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Festividades de São João em Buriti Grande (PI) e de São Gonçalo em Buritirana (MA) em 1926, vivenciadas por Cecílio Ferreira Lopes, intelectual nordestino, meu avô. Que narrou com vibração estes festejos regionais, registrando taquigraficamente esplêndidos e longos Desafios entre Cantadores de renome. Os Desafios são riquíssimos em referências (todas elas explicadas) à fauna e flora do sertão, costumes, crendices e tradições – brasileiras, ou mesmo européias de remotas épocas. Resgatam-se memórias da cultura popular quando a escravidão, a Guerra do Paraguai, o fim do Segundo Império, e o advento do Estado Novo, eram fatos recentes ou estavam para acontecer, transparecendo nos comentários de meu avô e nos próprios Desafios.

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Page 1: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

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PREFÁCIO

Cecílio Ferreira Lopes, meu avô, foi homem de muitas luzes e qualificações, leitor voraz e autodidata. Nasceu em Burity Grande (Piahuy) em 19 de novembro de 1879. Avós, pais e irmãos de Cecílio Ferreira Lopes foram grandes fazendeiros na região. Cecílio Ferreira Lopes foi para São Luís (Maranhão) talvez em 1898, onde fixou-se, constituiu família e residiu até seu falecimento, em 22 de janeiro de 1956. Educou todos os seus filhos inculcando-lhes o valor da educação e da cultura. Interessado em cultura popular, educação, literatura, psicologia e sociologia, escreveu livros, contos e poesias, quase todos inéditos, e foi assíduo colaborador dos jornais locais, por vêzes envolvido em memoráveis polêmicas. Foi professor, advogado e importante funcionário público. Aqui estão reunidas, num mesmo volume, duas obras de Cecílio Ferreira Lopes: FESTAS SERTANEJAS - Vates e Trovadores, e FESTA DE SÃO GONÇALO - Quadros Authenticos do Folk-Lore Nacional.

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3 Eu, seu neto, cumpro prazeirosamente seu desejo de publicar-se estas obras, onde mantive a ortografia da época. A primeira narra uma festa em honra de de Santo Antonio, realizada em Burity Grande (Piauhy), em junho de 1926 - mais precisamente, do sábado dia 12 ao domingo dia 13. A anfitriã das festividades foi Evangelina Ferreira Lopes, de apelido Eva, sua irmã mais velha. Apresenta como destaque o Desafio entre Collete e Izidio, célebres Cantadores do sertão nordestino. A segunda narra uma festa em honra de São Gonçalo, realizada em Burityranna (Maranhão), possivelmente no mesmo ano de 1926. Apresenta como destaque os cantares religiosos desta prestigiosa festa de origem portuguesa, e os Desafios entre Zé da Cobra e Pedro da Venança, e João da Romana e Rio Preto, também célebres Cantadores do sertão nordestino. Os originais desta obra apresentam alguns poucos trechos danificados, com palavras parcialmente legíveis, ou mesmo faltantes: procurei reconstituí-los à luz do contexto das frases (as reconstituições estão destacadas, em negrito e entre parênteses). Os versos foram renumerados, para facilitar eventuais referências. A seqüência original dos capítulos foi bastante alterada, a bem de uma maior fluidez. Todos estes Desafios foram integralmente taquigrafados por meu avô, grande apreciador da cultura popular, à luz incerta de candeeiros a óleo de carrapato ... reproduzindo fielmente uma linguagem sertaneja, rústica, eivada de pitorescos êrros, embora acerada, poderosa, inspiradíssima e vibrante. Os Desafios são riquíssimos em referências à fauna e flora do sertão, costumes, crendices e tradições brasileiras - e até mesmo portuguesas ou européias, de remotas épocas. Após pesquisas em livros e na internet, acrescentei as necessárias explicações, sem o que boa parte dos versos seriam virtualmente incompreensíveis. Há alguns verbetes não localizados nas fontes consultadas, conjeturando-se então suas explicações. Tais explicações seguem-se sempre aos respectivos versos: agrupá-las todas num anexo penalizaria o leitor com a freqüente necessidade de consultá-lo. Explica-se cada verbete uma única vez: sua eventual reaparição posterior não se acompanha de repetição da explicação. Aqui e ali manifestam-se conceitos e preconceitos que devemos compreender à luz de sua época: a Abolição ainda era um fato recente, e o Estado-Novo (em gestação) era percebido por muitos como uma oportunidade de melhoria das instituições. Considere-se ainda a alta tensão do embate entre Cantadores ... A ilustração da capa foi preparada a partir de um desenho a bico de pena de autoria de Cecílio Ferreira Lopes (1944) - que retratou-se sentado junto a um buriti, de chapéu, taquigrafando um Desafio. Ao fundo, figura o perfil da serrania de Buriti Grande.

São Bernardo do Campo, SP, Junho de 2009.

DILERMANDO FERREIRA LOPES FILHO carrapato - arbusto (Ricinus communis), mamona, de cujas sementes extrai-se o óleo de rícino

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ÍNDICE

PREFÁCIO - 2 FESTAS SERTANEJAS - 5 Vates e Trovadores Introducção - 6 Burity-Grande - 15 Os Cantadores Izidio e Collete - 20 O Desafio - Primeira parte - 27 O Desafio - Segunda parte - 62 FESTA DE SÃO GONÇALO - 83 Quadros Authenticos do Folk-Lore Nacional Burityranna - 84 O Sertanejo - 89 A casa do Coronel - 91 Festa de São Gonçalo - 92 As mulheres - 94 Kyrie Eleison - 96 Pedro da Venancia e Zé da Cobra - 112 João da Romana e Rio-Preto - 122 ANEXOS Burity-Grande - 142 Oeiras - 144 BIBLIOGRAFIA - 149

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FESTAS SERTANEJAS Vates e Trovadores

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INTRODUCÇÃO Quem investiga a Historia dos Povos, observando, atravez dos seculos, o desfile de sua evolução até o seu apogeu, e contempla, posteriormente, a marcha de seu declínio, arrastando-os, inevitavelmente, pela contingência inoxorável das leis que regem os seus destinos, ao fatalismo anniquilador de sua existência objetiva, pressente que alguma cousa de suas actividades passadas resistio victoriosa aos embates destruidores, transmittindo-se ao futuro como um espolio sagrado que lhes perpetua a memória. Essa parcella immortal que parece intensificar-se com o desenvolvimento dos tempos, em vez de uma acquisição de seus dias de progresso e de triumphos, vem com elles dos dias mais remotos de sua existencia passada, e representa em sua essencia, a propria Alma das Raças, "semente espiritual que se desdobra em lendas e poesia perpetuando os seus primeiros sonhos". É isto o que se chama a Tradição. "A Tradição é, para as Raças, o que foi para o Homem biblico o sopro divino, a Eternidade no ephemero. Passam as migrações para a Morte, a Tradição fica ao de cima do Tumulo”. Um Povo sem Tradições passa, às vezes, sem registro no próprio campo da Historia. A Tradição é a senda indestructivel pela qual os seculos vão transmitindo, numa successão inninterrupta e intérmina, às Gerações que se substituem e altercam no curso da existencia, os conhecimentos que se solidificaram e estabilisam no Espirito em relação a todas as actividades humanas, sem exclusão dos que se referem à Litteratura, à Religião e à Historia. Esses conhecimentos, mesmo entre Povos e Nações em que os caractéres escriptos eram ainda ignorados, passaram de uns a outros, atravez da marcha dos tempos, por effeitos da Tradição, em suas formas verbaes. Foi ella, incontestavelmente, o elemento poderoso de transmissão de todas as aquisições espirituaes das Gerações do Passado às Gerações do Futuro. Foi por effeito de sua acção de fixação e transmissão que as criações e descobertas realisadas nos domínios das Sciencias e das Artes vieram evoluindo, desde épocas remotas, ao contacto do cadinho do Espirito de Investigadores que as receberam do Patrimonio oral do Passado, até attingirem o grau de desenvolvimento e concretisação em que actualmente se encontram. As Artes, sobretudo, remontam ao apparecimento dos primeiros Homens no Planeta. Quem examina os vestigios existentes nas cavernas da Idade Palleolitica e Neolitica vae encontrar ahi, symbolisadas nos ensaios rudimentares em que o Homem primitivo fixava as primeiras criações de sua imaginação inculta e confusa, as manifestações iniciaes de suas tendencias e inclinações artisticas concretisadas em trabalhos de ceramica, em que, ao lado de figuras de mamuths e bisões, ostentavam-se objectos de formas varias entre os quaes se destacavam trajos e armas revelando traços artisticos, em que a symetria começava a firmar o seu predominio. As investigações sobre a vida do Homem, desde seu apparecimento no Globo, têm sido effectuadas, e os indicios que de sua passagem ficaram em diffferentes regiões, assignalados pela descoberts de fósseis feitas, sobretudo, nas turfeiras e habitações lacustres exploradas, attestam e denunciam, de modo flagrante, que a Arte, desde os primordios do Mundo, começou a manifestar-se em todos os actos do Ser Humano, acompanhando os primeiros lampejos de sua intelligencia quazi embryonaria e os primeiros assomos de suas aspirações e desejos, nascidos da ancia de predominio, de desenvolvimento de sua força material pela elevação do seu poder, e da conquista da liberdade e conforto. A expressão de seus sentimentos, exteriorisados nas reuniões do Clan, em seus primeiros ensaios coreographicos, em suas actividades ludicas, nos ornatos e adornos luxuosos dos Chefes e Sacerdotes, na crença em objectos que davam felicidade, constituindo os Totens, e o respeito pelos que acarretavam infortunios, consituindo os Tabus, confirmam que o sentimento de Belleza,

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7 a faculdade de sentir, que se confunde com a theoria da Arte, é tão antigo quanto o Homem. Da lenda grega de Debutade, que, para ter sempre presente a imagem do namorado que pretendia ausentar-se, obrigou-o a collocar-se de encontro a uma parede em que se projectava a sua sombra, delineando-lhe os contornos com o auxilio de um carvão, teria nascido a Pintura, que servio de fundamento à Esculptura e à Architectura, baptisadas por alguns com a denominação de Artes Maiores. As emoções embryonarias que o Homem primitivo experimentou, sem poder, de começo, traduzil-as em criações objectivas que se transmittissem, atravez do tempo, às Gerações que o succedessem, periclitavam, entre o indefinido e o vago de suas finalidades, na trama confusa e obscura de um barathro inextricavel, pela carencia de outros elementos que as viessem completar e encaminhar à realização dos sonhos artisticos, ainda incertos e vacillantes, que constituiam os motivos de sua propria formação. A Ideia e a Forma, que se deveriam integrar para sua exteriorização dentro dos preceitos e regras artisticas, e sem as quaes não pode existir, nos dominios da Arte, obra digna de consideraçõa e de critica ou producção capaz de resistir à acção devastadora do tempo, a cujos assaltos só se oppoem de modo victorioso os monumentos aptos a se conservarem incolumes até Posteridade, não se tinham consorciado, ainda, a essas impressões emocionaes ainda em germen, que, tumultuando no Espirito e agitando as faculdades não se reuniam, contudo, nesse periodo inicial de eclosão, à força e o poder de fixar-se em expressõe materiaes. A capacidade de sentir, que o Espirito trazia, até então, em rudimento destinados a uma evolução posterior mais acelerada e precisa, que estava, apenas, em esboço, de accordo com o desenvolvimento que lentamente se processava na razão das possibilidades que o ambiente offerecia, não estava, ainda, apparelhada para acordar e transmitir sentimentos de admiração e de enlevo. Quando, porém, na razão direta da marcha evolutiva do Espirito, encaminhada com maior celeridade, as emoções se integrarem, para effeito de sua exteriorização, pelo consorcio com as Ideias e as Formas, a Arte passou a constituir um conjunto apreciavel, no terreno objectivo, de obras imorredouras, ostentando os traços vivos dessas mesmas emoções associadas às Ideias e às Formas. Os seus caractéres tradicionaes, entretanto, não tinham desapparecido. Fluctuantes, no registro das Tradições oraes, que resistem, atravez dos seculos, à propria lei do Esquecimento, receberam Formas novas que lhes não desvirtuaram as origens e obedeceram aos mesmos ryrhmos da evolução que imprimio nova feição às manifestações espirituaes. Os monumentos, embora toscos, que de seu gosto e de suas tendencias artisticas deixaram as Civilizações dos Egypcios, Assyrios, Persas e Babylonios, anteriores aos Gregos, trazem impressos na face os caractéres reveladores de suas Tradições seculares. Destroem-se os Povos, extinguem-se as Raças, desapparecem as Nações. As suas Tradições, entretanto, resistem, incolumes aos embates persistentes e continuos dos tempos e das Idade. É que a Tradição é como a rocha, que, erecta na vastidão da planície, onde enfrenta a acção dos tempos e o perpassar violento das Idades, volta a face ao Infinito e resiste, como um marco miliario, à picareta dos Seculos, revelando, na mudez eloquente de sua resistencia invencivel, às Gerações do Futuro, o valor e a grandeza das conquistas do Passado. Todas as Bellezas que concorrem para o Lyrismo em que se expande a Alma das Raças; o conjunto de imagens que dão vida à Poesia; as multiplas analogias des que as Litteraturas se servem em suas Formas diversas; os festejos multiformes que se realizam no campo, de caracter religioso ou de natureza profana; as variadas praticas domesticas exteriorizadas nas festas de casamentos, anniversarios, e baptizados, assim como quazi todos os actos de nossa vida ordinaria, conservam, muito de perto, os vestigios da Tradição com bem já o notara Coelho Netto.

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8 Abeberados, talvez, em fontes divorciadas do verdadeiro espirito do seculo, e distanciados, sem duvida, do conhecimento do predominio que as acquisições do Passado exercem sobre o destino dos Povos e das Raças atravez das varias etapas que percorrem, no curso de sua existencia, sem entravar, entretanto, a marcha de seu progresso, querem alguns escriptores ver no culto e no respeito às Tradições uma peia ao Pensamento e um elemento de opposição ou constraste à evolução normal do Espirito. Alheios à realidade do contingente de dados e de provas que em sentido contrario nos offerecem as sciencias, pretendem que os elementos tradicionaes, como determinantes da decadencia e da repetição que levam ao estacionamento da marcha das Ideias, constituem obices e entraves à lei de renovação permanente a que deve subordinar-se a evolução intellectual brasileira a fim de fugir às sombras crepusculares que envolvem as Litteraturas periclitantes pela ausencia de iniciativa e de coragem no campo das realizações. Adstrictos ao criterio de um sophysma formulado dom a affirmação viciosa e sem base de que a Tradição nacionalista restringe a intelligencia a limites reduzidos e acanhados, pregam o desprezo às Tradições, como uma exigencia indeclinavel das condições imprescindiveis à evolução e ao progresso, porque, em seu entender, nenhuma Nacionalidade pode, em suas expansões litterarias, subordinar-se a moldes fixos. Cerebros ermos das concepções philosophicas que orientam a marcha e os conhecimento positivos que enchem os faustos do seculo; espiritos baldos das luzes com que as Sciencias, em suas concepções integraes, illuminam os departamentos e traçam a orbita real de todo o saber humano, não podem conceber que as Tradições - em vez de um obice à marcha do Pensamento e de um obstaculo à evolução espiritual, ou de um entrave à lei da renovação permanente a que deve subordinar-se o desenvolvimento da mentalidade humana - constitua, ao contrario, a fonte perenne de onde haurem as energias que estuam de suas forças subjectivas e manifestações objectivas, a causa ou phenomeno sociologico de que resultam ou derivam como effeitos immediatos. As investigações accumuladas pela experiencia atravez do curso dos tempos sobre as expansões litterarias de multiplas Raças e Povos demonstram, evidentemente, que, em vez de traçarem à intelligencia e ao Espirito uma orbita asphixiante e limitada que lhes restinja os vôos, as Tradições nacionalistas, ao contrario, abrem-lhes horizontes mais amplos, preenchendo a finalidade de suas aspirações de unidade e firmando em bases solidas o padrão indestructivel de sua liberdade e independencia. Pugnar pelo desprezo às Tradições, sobretudo das que se revestem da indumentaria nacionalista, importaria em decretar o retorno da Litteratura Nacional ao dominio das Litteraturas estranhas, a que se vio subordinada em suas primeiras expansões. Se descermos ao exame das manifestações litterarias de todos os Povos civilizados do Globo, verificaremos que nenhum delles cometteu o erro grave de deixar em abandono o Patrimonio sagrado de suas Tradições ou de procurar descobrir incompatibildiades ou collisões entre ellas e as leis que regem a sua evolução em qualquer de seus aspectos - intellectual, physico ou moral. A Litteratura Portugueza, em que a nossa foi encontrar os elementos originais de que se derivou, primou sempre pela fidelidade absoluta às Tradições nacionaes, renovando-se a cada passo e criando a cada momento, dentro das exigencias rigorosas das leis da vida mental, sem jamais entrar em collisões ou em choques com as do aperfeiçoaento e do progresso do Homem em qualquer de suas modalidades. As epocas litterarias que deixaram um registro indestructivel na Historia das Nacionalidades assignalaram-se, effectivamente, pelo movimento de renovação e transformação que se operaram, revolucionando pelas creações e distinguindo-se pelo ineditismo das novas Formas e moldes que, apontadas ao Espirito, não se fixaram de maneira a impedir a evolução. Esses surtos de evolução, entretanto, levados sempre a effeito com liberdade e intelligencia,

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9 dentro da esphera de accção de uma cultura consciente e profunda, collimando intuitos humanos alcandorados e nobres, não anullaram o prestigio e o valor das Tradições, de que revelam o cunho, nem com ellas se chocaram. Realisaram, ao contrario, como um traço caracteristico de progresso, uma valiosa obra de adaptação e transformação ligada indissoluvelmente às novas condicções exigenciaes do momento. Essas condicções, que se estereotypavam, então, em Formas ainda indecisas ou de pouca nitidez, são as mesmas que, accentuando-se e definindo-se com os progressos do Espirito por effeitos da evolução, chegaram aos nossos dias, com adaptações relativas às exigencias do tipo e do meio. São factos que se orientam numa direcção sensível para uma mesma finalidade, communicando-se de Nação a Nação e transmittindo-se de Espiritos a Espiritos sem consideração de distancias ou limites de fronteiras. Essa tendencia, que se accentúa na hora actual, atravessando fontreiras e transpondo os Oceanos, penetrando nas Nações e empolgando Povos e Raças, é a que arrasta os Espiritos aos ideaes nacionalistas, que se encontram nas Tradições e nos sentimentos mais vivos de Patriotismo e Independencia as suas raizes profundas e as suas bases mais solidas. A nacionalização da intelligencia e da producção intellectual é um facto que corresponde às nossas aspirações tradicionais e importa na solidificação da unidade e independencia de nossa Litteratura. Só quando Gonçalves Dias, Macedo e Alencar tiveram a comprehensão nitida e clara deste phenomeno sociologico e politico, a nossa Litteratura começou a emancipar-se da tutela e da influencia das criações e Pensamentos estranhos que sobre ella actuaram desde os primordios de sua formação, para revestir-se de suas legitimas caracteristicas de nacionalismo e brasilidade. Se então a poesia e o romance, em que scennas desconhecidas dos leitores nacionaes bordavam e urdiam os seus enredos ou completavam as rimas, começaram a relacionar-se com as lendas, com as imagens e conceitos que estuavam abundantes da imaginação popular, inexgottavel na criação de phantazias ingenuas e superstições sem motivos. A verdadeira Poesia nasce da Alma do Povo. É elle quem, na sua ingenuidade de suas Crenças; inclinado a acceitar, sem indagações, a realização do impossivel; abroquelado nas malhas de suas abusões; encampando o que encontra no registro das Tradições oraes sem indagar ou reflectir; dominado pelos habitos de dar corpo à phantazia e liberdade absoluta à imaginação povoada de mithos e visões; escravisado às superstições que entram em seu Espirito como verdadeiros artigos de fé; crêa fabulas e lendas, historietas e contos, e, incapaz de deter-se ante as questões abstractas engolfa-se num sonho permanente de felicidade illusoria, antepondo a qualquer duvida que lhe pertube a alegria, ou a gargalhada picante de uma trova alacre e viva, ou a lagrima sentida de uma chorosa canção. Foi elle, pois, embora insensivelmente, o sublime criador das Epopéas nacionaes, proporcionando aos Artistas as fontes de inspiração e collaborando, a cada passo, na orientação dos destinos da Patria, engrandecida à custa de seus esforços. A Litteratura de um Povo é, pois, o conjuncto de suas Tradições, encerrando, em sua organização a Historia da Collectividade e reflectindo os seus costumes, as suas inclinações e tendencias, os seus anceios e aspirações, e os seus principaes caractéres psychologicos. Expressão positiva e espontanea de todas as modalidades da vida, das Tradições e manifestações intellectuaes de uma Nação, ella representa a Sociedade e traz, pela palavra, os estados e sentimentos da Alma. Estereotypam-se nella, tal qual a sombra de um corpo na superficie de um lago, os momentos de tristezas e alegrias, de todo o viver humano. As origens das Raças, os seus cruzamentos, a lingua, o clima os accidentes territoriaes e até mesmo a influencia de correntes litterarias estranhas, são elementos que concorrem à sua formação e transparecem inelludiveis em todos os seus aspectos, denunciando-se à investigação de qualquer de suas phases.

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10 Não póde haver Arte e Poesia, em sua legitima acepção, sem a intervenção do Maravilhoso e do Phantastico, que palpitam e transbordam de sentido das Tradições populares, em que o Sentimento, no conceito sensato dos Romanticos, predomina sobre a Razão, estendendo até o Cerebro a influencia do Coração. A sua essencia, segundo esse conceito, está intimamente ligada a reminiscencias de factos que se prendem à phase medieval e influencias orientaes. É exacto que os nossos surtos litteraeos são de datas posteriores ao periodo da Idade-Media, não existindo, portanto, Tradições medievaes a invocar. Mas se faltaram essses elementos para enriquecer e embellezar a nossa Poesia e revestir dessa estranha idumentaria a nossa Arte, em qualquer outra de suas expressões, todavia, surgio das represas da Alma popular a avalanche pomposa das lendas forjadas no laboratorio fecundo da sua imaginação, dentro do curso do tempo, divergindo de zona a zona e multiplicando-se cada vez mais, em marcha progressiva. As belleza naturaes do vasto panorama brasileiro com as suas florestas seculares cheias de attractivos e encantos imprimiram a essas lendas e a criações a feição caracteristica da Terra. Esse conjuncto impressionante de variados aspectos e multiplas colorações, fez que despontassem, no Espirito forte e robusto de todos os Brasileiros, propensos aos arroubos de uma imaginação accionada de manifestações inconfundiveis de um nacionalismo sadio e vigoroso. A nossa Litteratura não podia fugir a taes regras e influencias, a que, dadas as differenças do meio, obedeceram as demais Litteraturas, nem differenciar-se dos elementos que determinaram a sua formação. O Sentimento que a torna principalmente distinta, manifestado desde as nossas primeiras tentativas litterarias, é representado, em primeiro lugar, pela eclosão do Espirito Nativista, e, depois, pelo cunho accentuadamente Nacionalista, que lhe imprimio uma feição inconfundivel de unidade e de autonomia. O Nacionalismo é, pois, um fructo das Tradições populares, de que nasceu, com a exuberancia e a grandeza que ostenta aos olhos do Mundo, com a pompa com que deslumbra a quem examina o scennario deste vasto Continenti, com o colorido e os matizes que a revestem e collocam a destacado relevo entre as demais que pompeiam nas Nações civilizadas do Globo, a Litteratura Brasileira. O Folk-Lore - valvula de expansão do Lyrismo e da Poesia abundante da Alma de um Povo forte que celebra os seus prazeres ou supporta as suas dores entre trovas e baladas, entre fabulas e canções, entre hymnos affectivos e lendas accomodadas ao promtuario das rimas, de onde surgem bem distinctos os seus traços psychologicos - foi o alicerce fundamental de sua organização, o pivot de sua eclosão com a força e o cabedal de sua perpetuidade, a pedra basilar de sua construção e equilibrio, o elemento poderoso de solidificação de toda a sua estrutura. Foi elle a forma concreta pela qual as nossas Tradições foram sendo argamassadas pouco a pouco na forja viva da Historia, passando, das abstracções brumosas do sonho onde surgiram sob formas vagas e indecisas, ao campo das realizações litterarias concretisadas, no espelendor de sua eternização magnifica, no marmore branco do Livro. Foi elle o meio pelo qual se exteriorisou em vagidos, ora alegres e suaves como canções de setim, ora dolentes e tristes como o murmurio das frondes dentro das trevas da noite, ou como os soluços dos ventos na cabeleira esmeralda dos viçosos palmeraes segredando nostalgia e fazendo queixa às florestas, a Poesia melancholica, mas cheia de altivez e de sublime Lyrismo, de magestade e de encantos, de sinceridade e de nobreza, de affectividade e paz serena, de que se achava repleta a Alma forte e robusta, sadia e vigorosa, do caboclo brasileiro. E essas inconsequencias e alternativas, modalidades e tons, duvidas e tergiversações, receios e superstições, phantazia e visões, allucinações exageradas e sonhos extravagantes, que se

