de que o Exército é o instrumento

do progresso que, em determinadas situações, precisa da força para se consolidar e vencer os

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instigadores do atraso. De forma aberta ou disfarçada, os poderosos demonizam Belo Monte para

justificar uma decisão já tomada: a destruição de Canudos.

- “Nádia, será que na prática e nos discursos do Conselheiro não há nada mesmo que justifique

as posições apresentadas como opinião pública?”, indaga o homem desconfiado.

- “Na verdade – responde a coruja ao apoiar a asa no ombro do secretário -, há sim alguns

elementos cuja distorção parece dar razão às elites. No início do relato, falei do processo de

implantação da República e do que este implica para o povo simples em termos de dessacralização do

Estado, cobrança de impostos e exclusão da vida política do país para grandes camadas da população.

Acontece que, diante da visível piora das condições de vida, o passado vivido sob o antigo

regime acaba sendo lembrado como essencialmente bom ao passo que os problemas do presente são

invariavelmente associados à nova forma de governo. A República, na visão de mundo dos sertanejos,

veio para quebrar a ordem pela qual o poder vem de Deus e, ao viabilizar medidas que pioram a

existência dos de baixo, passa a ser vista como a personificação do mal.

Diante do mundo virado de cabeça pra baixo, entre os próprios conselheiristas ganha alguma

expressão a esperança do retorno do rei português Dom Sebastião, cujo reinado seria de paz, justiça e

prosperidade para todos. Esta crença, surgida em Portugal durante o século XVII, é introduzida no

Brasil ao longo do período colonial e passa a ser incorporada no imaginário e nas tradições sertanejas

dando origem a vários movimentos de resistência, sistematicamente reprimidos a ferro e fogo pelo

exército do próprio império”.

- “E quem é esse tal de Dom Sebastião?”

- “Trata-se do último rei da dinastia Avis, morto na batalha de Alcácer Quibir, em Marrocos,

quando chefiava uma expedição militar contra os mouros, em 1578. Dois anos depois da derrota, o

reino e os domínios portugueses são anexados à coroa espanhola. A perda da independência nacional,

marca o início de um período de grande crise nas terras européias de Portugal.

Inconformados com a nova situação, os lusitanos alimentam a esperança no retorno do

monarca, mesmo após a reconquista da independência diante da Espanha. O mito de que o rei

desaparecido desencantaria antes do juízo final e transformaria Portugal num império universal se

desenvolve entre os séculos XVII e XIX e nele se expressam os anseios populares de uma vida

melhor.

Agora, uma coisa é dizer que versículos e poemas, recolhidos após a destruição de Belo

Monte, registram a presença deste sentimento de espera messiânica, que os estudiosos chamam de

sebastianismo, e outra, bem diferente, é afirmar que a concepção de monarquia no meio popular da

região é a mesma que se faz presente entre políticos e intelectuais de São Paulo e Rio de Janeiro,

adeptos do monarquismo.

No que diz respeito à figura do Conselheiro e à sua pregação não há nenhuma registro que

indique a crença no retorno de Dom Sebastião ou que aponte para a restauração da monarquia no

Brasil. Católico convicto, o líder de Belo Monte vê a República como uma ameaça direta à religião e,

ao não reconhecer a legitimidade do novo regime, não admite a autoridade republicana sobre os

impostos e a política. Crítico da escravidão, perseguido pelas autoridades do império e conhecedor das

contradições que marcam presença no sertão nordestino, o Conselheiro não tem nenhuma razão para

desejar a volta do antigo regime e nem soma forças com os defensores deste. Ao contrário, diante do

acirrar-se dos conflitos e do crescente peso da exploração, funda uma comunidade que se torna uma

pedra no sapato até mesmo para os interesses dos antigos administradores do Estado, entre os quais

não há voz que se levante em defesa de Belo Monte.

Resumindo, para que a destruição de Canudos seja recebida como natural e necessária, os

formadores de opinião transformam sertanejos em jagunços; povo simples que trabalha em busca de

um futuro melhor em ameaça ao progresso da nação; pessoas que fazem da sua religiosidade o

elemento de identidade sobre o qual constroem relações de igualdade em fanáticos e alucinados;

homens e mulheres que, apesar das carências, erguem uma comunidade onde ninguém passa fome em

inimigos da civilização. Diante do espelho das elites, a imagem que aparece aos olhos distantes da

vida no sertão não é a da realidade, mas tão somente o reflexo que, apesar das aparentes semelhanças,

permite ver apenas o contrário do que, de fato, existe”.

- “Quer dizer que, enquanto a nação é fascinada por pomposas declarações, os de cima

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costuram e aprimoram a trama que garante a manutenção de seus interesses?!?”

- “Exatamente – confirma a ave com a asa levantada. A tarefa de restabelecer a ordem no

sertão de Canudos é entregue ao general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Das lições aprendidas

nas derrotas anteriores, o militar planeja a formação de duas colunas: uma que se dirige a Canudos

pelo sul, saindo de Monte Santo; e outra que, vinda de Aracaju, chegaria no arraial através da estrada

de Jeremoabo.

As tropas alcançam Belo Monte no final de junho de 1897 numa viagem marcada por

confrontos de pouca importância. O seu deslocamento é acompanhado pelos olhos atentos dos

sertanejos que se infiltram nos povoados por onde passam os soldados, acompanham os batalhões em

sua marcha pela caatinga e até prestam alguns serviços para ganhar a confiança dos militares e poder

extrair informações que ajudem a preparar a defesa do arraial.

Ao falar sobre o assunto, Alfredo Silva, correspondente do jornal A Notícia, do Rio de Janeiro,

relata: o general Barbosa, em Monte Santo, comprava ovos de preferência a um sertanejo que

fornecia-os por preço muito menor que outro qualquer. Em um ataque feito pelos jagunços à

artilharia, as nossas forças vitimaram oito e verificando o general os cadáveres reconheceu em um

deles o seu fornecedor. Duvidando, chamou o seu ajudante de ordens, que também o reconheceu! Eis

as condições em que se acha o exército, espiado em toda parte por emissários de Antonio

Conselheiro, muitos dos quais, segundo afirmam, servem dedicadamente em diversos serviços. 8

O primeiro combate significativo se dá no morro da Favela. O exército conquista o terreno

palmo a palmo e impõe várias baixas aos sertanejos. Mas logo a situação se inverte. Os conselheiristas

cercam o lugar onde os soldados estão posicionados, cortam suas linhas de abastecimento e, com as

tropas na alça de tiro de seus fuzis, colocam a coluna de Artur Oscar diante da possibilidade de mais

um desastre. Ao perceber que caiu numa armadilha e que lhe restam poucas munições, o general

organiza a defesa na tentativa de resistir até a chegada de reforços.

A coluna comandada pelo general Cláudio de Amaral Sevaget também não tem vida fácil.

Atingida por um pesado ataque conselheirista na serra de Cocorobó, não tem condições de socorrer as

tropas do colega de armas.

No dia 13 de julho, chegam os reforços comandados pelo coronel Joaquim Manuel de

Medeiros. Os comandantes se reúnem para discutir a condução das operações militares e decidem

lançar um novo ataque ao reduto. Cinco dias depois, Belo Monte é fustigado por um intenso

bombardeio de artilharia contra o qual os sertanejos nada podem fazer. Apoiados pela cavalaria, os

soldados marcham em direção ao arraial e chegam a ocupar um pequeno subúrbio de umas 300 casas,

mas, impossibilitados de continuar o ataque, se retiram em condições desastrosas.

Artur Oscar confessa a derrota e solicita um reforço de 5.000 homens além de suprimentos

adicionais para seus soldados. No momento, só lhe resta organizar a defesa, manter a disciplina da

tropa faminta e aguardar que os novos contingentes ajudem a alterar a sorte da expedição.

Sabendo não poder enfrentar o exército em campo aberto, os rebeldes de Belo Monte optam

por uma estratégia aparentemente desordenada, mas muito eficiente. Em pequenos grupos, atacam os

comboios com os suprimentos e atingem pontos determinados da tropa com o intuito de eliminar seus

comandantes e provocar a debandada dos destacamentos. Durante a noite, investem de surpresa contra

os acampamentos militares matando alguns soldados e tentando esgotar as munições da tropa que,

acordada de repente, responde aos tiros de forma desordenada. Para os sertanejos, trata-se de semear o

desespero e a desorganização na tentativa de provocar o maior número possível de deserções.

Alvos fáceis de um inimigo que não conseguem ver, torturados pelo sol e pela sede que

transformam o sertão num verdadeiro inferno, sem ter o que comer e privados do atendimento médico

para os feridos, os soldados são tomados pelo pânico e tentam sair da região a qualquer preço. Os

caminhos que levam a Belo Monte são percorridos por praças e oficiais que perambulam em busca de

alimentos e água. No desespero, alguns atiram na palma da mão para fugir da guerra e voltar às suas

casas.

Apesar de terem sido derrotados nas tentativas de silenciar a artilharia do exército, os

8 A matéria do correspondente do jornal A Notícia foi enviada de Queimada em 16/08/1897 e publicada na edição dos dias

24 e 25 de agosto do mesmo ano. O texto citado foi extraído de Walnice Nogueira Galvão (8), pg. 416.

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conselheiristas contam com um novo recurso para facilitar suas manobras militares no interior do

reduto. Além da inteligente rede de trincheiras já existente, as casas são unidas por túneis que

permitem aos combatentes um deslocamento rápido e seguro na hora de reagrupar suas forças em

pontos estratégicos”.

- “Desse jeito, os sertanejos podem resistir por muito tempo...”.

- “É verdade - confirma a coruja em tom nada animador -, mas o fato é que sua comunidade

tem os dias contados. A chegada de vários batalhões do exército e das polícias estaduais, a melhoria

das linhas abastecimento, o aumento do poder de fogo dos soldados com mais fuzis, canhões e uma

ingente quantidade de munição desequilibram a situação a favor das tropas oficiais. A idéia, agora, é

de impedir aos sertanejos qualquer acesso à água e à comida através de um cerco militar que feche

todos os caminhos de entrada e saída do povoado. Ao mesmo tempo a artilharia não dá trégua e seus

bombardeios conseguem derrubar as torres da igreja nova, importante ponto de defesa contra os

assaltos dos soldados.

A situação em Belo Monte se torna dramática. Água, comida, armas e munições são bens cada

vez mais escassos. A maior parte do arraial é destruída pelas bombas. Os principais comandantes

sertanejos estão mortos e o próprio Antonio Conselheiro vem a falecer em 22 de agosto de 1897.

Apesar disso, os rebeldes mantêm a luta. A população que poderia ter abandonado o arraial

não arreda pé. Os valores construídos

e vivenciados na comunidade

consolidam o vínculo entre o destino

individual e coletivo e prolongam a

capacidade de resistência dos

conselheiristas.

Na madrugada de 1º de

outubro, cerca de 6.000 soldados

aguardam a ordem de ataque dos

oficiais que esperam tomar Canudos

em um par de horas. O ataque é

precedido por um intenso bombardeio

e, apesar dos novos estragos, os

sertanejos entrincheirados nas

proximidades da igreja resistem

furiosamente às investidas do exército.

No dia seguinte, Antonio

Beatinho apresenta aos generais uma

proposta de paz. Artur Oscar rejeita o

acordo e o encarrega de convencer os

demais a se entregar, com a promessa

de ter salva a própria vida. Nas horas

que seguem, um grupo de 600 a

1.000 pessoas composto, em sua

maioria, por idosos, doentes, estropiados, mulheres e crianças, se entrega.

O que parecia ser o início da rendição se revela mais tarde uma medida astuta para prolongar a

resistência. Aliviados da necessidade de proteger quem não têm condições de combater, no anoitecer

do dia 4 de outubro, os conselheiristas usam todas as forças disponíveis para atacar as posições do

exército num enfrentamento que se prolonga durante a noite e pela manhã seguinte.

Na tarde do dia 5, sobre os cadáveres de seus irmãos de luta, 4 homens ainda guerreiam até

gastar os últimos cartuchos. Euclides da Cunha assim descreve a cena final que marca a derrota de

Belo Monte: Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento

completo. Expunhado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer,

quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois

Escombros da igreja nova após os bombardeios e a dinamite

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homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. 9

O cenário é desolador. Milhares de cadáveres se espalham por toda parte. Minas e granadas

são usadas para não deixar pedra sobre pedra. No dia seguinte, os soldados se preparam para entregar

o que resta do arraial às chamas de um incêndio que devore qualquer sinal de vida. Entre os trabalhos

que ainda precisam ser executados, está o de achar o corpo do Conselheiro. Por ordem do general João

da Silva Barbosa, o terreno em volta do santuário é removido até encontrar o cadáver do líder

sertanejo envolto num lençol. Antes de enterrá-lo novamente, o oficial manda que a cabeça seja

cortada e enviada à Faculdade de Medicina da Bahia para que as análises dos peritos comprovem se

tratar de um louco ou de um criminoso de nascença. Depois de cuidadoso exame, o famoso

antropólogo Nina Rodriguez emite um laudo que contraria as expectativas dominantes: O crânio de

Antonio Conselheiro não apresenta nenhuma anormalidade que demonstre traços de

degenerescência. É um crânio normal. 10

A seu modo, os meios científicos da época confirmam que o

líder de Belo Monte não era nem louco, nem criminoso”.

- “E o que acontece com os conselheiristas que se renderam?”, pede o secretário com

expressão de quem teme o pior.

Nádia abaixa a cabeça e, abrindo as asas para visualizar a amplitude dos sofrimentos que

aguardam os sobreviventes, com voz compenetrada, diz:

- “Destruído o arraial, a fúria dos militares se volta contra os prisioneiros indefesos. Certos da

impunidade e, em alguns casos, com a própria autorização dos superiores, os soldados agem com

requintes de crueldade. Inúmeros presos são degolados, outros têm seus corpos esquartejados, as

costelas quebradas ou são jogados vivos nas fogueiras caso não gritem Viva a República! Os mais

sortudos são arrastados até os povoados próximos amarrados em cordas que chegam a penetrar em

suas carnes. Mulheres e moças são estupradas e dezenas de meninas, chamadas de jaguncinhas, são

entregues a cafetinas e levadas a prostíbulos. As anotações de Frei Pedro Sinzig, que assiste à

passagem de um grupo de prisioneiros nas proximidades de Cansanção, relatam os sentimentos de

quem tem a impressão de estar num mercado de escravos barbaramente acorrentados. E, no dia 13 de

9 Trecho extraído de Euclides da Cunha (6), pg. 575.

10 A citação do laudo foi extraída de Edmundo Moniz (18), pg. 98.

Grupo de prisioneiros.

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outubro, a página do seu diário denuncia: Aurino conta que soldados pegam as crianças pelas pernas,

rodam com elas e esmigalham o crânio batendo contra as árvores. 11

Outras são feridas pelas tropas e

abandonadas pelos caminhos quando já não têm forças para andar.

Apesar do estado lastimável em que se encontram os sobreviventes feridos, os médicos

militares se recusam a atendê-los e, entre eles, há quem não titubeia em afirmar que sua medicina não

é pra ser gasta com os prisioneiros. Poucos são os oficiais que dispensam um tratamento humano e

menos ainda os que assumem a guarda de uma criança órfã.

Enquanto a suposta força civilizadora do exército se abate sem piedade contra civis indefesos,

os rudes sertanejos de Belo Monte continuam sendo exemplos de dignidade e igualdade. Após falar

das péssimas condições em que se encontram as mulheres e crianças aprisionadas, os enviados do

Comitê Patriótico, organizado para cuidar dos sobreviventes, se deparam com situações que

contradizem o título de jagunças que a elas atribuem. Na matéria publicada pelo jornal O Comércio,

de São Paulo, em 24 de dezembro de 1897, lemos: O que muito é honroso para as desventuradas

jagunças e não nos é dado calar, em nosso relatório, como informações que devemos ao Comitê

Patriótico, é o fato de havermos verificado que nenhuma, dentre todas as prisioneiras, era mulher de

má reputação ou de conduta irregular notando-se-lhes bons costumes, hábitos de trabalho e depois o

sentimento de honra e esse recato, que são apanágio e a maior riqueza da família sertaneja.

Pudicas, forçando posições para esconder com os andrajos a nudez da pele, vimos raparigas e

mulheres ocultando envergonhadas o rosto entre as mãos.

Mesmo dentre as crianças, não conseguimos observar gestos nem palavras reprovadoras,

assim como modos grosseiros nem coisa alguma que lhes desabonasse a educação doméstica. Era

digno de vê-las partilhando os sofrimentos umas das outras, e socorrendo-se mutuamente, dividir o

que lhes dava sem a menor sugestão.

Testemunhamos a nobreza de algumas mulheres distribuir pequenas quantias, que traziam

escondidas consigo, no sentido de melhorar o rancho às mais indigentes: quase todas que tinham

maior cópia de recursos também assim procediam como podemos afirmar, frisando o nome da

prisioneira Maria Leandra dos Santos que, trazendo de Canudos perto de um conto e quinhentos mil-

réis, gastou quase metade desta quantia procurando minorar a condição às suas companheiras de

infelicidade, até Alagoinhas!

