a respeito de confiança e desconfiança luiz orlandi para danni e rose morte e afins

25
1 A respeito de confiança e desconfiança 1 Por não atuar profissionalmente nas áreas aqui envolvidas, gostaria de contornar minha dificuldade propondo um mínimo recorte da vastíssima problemática da saúde. Vastíssima, repito, porque há muitas frentes de combate nisso tudo, o que a aproxima até mesmo da mais rebelde caótica. Como ordenar tudo isso sem cair em meras generalidades? Não sei. E acho que até vocês, bem mais entrosados com esses problemas, vivem a permanente dificuldade de mapear os fulgores deste ou daquele ponto dessa multiplicidade de campos. Então, como contornarei minha dificuldade? Com apoio em algumas lembranças de estudos deleuzeanos, tentarei esboçar, e apenas esboçar, duas direções que se misturam na pesquisa interessada na implicação ética desses combates: numa primeira direção, a saúde é indiretamente visada na perspectiva de suas atualizações; numa segunda direção, a saúde é indiretamente visada na perspectiva de suas virtualizações. 2 Do ponto de vista das preocupações que atiçam a consciência que se elabora em nós da nossa própria saúde, desdobram-se perguntas que nascem da nossa inserção imediata nos percursos do nosso dia-a-dia. Ao perguntarmos pelos alimentos que nossos corpos orgânicos devem consumir para o seu bem, ao perguntarmos pelos mais variados cuidados propícios ao seu pleno e bom funcionamento, Comunicação apresentada no Colóquio “Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde”. Rio de Janeiro. 8 de maio de 2009. Agradeço a Valéria do Carmo Ramos Stefani pela amabilidade do convite.

Upload: andre-rodrigues

Post on 13-Dec-2015

4 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Orlandi discute as noções de confiança e de desconfiança e sua relação com o cuidado em saúde

TRANSCRIPT

Page 1: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

1

A respeito de confiança e desconfiança

1 Por não atuar profissionalmente nas áreas aqui envolvidas,

gostaria de contornar minha dificuldade propondo um mínimo recorte

da vastíssima problemática da saúde. Vastíssima, repito, porque há

muitas frentes de combate nisso tudo, o que a aproxima até mesmo

da mais rebelde caótica. Como ordenar tudo isso sem cair em meras

generalidades? Não sei. E acho que até vocês, bem mais entrosados

com esses problemas, vivem a permanente dificuldade de mapear os

fulgores deste ou daquele ponto dessa multiplicidade de campos.

Então, como contornarei minha dificuldade? Com apoio em algumas

lembranças de estudos deleuzeanos, tentarei esboçar, e apenas

esboçar, duas direções que se misturam na pesquisa interessada na

implicação ética desses combates: numa primeira direção, a saúde é

indiretamente visada na perspectiva de suas atualizações; numa

segunda direção, a saúde é indiretamente visada na perspectiva de

suas virtualizações.

2 Do ponto de vista das preocupações que atiçam a consciência

que se elabora em nós da nossa própria saúde, desdobram-se

perguntas que nascem da nossa inserção imediata nos percursos do

nosso dia-a-dia. Ao perguntarmos pelos alimentos que nossos corpos

orgânicos devem consumir para o seu bem, ao perguntarmos pelos

mais variados cuidados propícios ao seu pleno e bom funcionamento,

estamos perguntando, a rigor, pela melhor “mistura”, pela melhor

composição possível entre nossos corpos e os demais, sejam estes

grandes, pequenos ou minúsculos, sejam eles feitos desta ou daquela

matéria, estejam próximos ou distantes etc. E sabemos quantas

vezes repetimos diferentemente esse tipo de pergunta ao longo das

nossas vidas, pois é comum a experiência de passarmos por bons e

maus encontros com corpos que nos fizeram bem ou mau em

diferentes circunstâncias, neste ou naquele momento. Ora, essa Comunicação apresentada no Colóquio “Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde”. Rio de Janeiro. 8 de maio de 2009. Agradeço a Valéria do Carmo Ramos Stefani pela amabilidade do convite.

Page 2: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

2

experiência do cuidar de si, essa variada reiteração das perguntas

que somos levados a fazer a respeito do que pode afetar nossa

própria saúde corporal ou mental, tudo isso nos impõe distintos graus

de um estado de alerta. Por quê? Porque, condenada a viver ao longo

dos dias e das horas a experiência desse estado, nossa subjetividade

não tem descanso do ponto de vista de uma durável expectativa,

como se fosse inevitável vivermos oscilando sempre entre a espera

da boa ou a espera da má ocorrência. Que nome dar a esse estado?

3 Não é fácil nomeá-lo. Mas podemos usar duas palavras

empregadas por Deleuze para apontar aqueles que talvez sejam os

sintomas que nos assaltam ao nos misturarmos com outros corpos: o

sintoma denominado “confiança” e o sintoma denominado

“desconfiança”. Confiança e desconfiança: não apenas em relação à

variabilidade das afecções que nos atingem, não apenas em relação à

potência vital que sentimos variar em nós, não apenas em relação às

forças que julgamos possuir a cada momento, mas também em

relação ao próprio “mundo”, em relação ao conjunto dos nossos

encontros, ao conjunto dos dispositivos, institucionais ou não, que

enredam, cada qual a seu modo, as possibilidades do nosso bem-

estar e do nosso mal- estar. São exímios jogadores esses dois

sintomas que se espalham por todas as conjugações do confiar e do

desconfiar, desde sua aplicação a este ou àquele plano de saúde até

sua aplicação aos candidatos que elegemos para ocupar poderes

públicos que nos afetam. Confiança e desconfiança nunca pararam de

atuar nos variados campos do nosso viver, a tal ponto que os

estóicos, como lembra Deleuze, os apontam como “dupla atitude face

ao mundo”, atitudes sintomáticas da pergunta que ele extrai dos

Pensamentos de Marco Aurélio: “será esta a boa ou a má mistura?” 1.