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11 accentuam nas manifestações de seus sentimentos, vão encontrar suas causas e achar suas justificativas e origens na triplice concorrencia dos elementos que influiram na engrenagem de sua formação. Nota-se, de facto, nas expansões da Alma do Brasileiro, um fundo caracteristico de tristeza, que so pode encontrar uma explicação satisfactoria nos elementos raciaes, psychologicos e moraes, que lhe foram transmittidos pelo cruzamento das Raças de que é o resultado. Na Alma do Portuguez domina, ordinariamente, uma nostalgia profunda, que se traduz claramente na dolencia de seus fados e canções, firmando, em traços bem vivos, a grande emotividade de que é susceptivel. O Lyrismo que estua em estos de suavidade de todas as suas manifestações affectivas, sobretudo quando a aza de uma saudade pungente vae ferir a corda vibrante de sua sensibilidade, é a nota caracteristica de sua Bondade e Ternura, exteriorisadas em suas Emoções e concretisadas no sentimentalismo profundo que transborda, nos intervallos de suas lutas e nas treguas de seus embates pela sua conservação e destinos, do fundo de sua indole aventureira e melancholica. Nas manifestações da Raça africana imperam, ao contrario, symtomas de abatimento, synthetisando, talvez, sentimento de dor e de revolta contra as contingencias humilhantes do desterro e da escravidão arbitraria a que, pelo simples argumento da prepotencia e da força ao serviço do despotismo se achava condemnada. O fél dessas amarguras e dissabores, porém, não extinguio em sua Alma a centelha palpitante de affecto e de Amor que, máu grado as agruras cruciantes do martyrio que apungia, resistio victoriosa atravez de sua Odysséa. No Índio predominam as agruras de um soffrimento em que a resignação transparece, persistindo interiormente em notas acres de queixas que tomasm a intensidade ameaçadora e colerica de soturnos gemidos de ondas prestes a estalejar em movimentados bulcões. Espirito em que a desconfiança e o receio geraram o temor e a conjectura seguidas do desespero e da descrença, com raizes entrosadas nos horrores e desmandos que illustraram os primeiros dias tetricos da Colonização Postugueza quando, com a invasão e o assedio das mattas em que havia construido as suas tabas e ocas, experimentos ou effeitos do guante da escravidão que o privara da liberdade selvagem que constituia, entre o que amava, a dadiva mais preciosa com que a Natureza o dotara, o Índio, revestindo apparencias de um resignado, jamais poderia esquecer, na barbarie de seus instinctos, inclinados à vingança, o travo de soffrimento e de humilhação que aos seus antepassados feriram e a Tradição fixou em sua Alma rude e grosseira como um legado fatal. Dahi resulta a razão, o motivo sempre presente, de suas sucessivas revoltas contra a Raça conquistadora que lhe arrebatou os dominios e vetou a liberdade. Descendentes de Raças differentes, dotadas de tão variados sentimento em tão flagrante contraste, portadoras de taes caractéres que teriam de chocar-se em continua opposição em face da diversidade que os definia e aclarava, não poderiam deixar de existir no Brasileiro essas inconsequencias de temperamento e emotividade, essas alternativas de arrebatamento e impulsividades, de coleras e impetos, de arroubos e desanimos, de bondade e de ternuras, que apparecem no Lyrismo abundante e inexgottavel das multiformes criações do Folk-Lore, origem incontestavel de nossas Epopéas, de nossos Poemas, da propria Litteratura Nacional. O estudo do Folk-Lore Nacional, entretanto, ficou quazi relegado para um plano inferior, condemnado, por assim dizer, à vala do esquecimento, onde, como despojos inuteis da Alma forte e potente de um Povo que affirma a vida cantando em todas as phases de sua existencia passada entre afflições e desejos, entre sonhos phantazistas de uma felicidade inutilmente esperada, recebe, apenas, com intervallos distanciados, a visita de algum abnegado, zeloso e compadecido do descaso a que se acham votadas as nossas Tradições, tão ricas e abandonadas pela indolencia e a inepcia dos que têm o dever de procurar conserval-as intactas como um Patrimonio sagrado. Não fôra, realmente, a dedicação quazi apostolica de um Leonardo Motta e poucos outros que, com inauditos sacrificios e riscos da propria vida, percorrem, numa Cruzada evangelica, os inhospitos e adustos sertões nordestinos, à custa do proprio esforço e de suas economias, na

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12 recolta paciente e fatigante do pouco que ainda resta de nossas mais antigas Tradições, conservado, em sua quazi totalidade, pelo trabalho de retentiva de algum Olam sertanejo - e ellas já teriam desapparecido de todo, absorvidas pelo mataborrão criminoso da neglicencia daquelles a quem assiste a obrigação imperiosa e inelludivel de velar ciosamente pela sua conservação. Nas Cidades, entretanto, já não existem vestigios dessas manisfestações suaves desse tradicionalismo riquissimo que tão poderosamente concorreu para a exuberancia de nossa Litteratura, no conto, nas lendas, na novella, nas canções, nos lundús, nos fados, nas modinhas, na Poesia e no Romance em geral. E quem, como o autor destas linhas, cruza os sertões nordestinos, convivendo intimamente com todas as camadas sociaes que aí se encontram, perscrutando-lhes a indole e as tendencias, o seus uzos e costumes, perquirindo a Alma franca do sertanejo rude e sincero e observando, no proprio local dos factos, as transformações successivas por que vae gradativamente passando a sua existencia monotona cheia de originalidades, verificando, desolado, que, embora alguns vestigios dessas velhas Tradições nordestinas ainda subsistam no campo, affirmadas nas explosões espontaneas de um Folk-Lore ainda expurgado de estranhas influencias e infiltrações adversas, são, comtudo, indicios vagos e incertos do que elle foi no Passado, em virtude da progressiva absorpção da Alma genuinamente brasileira pelas correntes civilisadoras que, imprimindo novos rumos e nova orientação às actividades em todos os seus aspectos, modificam, profundamente, as inclinações e energias populares. É nas regiões asperas do Norte, todavia, que ainda se pode recolher algum material verdadeiro e original do Folk-Lore brasileiro, não só porque alguma cousa da inspiração primitiva que tem resistido à invasão civilisadora, mas, ainda, porque uma parte do que de original foi criado e outros pontos do Paiz parece que para ali foi levado, talvez pelos innumeros forasteiros que seguiram aquelas correntes. O meu trabalho é, pois, o resultado de uma colheita paciente, realisado ao pé da viola e ao aspero e rouco som dos pandeiros em longas noites de sambas, dos arroubos atrevidos e improvisos arrojados de Cantadores do Norte, apanhados em flagrante com o auxilio de notas tachigraphicas que asseguram de modo insophismavel a sua athenticidade, representam, por isso, uma parcella legitima do pouco que ainda se exteriorisa de original no genuino Folk-Lore. Lançando-o à publicidade, não se deslumbra o intuito, que não entre no meus cálculos, de galgar um comodo no cume do andaime de uma gloríola, talvez inutil e illusoria, que muita gente cubiça. O proposito que me anima é, ao contrario, o de levar a minha contribuição, embora modesta e simples, ao estudo, que julgo util, das Tradições Nacionaes porque reputo um tempo perdido, em detrimento do levantamento intellectual e moral da grande Nacionalidade que nos foi dada em partilha, o esforço vão e infructifero despendido por alguns moços de notaveis meritos mentaes na confecção de obras de fancaria, sem nenhuma significação no terreno utilitario e sem valor apreciavel no terreno das realizações collectivas, tomando Evas por thema e Adões por objecto, quando há problemas mais serios a reclamarem o emprego de suas actividades e intelligencia em cousas de mor valia. Se não conseguir o meu objectivo pelo malogro do esforço que com tal intenção despendi, uma satisfação, entretanto, attenderá largamente a minha desillusão - a de ter trazido ao espirito dos que porventura me lerem a suavidade da inspiração espontanea, dos arroubos da Imaginação e do Lyrismo forte e nativo de rusticos patricios nossos que, se dispuzessemos de uma engrenagem educacional devidamente apparelhada, com um systema de educação popular à altura das exigencias motivadas pelas necessidades actuaes dos Brasileiros em razão do estado de espirito em que o Mundo se encontra, formariam com vantagem ao lado das mais elevadas individualidades marcantes de nossa historia mental. Infelizmente, porém, a desorientação e a desordem do regime moribundo que estableleceu directrizes à nossa vida política, implantando, pela instituição das lutas partidárias, que o actual Presidente da Republica em tão boa hora anniquilou, no espirito das classes sociaes que

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13 constituem as forças vivas da Nação, a ideia de separatismo que o systema federativo favoreceu pela elevação dos Estados à cathegoria de verdadeiras Republicas que se degladiavam e guerreavam em disputas de hegemonia politica, não permittiram aos que enfeixavam as responsabilidades da direcção de nossos destinos a comprehensão da complexidade dos problemas nacionaes que deveriam se, em primeiro lugar, estudados e resolvidos, como base de nosso desenvolvimento em todos os seus aspectos. Do facto secular dessa incomprehensão que se perpetuou, transmittindo-se como um legado nefasto à marcha das administrações anarchicas que se foram succedendo em varios departamentos da Federação, resultaram a negligencia, o descaso e a desidia com que foram encarados os problemas vitaes da Nacionalidade em formação, fazendo com que periclitassem, desde cedo, num abandono criminoso e irritante, as suas finalidades e destinos, com sacrificio das aspirações sociaes e interesses collectivos, absorvidos pelas expansões individuaes que o Regimen favoreceu. As questões vinculadas ao Ensino e à Educação Popular, comprehendendo o preparo technico e o ponto de vista profissional com bases nos Institutos de Artes e Officions que a applicação da Cultura Physica viesse completar, assim como o controle da Economia e a implantação da Disciplina, jamais mereceram dos responsaveis pela sorte do Paiz a consideração e o carinho com que deveriam ser tratados, como elementos fundamentaes de nossa organização politica, economica e financeira e como condicção primordial de nosso desenvolvimento moral, social e material. O que se procurou fazer, entretanto, dentro dos moldes de um convencionalismo artificioso e ridiculo destinado a deslumbrar pela illusão os observadores e criticos incultos que na superficialidade do espirito analytico de que se fizeram joguetes encontram nas apparencias a logica do verdadeiro, foi um ensaio de exteriorização phantasiosa, um jogo convencional de fachada, sem nenhuma correspondencia ou ligação co a verdade interior. As organizações escolares, apparatosas e falhas, ensinadas nas Capitaescomo simples truques forjados para effeitos momentaneos, constituiram sempre um contraste com o estado de analphabetismo e abandono em que sempre permaneceram os sertões, onde intelligencias viçosas se estiolam e fenecem pela acção perniciosa da maleita damninha da ignorancia reinante que o especifico salvador da Educação e do ensino, monopolisado no centro, não chegou a combater. A centralização do Ensino defeituoso que vinha sendo a norma seguida em todas as circumscrições da União constitui, effectivamente, uma daas maiores causa do atraso e do desprestigio que pesam sobre os destinos das classe que constituem as forças moraes e materiaes da Nação. Foi do facto dessa centralização do pouco que possuiamos em materia de Educação e Ensino que resultaram as consequencias da ignorancia que predomina no seio das populações ruraes, reflectindo-se de modo inniludivel em todas as manifestações de suas actividades, na Agricultura, na Industria, no Commercio, nas Artes, nas Profissões e nos Officios. A rotina que presidia e orientava o seu viver, até ainda há pouco, restringindo os horizontes de sua mentalidade, foi um reflexo imediato da incultura em que ainda permanecem os habitantes das regiões sertanejas do Nordeste, atirado, pela inacção criminosa dos Governos anteriore, à mercê da propria sorte. Parece, porém, que os raios de um novo sol começam a raiar no Norte, penetrando nas selvas e mattas e promettendo ao caboclo brasileiro um pouco da luz suave, regeneradora e sublime, da Instrucção e do Ensino. A morte da Liberal-Democracia, extinguindo a politica estreita e doentia que infelicitava a Nação, marcou uma nova era para a vida nacional. Os fructos do novo Regimen começam a concretisar-se em promessas e realizações promissoras. E se, como a Phenix da Fabula, o espantalho da tremenda epidemia politica que devastou o

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14 Brasil no Imperio e na primeira Republica, não ressurgir de suas cinzas para perturbar a marcha vitoriosa da Nação em busca de seus destinos e de suas finalidades, essas realizações que começam a engrandecer o Paiz, transformando em realidade as aspirações nacionaes, illuminarão com as centelhas de um systema educativo appropriado às nossas necessidades esses affastados recanto do Nordeste, até há pouco abandonados, onde já começam a chegar os reflexos da acção governamental, compenetrada, felizmente, de suas responsabilidades e da acção energica e efficaz que lhe cabe desenvolver em prol de nossa cultura com a extincção gradual do analphabetismo reinante. A capacidade latente e a intelligencia estuante que revelam na rusticidade de seus actos e na simplicidade dos processo craitivos de que se socorrem para a conqusita dos meios de satisfação às suas necessidades, forneceriam à Nação um vasto contingente de elementos precioso, em todos seus aspectos, ao preparo da argamassa de sua estructura economica, material, intellectual e moral, se fossem cultivadas e applicadas dentro dos moldes e regras efficazes de um methodo de Educação efficiente. Os residuos de suas Tradições, conservados na memoria de Gerações successivas que os armazenam e transmittem ao Futuro como acquisições preciosas, como joias de um thesouro que avaramente defendem contra a invasão de elementos que os possam adulterar, fornecem dados seguros e argumentos convincentes às deduções insophismaveis a que os factos e a experiencia, a observação e o exame do phenomeno sociologico e psychico feitos no proprio local nos vêm, há muito, aarrastando. Se na intelligencia e no Espirito dos incultos Cantadores do Nordeste, joguetes da ignorancia e do atraso intellectual que as contingencias do meio lhes impuzeram, scintillassem, embora sem os lavores de um cultura perfeita, alguns raios ou fagulhas do eterno Sol do Saber, a obra que ora apresento como simples intermediario entre elles e o Editos, em vez de um producto exclusivo de faculdades que não foram trabalhadas pela acquisição de conhecimentos methodisados que as disciplinassem, appareceria com o timbre e a pompa de uma outra indumentaria, salpicada de flores de rethorica e pontilhada da graça e do sabor da erudição. A falta de taes requisitos, porém, não lhe diminue o valor ou a significação, que realmente apresenta como fructo puro e innato das Tradições Nacionaes, no que ainda conservam de seu esplendor primitivo, livres de alterações e de enxertos. É uma nesga do Passado, focalisada atravez da balburdia do Presente, projectando um pouco de luz no quadro do scenario nacional e fornecendo aos estudiosos das origens de nossa Litteratura um contingente de elementos expurgados de mesclas ou cruzamentos. Se o esforço que tenho despendido na concatenação desses dados, que se me afiguram de alguma utilidade para o estudo sociologico, litterario e psychologico das forças que actuaram na formação da Nacionalidade, concorrer de qualquer modo para facilitar a jornada dos que se aventuram, ainda, a desvendar os meandros intrincados do problema de nossas Tradições, estarão preenchidos todos os meus objectivos e satisfeitas de forma absoluta todas as minhas aspirações.

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BURITY-GRANDE Burity-Grande é uma velha Fazenda sertaneja situada cerca de vinte leguas a leste da Cidade de Oeiras, antiga Capital do Estado do Piauhy. Situada em um vale pitoresco, entre os pincaros alcantillados de duas serras que correm, como rectas regulares, do Oriente ao Occidente, prolonga-se, em filas quazi continuas de innumeras casas de palha e algumas com cobertura de telhas, numa extensão de pouco mais de uma legua, de um lado e outro da larga estrada arenosa que de extremo a extremo a atravessa.

olho d’água (nascente) cercado por buritiseiros

curral e serra

Seguindo as curvas e reconcavos do gigantesco espinhaço destendido de Leste para Oeste como serpente encurvada num collapso interminavel, malocas irregulares de caroba e de pau-de-arco emprestam à copa das frondes, com os tons roxos e amarellos de suas flores mimosas, colorações matisadas que as flores do manacá, gytiranas e papoulas, em combinações naturaes, caprichosamente irisam e compõem. Num ponto mais alto do vale, com a frente voltadas à estrada, mostrando em um de seus angulos tres immensos quadrilateros cercados de pau-a-pique, que serviam de curraes para as centennas de vaccas que pastavam pelos campos accompanhadas de crias, está a casa da Fazenda. Tem as proporções de uma quadra ou quarteirão das cidades, com dois angulos limitados pelos curraes e o pomar, e os outros dois ladeados por grandes pateos externos. pincaros alcantillados - cumes escarpados caroba - nome comum de árvores da família das bignoniáceas (Jacaranda), barbatimão pau d’arco - ipê amarelo (Tabebuia aurea) ou ipê roxo (Tabebuia impetiginosa) manacá - nome comum de arbustos da família das solanáceas (Brunfelsia), com flores perfumadas gytirana (jitirana) - trepadeira ornamental (Ipomoea coccinea et al) papoula - indefinido, pode ser um arbusto (Hibiscus mutabilis) ou algumas herbáceas irisam - matizam com as côres do arco-íris

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16 Além, espelhando ao sol o christal de suas aguas, que se estendiam ao longe como um immenso lençól, espreguiçava-se indolente um grande açude talhado na depressão do terreno, apertado entre dois morros em cujas bases passavam em torrentuosos volumes todas as aguas do inverno que rolavam das montanhas e ali ficavam retidas por immensos paredões de onde escapava, apenas, por meio de um sangrador para tal fim preparado na altura de quatro metros. Era um espetaculo soberbo este lago de aguas mansas retidas e accumuladas em consideravel extensão por mercê desse obstaculo que os paredões lhes criavam. Tirirycas eriçadas de farpas ponteagudas e moitas de capim-faca com suas folhas providas de extremidades cortantes como gume de cutello, cobriam de ambos os lados as margens do lençól dagua formado pelo açúde. E quem demanda a Fazenda nas horas quietas da noite, quando o vento se amortece e o ranger de carros e engenhos não atormenta os ouvidos, ouve, embora a grande distancia, o estrondo ensurdecedor de uma queda de agua possante, que como um abalo sismico de pequenas proporções parece sacudir a Terra em estremecimentos longinquos. É o estrepito ruidoso da formosa cachoeira que o Povo denominou Caldeirão da Benedicta, cujas aguas desabando de cinco metros de altura, nas quebradas da montanha, no terreno pedregoso em que batem há alguns seculos, escavaram a bacia irregular, de proporções consideraveis, em que cahem com estrondo semelhante a um terremoto. Nessa Fazenda fundada entre serras e alcantis, mostrando aos raios solares no coração das montanhas, as manchas vermelho-claro de seu immenso telhado, festejavam-se annualmente,

casa típica de Burity Grande

cercado de pau a pique engenho de cana

tiriryca - provavelmente, espécie de capim de folhas cortantes capim-faca - capim (Scleria bracteata ?) de folhas muitíssimo afiadas (do tupi tiriri = cortante)

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17 desde maio até agosto e em vários dias de dezembro, diversos santos da Igreja. E, em regra, após a novena, vinha a festa costumeira, de natureza profana. Afinavam-se as violas, temperavam-se os pandeiros ao calor de uma fogueira, estrugia alegre o baião, estalavam as castanhólas nos dedos das sertanejas, e as danças repinicadas em habeis sapateados em que deslizavam as mulheres como se não tocassem o solo, mantinham-se com animação até o romper do dia. Cantadores convidados previamente pelos respectivos mordomos sentaram ao pé da viola e encetaram o Desafio, que foi seguindo animado, com varias alternativas, entre ataques calorosos e replicas apropriadas, até o termino das festas. Foi ahi, nessa pitoresca Fazenda, que, em ruidosas noites de festas em louvor de Santo Antonio, agazalhado num mocho junto a um pé de ariry fincado junto dos bancos em que se achavam sentados violeiros e Cantadores, de cuja haste pendia uma lanterna de vidro com vela de carnahuba, tachigraphei com interesse e minucioso cuidado as paginas admiraveis de sadio e curioso Folk-Lore que junto neste volume. Nellas estereotypam-se nitidas, na eloquencia palpitante de uma realidade patente que se impõe pelo que vale como attestado seguro do poder incalculavel de intelligencias incultas, o padrão de capacidades mentaes agúdas e penetrantes ao serviço do improviso, e a abundancia de comcepções, de imagens e de rimas, ornadas de trocadilhos originaes e muitra vezes difficeis, servidos pela mobilidade adestrada de um linguajar todo proprio. E, se no Desafio de ataque e de defeza multiplicam-se os arroubos e imagens arrojadas, destacam-se nas expansões do Lyrismo concepções admiraveis em que a Alma do Cantador, ora tocada de perto pella chamma do enthuziasmo, ora combalida pelos effeitos de recordações que naturalmente se prendem a impressões de sonhos passados e venturas que se foram, desdobra-se e transfigura-se, passando subitamente do auge de uma alegria ruidosa e communicativa, dos arrebatados assomos de prazer esfuziante, aos páramos nublados de uma melancholoa profunda, de uma tristeza infinita, carpindo maguadamente as saudades e amarguras, as desillusões e o travo que o forçam a mergulhar abatido num mundo dos dissabores. Essas mutações e transposições de situação espiritual são tanto mais frequentes e pertinazes quanto mais fundas e cruciantes se revelam as impressões deixadas no Espirito por dissabores e desgostos experimentados, sobretudo quando, na teia de sua tessitura, ferindo a affectividade nos dominios do amor-proprio exasperado, surge, focalizada na tela do ciúme, uma figura de Mulher, despertando recordações dolorosas epungentes. É que o Amor, no homem inculto, prolifera em todo o vigor e exuberancia de sua intensidade animal, e cego, na embriaguez de sua sinceridade zelosa que exclue qualquer concessão, não perdoa tergiversações ou fraquezas do objecto de seus desvellos. Profundamento sincero em suas affeições e amizades, sobretudo quando calcadas em seus instintos genesicos, que predominam intensamente, especialmente nos climas tropicaes, nas organizações que evoluem, em plena animalidade no seio da Natureza, o caboclo sertanejo, desconfiado por indole e levando ao exaggero de sua concepção absurda a noção do que encara novena período de nove dias de orações temperavam-se os pandeiros ao calor das coivaras - retesar o couro dos pandeiros ao calor da fogueiras, para que produzam o som correto Desafio - ver “Festa de São Gonçalo - Quadros Authenticos do Folk-Lore Nacional”, página 112 mocho - banquinho sem encosto ariry - bela palmeira (Syagrus cocoides) carnahuba (carnaúba) - bela palmeira (Copernicia prunifera), de madeira forte, de cujas folhas sêcas extrai-se cêra tachigraphei (taquigrafei) - taquigrafia ou estenografia, sistema de escrita fonética em alta velocidade

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18 como honra de familia, toca às rayas da loucura quando se sente entre as pontas do acicate do ciúme, e em tal estado é capaz de todos os desatinos. E quando a aleita de seus affectos, seja noiva seja amante, seja esposa ou pretendida, trahe a fidelidade jurada, toda a efervescencia do Amor incandescente que o arrebatava ao delirio, envolvendo a Alma nas chammas de um incendio devorador, transforma-se em odio profundo fundindo a vida e o cerebro, rugindo como tormenta, deblaterando vingança e crescendo, a cada momento, como torrentes caudaes retidas contra montanhas. O tempo torna-se impotente para lhe destruir no Espirito o travo desse rancor a que o orgulho espicaçado dá maiores proporções. Estabelece-se, então, no mechanismo de sua sensibilidade alterada pela multiplicidade de impressões perturbadoras e de sensações antagonicas recebidas em tropél, e nos dominios de sua affectividade vacillante e indecisa um verdadeiro pandemonio de sentimentos contradictorios e opostos que elle procura recalcar e comprimir, na ancia de refugiar-se, em busca da reconquista da tranquilidade perdida, no abysmo do esquecimento. As recordações mortificantes e imperiosas, porém, surgindo como phantasmas, despertadas em tropél, do labyrintho mysterioso da memoria, o arrastam, de vez em quando, às vezes em momentos de tristezas e alegrias, a contemplar o esqueleto de dissabores passados, que desejaria evitar, exgottando até o fim o fél de suas torturas. E nesses instantes, então, que o ódio e o rancor adormecidos no fundo do subconsciente despertam alvorotados, bramindo como procellas e uivando como tormenta em noites de treva espessa, exaltando as fibras sensiveis até leval-as ao termo de um profundo abatimento. E dessa revolução operada em toda a organização sublevada, como reminiscencias amargas que fluctuam no Espirito à semelhança dos sedimentos que as correntezas violentas revolvem e trazem à tona dos lagos em momentaneo repouso, a melancholia e a saudade, a tristeza e a nostalgia, resultam como um recesso da exacerbação em declinio. A Alma do setanejo, acostumada e affeita às sensações variadas e muitas vezes intensas que os phenomenos naturares a cada passo lhes trazem, com a mesma naturalidade com que se revela tranquila, exteriorizando a apparencia de uma calma inalteravel, entra em bruscas mutações, transforma-se pela colera e irrompe fera e selvagem em surtos de furacões e arrancos de temporaes, do seio da paz sem nuvens que pauta o seu viver habitual. Há nella, effectivamente, na razão das impressões que influem nos seus estados, mudanças bruscas e subitas, alterações tão profundas, que a equiparam, às vêzes, na violencia surprehendente de suas manifestações, à volubillidade oceanica que se concretisa na rapidez de suas alterações, passando da calmaria e do repouso às agitações subtaneas em que as ondas em tumulto rugem e bramem colericas como leões exaltados ao latego do domador. É nos Cantadores, especialmente nos momentos de prazeres mais intensos e de assomos de enthuziasmo, que se revelam com mais frequencia e clareza essas transições precipitadas, que encontram as suas causa na tensão espiritual que o esforço do improviso os arrasta, fazendo que aflorem do fundo do inconsciente, onde permaneciam esquecidas, recordações desagradaveis que os levam ao desespero, ao abatimento e ao torpor. Nas paginas que vão seguir-se transparecem alternativas de phenomenos psychologicos de tal quilate e origem. E quem, dispondo de capacidade de analyse e do necessario senso critico, examina a parte lyrica, que toma grande extensão no correr deste trabalho, há de ver surgir das evocações eloquentes que borbulham, a cada passo, do intimo da consciencia do caboclo emocionado, uma nesga do passado, umas remotas reminiscencias de tempos idos, uns traços do que já foi, em que se focalisam em linhas vivas o drama de suas paixões ardentes e abrasadoras e uma parte emocionante da historia de seus soffrimentos pungentes e maguas inapagaveis. Há ahi, como que rebuscadas no fundo das Idades, do thesouro soterrado do espolio fecundo das

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19 Tradições Nacionaes, onde se conservam enbalsamados sob a egide protectora da memoria da potente retentiva sertaneja, referencias e indicações indecisas que caracterisam e assignalam, nos termos vagos e imprecisos de suas formas indefinidas e incertas, costumes de tempos mortos, lendas estranhas às epochas historicas em opposição às possibilidades actuaes e factos que no presente só encontrariam agazalho nas miragens ou nos sonhos. E nessas allusões obscuras a lances e acontecimentos que se perdem nas esfumadas brumas dos tempos succedem-se a cada instante nas expansões de seus cantares, que constituem, para o inculto sertanejo que a inspiração bafejou, uma necessidade indeclinavel. Cantar é affirmar a vida, e como, na organização robusta e resistente do caboclo do Nordeste, há um coefficiente estuante de vitalidade e energia, o cantar é, para elle, uma necessidade premente. Todo o homem forte, representante de um Povo forte, canta. Um Povo que deixa de cantar tende a desapparecer. Só os moribundos não cantam, porque o silencio é a lei imperiosa da Morte. O Caboclo canta, affirmando a vida, porque é forte, e tem a Alma vibrante, tocada do vigor da Natureza e da seiva tonificante das selvas, a energia indomita do homem livro e afeito a transplantar para o registro fixador de suas impressões permanentes a Poesia das solidões, e thesouros inexauriveis de sensibilidade e emoção. Ouçamol-o cantar.