Em Queimadas, uma destas pobres vítimas da desgraça em que foram arremessadas, já nos

paroxismos da morte, sentindo que se lhe iam desaparecendo os últimos lampejos de vida, voltou-se

para Frei Electus, que lhe assistia aos derradeiros momentos, e lhe entregara os últimos 5$ que

possuía, pedindo-lhes que distribuísse aquela pequena quantia, em segredo, às mulheres mais

desgraçadas do que ela e aos pobres!” 12

- “E...há alguém que comemora a vitória do Exército...?”, indaga o ajudante temendo uma

resposta afirmativa.

- “Depois de meses de incertezas e boatos – diz Nádia ao piscar os olhos -, milhares de

soldados mortos e ingentes quantias de dinheiro gastas na guerra, os grandes centros urbanos recebem

a notícia da vitória em meio a grandes manifestações de júbilo. A igreja, satisfeita com a destruição do

arraial, participa ativamente das comemorações.

Entre as raras manifestações contrárias, está o manifesto dos estudantes de Salvador que,

considerando um crime a degolação dos conselheiristas aprisionados, boicotam as homenagens que a

Bahia prepara ao general Artur Oscar.

Para justificar a demora em conquistar o arraial, valorizar o heroísmo dos soldados e ocultar a

capacidade de resistência dos sertanejos, o exército superestima a população de Canudos apontando a

existência de 5.200 habitações nas quais morariam entre 25.000 e 30.000 pessoas. Para Manuel

Benício, correspondente de O Jornal do Comércio, que havia contado as casas dos sertanejos do alto

do morro da Favela semanas antes dos bombardeios, Belo Monte não possuiria mais do que 2.000

casas e, de conseqüência, os moradores da comunidade seriam cerca de 12.000. 13

Mas, diante da

vitória que consagra seus propósitos, a elite está bem pouco interessada em apurar os fatos. O

11

A citação foi extraída de Oleone Coelho Fontes (7), pg. 118. 12

O texto citado foi extraído de Walnice Nogueira Galvão (8), pg. 502 e 503. 13

Dados mais completos sobre esta questão podem ser encontrados em Marco Antonio Villa (23), pg. 220-221.

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importante já foi conseguido: Canudos não existe mais.

A euforia é tamanha que, ao retornar às suas famílias, no Rio de Janeiro, capital da República,

os soldados são saudados pelo governo com a promessa de receber uma casa como forma de

compensar os sacrifícios impostos pela guerra. Meros instrumentos nas mãos da elite, não só os praças

vão ficar a ver navios, como, sem recursos para sobreviver, se vêem obrigados a construir barracos de

madeira no morro da Providência. Com a expulsão dos moradores dos curtiços do centro da cidade no

início do século XX, o número destas construções cresce até ocupar toda a área das encostas.

Por ironia da história, o conjunto de barracos passa a ser chamado de favela, numa clara

analogia ao morro da Favela, em Belo Monte. Com uma diferença: enquanto para os conselheiristas as

casas de barro e madeira representavam o início da construção de um sonho de igualdade, na

civilizada capital da República elas não passam da triste comprovação de um processo de espoliação e

marginalização que se prolonga até os nossos dias”.

- “Pelo visto, a história de Canudos acabou”, afirma o secretário sem esconder uma sensação

de alívio.

- “Ainda não!”, prorrompe a coruja ao apontar a asa esquerda para o rosto do ajudante. “Antes

de passar à guerra sertaneja do Contestado, vale a pena deixar claro porque a elite investiu tanto para

destruir a comunidade de Belo Monte e os sinais que, posteriormente, poderiam relembrar sua

resistência.

Pelo que vimos nas páginas anteriores, o comportamento do Conselheiro nos povoados do

sertão segue os padrões comuns aos missionários apostólicos e aos beatos que percorrem a região.

Não faz milagres, não pratica o curandeirismo, não veicula expectativas messiânicas, mas, ao manter

uma vida ascética coerente, dialoga ininterruptamente com a religiosidade e a visão de mundo dos

sertanejos. Ao transformar a pobreza em virtude religiosa, esta começa a deixar de ser um sinal de

inferioridade social para transformar-se em elemento aglutinador das camadas mais baixas da

sociedade e numa crítica viva da opulência dos poderosos.

Se para as elites isso já representa um problema, as coisas se complicam na medida em que o

aspecto religioso dá impulso a uma comunidade de relações igualitárias que permitem vencer a fome e

se tornam um exemplo desafiador e perigoso para os latifundiários. Nestas relações não encontramos

apenas a continuidade da resistência contra a cobrança dos impostos e os desmandos dos coronéis,

mas sim uma organização social e econômica que abre a possibilidade de transformar cada sertanejo

em agente do próprio destino. Este ambiente, no qual a religiosidade cria identidades e vivências que

abrigam e materializam os sonhos dos mais pobres, passa a ser uma referência que atrai as populações

dos arredores e ameaça a manutenção das relações de poder existentes.

Se, de um lado, o princípio de uso útil da terra, implementado pelos conselheiristas, coloca em

cheque a lógica do latifúndio, de outro, os grandes proprietários percebem que estão perdendo o

controle sobre seus antigos trabalhadores. De pessoas que vivem em regime de semi-escravidão nas

grandes propriedades do sertão se transformam, em Belo Monte, em cidadãos que autonomamente

decidem e produzem o seu futuro. A simples falta de braços para a lavoura projeta para o latifúndio a

necessidade de elevar os salários e melhorar os acordos com os arrendatários como forma de garantir

recursos para uma acumulação que tende a ser mais magra em relação às épocas anteriores.

Por sua vez, o exército define Belo Monte como um exemplo nefasto de organização

subversiva que, de agora em diante, vai servir para as elites apontarem as situações de mobilização

social que justificam uma rápida e cruenta intervenção armada de suas forças.

A importância que os poderosos atribuem a esta interpretação pode ser visualizada no número

de soldados da quarta expedição contra Canudos. De maio a setembro de 1897, os comandos militares

mobilizam nada menos do que 22.200 homens, entre recrutas e efetivos, num esforço até àquele

momento comparável apenas com a Guerra do Paraguai. 14

No mesmo ano em que é aniquilada a comunidade sertaneja, um curandeiro e milagreiro

chamado Francelísio Sutil de Oliveira dá origem a um agrupamento religioso nas proximidades de

Lages, em Santa Catarina. Seus moradores, conhecidos como Canudinhos de Lages, são massacrados

por forças policiais catarinenses aliadas a bandos de jagunços que prestam serviços aos coronéis

14

Dados extraídos de José Rivair Macedo e Mário Maestri (16), pg. 92.

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locais.

Quinze anos depois, em 1912, os jornais do Paraná e Santa Catarina relatam notícias que

despertam o temor das elites locais. Na cidade de Taquaruçu, um movimento de sertanejos pobres

estaria se dedicando a restaurar a monarquia. É pra lá que dirigimos agora nossas atenções no esforço

de resgatar as razões que dão origem a mais uma guerra. Por isso, prepare-se porque agora vou tratar

de...”

6. A vida e as relações nas terras do Contestado.

Após tomar um café, o secretário transforma a pausa em momento precioso para esticar as

pernas e se recompor do cansaço. Seus gestos são lentos e nada fazem para esconder o propósito de

aproveitar até o fim os breves instantes de folga.

De pé, em meio às folhas que ocupam boa parte da mesa, a ave apóia a ponta da asa na cintura

e aguarda impaciente o retorno do ajudante. Um rápido olhar ao relógio de parede, alguns passos em

direção à beirada da mesa e, justo quando o bico se prepara para exigir a retomada dos trabalhos, suas

palavras são precedidas por uma pergunta cujo objetivo parece ser o de evitar a bronca iminente:

- “Nádia, você poderia dizer de onde vem o nome de Contestado?”, pede disfarçadamente o

humano enquanto o corpo está prestes a assumir o seu lugar à mesa.

- “Muito esperto – murmura a coruja num sorriso maroto. O termo Contestado tem sua origem

na disputa territorial entre os

estados do Paraná e Santa

Catarina nas últimas décadas do

século XIX. Situada na região

limitada pelos rios Uruguai,

Iguaçu, do Peixe e pelas

fronteiras com a Argentina, a

área em questão soma cerca de

48.000 quilômetros quadrados.

Sem limites definidos, cada

entidade federativa contesta

para si a incorporação de terras

e municípios da outra na

tentativa de colocar sob sua

jurisdição regiões importantes

do ponto de vista econômico. A

proclamação da República e a

descentralização da cobrança

dos impostos acirram ainda

mais as disputas entre os

governos paranaense e

catarinense que serão resolvidas

só em 20 de outubro de 1916.

Para os sertanejos, que a

duras penas conseguem reunir

condições mínimas de sobrevivência, pertencer a um Estado ou a outro não faz a menor diferença. Do

lado dos grandes proprietários, porém, não podemos dizer o mesmo. Ainda que a expansão do

latifúndio não dependa da definição dos limites territoriais, grandes fazendeiros e políticos locais

costuram laços de dependência recíproca para defender os interesses que ganham amplitude

diferenciada no interior de uma ou de outra administração estadual. De fato, para afirmar a jurisdição

sobre parte dos territórios em disputa, as autoridades do Paraná e Santa Catarina usam suas relações

com os latifundiários para fundar vilas, legalizar posses, conceder terras a correligionários e empresas.

Na incerteza de quanto deste território será efetivamente incorporado ao seu Estado, os

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governantes deixam a população no mais completo abandono. Além de nada investir no

desenvolvimento social da região, os políticos ajudam a elevar as tensões locais na medida em que

buscam aliar a força pública aos jagunços, assalariados pelos coronéis seus partidários, para ameaçar

as propriedades dos que apóiam a administração adversária”.

- “Pelo visto, esta situação coloca as camadas mais baixas entre o prego e o martelo”, conclui o

secretário apostando no acerto de sua intuição.

- “Sim e não – responde a coruja ao desconfiar das intenções do ajudante. Apesar de influir nas

relações da região, a dominação que pesa sobre os ombros dos pequenos independe desta disputa e é

anterior a ela.

Bem antes da guerra sertaneja do Contestado, a vida nesta área apresenta aspectos semelhantes

aos que encontramos no sertão nordestino. Em cada município, o manda-chuva é um grande

proprietário de terras que conta com milhares de cabeças de gado. Ele é quem dita as leis em

colaboração com outros latifundiários e criadores locais, que lhe servem de conselheiros e substitutos

quando algo exige sua ausência prolongada. A troca de favores com as autoridades políticas estaduais

faz com que os coronéis possam influenciar a nomeação de juízes, promotores, delegados de polícia,

coletores de impostos, telegrafistas, agentes de correios e demais funcionários que desempenham

tarefas importantes tanto em nível estadual como regional. Graças a esta rede de relações, negociam

obras para a sua área de influência, vetam a ascensão política de adversários e desafetos, atendem

demandas de sua clientela e têm carta branca na administração local e na aplicação de normas que

suas milícias de civis armados fazem respeitar, por bem ou por mal.

Como no sertão nordestino, engana-se quem acredita que o poder dos grandes proprietários se

sustenta somente no uso da força e nas relações com as altas esferas da política. A concessão de

favores alimenta os sentimentos de dívida de gratidão de quem está a seu serviço nas fazendas e, ao

lado desta, o compadrio garante uma resignada submissão à sua autoridade. Para os sertanejos, ter um

padrinho forte significa garantir proteção para o próprio filho e a família. Ao mesmo tempo, se

apadrinhar uma criança leva o fazendeiro a assumir uma série de compromissos com o afiliado e os

compadres, este vínculo também proporciona a lealdade de quem, a partir de agora, estará,

literalmente, ao seu completo dispor.

Quando existe uma oposição política, esta costuma ser exercida por outro coronel que procura

aumentar sua influência com ações e atitudes que, ao apresentá-lo como uma espécie de pai dos

pobres e defensor dos fracos, elevam sua popularidade no município. Via de regra, porém, suas metas

e formas de atuação não apresentam diferenças significativas quando comparadas com as de quem já

está no poder.

Donos das terras mais férteis e das melhores pastagens, os latifundiários alimentam suas

riquezas com o trabalho de agregados e peões. Os primeiros constroem seus ranchos nos campos das

fazendas de menor valor onde, em troca da prestação de serviços gratuitos aos proprietários e da

metade ou um terço do que vier a ser produzido, recebem um pedaço de terra para plantar suas roças e

a permissão de criar algumas cabeças de gado.

Vivendo uma vida igualmente sacrificada, os peões se dedicam a cuidar do gado, à coleta de

erva-mate, a cortar madeira, conduzir tropas e a todo tipo de trabalho exaustivo cumprido em longas

jornadas de trabalho pagas com salários irrisórios, comida e um canto onde poder descansar. Ao lado

da peonagem, há uma série de homens que perambulam pelo interior oferecendo aos fazendeiros os

serviços nos quais são especializados. Entre eles encontramos domadores de burros, ferreiros,

carapinas, amestradores de cães e pessoas que ganham a vida levantando muros de pedra para separar

as propriedades. Devido ao seu caráter ambulante, trabalham em troca de abrigo, comida e uma

remuneração que, muitas vezes, não é paga pelos proprietários que os escorraçam a tiros uma vez

acabado o serviço para o qual foram contratados.

Além de fazendeiros e criadores de gado, na área do Contestado encontramos também famílias

de lavradores que, vindas de outros lugares do Paraná e Santa Catarina, ocupam terras devolutas

afastadas dos grandes centros em regiões de matas e capoeiras. O agrupamento de certo número delas

dá origem ao que podemos chamar de um esboço de povoado na medida em que as casas, afastadas

umas das outras, são unidas pelas terras de onde tiram o sustento. Nos bairros assim formados, os

moradores tecem vínculos baseados na proveniência, em atividades de auxilio mútuo, nas festas e nos

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rituais religiosos.

A partir de 1870, este processo de ocupação e colonização de terras dá origem a um grupo

significativo de pequenos e médios lavradores independentes, posseiros em sua ampla maioria, cuja

sobrevivência é garantida por quatro atividades: uma agricultura de subsistência, criação de porcos,

coleta e beneficiamento da erva-mate extraída de ervais nativos e devolutos e, finalmente, das relações

com os tropeiros que percorrem a região”.

- “E que tipo de relação dá pra estabelecer com pessoas que vão e vêm de um canto a outro

levando mulas para os grandes mercados?”, questiona o ajudante na tentativa de entender este aspecto

da vida no Contestado.

- “Em primeiro lugar – responde a ave ao piscar os olhos -, estes lavradores aproveitam os

pequenos excedentes de suas lavouras e criação para vender víveres aos tropeiros em trânsito e obter

assim alguma quantia em dinheiro ou as mercadorias de que precisam. Além disso, o trabalho com a

erva-mate oferece às famílias a possibilidade de trocar os surrões de produto beneficiado por mulas.

Os animais adquiridos são levados para estâncias e aí mantidos até que seu número compense os

gastos da viagem até os principais mercados compradores.

A possibilidade destes lavradores independentes garantirem melhores condições de vida

depende não só da continuidade destas atividades como da ampliação do próprio acesso à terra. Para

eles, limpar áreas de mata e capoeiras para obter novas pastagens ou lavouras é algo imprescindível

tanto para sustentar o crescimento das famílias, como para melhorar a própria situação econômica.

Este aparente bem-estar, nem sempre conseguido pelos colonos, é constantemente ameaçado

pelos latifundiários. De um lado, o aumento dos rebanhos faz coronéis e fazendeiros cobiçarem os

pastos recém-formados. Os registros de grilagem e destruição das roças pelo gado dos criadores são

freqüentes. De outro, além das normas previstas pela Lei de Terras, a promulgação da Constituição de

1891, que repassa aos estados as áreas devolutas e a prerrogativa de legislar sobre elas, eleva o

número de conflitos no campo. Os processos de legalização da posse conhecem longas listas de

coronéis, tabeliães, advogados, agrimensores e membros da máquina estatal que registram em próprio

nome terrenos que pouco ou nada conhecem, mas que, em função da localização ou das obras de

infra-estrutura que vão beneficiá-los, têm grandes chances de passar por uma rápida valorização.

Antes mesmo da eclosão da guerra sertaneja, a região do Contestado conhece uma seqüência de

conflitos pela posse da terra que, gota a gota, faz o nível da água subir no interior do vaso.

- “E aí então aparece alguém como o Conselheiro que junta o povo e o leva à luta!”, prorrompe

o secretário decidido a impor um atalho ao relato da coruja.

Nádia pára de falar e fendendo o ar com um gesto rápido da asa direita afirma:

- “Humanos! Sempre prontos a reduzir a história a um resuminho no qual pouco cabe e após o

qual se queixam de não conseguir entender o porquê das coisas...”. Em seguida, vira as costas para o

ajudante, sacode a cabeça e, desenhando círculos no ar acima dela, retoma indiferente o fio da meada:

“Como estava dizendo, a luta pela terra agrava as tensões entre as classes sociais do Contestado.