A pergunta se impõe, justamente porque somos feitos dessas

misturas disparatadas, somos feitos dos nossos bons e maus

encontros.

1 Gilles Deleuze, Logique du sens, Paris: Minuit, 1969, p. 191. Lógica do sentido, tr. br. de Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 168.

Page 3: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

3

4 Cada um de nós, separados ou juntos, é um campo em que

essas atitudes sintomáticas subsistem alternadamente, e até

simultaneamente. Por força das oscilações dos nossos encontros, por

força das suas variações quantitativas e qualitativas, o envolvimento

mútuo do confiar e do desconfiar chega a ser a mais constante

doença pública e privada que nos liga ao mundo, pondo sempre em

risco a possibilidade de nele termos alguma fé. A respeito disso, é

como se a lucidez de Deleuze, dois anos antes de sua morte,

estivesse embebida no ácido que escoa de uma frase como esta: “o

mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o

homem” 2. Mas, considerando o caso de sermos adultos tornados

relativamente experientes pelos encontros vividos ao longo dos anos,

cabe perguntar o seguinte: estaria, verdadeiramente, ao alcance da

nossa mera consciência evitar essa dupla atitude, essa imersão

sucessiva e/ou simultânea na confiança e na desconfiança? Bastaria

virar as costas a esses sintomas, matá-los assim que eles agradassem

ou ferissem nossa sensibilidade?

5 Muito dificilmente. Por quê? Não por nos faltar quase sempre

uma decisiva força de vontade para nos fixarmos num desses pólos,

mas simplesmente porque somos corpos vivos. E por que vivemos,

convivemos imediatamente com a morte, da qual Deleuze chegou a

dizer que ela, “antes de tudo, é a fonte dos problemas e das

questões, a forma derradeira do problemático, a marca da

permanência do problemático acima de toda resposta, o Onde e o

Quando?” 3. Mais explicitamente, está fora do nosso alcance livrarmo-

nos da confiança e da desconfiança em nossos encontros, porque

convivemos com aquilo de que “a morte é ‘feita’”, reitera Deleuze, ao

reler idéias de Xavier Bichat, médico, fisiologista e um dos pioneiros

no campo da histologia, autor de Recherches physiologiques sur la vie

2 G. Deleuze, Critique et clinique, Paris : Minuit, 1993, p. 14. Crítica e clínica, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São Paulo : Ed. 34, 1997, p. 13. 3 G. Deleuze, Différence et répétition, Paris: P.U.F., 1968, p. 148. Diferença e repetição, tr. Br. de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro : Graal, 1988, 1ª ed., p. 189; 2006, 2ª ed., p. 166.

Page 4: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

4

et la mort (1800), idéias anteriormente retomadas por Foucault. E do

que a morte é feita?

6 Contrariando a concepção clássica da morte como “instante

decisivo ou acontecimento indivisível”, Bichat nos leva a pensar a

morte como “cortejo de um ‘Morre-se’”. Somos portadores de um

morre-se indiferente ao pseudo centro que costumamos chamar de

eu. Ao quê está ligada essa indiferença para comigo de um morrer

permanentemente conjugado em mim? Está ligada àquilo de que a

morte é feita, está ligada à morte entendida como “multiplicidade de

mortes parciais e singulares”. O cortejo do morre-se é presença desse

tipo de multiplicidade atuante no corpo vivo. Por isso, a consciência

não é o árbitro absoluto do jogo da confiança e da desconfiança. Ela

recebe inúmeros sinais emitidos por ele, é claro, mas num

cruzamento de linhas que a surpreendem, obrigando-a a

contorcionismos e a alianças com forças que não são precisamente

suas. Sem dúvida, chegamos a ter consciência de que queremos

confiar em certos momentos e desconfiar em outros. Sim, mas por

que confiamos? Seria porque nos iludimos ou porque a vida é

insistente, parecendo buscar caminhos que a ajudem a perseverar

em cada um de nós? E por que desconfiamos? Pelo exercício

permanente de algum senso crítico? Pode ser que essa postura se

verifique em muitos casos; mas é preciso levar em conta que até a

mais sólida saúde também convive com pontos de apoio numa

desconfiança que não pede licença a senso crítico algum para

instalar-se, dado que, radicalmente pensada, a própria morte é

“coextensiva à vida” 4.

7 Então, será que isso é tudo? Será que o nosso complexo

campo de experiências com a saúde e a doença mantém a

centralidade desse jogo de vida e morte que a consciência pratica

ativamente ou pelo menos registra como cotidianas oscilações da

confiança e da desconfiança em nossos encontros, sejam aqueles

que, em nós mesmos, relacionam as partes que nos constituem,

4 G. Deleuze, Foucault, Paris: Minuit, 1986, p. 102.

Page 5: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

5

sejam aqueles que nos entrosam ou nos desentrosam com os outros,

as coisas e o mundo? Será que não nos desprendemos de quando em

quando dessa macabra oscilação de boas e más expectativas?

8 É claro que algo mais ocorre no próprio nível consciente e

semi-consciente em que se pratica esse jogo. Com efeito, sabemos,

há muito tempo, que há possibilidade de interferirmos nessas

oscilações do confiar e do desconfiar, a fim de reduzirmos a

incidência dos estados em que esses verbos ocorrem como

dilacerantes curtos-circuitos. E para serenidade do nosso ânimo,

geralmente preferimos procedimentos que julgamos serem capazes

de tornar mais duradoura a confiança, simplesmente porque é muito

enervante permanecermos em constante desconfiança.