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OS CANTADORES IZIDIO E COLLETE

Segundo o que li algures, constituia uma velha uzança ritual entre diversas tribus indigenas das bandas do Oriente, que ainda desconheciam os recursos da escripta, conservar de memoria as tradições do passado, religiosas e litterarias e transmittil-as oralmente de geração a geração. E, como esse trabalho de conservação e transmissão, que constituia o systema de educação popular, demandava grandes esforços e serias responsabilidades, foram criadas tres castas especiaes, educadas no sacerdocio desde os primeiros dias da infancia, para o desempenho de tal mistér. Entre ellas, entretanto, a par da especialisação, havia a hyerarchia, cabendo aos mais graduados um maior numero de Contos, Cantos, Lendas, e Hymnos a conservar. Dessas tres castas, porém, a mais graduada, com a responsabilidade da direcção das demais e sobrecarregada com retenções de maior vulto e importancia, era a dos Olam. Como chefes e directores das demais castas, cabia a cada um delles a obrigação de conservar e transmittir aos noviços e ao Povo, desde trezentas e sessenta até seiscentas das peças da litteratura sagrada e tradicional que constitutia o seu patrimonio. Essa missão importante, que revestia as caracteristicas de uma instituição integrada nas proprias formas do culto, outorgava aos Olam uma extraordinaria autoridade moral, a que só se podia antepor, dentro de determinados limites, a dos chefes supremos do culto e do sacerdocio. A veneração que inspiravam, pelo prestigio e respeito de que se achavam investidos e pela propria natureza das elevadas funcções de que eram depositarios, os envolvia numa aureola de benemerencia e attribuia-lhes qualidades de tal ordem, que tocava as rayas da superstição. Esse excesso de obediencia e de respeito, porém, exercia o grande poder de conservar submissas à autoridade dos Olamas massas supersticiosas confiadas ao seu zelo e disciplina intellectual pelo exercicio da memoria. Entre nós, no entanto, se não foram, de modo expresso, instituidas taes castas possuimos, todavia, em cada cantador um Olam. É o que podemos inferir da natureza e resultados da missão fecunda e util a que se devotaram, de modo espontaneo, obedecendo exclusivamente aos seus impulsos e tendencias, os vigorosos e fluentes trovadores nordestinos, legitimos claviculários do espolio das tradições brasileiras. São elles, de facto, os conservadores principaes de nossas tradições em tudo o que se relaciona Olam macrocosmo (filosofia hebraica), há outros significados associados a outros nomes, consulte http://www.oapocalipse.com/home/estudos/religiao_qabalah.html http://www.zeek.net/706tohu/ trovadores - originalmente, cantores e poetas medievais claviculários - responsáveis pela guarda de chaves de cofre ou arquivo

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21 com os documentos oraes em que se têm estribado os obreiros da reconstrução de nossa litteratura - fonte em que bebemos a historia do povo brasileiro disperso pelos sertões, desde a phase rudimentar de sua formação até os nossos dias. E as reminescencias do “Naufrágio do Sepulveda”, da “Nau Catharineta”, da “Chegança”, do “Rabicho da Geralda” e as velhas historias em versos do “Rei Congo” e tantas outras, nos attestam o poder formidavel da retentiva do homem inculto dos sertões e, ao mesmo tempo, o de que as tradições oraes são dotadas. Os Cantadores que observei bem de perto em seu poetar natural, espontaneo, despido de atavios, mas transbordante de lyrismo puro e sadio, de imagens singelas mas perfeitas, hauridas da observação dos proprios factos naturaes e de comparações arrojadas calcadas sobre os modelos palpitantes das multiplas modalidades que lhe offerecem a fauna, a flora, os rios, as serranias, as flores, os phenomenos meteorologicos e o firmamento estrellado que elles admiram e contemplam sem poderem comprehender, e cujas producções originaes colhidas com todo o escrupulo enfeixo neste volume, gozavam nos sertões do Piauhy, onde os surpreendi em flagrante, da admiração popular, e a fama que os precedia tornava-os o alvo das preferencias e muitas vezes de querellas entre varias localidades em que se promoviam sambas e festejos populares na mesma epoca do anno. A consideração de que gozavam, concretisada na frequencia dos convites e facilidades de transportes e commodos que lhes eram proporcionados - o que é, aliás, peculiar, ou comum a todos os Cantadores de renome nas ribas sertanejas - mostra, de modo evidente, a importancia do papél que lhes fica reservado nos successos dos festejos. E quem acompanha de perto os folguedos e diversões populares realisados nas regiões centraes do Nordeste basileiro, nota logo a frieza e o desanimo que os presidem, quando, ao pé da classica viola, que soluça confundida com os rigidos e roucos sons dos pandeiros, estão vazios os lugares destinados aos Cantadores, que são, para os apreciadores desse genero de musica vocal, a alma e o nervo das festas. O enthuziasmo desapparece, a alegria é menos intensa, as dansas são menos ruidosas e correm sem interesse, e a festa, sem a nota indispensavel da peleja dos Cantadores, que constituem o seu attrativo, a razão do seu ardor, declina e morre de manso, entre o desalento e a tristeza, logo após a meia-noite. Quando elles, entretanto, se acercam dos tocadores e o pinho rufa ajudado pelos choques de seus dedos contra o taboleiro das cordas e as suas vozes se erguem na furia do desafio, muda de vez o scennario. Formam-se logo partidos, gesticula-se e discute-se com animação calorosa, há attritos de opiniões e contendas acirradas de oppostas convicções, apostas sobre a victoria de uma dos Cantadores em luta, no campo do desafio, e resingas que não chegam ao extremo do pugilato. Naufrágio do Sepúlveda - a História Trágico-Marítima é uma coletânea de naufrágios de algumas naus portuguesas entre os séculos XVI e XVII, e em especial do galeão São João, com perda da tripulação, do capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e família, consulte http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/sepulved.htm Nau Catharineta (Catarineta) - romance popular português sobre peripécias de uma longa travessia marítima (existiu mesmo uma nau Catarineta, que empreendeu dolorosa jornada para Lisboa em 1666), consulte http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/5ritmos/nau.html Chegança Marujada, auto popular de origem portuguesa do ciclo do Natal (representada como cenas marítimas inspiradas do ciclo dos Descobrimentos) Rabicho da Geralda - o mais antigo modelo conhecido da gesta do gado, poesia contando proezas de um boi do Ceará que durante nove anos esquivou-se aos vaqueiros que pretendiam capturá-lo Rei Congo - festa que evoca mito fundador de uma comunidade católica negra no Congo (invadido e cristianizado pelos portugueses ao final do século XVI), e que deu origem às Congadas e Maracatus http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u186.shtml

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22 O enthuziasmo fermenta, a satisfação sobe ao auge, e não há espectador, por mais frio que pareça, que não se sinta tocado pelas explosões do prazer que electrizam a multidão.As mulheres formam grupos e animam os Cantadores com seus sorrisos brejeiros, primando na faceirice e nos requebros dengosos das danças executadas ao compasso do baião. Ao contacto vitalisante e de effeitos magneticos dos Cantadores empenhados na luta do desafio, as energias renascem, o prazer da dança gozado aos plangentes sons da viola casa-se à musica viva dos improvisos lançados em vertiginosas corrente, e a feste se enche de vida, de movimento e alegria até o nascer do sol. Quem faz festas no sertão esforça-se o quanto pode para obter Cantadores, como garantia segura de absoluto triumpho. As que me serviram de ensejo à recolta das producções que entrego à publicidade, tiveram a animal-as o concurso forte e brilhante de dois Cantadores de nota nas regiões que percorri em minha ultima visita ao velho sertão distante: IZIDIO FULÔ DE SOIZA DE ARAGÃO PEREIRA LIMA, e COLLETE MARIANO LOPES BRAZ. Izidio era um caboclo delgado, esbelto, de altura regular, olhos negros e brilhantes, fronte larga e saliente revelando traços vivos de uma intelligencia invulgar ao serviço de um espirito forte, destemido e audacioso, de cabelos de azeviche cahindo encaracolados sobre as orelhas e a testa, e de dentadura perfeita na alvura e conformação. De cor clara quazi branca, e calça de brim de cor regularmente gommada, camiza de cheviot e chinnelões de “sola e vira”, possante chapéo de couro dobrado com elegancia na extremidade da frente - revelava em seus modos a petulancia pernostica dos galopins sertanejos e namorados vulgares, animado pelas regalias que lhe davam os foros de Cantador de nomeada, de que se aproveitava amplamente. Tinha a pronuncia affectada dentro dos moldes e limites de sua incultura arrogante e uma dicção supportavel. Sabia ler e escrever, soletrava psalmos da Biblia e lia sem assimilar o “Manual Encyclopedico” de Emilio Monteverde, trazendo de cór a historia da “Donzella Theodora”, “João de Calais” e algumas outras do genero. Habituado ao improviso em que educara a intelligencia no ardor das refregas mantidas desdes os primeiros annos de vida, era eloquente no ataque, ferino e prompto na replica, orgulhoso e convencido de sua superioridade sobre os demais Cantadores com os quais entrava em contendas no campo do desafio. Dispunha de voz possante de avantajado barytono e de regulares recursos no vocabulario das rimas. Manejava com destreza o violão e cantava também modinhas com trejeitos de pachola e visagens de apaixonado quando se via cercado de sertanejas robustas rendidas aos seus encantos de Adonis regional. Usava bigodes grandes retorcidos com exaggero e cabellos perfumados pelo “Óleo de Babosa” ou Pommada de Familia” que adquiria por compra aos mascates ambulantes e era o perfume da cheviot (cheviote)- tecido de lã de carneiro Manual Encyclopédico para Uso das Escolas de Instrução Primária (1837) - obra do notável escritor didático português Emílio Achiles Monteverde Donzella Theodora (Donzela Teodora) - história de origem árabe (dos contos das Mil e Uma Noites, traduzida do árabe para o castelhano no início do século XVI, e daí para o português em 1758) sobre uma escrava, bela e sábia, que continua encantando o povo do Nordeste - consulte verbete História da Donzela Teodora (recolha de Luís da Câmara Cascudo) em http://pt.wikisource.org/wiki/Categoria:Literatura_de_Cordel esta história (e muitas outras) têm origem na tradição oral ibérica, que começou imprimir-se na Espanha como literatura de cordel ao final do século XVI, daí espalhando-se posteriormente para Portugal e Brasil http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literatura_cordel.htm João de Calais - romance (1723) de aventuras do humanitário navegador português João de Calais, consulte http://www.flogao.com.br/arievaldocordel/foto/08/23707875

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23 moda entre a gente sertaneja. Dizia-se iniciado nos “Livros de Salomão” - criação phantaziosa de seu espirito inclinado às superstições e mysterios - e pretendia ter lido nelles as regras e os segredos dos improvisos e rimas em que se julgava mestre sem par de todos os Cantadores. E affirmava com jactancia que não encontraria jamais um contendor que o enfrentasse até o sétimo Livro ... Collete tinha uma compleição esquizita e uma figura physica curiosa que despertava o ridiculo e punha em duvida os seus meritos e a fama que lhe outorgavam. Cafuso baixo e anafado, de carapinha revolta e de cor afogueada, olhos pequenos e obliquos, nariz tão baixo e achatado que quazi se nivelava com as saliencias da face, tinha do lado direito, nas immediações da orelha, um tumor indolente e ankylosado que elle denominava “lumbim”, de tal tamanho e altura que, contrahindo os musculos faciaes, determinava um ligeiro desvio do mesmo lado da boca. Tinha a voz fanha e aflautada, a cabeça irregular, as orelhas atrophiadas, as faces escaveiradas, o pescoço quazi sumido na extremidade do thorax, braços curtos e revessos e as pernas curvas e tortas. Uzava sobre a cabeça um velho chapéo de couro, de tamanho tão mesquinho que tomava a forma de um gorro. Desconfiado, talvez, de sua propria figura, era arisco e atrevido, e explodia em grosserias se pressentia allusões que o pudessem alcançar. Imberbe e de corpo curto, pesado nos movimentos, olhar morto e fronte estreita, era um adepto do alcool calculadamente bebido, de modo a não attingir o estado de embriaguez. O que lhe faltava, porém, na exotica figura physica e na voz rouquenha e aflautada, excedia a expectativa na eloquencia e na destreza com que manejava o improviso, em que catadupas de rimas e comparações sempre novas lhe borbulhava dos labios como jorros de cascatas ou borbotões de aguas cahindo precipitadas de consideraveis alturas. Era curioso, de facto, observar-se os prodigios da gymnastica mental que esse cafuso rachitico e disforme em toda as sua estructura exercitava com arte e extrema facilidade no trato dos improvisos com que se defendia e atacava um adversario intelligente e vigoroso, que lhe disputava palmo a palmo, com habilidade e energia, a conquista final de uma victoria na luta rustica e altiva das ideias e pensamentos que so tiveram a Educação e o controle dos impulsos da Natureza. Parece que a Sabedoria insondavel das Leis que regem o Mundo, a Sociedade e o Homem, orientadas, talvez, por uma especie de consciencia universal, quis attenuar os defeitos com que deformara o cafuso em sua conformação physica exterior, por meio dessa compensação consoladora, suprindo as suas deformidades sommaticas pela grande agilidade espiritual de que o dotou. Convencido, pela importancia que lhe davam e pela questão que faziam de sua presença nas festas, do conceito que gozava entre as populações sertanejas daquellas regiões, procurava Livros de Salamão - o Livro dos Provérbios, o Livro do Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos (na Bíblia), são atribuídos ao Rei Salomão, e por uns considerados como livros sapienciais; o Livro da Sabedoria e o Testamento de Salomão são-lhe apocrifamente atribuídos, compondo com o Sêlo de Salomão etc um corpo de conhecimentos e artefatos esotéricos com poderes supostamente mágicos cafuso - mestiço de negro e índio anafado - bem nutrido, gordo ankylosado (ancilosado) - rígido, que não se pode dobrar fanha (fanhosa) revessos - retorcidos, tortos rachitico (raquítico)

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24 valorizar-se, esquivando-se a tomar posição ao lado dos violeiros a fim de fazer-se instado pelos homens e mulheres que o admiravam e pediam que inciasse a contenda. A não ser no elogio ou no louvor descriptivo, em que sempre se mostrava de uma fecundidade assobrosa, negava-se, systematicamente, a cantar, se não tinha contendor. E nas lutas do Desafio ou da Ligeira, em que se tornava mordaz e agressivo atirando ao companheiro as farpas da ironia, do deboche e do ridiculo, e, não raro, da impertinencia desaforada e ferina, perdia todo o controle e subia indignado ao auge da violencia e da revolta incontida, se alguma referencia indiscreta vinha por em evidencia aquelle defeito physico, que elle, pitorescamente, seguindo, aliás, o criterio da gyria do sertanhejo, denominava “lubim”. A indignação a que essas referencias o arrastavam exercia, entretanto, em sua estranha organização, caracterisada por manifestações psychologicas especiaes que as leis e observações dos factos normaes não poderiam explicar de modo satisfatorio, a acção de um excitante. Maguado, assim, pela irreverencia picante do contendor, que transpunha as conveniencias moraes, descendo a atacal-o, até mesmo, em seus defeitos e defficiencias sommaticas, a sua intelligencia vibrava exarcebada, produzindo, a despeito de sua incultura, maravilhas de imaginação, quer na abundancia das rimas, algumas vezes difficeis, quer na variedade das comparações, em que se revalava, por vezes, uma somma consideravel de observações, incomprehendidas, sem duvida, de phenomenos espontaneos commumente repetidos no seio da Natureza. Era nesses momentos, realmente, que se exteriorizavam a capacidade e a força mental de que era dotado este filho rustico das selvas nortistas, onde o talento e as intelligencias vicejavam, estuantes de vitalidad e de seiva, com a mesma abundancia superabundante e vigorosa da vegetação luxuriante e pomposa a que a fertilidade prodigiosa do solo uberrimo communica os impulsos criadores de sua energia nativa. A consciencia de nossas responsabilidades e deveres, porém, nos leva, ao contemplarmos o desaproveitamento e o descaso em que ficam para sempre sepultadas essas revelações eloquentes da capacidade desse heroicos sertanejos tão calumniados quanto desconhecidos por certa especie de critica que os malsina e deturpa, a corar de pejo e vergonha diante de tanta inercia. E os nossos sentimentos de nacionalismo e de brasilidade, nascidos dos anceios collectivos de um Brasil unificado, constituindo uma nacionalidade livre da tutella e das influencias estranhas que o veem, há séculos, escravizando e humilhando, nos conduzem a desejar que um raio de luz brilhante do sol fecundo e potente de um systema educativo organisado segundo as nossas necessidades e exigencias imperiosas da hora que atravessamos, dardeje naquellas mattas para arrancar ao horror das trevas da ignorancia, em que jazem affogados, milhares de irmãos nossos, que, restituidos ao seio das camadas alphabetisadas, constituiriam esteios e elementos preciosos de nosso engrandecimento. Emquanto estivermos sob o dominio do malfadado regimen liberal - em que os politicos, metamorphoseados em “clowns”, como bruxas, na Idade-Media, em noites de Todos-os-Santos, cavalgam, desorientados, a vassora da extravagancia e dos desmandos, da impertinencia e do dislate - os clarões restauradores dessa alvorada sublime, que começa a despontar, mas que, sob a influencia nefasta da politicalha de então se diluia na miragem de um sonho vago e indeciso, permanecerem obumbrados nas nuvens das ambições e interesses individuaes, rebeldes a qualquer tentativa de calculo, envoltos na bruma espessa de uma noite demoniaca de farras republicanas, desordens administrativas e orgias governamentaes ... dislate - disparate, tolice obumbrados - anuviados, toldados Ligeira - ver “Festa de São Gonçalo - Quadros Authenticos do Folk-Lore Nacional”, página 112

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25 Mas os raios coruscantes dessa aurora alvissareira que o facho do Estado-Novo rasga no seio da noite eem que nos sentiamos envoltos, despontam com grande brilho lançando feixes de luz nas trevas que nos tinham circumdado, e illuminando os caminhos das finalidades da Patria em busca de seus destinos. Os clarões de um novo sol já descem ao seio das mattas onde o caboclo vegeta na penumbra aterradora do analphabetismo reinante, e o trarão de fronte erguida, de olhar illuminado e na posse da consciencia de seu valor e direitos como parcellas legitimas da organização social e elementos integrantes da communhão Brasileira, ao seio da civilização. Collete trazia impressas no espirito todas as vibrações e modalidades da natureza selvagem e bravia, em cujo contacto se desenvolveu e formou. Nas exteriorizações de sua alma inspirada de trovador educado nas asperezas das mattas, na aridez das montanhas e no silencio das noites estrelladas, ouvindo o piar do mocho, o rugir do tigre e o mugir dos touros, perpassava uma escala chromatica de notas, moduladas em tons variados, em que das folhas e o gemer das fontes, o cantar das aves e o bramir das feras, até a melodia inebriante, cheia de suavidade e doçura, de sentimento e saudade, de recordações e pezares, de evocações e tristezas, que impressionam os sentidos, desde a onomatopeia dolente que reproduz o ciciar dos ventos, o farfalhar synthetisa o murmurio soturno das quedas das cachoeiras, os soluços maguados da jurity melancholica e as queixas doloridas da perdiz no desespero da perda do companheiro arredio, de mistura com as vibrações e estridulos da araponga, dos estrillos agudos das cigarras e do gargalhar rispido e irritado da cauan enfurecida pelo collear da serpente. No auge de seu lyrismo natural, repassado de ternuras e meiguices, de lances e revelações passionaes, de assomos de desesperos e roucos gritos de colera que transbordam dos abysmos de torturas recalcadas, há, por vezes, asperezas e acrimonias, azedumes e afflições, rugir de leão raivoso e queixas amarguradas de abatimento e prostação, debilidade de animais e desalentos crueis, que caracterisam claramente o estado de sua alma batida dos desenganos e contundida aos choques violentos de antigas concepções. Canta e chora ao mesmo tempo, revendo gozos fruidos em epocas distanciadas, quando os ventos da fortuna o bafejavam de perto, ou quando o infortunio impiedoso e as desventuras acerbas directamente o feriam. E nesse misto inextricavel de sentimento oppostos, na urdidura emmaranhada desse labyrintho intrincado em que se debate e estribucha nas vascas de uma agonia mortificante e pungente, a sua sensibilidade se apura, a inspiração se reforça e cristalisa, o seu poder criador aumenta de intensidade, as phantazias borbulham dos recursos de seu cerebro, as rimas se multiplicam e sublimam, as imagens adquirem mais nitidez e bellezas e as comparações se revestem de roupagens mais brilhantes. E o cafuso ignorante, com o estimulo desses reforços que instigam a imaginação, faz lyrismo verdadeiro e poesia natural, em seu linguajar tosco e imperfeito. Parece que em taes momentos todas as suas faculdades, embora desapparelhadas das acquisições do Saber methodisado dentro das normas scientificas, se sublimam e alcandoram, mobilisam-se e concentram-se, sob a acção electrisante de forças desconhecidas que sobre ellas Estado-Novo - regime político ditatorial imposto pelo Presidente da República Getúlio Dorneles Vargas, em 02 de dezembro de 1937, como este Desafio data de 1926, tais comentários foram acrescentados posteriormente, quando a idéia do Estado-Novo certamente já estava em discussão, consulte: http://www.culturabrasil.pro.br/estadonovo.htm http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/htm/fatos/EstadoNovo.htm http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5863_1.asp http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_1.asp jurity (juriti) - espécie de pomba silvestre, muito bonita, de canto melancólico araponga - pássaro cujo canto soa como uma lima desgastando o ferro cauan (acauã) - espécie de falcão, predador de ofídios vascas - respirações ofegantes no momento da morte, estertores