Enquanto os conflitos ainda não se manifestam em toda a sua amplitude, a região é percorrida por um

monge de origem italiana que responde pelo nome de João Maria D’Agostini.

Dele, temos poucas notícias. Dos estudos realizados sabemos que sua presença é registrada em

Sorocaba no ano de 1844 e, em 1848, ele estaria no Rio Grande do Sul, onde ergue uma capela

dedicada ao culto de Santo Antão no cerro do Campestre, próximo a Santa Maria.

Em suas peregrinações, costuma parar longe das casas, dorme ao relento ou em alguma gruta

nas proximidades de uma fonte de água cristalina. Alimenta-se de frutas, verduras e leite, veste roupas

simples e leva uma vida de penitência que, em vários aspectos, imita os antigos monges eremitas. Ao

passar pelos povoados, levanta cruzes e convence a população a fazer o mesmo. Munido de um

conhecimento razoável do evangelho, suas pregações são aceitas pelos sacerdotes católicos que as

consideram úteis para atingir a alma dos sertanejos mais simples.

Se a sua relação com a igreja é de amizade e de colaboração, o mesmo não ocorre com as

autoridades civis. Durante a sua permanência em Campestre, várias pessoas se dizem curadas de seus

males após terem bebido da água de uma fonte próxima ao local. Na medida em que as notícias se

espalham pelas povoações, o número de doentes e necessitados que se aglomera em volta da capela

cresce sem parar. O fenômeno desperta a atenção e a desconfiança das elites, pois em seus rituais o

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monge defende uma doutrina de cooperação e fraternidade inspirada nos preceitos do cristianismo

primitivo. Apesar de nunca procurar um confronto direto com as autoridades, sua pregação parece ser

recebida como uma crítica à ordem social existente.

Preocupado com a crescente concentração de pessoas à sua volta, o governador da província

riograndense, Francisco José de Souza Soares D’Andréia, manda que o monge seja preso e enviado a

Porto Alegre de onde é despachado para Santa Catarina. Num período em que o Rio Grande do Sul se

prepara para a intervenção no Prata, precisa concluir a pacificação com os farroupilhas e combater os

bandos armados que vivem do roubo do gado, o nascimento de um movimento religioso que concentre

a população desvalida é uma dor de cabeça que as autoridades pretendem evitar.

Na região do Contestado, João Maria percorre os mesmos caminhos dos tropeiros, continua

sua atividade de pregador leigo e eremita, e, em seu caminhar, indica a muitos as novas terras a serem

ocupadas e preparadas para a lavoura. Em constante peregrinação, o monge procura evitar a

concentração de fiéis em torno dele e sai da região por volta de 1855 deixando o povo na expectativa

do seu retorno. De volta a Sorocaba, se abriga na gruta de Ipanema, próxima à cidade. Ali permanece

até 1875, quando o local amanhece vazio e com marcas de sangue. Deste momento em diante, nada

mais de sabe sobre o seu paradeiro.

Anos depois, em 1895, no Alto da Lapa, corre a notícia da presença de um segundo monge que

a população, porém, identifica com o eremita que, 40 anos antes, havia deixado a região do

Contestado. De hábitos bem parecidos, passa a ser

conhecido como João Maria de Jesus e como João Maria de

Santo Agostinho. Seu verdadeiro nome é Anastás Marcaf.

Diz ter sido criado na Argentina e afirma ter recebido em

sonho a ordem de caminhar pelo mundo sem comer carne

às quartas, sextas e sábados e sem pousar em casa alheia.

Magro, de barba branca, cabelos longos,

pobremente trajado, tem como únicos pertences um

chimarrão, uma lata onde cozinha a própria comida, uma

guampa para beber água e uma imagem de Nossa Senhora

da Abadia guardada numa caixinha que usa como oratório.

Por onde passa, cativa a simpatia dos humildes e muitos

deixam os próprios afazeres para segui-lo. Sua principal

atividade é conversar com as pessoas, indicar

medicamentos, transmitir orientações e batizar as crianças.

Para os sertanejos, o monge é, acima de tudo, um

grande curador. Os relatos contam que doenças são

vencidas com rezas especiais e personalizadas, águas santas

e chás de vassourinha do campo, uma planta facilmente

encontrada na região. Mais do que nas propriedades

terapêuticas desta erva, o povo acredita mesmo numa força

mágica e milagrosa que ele transmitiria a tudo o que toca.

A crença chega a tal ponto que, quando o monge muda de

pouso, o povo disputa as cinzas de suas fogueiras, enche garrafas de água nas fontes e nos riachos

onde ele bebera, usa as folhas e as cascas de árvore onde recostara o corpo para fazer remédios tidos

como infalíveis e considera sagrado qualquer lugar onde tenha plantado uma cruz.

Envolvido nesta áurea de santidade que acompanha o seu peregrinar, João Maria declara

abertamente que a República é a ordem do demônio e que o fim da monarquia representa o prenúncio

das catástrofes que devem afligir o mundo. São anunciadas epidemias, pragas nas lavouras e na

criação, a vinda de máquinas monstruosas como corvos de aço [os aviões que, pela primeira vez,

seriam utilizados numa guerra], gafanhotos de ferro [as serrarias] que acabariam com as florestas.

Uma inversão de valores e comportamento também aconteceria: os homens seriam cada vez mais

parecidos com as mulheres e vive-versa. Uma longa noite que duraria três dias levaria à morte a

maioria da população, todos seriam julgados, os pecadores iriam para o inferno, apenas

João Maria de Santo Agostinho

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sobreviveriam os penitentes que levassem uma vida justa e plantassem cruzes em frente às casas. 15

De acordo com o depoimento de Frei Menandro Kamps, contemporâneo de João Maria e com o qual

teve várias ocasiões de atrito, o monge teria profetizado também a santa guerra de São Sebastião

terminada a qual teríamos a volta da

monarquia. 16

Longe de significar o retorno do

imperador deposto ou de um de seus

sucessores, o regime monárquico de

João Maria, apresentado como lei de

Deus, seria a implantação de um

sistema de vida que se opõe ao dos

coronéis e de seus aliados políticos. Ao

interpretar os sentimentos populares

contra o peso dos impostos e as

conseqüências da aplicação das normas

que regulam a propriedade de terra,

João Maria começa a construir uma

espécie de elo de ligação entre o quotidiano da história e uma utopia a ser alcançada. Este vínculo é

tão forte que, nas palavras do próprio Frei Menandro, a guerra sertaneja só foi possível na fé que o

povo tinha àquele mensageiro. Uma palavra de sua boca valia e vale ainda hoje [1915] mais do que

as verdades eternas do evangelho, do que quaisquer instruções de sacerdotes e bispos, e até o Santo

Padre só acerta ensinar a verdade se esta confere com a pregação de João Maria. 17

Recusando o título de santo e fazendo questão de ser visto como um homem igual aos demais,

em 1908, o monge desaparece da região. Para muitas pessoas, ele estaria vivendo encantado no morro

do Taió, entre Curitibanos e Rio do Sul, de onde voltaria para pôr tudo em ordem”.

Após esta longa explanação, a ave permanece silenciosa por algum instante à espera da reação

do seu ajudante ainda entretido em escrever suas últimas palavras.

Terminada a tarefa, o secretário deita a caneta na resma de folhas ao seu lado e, após estalar os

dedos, pergunta intrigado:

- “O que não consigo entender é como tudo isso se torna possível num ambiente onde a dureza

da vida e as tensões provocadas pelos conflitos com os grandes proprietários deveriam levar as

pessoas a pôr os pés no chão mais do que a erguer os olhos para os céus...”.

- “Para responder à sua indagação, precisamos mergulhar no ambiente típico do sertão do

Contestado, no qual elementos mágicos e religiosos são parte fundamental do quotidiano das pessoas.

No mundo do povo simples, abundam os especialistas que dedicam seus esforços à relação com o

sobrenatural exercendo, frequentemente, práticas mágico-medicianis. Neste tipo de serviço à

comunidade, encontramos os benzedores que aplicam suas rezas na cura dos animais, valendo-se

quase exclusivamente de fórmulas mágicas. Por sua vez, as benzedeiras são requisitadas para usar

suas orações quando as doenças atingem as pessoas e costumam dividir este campo de ação com

curandeiros que associam aos rituais mágico-religiosos o conhecimento que têm do uso de ervas, chás

e infusões. Caribambas são aqueles que, com base nas noções de homeopatia e medicina adquiridas ao

logo da vida, se fazem passar por doutores. Ao lado destas figuras, nos deparamos com os entendidos

que, sem transformar seu saber em profissão, dão consultas a quem precisa de algum tipo de

sortilégio. Entre as mulheres que exercem funções parecidas, há as intendentes que, além de servir de

comadres durante os partos, são portadoras de práticas para esconjurar doenças e atrair a felicidade.

Por sua relação com as forças do bem, o povo simples acredita que a maioria desses homens e

mulheres tem sido tocada pela graça divina e se opõe ao trabalho das madraqueiras que, por

praticarem a magia negra, são apontadas como bruxas cujos poderes vêm de um trato com o diabo.

Finalmente, entre as comunidades mais distantes dos centros, não é difícil encontrar leigos que

puxam terços, dirigem cerimônias, realizam enterros e, quando necessário, até batizam através de

15

Trecho extraído de Paulo Pinheiro Machado (41), pg. 169. 16

A citação completa do relato deste Frei encontra-se em Ivone Gallo (39), pg. 78. 17

A transcrição desta parte do depoimento encontra-se na nota N.º 21 de Paulo Pinheiro Machado (41), pg. 231.

Aeronave utilizada na guerra do Contestado

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rituais baseados em rezas antigas, guardadas de memória e repassadas de pai pra filho.

Portanto, não é de estranhar que este ambiente mágico-religioso tenha aberto seus braços à

pregação de dois monges e, nas pegadas destes, tenha começado a rever sua visão de mundo justo a

partir dos aspectos com os quais ambos procuram fazer o bem. À semelhança do que ocorre com os

demais agentes do sagrado, os dois homens também se colocam como intermediários de uma

sociedade que busca alcançar no âmbito do sobrenatural o que lhe é negado pela injustiça das relações

entre os homens. Ainda que, na maior parte das vezes, isso leve a sentimentos de resignação diante do

presente, a prática destes rituais cria espaços nos quais os oprimidos buscam fazer ouvir a sua voz,

forjam uma identidade coletiva onde o drama pessoal é sentido pela comunidade e alimenta a

capacidade dos indivíduos entrarem em contato com os demais. Se, de um lado, este mundo real e

místico, que mistura sofrimentos e sonhos, em geral, tende a não representar uma ameaça para as

elites, de outro, o desenrolar dos acontecimentos pode transformar a experiência religiosa no caminho

pelo qual as pessoas que a vivenciam buscam realizar o que sua religiosidade aponta como uma nova

sociedade a ser construída.

Ainda que de forma confusa, fantasiosa e nem sempre compreensível, a vida social e espiritual

das camadas mais baixas da população expressa através de imagens míticas suas razões de sofrimento,

seus anseios, sua busca da felicidade, enfim, sua vontade de mudar os rumos da história. O bizarro

conjunto de manifestações, símbolos e intuições, com o qual se revela, traduz as experiências de luta e

resistência já vivenciadas e pode preparar os tempos que, diante das contradições, exigem a

construção de novas respostas. Mais adiante, vamos ter melhores condições de compreender e

visualizar quanto acabo de afirmar. Por enquanto, vale a pena resgatar outro elemento determinante

deste universo onde tudo aparece de forma nebulosa e contraditória. Trata-se do papel desempenhado

pela igreja oficial na região do Contestado.

Na última década do século XIX, o clero secular, acostumado a lidar com a visão de mundo

dos sertanejos, começa a ser substituído por franciscanos alemães. A atuação destes religiosos entra

em choque com o catolicismo popular, através do qual vem se dando a prática religiosa das camadas

mais baixas da sociedade.

Animados pelo espírito de quem pretende realizar uma cruzada em nome da verdadeira fé, os

religiosos se queixam do estado em que encontram as igrejas, da escassa participação nas missas, das

poucas crianças que fazem a Primeira Comunhão, do número ínfimo de casamentos e do fato de

muitos não se confessarem a anos, apesar de todos se declararem católicos fervorosos.

Para espanto dos franciscanos, durante as festas da igreja, no lugar da veneração compenetrada

e das disciplinadas manifestações de espírito religioso o povo celebra os dias santos com festanças,

comida farta e bebidas alcoólicas em momentos de encontro que, não raro, acabam em bailes e brigas.

Some a isso o fato dos antigos padres terem permitido certa licenciosidade dos costumes e deles

mesmos terem fama de não cumprir os votos de castidade e pobreza e entenderá a razão de ser da

animosidade e do fervor religioso dos freis recém-chegados.

Os choques entre a população e o novo clero começam a acontecer na medida em que, a partir

exclusivamente de suas concepções, os sacerdotes impõem regras de comportamento e uma moral

rígida que em nada dialogam com a visão de mundo dos sertanejos. De 1911 em diante, os livros

paroquiais registram várias situações de insultos e ameaças sofridas pelos freis. As coisas se

complicam ainda mais quando, dois anos depois, os franciscanos procuram aplicar a tabela diocesana

pela qual seria cobrado o acesso aos sacramentos, até mesmo das famílias mais pobres.

A rejeição do catolicismo oficial cresce também na medida em que, sob orientação do bispo

Dom José de Camargo Barros, os religiosos começam a desqualificar João Maria e a combater o

costume popular de pendurar suas imagens nas casas.

Se a isso você acrescenta as alianças entre a hierarquia da igreja e os coronéis, não vai ter

nenhuma dificuldade para entender o abismo que separa as duas formas de vivenciar o catolicismo e

porque, ao hostilizar a figura do monge, os próprios sacerdotes contribuem para aumentar a sua fama

no meio popular”.

- “Ao que tudo indica, há uma boa quantidade de elementos que apontam para a possibilidade

de um conflito de sérias proporções – sugere o homem com expressão visivelmente preocupada”.

- “Você tem razão – confirma a coruja satisfeita em ver que seu ajudante está acompanhando

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os rumos da história. Trata-se, porém de um assunto complexo no qual vou me adentrar só no próximo

capítulo ao falar de...”

7. A construção da estrada de ferro e a atuação de José Maria.

- “Em 1908, ano do desaparecimento de João Maria – relembra Nádia ao sublinhar com um

gesto a importância da data -, iniciam os trabalhos do trecho da ferrovia São Paulo-Rio Grande, que

atravessa a região do Contestado de norte a sul, a ser finalizado dois anos depois.

A construção vai empregar cerca de 4.000 trabalhadores, parte dos quais vem de regiões

distantes com a promessa de que, terminado o serviço, seriam levados de volta a seus locais de

origem. Divididos em numerosas turmas e entregues à cobiça dos empreiteiros, os operários sofrem

abusos de todos os tipos e têm seus protestos violentamente reprimidos pelo corpo de segurança

particular criado pela Brazil Railway, a empresa encarregada da obra.

Terminado o trecho, os homens são abandonados à sua sorte. Ao permanecerem na região se

misturam à população local elevando o grau de descontentamento e o potencial de conflito já presente

em função dos elementos que descrevemos no capítulo anterior”.

- “Pelo menos, agora, tem algo que vai trazer o progresso à região!”, comemora o secretário.

- “Isso é o que você pensa – retruca a ave anunciando com seu tom de voz o iminente agravar-

se das tensões. Na verdade, os trilhos da ferrovia vão beneficiar apenas uma reduzida parcela de

proprietários. A conclusão da estrada de ferro em 1910, e de seu ramal até União da Vitória e Rio

Negro três anos depois, marca

o início de um período de

grandes sofrimentos para os

sertanejos do Contestado.

Ao assumir a obra, a

Brazil Railway, capitaneada

pelo magnata estadunidense

Percival Farquhar, com a

participação de capitais

ingleses e franceses, recebe do

governo federal a concessão

da linha por 90 anos, garantias

de pagamentos adicionais em

caso de prejuízos e, sobretudo,

a doação de terrenos até 15

quilômetros de cada lado dos

trilhos. Para aumentar suas

posses futuras, a empresa

desenha o traçado da ferrovia

de forma a evitar a construção

de pontes e túneis, que

encareceriam a obra, e a

garantir o acesso à maior

quantidade de terra possível.

Para explorar as matas

nativas dos lotes conseguidos

por contrato e dos que seriam

adquiridos em seguida, a

Brazil Railway cria uma subsidiária, a Southern Brazil Lumber and Colonization Company. Após este

momento, a Lumber, nome pelo qual vai se popularizar, compra cerca de 180.000 hectares de terra nas

proximidades de Canoinhas e assina diversos contratos pelos quais os fazendeiros da região,

interessados na formação de novas pastagens, negociam a venda de madeiras nobres das matas de suas

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propriedades. Ao lado da estrada de ferro, em Calmon e Três Barras, a subsidiária monta duas

serrarias onde o processo de beneficiamento da madeira é totalmente mecanizado. O acesso às arvores

é facilitado por ramais que entram mata adentro. Graças a estes, as locomotivas arrastam as toras do

local de corte até o de embarque usando pesadas correntes de ferro.