Paradoxalmente, talvez seja esta a razão pela qual descuidamo-nos

em demasia em assuntos de saúde, assim como nos contentamos

com frases humorísticas a respeito da canalhice de homens públicos

que se dedicam aos seus interesses particulares em detrimento da

saúde dos tesouros do povo. O próprio descuido, portanto, quando

possível, já aparece como um tipo de intervalo insuflando um sossego

mais ou menos breve nesse jogo.

9 Porém, é mais duradoura nossa confiança em nossa

alimentação, por exemplo, quando as refeições nos fazem bem do

ponto de vista das nossas disposições vitais, do nosso gosto etc.,

assim como do ponto de vista das pesquisas interessadas nas

qualidades dos alimentos, dos remédios, dos programas eleitorais

etc., mesmo que tais pesquisas não gerem verdades absolutas. Ou

ainda, na perspectiva da saúde da nossa audição, que esforço

podemos fazer para nos rodearmos das sonoridades que nos ajudem

a suportar melhor, sem a necessidade de nos tornarmos violentos, as

vizinhanças que nos condenam a ouvir seus alarmes e os latidos dos

seus cachorros incontroláveis? Até mesmo algumas pessoas

fortemente ligadas a bebidas ou drogas, quando alcançam, por si ou

graças à ajuda de outrem, decisivo poder sobre si mesmas, talvez

consigam cuidar do seu melhor entrosamento possível com dosagens

Page 6: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

6

virtuosas, isto é, confiáveis, ou seja, propícias (pelo menos

temporariamente) à retomada não catastrófica da variabilidade dos

efeitos alucigênicos. Que nome dar ao conjunto dos cuidados

tendentes a assegurar uma confiança mais duradoura em nossos

encontros marcados pela problemática da saúde corporal ou mental?

10 Há um velho nome empregado por Platão e Aristóteles em

suas respectivas maneiras de pensar: phronesis. As significações

linguageiras desse termo também ressoam na idéia de cuidados a

serem tomados tendo em vista o que é bom, o que faz bem ao

existente. Como conceito, Platão o mantém ligado ao seu próprio

ideal de conhecimento verdadeiro. A uma ciência correspondente a

esse ideal, aquela que encontra em si mesma seu próprio fim,

Aristóteles chegou a dar esse mesmo nome em textos ditos de

juventude e até mesmo na Metafísica (A, 2, 982 b 24), assim como o

nome sophia (sapientia, sabedoria para os latinos), designando um

saber científico do necessário. Porém, na Ética Nicomaquéia,

justamente a obra que, destinada a uma problemática ética, é

também aquela cujo livro VI é tido como esclarecedor de sua noção

de ciência, o termo phronesis aparece como virtude voltada ao

contingente, virtude que se flexibiliza relativamente a indivíduos e

circunstâncias. É nesta perspectiva que os latinos da tradição estóica

traduziram phronesis por prudentia (Cícero, De Officiis, I, 43, 153).

11 Pois bem, chamar a prudência aristotélica de virtude implica

distingui-la não apenas da ciência do necessário, mas também da

arte. Anotemos que há uma íntima imbricação entre virtude e

prudência em Aristóteles. Como diz Aubenque, isto é notável na

própria definição geral de virtude presente nessa Ética: “a virtude é

uma disposição da vontade”, disposição que “consiste no justo meio

relativo a nós”, meio esse que “é determinado” por uma “regra justa”

que o “homem prudente determinaria”. (Ét. Nic., II, 6, 1106 b 36).

Conquanto implique um exercício do pensamento, essa regra não

deriva puramente da teoria, mas da busca daquilo que faria um

homem prudente, um virtuoso, em determinada circunstância de

Page 7: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

7

certo modo semelhante àquela que me envolve. Isto fica explícito

numa estrita definição de prudência como “disposição prática”, o que

é suficiente para distingui-la da ciência do necessário ao consignar-

lhe um fim no domínio das contingências em que vivem os homens: a

prudência é uma “disposição prática acompanhada de regra

verdadeira concernente ao que é bom e mau para o homem” (Ét. Nic.,

VI, 5, 1140 b 20). É precisamente por ser prática, por ser uma

disposição voltada para a ação (práxis), que a prudência deixa

também de ser arte, pois esta é ligada por Aristóteles à produção

(poyesis). Essas ações implicam um processo educativo, dado que,

como salienta Barbara Cassin ao analisar certa passagem da obra

Política (VII, 13, 1332 b 4 ss.), “se cada cidadão for ‘virtuoso’

(spoudaios, ‘homem de bem’), a cidade como um todo será assim”;

mas esse processo deve articular-se à importância crescente de “três

fatores que tornam alguém virtuoso: physis, ‘a natureza’, éthos, ‘o

hábito’ e logos”, que a autora traduz por “razão” 5. É visível que não

se trata de uma escolaridade qualquer.