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26 actuam, outorgando-lhes energias e agudeza de engenho em verdadeiro contraste com o estado de incultura em que permanece o seu cerebro. O Cantador illumina-se no ardor da excitação, como se recebesse projecções de energias inconscientes que lhe suscitassem ideas e sensações abundantes, ou correntes de pensamentos que lhe transmittissem de seres distanciados mysteriosas influencias emotivas. Izidio, muito mais arrebatado e ardoroso, era menos impressionavel. Não se distanciava, contudo, de seu companheiro de luta. Collete era o genio do improviso promto e facil, commedido nos arrebatamentos, mas energico e vigoroso no ataque ou na defeza. Izidio tinha a violencia e os surtos dos temporaes desencandeados, revolvendo e assolando tudo o que se lhe antepunha, ou rugindo de impaciencia e de colera quando encontrava obstaculos que lhe detinham os arrancos. Eram dois adversarios que poderiam medir-se com recursos e armas iguaes, levada em consideração a differença de temperamentos que os definiam e destacavam. Na intelligencia de ambos crepitava a chamma nativa do fogo da inspiração e eram igualmente dotados da mesma audacia e arrojo, decisão e desassombro. Tinham ambos dentro da alma, redemoinhando escaldantes em jactos impetuosos, raios do sol do Equador, communicando aos impulsos que os dominavam nas refregas o calor que projectavam ao dardejarem sobre a terra. Collete era o rei do improviso, Izidio o da inspiração e das rimas. Aquele era a torrente impetuosa desabando das montanhas em incontidas catadupas e borbulhando marulhosa, espumejando e rugindo sem conter a sua marcha e sem achar dificuldades no seu curso em progressão como a percorrer um declive. Este era o vendaval avançando de modo rapido e livre pela amplidão dos espaços, movimentando e sacudindo, abalando e revolvendo com a força de seus impulsos o vasto espolio das rimas que a inspiração lhe mandava em crescentes borobotões. Tinha-se a impressão, realmente, ao vel-os interessados nesse duelo de rimas, de comparações e de imagens que brotavam de seus cerebros com inexgottavel fluencia e extraordinaria abundancia, que ali estavam duas forças de tal capacidade e poder, que se neutralisariam, por fim, numa especie de inercia determinada pela igualdade da acção em que se debatiam em choque. Havia nesse dois homens, em determinados instantes de seus surtos inspirados e algo fora das normas das pugnas observadas entre Cantadores incultos, momentos em que pareciam sob a influencia e o controle de mysteriosas e occultas energias pelas quais estavam atuados, cantando mechanicamente, como automatos que obedecessem ao que lhes ditavam ao ouvido ou lhes gravavam no cerebro. E o seu aspecto e os seus gestos, quando subiam ao auge da inspiração transbordante que os arrebatava aos páramos do enthuziasmo que o orgulho indomito e selvagem fazia crescer de vulto, denotavam esse estado especial em que o Espirito parecia receber, de uma fonte que elles mesmos não poderiam explicar, um auxilio efficaz e poderoso. Passada a fase da luta, quedavam-se, às vezes, por varios dias, numa especie de torpor, que talvez o esforço empregado com tanto excesso e dispendio pudesse esclarecer. páramos - cumes, pontos culminantes

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O DESAFIO - PRIMEIRA PARTE Eram approximadamente dez horas de uma noite limpida de sabbado (12 de junho de 1926). O firmamento illuminado por myriades de estrellas que tremeluziam e brilhavam como lampadas de cristaes suspensas no Infinito, parecia um vasto campo que os pyrilampos cobrissem com a sua phosphorescencia. O tropél das montarias de romeiros retardados despertava de vez em quando a curiosidade insistente dos que permaneciam ociosos no patamar da capella esperando o fim da novena. Os cães vadios ladravam à approximação dos viajantes, que, entregando os animaes aes empregados da Fazenda incumbidos deste mistér, iam invadindo o avarandado ou dirigindo-se ao templo, num amplo desembaraço de velhos conhecedores do vetusto casarão e dos costumes locaes. Não havia cerimonias nem se exigiam etiquetas. Nenhuma formalidade coagia os que chegavam ou impunha restricções aos que vinham divertir-se depois de havem cumprido os deveres religiosos. No recinto da capella, onde a immensa massa humana comprimia-se e apertava-se pela carencia de espaço que a pudesse comportar, morriam os ultimos ecos do classico “Offerecimento”, acompanhados dos sons da orchestra desafinada que o “Grillo”, com grandes gestos, commandava e dirigia. O patamar da capella, povoado, até há pouco, por devotos suarentos que fugiam do recinto trazidos pelo calor que a agglomeração provocava, começou a ficar movimentado com a sahida dos romeiros que ali ainda ficaram. Tinha terminado a novena em louvor de Santo Antonio. Ia principiar a folia do samba alegre e agitado que completava o programa. Tocadores de violas e pandeiros foram occupando lugares nas bancadas de madeira que se alinhavam no pateo. Fogueiras limentadas por grossas achas de angico illuminavam o terreiro, emprestando à scenna agitada entre os reflexos rubros das chammas um aspecto quazi dantesco. O movimento era intenso e a alegria transbordante quazi tocava ao delirio. Dir-se-ia que um accesso súbito de loucura empolgava a multidão, intervallado, a instantes, por uns reflexos de lucidez pacifica exaltada. A afinação das violas ateou incendio aos animos, e os sons roucos dos pandeiros fizeram que se movessem, como se fossem impellidos por uma única mola, todos os assistentes da festa. E quando rufaram os pandeiros entre o trinar das violas, os primeiros dançarinos do baião irromperam no terreiro em sapateados ruidosos e extravagantes volteios, saudados freneticamente, entre o estalar estridente das castanholas pendentes dos dedos das sertanejas, pelo vozerio estrondoso da multidão dominada ao calor irradiante do arrebatamento instantaneo. Os lugares dos Cantadores, no emtanto, continuavam vazios ao lados dos violeiros. As mulheres reclamavam, os homens se confundiam em commentarios e censuras repetidas à incuria dos noitantes, atacando severamente o seu descuido em ponto tão relevante para o brilhantismo das festas. Nesse interim, precisamente, um súbito e desuzado reboliço, elevando o fragor do movimento, que já era tão intenso, a uma arrancada confusa, encaminhou a onda humana, com precipitação e balburdia, para a porta da casa da Fazenda. E uma alarida tremenda rompeu de todas as boccas, num mesmo impulso frenetico: - Viva Collete ! É que já havia chegado, installando-se no casarão da Fazenda, onde fora recebido com deferencia e alegria, o velho vate nordestno, com tanta ansiedade e impaciencia esperado. Do companheiro, porém, não havia qualquer noticia. angico - árvore (Anaderanthera macrocarpa) de madeira pesada, dura, de grande durabilidade baião - dança popular, consulte http://www.brasilfolclore.hpg.ig.com.br/baio.htm

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28 Uma interrogação insistente bailava em todos os labios e a incerteza do momento causava inquietação. Cercado, entretanto, pela massa popular, a reclamar com insistencia que assumisse immediatamente o seu lugar ao lado dos violeiros, Collete procurava resistir, negando-se peremptoriamente a fazel-o sem contendor que o enfrentasse. E só quando o espicaçaramo nos melindres do amor-proprio, garantindo-lhe que o Izidio havia chegado e promettia reduzil-o ao silencio, resolveu-se a encetar o desafio, atirando provocações indirectas e ferinas ao adversario que suppunha estar presente. Encaminhou-se então, cercado de admiradores, vagaroso, com a consciencia da importancia que encarnava no momento, em direcção ao banco que o esperava ao lado dos tocadores, sentou-se com a displicencia em um dos lugares vazios, cuspio a massa de fumo que tinha ao lado da bocca, endireitou o chapéo, percorreu com o olhar a multidão que o cercava, tossio e endireitou a garganta, pigarreou varias vezes, com os dedos da mão direita tamborilou em compasso no costado da viola, e começou em voz fanha: 1 Sô Collete, um preto véio, Já fui menino, e fui moço, E vivo agora no mundo, Cuma um cão, roendo um osso, Sô fanhoso de uma venta, Tenho um lubim no pescoço.

2 Cantadô não me machuca, Nem me assobe no cupim, Se teima entrupica em pedra, Trupeça e come capim, Diabo leve, má fim tenha, Quem falá no meu lubim.

assobe (sobe) - monta

cupim - corcova do touro entrupica (tropica) - tropeçar

3 Só quatro coisa no mundo Faz Collete andá impé, É a carne, é a farinha, É uma chicra de café, É o amô que veve e drome, No coração da muié.

4 Desde minino assoletro, Com xis cangaia e cutia, Meu mestre mandô que eu lóve, Seis nomes em carritia, Inchada, foice e machado, Oropa, França e Bahia.

chicra (xícara) amô que veve e drome (amor que vive e dorme) muié (mulher)

minino assoletro (menino soletro) cangaia (cangalha) - armação colocada no lombo de animais, com recipientes laterais para transporte de cargas carritia (cartilha) inchada (enxada) Oropa (Europa)

5 In riba daquela serra, Tem um pé de cá-te-espera, Numa furna, mais inbaxo, Drumo no collo de fera, Quem vem cantá cum Collete, Perde a carma e desespera.

6 Cheguei na noite passada, Drumi e matei a fome, Mas se o patrão me deu tudo, Cada vez mais me consome, Vê que aqui, vistindo carça, Só tem muié, não tem home.

in riba (em cima de) cá-te-espera - talvez a esperai, uma árvore (Desmoncus polyacanthos), de bonitos frutos avermelhados furna - buraco sob pedras, lapa, loca inbaxo (em baixo) drumo (durmo)

vistindo carça (vestindo calça)

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29 7 Fazendo buia e istrupiço, De um marruá acuado, De isbrugá mais de dez legua, Eu cheguei muito cansado, Urrando cuma novio, Cuma um pae-dégua miado.

8 Butei no chão minha trôcha, Cuma quem de longe vem, Sentei ao pé da viola, Cantei só e disse amem, Raiei, ficaro calado, Oiei, e não vi ninguem.

buia (bulha) - barulho istrupiço (estropício) - dano, malefício marruá - novilho ou touro não domesticado ou selvagem isbrugá (esbrugar) - limpar, devorar cuma novio (como novilho) pae-dégua (pai d’égua) - garanhão, cavalo não castrado, por extensão designa o homem valente miado - vagabundo

trôcha (trouxa) - pertences cuma (como) raiei (ralhei) ficaro calado (ficaram calados) oiei (olhei)

9 Todo o cabra desta terra, Deita em cama e se aninha, Amarra a testa cum lenço, Cumendo angú de farinha, E só sahe pra tomá banho Quando não tem mais gallinha.

10 Não sô pavão nem curuja, Bebo agua e não azeite, Não uso pente de coque, Carção redondo ô enfeite, Meu peito é muito pequeno, Não dô pra ama de leite.

angú - papa grossa feita com fubá, mandioca ou arroz

carção (calção)

11 Quem não tem cabra de lera, Que possa aguentá rojão, Apará raio e curisco, Relampo, chuva e truvão, Não manda mi cunvidá, Prá vi cantá na fonção.

12 Se eu pudesse adivinhá, Toda a vez que arguém me chama, Que cabra dessas beradas, Cumpre resguardo na cama, Não vinha aqui, nesta terra, Baratiá minha fama.

cabra - indivíduo, sujeito de lera (de lei ?) - de qualidade curisco (curisco) - raio, relâmpago relampo (relâmpago) fonção (função) - festa

resguardo na cama - período após parto, quando a mulher deve evitar esforços físicos, evitar certas comidas etc baratiá (baratear)

13 Antes que o dia amanheça, Cante a coan, grite o annum, E o só aponte ditraz, Do chapadão do tucúm, Vô-me imbora atraz de um home, Porque aqui não vi nenhum.

14 Vô dizê pur toda a parte, Fallado arto e distincto, Cuma quem falla a verdade, Cunvincido que não minto, Que cabra dessas beradas, Choca ôvo e tira pinto.

coan (acauã) annum (anum) - espécie de ave tucum - palmeira (Bactris setosa) de cujas folhas se extrai uma fibra muito resistente, utilizada para confecção de cestos, rêdes etc

beradas (beiradas)

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30 15 E aquelle que não quizé, Cunfirmá que é capão, Carregue inriba de mim, Promto a aguentá o rojão, Que eu lhe tiro o bico e a crista, Arranco o rabo e o isporão.

capão - frango capado aguentá (agüentar) o rojão - resistir com firmeza

A multidão appaudia enthuziasmada as investidas audazes e atrevidas do cafuso, lamentando, todavia, que não apparecesse, no momento, um Cantador capaz de enfrental-o. Só assim a peleja despertaria algum interesse e a festa culminaria em todo o seu esplendor. Precisamente nesse instante, quando os ecos findos do repto atrevido do cafuso perdiam-se nas quebradas, repercutindo ainda à distancia, a multidão alvoroçada affluia às immediações dos bancos dos violeiros, como se um facto anormal a attrahisse àquelle local. É que o Izidio, tão ansiosamente esperado, chegava açodadamente, apeando-se nesse local e dirigindo-se ao Contendor. Tinha ouvido, ao approximar-se, as suas ultimas estrophes, com aquella apostrophe atrevida, e o sangue escaldante e forte de Cantador envaidecido por trimphos e victorias anteriores ferveu-lhe dentro das veias como metal em fusão, atenado um incendio crepitante no mundo dos seus sentidos. Sedento de novas lutas e aventuras em que pudesse pôr à prova, mais uma vez, seu engenho e faculdades, tantas vezes ensaiados com successo em muitas outras porfias e contendas, com a acquisição de novas victorias, a soffreguidão que o dominava não permittia delongas. Tinha pressa de outras justas e a ambição de outros triumphos. O momento era oportuno e o adversario ali estava. Não podia perder tempo. Os louros que conquistasse contra um Contendor de tal vulto, respeitado em todo o sertão como o Rei do improviso, inexgottavel nas rimas e accostumado a pôr fora de combate, às vêzes em vários dias e noites de lutas, Cantadores até então considerados invenciveis, impol-o-iam, por certo, à admiração e aos desejos das sertanejas robustas e formosas que tanto o preoccupavam em seus devaneios e sonhos de galopim montanhez. Com essa victoria, além disso, arrebataria das mãos daquelle aleijão physico, a quem Deus não havia confiado nem sequer as formas perfeitas que aos outros havia dado, a fama de que gozava nos sertões e que tantos ciúmes e preoccupações lhe trazia. Há muito desejava esta opportunidade de medir-se, em luta de vida e morte, com este cafuso pretencioso, que não podia, de modo algum, possuir, defeituoso como era, as qualidades excepcionaes que lhe emprestavam, talvez por um phanatismo sem razão ou por effeito de um exaggero injustificavel. Não podia admitir que um Collete, com aquella figura exotica e desengonçada, mais vizinha do macaco que do homem, pudesse dispor de um talento ou de um miolo como o de que elle, moço, formoso e perfeito em toda a sua organização, cheio de attrativos e encantos que enlouqueciam as sertanejas mais lindas, era amplamente dotado. A sua intelligencia inculta, muito embora poderos, não podia conceber que quem dispunha de taes defeitos physicos não os tivesse também no Espirito. Ou aquelle preto repellente era um feiticeiro que illudia com os seus mondongos a gente credula e inexperiente do sertão, fazendo-a acreditar em suas bruxarias e phanatisando-o a ponto de tel-o na conta de coisa de valor, ou tinha pacto com o diabo, a quem devia ter vendido a Alma em troca de habilidades que diziam possuir. Em qualquer hypothese, porém, não recuaria de seus triumphos e victorias. Endemoninhado ou feiticeiro, tentaria, até mesmo com o auxilio de rezas fortes, entupir o velho bruxo, custasse o que custasse.

Page 31: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

31 Passando rapidamente pelo cadinho excedido da imaginação poderosa e eivada de superstições todas essas phantazias e projectos insensatos, sem ao menos procurar desfazer-se das esporas e demais apetrechos de viagem de que se tinha utilizado na jornada que fizera até ali foi, sem mais preambulos ou rodeios, respondendo ao companheiro em tom vibrante e aggressivo, com vigorosa energia, revelando as vehementes disposições combativas de que vinha possuido. E a sua voz inflamada como um violento e agudo grito de guerra vibrou no seio da noite, com entonação de vaidade e sonoridade cheia de rebarbas e farpas contundentes, numa replica altiva e mordente provocada pelo orgulho espicaçado: 1 Preto véio dos infernos, Qua as armas boas presegue, Arrespeita a gente um pôco, Foge antes que eu te pegue, Que eu te mando cum tres bombas, Prô diabo que te carregue.

A replica do cafuso não se fez esperar, exasperando, ainda mais, pelo tom de troça em que foi proferida, o adversario já irritado, ferindo-se, de tal modo, o duelo pitoresco e interessante de rimas que aqui consigno em registro tachigraphico, sempre com o número ímpar nos ataque feitos pelo Izidio e par nos que fazia Collete. Assim, este último retrucou:

Collete Izidio 2 Graças a Deus, viva os anjos, Que appareceu um capão, Feito um gallo de terrero, Riscando a asa no chão, Tiro-te as pennas e o bico, E inrolo o rabo na mão.

3 Digo o que vem à cachola, Piso firme e fallo franco, Ponho o pé no teu pescoço, Teu lubim eu corto e arranco, Preto ruim vae prô tronco, Quando não respeita branco.

cachola - cabeça

prô (para o) tronco - instrumento de tortura, cepo com orifícios onde se prendiam cabeça e pés da vítima

4 Satanaz te toque fogo, Deus do céo te mate à mingua, Te dê berruga nos óios, Te vire as landras em ingua, Quem falla no meu lubim, Morre de canco na lingua.

5 Arco da véia te ingula, Curisco te vire em lasca, E uma cobra de viado Te faça fumo de mascá; Você morre de damnado Preto véio, e não mi inrasca.

berruga (verruga) landras - nome que dão minhotos e galegos às bolotas dos carvalhos, obviamente aqui com significado de testículos ingua - ingurgitamento, inflamação de um gânglio linfático (p. ex. nas virilhas) canco (cancro) - tumor, câncer

arco da véia (velha) - arco-íris mi (me) inrasca (enrasca)

Page 32: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

32 6 Cavallo preto do Demo, Te dê tres coices na bocca, Cum as patas te quebre as venta, Te fazendo a ureia môca, Te ispatifando a cachola, De modo que fique ôca.

7 Dipinduro em teu pescoço, Um ninho de mangangá, Te atiro dentro da casa, De um bandão de arapuá, Murdido por tatahyra, Mijado por cangambá.

Cão, Capiroto, Cão, Cafute, Demônio, Demo, Fute, Satanás, Sujo - alcunhas do Diabo ureia (orelha) môca (mouca) - audição precária

mangangá (mamangava) - abelha silvestre, de grande porte porém pouco agressiva arapuá, tatahyra (tataíra) - abelhas silvestres, bastante agressivas quando provocadas cangambá - pequeno mamífero carniceiro

8 Te inrolo em foia de lôco, Dô-te um banho de tipy, Eu ti embebédo e te pesco, Cum barrella de tinguy, Te quebro a casca e te como, Cuma se faz cum cary.

9 Eu te transformo em garapa, Cuma mé ô rapadura, Quem já soffre um má de morte, Morre seco e não se cura, Canta choco e tira pinto, Cuma faz gallinha sura.

tipy (tipi) - erva medicinal (Petiveria alliacea) tóxica em doses elevadas, que os escravos denominavam “remédio-de-amansar-senhor” tinguy (tingui) - árvore (Magonia pubescens) cujo suco tóxico das raízes, jogado nas águas, atordoa e mata peixes (uso em pesca)

mé (mel) - mel de cana, melado sura - espécie de galinha de rabo muito curto

10 Cabaça serrada é cuia, Casa sem gente é vazia, Todo o branco aguado e mole, Cuma côco ô melancia, Quando canta tem um jeito, De uma gata quando mia.

11 Todo preto foi iscravo, Cunhece tronco e sanzala, Tem lingua de trapo roto, Que bate fanha e badala, Cuma porco fussa e geme, Grunhe e ronca, mais não falla.

sanzala (senzala) 12 Todo o branco só trabaia, Pra metê preto no imbruio, É fraco, fôfo e fingido, Marvado e cheio de orguio, Mas na hora da riósca, Foge feio do baruio.

13 Preto é cria do diabo, Quem disse isto não erra, Tem cara de urantango, De um bode preto que berra, E escapulio dos infernos, Pra vi morá cá na terrra.

riósca (arriosca) - armadilha, cilada baruio (barulho)

urantango - orangotango

Page 33: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

33 14 Cocêra, sarna e impinja, Te rôa um dia o costado, Te ponha a pelle em firida, Te dexe o corpo chagado, Sô preto, mais não me troco, Por quarqué branco safado.

15 Quando Deus andô no mundo, Disse, iscrevendo uma linha, Num livrinho de São Pedro, Que quarqué um branco tinha, Dereito de butá preto, Pra trabaiá na cuzinha.

impinja - dermatose, erupção cutânea firida (ferida)

dereito (direito) de butá (botar = colocar) trabaiá (trabalhar) na cuzinha (cozinha)

16 O branco é cumu murcego, Que veve na iscuridão, Chupando o sangue dos ôtros, Sem tê dó nem compaixão, Só ganhô arguma coisa, À custa da iscravidão.

17 Deus é branco, e dexô preto, Bem differente do home, No pé, na mão, na figura, E inté na falla e no nome, Se branco não isistisse, Preto murria de fome.

murcego (morcêgo) veve (vive) na iscuridão (escuridão)

isistisse (existisse) murria (morria)

18 Quem cava terra na roça, Quem aguenta o só e o frio, Prantando canna de assuca, O feijão, o arroz e o mio, É preto, que não se troca, Por quarqué branco vadio.

19 Preto, porém, só trabaia, Pra visti e inchê barriga, Quando branco se arrepella, Grita brabo, imperra e briga, Pega a taca, e ao preguiçoso, Ao trabaio arrasta e obriga.

assuca (açúcar) mio (milho)

taca - chinelo, chicote usado para espancar trabaio (trabalho)

20 Quem corre cansa dipressa, Perde a corage e o sucego, Eu vô andando cum carma, Mais um dia sempre chego, Pra vê branquinho apanhando, Chicote da mão de nêgo.

21 Este mundo istá perdido, Só Deus nos pode sarvá, Vacca já dexa o bizerro, Na portera do currá, E inté preto macriado, Discunhece o seu lugá.

sucego (sossêgo) 22 Branquinho de cara limpa, De cebellera de istopa, Toma tento, incurta a lingua, Tem juízo e muda a rôpa, Não sô de tua cuzinha, Nunca bibi tua sôpa.

23 Dessas tuas patacuadas, De Cantadô de bobage, Eu não temo, nem dismancho, No meio a minha viagem, Apois preto desta laya, Só tem fóba e pabulage.

istopa (estôpa) toma tento - cria juízo

patacuadas (patacoadas) - histórias mentirosas, fanfarronadas fóba - medo, preguiça pabulage (pabulagem) - fatuidade, gabolice

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34 24 Seu Izidio me arresponda, Dos bichos por Deus criado, Qual foi o que por discuido, Elle dexô cumeçado, Pra sê, deispois, cá na terra, Pelos homens acabado.

25 Se eu não sei te arrespondê, Minha mãe me amardiçôe, Só há um bicho no mundo, De que Deus autô não foi, Apois Deus fez o garrote, Mas o homem fez o boi.

26 Antão mi diga dispressa, Sem rudeio, e de uma vez, Qual é a fruita de rama, Que sêca ô mesmo divez, Só presta se o homem serra, Pra completá o que Deus fêz.

27 Desta fruita em meu roçado, Todo o anno eu faço tuia, Deste modo eu te arrespondo, Sem pricisá tanta buia, Fui Deus quem fez a cabaça, Mas o home fez a cuia.

antão (então) divez - de vêz, imatura

tuia - celeiro, depósito

28 Branquinho de cara larga, Vermeia cuma iscarlate, Matuta, si tu te astreve, A vencê num disimpate, Qual é a foia que murcha, Quando a mão da gente bate.

29 Preto impé parece um toco, Cavallo morto e carniça, De foia verde que murcha Quando a mão lhe faz cariça, Nos matos de minha terra, Só se cunhece maliça.

matuta - pensa, raciocine foia (fôlha)

maliça (malícia) - subarbusto (Mimosa pudica) com propriedades terapêuticas, cujas folhas retraem-se ao serem tocadas, sensitiva, dormideira

30 Izido Fulô de Soisa, Se tu pisa lesto e activo, Arresponde sem demora, Ao preto véio cativo, Qual o bicho que tá morto, E o coração fica vivo.

31 Te affirmo, meu preto véio, Sem receio de um fiasco, Que o pobre do jabuty, Morre nas mãos do carrasco, E o coração, ainda vivo, Bate três dias no casco.

lesto - ligeiro, ágil jabuty (jabuti) 32 Vamos indo, vamos indo, Divagá, vamos andando, Mais você, que é sabe-tudo, Vá, desde já, matutando, Qual é o bicho que morre, E o rabo fica pulando.

33 Toda a gente, neste mundo, Sabe e cunhece de sobra, Pela vista de seus óios, Que quem faz esta manobra, É rabo de lagarticha, De bico-doce e cobra.

lagarticha (lagartixa)

bico-doce - espécie de grande lagarto

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35 34 Quero vê pra quanto dá, A tua sabiduria, Mandando que tu mi diga, De tua avó qual a fia, Nascida da mesma mãe, Que nunca foi tua tia.

35 Cum prigunta cuma esta, Não corro nem me arrupio, Uma mãe, eu te arrespondo, Pra attendê teu disafio, Em parte arguma da terra, Póde sê tia do fio.

36 Na profia eu sô guerrero, Cum brado de arma e cummando, Não corre de Cantadô, Mesmo quando venha em bando, Quanto mais de um branco sujo, Cantadô de contrabando.

37 Quem cum proco se mistura, Sahe, pur força, inlamiado, Come bagaço e farello, Sem tê nenhum resurtado, Um preto, quando não se suja, Põe todo o bicho tisnado.

proco (porco)

tisnado - enegrecido 38 Não há cavallo tão brabo, Que eu não amanse e não selle, Não há laço ô armadia, Que me intorte ô dismantele, Se você não qué sê lobo, Não lhe vista nunca a pelle.

39 Nâo sô lobo, nem me visto, Cum pelle de quarqué bicho, Preto eu sangro e dipinduro, Tiro o côro, sargo e ispicho, E a carne eu dô pra cachorro, Cumê, rosnando no lixo.

sargo (salgo)

ispicho (espicho) 40 Te iscangaio e bebo o sangue, Antes que o dia amanheça, Te corto a língua e a garganta, Pra que tu saiba e cunheça, Que isfolo burrego vivo, Do rabo inté na cabeça.