O início das atividades ferroviárias traz aos moradores da região uma piora de suas condições

de vida. Numa área onde há força de trabalho sobrando, a competição desencadeada pela Lumber leva

ao fechamento de, praticamente, todos os velhos engenhos de serrar madeira. Se isso não bastasse, os

ervais nativos e devolutos, que por longos anos haviam sido uma importante fonte de renda, são

devastados pela implantação dos ramais e pelas toras arrastadas até os vagões.

Com as cargas sendo transportadas a custos bem inferiores, a demanda de mulas começa a cair

e os antigos caminhos das tropas deixam de existir. Sem os tropeiros, a economia das regiões

interioranas conhece uma profunda depressão na medida em que pontos de venda, locais de pouso,

descanso e invernada não têm mais a quem oferecer os próprios serviços.

Ao mesmo tempo, os

lugares mais distantes da linha

férrea começam a sofrer os

altos custos do transporte.

Agora não há mais como

esperar que a simples

passagem das tropas garanta o

abastecimento e se faz

necessário que alguém leve as

mercadorias da ferrovia até os

povoados. Para termos uma

idéia do que isso significa,

basta pensar que, em 1916, o

frete de uma lata de querosene

de Porto Alegre à estação de

Capinzal (a 800 quilômetros de

distância) é de 2.000 Réis. Mas

o custo para levar o produto deste ponto até Campos Novos (40 quilômetros no lombo de burros)

chega a 2.500 Réis. 18

- “Não imaginava que uma obra tão importante trouxesse tantas dificuldades...”, confessa o

ajudante entre a surpresa e o desconcerto.

- “Infelizmente, o pior ainda está por vir – afirma a coruja ao se aproximar da mão que,

perplexa, acaba de soltar a caneta. O ano de 1911 é de grande sofrimento para os sertanejos pelas

calamidades naturais que atingem a área do Contestado e, sobretudo, pelo violento processo de

grilagem que abrange as terras em volta da estrada de ferro. Sabendo da existência de posseiros e

pequenos proprietários que contam com o reconhecimento legal de suas posses, a Brazil Railway e a

Lumber percorrem caminhos que visam fechar o cerco em volta deles e esmagar qualquer possível

resistência.

De um lado, as empresas cooptam as lideranças políticas paranaenses e catarinenses para evitar

entraves legais e facilitar os processos administrativos que levam à apropriação das terras cedidas pelo

contrato assinado com o governo federal. É neste sentido que, por exemplo, Affonso Camargo, vice-

governador do Paraná, é contratado como advogado da Lumber durante o exercício do seu mandato e,

em 1916, Nereu Ramos, filho do ex-governador Vidal Ramos, é nomeado representante oficial dos

interesses da empresa junto ao governo de Santa Catarina. Da mesma forma, o coronel Henrique

Rupp, superintendente municipal de Campos Novos, torna-se inspetor de terras da Brazil Railway no

período em que se acirram as expulsões dos antigos moradores do vale do Rio do Peixe.

Para viabilizar os seus planos, a Lumber cria uma milícia particular com mais de 300 homens,

efetivo maior do que os 280 soldados à disposição do Regimento de Segurança de Santa Catarina para

18

Dados publicados em Paulo Pinheiro Machado (41), pg. 143.

Trabalhos da construção da ferrovia

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policiar todo o Estado. As atitudes para com os sertanejos variam da assinatura de papéis em branco,

com os quais os empregados da empresa oficializam a renúncia voluntária dos moradores à

manutenção de suas posses, a ações armadas que expulsam posseiros e pequenos proprietários com

requintes de crueldade. Em outros casos os jagunços usam sua presença ostensiva para viabilizar a

retirada das madeiras sem a autorização dos moradores e, obviamente, sem pagar pelas toras e demais

prejuízos causados.

Terminado o desmatamento, as áreas que agora pertencem oficialmente à Lumber e à Brazil

Railway são loteadas e vendidas a caro preço a colonos alemães, poloneses e ucranianos. Este

comportamento alimenta ainda mais a revolta entre os antigos moradores para os quais o governo da

República expulsa os brasileiros dos terrenos que pertencem à nação, nega a eles o acesso à terra e

vende tudo para os estrangeiros.

A paciência do povo está no fim. A aversão ao novo regime cresce e eleva-se a tensão com

seus representantes locais. O nível da água já está na boca do vaso. Falta só uma pequena gota para

fazê-lo transbordar”.

- “E há sempre alguém que a faz cair...”, conclui o homem que aguarda ansioso o desenrolar

dos acontecimentos.

- “Exatamente!”, confirma a coruja ao menear a cabeça. “Entre os últimos meses de 1911 e o

início de 1912, na região de Campos Novos, aparece um monge que responde pelo nome de José

Maria de Santo Agostinho. Quase nada se sabe sobre suas origens, mas várias testemunhas informam

se tratar de um penitente que se dedica a curar doentes. Destes depoimentos aprendemos que, em

momento algum, ele se apresenta como irmão de João Maria diante do qual admite não ser nem do

tamanho de uma formiguinha. 19

Em mais de uma ocasião, afirma admirar o monge, concordar com

suas práticas e pontos de vista e o chama, publicamente de nosso irmão.

Apesar de saber ler e escrever, e de ter cadernos nos quais guarda as propriedades medicinais

que a experiência popular atribui a determinadas plantas, José Maria não diz ser médico, mas suas

receitas, escritas com a ajuda de um secretário, se mostram realmente eficazes. O bom êxito de sua

medicina e a disposição de atender gratuitamente os aflitos até tarde da noite aumentam o seu

prestígio na região. Em pouco tempo, um crescente número de pessoas não só acorre à Farmácia do

Povo, instalada no Rancho do Capataz, em busca de consultas, conselhos e orações, como começa a se

identificar com ele e com o seu discurso.

Uma das coisas que desperta a atenção dos sertanejos é a história de Carlos Magno e dos Pares

de França que o monge lê ou conta a seus ouvintes nos poucos momentos de folga e que, tempos

depois, vai servir de suporte à releitura que seus seguidores farão do presente e do futuro pelo qual

vão lutar”.

- “E...como é que um rei que atuou mais de onze séculos antes deles pode inspirar a visão de

mundo com a qual vão enfrentar as forças que os oprimem?”.

- “Simples! O estilo literário do romance e a forma como os acontecimentos são descritos

conferem às personagens uma aura de idealização. Na narrativa, o rei incorpora justamente as atitudes

que os sertanejos consideram um sinal de virtude e caráter. Carlos Magno é um homem instruído nas

artes liberais e nas ciências, visita a igreja três vezes ao dia, nas festas solenes manda ornar os lugares

de culto às suas custas, é caridoso com seus súditos pobres, todo ano distribui verdadeiros tesouros

para ajudar pessoas necessitadas e, sobretudo, é um homem preocupado em governar com justiça e

equidade, pois não se furta a enviar gente de sua confiança aos recantos mais distantes do reino para

saber se seus prepostos estão agindo de acordo com suas orientações, impedindo assim que os

pequenos sejam maltratados pelos grandes.

No processo pelo qual se cria um culto religioso em torno de Carlos Magno, a figura do rei que

age para fazer justiça torna-se uma espécie de baluarte seguro em volta do qual o povo simples que

acompanha José Maria projeta seus ideais. Na medida em que a história é transformada em lenda e

passa a trilhar os caminhos da utopia, as personagens do livro fortalecem entre os sertanejos o apego à

lealdade, à honestidade, ao companheirismo e a coragem de enfrentar as dificuldades.

A primeira reedição desta história na ótica do povo ganha vida em Taquaruçu durante a folia

19

Trecho extraído Ivone Gallo (39), pg.83.

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da festa popular. Acompanhando os costumes locais, o monge nomeia Manuel Alves de Assumpção

Rocha como rei, seleciona 12 homens para a guarda de honra e outros 12 para acompanhar os

primeiros, pois, para ele, a palavra Pares não significa iguais, conforme consta do texto original, mas

sim duplas”.

- “Você não está querendo dizer que de uma festa pode nascer uma guerra...? Está...?”,

pergunta o ajudante ainda mais confuso e atordoado.

- “Sim – responde a ave ao abrir as asas para confirmar que a gota d’água pode cair no

momento mais inesperado. Acontece que, pesar das autoridades tentarem desqualificar José Maria

com acusações sistematicamente rechaçadas pelos fiéis que convivem com ele, a fama do monge

cresce a tal ponto que garantir sua presença numa festa é algo que, sem dúvida, vai prestigiar o evento.

Em julho de 1912, o nosso homem recebe uma comissão proveniente de Curitibanos que o

convida a comparecer na festa do Bom Jesus, programada para o dia 6 de agosto em Taquaruçu. Ao

que tudo indica, porém, o grupo de festeiros formado por Manuel Alves de Assumpção Rocha (dono

de uma pequena fazenda, curandeiro e fundador do arraial de São Sebastião das Perdizes Grandes),

Euzébio Ferreira dos Santos (compadre de Manuel), Praxedes Gomes Damasceno (dono de uma

venda) e Chico Ventura (pequeno criador e boiadeiro), chega a discutir com José Maria algo que vai

bem além da organização das cerimônias.

De fato, as últimas celebrações do padroeiro de Perdizes Grande, em janeiro do mesmo ano,

haviam reunido um grande número de pessoas parte das quais, durante as festas, acabou dando vida a

reuniões de agitação contra os abusos cometidos pela Brazil Railway. Neste sentido, a presença do

monge não só serviria para atrair ainda mais gente, como ajudaria a fortalecer o coronel Henriquinho

de Almeida, adversário político de Francisco Albuquerque (superintendente do município e manda-

chuva da região) e do qual os festeiros são simpatizantes. É certo que as duas questões são tratadas

durante a reunião, mas não sabemos qual é o acordo a que chegam as duas partes. Seja como for, José

Maria parte numa comitiva formada por aqueles que o haviam convidado e por um bom número de

sertanejos que não quer se separar dele.

Os festejos se realizam de acordo com o cerimonial previsto. Como de costume, o principal

patrocinador da festa recebe as homenagens da população sendo nomeado rei e acompanhado por uma

guarda de honra de 24 membros, os Pares de França. No âmbito das atividades que acompanham as

celebrações, há um desafio de repentistas vencido pelo cantor que defende a monarquia como Lei de

Deus.

Terminada a festa, o povo não se dispersa. Um grupo crescente de pessoas que havia perdido a

terra pela ferrovia e acredita firmemente no retorno do antigo monge João Maria se mantém em volta

de José Maria. É tanta gente que as bancas montadas para os festejos aumentam em número e tamanho

diante do inesperado afluxo de sertanejos que se dirigem a Taquaruçu.

O ajuntamento ganha dimensões que assustam as autoridades. Primeira entre elas, o coronel

Francisco Albuquerque que decide tentar um contato direto com José Maria para conhecer suas

verdadeiras intenções. Para este fim, envia um emissário que leva ao monge o pedido de se apresentar

na casa do coronel para cuidar da doença de uma pessoa da família. Caso viesse logo, o gesto seria

interpretado como prova de obediência e o prestígio do monge beneficiaria o manda-chuva local.

Ainda que em condições normais fosse temerário deixar de atender uma solicitação de

Albuquerque, José Maria responde dizendo que a distância entre os dois é a mesma e que, portanto, é

ele a esperar a visita do superintendente de Curitibanos. A atitude, interpretada como insubordinação,

é usada pelo coronel como pretexto para solicitar ao governador do Estado a intervenção do

Regimento de Segurança a fim de dispersar o ajuntamento monarquista de Taquaruçu.

O telegrama de Albuquerque alarma as autoridades de Florianópolis que avisam

imediatamente o Marechal Hermes da Fonseca, presidente da República, de que nas terras

catarinenses acaba de surgir um movimento semelhante ao de Canudos com o objetivo de restaurar a

monarquia.

Para evitar o confronto, José Maria deixa Taquaruçu em setembro de 1912 acompanhado por

40 homens. Enquanto as demais pessoas se dispersam, o monge se dirige aos campos do Iraní, no

município de Palmas, no Paraná, região de fortes tensões pelas disputas dos limites territoriais com

Santa Catarina. O governo paranaense recebe com extrema inquietação as notícias sobre o novo

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movimento e chega a pensar na possibilidade deste ser parte de uma manobra orquestrada pelos

catarinenses a fim de guarnecer o Contestado com tropas federais e garantir a execução da sentença do

Supremo Tribunal que, tempos antes, havia definido os limites entre os dois estados.

Com o passar dos dias, esta interpretação perde importância, mas, apesar disso, as autoridades

paranaenses enviam o Regimento de Segurança para dispersar o movimento e prender seus líderes.

Em outubro, as tropas comandadas pelo coronel João Gualberto de Sá Filho desembarcam do trem em

Porto União e se dirigem em marchas forçadas à sede do município de Palmas.

Diante do ataque iminente, e querendo evitar derramamento de sangue, José Maria envia seus

homens para tentar um contato direto com os oficiais. Na negociação com o coronel Domingos

Soares, a posição do monge é clara: não quer lutar, não tem problemas com o governo do Paraná, só

está na região devido às intrigas de Albuquerque e pede três dias para dispersar os seus seguidores.

Soares aceita o acordo, mas João Gualberto, que comanda o regimento e está decidido a levar os

rebeldes amarrados para Curitiba, opta por atacar os sertanejos.

Sem conhecer a região, subestimando a capacidade de resistência dos seguidores de José Maria

e confiando excessivamente no poder de fogo do seu contingente, o militar expõe suas tropas a riscos

inúteis e estas são destroçadas em 22 de outubro num banhado próximo a Iraní. Pouco mais de 200

sertanejos se envolvem no enfrentamento decidido num combate com arma branca onde demonstram

extrema habilidade. José Maria, que marcha à frente dos caboclos, é atingido por disparos e morre”.

- “Morto o líder, é de se esperar que seus seguidores se dispersem...”.

- “É assim que a polícia do Paraná interpreta os acontecimentos ao ver na morte do monge uma

razão de consolo pela tragédia que atingiu a corporação. E, de fato, terminada a batalha, os sertanejos

se dispersam.

No início de novembro, ao saber que mais tropas estão se dirigindo para a região, os

moradores de Iraní e das redondezas fecham suas casas e se mudam para Santa Catarina levando

amigos e parentes feridos no combate que havia acabado de ocorrer. O que parece indicar o fim de um

movimento se transforma no seu contrário. Levadas pelos colonos que abandonam o povoado, as

notícias da vitória transformam as atitudes de José Maria num ato de extremo heroísmo. Atacado pelo

governo, o monge havia feito de tudo para defender a comunidade que o acompanhara e, na

impossibilidade de evitar o conflito, havia lutado e vencido as forças oficias.

A releitura dos acontecimentos é acompanhada por um contagiante sentimento religioso que se

espalha como uma epidemia e dá vida à crença na ressurreição do monge. A passagem de José Maria

pela região começa a ser santificada, suas curas são consideradas mais milagrosas do que quando ele

estava vivo e a identificação do povo com sua mensagem produz uma reelaboração coletiva da

memória. Nela, o monge não teria sido só uma esperança para muitos, mas sim o construtor de uma

pequena comunidade capaz de vencer as forças que expulsam os agricultores de suas posses e

submetem os pobres aos desmandos dos coronéis.

O afã de liberdade dos pequenos alimenta a crença pela qual José Maria não teria morrido e

sua cova no Iraní não passaria de um ponto de partida para, um dia, voltar e resolver todos os

problemas. O seu retorno se daria um ano após a sua morte e ele não regressaria sozinho. A segui-lo

estaria o exército encantado de São Sebastião ao qual se incorporariam todos os companheiros caídos

em batalha para, após o último combate, restabelecer a monarquia e fazer justiça”.

Atônito, o ajudante abandona o instrumento de trabalho, apóia o rosto na palma das mãos e

emite um longo suspiro.

- “Isso é coisa de maluco...”, murmuram seus lábios.

Passo a passo, Nádia se aproxima e, num gesto de compreensão silenciosa, apóia a asa no

ombro do secretário. Na que parece uma conversa ao pé do ouvido, o bico sugere:

- “Não julgue os bizarros e tortuosos caminhos pelos quais a esperança e a sede de justiça dos

oprimidos enveredam inesperadamente debaixo dos nossos olhos. São homens e mulheres que pensam

o mundo e formulam respostas a partir dos poucos e frágeis elementos teóricos de que dispõem. Ainda

que isso traga várias dificuldades ao nosso esforço de compreensão, não podemos deixar de ouvir a

eco de seus gritos de revolta que, ao ressoar pelas terras do Contestado, ganha expressões

aparentemente incompreensíveis. Temos que entender sim o que seus gestos pretendem dizer e, ao

fazer isso, aceitarmos o convite a aprimorar os instrumentos que nos permitem identificar até a que

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ponto as expressões aparentemente fantásticas do povo simples são um sinal de resignação ou

apontam para a formação de uma identidade coletiva capaz de enfrentar a ordem dominante.