12 Como justificar esta breve passagem pela prudência

aristotélica num texto que pretende apoiar-se em estudos

deleuzeanos não especializados em Aristóteles? Primeiro, porque

certa idéia de prudência não é estranha a Deleuze, como será

salientando logo mais. Segundo, porque ocorre a alguns usuários de

frases deleuzeanas tratar com certo desdém a palavra prudência,

como se temessem que esse conceito, como virtude, pudesse

contaminar o pensamento deleuzeano ou condenar sua ética a

estabilizar-se no culto de um medíocre meio termo, culto que nem

mesmo parece ser o de Aristóteles. Aliás, com a ajuda de outras

frases, esses usuários poderiam notar que tal culto não aparece em

Deleuze. Por exemplo, relida por ele, a nietzscheana vontade de

potência atua como critério de seleção dos encontros ao promover 5 Os dois últimos parágrafos resumem livremente passagens do livro de Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, Paris, PUF, 1963, pp. 8, 9, 34-39, uma passagem do livro de Barbara Cassin, Aristóteles e o logos – Contos da fenomenologia comum (Paris: P.U.F., 1997) , tr. br. de Luiz Paulo Rouanet, São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 54. E foi consultado o livro de Oswaldo Porchat Pereira, Ciência e dialética em Aristóteles, São Paulo, Ed. UNESP, 2001, pp. 272-277.

Page 8: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

8

uma postura ética, postura que “não consiste em cobiçar e nem

mesmo em tomar, mas em dar e em criar”; é para ela que Zaratustra

encontra o “verdadeiro nome”: em sua forma intensa, a vontade de

potência, diz ele, “é a virtude que dá” 6 .

13 Mas, aquém desses auges intensivos, é também preciso

levar em conta o seguinte: em sua cotidianidade extensiva, a própria

vida de aristotélicos e deleuzeanos é coagida a envolver-se com

esforços opinativos capazes de calcular as misturas que possam fazer

durar a confiança em seus encontros. E estes incluem aqueles

especialmente marcados pela problemática da saúde. Neste caso, a

prudência opera tanto na escolha de cuidados destinadas à vida mais

saudável, a um bem viver, quanto na sobreposição da confiança

sobre a desconfiança relativa a esses cuidados. Em conseqüência,

intervalando-se entre a confiança e a desconfiança no sentido de uma

durável preponderância daquela em relação a esta, a prudência ajuda

a reduzir o tempo do nosso estar à deriva dos curtos circuitos desse

jogo que simplesmente nos adoece ainda mais.

14 Mas quando falamos em ganhar tempo cronológico por meio

de ações prudentes, expomo-nos a uma objeção a ser considerada,

porque ela também corrói, por desconsideração suicida ou não, as

investidas do confiar e do desconfiar. A objeção é a seguinte: que

fazer desse tempo que se acaba ganhando graças a uma prudência

que muitas vezes é capaz de mediocrizar a existência, de reduzir

nossas forças vitais a uma medíocre contenção do nosso desejo ou de

promover nossa adequação a uma esfera de prazeres duvidosos do

ponto de vista de uma vida envolvida com a complexidade de sua

própria potência? Observemos, entretanto, que essa objeção não se

arma precisamente contra o exercício de alguma prudência, mas

6 “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, et autres textes (textes et entretiens 1953-1974). Éd. préparée par David Lapoujade, Paris, Minuit, 2002 pp. 166-167 ; 171. “Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno” – texto 15 – 1967, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, em A Ilha deserta e outros textos (textos e entrevistas 1953-1974). Tr. br. Coletiva, São Paulo: Iluminuras, 2006). pp.158 ; 161-162.

Page 9: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

9

contra a mediocridade insuflada no tempo que foi ganho graças a

escolhas prudentes tornadas possíveis. Vemos, portanto, que o

problema se complica, suscitando pelo menos duas perguntas: que

possibilidades de escolhas e ações prudentes estão ou podem ser

abertas em meu campo de experiências? Que fazer do tempo

porventura ganho ao longo desses cuidados?

15 Parece óbvio que o trato dessas duas perguntas não pode

satisfazer-se com respostas que as tornem independentes uma da

outra. Com efeito, por menor que seja o tempo cronológico

conquistado, esse tempo porventura ganho ao longo de ações

prudentes, convenhamos que ele pode muito bem ser aplicado numa

vasta rede de interferências, em amenas andanças por aí, no

embelezamento da existência, na leitura de obras excelentes, nos

encontros que nos ajudam ou nos forçam a “criar no pensamento o

ato de pensar” 7, nas idas ao cinema etc. e/ou ser vigorosamente

investido no combate aos intoleráveis que cerceiam a abertura dos

possíveis em nosso campo de experiências. Sabe-se que Deleuze,

desde 1968, quando foi hospitalizado aos 43 anos em conseqüência

de uma seriíssima tuberculose 8 , conviveu com uma saúde frágil até

o suicídio em 1995, suicídio que aparece como afirmação num lance

final, como derradeira e digna viagem de um corpo extremamente

separado do seu poder de respirar. Importa destacar que a partir de

1968 ele ganhou um tempo de vida, e vida produtiva, graças a certos

cuidados, ter rompido com a bebida, por exemplo. Contudo, ele disse

que teve “menos mérito” ao fazer isso. Por que, menos mérito? Ele

responde: “porque parei de beber por razões de respiração, de saúde

etc., mas é evidente que se deve parar ou se privar disso”. Podemos

notar que dois níveis se insinuam nessa resposta. Até o etc., o parar

de beber teria sido eticamente menos meritório porque se tratava de

uma ação tornada urgente por problemas respiratórios que o afligiam 7 G. Deleuze, Proust et les signes, Paris : P.U.F., 1964 ; 4ª ed. remanejada 1976, p. 134. Proust e os signos, tr. br. de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado, Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987, p. 109.8 Ver, “L’Abécédaire de Gilles Deleuze”, entrevista a Claire PARNET realizada por P. A. Boutang em 1988 e transmitida em série televisiva a partir de novembro de 1995 pela TV-ART, Paris: Vídeo Edition Montparnasse, 1996, Letra M, Maladie (Doença).