41 Quando eu pego um atrvido, Macriado na resposta, Que bancando gente sera, É patife e ne disgosta, Quebro a ispinha e as custella, Tiro o figo pelas costa.

iscangaio (escangalho) sera (séria)

figo - fígado 42 Vento assoprando na matta, Não bota angico no chão, Só derruba é gityranna, Ô taquary do baxão, Que é fraco e não arrisiste, Ao vento de burbutão.

43 Se angico arrisiste ao vento, Quando assopra de verdade, Não aguenta, nem faz frente, Ao rojá da tempestade, Quando no mez de janeiro, Cahe no sertão cum vontade.

angico - árvore (Anaderanthera macrocarpa) de madeira pesada, dura, de grande durabilidade gityranna - trepadeira herbácea (Ipomoea cairica et al) taquary - árvore (Mabea angustifolia) de ramos ôcos, pouco resistentes baxão (baixada) - planície, depressão do terreno burbutão (borbotão)

arrisiste (resiste) rojá (rojar) - arremesso violento

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36 44 Só chuva do mez de março, Que rasga e rompe barrera, Que no chão cava buraco, No campo faz cahuera, Cantadô nas minhas unhas, De uma vez perde a carrera.

45 Sei rezá “Águas Aberta”, Que inté dos raio defende, Oração que é muito forte, Que preto morre e não intende, Quando o inverno é muito forte, Eu rezo, e a chuva suspende.

cahuera - possivelmente voçoroca, sulco ou fenda na terra produzida por enxurradas

46 Eu te pego e faço bucha, De uma lambimba de caça, Te impurro de cano abaxo, E sóco só por pirraça, Disparo a arma pra riba, E tu te vira em fumaça.

47 Se tu me pega e faz bucha, Não cuide que isto me istrova, Do uvido tiro a ispuleta, Jogo fora toda aprova, Derreto o chumbo no cano, E atiro água na iscorva.

bucha - papel ou trapo, servindo para comprimir a carga no cano das armas de fogo lambimba - espingarda de carregar pela boca (?)

istrova (estorva) ispuleta (espolêta) iscorva (escorva) - porção de pólvora colocada na caçoleta das armas de pederneira, para inflamar a carga

48 Ponho a corda em teu pescoço, Te inforco inriba do rio, Dô-te um tiro na cabeça, E uma purga de votrio, Te atiro nágua, e tu morre, De forca, veneno e frio.

49 Eu corto a corda de um gorpe, Pulo dentro da canôa, Trôço a cabeça pra um lado, E o tiro dispara atôa, Iscapo, e contr o vitrio, Sei meizinha forte e boa.

votrio (vitríolo) - diversos tipos de sulfatos, usados como laxantes (purga)

gorpe (golpe) meizinha (mezinha) - rémedio caseiro trôço (torço)

50 Te amarro e te boto argema, Te atiro num brocotó, Te cunzinho na panella, Cuma quem faz mocotó, Te agarro e levo ao pilão, Te istraçaio e viro em pó.

51 Parto a corda, quebro a argema, Crio asa, e avoando, Eu abano e apago o fogo, Cum que tu tá cunzinhando, De uma vez te intupo as venta, Pra que tu morra ispirrando.

argema (algemas) brocotó - lugar muito longe e/ou esquisito

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37 52 Te faço frango ô gallinha, Te parto e como a muéla, Te faço pexe, e o anzó, Te interro dentro da guéla, A linha cum isca e tudo, O anzó cum vorta e barbella.

53 Eu boto em minha cintura, Um cipó de tracuá, Viro Mãe-dÁgua e te afogo, Onde é mais fundo o caná, Eu viro arraia e te isporo, Mas não te dexo pescá.

muéla (moela) pexe (peixe) anzó (anzol) guéla (goela) - garganta barbella (barbela) - fsga do anzol

tracuá - espécie de formiga amazônica que índios e seringueiros acreditam produzir uma substância capaz de manter aceso o fogo no candieiro Mãe-Água - no princípio era o homem-peixe Ipupiara, depois a sereia Iara ou Uiara, personagens da mitologia indígena que encantavam os pescadores, arrastando-os para o fundo das águas, onde afogavam-se

54 Sô fava danta-da-serra, Eu sô pau-darco do roxo, Não me assusto de curuja, Nem temo o pio do mocho, Quem corre cança e não vence, Quebra a perna e morre coxo.

55 Sô sapucaia madura, Criada no pidriguio, Quebro gume de machado, Cahindo nagua marguio, E cum meu peso esmagaio, Um Cantadô cascabuio.

casca-d’anta - árvore (Drimys granatensis) com propriedades terapêuticas pau d’arco do roxo - ipê roxo (Tabebuia impetiginosa) curuja (coruja)

sapucaia - árvore (Lecythis pisoni) de madeira resistente, seus grandes frutos servem para fazer cuias pidriguio (pedregulho) marguio (mergulho) cascabuio (cascabulho) - novato, calouro

56 Sô pedra sorta na serra, Que do arto desce rente, Rólo de riba pra baxo, Num baruião, de repente, E iscangaio quarqué coisa, Que incontro na minha frente.

57 Sei rivirá no trapé, Sei dançá na corda bamba, Um preto do teu quilate, Morre doido e não me samba, Tu pra mim é cuma o Só, Que atraz da serra discamba.

rivirá no trapé - revirar-me, fazer malabarismos no trapézio Só - Sol

58 Branco pra mim é infêrmo, Que se deita e apanha sova, Tatú dentro do buraco, Cavado cum inchada nova, É carne assada de ispeto, Difunto morto na cova.

59 Preto é pra mim água fria, Que eu ingulo de um só trago, Viro bicho e te ispatifo, Na hora em que me desbrago, Arricúa, preto véio, Se não te pego e te istrago.

desbrago - livro-me de conveniências, de

normas geralmente aceitas arricúa (recue) - afaste-se

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38 60 Geme a ema na catinga, Canta longe a zabelê, Papagaio grita e falla, Porque não sabe iscrevê, Cachorro que late e corre, Não é capaz de mordê.

61 Grita o tetéo na lagoa, Se sente que a gente vem, E o cancão, quando vê cobra, No matto grita também, Cobra véia, já sem dente, Não pode mordê ninguém.

zabelê - ave, espécie de nambu tetéo (tetéu) - ave, quero-quero

cancão - ave, espécie de gavião 62 Tanto veneno nas prêza, Que inda tem a ponta aguda, Se eu te dô uma dentada, E Deus do céo não te ajuda, A tua lingua damnada, Seca logo, e fica muda.

63 Desta vez perdeu o tiro, Não vio o arvo, e errô, Peguei-te pela funaça, Que a ventania espaiô, Vô-te matá desta vez, De um ataque de istupô.

istupô (estupor) - paralisia, estado comatoso 64 No meu sertão diz o povo, Que quem pede é gente pobre, Que a paia de uma chôpana, Muitas disgraças incobre, Furmiga não róe favella, Nem barata come cobre.

65 Saryema canta sempre, Pras bandas do Cratiú, Grita o mocó nas quebrada, Gargaia longe o jacú, Se tu veio aqui vistido, Eu te rasgo e ponho nú.

favella (favela) - espécie de árvore (Cnidoscolus phyllacanthus) da catinga, de folhas urticantes, com propriedades terapêuticas

saryema (seriema) - espécie de grande ave, de longas pernas Cratiú (Crateús) - região do alto rio Poti (Ceará), antes habitada por tribo de tapuias de mesmo nome mocó - espécie de roedor, semelhante à preá gargaia (gargalha) jacú - espécie de ave

66 Pra bicho brabo e marvado, Tenho reza e faço figa, Macaquinho faz carêta, Mais não atrepa na giga, Não toque na minha rôpa, Que ella é feita de urtiga.

67 Cum minhas luvas de ferro, Mittidas sempre na mão, Pego chumbo dirritido, Quanto mais em cansanção, Cuma massa em tapity, Te ispremo e faço pirão.

giga - vaso de madeira, cesta de vime urtiga - planta de caule e folhas urticantes (família Urticaceae), com propriedades terapêuticas

tapity (tapiti) - cesto flexível de taquara onde a massa ralada da mandioca é colocada para ser espremida, numa etapa da fabricação da farinha

Page 39: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

39 68 Se tu tem fome canina, Come, bebe e mata a sêde, Pois inté o quebrá da barra, Te venço e levo à parede, Te reduzo a istêra véia, Jogada imbaxo da rêde.

69 Preto foi feito de cinza, Mas Adão sahio do barro, Te faço paia e te queimo, Cuma ponta de cigarro, Te faço boi, e de canga, Te pego e meto no carro.

istêra (esteira) canga - armação de madeira servindo para

atrelar bois pelo pescoço carro - carro de boi

70 Corto-te as pontas e o rabo, Quem falla assim não me ingana, Metto-te as corda nos chifres, Te ispanco toda a semana, Amarrado nas manjarras, Do engenho de muê cana.

71 Quem butô no mundo a peste, A fome, o luto e a affrição, A dô, a raiva, a trsiteza, Toda a disgraça e treição, Foi Caim, que pur sê preto, Matô um dia o irmão.

manjarras (almanjarras) - alavanca de madeira que põe em movimento o engenho de cana, ao ser tracionada pelos bois muê (moer)

butô (botou) - colocou

72 Você é muito sabido, Mas desta vez não me leva, Apois eu posso affirmá, Sem receio e sem reserva, Que era branca a serpente, Que cum a fruita enganô Eva.

73 Num ninho que tem no môrro, A arara véia não pára, Foge de lá, quando eu chego, E avôa, quando mi incara, É arara, arado, arame, É arame, arado, arara.

74 Se eu canto e toco viola, Também trabaio em roçado, Não pego o pinho, nem canto, Quando não sô convidado, È arado, arara, arame, É arame, arara, arado.

75 Não vivo só da garganta, Nem soffro affronta ô vexame, Trabaio e toco viola, Toda vez que arguém me chame, È arado, arara, arame, É arame, arara, arado.

76 Leite tem nata de noite, Quando a panella abarrota, Se a netta nota que a vó, Água no leite não bota, É nota, é nata, énoite, é netta, É netta, é noite, é nata, é nota.

77 Véia que anda de noite, Dando a nota de pateta, Não é da nata da festa, Não é viúva correcta, É nota, é nata, énoite, é netta, É netta, é noite, é nata, é nota.

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40 78 Sôro de leite em cachorro, Faz pyra, ataca e martrata, Ingorda, se é leite puro, Que cria, farta e não mata, É nota, é nata, énoite, é netta, É netta, é noite, é nata, é nota.

79 Se qué andá dereitinho, Seu Collete, não se afoite, Se não você se arrepende, De isprimentá meu açoite, É nota, é nata, énoite, é netta, É netta, é noite, é nata, é nota.

pyra (pira) - doença martrata (maltrata)

80 Sô ridimunho que arraza, Sô ventania e truvão, Rompo nuve e quebro ferro, Furo mais que punção, Derrubo o céo de um supapo, E aguento o mundo na mão.

81 Sô buscapé de três bomba, Sô fogo do purgatoro, Queimo, ispedaço, istraçaio, Mato, ispatifo e devoro, Meu corpo é feito de ispinho, De fogo a casa onde moro.

ridimunho (redemoinho) nuve (nuvem) supapo (sopapo)

purgatoro (purgatório)

82 Sô pedra-lispe e verdete, Sô veneno de serpente, Sei todo o pulo de gato, Deito no chão e ando rente, E quando quero abro a boca, E ingulo um bando de gente.

83 Eu tenho dente de serra, Tenho guela de muinho, Môo, machuco e devoro, Metto no cepo e isfarinho, Tudo o que é pôco é mizéra, Disgraça pôca é tiquinho.

pedra-lispe - (mitologia nordestina) pedra de cor azulada, que desce junto com o corisco (raio), a rigor o próprio corisco, na forma de machado, e se enterra a sete palmos depois de brilhar, ribombar e destruir; é atraída, durante as tempestades, por espelhos, ferragens, arreios de prata e esporas de metal, até mesmo dentes ouro (por isso é que ninguém deve falar durante uma tempestade) verdete - acetato de cobre, azinhavre, zinabre

muinho (moinho) cepo - no açougue, tronco de madeira para cortar carnes

84 Quebro pedra, arranco tôco, Mudo o tempo e tapo o Só, Pesco trigue na tarrafa, E onça preta no anzó, Branco mau não tem bandera, Nem vale três caracó.

85 Tiro leite em capivara, Quebro as asas de mutum, Eu quebro côco no dente, E a cocoróte um tucum, Preto na lama é um sapo, Dento da tóca é muçum.

trigue (tigre) caracó (caracóis)

muçum (mussum) - espécie de enguia

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41 86 Cara de gato moiriço, Oío de maracajá, Boquinha de chupa-ôvo, Besta russa do Longá, Não tenho medo, nem corro, De um branquinho sarará.

87 Carcassa que o Capiroto, Jugô do inferno no mundo, Eu tava doido na hora, No minuto ô no sigundo, Em que vim dá cunfiança, A um Cantadô vagabundo.

chupa-ovo - cobra que engole ovos de pássaros Longá - município do Piauí

jugô (jogou)

88 Canella seca de grilo, Cum trumpha de bode macho, Cuma um páu de lenha seca, Pego um machado e te racho, Pello-te toda a cabeça, Deixo-te liso e sem cacho.

89 Sapatêro bate sola, Mais nunca toca rebeca, Quem lança mão do alheio, No cuido de que não peca, Leva sebo de carnêro, No amaiadô da caréca.

trumpha (trunfa) - cabelo muito grande, grenha amaiadô (amalhador) - curral de animais 90 De maluco eu vivo farto, De tolo e doidos também, Ninguém qué sê só no mundo, Sem companheiro, ninguém, Cada um diz o que intende, Cda quá dá o que tem.

91 Puraqué, que é mandiguêro, Mais não qué que arguém lhe toque, Eu pego e aperto na mão, E o bicho não me dá choque, Eu sô vapô de arto bordo, Canôa eu levo a reboque.

puraquê (poraquê) - peixe-elétrico da

Amazonia mandiguêro (mandingueiro) - feiticeiro vapô de arto bordo (vapor de alto bordo) - navio a vapor de grandes dimensões

92 Quem tem cardêra furada, E anda rolando sem leme, Quando a maré tá forte, E o vento saluça e geme, Não carrega no reboque, Um barco grande que teme.

93 Sô balança decimá, Que pesa mil tonelada, De chumbo, de ferro ô aço, De quarqué coisa pesada, Você, pra mim, é puluma, Não pesa, não vale nada.

cardêra (caldeira) puluma (pluma) 94 Você, pra mim, já tá morto, Cuma rato punaré, Quando cahe, di madrugada, Na armadia do mundé, Num branco cuma você, Eu dô cum a ponta do pé.

95 Eu te faço um trapo véio, Te dipinduro num tôrno, Cuma leitão eu ti ingordo, Te mato e te levo ao forno, Te como assado ô cuzido, Seje quente ô seje morno.

rato punaré - espécie de rato avermelhado mundé (mundéu) - armadilha de caça

seje (seja)

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42 96 Jacurutú canta grosso, E eu não corro de seu ronco, Muita vez branco orguioso, Pega taca e vae ao tronco, Apois manguá não é só feito, Pra lombo de preto bronco.

97 Preto é porco e no chiquero, Come bagaço e farello, Mais dispois de tá bem gordo, Eu amarro, sangro e pello, Quebro os dentes e a cabeça, Cum pancada de martello.

jacurutu - espécie de coruja, de grande porte manguá - chicote com o qual se tocam animais

98 Burro que não foi bem manso, É coicero e cabiçudo, Tem urêia de três parmo, É lerdo, fraco e coirudo, Branco que não foi na iscola, É narphabeto e uriúdo.

99 Sô ferrero e tenho froja, Tenho ferro e fogo em casa, Um fole véio que eu tenho, Só cum assopro te arrasa, Cum tanaz grande eu te pego, E bato cum ferro em brasa.

parmo (palmos) narphabeto (analfabeto) uriúdo (orelhudo)

tanaz (tenaz) - ferramenta para segurar carvão, ferro em brasa etc similar a uma tesoura

100 Eu te arrodeio e te canço, Eu te judeio e te istafo, Te pego e metto num saco, Amarro a boca e te abafo, E inquanto tu morre dentro, Eu me iscapulo e me safo.

101 Saio do saco e te iscóro, Não trupeço nem cachingo, Te prisigo e te iscumungo, Te amardiçôo e te xingo, Se tu qué vê prá que eu presto, Ispera, ahi, que eu me vingo.

judeio (judio) - maltrato iscapulo (escapulo)

iscóro (escoro) cachingar (caxingar) - coxear, mancar, puxar a perna prisigo (persigo) iscumungo (excomungo)

102 Não faço feio, nem corro, Do grunhido de um leitão, Que eu mato e torro no ispeto, Sem pricisá de facão, Eu te dô tapa cum a lingua, Que quem vê diz qu’é cum a mão.

103 Prosa fiada de preto, É fuxico de sanzala, É furdunço e mixirico, É gruia, e não vae na sala, Preto choca e fecha o bico, Toda vez que branco falla.

fuxico - intriga, mexerico

mixirico (mexerico) gruia (grulha) - falador

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43 104 Lábia de branco iscovado, Inchado de calundu, Chêra a ingrolado e a inredo, Chêra a intriga e a sururu, Branquinho prosista e fofo, É burro que nem pirú.

105 Preto que intica cum branco, Cum burrachera e impiéma, Tem juízo de topera, E intilligença de ema, Vae drumi no calabôço, Cum gargaiera e argema.

calundu - nau humor, irritação ingrolado (engrolado) - alimento mal cozido, mal assado inredo (enredo) - intriga, futrica sururu - tumulto, briga, confusão

intica - provoca, irrita burrachera (borracheira) - palavras ou modos de bêbado impiéma (empiema) - acúmulo de pús dentro de uma cavidade natural topera (toupeira)

106 Branco ingana quando trata, E imbroma quando promette, Mais quando a gente lhe toca, Vira cera e se derrete, É tolo o preto ô caboco, Que cum branco inda se mette.

107 Preto não canta, mais berra, Não dança, porém dá coice, Pra viola tem a inchada, Pra pandero tem a foice, E não sahe fora da rega, Um preto que alfurriô-se.

imbroma (embroma) - enganar, gabar-se alfurriô-se (alforriou-se) - escravo liberto, que

comprou a própria liberdade, ou foi libertado 108 De vê o mundo nos êxo, Eu já perdi a isperança, Apois sendo um preto véio, Só vim aqui na festança, Pra supportá disaforo, Da bocca de uma criança.

109 Quem se queixa come aio, Mais o mundo tá dereito, Deste má de que se queixa, Dizem os véio que o jeito, É quem qué sê respeitado, Dá a gente argum respeito.

êxo (eixos) aio (alho) 110 Não fui nos banco da iscola, Nem me fizero dotô, Nunca sube onde é a côrte, Nem fallei ao Imperadô, Mais sei intrá, sei sahi, Em toda a parte onde vô.

111 Quem se inlugia e se gava, De não tê o isprito curto, De não andá martratando, Cum disaforo e insurto, Não faz cuma cão damnado, Que morde sempre de furto.

dotô (doutor) inlugia (elogia)

gava (gaba) insurto (insulto)

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44 112 Nunca ataquei pur ditraz, Nunca serrei de baxo, Pego a inxó, te faço a barba, Pego na serra, e te iscacho, Eu sô baxinho na artura, Mais sempre fui preto macho.

113 Eu sô moço e sô valente, Sô pejuába e turuna, Faço casa sem isteio, Faço igreja sem culumna, Minha mãe e Flicidade, Minha madrinha é Furtuna.

inxó (enxó) - ferramenta de carpinteiro, para desbaste da madeira iscacho (escacho) - abrir à fôrça, fender, partir

pejuába (pejibaye) - palmeira (Bactris gasipaes) espinhosa e alta, pupunha turuna - forte, poderoso culumna (coluna)

114 Eu sô cobra caninana, Maiada de cô iscura, Da dentada que eu te dé, Te mando pra sipurtura, Nem São Bento dá meizinha Contra a minha murdidúra.

115 Desde a hora em que no mundo Na luz meus óios abria, Veneno de jararaca, Era o leite que eu bibia, Contra veneno de cobra, Eu sei de toda a ingrizia.

caninana - cobra ágil, não peçonhenta, mas com fama de brava sipurtura (sepultura)

ingrizia (ingresia) - linguagem arrevesada e ininteligível, talvez significando reza misteriosa para neutralizar veneno de cobra

116 Na vereda que eu intupo, Eu não te dexo uma brecha, Me iscondo dentro do mato, Te varo o corpo de frecha, E nos furos das preaca, De pimenta eu meto mecha.

117 Aparo frecha na unha, Fui na ardeia, sô tapuio, Na vereda onde tu passa, Boto fogo, ispinho e intuio, Apois nunca me atrapaio, Cum negaças de um bascuio.

intupo (entupo) - ocupo frecha (flecha) preaca (preacas) - pontas (no caso, de flecha) mecha - torcilhão de fios colocados numa ferida para mantê-la aberta, evitando fechar-se (e para maltratar, embebido em pimenta ...)

ardeia (aldeia) tapuio - índio tapuia intuio (entulho) negaças - engodos, logros bascuio (basculho) - coisa, pessoa sem valor

118 Piryguá pega nos ares, Brabuleta pra ingulí, Assim te pego e te ingulo, Cuma faz um bem-te-vi, Te passo intêro pros peito, E eu quero vê tu fugi.

119 Da mão faço ispingarda, Sem ferruge ô cano torto, Dô um tiro, e o piryguá, Cahe pellado, frio e morto, Do bem-te-vi corto as asas, Tiro o bico, e dexo sorto.

piryguá (piriguá) - ave, anum-branco brabuleta (borboleta) te passo intêro (inteiro) pros peito (peitos) - engulo-te por inteiro, sem mastigar fugi (fugir)

ferruge (ferrugem)

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45 120 Quem é cuma a xamixúga, Seje da preta ô vermeia, Vivendo vida forgada, Todo o tempo, à custa alheia, Só fala duro e corado, Quando a barriga tá cheia.

121 Nunca chorei quebradeira, Nunca vivi de migaia, Nem nunca fui vagabundo, Nem cavallo de cangaia, Quem véve à custa dos ôtros, É preto, que não trabaia.

xamixúga (chamechuga) - sanguessuga duro e corado - alusão à sanguessuga, quando repleta de sangue

quebradeira - falta de dinheiro, falência migaia (migalha)

122 Quem pensa que aio é pimenta, Fartura é barriga cheia, Que luva branca de moça, É sapato ô pé de meia, Acaba doido ô maluco, Leva taca e nó de peia.

123 Eu te maio e iscurrupicho, Metto o pau e dô-te um tombo, Te tiro e frito o miolo, Na cabeça abrindo um rombo, E dô-te todos os dias, Mil chicotadas no lombo.

peia - corda amarrada aos pés de um animal, para dificultar sua locomoção e fuga

iscurrupichar (escurrupichar) - beber o copo até à última gota

124 Corta largo e passa longe, De uma vez de mim te aparta, Corre, foge, istica a perna, Intrupica, pula e sarta, Que aqui eu jogo de mão, Corto o baraio e dô carta.

125 Sô az, sô naipo de trumpho, Eu sou Rei, Valléte e Bisca, Quem joga cumigo perde, Bate as asas, rola e cisca, Cuma frango sem pescoço, Ô pexe preso na isca.

corta largo - sem mesquinharias baraio (baralho)

naipo (naipe) bisca - ás ou sete não de trunfo

126 Quando o sino na capella, Droba signá de finado, Eu te óio e vejo andando, Cuma cavallo cansado, Feito uma mosca no azeite, Ô phospho véio queimado.

127 Tu pra mim já é fubana, Que cheira a bafo e budúm, Cum coração de calango, Sartando num baticum, É canna aguada do brejo, Côco verde ô girimún.

droba (dobra) - toque de sino phospho - fósforo

fubana - prostituta budúm (bodum) - exalação fétida de bode não castrado, transpiração malcheirosa calango - pequena lagartixa de cor verde baticum - pulsação forte do coração

128 Eu cunheço um amigo teu, Que em toda parte te trhae, Que a todo bicho que incontra, Divagá dizendo vae, Que o marido de tua mãe, Não foi nem era teu pae.

129 Se tu ão sabe eu te conto, Que um indido inredero, De língua de parmo e meio, Foi dizê a um sapatero, Que teu pae, só de teimoso, Morreu de véio e sortero.

indido (indivíduo)

inredero (enredeiro) - intrigante

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46 130 Pra tumô não há meizinha, Cuma seja um bom imprasto, De teu pae eu faço istera, De teu avô faço lastro, Tua mãe, desde mocinha, Andava cum teu padastro.

131 Meu pae tinha um preto véio, Que segundo elle dizia, Morava cum tua mãe, Toda a vez que o pae fugia, E só por artes do diabo, Cumtigo se parecia.

imprasto - emplastro istera (esteira)

132 Ante que o Cão te cunsuma, E o Só no Céo appareça, Eu te faço arrespeitá, O argudão desta cabeça, Ô antão não arrespondo, Pelo má que te acunteça.