Por isso, anime-se, pois é justamente sobre isso que vamos nos debruçar no próximo capítulo

ao falar de...”

8. O reduto de Taquaruçu.

Acreditando nas palavras da coruja, o homem recobra forças e seus dedos voltam a hospedar

carinhosamente o instrumento de trabalho. Se a breve pausa não ajudou o corpo a descansar, permitiu,

pelo menos, criar condições para enfrentar mais uma etapa do relato.

Certa de ter alcançado o seu objetivo, a ave aproveita os instantes de silêncio para recuperar

idéias e elaborar uma exposição que contribua para o entendimento dos momentos de luta que se

preparam. Compenetrada, a coruja cruza as pontas das asas atrás das costas e, de cabeça baixa, se

movimenta vagarosamente entre as folhas do relato que forram a mesa. Instantes de expectativa

envolvem os dois seres até que a ave retoma os trabalhos ao dizer:

- “O que soa estranho para nós, é algo que se repete inúmeras vezes ao longo da história. Em

determinadas condições, os oprimidos que participam dos conflitos sociais não só transformam sua

religiosidade em algo que não pode ser separado do enfrentamento político, como é exatamente ela a

definir a linguagem através da qual se expressarão as tarefas que se fazem necessárias e a identidade

que dá cor e forma ao seu movimento.

Desconhecemos os caminhos percorridos pelo processo de releitura do passado entre os

adeptos de José Maria que aguardam impacientes o seu retorno. O fato é que os seguidores do monge

encontram em aspectos mítico-religiosos a explicação para o destino dos que haviam tombado na luta

e o estímulo para evitar que o grupo volte a um estágio de resignada submissão.

À diferença de Canudos, onde parte dos conselheiristas aguarda a vinda do rei Dom Sebastião,

os sertanejos do Contestado elegem São Sebastião como comandante do exército encantado. Santo

guerreiro, protetor divino contra a fome e a peste, padroeiro do sertão, São Sebastião é também o

padroeiro de Perdizes Grandes, lugar que concentra muitos seguidores de José Maria. O contexto em

que nasce a visão do seu exército encantado deixa crer que as tropas sobrenaturais nada mais são a não

ser a representação coletiva que a comunidade dos crentes faz de sua capacidade de luta. Habituados a

julgar-se desprotegidos e impotentes diante dos acontecimentos cotidianos, começam a ter consciência

de sua força real projetando-a como algo que existe fora deles mesmos.

Neste primeiro momento, é mais fácil e reconfortante confiar no socorro sobrenatural do que

dedicar-se incessantemente à preparação das condições que, tendo como base os recursos próprios,

permitem aos sertanejos enfrentarem o desafio de repelir os ataques do exército e organizarem a vida

nos redutos para proporcionar melhores condições de resistência. As lutas que se preparam vão levar

os seguidores de José Maria a percorrer o caminho no qual o elemento mítico-religioso nunca se

separa da luta diária contra os representantes do poder. De um lado, este processo dá ao grupo coesão,

força, confiança na vitória final e uma capacidade de enfrentar a morte que impressiona os

comandantes das tropas oficiais. De outro, os limites da identidade religiosa em torno da figura do

monge, da espera do seu retorno e da fé no exército de São Sebastião vão gerar contradições que

dificultam a expansão do movimento e alimentam conflitos internos.

Ao dizer isso, não quero antecipar o desenrolar dos acontecimentos, mas tão somente ajudar a

compreender melhor até a que ponto as práticas adotadas pelos sertanejos, por estranhas e bizarras que

possam parecer, contribuem ora para fazer crescer, ora para travar os fatores que possibilitam e

animam sua resistência”.

- “Tudo bem, Nádia, agora que as coisas começam a ficar mais claras, você pode prosseguir na

narração dos acontecimentos”, assinala o secretário com voz reconfortada.

Sem perder tempo, a ave ajeita as plumas do peito e, limpando a garganta diz:

- “Faltando dois meses para o aniversário do combate do Iraní e a esperada ressurreição de

José Maria, uma menina de 11 anos, chamada Teodora, neta de Euzébio Ferreira dos Santos, começa a

relatar supostos sonhos e visões que ela teria tido do monge. A notícia se espalha como um rastilho de

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pólvora e atrai para Pedras Brancas uma romaria de curiosos e antigos adeptos. Como a própria

Teodora admite em depoimentos posteriores, ela nunca teve visões, mas tudo o que contava era

sugerido pelos anciãos das comunidades que aguardavam impacientes o retorno de José Maria. Porém,

na medida em que seu comportamento se afasta do que seria de esperar em situações parecidas, o

relato de suas visões não consegue mobilizar os que ainda se mostram incrédulos.

Justo neste período, Manoel, um jovem de 18 anos também filho de Euzébio, diz que ao

encontrar o monge no meio do mato, este teria lhe transmitido a ordem de levar todos para Taquaruçu

onde seria erguida uma cidade santa na qual o próprio José Maria reapareceria para todo mundo.

Em estado de grande exaltação, Euzébio chega em Taquaruçu no dia 1º de dezembro de 1913

com sua família e um grupo de 20 pessoas que se instalam nas terras de Chico Ventura. A notícia de

que no povoado está sendo fundada uma cidade santa se espalha pela região atraindo famílias inteiras

e um grande número de curiosos.

Manoel, considerado enviado de Deus e intermediário entre a comunidade e o monge, se

reveste de um caráter sagrado e começa a ter poderes de chefe absoluto. Se, nos primeiros dias,

qualquer pessoa pode entrar e sair do reduto sem impedimento algum, o crescimento, a sucessiva

organização de povoados deste tipo e a necessidade de se precaver diante das investidas oficiais levam

à criação de regras pelas quais se exigem provas de fé dos que pretendem se incorporar aos seguidores

de José Maria.

Além de procissões que se realizam de duas a três vezes por semana, a comunidade passa a

estabelecer um ritmo de atividades diárias que vai se tornando mais complexo com o passar do tempo.

De acordo com vários estudos, é neste momento que são introduzidas as formas e o quadrado santo.

Diante da igreja do reduto, há sempre uma praça quadrangular cujos cantos são demarcados por uma

grande cruz. No âmbito desse espaço, pela manhã e à tarde, toda a comunidade é reunida em fileiras

paralelas de homens, mulheres e crianças. Nestes momentos, a unidade familiar é momentaneamente

dissolvida. As pessoas são colocadas como indivíduos diante dos discursos dos chefes e a vida

comunitária ocupa o centro das atenções. Cantos e preces são entoados, lançam-se vivas à monarquia

e aos monges, discursos renovam a motivação dos moradores do reduto em preparar a comunidade

para o retorno de José Maria e do exército de São Sebastião.

Estas reuniões não servem só para o culto ou a reafirmação da identidade grupal. Nelas são

organizadas e distribuídas as tarefas coletivas e corrigidos os comportamentos que podem dar origem

a desgastantes conflitos internos. È neste período de espera que os adeptos do movimento devem

adotar um modo de vida compatível com o que chamam de Lei de Deus. E isso se torna possível na

medida em que viabilizam práticas baseadas no igualitarismo, cujo fundamento é remetido aos

próprios ensinamentos do monge, e graças ao qual a comunidade prepara o suposto período de fartura

e felicidade que deve iniciar com o seu retorno”.

- “E...será que dá pra saber um pouco mais sobre estes ensinamentos?”, pede o ajudante quase

em tom de súplica.

- “Simples, querido secretário. A base do igualitarismo comunitário é contida numa frase curta,

mas que, para os sertanejos submetidos a todo tipo de arbitrariedade, tem um significado profundo:

Quem tem mói, e quem não tem mói também. Isso faz com que os bens das pessoas sejam colocados

em comum, que haja trabalho coletivo para cuidar das roças e dos currais da irmandade, que os

membros do reduto que mantêm alguma plantação fora do mesmo coloquem as colheitas à disposição

de todos.

É assim que, pouco a pouco, a vivência comunitária é construída em torno de uma realidade na

qual do que um come, todos têm que comer; do que um bebe, todos têm que beber; os que têm devem

ajudar os que não têm. Quem se recusa a fazer isso é preso e seus bens são distribuídos. Como todos

são irmãos, ninguém tem o direito de vender nada pra outro e se alguém precisa, por exemplo, de um

vestido, este é dado. A tentativa de um membro do reduto vender algo para um irmão pode ser punida

com a morte. 20

A vida comunitária demanda uma total rejeição ao acúmulo de riquezas e qualquer

contribuição, em dinheiro ou em bens, é usada para atender às necessidades coletivas. Em breves

20

Estas regras encontram-se copiladas em Jean Claude Bernadet (30), pg. 64.

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palavras, os sertanejos não rejeitam as atividades econômicas e produtivas, sem as quais a

sobrevivência se tornaria impossível, mas se opõem frontalmente a toda forma de acumulação e

exploração. Neste sentido, participar da Lei da Monarquia como Lei de Deus, não significa para os

sertanejos trazer de volta o imperador ou um membro de sua família, mas tão somente comungar,

como iguais, como irmãos, das idéias e dos bens.

Além das relações que se estabelecem no interior dos redutos, três aspectos reforçam a ruptura

com a ordem dominante. Todas as cidades santas são construídas sempre em locais antes desabitados

ou até mesmo abertos no meio da mata fechada. No ideário sertanejo, a Nova Jerusalém não pode ser

vista como a continuidade da vida existente, mas sim como algo novo, que define uma identidade

territorial na qual não há espaço para o poder dos coronéis e de seus prepostos.

Nesta linha, além de chamarem-se mutuamente de irmão, os que pretendem ingressar nos

redutos são rebatizados numa cerimônia durante a qual escolhem um novo padrinho. Ao romper com

os antigos vínculos de compadrio, os sertanejos do Contestado mostram que a vida em comunidade

demanda novas referências sociais ao mesmo tempo em que fortalecem os vínculos de fidelidade

recíproca.

Finalmente, como distintivo, os homens do reduto passam a usar no chapéu uma fita branca do

tamanho da estatura de José Maria, raspam a barba e cortam o cabelo a escovinha. Em função disso,

serão chamados de pelados pelos seus adversários. Termo que, além de retratar o aspecto externo

atribui a eles a conotação pejorativa de indivíduos pobres e sem dinheiro. Em resposta, os moradores

do reduto chamarão de peludos os que consideram inimigos da santa religião.

As relações entre o vidente e a comunidade são intermediadas pelos Doze Pares de França que,

neste primeiro momento, integram também o que podemos chamar de conselho deliberativo do

reduto. Longe de ser uma simples guarda de honra, como nos tempos de José Maria, o desenrolar da

guerra vai levar este conjunto de pessoas a se transformar num piquete de elite muito hábil no

confronto corpo a corpo e no uso de armas brancas. Com uma espada na mão direita e uma bandeira

na esquerda, os Pares se distinguem pela facilidade com a qual, graças a um movimento rápido,

vedam a visão do soldado com a bandeira enquanto o golpeiam mortalmente com a arma que

carregam.

- “Imagino que, nesta altura dos acontecimentos, a elite deve estar de cabelo em pé...”

- “E nem poderia ser diferente. Assustado com a movimentação em volta do reduto,

Albuquerque entra em contato com o governador e este com a presidência da República. Mais de 200

soldados são mobilizados e enviados ao Contestado com a missão de dispersar os sertanejos.

Com o propósito de evitar um novo derramamento de sangue, Frei Rogério Neuhaus se dirige

a Taquaruçu, mas sua tentativa de convencer os moradores do reduto a voltarem a seus locais de

origem fracassa.

A notícia de que as tropas oficiais estão a caminho, leva os seguidores de José Maria a se

prepararem para o combate iminente. No entanto, os recursos bélicos propriamente ditos são

extremamente reduzidos. A maior parte dos sertanejos conta só com facões e espadas de ferro ou de

madeira com um prego na ponta. As armas de fogo são poucas, de curto alcance e nada podem fazer

para deter o poderio dos fuzis à repetição e da metralhadora do exército. Das 600 pessoas que moram

em Taquaruçu, os combatentes propriamente ditos não passam de 300, mas todos, grandes e pequenos,

homens e mulheres, treinam ou contribuem com o esforço de guerra cavando trincheiras, juntando

pedras e tudo o que pode servir para repelir o ataque inimigo.

A confiança nas profecias de Manoel faz os sertanejos acreditarem que as carabinas dos

soldados vão negar fogo e que, tanto o monge, como o exército encantado, vão aparecer em sua glória

para derrotar as forças adversárias. Longe de instigarem os rebeldes a serem relapsos em sua

organização militar, as palavras do vidente visam infundir nos combatentes uma esperança mística que

procura dar-lhes ânimo e torná-los moralmente capazes de enfrentar as forças adversárias, por

poderosas que sejam.

Inesperadamente, na véspera do combate, Manoel reúne o povo e declara ter recebido de José

Maria a ordem de dormir com duas virgens. A situação soa estranha no âmbito de austera moralidade

que marca presença constante em Taquaruçu e, imediatamente, os sertanejos destituem o vidente do

seu cargo. Quem vai substituí-lo é Joaquim, um garoto entre os 11 e 12 anos, neto de Euzébio, que

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ganha o apelido de Menino-deus.

Enquanto isso, 210 homens do exército marcham em direção ao reduto divididos em três

colunas que percorrem caminhos diferentes e às quais se incorporam piquetes de civis armados. A que

parecia uma brilhante estratégia militar se transforma numa fragorosa derrota. No dia 29 de dezembro

de 1913, comandados por Joaquim, os revoltosos realizam ataques de surpresa contra cada coluna

espalhando o pânico entre os

soldados que se vêem obrigados

a bater em retirada. Os

combatentes do reduto

conseguem se apoderar da

metralhadora, de vários fuzis e

de seis carros lotados de

suprimentos. O que não é

queimado por ser considerado

impuro passa a enfeitar os

caminhos que levam a

Taquaruçu. Fardas, bonés,

distintivos militares e demais

apetrechos são dependurados

em árvores e arbustos como

sinais da vitória dos rebeldes.

Os prisioneiros trazidos

ao reduto devem jurar servir e

respeitar os princípios

anunciados pelo monge. Em

seguida, pedem perdão por seus

pecados, beijam as mãos dos

Pares de França e são por estes

proclamados soldados de José

Maria. Os que não cedem são

açoitados até aceitar se

submeter ao ritual e, caso

resistam, são fuzilados.

O fracasso das forças oficias, cujas razões devem ser procuradas mais na desorganização, no

medo e no despreparo da tropa do que nos méritos dos sertanejos, consolida a fama de invencibilidade

dos pelados e atrai para Taquaruçu um maior número de pessoas revoltadas com a ordem dos

coronéis”.

- “Imagino que, depois do sucesso militar, o reduto esteja crescendo a olhos vistos...”, sugere o

homem ao se familiarizar com a história.

- “E seria isso mesmo, não fosse pela ordem de Joaquim de transferir a cidade santa para o

norte, em direção a Caraguatá – rebate a coruja ao apresentar um aspecto inesperado da organização

dos sertanejos.

No início de 1914, o Menino-deus revela que os seguidores de José Maria perderiam a batalha

caso o exército investisse novamente contra Taquaruçu. A migração é realizada aos poucos. De início,

só os homens se dirigem para o local indicado com a tarefa de roçar o mato, construir os casebres e a

igreja, enfim, arrumar tudo, no mais tardar, para o final de janeiro.

Na primeira semana de fevereiro, 700 homens comandados pelo coronel Aleluia Pires estão

prontos para atacar Taquaruçu. Contando com duas seções de metralhadoras, uma unidade de

artilharia de montanha e um esquadrão de cavalaria, a vitória parece certa. O problema, agora, é a

hesitação de alguns oficiais que não vêem os sertanejos como inimigos, mas sim como vítimas da

politicagem das autoridades.

Diante desta situação, Aleluia Pires consente que o deputado federal paranaense, Manoel

Correia de Freitas, faça uma tentativa pacífica de convencer os moradores do reduto a se dispersarem.

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Do relato publicado no Jornal da Tarde, de Curitiba, em 6 de março de 1914, lemos: Em Taquaruçu

há poucas armas. Todos, entretanto, andam armados com «cacetes de três gumes». Apesar de tão

reduzido armamento, os fanáticos asseguram que se baterão contra qualquer força que vá atacá-los.

Há um profundo ressentimento político e social. Queixam-se das autoridades de Curitibanos e

Campos Novos, dizendo que se estes não os perseguissem, iriam imediatamente pra casa tratar de

suas lavouras. (...)