Page 10: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

10

em demasia. Essa atmosfera de um simples e prudente cuidar de si

teria dominado também a segunda parte da frase, se após o etc. ele

tivesse dito, por exemplo, de modo que é evidente que se deve...

Porém, o mas empregado aí não parece estar funcionando como

advérbio destinado a corroborar o já dito anteriormente; ele parece

operar como conjunção adversativa que nos obriga a argumentar

assim: entendo, prezado Deleuze, que seus problemas respiratórios o

obrigaram a parar de beber, mas por que razão “é evidente que se

deve parar ou se privar disso”? Portanto, uma outra causa está aí

operando, que não apenas a do prudente enfrentamento do problema

respiratório imediato. Que causa seria essa?

16 Que causa se insinua, forçando-o a ocupar esse tempo

ganho e não apenas a gastá-lo no usufruto prazeroso de uma vida

biológica ou social prudentemente vivida numa atualidade tornada

menos intolerável? Vejamos outra passagem do Abecedário ainda

ligada a esse problema do beber ou drogar-se: “Beber, se drogar,

tudo isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se

se deve pagar depois [...] mas em todo caso, está ligado a isto,

trabalhar, trabalhar. [...] A única justificação possível é se isso ajuda o

trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais

se avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...”

Como vemos, a causa que se insinua no segundo nível a que nos

referíamos já não se liga simplesmente às ações de uma prudência

que se esgota no cuidado fisiológico de si, de sua própria saúde atual;

liga-se, isto sim, a “algo forte demais” que poderá estar ao alcance da

minha potência, da minha força de trabalho, do meu corpo, enfim, se

este for efetivamente capaz disso. Algo forte demais a que sou levado

a engatar minha potência. Por isso, Deleuze diz ainda: “e é evidente

que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a

droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto,

não tem mais interesse”. Portanto, o critério de seleção daquilo a que

convém abrir meu corpo orgânico vem a ser sua participação

favorável no movimento pelo qual minha força de trabalho se compõe

Page 11: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

11

com esse algo forte demais que sinto ser capaz de aliciar

maximamente minha potência de vida. É esse movimento em prol do

meu envolvimento com algo forte demais que me lança para além do

princípio dos prazeres imediatos da minha vida, da minha saúde em

sua cotidiana atualidade.

17 Que será esse algo forte demais? Em termos deleuzeanos,

esse algo forte demais é o retomar a criação, o recomeçar o novo 9.

No caso de Deleuze, esse algo estava ligado ao fazer filosofia, isto é,

à criação de “conceitos filosóficos”; mas conceitos que, por

ressonância entre si e por ressonância entre os componentes de cada

um, acabam por levar a consistência assim alcançada a determinar a

seu modo a própria consistência de uma problemática da diferença

que, por sua vez, impunha-se ao seu pensamento. Tarefa exaustiva.

Ele teve a sensação de que beber o “ajudava a fazer conceitos”, mas

“depois”, diz ele, “percebi que já não ajudava, que me punha em

perigo”, pois “não tinha vontade de trabalhar se bebesse” 10. Para que

haja essa criação, impõe-se o encontro com algo forte demais, como

foi dito; mas o que também se impõe, concosabebndmitantemente, é

um estar à espreita desse algo, mesmo que de maneira divertida.

“Estou à espreita de algo”, diz ele, “que passa dizendo para mim...

isso me perturba”. Sem desenvolvermos aqui esse tema, podemos

dizer que os movimentos implicados no re-criar, no re-começar, estão

como que pincelados de rebrilhos, de luminescências, a que podemos

colar o nome de idéias. Ele diz: “sempre tenho a impressão que posso

ter o encontro com uma idéia”. Não se trata nem de idéias prontas e

nem de idéia no sentido de Platão. Por que? Porque há idéia em

“todas as atividades criadoras”, pois “criar é ter uma idéia”, de modo

que “um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo, mas não se

trata do mesmo tipo de idéias”. É quando os rebrilhos de um encontro

9 « Primeiramente, é verdade que não se opera a própria criação [...], mas a re-criação, não o começo, mas o re-começo.” G. Deleuze, L’Île deserte et autres textes (textes et entretiens 1953-1974), Paris : Minuit, 2002. Texto 1 : « Causes et raisons des îles désertes » (Manuscrito dos anos 50). P. 16. A ilha deserta e outros textos. Texteos e entrevistas (1953-1974). Tr. br. coletiva. Texto 1 : « Causas e razões das ilhas desertas », tr. de Luiz B. L. Orlandi, p. 21. 10 L’Abécédaire, Letra B – Boire (Beber).

Page 12: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

12

intensivo ganham por esforço criador a “forma de conceitos” é que se

tem efetivamente idéia em filosofia, e conceitos criados, não

descobertos.

18 O mínimo que podemos dizer a respeito desse algo forte

demais é que ele, como acontecimento, implica um encontro

disparador envolvendo meu poder de ser afetado e aquilo que nele

desencadeia uma intensificação, um salto para além da minha

estruturação atual, meu repentino dançar na chuva, por exemplo.

Outros modos de sentir e perceber criados nos instantes desses

encontros intensivos. Deleuze pergunta: “será que a música não seria

a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para

potências acima de nossa compreensão? É possível” 11. Mesmo que se

discuta esse destaque da música (a mais temporal das artes), o

importante é essa viagem “acima de nossa compreensão”, o que

pode ocorrer a qualquer um de nós. Se ficarmos à espreita de

encontros como esse, ele pode acontecer mais vezes, dependendo

das circunstâncias e das variações que suportarmos ao sermos

tocados. “Acho que os encontros”, diz Deleuze, “quando vou ver uma

exposição, estou à espreita, em busca de um quadro que me toque,

de um quadro que me comova, quando vou ao cinema” 12. Instantes

como esse não podem ser desperdiçados, pois são preciosos pelos

afectos e perceptos com que eles nos surpreendem.