133 Preto que tem bocca suja, E véve cheio de iáca, Eu trato sempre de resto, Corto os bigodes a faca, Porque cabello de preto, Não vale meia pataca.

cunsuma (consuma) argudão (algodão) - alusão aos cabelos brancos, à idade avançada

iáca (inhaca) - mau cheiro, catinga pataca - antiga moeda de prata, no valor de 320 réis

134 Eu sô cuma tucanguyra, Cuma cunca de ispinho, Quando istrepo o cabra chia, Se mordo, o baque é certo, Quarqué frango macriado, Péllo e prendo no pulero.

135 Sô cuma caranguigêra, Tenho isporão cuma caba, Te mato só de cocera, Te pico, e tu chora e baba, De uma dô disisperada, Que tu morre, e não se acaba.

tucanguyra (tocandira) - espécie de grande formiga amazônica, com prêsas enormes, de picada dolorosa cunca (conca) - espata ou bractea (folha modificada, que envolve e protege a inflorescência da planta)

caranguigêra (caranguejeira) - espécie de grande aranha peluda isporão (esporão) - ferrão caba - vespa dô (dor) disisperada (desesperada)

136 Sô pello de croatá, Ispinho de macambyra, Entro em teus óios, te cego, Te dexo as pernas em tira, Pra te matá de um abraço, Tenho unhas de mambyra.

137 Sô frumiguinha vermeia, Que mata tudo o que morde, Te agarro e dô drumidera, Pra que mais nunca tu acorde, Nem te alevante da istera, Inquanto eu não te dé orde.

pello - espinho croatá (gravatá) - bromélia (Aechmea aquilega) de folhas com bordos espinhosos macambyra (macambira) - bromélia (Bromelia laciniosa) de folhas com bordos espinhosos, fornece fibras têxteis e serve como alimento para animais

drumidera (dormideira) - possivelmente alusão ao extrato opiáceo da papoula

Page 47: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

47 138 Te impurro um pau de pião, Dô-te um christé de pimenta, Contra quarqué feiticero, Me benzo e tomo água benta, E queimo incenso de Santo, Que o Cão e a peste afugenta.

139 Eu sô leite de castanha, Que queima e arranca pedaço, Eu caio inriba de ti, Furo os óios, quebro um braço, Te sugigo e te derrubo, E me atrepo em teu cachaço.

pau de pião (?) christé (clister) - injeção de medicamento nos intestinos

leite de castanha - seiva cáustica da castanha de caju crua sugigo (subjugo)

140 Não há home cuma o Rei, Nem muié cuma a Rainha, Não há meste cuma o tempo, Nem cabeça cuma a minha, Tu pra mim é cuma mio, No bico de uma gallinha.

141 Boi preto, quando é rocero, Furo o chifre, e cum correia, Boto uma vara bem grande, Nas pernas boto uma peia, Pra não furá mais a cerca, Nem furtá na roça aleia.

meste (mestre) mio (milho)

rocero (roceiro) animal que invade a roça, destruindo-a Furo o chifre, e cum correia, Boto uma vara bem grande - trata-se provavelmente da fixação de uma vara aos chifres do animal, para dificultar sua locomoção e fuga

142 Vacca de premera cria, Pelo mijólo se pella, Dá coice, mais eu amanso, Dando de pau na canella, Prapô mansinho o bizerro, Furo a venta cum suvella.

143 Preto de dente de prego, De cara de preto raso, Inquanto tu tivé vida, Eu te atrapaio e te atraso, Pego a inchada e o cavadô, Te faço terra e te arraso.

144 Eu prantei mandioca mansa, Mais nasceu foi macachera, Eu pensei que achava um home, E achei foi esta lazera, Feito um buneco de ingonço, De samburá e de cera.

145 Pensei que tinha na frente, Um christão que tinha fé, E acheio foi um bicho brabo, De chifre e de quatro-pé, Paricendo um sapo inchado, Cum óios de jacaré.

134 Eu sô cuma tucangyuyra, Cuma cunca de ispinho, Quando istrepo o cabra chia, Se mordo, o baque é certo, Quarqué frango macriado, Péllo e prendo no pulero.

135 Sô cuma caranguigera, Tenho isporão cuma caba, Te mato só de cocera, Te pico, e tu chora e baba, De uma dô disisperada, Que tu morre, e não se acaba.

Page 48: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

48 136 Sô pello de croatá, Ispinho de macambyra, Entro em teus óios, te cego, Te dexo as pernas em tira, Pra te matá de um abraço, Tenho unhas de mambyra.

137 Sô frumiguinha vermeia, Que mata tudo o que morde, Te agarro e dô drumidera, Pra que mais nunca tu acarde, Nem te alevante da istera, Inquanto eu não te dé orde.

138 Te impurro um pau de pião, Dô-te um christé de pimenta, Contra quarqué feiticero, Me benzo e tomo água benta, E queimo incenso de Santo, Que o Cão e a peste afugenta.

139 Eu sô leite de castanha, Que queima e arranca pedaço, Eu caio inriba de ti, Furo os óios, quebro um braço, Te sugigo e te derrubo, E me atrepo em teu cachaço.

140 Não há home cuma o Rei, Nem muié cuma a Rainha, Não há meste cuma o tempo, Nem cabeça cuma a minha, Tu pra mim é cuma mio, No bico de uma gallinha.

141 Boi preto, quando é rocero, Furo o chifre, e cum correia, Boto uma vara bem grande, Nas pernas boto uma peia, Pra não furá mais a cerca, Nem furtá na roça aleia.

aleia (alheia) 142 Vacca de premera cria, Pelo mijólo se pella, Dá coice, mais eu amanso, Dando de pau na canella, Pra pô mansinho o bizerro, Furo a venta cum suvella.

143 Preto de dente de prego, De cara de preto raso, Inquanto tu tivé vida, Eu te atrapaio e te atraso, Pego a inchada e o cavadô, Te faço terra e te arraso.

mijolo - bezerro novo suvella (sovela) - instrumento do sapateiro, para furar o couro

144 Eu prantei mandioca mansa, Mais nasceu foi macachera, Eu pensei que achava um home, E achei foi esta lazera, Feito um buneco de ingonço, De samburá e de cera.

145 Pensei que tinha na frente, Um christão que tinha fé, E achei foi um bicho brabo, De chifre e de quatro-pé, Paricendo um sapo inchado, Cum óios de jacaré.

macachera (macaxeira) - espécie de mandioca venenosa, dita brava, de gosto amargo, devido á presença de cianetos lazera (lazeira) - miséria, lepra, fome buneco de ingonço (boneco de engonço) - boneco com articulações (engonço = dobradiça, gonzo) samburá - trançado de palha

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49 146 Gallinha branca do Demo, Pata-choca do Mardicto, Bode amarello do inferno, Praga damnada do Igypto, Eu te iscardo, isbrugo e isfólo, Te tempéro e façu um frito.

147 Luã criz te pare a língua, E o Fute, que te gunverna, Te meta num becco iscuro, Sem pavio e sem lanterna, Cuma um carro bem pesado, Te ismagaio e quebro a perna.

praga damnada do Igypto - alusão às sete pragas bíblicas do Egito

luã criz - lua crescente (época ideal para rituais e sortilégios) gunverna (governa) cuma um carro - com um carro (de boi) ismagaio (esmigalho)

148 Sô cuma a ema do campo, Minha guela é de xiringa, Meu papo é de cachoera, Que iscorre grosso e não pinga, Te ingulo só de um bucado, E acabo toda a resinga.

149 Sô mosca de varigera, Tenho ferrão, sô mutuca, Que quando ataca de rijo, Põe toda a gente maluca, Desta vez tu não me iscapa, Nem cum reza de São Luca.

xiringa (seringa) - significando látex, borracha resinga - disputa, querela

mosca de varigera - mosca varejeira mutuca - espécie de mosca com ferrão, que pica

150 Se tu chama por São Luca, Eu chamo São Supriano, Fui discipo de vigaro, Sei mandinga de cigano, Tiro-te a rôpa e te rasgo, Te deixo nú todo o anno.

151 Não sô mulambo rasgado, Nem também vacca que amoje, Se tu tem pauta com o Sujo, Sei pulutrica e cabóge, Eu te torro em forno quente, Te parto e meto no arfoge.

Supriano (Cipriano) vigaro (vigário) mandinga (feitiço)

mulambo (molambo) - trapo, farrapo amoje - amojar, intumescimento das glândulas mamárias com leite por ocasião do parto e amamentação pulutrica - pirueta cabóge (caborje) - mandinga, feitiço arfoge (alforge) - saco para transportar mercadorias

152 Macaco pula e assubia, Tatú cava e porco fussa, Caititú, quando se zanga, Amostra e bate a dentuça, No lugá que não tem onça, Viado forga e iscramuça.

153 Não sô tatú, nem macaco, Nem também biscaia russa, Que, istando morta de fome, No capinzá si dibruça, Cuma nunca eu fui viado, Não me assenta a carapuça.

caititú (caititu) - porco do mato forga (folga) - fica à vontade iscramuça (escaramuça) - aqui, no sentido de luta de brincadeira

biscaia - égua, mulher dissoluta ou de hábitos grosseiros, prostituta russa (ruça)

Page 50: FESTAS SERTANEJAS - FESTA DE SÃO GONÇALO

50 154 Fui no rio pescá pexe, Levei tarrafa e inspinhé, Pesquei piáu e piába, Pyratinga e mandubé, Da maió piába branca, Tirei o dente a quicé.

155 Butei linha na lagoa, E o leme larguei da mão, Quando cuidei que pegava, Um surubim ô cação, Truxe um véio macriado, Ferrado e preso no arpão.

tarrafa - espécie de rede de pesca ispinhé (espinhel) - comprida linha de pesca, armada com anzóis regularmente espaçado piau, piaba, pyratinga (piratinga), mandubé (mandubi) - espécies de peixe quicé - faca pequena e velha, geralmente sem gume ou sem cabo

surubim - espécie de peixe

156 Quem ispera a vida intera, De difunto argum carçado, Tem de andá de pé no chão, Na areia quente queimado, Um pescadô dágua doce, Não traz um home arpuado.

157 Jacaré nunca foi pexe, Ema não avôa em bando, Inquanto tu vae fugindo, Divagá vô-te cercando, Mais vale um passo na mão, Do que cincoenta avuando.

de difunto argum (algum) carçado (calçado) - isto é, herdar os sapatos do morto

passo (pássaro)

158 Bananera não dá côco, Nem mamoero cajá, Nunca vi um pexe grande, Ficá preso em munzuá, Quem corre é porque tem medo, Quem desdenha qué comprá.

159 Bambu não bota fulô, Nem manguera dá limão, Gingilim não dá batata, Nem cabacera feijão, Perde tempo o arfaiate, Que qué tocá rabecão.

cajá - fruto comestível da árvore cajazeira (Spondias venulosa) munzuá - armadilha em forma de cesto afunilado, feita com taquara, para capturar peixes, lagostas etc

fulô (flor) gingilim (gergelim) - herbácea (Sesamum orientale), cujas sementes são muito usadas na culinária cabacera (cabaceira) - árvore (Crataeva tapia) rabecão - espécie de rabeca de maior tamanho e som mais grave

160 Quem canta cumigo chora, Cachinga e fica zaroio, Vira trapo e vira lama, E acaba feito um tramboio, Te pego e mato na unha, Cuma quem mata pioio.

161 Cavallo grande é trangóla, E o piqueno é pereréca, Todo o preto piquinino, De cara limpa, e careca, Só toma termo de gente, Quando apanha uma sapéca.

zaroio (zarolho) - com um só ôlho tramboio (trambolho) - originalmente, peso prêso aos pés de um animal para dificultar sua locomoção e fuga pioio (piolho)

trangóla - muito alto, feio, magro e descorado só toma termo de gente - somente comporta-se como gente sapeca - surra

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51 162 Quando eu andava em teu pizo, Vendo o teu rasto na areia, Guardei logo o teu lugá, Num cantinho da cadeia, Pra que tu perdesse o gosto, De fallá da vida aleia.

163 Branco que canta cum preto, Tem muito pôca vergonha, Não sei cuma eu me metti, Nessa tolice medonha, Sem mandá essa canaia, Prá Fernande de Noronha.

pizo (piso) - pegadas canaia (canalha) - gente vil

Fernande (Fernando) de Noronha - o arquipélago serviu como colonia penal, de 1737 a 1938

164 Tu mesmo bem te cunhece, Mais eu, que não te cunheço, Nunca fui te cunvidá, Pra cantá, porque eu não deço, A comprá o que se offrece, Na porta, por quarqué preço.

165 Já fui capitão de matto, Pra pegá preto fugido, Que se mittia na brenha, E andava sempre iscundido, Mais de todos os que peguei, Foi este o mais atrivido.

deço (desço) capitão de matto (mato) - caçadores de

recompensa, que procuravam recapturar escravos fugidos brenha - floresta fechada, matagal

166 Quem mente tem cara limpa, Cuma quaiada iscurrida, Um branco tão discarado, Cuma brivana parida, Nunca pensei que pudesse, Incontrá em minha vida.

167 Meu pae me disse uma vez, E eu não tomei a licção, Que todo o preto ingiado, Cum cara de curujão, Se a gente lhe dá o pé, Qué pegá logo na mão.

quaiada (coalhada) iscurrida (escorrida) - isto é, sem o soro brivana - égua, besta

ingiado - enrugado (como por exemplo a pele após ficar muito tempo dentro dágua)

168 Quando branco pega preto, Martrata, ispanca e inforca, Derruba e vira assavessa, Faz caco, quebra e imborca, Branquinho que não se lava, Tem mão suja e bocca porca.

169 Só pru mode o cativero, Preto tem raiva da gente, Mais preto é o urtimo ôvo, De cascavé ô serpente, Que o diabo poz meio-dia, Inriba da terra quente.

assavessa (às avessas) imborca (emborca)

urtimo (último)

170 Se todo o mundo quizesse, Se pensasse cuma eu, Branco de pelle melada, Que neste mundo nasceu, Vivia dento do Inferno, Numa cardera de breu.

171 No dia em que eu te apanhá, Drumindo ô mesmo intertido, Te ponho nu e te banho, Num tacho de mé frivido, Te aperto a venta, e tu bebe, Chumbo e inxofe dirritido.

cardera (caldeira, caldeirão) mé (melado) de cana frivido (fervido)

inxofe - enxofre

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52 172 Eu metto um ferro no fole, Inté ficá incarnado, Te sujigo, e cuma porco, Num banco grande deitado, Te metto o ferro na bocca, E te dexo todo queimado.

173 Venta de preto tem loca, Tem furna e tem corredô, Tem lacraia e lagartixa, Imbuá e grongolô, É a furna mais damnada, Que Deus no mundo dexô.

loca - buraco sob pedras, furna, lapa

lacraia - inseto vermiforme peçonhento imbuá (embuá), grongolô (gongolô), piolho de cobra - inseto da família da centopéia, com corpo cilíndrico em anéis, com até 400 patas

174 Páu torto nunca indireita, Mesmo que seje lavrado, Fruita azeda não indossa, Nem cum assuca mascavado, É mió se andá sozinho, Do que má acumpanhado.

175 São dois bichos paricido, Macaco e preto Dangola, Se o bicho bole cum tudo, Preto africano é bitóla, Quem bole cum muitas pedra, Leva arguma na cachóla.

indossa (adoça) Dangola (d’Angola)

bitóla (bitolado) - que não tem mente aberta, não aceita novas ideias, limitado no pensamento ou ação

176 Sarampo, febre e cabrunco, Catarrão e catapora, Murrinha, fruncho e papêra, Te cunsuma sem demora, Te dê duença de peito, Te dexe os osso de fóra.

177 Mandipuera bem forte, De mandioca manipeba, Te invenene e dê curuba, Sarna, cocêra e peréba, E te faça andá de choto, Cuma faz o tatú peba.

carbunco (carbúnculo) - doença infecciosa comum a homens e animais catarrão - catarro, secreção intensa, de odor pronunciado, indicando desde sinusite até tuberculose murrinha (morrinha) - fraqueza no corpo, sarna, fedor fruncho (furúnculo) ( ? ) papêra (papeira) - parotidite infecciosa, bócio cunsuma (consuma) - tire-te as forças, a saúde duença (doença) de peito - tuberculose

mandipuera (mandipueira) - líquido resultante de espremer-se a massa de mandioca ralada, do qual extrai-se a goma manipeba - espécie de mandioca venenosa, dita brava, de gosto amargo, devido á presença de cianetos curuba - ferida, bicheiro peréba - abcesso, pequena ferida andá (andar) choto - andar bem devagar, arrastando-se

178 Trez vez sete é vinte e um, Quatro vez sete e vinte e oito, Tres vez nove é vinte e sete, Nove cum nove é dusoito, Branco que tem gavulice, É fraco, mole e afoito.

179 Quatro vez seis vinte e quatro, Treis vez nove é vinte e sete, De preto véio introsado, Que cum façanha se mette, Pensando que é coisa boa, Eu corto o beiço e o tupéte.

gavulice (gabolice) introsado - entrevado

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53 180 Quando eu drumo, voz de branco, Não me assusta, nem me acorda, Se arremete, aparo os gaios, Boto na corda, e se ingorda, Eu faço boi de cangaia, Furo a venta e boto corda.

181 Sempre fui bom carapina, Tenho inchó, prana e rebote, Te derrubo de machado, Te lavro e te metto o serrote, De teu corpo faço taba, Ripa, sarrafo e barrote.

furo a venta - as narinas do boi de tração são furadas para colocar uma argola, em seguida amarrada a uma corda, que permite dirigir o animal puxando-se para a direita ou para a esquerda

carapina - carpinteiro inchó (enxó) prana (plaina) rebote - tipo de plaina taba (tábua)

182 Sô miolo de páu-d’arco, Que vira pedra na terra, Quebro gume de machado, E intorto dente de serra, Inchó me bate na casca, Perde o aço, e nunca interra.

183 Meu machado americano, Não se quebra em carnahuba, Corto braúna e batinga, Mais se o páu é tatajúba, Risco um phospho, queimo o mato, E o fogo vem e derruba.

pau d’arco - árvore, ipê amarelo (Tabebuia aurea) ou ipê roxo (Tabebuia impetiginosa)

braúna - árvore (Melanoxylon brauna), uma das mais duras e incorruptíveis madeiras-de-lei brasileiras batinga - árvore (Eugenia durissima) de madeira pesada, pouco resistente e de baixa durabilidade tatajuba - árvore (Bagassa guianensis) de madeira pesada, dura, muito resistente e durável

184 Sô pesado, e não me offreço, Se vim aqui, foi a rogo, Mais não foi prá re insiná, O segredo do meu jogo, Cubro dágua todo o matto, Onde tu qué tocá fogo.

185 Sô cuma arco-da-véia, Bebo a água e seco o campo, Eu sô cuma a tempestada, Cuma curisco e relampo, De quarqué pau corto os gaios, Tiro lasca e arranco o tampo.

arco-da-véia (arco-da-velha) - arco-íris 186 Home não me mette medo, Nem muié me faz ciúme, Não há cabra, branco ô preto, Que cumigo se apulúme, Fogo de fole eu apago, Quanto mais de um vagalume.

187 Todo o véio é paricido, Cum paia pó de arroz, Que a gente joga no matto, Remexe e queima dispois, Eu te queimo, e acabo a rusga, E a peleja entre nós dois.

apulúme (aprume)

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54 188 Moço fraco é vara verde, É cuma pendão de canna, Cuma fogo de pavio, Cuma casca de banana, Iscurrega, avôa e cahe, E apaga, se a gente abana.

189 Eu não temo um feiticero, Nem branco da tua laya, Que presegue e agóra a gente, Cuma faz rasga-mortaia, Quando vae gritá de noite, Junto das casas de paia.

agóra (agoura) - predizer desgraças

rasga-mortaia (rasga-mortalha) - pássaro agourento que, quando sobrevoa uma casa e canta, anuncia a morte de um dos moradores

190 Sei que praga de urubu, Não pode matá cavallo, Nem pode pegá ferro, Pra fazê massa no ralo, Quem faz agôro é gallinha, Quando canta cuma gallo.

191 Quem bebe é porque tem sede, Quem drome é porque tem somno, Quarqué grito de curuja, Não faz Rei descê do Throno, Cão que cava prá ditraz, Quando uva agóra o dono.

agôro (agouro) uva (uiva) 192 Vacca que urra no campo, Fazendo cuma nuvio, Anda doida, pricurando, Um quarqué tôro vadio, Não agóra, mais se isquece, De dá mama ao proprio fio.

193 Ninguém se jurgue filiz, Que o mundo dá muita vorta, Se a gallinha vira gallo, Pega-se a faca e se corta, O pescoço, e todo o sangue, Se ispaia junto da porta.

194 Eu te atrevesso e te ispeto Na ponta desta pujuca, Quebro isporão de arraia, Quanto mais de uma mutuca, Qu’eu tiro a asa e ismigaio, Só da premera mussuca.

195 Lá dibaxo da latada, Dexei armada a rapúca, E um Cantadô cahio dentto, Cuma mangaba em cumbuca, Sem pudê mais si livrá, Do imbruio de minha infuca.

pujuca (ipojuca ou pojuca) - área alagada, pântano mussuca (mutuca)

latada - grade de ripas para sustentar plantas trepadeiras rapúca (arapuca) mangaba - fruto da mangabeira, árvore de onde extrai-se um látex cumbuca - recipiente feito de uma cabaça infuca - enredo, fuxico, intriga, situação difícil

196 Quebro cabaça e cumbuca, Te venço e levo de arrojo, Eu te laço, e cuma paca, Te atiro dentro do fojo, E eu quero vê tu sahi, Do fundo iscuro do bojo.

197 Eu te atiro e varo o peito, Cum bala de cravinote, E tu não sahe da arapuca, Nem bebe água do pote, Apois preto, se vê tiro, Corre berrando, aos pinote.

fojo - cova funda, com abertura disfarçada por galhos e folhas, para captura de animais

cravinote (clavinote) - carabina

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55 198 Cuma boi brabo zangado, No chão te isfrego e te bumbo, Da carrera que eu te dé, Vô-te mettê no mufumbo, Apois não caio em arapuca, Nem tenho medo de chumbo.

199 Branco tem cheiro de rosa, De jasmim, de cravo manso, Mais preto, que não se lava, Fede a muáfo, afianço, Cheira a lapiche e a raposa, A budum, bode e ranço.

bumbo (bumbar) - dar uma surra, bater com muita força carrera (carreira) - corrida mufumbo - espécie de cipó (Combretum leprosum)

muafo - pano velho, roupa velha cheira a lapiche (cheira a pixe)

200 Cada quá vende seu pexe, Conforme Deus é sirvido, Eu, porém, não sô arara, Não compro pexe moído, Nem dô gasto a traste véio, Por quarqué preço vindido.

201 Não vejo grande disgraça, Na gente um dia perdê, No jogo, ô mesmo em bardroca, Tê um dia, ôtro não tê, Disgraça é preto ruim Seu lugá não cunhecê.

bardroca (baldroca) - trapaça, fraude 202 Seu Izidio, me arresponda, Se você sabe quem é, Qua a pessoa que o home, Quando é casado, não qué, Mesmo que seje parenta, Junta cum sua muié.

203 Minha sogra, muitas noites, Deita cumigo na rede, Me furnecendo água fria, Toda vez que eu tenho sede, Mais sogra, meu caro amigo, Nem de barro na parede.

204 Apois a minha, eu te juro, É muito boa collega, Que cum a fia, a toda hora, Por minha causa se pega, E me dá tudo que a fia, Se tá zangada, me nega.

205 Meu amigo, eu lhe assiguro, Que fazendo isto que fez, Metteu agúia na linha, E anno dento de um mez, E gunvernô treis canôa, Cum só leme, e de uma vez.

206 Nisto eu não vejo mutivo, Pra tanta admiração, Desde que tudo se faça, Cum cuidado e prevenção, Apois em coisas assim, Quem guverna é o coração.

207 Se tu não qué que teu figo, Desta vez vire pustema, Caboco da pá virada, Se tu é bicho da gema, Me arresponda dipressinha, Quanto ôvo põe a Ema.

pustema (provavelmente corruptela de

pústula) - ferida inflamada, pequeno tumor que supura

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56 208 Tu não me apanha drumindo, Que meu somno é de tetéo, Os ôvo que a Ema põe, Eu cubro cum meu chapéo, Me diga quantas istrella, Bria no alto do céo.

209 Trago sempre a tabuada, Guardada dento da mão, Todas istrellas do céo, Eu cubro cum meu gibão, Eu quero que tu me diga, Quantos dentes tem o Cão.

tetéo (tetéu) - quero-quero, pássaro que diz-se jamais dormir

210 Quando entro na fulia, Eu sô valente e atrivido, Não conto os dentes do Cão, Porque elle veve iscundido, Mas quero que tu me diga, Se tua mãe tem marido.

211 Nem quando eu era minino, De susto ô medo fugi, Minha mãe teve marido, Foi meu pae, eu eu cunheci, Mais tua mãe morreu sortera, Logo dispois que eu nasci.

212 Barriga dágua isticada, Das bandas do Cabrobó, Se tu é um bicho bom, E ainda qué sê mió, Pega o compasso e arresponde, De que tamanho é o Só.