Em resposta às gestões do deputado, afirmavam-lhe sempre que ali se encontravam

congregados numa santa missão e que não possuíam intuitos de atacar ninguém; mas, se fossem

atacados, não tinham remédio senão defender-se. Animando-os em sua fé renovadora continuava

presente não só a crença na ressurreição dos que morressem na defesa da santa causa, mas também

– como algo palpável – o Exército Encantado. Ao cair da noite, relata Antonio Sampaio, todos olham

para as nuvens e as grimpas dos pinheiros, e, alucinados, julgam ver no céu castelos, torres, igrejas e

o Exército de São Jorge e São Sebastião. Se alguém afirma nada conseguir enxergar, há sempre uma

resposta pronta: «Não tens fé, não podes ver». 21

Na negociação com os sertanejos de Taquaruçu, o máximo que o deputado consegue é a

promessa de que todos se dispersariam desde que também os de Caraguatá fizessem o mesmo. Na

esperança de evitar o massacre, Correia de Freitas se dirige ao novo reduto, mas tem pouco tempo

para fazer sua última tentativa. Sabemos bem pouco do que acontece durante o encontro com os

líderes, mas, de acordo com todas as fontes, os chefes do movimento exigem a monarquia como

condição de paz. Não querem uma simples distribuição de terras, pretendem sim ir ao Rio de Janeiro e

derrubar o governo. Em breves palavras, querem o fim do governo dos coronéis para implantar a

monarquia no país inteiro, tal como os sertanejos em armas já vimos que a compreendem e vivem.

Sem atingir seu objetivo, o deputado começa o caminho de volta e chega em Campos Novos

em 10 de fevereiro de 1914, de onde parte de trem em direção a Porto Alegre.

Enquanto isso, entre os soldados que integram o Regimento de Segurança de Santa Catarina, a

situação antes do combate se agrava em função das deserções. Diante do pânico provocado pela

crença de que os redutários de Taquaruçu contam mesmo com algum tipo de proteção divina e da falta

de convicção em combater simples sertanejos, dos 60 homens que integram o destacamento, 22

abandonam o contingente.

No dia 8 de fevereiro, o general Alberto de Abreu Pires ordena o inicio do ataque. Após

atravessar a mata e posicionar os canhões, o reduto é atingido por 175 granadas explosivas que

destroçam a igreja e mais de 200 casebres. Os poucos homens que ainda estão em Taquaruçu correm

para as trincheiras cavadas atrás das casas. Os tiros que partem de seus fuzis não conseguem sequer se

aproximar das tropas, ao passo que, quando suas cabeças se erguem para espreitar o inimigo, acabam

sendo atingidos pelos disparos das metralhadoras.

Ao anoitecer, após uma jornada sem combates corpo a corpo, é decretado o cessar-fogo. Na

manhã seguinte, as tropas estão prontas para tomar o reduto em cujos terrenos estão esparsos os

corpos sem vida de um grande número de mulheres e crianças. As bandeiras brancas com a cruz verde

que, segundo se acreditava, possuíam o poder mágico de destruir 50 soldados toda vez que

descrevessem três cruzes no ar, se confundem entre os pedaços de pernas, braços e cabeças dos

moradores destroçados. Taquaruçu parece ter sido abandonada. Só uma imagem intriga os oficiais. Na

frente das trincheiras há uma linha de atiradores firmes e imóveis. A aproximação das tropas revela se

tratar de cadáveres assim enfileirados e postados pelos retirantes para atrasar o assalto final e

possibilitar a fuga dos sobreviventes. De acordo com algumas fontes, os sertanejos deixam mais de 90

mortos no campo de batalha. Entre as baixas do exército só há um morto e três feridos”.

Encerrada a história do massacre, o olhar triste da coruja acompanha os momentos de silêncio

que antecedem o progredir do relato.

Firme em sua posição, o secretário entende os sentimentos da ave e, para ajudá-la a superar os

instantes de sofrimento, deixa os lábios ensaiarem uma nova pergunta:

- “Como é que os acontecimentos de Taquaruçu repercutem entre os sertanejos que labutam

para erguer o reduto de Caraguatá?”.

21

Texto extraído de Maurício Vinhas de Queiroz (49), pg. 128-129.

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- “O massacre - responde Nádia com voz emocionada e triste - é recebido na nova cidade santa

com um sentimento que mescla, ao mesmo tempo, uma sensação de terror e de profunda indignação.

Aos sobreviventes dos bombardeios que se refugiam no reduto, se unem os parentes das vítimas,

movidos pelo desejo de vingança. Tanto entre os chefes encarregados de garantir a realização das

atividades econômicas, militares e religiosas, como entre o grupo de videntes, que agora se alternam

na direção da comunidade, está clara a sensação de que a tragédia de Taquaruçu não representa o fim,

mas sim o início da guerra sertaneja propriamente dita.

Passados os primeiros dias, a nova situação e o fluxo crescente de pessoas que chegam em

Caraguatá impõem mudanças na própria organização da comunidade. Se, de um lado, as relações de

igualdade e a partilha dos bens são mantidas como pilares da vida econômica e social do reduto, a

destruição de Taquaruçu levou consigo as roças e as criações que estavam sendo formadas. Ou seja, se

os primeiros tempos de Caraguatá prometiam fartura, a perspectiva da guerra começa a fazer pairar a

sombra ameaçadora da fome. Diante da previsão de novos ataques do exército, os sertanejos sabem

que se verão obrigados a mais deslocamentos e isso implica na impossibilidade de poder contar com

recursos próprios suficientes para alimentar a população. As provisões trazidas pelos colonos que

passam a morar na cidade santa, assim como as doações dos pequenos proprietários que se sentem

honrados em contribuir com a alimentação do que consideram Povo de Deus e os donativos de alguns

fazendeiros que esperam manter os redutários bem longe de suas propriedades não vão garantir

comida suficiente por longo tempo. A falta de farinha, por exemplo, já é registrada pelos chefes entre

o final de fevereiro e o início de março de 1914.

Neste processo, as práticas de caráter mágico que haviam se demonstrado ineficazes, são

abandonadas e a preparação militar do reduto ganha cuidados especiais. Os Pares de França se tornam

um corpo de elite. Os piquetes que, nos primeiros tempos, se limitavam a recrutar alguns soldados,

partem agora em todas as direções a fim de arrebanhar cabeças de gado, armas e tudo o que pode

servir para enfrentar a guerra, tomando à força estes bens de fazendeiros e proprietários considerados

inimigos da fé. Postos de guarda avançados são instalados em pontos estratégicos e, em não poucas

ocasiões, em volta deles começam a se formar redutos menores.

Todos os dias, Venuto Baiano, comandante militar de Caraguatá, dirige os exercícios de tiro e

de marcha nos quais envolve grande parte dos moradores. A produção de facões é acelerada e ganha a

dedicação exclusiva de um grupo que se especializa na feitura destas armas.

Alguns redutários são treinados e enviados para sondar o movimento das tropas nos arredores.

Além de auxiliar os postos de vigilância avançada, se infiltram nas fileiras inimigas para extrair o

maior número de informações sobre os passos que o exército pretende dar para derrotar o movimento.

É assim que, homens e mulheres de Caraguatá se apresentam aos soldados como camponeses

humildes da região e, fingindo-se perseguidos pelos moradores do reduto, tentam ganhar sua

confiança vendendo guloseimas da roça. Conseguida a amizade da tropa, sua presença nos

acampamentos é vista com naturalidade e isso permite aos rebeldes do Contestado aproveitar a boa fé

conquistada para ver e ouvir tudo o que se passa a respeito da guerra.

Passado o pânico inicial, reconfortados os espíritos e infundido um novo ânimo, entre os

sertanejos começa a predominar a crença de que ninguém morreu em Taquaruçu, mas que todos,

simplesmente, passaram para o Exército de São Sebastião. Além de fortalecer a identidade do grupo

num momento crítico de sua existência, a releitura mítica do massacre deixa entender que,

contrariando o que seria previsível em qualquer situação de fanatismo religioso, os sertanejos não

querem morrer. Os homens e mulheres que integram o reduto querem apenas escapar do mundo de

violência e de morte em que estão mergulhadas suas vidas e, ao fazer isso, não têm outra opção a não

ser enfrentar a própria morte.

A liderança do reduto passa a ser compartilhada por Elias de Moraes e pela virgem Maria

Rosa, de 15 anos, que, à diferença dos videntes anteriores, não submete suas ordens à avaliação do

conselho. Após o massacre de Taquaruçu, é ela a dirigir as formas e distribuir os comandos

específicos das atividades econômicas e militares que garantem a vida na comunidade.

Diante das dificuldades de abastecimento e das necessidades impostas pela guerra, a vigilância

dos chefes sobre os moradores do reduto se torna mais rigorosa e as medidas disciplinares mais

rígidas. As saídas passam a ser proibidas e, todas as manhãs, durante as formas, os chefes contam os

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moradores para verificar a ocorrência de deserções. Os suspeitos de delação ou de serem inimigos

infiltrados são sumariamente investigados e executados com o suplício da estaca. Os condenados são

amarrados e têm seu queixo apoiado numa haste pontiaguda que, devido ao peso do corpo, vai

penetrando na cabeça provocando uma morte lenta e extremamente dolorosa.

Punição parecida atinge os que são considerados hereges. Ao mostrar-se descrente em relação

à santa religião, o indivíduo não corre só o risco de perder todos os bens que ainda possui em favor da

causa, como de sofrer a pena capital. A identidade que deve garantir a coesão do grupo nos momentos

de sofrimento que se preparam deixa o terreno da adesão voluntária para ser garantida a ferro e fogo”.

- “Isso deve ser porque os sertanejos estão esperando novas investidas das tropas

governamentais...”.

- “Exatamente. A declaração de guerra, assinada pelo governo com o massacre de Taquaruçu,

mobiliza os rebeldes. O exército real de José Maria está na iminência de um novo combate. É disso

que vou tratar no próximo capítulo ao falar do período que vai da...”

9. Da vitória de Caraguatá às primeiras rendições.

- “No início de março de 1914 – afirma a coruja ao levantar a asa direita -, as tropas oficiais se

dirigem a Caraguatá sob o comando do tenente-coronel José Capitulino Freire Gameiro. Guiados por

moradores locais, os soldados entram em Perdizes Grandes, mas encontram o arraial em estado de

completo abandono. Três dias depois, levantam o acampamento em direção à meta de sua expedição.

Após meia hora de marcha, o contingente é atacado na retaguarda. Os sertanejos se dispersam antes da

chegada dos reforços, mas a troca de tiros atrasa a coluna e provoca inquietação entre os militares.

Em seguida, os oficias percebem que estão sendo levados por um caminho errado e mais

tempo é perdido até enveredar numa picada que leva ao reduto. Ao adentrar-se na mata, alguns

soldados avistam ao longe um grupo de mulheres que, percebendo sua aproximação, fogem para se

esconder. Quebrando a disciplina, um contingente corre atrás delas e não tarda a se deparar com uma

situação totalmente inesperada: vestidos com roupas femininas, os sertanejos acabam de atrair a tropa

no local escolhido para uma emboscada devastadora.

Passado o incidente, o exército é novamente atingido por disparos. O fato de não conseguir

sequer perceber onde estão postados os atiradores semeia o pânico entre as tropas que, atacadas pela

retaguarda, começam a ficar desorientadas. Sem poder usar metralhadoras e canhões, os oficiais

ordenam uma carga de baioneta mato adentro na tentativa de desalojar os atiradores.

Conhecedores do terreno, hábeis na luta com arma branca e apoiados pelos companheiros

armados de fuzil que se escondem na vegetação, os sertanejos não têm dificuldades em repelir as

tropas que, ao amargar pesadas baixas, se retiram no dia 9 de março.

A vitória de Caraguatá traz grande alegria ao reduto. Seus combatentes, temidos pela

determinação com a qual encaram a luta, são tidos como invencíveis, ao passo que, os soldados do

governo, muitos dos quais partilham as crenças dos caboclos, se consideram vencidos por antecipação.

Ganhos os primeiros combates, os redutos conseguem contar com a simpatia e a admiração da

população pobre do Contestado. Pouco a pouco, a monarquia sertaneja, nos moldes descritos nas

páginas anteriores, deixa de ser um projeto isolado a ser vivido pelos devotos de José Maria para

transformar-se num sonho que contagia a região.

Sabendo que o desenrolar dos acontecimentos traria novos e pesados ataques das forças

oficiais, os sertanejos espalham seus piquetes em todas as direções. Pequenos redutos se formam em

volta dos postos avançados de vigilância. No breve momento de paz após o conflito, Caraguatá se

prepara para a guerra.

Fortes em suas posições militares, admirados pela população e impulsionados pela necessidade

de garantir o abastecimento, os piquetes atacam as fazendas e impõem tributos aos povoados das

redondezas. Propriedades são assaltadas e têm seus bens tomados pelos sertanejos. Alguns fazendeiros

são presos e levados para os redutos a fim de serem julgados, outros são surrados e libertados ou,

considerados inimigos dos pobres e da santa religião, acabam supliciados e fuzilados. Outros ainda

são mortos durante os ataques e suas famílias são ameaçadas de terem o mesmo fim caso tentem

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enterrá-los. A exigência do não-sepultamento dos cadáveres se deve à crença pela qual o simples fato

do corpo não ficar sete palmos abaixo do chão impossibilitaria à alma de entrar no paraíso. Ao castigo

sofrido na terra por seus desmandos, se acrescentaria assim a condenação eterna.

Enquanto estes fatos começam a tomar conta da realidade, a expansão do movimento assusta

ainda mais as elites que começam a construir em volta dos sertanejos não a imagem de rebeldes que

lutam por uma causa, mas sim a de bandidos cuja ação precisa ser contida a qualquer preço.

No final de março, a virgem Maria Rosa faz uma revelação que esfria o clima de euforia em

Caraguatá. Ao prever a chegada de uma nova força de governo, ordena a mudança do reduto para a

região de Bom Sossego.

A transferência da comunidade é apressada por uma epidemia de tifo. Protegidas por uma

centena de combatentes armados de fuzil, famílias inteiras, a pé e a cavalo, levam como podem os

seus pertences e as mais de 600 cabeças de gado arrebanhadas nos ataques às fazendas. Ao chegar no

local indicado, em poucos dias, erguem centenas de casebres improvisados dando vida a um intricado

conjunto de ruas e vielas que desembocam na praça central”.

- “E as previsões de Maria Rosa se confirmam?”, pergunta o ajudante em voz baixa.

- “Infelizmente, sim – responde prontamente a ave. O problema é que os setores da elite

envolvidos na manutenção de seus interesses e relações de poder vêem nas armas o único meio de

destruir a rebeldia que vem de baixo e de restabelecer a ordem. Em meados de abril de 1914, o general

Frederico Mesquita assume o comando das operações de guerra. Veterano de Canudos, o oficial se

depara com uma série de dificuldades. Além da sensação de abandono pela falta de pagamento,

remédios e comida para as tropas, se faz presente entre os soldados a convicção de que estão

enfrentando guerreiros invencíveis e que, portanto, estão condenados à derrota.

Constatando que seus subordinados estão prestes a se revoltarem, o general se desdobra para

garantir verbas e mantimentos capazes de sustentar uma nova expedição militar. Antes de preparar

seus planos, Mesquita se reúne com o Padre José Lechner, profundo conhecedor da região, que ajuda

a esboçar um croqui dos redutos e fornece informações precisas sobre os mesmos. Com base nestes

dados, o general prepara um ataque simultâneo pelo norte e pelo sul enquanto um terceiro contingente

marcha em direção a Caraguatá.

Se esta última coluna não encontra dificuldades em destruir e atear fogo nas casas abandonadas

da antiga cidade santa, o mesmo não se pode dizer das primeiras duas. A marcha dos soldados é

fustigada por atiradores escondidos na mata contra os quais de nada adiantam os seguidos tiros de

canhão e as descargas de metralhadora ordenadas contra os lugares de onde se supõe estariam partindo

as balas do inimigo. O único embate se dá nas proximidades do povoado de São Paulo onde os

sertanejos mantêm um posto de guarda avançado.

No dia seguinte, quando oficiais e praças ainda comemoram a vitória, as tropas são

surpreendidas por uma verdadeira chuva de balas que provoca dezenas de baixas. Encurralados, os

soldados improvisam trincheiras para não serem atingidos durante a noite. Na manhã seguinte, diante

da impossibilidade de continuar a marcha, o general ordena a retirada, durante a qual suas forças

continuam sendo alvejadas pelos sertanejos escondidos na mata.

Diante de mais uma derrota, o governo encarrega o capitão João Teixeira de Matos Costa de

proteger os serviços da ferrovia contra a possível expansão das atividades dos rebelados. À diferença

de seus antecessores, o oficial chega a simpatizar com a causa dos sertanejos. Para ele, a

responsabilidade da revolta camponesa deve ser atribuída aos desmandos dos coronéis que agora,

apertados pelas conseqüências produzidas, pedem socorro ao governo.

Disfarçado de vendedor ambulante, o capitão visita os redutos que se formam em torno dos

postos de guarda e conversa longamente com seus moradores. Ao seu retorno, declara: A revolta do

Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na

sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e o suficiente de

justiça, como um duplo produto que ela é da violência que revolta e da ignorância que não sabe outro

meio de defender o seu direito. 22

A indignação diante das injustiças sofridas pelos camponeses não

faz Matos Costa mudar de lado, mas apenas tentar outros meios para resolver o conflito. Contando

22

Trecho extraído de Maurício Vinhas de Queiroz (49), pg. 161.