19 Em seguida, tudo dependerá do poder de entregar-se a

processos criadores que efetuem como obra as intensidades desse

encontro. É decisivo, como se nota, ficar à espreita de algo forte

demais. Ficar à espreita, como os animais sabem ficar, é uma postura

a ser diferenciada daquelas ações típicas da prudência a que nos

referíamos do ponto de vista da vida em sua saudável imediatidade,

aquela a que recorremos para que a confiança predomine sobre a

desconfiança em nossa cotidianidade. A prudência, enquanto prática,

opera em prol da maior confiabilidade possível em nosso modo

empírico de viver a vida na atualidade do nosso mais saudável aqui e

11 L’Abécédaire, Letra I, Idée (Idéia).12 L’Abécédaire, Letra C, Culture (Cultura).

Page 13: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

13

agora. O ficar à espreita de algo forte demais é uma postura que

inicia o deslocamento dessa prudência do dia-a-dia, essa que se

pratica em prol do domínio da confiança sobre a desconfiança na

vida, para a prudência enquanto arte envolvida com as

intensificações de uma vida.

20 Não se trata de uma distinção absoluta entre a prudência

como prática regrada e a prudência como arte. Deleuze aproxima as

duas vertentes em função de um problema bem preciso: o de ligar os

encontros intensivos à construção de um plano de consistência ou de

imanência. Nessa construção, vivemos em constante combate em

três frentes: uma frente em que nos dedicamos a não ser

simplesmente tomados pela forma organismo que “cola no corpo” em

detrimento de “conexões que supõem todo um agenciamento,

circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e

distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações

medidas à maneira de um agrimensor”; outra frente é a de não nos

limitarmos ao jogo do estrato da “significância” que “cola na alma”,

fixando opiniões, por exemplo, em detrimento do ato de pensar; e

numa terceira frente combatemos para “nos deslocar dos pontos de

subjetivação que fixam” nossa “consciência” e “nos pregam numa

realidade dominante”. É grande o risco que corremos nesses

combates. Com efeito, somos derrotados, trazemos a morte para

mais perto ainda, “tangenciamos o ilusório, o alucinatório, a morte

psíquica” toda vez que combatemos sem a “prudência necessária”,

isto é, sem “a arte das doses”, sem uma “arte comum” a essas três

frentes de “batalha”. Deleuze e Guattari não dizem que essa

prudente arte das doses seja uma “sabedoria”; falam em “prudência

como dose, como regra imanente à experimentação”, o que nos leva

a pensar em “injeções de prudência” a cada caso.

21 Tanto quanto em Aristóteles, também aqui vivemos às voltas

com o contingente, mas em outro nível de mobilidade e radicalidade,

pois não podemos contar com a exemplaridade de um virtuoso na

busca de uma privilegiada regra mediadora. Por exemplo, é dito que

“é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se

recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de

interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las

a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as

coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas

Page 14: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

14

rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para

poder responder à realidade dominante”. E para quê? Para que os

encontros intensivos não nos precipitem num estado que torne

impossível a própria experimentação consistente deles. “É seguindo

uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as

linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender

intensidades contínuas para um corpo sem órgãos. Conectar,

conjugar, continuar: todo um ‘diagrama’ contra os programas ainda

significantes e subjetivos” 13. Em virtude da própria continuação

variável da experimentação, os cuidados banhados em regras e arte

implicam o dever de “multiplicar as regras práticas” 14. Uma

pluralidade de práticas de prudência deve interferir com arte não

para que as intensidades sejam contidas, retidas, reprimidas por um

plano de organização, mas para que elas coexistam e co-operem num

plano de consistência, de modo que este “não devenha um puro

plano de abolição, ou de morte”; “para que a involução não se

transforme em regressão ao indiferenciado”, o que implica reservar

com suficiente ardil “um mínimo de estratos, um mínimo de formas e

de funções, um mínimo de sujeito para dele extrair materiais, afectos,

agenciamentos” 15.

22 É preciso ficar à espreita de encontros intensivos que, co-

operando num plano de consistência, tornem possível extrair uma

vida da vida cronometrada. Neste caso, as intensidades são de

“singularização”; são vibrações que compõem a própria essência

singular do indivíduo, o grau de potência que o caracteriza, vibrações

que saltam do nível da variação contínua em que continuam

ocorrendo os processos de “individuação”; essas vibrações saltam da

inserção do indivíduo no conjunto de suas “determinações empíricas”

e instalam de tempos em tempos uma “vida impessoal”, mas

“singular”, reitera Deleuze, vida plena de “entretempos” e

“entremomentos”, plena de trajetos transtópicos que se transpõem

13 G. Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, Paris : Minuit, 1980. Platô 6 : « Comment se faire un corps sans organes ? », pp. 187, 198, 199. Mil platôs, Rio de Janeiro: Ed. 34, Platô 6 « Como criar para si um corpo sem órgãos?”, tr. br. Aurélio Guerra Neto, vol. III, pp. 11, 22-23, 23-24.14 Mille plateaux, obr. cit. Platô 7 : « Année Zéro – Visagéité”, p. 231. Mil platôs, ob. cit., Platô 7: “Ano Zero – Rostidade”, tr. br. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Vol. III, p. 58.