213 Sô piquizero maduro, Que teu facão não disgaia, Se o Só passa a tacaniça, Entra na casa e se ispaia, Só pode sê du tamanho, Do buraquinho da paia.

barriga dágua - ascite (acúmulo de líquido no abdomen decorrente de cirrose por alcoolismo ou hepatite B/C) ou esquistossomose Cabrobó - cidade do interior de Pernambuco

piquizero (pequiseiro) - árvore (Caryocar brasiliense), seu fruto (pequi) é muito apreciado, porém dotado de perigosos espinhos tacaniça - beiral do telhado que resguarda um lado da casa

214 Meu amigo e camarada, Se de errá não se arriceia, Me arresponda bem ligero, Porque é que a lua cheia, Em vez de ispaiá calô, Ispaia o frio na areia.

215 Se tu não sabe eu te digo, Prá te tirá da cancera, Que a lua não se derrete, Não pinga nem faz gotera, É purque lá só tem frio, Mais não se acende foguêra.

216 Pois antão se você pode, Continuá no agrumento, Veja lá se é capaz, De dizê, neste momento, Se sabe a fruita do matto, Que tem ispinho por dento.

217 Na lama quem mora é sapo, Na loca só cangaty, Assuca dentro do favo, Só quem faz é mundury, Só tem ispinho dento, É caroço de piqui.

cangaty (cangati) - espécie de peixe que se

abriga em locas mundury (munduri) - abelha silvestre, seu mel é procurado com intuitos terapêuticos piqui (pequi)

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57 218 Se você, por pôca coisa, Não fuma, nem dá cavaco, Diga purque tatu-peba, Que não é bicho veiáco, Em vez de andá cá pur riba, Veve dentro de um buraco.

219 Mora dentro de um buraco, Isto eu lhe posso affirmá, Cavando cum suas unhas, Purque não pode cortá, Madera prá fazê casa, Onde elle possa morá.

220 Se o que tu diz é izato, Do mesmo modo arrespondo, Tatu-peba tem mais força, Do que quarqué marimbondo, E este faz em quarqué pau, Seu pulerinho redondo.

221 Faz pulerinho redondo, Pur tê asa e não tê mão, Mais o pobre tatu-peba, Que não teve este condão, Só teve a graça de Deus, Prá vivê cavando o chão.

izato (exato)

tatu-peba - espécie de tatu condão - virtude, poder

222 Anda cavando o chão, Desde o dia em que nasceu, Pelos mattos das catingas e, Correndo cuma Judeu, Mais cada um se contente, Com a sorte que Deus lhe deu.

223 Cum a sorte que Deus me deu, Eu sinto sastisfação, Apois pela sorte aleia, Eu nunca tive imbição, Nem sô graia atraz do brio, Das pulúmas do pavão.

imbição (ambição)

brio (brilho) pulúmas (plumas)

224 Eu não corro atraz da sorte, Ô sina que não mereça, Nem me quexo prá ninguém, De uma dô que não padeça, Nem ando atraz das penninha, Que o pavão tem na cabeça.

225 Seu Collete, todo o tempo, Que já se foi no rojão, Querendo dá um a ôtro, Um bolo em cada licção, Vamos gastá cum as morena, Que tam dançando o baião.

bolo - pancada dada na mão com palmatória 226 Não sô caxão de pancada, Nem tenho lombo de aço, Tenho a idéia na cabeça, Tenho o talento no braço, Morro de véio e não corro, Figura feia eu não faço.

227 Se pensô que eu pretendia, Fugi da festa, inganô-se, Apois daqui não sahia, Fosse imbora como fosse, Use das armas, me ataque, Que a paz da festa acabô-se.

caxão (caixão) de pancada - o alvo preferencial de críticas ou de maus-tratos

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58 228 Sô forte cuma a batinga, Sô duro cuma rochedo, Não tenho papa na língua, Nunca sube o que foi medo, Sustento tudo o que disse, Purque não fallo em segredo.

229 Antão aguente a rajada, E iscute o grito de guerra, Que eu reduzo tudo a cinza, Queimo o céo e a propria terra, Faço façanhas tão grande, Que inté no céo Deus se aterra.

batinga - murta, árvore (Gomidesia affinis) de madeira pesada e dura

aterra - apavora

230 Não sei purque, pur tão pôco, Você se irrita e consome, Seu Izidio, eu não pretendo, Tirá o valô de seu nome, Apois, se quero respeito, Sei respeitá quarqué home.

231 Seu Collete, eu lhe agradeço, A sus ispilicação, Apois pur causa de um dito, Que me cherô a carvão, Eu ia quagi subindo, Na serra da damnação.

ispilicação (explicação)

quagi (quase) 232 Já que tudo tá nos exo, E já que se acabô a arrelia, Vamos dá mais vida à festa, Mais graça e fogo à fulia, Sem rizingas nem arengas, Inté que clareie o dia.

233 Meu peito não é de ferro, Nem de bronze ô de madera, Mais se você me acompanha, Neste rojão sem carrera, Nesta marcha em que vô indo, Canto inté segunda-fera.

tudo tá (está) nos exo (eixos) - tudo está em ordem rizinga (rezinga) - resmungo, altercação

234 Prá brincá não tenho pressa, Não conto o tempo, nem corro, Da isquenença de gargante, Sei, de certo, que não morro, Eu já fui preto cativo, Mais hoje sou home fôrro.

235 Quando as rozeta de frade, Deste pandero chucaia, Cuma faz o cascavé, Zangado numa tucaia, Minha arma intristecida, Cheia de mágua dismaia.

isquenença (esquinência) de gargante (garganta) - doença inflamatória na garganta fôrro (forro, ou alforriado) - escravo liberto, que comprou a própria liberdade, ou foi libertado

rozeta (rosetas) - chapinhas metálicas do pandeiro chucaia (chocalha) tucaia (tocaia)

236 Apois antão, meu amigo, Se nessas noites serena, Tem na arma a ponta aguda, Do ispinho de tanta pena, Vamos vê se acha remédio, Nos óios de uma morena.

237 Quem na fulô da idade, Soffreu um dia a vacina, Dos feitiços e requebros, Dos óios de uma minina, Tem traçada a sua sorte, E a marcha de sua sina.

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59 238 Todo o feitiço se acaba, No fervô de uma oração, Feita cum os óios no céo, Cum toda a fé e devoção, Prá Deus não há pecadô, Que não tenha sarvação.

239 Seu Collete, quem não tem, Na arma o gelo do inverno, E no peito, feito brasa, O fogo quente do Inferno, Não comprende purque soffro, E às vêzes não me gunverno.

240 Sei muito bem que um trumento, Que os forte de isprito incanta, E a muitas armas mufinas, Martrata, morde e quebranta, Mais quem canta tudo isquece, Seus males todos ispanta.

241 Não creia, só purque soffro, Qu’eu cambaleie ô ismureça, Que um disingano passado, Me traga dô na cabeça, Vamos cantá sempre alegre, Inté que o dia amanheça.

trumento (tormento) mufinas (mofinas) - ávaras, mesquinhas

242 Seu Izidio, não há nada, Que traga tanta moleza, Que ponha um home covarde, Cheio de tanta fraqueza, Cuma seje o resurtado, Do istrago de uma tristeza.

243 Só quem canta ispanta os males, Gemê é proprio do home, Quem é casado cum a sorte, Nunca de amô sente fome, Quem nasceu prá sê filiz, Não soffre, nem se consome.

244 Tenho pena, tenho dó, Tenho mágua e compaxão, Tenho uma dô no peito, Ôtra no meu coração, De não pudê dá a vida, A quem tá debaxo do chão.

245 Meu coração tá firido, Dos óio de uma cabôca, Que tocô fogo em meu peito, Minha arma dexô lôca, E fugio quando eu quiria, Lhe dá um bejo na bocca.

246 Quem tem amô iscundido, Mais não se pode quexá, Soffre dô, soffre turtura, Cuma arfinete a furá, Pur dentro do coração, Sem pudê cumfessá.

247 Quando o amô foge e se isconde, Da paxão dexando a reima, Matando a arma, e a gente, Atraz delle corre e teima, Vem a sodade marvada, Que nos faz paia e nos queima.

turtura (tortura) sodade (saudade) 248 Sô preto, mas também tenho Um coração que parpita, Quando vejo uma pretinha, Toda dengosa e catita, Carçando chinela branca, Toda infeitada de fita.

249 Quando eu tinha, aos quize anos, Fraco ainda o sintimento, Deixei chorando a minina, Que pidi em casamento, E nunca mais seu retrato, Me sahio do pensamento.

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60 250 Ninguém dexe amores véios, Pelos novos que há de vi, Purque quando o novo foge, O véio vorta a sirvi, Deus dá castigo à soberba, Prá que ninguém possa ri.

251 Só um grande arrepindimento, Desse à gente a sarvação, Ô desse mesmo a vantage, De arcançá quarqué perdão, Eu sei que já tava sarvo, Das penas da ingratidão.

252 Quem ispera da muié, Do amô um doce bafejo, E véve dempre imbalado, Na isperança de um disejo, Guarda na bocca, cantando, A nota doce de um bejo.

253 Sem querê, nem fazê força, Você, agora, me ajuda, A muié é cuma o vento, Que de vez em quando muda, E traz, guardado na bocca, Um bejo farso de Juda.

254 O amô, que faz, muita vez, De um valentão um covarde, Cuma pimenta no beiço, No coração queima e arde, Na maió parte dos casos, O arrepindimento vem tarde.

255 Não me quexo purque tema, De soffrê quarqué castigo, Mais só pur causa da mágua, Que trago sempre cumigo, Da muié que deixei longe, Isposta à dô e ao pirigo.

beiço (beiços) - lábios isposta (exposta) 256 O coração é um relojo, Apontando noite e dia, No pontero da sodade, O omento de uma agonia, Que muia vez nos castiga, Martrata, nunca allivia.

257 Nas cordas desta viola, Tenho uma dô que advinha, Todo o pezá que me mata, Toda a paxão que me ispinha, Ninguém quêra tê no mundo, Vida infiliz cuma a minha.

relojo (relógio) pezá (pesar) 258 No burdão, que falla grosso, Meu peito sente e me diz, Que apezá de eu sê dos homes, Um dos que mais se mardiz, E apezá de atrumentado, Não sô dos mais infiliz.

259 Quando a viola saluça, Canta, chora, falla a geme, Meu coração pula afflicto, Minha arma sarta e treme, Purque no rio do amô, Sô cuma a barca sem leme.

burdão (bordão) - a corda mais grossa da viola 260 Quem chora por disvintura, Seu bem, que dexô distante, É cuma a rôla que chora, No ninho a ozença do amante, Eu soffro, purque sô firme, Cuma se fosse inconstante.

261 Sei que meu má não tem cura, Fui quirido e fui amado, Mais paguei tanto carinho, Deixando o amô disprezado, Das fartas que cummetti, Já fui dimais castigado.

ozença (ausência) dimais (demais)

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61 262 Seu Izidio, é dia claro, E um prato bom de passoca, C’uma cuia atupetada, De bejú de tapioca, Tá na mesa, à nossa ispera, C’um bule quente de moca.

263 Seu Collete, todo aquelle, Que é home bem iducado, Não uza de cerimonia, Quando é bicho traquejado, E se é chamado prá mesa, Nunca se faz de rogado.

passoca (paçoca) - carne-seca cozida, picada e refogada, pisada no pilão com farinha de mandioca ou de milho moca - café

264 Vamos, pois, attendê logo, Sem precisá de arvoroço, Mais cuma gente iducada, O bom cunvite do moço, Que em seu lovô, bem cedinho, Nos offrece um bom armoço.

265 Viva, pois, Sá Dona Eva, Dispois de Nosso Sinhô, E a água em que Seu Augusto, Na Igreja se batisô, Viva a Chica, a cunzinheira, Que prá armuçá nos chamô.

armuçá (almoçar)

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O DESAFIO - SEGUNDA PARTE

Sá Dona Eva (verso nº 265)

Evangelina Ferreira Lopes, de apelido Eva (foto de 14/04/1879), irmã mais velha de Cecílio Ferreira Lopes, certamente a anfitriã da festa (com cerca de 70 anos de idade em 1926)

Eram seis horas da manhan do dia treze de Junho (de 1926). Um sol ardente e brilhante tingia de ouro claro as christas das serranias. As gottinhas furta-cores com que a noite rorejara o tapete esmeraldino das margens humidas do brejo e a cupola do arvoredo, tremeluziam e brilhavam, como lágrimas divinas que o arco-íris tocasse de reflexos prismáticos, nas folhas frias das plantas, onde Phebo, sequioso, as vinha surpreender. Era um domingo festivo, cheio de sonhos e poesia. Terminavam nesse dia as festas de Santo Antonio. O frenezi tresloucado que empolgara a multidão nesse final de folia era como uma vertigem estonteante de gozos e de prazeres choreographicos, gulosos e insaciáveis.As violas e pandeiros, todavia, haviam emudecido. Phebo (Phoebus, Febo) - divindade da mitologia romana, associada ao sol, equivalente ao Apolo grego

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63 As mesas regorgitavam de iguarias sertanejas, na azáfama pressurosa e agitada da primeira refeição da manhan. Grandes braçadas de bolos e bejús de tapioca, de manuê de milho e cuscuzes, eram trazidas à mesa, de onde iam desapparecendo à proporção que os convivas, de uma maneira automatica, eram substituídos por outros. O aluá, fabricado em grandes potes, era servido nas cuias, em canecas e alguidares, que, sem substituição ou lavagem, passavam de uns a outros, em uso inninterrupto, sem cerimonias ou escrúpulos. A cachaça, fabricada no alambique da Fazenda, corria entre a assistencia, como um producto de lei. Era tempo do descanço para uma nova investida, apenas cahisse a tarde. Acenderam-se os cachimbos, acalmaram-se os rumores, e apenas as cozinheiras, na azáfama da incumbencia que lhes fora commettida, depenavam as gallinhas, tratavam alguns leitões, esfolavam vários carneiros, que tombavam sem protesto aos golpes das machadinhas, e cortavam diligentes possantes quartos de bois, que lançavam, de mistura com sacos de arroz pillado, em caldeirões destinados ao fabrico do assucar, nas fornalhas da Fazenda. Era o preparo do almoço, em quantidades abundantes, para várias centennas de pessoas. Carradas de lenha verde, de canella-de-velho e pau-candeia, formavam pilhas enormes nas immediações da fornalha para alimentar a fogueira que em seu bojo crepitava, cozinhando os alimentos. A Fazenda repouzava em relativo silencio. Só depois de meio-dia recomeçara a balbúrdia com o despertar rumoroso da formidável onda humana que voltava a circular. Em torno de vastas mesas, ao longo do avarandado do casarão da Fazenda, agrupava-se a melhor gente, composta de fazendeiros e abastados lavradores, que havia afluído à festa. No pateo com cobertura, preparado para a funcção, alinhavam-se largas esteiras de palhas de carnahúba, sobre as quaes eram dispostos, em filas consideráveis, alguidares grandes de barro repletos de arroz cozido com carne de porco e boi, , de carneiro e de chibarro. Leitões assados de espeto, divididos em pedaços; possantes postas de carne assada nos caldeirões; quartos gordos de carneiros e capões ainda quentes do contacto das fornalhas, enchiam os intervallos dos demais receptáculos collocados nas esteiras, e completavam o quadro da glutonaria voraz desse ambiente fartíssimo. E o vinho delicioso, fabricado de caju, era servido nas cuias, sem controle e sem medida. Só às quatro horas da tarde estava findo o repasto. Ia ser reencetada a deliciosa folia que o cansaço e o almoço haviam interrompido. Muitos homens e mulheres, num vae-vem interminável, repunham em seus logares os bancos dos violeiros, retirados do terreiro na occasião do almoço. Um pensamento, somente, vibrava em todos os cérebros, como um choque violento de effeitos communicativos: aproveitar o resto da tarde e da noite de domingo, divertindo-se no samba tanto quanto fosse possível. Era uma occasião que fugia, um momento que se esgotava, e que só dahi há um anno iria reproduzir-se. Era preciso, portanto, gosal-o sem disperdício de um só instante, se quer. Por fim, entre a satisfacção da assistencia e manifestações intensas de júbilo, viopleiros e cantadores tomaram os seus logares. E entre os rufos dos pandeiros e o sapatear enquadrado no compasso do baião, rompeu, rugindo, a folia. bejú (beiju) - panqueca fina assada, feita de tapioca manuê (manauê) - espécie de bolo assado, feito de fubá de milho cuscuz - espécie de bolo cozido ao vapor, doce ou salgado, feito de fubá de milho ou de arroz aluá - bebida fermentada de abacaxi, milho ou arroz, mais açúcar, consulte http://www.soutomaior.eti.br/mario/paginas/cur_rec.htm alguidar - vaso de barro ou metal em forma de cone invertido chibarro - cabrito castrado

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64 Collete, em tom ouzado e atrevido, como se houvesse esquecido o pacto de harmonia firmado com o companheiro ao romper da madrugada, voltou vibrante à porfia, num arranco altivo de audácia: 266 Sou lião dentro da matta, Trigue a rugi na caverna, Eu não acho aqui um home, Nem cuma luz de lanterna, Porque todos que eu pricuro, Corre de rabo entre as perna.

267 Ricúa, preto damnado, Não seje tão trapaião, Que eu infrento o mundo intero, Dô de pé num bataião, Quanto mais num preto sujo, De tisna, sebo e carvão.

bataião (batalhão) 268 Lugá de tôro é no campo, De burro é no tabulero, Gallinha vae prá ramada, E o gallo vae pro pulero, Quem tem trumpha, em minha terra, É bode do meu chiquero.

269 Quem roe o coco é cutia, Quem assubia é macaco, Que furta mio na roça, Por sê um bicho veiáco, Toda catinga de preto, Tá debaxo do suvaco.

cutia - espécie de animal roedor 270 Todo o branquinho que veste, Carça larga de um bom pano, Apezá de andá bem lorde, É mau, prevesso e tyranno, Tem tegeito de veiáco, Lábia e fartum de cigano.

271 Cuia véia, quando é pôde, A gente quebra e imborca, Quem tem barba é bode macho, Só quem troce o rabo é porca, Se tu tá triste da vida, Pega uma corda e te inforca.

lorde - chique, elegante fartum - mau cheiro

272 Se o Cão intrô em teu coiro, Pricura pade e água benta, Que cum as contas do ruzaro, Te rezo em cruz pela venta, Te isgano e viro prás costa, A tua cara sebenta.

273 Quando um cachorro damnado, Late e morde de furto, E eu não arcanço o marvado, Pur meu chicote sê curto, Pego uma pedra, e o avanço, De uma pedrada eu incurto.

pade (padre) 274 Não pego em pedra, nem jógo, Qu’eu não treinei prá maluco, Meu miolo não é mole, Sô véio e não sô caduco, Valentão eu pego à unha, Metto na froja e machuco.

275 Eu derreto o teu miôlo, Numa panella de barro, Te atiro longe de mim, Cuma ponta de cigarro, Eu te pego e te reduzo, A puêra, a cinza e sarro.

froja (forja)

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65 276 Todo branquinho introsado, Na infuca é fraco e potrão, E quando a gente pricura, Dismancha dento da mão, Cuma bola que criança, Faz de leite de pião.

277 Preto brôco, fanho e torto, É bruto, tolo e ruim, É cuma um pau muito véio, Ruído já de cupim, Que posto inriba do fogo, Não deixa nada no fim.

potrão (poltrão) - covarde leite de pião - latex de um arbusto (Jatropha gossypiifolia), com propriedades terapêuticas

278 Seu Izidio, se você, Se zanga cum tal angu, Viro mula-sem-cabeça, Ô cobra surucucu, E te ingulo de um bucado, Cuma faz sucuruyú.

279 Sô tubarão, e a garganta, Tenho larga e muito iscura, Margúio e venho na tona, Tenha o má quarqué fundura, E corto a língua de preto, Cum o ferro da dentadura.

mula-sem-cabeça - concubina de padre que, depois de morta, vira mula e passa a assombrar os vivos surucucu - cobra peçonhenta de grande porte sucuruyú (sucuruiú) - sucuri

margúio (mergulho)

280 Sô barbero, e trago sempre, No meu borso um buticão, Tiro leite de baleia, De arraia tiro o isporão, E arranco, todos interos, Os dentes de um tubarão.

281 Eu viro purga e te mordo, No teu corpo a noite intera, Te importuno e tiro o somno, De damnação e cocêra, Inté que tu tome banho, De gorda ô mandipuera.

purga (pulga)

gorda - talvez erva-gorda (língua-de-vaca), herbácea (Talinum paniculatum) com propriedades terapêuticas

282 Seu Izidio, nesta marcha, Tudo entre nós se disfaz, Sem nunca mais dá um passo, Nem prá frente, nem prá traz, Inté que o Fute nos leve, Prá casa de Satanaz.

283 Tudo o que eu tinha no mundo, De mais amado e quirido, Cahio nas garra da sorte, Ficô de todo isquicido, De mais nada tenho medo, Porque me jurgo perdido.

284 Quem perde, assim, a isperança, E ao disispero se intrega, Feito iscravo da frqueza, De que não se disaprega, Acaba feito um tramboio, De uma paxão quagi cega.

285 Você falla deste modo, Porque não sabe do peso, De um pecado muito grande, A que na terra tô preso, Pur causo de uma infiliz, Que eu sipurtei no dispreso.

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66 286 Quem apanha uma bunina, No campo, di madrugada, Nunca deixa a pobrisinha, No chão frio abandonada, Purque o amô, quando morre, Só dexa cinza, e mais nada.

287 Trago no peito um diserto, Onde tudo é mudo e triste, E aonde, além de um suffrimento, A que ninguém mais risiste, Mora a dô, mora o trumento, Porque o prazê não isiste.

bunina (bonina) - flor de uma herbácea (Bellis perennis), ou de um arbusto (Mirabilis jalapa)

288 Nesta viola de pinho, Que suspiros manda ao vento, Quando, a gemê, ripinica, Canta um canaro cinzento, Não pode tê bom juízo, Quem tem vário o pensamento.

289 Eu padeço mudo e triste, Sem dizê nada a ninguém, Mais guardo um nome que mata, Cum seu dispreso e desdém, E uma sodade infinita, Dos carinhos de meu bem.

canaro (canário) 290 Muié e cuma arfinete, Que cae na areia e se some, E iscondida atraz da porta, Fica zombando do home, Quem conhece o que é muié, Pur ellas não se consome.

291 Intrei chorando na vida, Sem sorte desde o começo, Se suspiro é purque soffro, Se choro é purque padeço, De um soffrê que eu não pricuro, De uma dô que eu não mereço.

292 Muié é cuma a fulô, Que cum seu chêro invenena, A quem pur ellas se mata, Cheio de dô e de pena, Quem vae atraz de muié, Morre de gota-serena.

293 Sei que muié é um trumento, Que faz a gente soffrê, Sei que a muié nos martrata, Sei que nos faz padecê, Mais de muié eu nasci, Cum ella quero morrê.

gota-serena - zanga, ira 294 Toda muié jura farso, Trahe e mente sem riceio, Se o riso veve na bocca, Veve a mardade no seio, Nunca vi uma disgraça, Sem tê muié pelo meio.

295 A muié, cuma a rosera, Dá fulô, mais tem ispinho, Imbriaga e prende a gente, Cuma um bom copo de vinho, Na cadeia de seus braço, Na prisão de seus carinho.

296 A muié e o Capiroto, Nascêro no mesmo dia, Mais a muié nasceu ante, Da hora em que elle nascia, E quando elle sôbe della, Correndo della fugia.

297 Todo o má que a muié faz, É dá uvido a marmanjo, Pois elle é cuma o diabo, Inquanto ella é um archanjo, Deus, prá fazê a muié, Tirô o mórde de um anjo.

mórde (molde)

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67 298 Quem fez que o home pecasse, Mettendo a fruita na bocca, Cantando nos seus uvido, Com sua voz quagi rôca, Na toada da serpente, Foi a muié, qu’é uma lôca.

299 Quem é, porém, o curpado, Do má que isiste na terra, De andá assustando a gente, A morte, que a tudo aterra, Foi o home, que deu causa, À peste, à fome e à guerra.

300 Jurity não tem cabello, Nem muié tem consciença, Não tem tramenha, nem modo, Não sabe nada, nem pensa, E só parece uma santinha, Se tá na nossa presença.

301 Suspiro que vae e vorta, Dá-me novas do meu bem, Se tá morto, se tá vivo, Se tá nos braços de arguém, Se pur mim tá suspirando, Se atraz de mim ainda vem.

302 Seu coração ainda véve, Do amô que você lhe deu, Batendo pur sua causa, Porém o corpo, que é teu, Fosse, imbora, muito forte, De teu dispreso morreu.

303 Minha mãe, quando eu morrê, Quero i prá sala iscura, Onde meu bem, saluçando, Chora a nossa disventura, Quero achá no peito della, A pedra da sipurtura.

304 Eu cheguei na incruziada, Vi uma rosa no chão, Jogada na areia quente, Pur riba de um coração, Que incubria o nome della, Iscripto pur sua mão.

305 O riacho beja as pedrinhas, Junto à fonte, onde diságua, Murmurando uma cantiga, Cheia de dô e de mágua, Eu quiria sê as pedra, Prá que ella fosse a água.

iscripto (escrito) 306 Beija-fulô azulado, Bebeu o mé das fulô, Mais quando ella quis um bejo, Elle, de ingrato, avuô, Se eu pudesse, eu bibiria, Todo o mé que tá no amô.

307 No princípio o amô é um favo, Onde a inlusão faz o mé, Porém quando a ingratidão, Vem pirigosa e crué, O amô é cuma quinino, E amarga mais de que o fé.

avuô (voou) crué (cruel)

fé (fel) 308 A mareta beija a praia, Muita vez em cada hora, Geme, arricúa e suspira, Corre, iscuma e vae-se embora, Caminhando prá bem longe, Cuma meu bem tá agora.