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com o apoio da virgem Maria Rosa, o capitão envia dois civis à região de Bom Sossego com a missão

de tentar uma saída pacífica. Ao voltarem, os emissários trazem por escrito as condições impostas por

Elias de Moraes: Os redutos se dispersariam depois de liquidados os coronéis Arthur de Paula,

Fabrício Vieira, Chiquinho de Albuquerque, Amazonas Marcondes, Affonso Camargo, Pedro Vieira,

Pedro Ruivo, os irmãos Michinicovsk da estação Escada e outros, e ainda depois da restituição das

vidas das mulheres e crianças que foram mortas pelas forças do governo no ataque a Taquaruçu. 23

Em agosto, o oficial vai ao Rio de Janeiro para conferenciar com o governo da República, mas

já sabe qual é a saída que será apontada pelas autoridades”.

- “Pelo visto, os redutos devem estar em ebulição...”.

- “É isso mesmo. O prestígio de Maria Rosa começa a diminuir na medida em que pesam sobre

ela as suspeitas de que teria participado da tentativa de pacificação promovida pelo capitão. O

comando do reduto é assumido por Francisco Alonso de Souza, cuja bravura e coragem à frente do

piquete por ele comandado havia aumentado sua reputação entre os moradores da comunidade.

Da metade de julho em diante, a escassez de comida leva os sertanejos a multiplicarem seus

ataques contra fazendas e cidades próximas. Entre estes, ganha destaque o que ocorre no dia 5 de

setembro, em Calmon, quando a estação ferroviária, a serraria da Lumber, o depósito de madeira e as

casas da companhia são incendiadas pelos revoltosos que só poupam a vida de mulheres e crianças.

Ao passar pela região, os piquetes sertanejos convocam a população a dirigir-se aos redutos na

tentativa de afastar o maior número possível de pessoas da arregimentação compulsória das forças

oficiais e de aumentar as próprias fileiras.

As cidades santas crescem a olhos vistos, mas nem todas as famílias que aceitam a convocação

o fazem em apoio à causa dos rebeldes. Grande parte delas faz isso por temer uma possível retaliação,

pois as propriedades dos que se negam a acompanhar o movimento são sistematicamente destruídas e

incendiadas.

Nos assaltos às fazendas, os sertanejos derrubam cercas, ateiam fogo nas casas e se apropriam

de colheitas, rebanhos, armas e utensílios existentes. Ao investir contra os povoados, a atenção cai

sobre o que pode ajudar as comunidades a enfrentarem as necessidades da guerra e há uma

preocupação especial em destruir os livros de registro de imóveis dos cartórios.

Além disso, os sertanejos mantêm relações secretas com os comerciantes de vários municípios

aos quais vendem o couro do gado consumido nos acampamentos em troca de gêneros de primeira

necessidade, armas e munições. Estas últimas são introduzidas nos redutos disfarçadas em caixas de

ferragens e mantimentos ou em latas de doce e de manteiga.

Na medida em que os ataques contra as colunas do exército surtem o efeito desejado, fuzis,

revólveres e cartuchos, deixados pelas tropas em retirada, passam a integrar o arsenal rebelde. Só os

carros com os mantimentos são abandonados por acreditar que a comida neles transportada pode ter

sido previamente envenenada.

No auge do movimento, a área de influência dos redutos se aproxima dos 28.000 quilômetros

quadrados, tamanho de pouco inferior ao do estado de Alagoas. Nela vivem cerca de 20.000 sertanejos

(divididos em comunidades que concentram de 300 a 5.000 moradores) dos quais 8.000 seriam

combatentes. Durante os enfrentamentos, o desempenho deste contingente é favorecido não só pelo

aprimorado conhecimento do terreno, que permite explorar os acidentes geográficos e as

características da mata, como pela intensa e dedicada participação de toda a comunidade. Em várias

ocasiões, por exemplo, grupos de adolescentes acompanham de perto os ataques de surpresa com

gritos de viva à monarquia e a José Maria, o que desperta nos inimigo a impressão de estar sempre

diante de um grande número de adversários armados e, portanto, em condições de inferioridade”.

- “Confesso que estou curioso em saber como é que o capitão Matos Costa vai agir diante

destes acontecimentos...”, comenta o ajudante com expressão desconcertada.

- “O oficial volta do Rio de Janeiro no final de agosto. Informado das ocorrências, reúne os

poucos homens de que dispõe para tentar proteger a ferrovia. No dia 6 de outubro, chega com 60

praças em Porto União, de onde segue para Calmon. Na estação Nova Galícia, o capitão ordena o

desembarque de parte das tropas que continua a pé pela via férrea acompanhada pelo trem em marcha

23

Idem, pg. 161.

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vagarosa. Atacada de surpresa, a maior parte do contingente é alvejada por um piquete sertanejo, cujas

balas matam o próprio Matos Costa. O trem com os demais soldados recua a toda velocidade e só pára

em Porto União.

As notícias trazidas pelos passageiros espalham o pânico entre a população que foge rumo a

Ponta Grossa em composições lotadas de famílias aflitas e aterrorizadas.

Ao espalharem-se, os boatos aumentam a gravidade dos acontecimentos. Povoados inteiros são

esvaziados às pressas. Os habitantes de Curitibanos deixam suas casas ao cair da noite para procurar

refúgio nos bosques e matas das redondezas de onde voltam no dia seguinte para cuidar de seus

afazeres. Em Ponta Grossa, a 15 horas de trem da União da Vitória, há quem diz que os fanáticos

estariam por perto e em Curitiba circulam vozes de que grupos deles teriam sido vistos em alguns

bairros.

Apesar do impacto que as ações sertanejas causam na região, o movimento rebelde não ganha

as atenções da imprensa nacional. Ocupados com a intervenção federal no Ceará, com o estado de

sítio na capital e com a eclosão da primeira guerra mundial na Europa, os debates parlamentares e a

imprensa não abrem espaço aos acontecimentos do Contestado. As poucas notícias publicadas

divulgam relatos avulsos de militares que buscam plantar informações fornecidas por partidários de

Santa Catarina ou do Paraná, com o intuito de ganhar a simpatia da opinião pública no que se refere à

velha questão dos limites territoriais entre os dois estados.

O silêncio dos meios impressos não impede que os seguidos ataques sertanejos levem as

autoridades catarinenses e paranaenses a apresentarem, juntas, um pedido de intervenção federal na

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região. É assim que, enquanto Matos Costa faz seus últimos movimentos em 26 de agosto de 1914, o

Ministro da Guerra entrega ao general Setembrino de Carvalho a incumbência de destruir os redutos

sertanejos. Diante dos fracassos anteriores, da mobilidade dos rebeldes e da gravidade do momento, o

oficial percebe a impossibilidade de sufocar a revolta e restabelecer a ordem com alguns combates.

Por isso, planeja e viabiliza a implantação de um cerco militar em torno da área controlada pelos

sertanejos que, ao cortar as linhas de comunicação e abastecimento com as regiões fora dos redutos

vai se estreitando e enfraquecendo a capacidade de resistência dos rebeldes.

As tropas, divididas em quatro colunas, são posicionadas em pontos estratégicos, prontas a

intervir, mas sem serem submetidas à ação desgastante das emboscadas sertanejas. Estas medidas

visam quebrar a impetuosidade dos revoltosos e fazer com que a fome tome conta dos redutos e

provoque conflitos internos capazes de desgastar a coesão das comunidades.

Na primeira etapa do plano, o general busca restabelecer a circulação dos trens e impedir a

passagem dos rebeldes para Palmas e Iraní. Nesta operação ganha o apoio da diretoria local da Brazil

Railway que incumbe os funcionários de aprimorar a fiscalização das mercadorias transportadas para

impedir que os sertanejos usem os vagões de carga para levar armas e munições à região do conflito.

Em seguida, tenta esvaziar as comunidades rebeldes mostrando aos moradores recém-

incorporados que o governo entende os anseios dos quais são portadores e oferece uma chance de

reconciliação. No texto divulgado para este fim, lemos: Apelo. Fazendo um apelo aos habitantes da

zona conflagrada, que se acham em companhia dos fanáticos, eu os convido a que se retirem, mesmo

armados, para os pontos onde houver forças, a cujos comandantes devem apresentar-se. Aí lhes são

garantidos meios de subsistência, até que o governo do Estado do Paraná lhes dê terras, das quais se

passarão títulos de propriedade. A contar, porém, desta data em diante, os que não fizerem

espontaneamente e forem encontrados nos limites de ação da tropa, serão considerados como

inimigos e assim tratados com todos os rigores das leis da guerra.

Quartel General das Forças de Operações, 26 de setembro de 1914. General Setembrino de

Carvalho. 24

No mesmo dia, a Vila de Curitibanos é tomada por 212 sertanejos que incendeiam casas,

saqueiam lojas e armazéns, destroem o prédio a Intendência Municipal e a cadeia, ateiam fogo na

mansão do coronel Francisco Albuquerque e só poupam as moradias onde encontram imagens de José

Maria. Dias depois, outros piquetes ocupam Salseiro e Três Barras, invadem as colônias Iracema e

Moema e atacam a fazenda Corisco, poderosamente fortificada. Esta última ação é realizada quando já

é noite fechada e, no escuro, os rebeldes acabam se ferindo e matando mutuamente. Ao amanhecer,

entre os cadáveres que se espalham pelo chão, reconhecem o do chefe Francisco Maria Camargo.

No dia de Finados, um piquete chefiado por Francisco Alonso ataca a colônia Rio das Antas

com 35 homens, entre os quais está Adeodato Manoel Ramos. A inesperada resistência dos colonos

surpreende os revoltosos e atinge mortalmente o comandante do destacamento.

Diante do clima de tensão que se apodera do Contestado e da demora em fechar o cerco militar

pelo norte, Setembrino procura suprir suas deficiências pedindo ao coronel Fabrício Ferreira, grande

proprietário de terras, que organize uma coluna volante para fiscalizar as margens do Rio Iguaçu e

fechar os caminhos entre União da Vitória e Canoinhas, alvo constante dos ataques rebeldes.

Atendendo ao pedido, o latifundiário organiza um contingente de vaqueanos, ou seja, de civis

armados que conhecem todos os caminhos e lugares da região devido ao seu trabalho com o gado.

Dias depois, um dos bandos assim formados prende 17 homens e, sob a alegação de que estes haviam

se negado a mostrar supostos depósitos de mercadorias destinadas aos redutos, degola todos eles.

A notícia provoca grande escândalo. O general ordena uma devassa para apurar os

acontecimentos, mas os executores do massacre permanecem impunes. Ao que tudo indica,

Setembrino sabe que ainda vai precisar destes homens para ganhar a guerra e, portanto, prefere deixar

o fato cair no esquecimento”.

- “Pelo visto, os seguidores de José Maria não vão ter vida fácil...”, observa o secretário ao

coçar a cabeça.

- “Não mesmo – confirma Nádia ao piscar os olhos. Além dos revezes sofridos em alguns

24

Idem, pg. 195.

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combates, a notícia da morte de Francisco Alonso acirra a disputa pela liderança no interior das

comunidades. Elias de Moraes, que considera traição qualquer compromisso com as autoridades, quer

que a chefia seja entregue a Adeodato enquanto os partidários de Maria Rosa preferem Antoninho,

líder do ajuntamento de São Sebastião. Após várias desavenças e incertezas, o primeiro assume o

comando geral dos redutos.

De início, o novo líder manda interromper a ofensiva em todas frentes para permitir que uma

coordenação mais direta e unificada sobre os vários grupos proporcione a reorganização dos

combatentes. A manobra de isolamento implementada por Setembrino de Carvalho levanta a

necessidade do movimento se expandir a oeste do Rio do Peixe onde os redutários ficariam mais

afastados das tropas do governo e iriam dispor de mais recursos para a guerra. Em meados de

dezembro de 1914, Adeodato ordena a mudança do reduto-mor para o vale de Santa Maria, onde os

acidentes geográficos, além da mata virgem, dariam ao novo povoado uma posição defensiva

privilegiada.

Os sertanejos passam a acreditar que Santa Maria é chão sagrado e que, aí, todos seriam

imortais. Pouco a pouco, os nove quilômetros entre o reduto de Caçador e a nova comunidade são

ocupados por casebres de adeptos do monge e, no seu auge, Santa Maria vai contar com uma

população que se aproxima das cinco mil pessoas.

O problema é que, apesar de suas qualidades defensivas, as características do vale onde está

situada a nova cidade santa facilitam o fechamento do cerco planejado pelo exército. Se, um lado, as

ladeiras íngremes e os penhascos dificultam o acesso dos soldados, de outro, complicam a vida de

quem quer sair ou entrar no reduto.

Com o comércio externo interrompido pelas tropas legais, as crescentes dificuldades de

arrebanhar gado e a impossibilidade de plantar para garantir o abastecimento, as condições no interior

da cidade santa se tornam dramáticas. Não bastasse a fome, uma epidemia de tifo se abate sobre Santa

Maria matando uma média de 30 pessoas diárias.

Paralelamente a isso, as autoridades oficiais permitem, de forma tácita, que os vaqueanos a

serviço dos coronéis da região ataquem os rebanhos dos redutos e os que pertencem aos sertanejos

suspeitos de simpatizarem com os rebeldes ou de tolerarem suas ações.

Na medida em que a fome avança, as relações nas comunidades se deterioram. Adeodato passa

a tratar com extrema severidade qualquer desvio de conduta. A disciplina é imposta com mão de ferro.

Os que fraquejam diante das dificuldades são vistos como traidores potenciais. Entre os que

conseguem fugir dos redutos, parte se entrega aos bandos de vaqueanos que vasculham a região e

parte coloca-se a serviço das tropas oficiais fornecendo informações precisas sobre contingentes

armados, postos de vigilância e estratégia defensiva de cada comunidade”.

- “Nesta altura, os enfrentamentos com as tropas do exército e os civis armados pelos

latifundiários parecem anunciar um verdadeiro desastre...”.

Sem emitir palavra, a ave limita-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça. Em seguida,

senta na beirada de um livro deitado como quem precisa retomar fôlego para seguir viagem. Instantes

de silêncio anunciam a tempestade que está prestes a se abater sobre os redutos sertanejos.

Após um rápido piscar de olhos, Nádia limpa a garganta e, com voz compenetrada diz:

- “Em 21 de dezembro de 1914, chega preso em Curitibanos o sertanejo Augusto Alves.

Durante o interrogatório, revela que os rebeldes estão transformando Taquaruçu numa Nova

Jerusalém onde aguardam para o dia 25 a ressurreição de José Maria. Em seguida, com o apoio do

monge, atacariam a fazenda do coronel Henriquinho de Almeida e as cidade de Lages e Curitibanos.

De posse destas informações, o major Leovigildo Paiva se dirige ao reduto com 300 soldados e

ataca a comunidade enquanto seus membros se preparam para iniciar as cerimônias. Sem condições de

oferecer resistência, Taquaruçu é totalmente destruída pela segunda vez.

Dias depois, Setembrino de Carvalho dá início às ações ofensivas que devem completar a obra

de desmantelamento dos redutos iniciada com o cerco militar. No dia 28 de dezembro, lança um novo

apelo aos revoltosos no qual não oferece terra em troca de rendição, mas sim garantias para as famílias

voltarem a seus locais de origem.

Entre os primeiros a se entregar está Henrique Wolland, antigo chefe de Pedras Brancas,

destituído em função do excessivo rigor dos regulamentos por ele impostos à comunidade.

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Acompanhado por cerca de 250 homens, Wolland se declara disposto a combater ao lado do exército.

Dias depois, revela aspectos desconhecidos das táticas de guerrilha utilizadas pelos sertanejos, localiza

nos mapas as comunidades que ainda resistem e aponta com precisão de quantas forças estas dispõem.

De posse destes dados, o general fecha ainda mais o cerco em volta dos rebeldes.

Pressionados pelas necessidades, alguns chefes sertanejos da região norte do Contestado

negociam a rendição, mas nem sempre o exército respeita o que é pactuado. Ao tratar com Antonio

Tavares, os oficiais aceitam dar um prazo para viabilizar a rendição e a desmobilização da pequena

comunidade por ele liderada, mas, em 8 de fevereiro de 1915, a mesma é cercada pelas tropas que

incendeiam todas as casas e prendem mais de 300 pessoas. Tavares consegue escapar com 18

companheiros, 15 dos quais morrem de fome durante a longa fuga.

Ao sul da área de influência dos revoltosos 200 sertanejos do reduto de Santa Maria tentam

romper o cerco para penetrar nas terras de Henriquinho de Almeida em busca de víveres. Após um

breve sucesso inicial, o ataque é repelido pelos vaqueanos armados pelo exército. Obrigados a se

retirarem, os rebeldes ateiam fogo em todas as sedes de fazenda que encontram pelo caminho.