15 Mille plateaux, ob. cit. Platô 10 : « Devenir-intense, devenir-animal, devenir-imperceptible... », p. 330-331. Mil platôs, ob. cit. Vol. IV: « Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... », tr. br. de Suely Rolnik, p. 60.

Page 15: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

15

“no absoluto de uma consciência imediata”. Essa “vida de pura

imanência” é pensada como “puro acontecimento liberado dos

acidentes da vida interior e exterior” 16 . É nesta perspectiva que cabe

orientar “a questão de saber” se este ou aquele intensificador da

sensibilidade, tido como capaz de provocar a molecularização das

percepções, (como a “droga”), “consegue efetivamente traçar o plano

que condiciona”, diz Mil platôs, o próprio “exercício” das

intensificações, coisa posta radicalmente em dúvida por esse livro no

que concerne à droga, dado que “sua linha de fuga não pára de ser

segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do

dopar-se, da dose e do traficante”, de modo que, em vez de “partir do

zero a cada vez”, trata-se de “partir para outra coisa, partir ‘no meio’,

bifurcar no meio”, “embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller)” 17.

23 Aproximamo-nos, assim, de uma questão difícil. Difícil,

porque ela deve apropriar-se dessa prudência pensada como arte. E

ao fazer isso, essa questão deve levar essa arte da prudência a

envolver-se com regras ou procedimentos produtivamente favoráveis

a uma experimentação curtida a cada instante pelo ficar à espreita de

algo forte demais. Estamos dizendo que algo mais pode nos

acontecer e não apenas vivermos a vida engrenada nos e pelos

estratos, vida em que somos tomados pelo jogo da confiança e da

desconfiança, jogo até certo ponto domado no nível de certas práticas

prudentes. Como já tivemos a experiência de que algo mais pode nos

acontecer, digamos que também podemos ficar à espreita, não de

outra vida no além, mas de encontros intensivos que povoam uma

vida a que temos acesso de quando em quando. Isto quer dizer o

seguinte: buscamos uma questão que não se reduza ao jogo da

confiança e da desconfiança, embora não o suprima; e essa questão é

justamente a da relação que torna possível uma vida, a relação entre

intensificações e o plano (ou planos) em que elas ganham uma

consistência co-determinada por elas mesmas. Sem essa relação de

consistência entre as intensidades, corremos o risco de cair num

16 G. DELEUZE, “L’immanence: une vie...”, Philosophie, no 47, 1/9/1995, pp. 3-7. Republicado como texto nº 62 em G. Deleuze, Deux régimes de fous – Textes et entretiens – 1975-1995. Edição preparada por David Lapoujade. Paris: Minuit, 2003, págs. 359-363. A continuação desse texto é que foi publicada como ultimo capítulo, intitulado “L’Actuel et le virtuel”, de G. Deleuze e C. Parnet, Dialogues. Paris: Flammarion, 1996, págs. 177-185.

17 Mille plateaux, ob. cit. Platô 10, já citado, pp. 348 e 350. Tr. br. já citada, pp. 79 e 80-81.

Page 16: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

16

“puro e simples caos”, e até mesmo no “vazio”, na “destruição” 18. Os

cuidados com essa relação fazem da prudência a arte de nos agenciar

com aquilo que intensifica nossa participação criativa e consistente

no enfrentamento do caos.

24 Podemos aproximar dessa questão certos acontecimentos

memoráveis: por exemplo, a coragem com que respeitáveis

sanitaristas brasileiros, Adolpho Lutz e Emílio Ribas, enfrentaram há

mais de um século a grande epidemia de febre amarela. É que eles,

além de outros voluntários (Oscar Moreira, Domingos Vaz, André

Ramos e Januário Fiori), levando a sério uma teoria do médico cubano

Carlos Finlay, deixaram-se picar por mosquitos infectados que a

teoria indicava como sendo os efetivos transmissores da doença. Sem

dúvida, a saúde de todos eles correu um grande risco, mesmo que,

prudentemente, tenham tomando certos cuidados, como o de usar

mosquitos infectados de um “caso leve” 19. Mas isso não é tudo.

Convém salientar que eles, sem que fossem obrigados a isso,

articularam suas próprias vidas orgânicas a uma experiência pioneira

cuja única garantia, naquele momento, era algo forte demais: dar

consistência experimental ao brilho de uma idéia que os arrastou

para além de sua compreensão imediata. E nesse intenso movimento

eles não apenas ajudaram a “nos proteger do caos” como também a

vencer o caos mental que se apoderava dos estudiosos daquela

epidemia. Deleuze recolhe de Henri Michaux uma comparação muito

útil neste caso: esse acontecimento nos leva a pensar que “o que

basta para as ‘idéias correntes’ não basta para as ‘idéias vitais’”,

justamente as idéias “que se deve criar” e que, uma vez criadas,

rodeiam-se de zonas de indeterminação, inexploradas, instigadoras

de re-criações.

25 Com essa referência ao acontecimento vivido por alguns dos

nossos sanitaristas, posso reafirmar uma obviedade: a de que a

filosofia não tem o monopólio das idéias vitais. Mas seria possível

privilegiar um outro lugar para elas, para essas idéias que abrem

saídas para a vida? Uma pergunta de Deleuze aponta a dificuldade:

“que seria pensar se ele não se defrontasse sem cessar com o caos?”

Quando se diz que as idéias vitais são “objetos mentais da filosofia,

18 Mille plateaux, ob. cit. Platô 15: « Conclusion », p. 628. Mil platôs, obr. cit., vol. V, Platô 15: “Conclusão”, tr. br. de Peter Pál Pelbart, p. 217-218. 19 Ver Neldson Marcolin, “Na própria pele”, artigo na seção “Memória” da Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, março de 2009, pp. 6, 7.