No início de 1915, a falta de alimentos e munições torna-se cada vez mais aguda. As rendições

se multiplicam em várias comunidades e centenas de famílias se entregam aos soldados. As prisões da

região estão lotadas e o destino dos prisioneiros depende da formação e da conduta de cada

comandante do exército encarregado de recebê-los.

Em alguns casos, ao perceber que se trata de pessoas que aderiram ao movimento por

curiosidade ou porque foram forçadas a fazê-lo, os oficiais as colocam em liberdade quando se

convencem de que elas querem realmente mudar de vida. Em outros, a cadeia é o destino certo até os

prisioneiros serem entregues aos vaqueanos que providenciam a degola e deixam insepultos os

cadáveres dos executados. Os sertanejos que aparentam ser inofensivos são enviados a Rio Negro

onde são mantidos em campos de concentração até serem encaminhados para as colônias agrícolas do

governo paranaense.

A heterogeneidade de classe e de adesão ao movimento, somada à fome que assola os redutos,

leva milhares de pessoas a abandonarem suas comunidades. Entretanto, em muitos casos, esta situação

está longe de significar o fim da resistência. A grande maioria dos que se entregam às autoridades é

composta por mulheres, crianças, aleijados, doentes e idosos. Como observam os militares, trata-se de

um grupo do qual os sertanejos procuram se desvencilhar para que os homens em condições de

continuar os combates possam ter mais chances de levar adiante a luta.

Frente ao esvaziamento de algumas comunidades e na tentativa de aprimorar a resistência,

muita gente converge para o vale de Santa Maria levando as armas e os víveres que ainda restam”.

- “Desse jeito, se, nesta cidade santa, as coisas já não estavam boas em função da falta de

suprimentos, agora é que podem ficar ainda piores...”, admite titubeante o ajudante ao pressentir a

iminência do desastre.

- “Ainda que os sertanejos tenham plena consciência disso, não há outra saída para rearticular

as forças que se propõem a continuar a resistência. É falando desta fase da luta que vou concluir o

nosso relato ao tratar de...”

10. Os últimos suspiros da guerra sertaneja do Contestado.

- “Em Santa Maria – diz Nádia ao levantar e andar cabisbaixa de um lado pra outro -, o cerco e

o acúmulo de pessoas produzem uma fome sem precedentes. De acordo com alguns relatos, a luta

pelas frutinhas da imbuia, por um pouco de mel ou para obter alguma caça ganha dimensões

desesperadoras. A mata é vasculhada palmo a palmo para extrair os recursos que pode oferecer.

Cavalos e cachorros são sacrificados e as pessoas chegam a lamber o suor próprio e alheio para suprir

a completa falta de sal. Tamanha é a miséria que alguns devoram couro cru, correias, capas de

cangalha e bruacas.

Desavenças e disputas internas se transformam em conflitos desagregadores. As medidas

disciplinares aplicadas por Adeodato levam à execução de dezenas de pessoas em função de simples

suspeitas ou de atitudes consideradas impróprias durante as formas. A situação torna-se ainda mais

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pesada na medida em que o chefe cria um clima que favorece a espionagem e a delação no interior do

grupo. A disciplina é mantida a ferro e fogo. Apesar disso, Santa Maria ainda resiste”.

- “Bom, diante desta situação, os militares não devem ter dificuldades para esmagar o reduto”,

afirma o secretário ao tirar uma conclusão aparentemente óbvia.

- “Nada disso – retruca a ave ao esboçar um sorriso amargo. Enquanto vários sofrimentos

atingem a cidade santa, Setembrino de Carvalho reúne os comandantes militares em União da Vitória

para preparar o ataque final. A primeira tentativa ocorre em 8 de fevereiro de 1915, mas os 600

homens sob as ordens do capitão Potiguara são repelidos por uma centena de sertanejos.

A segunda investida ocorre um mês depois. O plano prevê que o reduto seja bombardeado

para, em seguida, ser ocupado pelas tropas. Apesar do susto, o tipo de bombas utilizado não produz

grandes danos e, esgotada a munição, os militares atônitos vêem a população da comunidade voltar

novamente a seus afazeres.

No final de março, é organizado um destacamento especial com pouco mais de 500 soldados

escolhidos de várias unidades ao qual se incorporam 110 vaqueanos. Saída de Canoinhas, a coluna

enfrenta a resistência sertaneja a partir do terceiro dia de marcha, mas, graças a novas táticas de

combate, consegue neutralizar os ataques rebeldes. Dez dias após sua partida, as tropas estão nas

proximidades de Santa Maria. Os enfrentamentos se tornam mais duros e o exército perde dezenas de

homens, a maior parte dos oficiais e amarga centenas de feridos.

Apesar da inesperada resistência, Potiguara consegue entrar no reduto. Soldados e vaqueanos

percorrem as vielas, revistam os casebres, saqueiam e incendeiam o que encontram pelo caminho. A

igreja é transformada em sede do quartel geral e uma trincheira improvisada é construída com

pinheiros tombados. O que o capitão ainda não sabe, é que os sertanejos acabam de fechar o cerco em

torno do que resta de suas tropas.

Ao cair da noite, os militares são alvo de um tiroteio que se prolonga durante todo o dia

seguinte. Víveres e munições começam a escassear, mas alguns homens escolhidos conseguem

romper o cerco dos rebeldes e avisar as colunas de Setembrino que, com mais de 2.000 homens, estão

posicionadas em Taperas, a pouco mais de 6 quilômetros do reduto. Os reforços chegam rapidamente,

atacam os sertanejos pelas costas e dispersam suas forças. A possibilidade de vencer este novo

contingente é praticamente nula.

Tomada Santa Maria, os chefes militares se apressam a decretar a derrota do movimento.

Enquanto parte dos contingentes se prepara para deixar a região, os rebeldes que restam se dirigem

para o reduto de São Miguel. Lugar de difícil acesso, a comunidade já vinha abrigando mulheres,

crianças e adultos impossibilitados de combater que para lá haviam se transferido antes do último

ataque do capitão Potiguara.

Em meados de abril, aproveitando a retirada dos soldados, Adeodato sai de São Miguel com

um piquete de 300 homens a fim de arrebanhar gado e mantimentos para a comunidade. O ataque

produz os resultados esperados.

Após voltar da incursão, o líder ganha fama de ter sido tocado pelo poder divino e se torna

chefe absoluto do reduto. Com o apoio dos Pares de França, Adeodato exige que suas ordens sejam

cumpridas cegamente. Sustentada em ações que espalham o terror na comunidade, a sua autoridade

não admite que outras lideranças possam surgir e ameaçar o seu prestígio. Pequenos deslizes, críticas

veladas, possíveis deserções e simples desconfianças são punidos com rigor extremo. Basta pouco

para que alguém seja acusado de atentar contra a religião e tenha que sofrer a pena capital.

Lamentações, lamúrias e expressões de dor são proibidas. As viúvas são impedidas de chorar

os maridos mortos. Filhos e parentes dos executados no reduto devem declarar diante da comunidade

que tinha que ser assim. A crueldade e o grande número de assassinatos despertam ódios e rancores no

interior de São Miguel. Abalados, a solidariedade e o companheirismo cedem lugar a velhos padrões

de vingança pessoal.

Alguns meses depois, Adeodato ordena que a comunidade mude para um lugar próximo ao Rio

Timbó, onde é edificada a cidade santa de São Pedro. Em pouco tempo, o novo reduto conta com

2.000 casebres, uma igreja, uma grande praça na qual, três vezes ao dia, são realizadas as formas. As

procissões integram os rituais cotidianos, sempre lideradas por Adeodato que marcha à frente do

cortejo com a estátua de São Sebastião no ombro, acompanhado pelas virgens e os Pares de França,

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todos armados.

Apesar de mantidas, as cerimônias religiosas não refletem mais o autêntico e generalizado

entusiasmo dos primeiros tempos. Ao contrário, em São Pedro, há um descontentamento crescente

tanto em função da escassez de alimentos, como dos desmandos de Adeodato. As rivalidades e o

clima de desconfiança recíproca se acirram ainda mais após a chegada das centenas de sertanejos do

reduto de Pedras Brancas”.

- “Pelo menos, agora tem mais gente para organizar a resistência...”.

- “E para alimentar – acrescenta a coruja ao abrir as asas. Perdidas todas as provisões

armazenadas, as famílias que se dirigem a São Pedro chegam famintas e de mãos abanando. A

produção das poucas roças cultivadas pelos sertanejos não dá conta de alimentar os 4.000 moradores

aí existentes e agora, com a chegada do novo contingente de refugiados, a situação de penúria piora

sensivelmente.

O problema é que, a norte de São Pedro, os piquetes de vaqueanos, policiais e soldados

impossibilitam a procura de víveres, enquanto, a sul, os recursos escasseiam na medida em que, com a

destruição das fazendas, muitos proprietários e agregados abandonaram a região deixando as terras

incultas e sem nenhuma cabeça de gado. Se isso não bastasse, nesta área, o capitão Vieira da Rosa

mantém sob suas ordens nada menos do que 1.000 homens armados, entre civis e militares, divididos

em grupos volantes que controlam uma extensão de 120 quilômetros e não dão trégua aos rebeldes.

No final de outubro de 1915, Adeodato sai à frente de um piquete com a intenção de repetir o

que havia conseguido meses antes. Mas um dos destacamentos sob as ordens de Francisco Dias

surpreende os rebeldes num ataque fulminante. Ferido, o chefe sertanejo consegue escapar com vida.

Sem comida, sem roupas e sem munições, São Pedro não tem mais condições de resistir. Em

meados de dezembro do mesmo ano, um contingente de 26 praças e 168 civis armados, sob o

comando do capitão Euclides de Castro, se aproxima da comunidade por um caminho desguarnecido e

lança um ataque de surpresa logo após uma procissão. Na confusão, Adeodato consegue fugir com 40

homens armados. Alguns tentam resistir, outros se refugiam na mata. Por toda parte, há cadáveres de

mulheres e crianças que não conseguiram escapar da fúria destruidora dos agressores. No final do dia,

a cidade santa é reduzida às cinzas”.

- “E o que vai ser do povo que consegue salvar a própria pele?”, pergunta o homem animado

por um último fio de esperança.

Envolvidos em trapos e desesperados de fome, mais de 1.000 sertanejos entram em Canoinhas

sob os olhares estupefatos de uma população que nunca havia imaginado miséria igual. Esquecendo

ressentimentos e contrariando as ordens das autoridades, o povo simples tenta socorrer aquela

multidão esfomeada de homens, mulheres e crianças que não tem forças para ficar em pé.

Enquanto isso, os grupos de vaqueanos e policiais que patrulham a região dedicam-se a

vasculhar a mata em busca dos fugitivos. Em suas andanças, se deparam com os cadáveres dos

vitimados pela fome ou com pequenos agrupamentos de miseráveis que mal conseguem caminhar. Em

Perdizinhas, os primeiros sertanejos a serem feitos prisioneiros são levados para uma grande casa.

Destes, 81 são fuzilados nas primeiras horas e outros 86 vão ser degolados nos dias que seguem.

Terminada a guerra, fazendeiros e políticos locais desatam sua sede de vingança. Sob a

alegação de que se trata de jagunços e bandidos inimigos da República e das autoridades constituídas,

por cinco anos após a destruição de São Pedro, quem vigiar, perseguir, prender e até matar alguém que

tenha lutado na guerra do Contestado, familiar deste ou suspeito de ter pertencido a algum reduto não

está cometendo um crime, mas realizando sim uma ação que conta com o apoio dos poderosos.

As vítimas que, inconformadas com a situação de miséria, haviam se rebelado contra seus

exploradores, são colocadas no banco dos réus e condenadas pelo mesmo sistema que as produziu.

Isso se torna possível na medida em que, além do aparato militar e paramilitar, as elites e seus meios

de comunicação forjam uma visão de mundo na qual seus interesses são apresentados como a

realização natural, e, portanto, inquestionável, da história. Em volta desta, somam vontades dispersas,

ganham adeptos e não poupam meios para buscar a aprovação da igreja oficial, das autoridades, das

forças armadas e do próprio povo, cujo aplauso transforma em pessoas de bem quem construiu sua

fortuna sobre a espoliação e o suor alheio. O consenso assim criado silencia qualquer questionamento

e faz com que as tentativas de contestação de sua ordem sejam vistas e condenadas não como ameaça

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a seus interesses particulares, mas sim à sociedade como um todo.

Por isso, demonizar e desqualificar quem passa da resignação à revolta é o passo necessário e

imprescindível para condenar como subversiva qualquer criação dos de baixo que não possa ser

reconduzida e enclausurada nos estreitos limites do sistema. Realizada esta tarefa, as elites conseguem

a aprovação de amplas camadas da população às ações que desatam contra os rebeldes a execração

pública, os rigores da lei e a repressão que procura restabelecer o silêncio cúmplice sobre a realidade

que possibilitou seu aparecimento. Neste processo, jagunço e bandido não é quem está a serviço dos

latifundiários e, muito menos, quem lhe fornece armas e dinheiro para defender terras griladas e

privilégios questionáveis sob todos os pontos de vista. Ao contrário, jagunço e bandido só pode ser

quem, desesperado pelas injustiças a que está submetido, decide defender coletivamente o próprio pão

numa realidade que lhe nega seguidamente o direito de viver.

Massacrados os revoltosos, a pacificação do Contestado não conhece a distribuição de terras

entre quem delas realmente precisa ou alguma forma do que pode ser chamada de justiça social. Ao

contrário, a área assiste à ampliação das fazendas, à exploração irrestrita das madeiras nobres e demais

riquezas da região, à concessão de grandes faixas de terreno agricultável em pagamento de dívidas do

estado ou para promover novas famílias de fazendeiros, além da venda, a caro preço, de lotes a

colonos europeus.

- “E do antigo chefe dos redutos...alguma notícia...”.

- “Sim – confirma a ave ao apontar a asa direita para o secretário. Dormindo no mato e

contando com a ajuda de alguns moradores, Adeodato consegue escapar por alguns meses às

investidas dos grupos de vaqueanos que vasculham a região. Abatido pelas dificuldades do seu

peregrinar e pela rigidez do inverno, acaba se entregando em Canoinhas no início de agosto de 1916.

Temendo a fuga da prisão local, o ex-chefe é levado a São Francisco, de onde segue para

Curitibanos a fim de ser julgado no tribunal local. Condenado a 30 anos de prisão, é transferido para o

presídio de Lages, de onde consegue fugir.

Recapturado, é enviado a Florianópolis para cumprir o resto da pena. Aqui realiza uma nova

tentativa de fuga, mas é alvejado pelo diretor da penitenciária e morre”.

- “Meu Deus! Que final mais triste...”, comenta o ajudante em voz baixa.

- “O problema, querido bípede da espécie humana, não é o final desta história, mas sim o risco

de fazer cair no esquecimento a luta e o sacrifício de milhares de pessoas que, a seu modo e com os

poucos recursos de que dispunham, tentaram construir um amanhã melhor para todos. Ao resgatar as

lutas de Canudos e Contestado, não procuramos ocultar seus erros e fragilidades, nem, muito menos,

buscamos apresentar modelos para os enfrentamentos futuros. A nossa preocupação foi somente a de

fazer com que a memória se torne um instrumento capaz de instigar os de baixo a perceber a

possibilidade e a necessidade de criar um mundo diferente daquele em que vivem.

Ao desvendar o que as elites escondem nos intricados caminhos da história, esperamos que os

homens e mulheres do nosso tempo comecem a se perguntar o porquê das coisas, aprendam a ouvir e

costurar os anseios de justiça e de mudança que vêm de baixo e, sobretudo, não aceitem que seu

silêncio ajude os poderosos a manter sua dominação.

Os sertanejos de Belo Monte e da região do Contestado não tinham condições materiais,

militares e culturais de vencer as guerras travadas contra eles, mas nem por isso deixaram de enfrentar

um inimigo poderoso. A ousadia revelada em suas lutas deixou no solo do tempo marcas tão fortes

que seus feitos não só continuam sendo objeto de estudos e debates acadêmicos, como fazem chegar

até nós a eco das vozes que exigiram, e exigem, uma sociedade onde haja tudo para todos”.

Pronunciadas as últimas palavras, Nádia se despede e seu vôo ganha os céus escuros da noite.

Nas ruas, as pessoas voltam para casa após uma dura jornada de trabalho. Poucas vozes

rompem a monotonia que esmaga suas esperanças e convida a uma resignada submissão.

Passo a passo, as pernas se afastam da janela pela qual os ouvidos tiveram acesso a um breve

período do passado. Como um marco de estrada, os acontecimentos reconstruídos pelo relato da

coruja podem continuar sendo ignorados pelos passantes, mas, faça chuva ou faça sol, continuam

firmemente plantados no solo do tempo. Em seu silêncio pétreo, se tornam testemunhas vivas da

necessidade dos oprimidos fazerem ressoar o seu “Não!” diante das investidas de seus opressores.

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