Page 17: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

17

da arte e da ciência”, aparece a pergunta: como pensar um “lugar”

para elas nesse conjunto? Ou: em que lugar ocorre o pensar que elas

diferenciam tão vertiginosamente? Se as idéias vitais são

inseparáveis de saltos de intensidade experimentados por quaisquer

dos nossos poderes (desde o sentir até o pensar por conceitos, por

funções ou por sensações), a procura de um lugar extensivo para

situá-las já é por si mesma um “criar” e, portanto, um lance de idéia

vital 20. O salto intensivo implicado pelas idéias vitais, não sendo

redutível a conexões extensivas, é uma indicação de que nosso

campo de experiências com acontecimentos sofre aberturas não

apenas à vida orgânica, mas também à vida não-orgânica. Deleuze

fala em “potência de uma vida não-orgânica, aquela que pode haver

numa linha de desenho, de escrita ou de música”. Por isso, ele pode

dizer que “são os organismos que morrem, não a vida”. Por que?

Porque a potência de uma vida não-orgânica presente numa “obra”

acaba por indicar “uma saída para a vida”, de traçar “um caminho

por entre as vias”. Neste sentido, “criar” é “resistir”. E resistir,

primeiramente, à tentação de escrever com seu ego, “sua memória e

suas doenças”. Deleuze diz que “no ato de escrever há a tentativa de

fazer da vida algo mais do que pessoal, de liberar a vida daquilo que

a aprisiona”. Ele destaca a “pequena saúde frágil” de três autores

que ele tanto admira, Espinosa, Nietzsche e Lawrence, dotados de um

“fraco organismo””, de um “equilíbrio mal assegurado”. Entretanto,

“não é a morte que os quebra; é sobretudo o excesso de vida que

eles viram, provaram, pensaram”. O que com eles aconteceu é

certamente uma virtualização excepcional, uma vida não-orgânica,

“uma vida muito grade para eles” 21. A saúde frágil transforma-se na

grande saúde, tema que sempre retorna em Deleuze. A grande

saúde, mesmo às custas da “doença”, implica “realizar um pouco de

potência”, pois “a doença deve servir para alguma coisa, como todo o

resto”. Para ele, a doença “não é uma inimiga”, pois “aguça uma

visão da vida, uma sensação da vida”; trata-se, de “ser tomado” pela

“vida em toda sua potência, em toda a sua beleza” 22 até quando o

organismo suportar os encontros intensivos com algo forte demais.

20 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, Paris : Minuit, p. 189, 196, 197. O que é a filosofia ?. Tr br. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, São Paulo: Ed. 34, pp.259, 266-268.21 G. Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 1990, p. 196. Conversações, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São Paulo: Ed. 34, 179.22 L’Abécédaire, ob. cit., Letra L de Literatura.

Page 18: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

18

26. Mas, aí, algum ferino ceticismo, que mal suportou a palestra

até este ponto, grita lá de não sei onde: pois bem, professor, toda

essa fala em prol da grande saúde, em prol de obras e ações que

marcam vigorosamente a potência de pensar e a potência de agir,

tudo isso pode até valer em relação aos grandes pensadores, artistas,

cientistas e benfeitores da humanidade... mas pergunto: como

alguém incapaz de uma grande obra, e não sendo um místico, pode

ter alguma fé no mundo, ir além do jogo da confiança e da

desconfiança, e ser assim arrebatado pela vida em toda sua potência,

em toda sua beleza? Como pode um irrisório rosário de misérias

vividas comportar rebrilhos de uma vida, já que o algo forte demais

que o afronta não passa de uma existência alquebrada?

27. Diante da pergunta, o palestrante cala na garganta a

tendência ao discurso consolador, e espera que uma outra junção de

vozes transforme essa pergunta numa outra saída. Ao buscá-la, ele

apenas lê, sem comentário algum: “cristãos ou ateus, em nossa

universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo.

É toda uma conversão da crença”. Esta “não se volta para outro

mundo, dirige-se a este mundo”. “O certo é que crer não significa

mais crer em outro mundo, nem num mundo transformado. É apenas,

simplesmente, crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo, e, para

tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes

de serem nomeadas as coisas” 23. Ora, restituir o discurso ao corpo

implica cuidar dos encontros intensivos neste mundo, mundo do qual

“nos desapossaram”, o que nos obriga a politizar a questão em toda

parte em que a vida é ameaçada. Assim, “acreditar no mundo” vem a

ser, “principalmente, suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que

escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo

de superfície ou volume reduzidos”. Porque, “é no nível de cada

tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário,

a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação

e povo” 24 , salientando-se que esse e entre criação e povo é o da

consistente co-presença intensiva e não o da organizatória relação

extensiva entre chefes e subordinados.

23 G. Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, Paris: Minuit, 1985, pp. 223-225. Cinema 2. A imagem-tempo, tr. br. De Eloísa de Araújo Ribeiro, São Paulo : Ed. Brasiliense, 1990, pp. 207-209. 24 G. Deleuze, Pourparlers, ob. cit., p. 239. [Entrevista a Toni Negri em 1990]. Conversações, ob. cit., p. 218.

Page 19: A Respeito de Confiança e Desconfiança Luiz Orlandi Para Danni e Rose MORTE E AFINS

19

Luiz B. L. Orlandi

.DF-IFCH-Unicamp

.Núcleo de

Subjetividade-

PUC-SP