309 Eu já fui cuma um rochedo, Na praia farto de bejo, Cantando junto com as onda, Na voz do meu rialejo, E hoje vivo de isperança, De dô, sodade e disejo.

mareta - pequena onda rialejo (realejo)

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68 310 Não há moça que não peque, Nem véia que não se babe, É regra bem cunhicida, É coisa que a gente sabe, Não há bem que sempre dure, Nem má que nunca se acabe.

311 Jurity canta sozinha, No verão do mez de agosto, E intristicida immudece, Logo dispois do Só posto, Cuma eu, que vivo mudo, De tanta pena e disgosto.

jurity (juriti) - espécie de pomba nativa do

cerrado 312 Quem prufia mata caça, Quem ispera sempre arcança, Quem no amô sente firmeza, Nunca perde a confiança, Apois só quando se morre, Perde de todo a isperança.

313 Pau seco que o cupim come, Já não pode infulorá, Vem o fogo, queima o tronco, E faz o pau disabá, Eu sô cuma a foia seca, Que o vento leva prô má.

prufia (porfia) - insiste infulorá - florescer

má (mar) 314 Meu bem jurô um dia, Que me dava a sua mão, E inquanto eu lhe dei as costas, Deu a ôtro o coração, Mais não dei parte de fraco, Nem morri por isso não.

315 Maria, luz de meus óios, Istrella da madrugada, Quando o calô de teus bejos, Traz minha arma abrazada, Sô cuma rosa que murcha, Na correnteza arrastada.

316 Quando vem o ridimunho, Nada no mundo sucega, Pedra que tá nas quebradas, Quando não rola, iscurrega, Eu vivo cuma a puêra, Que o ridimunho carrega.

317 Na furquia do caminho, Virei prá traz, e suspenso, Eu vi meu bem saluçando, Limpando os óios no lenço, E comprendi que no mundo, Mesmo morto eu lhe pertenço.

ridimunho (redemoinho) puêra (poeira)

furquia (forquilha) - encruzilhada

318 Quando o rio apanha a iscuma, E arrasta prá muito além, Vem a água e beja a praia, Num dismidido vae-vem, Eu quiria sê a areia, Prá sê bejado também.

319 Dos bejos dágua na areia, Sinto de longe o arrupio, Apois não são cuma os della, Que tem fogo em vez de frio, Se eu pudesse, eu era a iscuma, Prá que ella fosse o rio.

iscuma (espuma) dismidido (desmedido)

arrupio (arrepio)

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69 320 Muita vez levando a curpa, Levo fama sem pruveito, E acordo cheio de mágua, Sintindo um sonho disfeito, Quando um suspiro marvado, Me istrala dento do peito.

321 Quando meu bem, me chamando, Na jinella appariceu, Attirei um limãosinho, Que vortô, mas não bateu, Trazendo, pur seu mandado, Um bejo que ella me deu.

pruveito (proveito) limãosinho - talvez refira-se a limão-de-cheiro,

invólucro de cera fina cheio de água colorida e perfumada, de origem portuguesa, que nos Carnavais era arremessado nos foliões (até início do século XX)

322 Um bejo que ella me deu, Quando eu passava na ponte, Dexô um chero de rosa, Pelo caminho da fonte, E tudo o que ella me disse, Me disse que eu não te conte.

323 Me disse qu eu não te conte, Baxando os óios cum medo, Tanto quanto ella me disse, Lá pur ditraz do arvoredo, Só prá vê se eu sô capaz, De guardá quarqué segredo.

324 Prá guardá quarqué segredo, Dito com toda cautella, Lá pur ditraz do arvoredo, Pur quarqué moça donzella, Meu peito é um cofre fechado, E a chave tá na mão della.

325 Se a chave tá na mão della, E o segredo é divurgado, Na bocca de todo mundo, De canto em canto contado, É que teu peito não era, Um cofre de aço fechado.

326 Nunca andei, em minha vida, Em libambo ô arvoroço, Custume de fallá muito, Não tive, nem quando moço, Quando eu guardo argum segredo, Minha bocca é cuma um poço.

327 Se a tua bocca é um poço, A minha é cuma um butão, E eu não divurgo um segredo, Nem mesmo na cunfissão, Guardando tudo o que sabe, Bem dentro do coração.

libambo (lubambo, da língua africana quimbundo) - instrumento de tortura prendendo o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde saía uma haste longa que se dirigia para cima ultrapassado o nível da cabeça, e terminada por um chocalho ou uma trifurcação de pontas retorcidas

328 Gyra-Só sempre acumpanha, O Só, quando elle caminha, Mais eu vivo cuma a pomba, Que abandonada e sozinha, Suspira quexas amargas, No sarguero, à tardizinha.

329 Eu sô cuma o passo-preto, Que chora na sulidade, Quando o Só, ditraz da serra, Vae perdendo a claridade, Fugindo prá muito longe, De toda intriga e mardade.

gyra-só - girassol passo-preto (pássaro-preto)

sulidade (saudade)

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70 330 Eu sô cuma a sempre-viva, Que do pé foi apanhada, E veve de mão em mão, De vez em quando bejada, Numca murcha, nem se quexa, Nem suspira abandonada.

331 Eu sô cuma o cravo branco, Cuma a fulô da bunina, Cum que a mão de Deus infeita, A prantação da campina, E arretirada dos gaios, Morre de dô ripintina.

332 Não sô cravo, nem bunina, Nem fulô de prepeté, Que só tem vida e aligria, Alimentada no pé, Sempre andei só neste mundo, Vivendo cuma Deus qué.

333 Se eu vivo só neste mundo, Trazendo a sina iscundida, Eu não corro atraz da sorte, Nem da isperança perdida, Nem sei o que faz a morte, Que não me leva da vida.

prepeté - perpétua (?) 334 Todo o mundo tem furtuna, De andá juntinho dos seus, Só eu não tive a dita, De andá no meio dos meus, Mais nunca pidi a morte, Nem perdi a fé em Deus.

335 Se quem ama anda cançado, Quem acha a morte discança, Quero morrê, pois Maria, Não sahe da minha lembrança, Cum laço de fita verde, Dipindurado na trança.

336 Sei que o amô, quando é forte, Só quem é forte é que atura, E um laço de fita verde, Com treis dedo de largura, Numa cintura ruliça, Mata quarqué criatura.

337 Nos óios della tem fogo, Que a quarqué hora tá aceso, Queimando as grades dos braços, Onde eu há muito tô preso, Cumprindo a dura sentença, Lavrada pur teu dispreso.

338 De uma sentença de morte, A que o dispreso condemna, Muita vez a gente iscapa, Sem della cumpri a pena, Pricurando argum conforto, Nos braços de ôtra morena.

339 Quem trhae a muié que ama, Quando ella guarda firmeza, É um réo, não tem discurpa, Que justifique a fraqueza, E a lei do amô não primitte, Que a traição tenha defesa.

340 Na barra de um tribuná Que põe na forca um curpado, Não se dá pena de morte, Pur causo deste pacado, Pois quem pricura ôtro amô, Não deve sê castigado.

341 Tenho um ispeio na fonte, Nas águas onde eu me miro, Minina que tá bem longe, Sem se alembrá que eu diliro, Se a água fosse um correio, Eu te mandava um suspiro.

ispeio (espelho)

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71 342 Não faço dágua correio, Nem cum ella eu fiz contracto, Mais mando, em vez de um suspiro, Minha feição, num retrato, Cum laço de fita verde, Prifumadinho de istracto.

343 Quando eu vejo o céo azú, Cheio de nuve amarella, E de istrellinha piscando, Que nem luizinha de vella, Só me alembra das faíscas, Que eu vejo nos óios della.

istracto (extrato) - perfume forte, concentrado 344 Nos óios della tem fogo, Da istrella da madrugada, Quando apparece briando, Logo ao raiá da arvorada, E a bocca della é vermeia, Cuma a cravina incarnada.

345 O fogo dos óios della, Muito embora queime pôco, Vira o juízo, e faz logo, Quarqué christão ficá loco, Seus dente são tão arvinho, Cuma bagaço de côco.

346 Meu bem tem a voz tão doce, Cuma a voz da Jurity, Quando canta na horinha, Em que o Só tá prá sumi, Na feição tem dois pontinhos, Da cô do jiquirity.

347 Jiricó nasce na pedra, Cresce, e a raiz vae no chão, E aguenta sempre verdinho, Todo o rigô do verão, Mesmo assim é o amô della, Que cresce em meu coração.

jiquirity (jiquiriti) - trepadeira (Abrus precatorius) cujas pequenas sementes, vermelhas com manchas pretas, são altamente venenosas

jiricó (jericó) - espécie de erva (Selaginella) com propriedades terapêuticas

348 Eu tenho n’arma um trumento, De um disispero prufundo, Que me faz soffrê dez annos, Na passage de um sigundo, Do má mais forte da terra, Da dô maió deste mundo.

349 Não há nada tão cheroso, Cuma seja uma fulô, Nem coisa que queime tanto, Cuma do fogo o calô, Nada dóe tanto na vida, Cuma a treição de um amô.

treição (traição) 350 A fava da catingueira, Quando istralla na chapada, Não dá um istrallo tão grande, Cuma a sodade abrasada, Que eu sinto, quando me alembra, Dos braço de minha amada.

351 Eu prantei na terra seca, Um pé de côco dendê, Mais Maria, de priguiça, Dexô o coquero morrê, Assim também foi o amô, Que eu sintia pur você.

catingueira - árvore (Caesalpinia pyramidalis) característica da caatinga, de pequeno porte, com sementes contidas em vagens istralla (estala)

côco dendê - palmeira (Elaeis guineensis) alta e elegante, de cujos frutos extrai-se o azeite de dendê

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72 352 A onda bate na praia, E vorta sempre gemendo, Deixando a areia moiada, E o vento nella batendo, Se tu me foge e me dexa, Eu passo a noite soffrendo.

353 Soffrendo, imbora, de noite, Todo o má da tua farta, Velando, pur tua causa, Eu te mando, ante que parta, Mil abraços num invellope, Cem buquinhas numa carta.

buquinhas (boquinhas) - beijinhos 354 Prá duença que me mata, Vendo Maria sozinha, Só mesmo nos braços della, Eu pude achá a meizinha, De um suadô de abraço, De um lambedô de buquinha.

355 Fulô de inhame é cinzenta, E é amarella a de abobra, Tudo o que farta à muié, Deus deu ao home de sobra, Eu não sei se já defferença, Entre a muié e a uma cobra.

356 Quando a cobra sente a gente, E o bote vae perparando, Eu me alembro da muié, Quando nos vae abraçando, A cobra mata mordendo, E a muié mata bejando.

357 O buritysero mais arto, Que no céo topa cum o vento, Não vae da artura da torre, Da paxão e do trumento, Qu’eu suffri pur essa ingrata, Que robô meu pensamento.

buritysero (buritiseiro) - elegante palmeira (Mauritia flexuosa) com até 25 metros de altura, que viceja em terrenos alagados, do qual aproveita-se tudo: - o caule, como madeira - as folhas, para cobertura de casas e ranchos - as fibras dos talos das folhas, para fabricação de redes, cestos, bolsas, esteiras etc - os nutritivos frutos, para doces e sorvetes, e extração de óleo na língua indígena, burity significa "árvore da vida" - considerada sagrada por dela se fazer tudo o que é necessário para sobrevivência: casa, objetos e alimentação

358 A nuve branca que eu vejo, No céo correndo e assubindo, Corre menos que a sodade, Que eu vivo sempre curtindo, De uma muié sem intranha, Que de mim veve fugindo.

359 Cuma uma cruz num rusaro, Em que se amarra um cordão, De seda, prendendo a image, Que iscuta a nossa oração, Della eu carrego um retrato, Nas cordas do coração.

intranha (entranhas) rusaro (rosário)

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73 360 As cordas do coração, De tantas máguas sintidas, De disgostos turturadas, De um disingano firidas, Dos gorpes da ingratidão, Eu sinto, há muito, partidas.

361 Na cruz dos braços ruliços, De uma ruliça morena, Se de amô tenho argum crime, Que a padicê nos condemna, Eu quero, prá meu castigo, Cumpri cem annos de pena.

362 Se há nos braços de Maria, Uma prisão que Deus fez, Em vez de sentença leve, Da pena simples de um mez, Eu quero sê condemnado, Pur toda a vida ao xadez.

363 Seus óios, cum mais nigrume, Do que nas azas da inhúma, Fura tanto cuma o aço, Das pontas de uma barrúma, Qundo não são cuma o pello Das favas da sumaúma.

inhuma (anhuma) - espécie de ave, de habitat

aquático barrúma (verruma)

364 Quem do prazê ganha a serra, Do amô arcançando o cume, Incontra, às vêzes, na queda, Do disingano um cardúme, Entre os dispáros de um bejo, Nas isplusões do ciúme.

365 Do livro grande do amô, Risquei o meu juramento, Quando sinti que a muié, Que amava cum sentimento, Tinha promessas na bocca, E um punhá no pensamento.

isplusões (explosões) punhá (punhal) 366 Quando do amô que me prende, Eu me vi livre das peias, Puz na cova da paxão, Letrero, inriba da areia, Na lôsa de meus pezares, Cum sangue das minhas veias.

367 Cum sangue de minhas veias, Tirado cum todo jeito, Sobre a cova da sodade, De um sonho quagi prefeito, Dexei iscripto o meu nome, Na pedra fria do peito.

lôsa (lousa) - lápide de sepultura 368 Na pedra fria do peito, Onde eu gravei a feição, Da muié, que foi a santa, De minha fé e devoção, Ficou gravada a figura, Da cruz de minh afflicção.

369 Da cruz da minha affrição, Eu sinto os cravos e o peso, Iscardando os meus sintidos, Nas chammas de um fogo aceso, Pelas mãos de disalento, Nas fornaias de um dispreso.

feição - rosto iscardando (escaldando)

fornaias (fornalhas)

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74 370 Nas fornaias de um dispreso, Minha paxão virou pó, Qual foia seca lançada, Aos raios quentes do Só, E eu suffri risignado, Mais paciente que Jó.

371 Mais paciente que Jó, Sô cuma a istrella sem norte, Vagando intregue aos capricho, Das tempestades da sorte, Cuma luz dos óios velada, Pela nublina da morte.

nublina (neblina) 372 Cum a luz dos óios velada, Eu sô cuma a bananera, Que só dá um cacho, e morre, Dicepada na tocêra, Ôtra vez mais, nimguém ama, Quando já amô a premera.

373 O amô é cuma a furtuna, Que só uma vez apparece, E quanto mais é pruibido, Mais toma vurto e mais cresce, Quem amô uma muié, Nunca mais della se isquece.

dicepada (decepada) na tocêra (touceira) 374 Nunca mais della se isquece, Nem que a inlusão se disfaça, Pois o amô, cuma a pontada, De uma dô que nunca passa, É viço mais pirigoso, Do que o viço da cachaça.

375 O amô é cuma um baraio, Que pelas cartas insina, A adivinhá muita coisa, E a cunhecê nossa sina, Mais se uma vez dá a sorte, Da ôtra vez trahe e assassina.

viço (vício) 376 Amô, muié e baraio, Tem a mesma qualidade, O amô traz disassocego, E o baraio inflicidade, E a muié, mesmo drumindo, Veve a sonhá cum a mardade.

377 A muié, cum suas manhas, A todo mundo ingazópa, E se acauso um home bobo, Cum muié veiáca topa, Ella é dama de trumpho, E faz delle um rei de copa.

inflicidade (infelicidade) ingazopar (engazopar) - enganar, mentir,

lograr 378 O trem de ferro, que corre, Na istrada, a todo momento, Não corre inriba dos trios, Mais do que o meu pensamento, Cum o fogo de um disispero, Na istrada de um suffrimento.

379 Minina, si tu quisé, Me mandá, lá do caminho, Num ramaiête de sonho, Um butão de teu carinho, Manda, cum sello de um bejo, Nas azas de um passarinho.

trios (trilhos) ramaiête (ramalhete)

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75 380 Nas azas de um passarinho, Que vôa alegre e não cança, E assubindo pelos ares, No rumo do céo avança, Arricibi, numa carta, Treis bejos della em lembrança.

381 Tenho no peito os artares, De uma Capella incantada, E em cada torre há dois sino, Chorando, desde a arvorada, Com drobes de ais e suspiro, A ozença de minha amada.

arricibi (recebi) drobes (dobres, toques de sino) 382 Eu sô aquelle que andava, Ditraz do muro iscundido, Sortando, quando iscutava, Da tua arma o gimido, Cuma um lião ciumento, De vez em quando um rugido.

383 Cuma um lião ciumento, Que é Rei, e merece a crôa, Rugindo de disispero, Pur não ter perto a liôa, Pur ti sô cuma a curtiça, Nas ondas boiando atôa.

384 Nas ondas boiando atôa, Dos teis óios aos lampejos, Quero sê ispatifado, Nas ancias de meus disejos, No rochedo de teus braços, Nos cachopos de teus bejos.

385 No arricife de teus bejos, Junto aos pharós de teus óios, Quando me sinto apertado, Do disgosto entre os abróios, Pricuro em tuas promessas, Disvio contra os iscóios.

cachopos - baixios, escolhos abróios (abrolhos) - originalmente “abre os

olhos”: que o navegador prestasse atenção aos baixios, escolhos, recifes, para evitar naufrágio

386 Quando eu bati já sem leme, No rochedo de teus braços, Sinti morto todo o corpo, E o coração aos pedaços, Lançado pur teus disejos, No furô de teus abraços.

387 No dia em que, pur teu mando, Intrei triste em tua casa, Tendo a arma feita em cinza, Pur um disejo que abrasa, Sinti no peito a turtura, Do calô de um ferro em brasa.

furô (furor) 388 O calô de um ferro em brasa, É mais frio de que o gelo, Quando a tua bocca ardente, Vem pregá na minha o sello, De uma buquinha, nas sombras, Da matta de teus cabellos.

389 Na matta de teus cabellos, Onde, em lugá de verdura, Há seda feita retoz, Franjada de furmuzura, Isbarro, sonho e me perco, Cuma um cego em noite iscura.

retoz (retrós) - fios de seda torcidos, usados

como ornamento de roupas furmuzura (formosura)

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76 390 Cuma um cego em noite iscura, Tropeçando impaciente, Nos pidriguios da sorte, Que incontro sempre na frente, Só tu me guia nas trevas, Cuma a istrelle do Oriente.

391 Cuma a istrella do Oriente, No céo azu de meu sonho, Quando em teu rosto moreno, Meus óios tristes não ponho, Na luz de meu pensamento, Elle apparece risonho.

392 Risonho assim cuma o Só, Que sae no céo dimanhan, Me diz teu rosto moreno, Corado cuma a ruman, Que uma arma cuma a tua, É das istrellas irman.

393 Quem é irmão das istrellas, E andando no mundo erra, Cuma a pedra que disaba, Rolando do arto da serra, Cahio do céo pur discuido, Cuma a chuva cae na terra.

irman (irmã) 394 Cahio do céo pur discuido, Pondo a terra toda em risco, Cuma cae em piquizero, Quarqué pedra de curisco, Ficando, prá toda a vida, Perdida dentro do cisco.

395 O que disejo prá mim, Prôs ôtros também eu quero, Meu amigo, mais respeito, Quando a gente falla sero, Apois não quero mandá, Um home prô çumitero.

pedra de curisco (corisco) - meteorito 396 Nunca andei dentro da toca, Cuma paca, acocorado, Não toque, se não intende, Do ticido do riscado, Que o risco que corre o pau, Corre também o machado.

397 Eu sô pedra de amolá, Que disgasta aço mussiço, De preto que tem mandinga, Urucubaca ô feitiço, Pego no chifre e me atrepo, De um pulo só no toitiço.

mussiço (maciço)

urucubaca - azar, infelicidade toitiço - região da nuca, parte de trás do pescoço

398 Não sô boi, não sô cavallo, Nem preto de teu quilombo, Na língua ninguém me pega, Ninguém me atrepa no lombo, Pois si tu tocá no istribo, De um pulo só dô-te um tombo.

399 Ando atraz de um porco véio, Que há muitos annos ingorda, Que ronca, se tá drumindo, Que fussa, à hora que acorda, E imbora tu istribuche, Ninguém te livra da corda.

quilombo - lugar onde se refugiavam escravos fugidos

da corda - de ser enforcado

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77 400 Tenho um breve milagroso, Que me deu meu véio pae, Se à treição arguém me prende, O plano góra, e não vae, Apois rezo, e derepente, De meu purso a corda cae.

401 Contra feitiço de preto, Queimo incenso e imprego aio, Cum sá, gingibe e pimenta, Que no azeite ismagaio, E castigo o feiticero, Cum reio duro e chamfaio.

breve - oração milagrosa, trazida ao pescoço dentro de um saquinho, para afastar o mal góra (gora) - não dá certo, falha

sá (sal) reio (relho) - chicote chamfaio (chanfalho) - faca ou espada velha e sem corte

402 Num branquinho discarado, De venta grossa e vermeia, Quando se faz de ingraçado, Metto logo um nó de peia, Dô treis duzas de parmada, E uma puchavante de ureia.

403 Sapo-boi do Brejo-Grande, Cururu preto do diabo, A quem Deus não quiz dá dente, Nem mesmo língua, nem rabo, Se tu não entra nos exos, De teu canastro dô cabo.

duzas (dúzias) puchavante (puxão) de ureia (orelha)

cururu (sapo-cururu) - espécie de sapo de grande porte de teu canastro dô (dou) cabo - mato-te, espanco-te

404 Não supponha, seu Izidio, Que eu seje arguma lagarta, Cum que quarqué anúm branco, Quando tem fome, se farta, Foge de junto de mim, Antes que um raio te parta.

405 Cara-dura arrenegado, Do nariz de papagaio, Não temo o teu arreganho, Deste cavallo eu não caio, Apois trago na cabeça, Iscundido, um para-raio.

406 Branco porco e muambeiro, É cuma vacca arvaçan, Que se isquece do mijólo, No currá, toda a manhan, E só vorta quando apanha, De cipó de macunan.

407 De cobra véia que eu vejo, Meio dia, quando eu saio, Rolando na areia quente, No solão do mez de maio, De cacete eu quebro a ispinha, De faca corto o chucaio.

muambeiro - contrabandista arvaçan (alvaçã) - bovino de côr quase branca cipó de macunan (cipó-mucunã) - olho-de-boi, cipó (Dioclea grandiflora) cujas sementes tem propriedades terapeuticas

chucaio (chocalho - da cascavel)

408 Sô gavião do bem preto, Que faz tocaia na moita, Isperando a pomba arisca, Que no balsero se acoita, E ispatifo em minhas unhas, Quarqué galça branca affoita.

409 Sô cuma o condô que arcança, Das serras artas o pico, Quando avanço noutro bicho, Vincido ô morto não fico, Do gavião quebra as azas, E arranco as unhas e o bico.

acoita (esconde) galça (garça)

condô (condor)

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78 410 Sô micuim do moiado, Do capim mucho do rio, Me isparro no côro fino, Da tanga do teu vazio, E indoideço de cocera, Quarqué um cabra vadio.

411 Sô broca que fura canna, Sô serra-pau, e não caio, De riba de um pau sem foia, Quando serro quarqué gaio, Se amunto em tua cacunda, De riba della eu não saio.

micuim - larva do carrapato estrela isparro (espalho) vazio - baixo ventre cocera (coceira)

serra-pau - besouro que serra ramos de árvores, e deposita seus ovos nos ramos caídos ao chão

412 Não sô fio de guariba, Nem sô netto de mucura, Cuma onça eu sangro e matto, E como toda a fussúra, Dispois de bibido o sangue, Qunente, a iscorrê da sizúra.

413 Eu nunca incontrei um preto, Que cum christão se pareça, Que prete prá arguma coisa, Ô arguma coisa mereça, Pois todos são paricido, Cuma mula-sem-cabeça.

guariba - espécie de macaco mucura - gambá fussura - fissura sizúra (sisura) - ferimento, corte

prete (preste) paricido (parecidos)

414 Eu nunca incontrei um branco, Que não fôsse uma garapa, Ô não fôsse a mesma coisa, Que uma purga de jalapa, E nernhum branco no mundo, De uma tá regra me iscapa.

415 Patativa pula e passa, Pelo pé da pitombera, Preá pisunha a picada, Porco pisa na ipuera, Preto pançudo e impambado, É paiaço e diz asnera.

garapa - no sentido de algo excessivamente doce jalapa - arbusto (Jatropha gossypiifolia) cujas sementes são um purgativo drástico

patativa - espécie de pássaro, de canto melodioso pitombera (pitombeira) - árvore (Talisia esculenta), cujos frutos são muito apreciados ipuera (ipueira) - terreno alagado, represa natural ou lagoeiro impambado (empambado) - enfezado, anémico, pálido

416 Branco bobo e barrigudo, Cuma biscaia barata, Quando bebe no barrero, Ô no baxão bota a pata, É botocudo e buiente, Só tem bestera e bravata.

417 Gallinha, gallo, gaiola, Gato, gaveta e gamão, Guará, garoto e gamella, Gamellera e gavião, Preto véio, ingrato e gago, Tem geito de um guaribão.

botocudo - de hábitos e comportamento rudes, toscos buiente (bulhento) - quem faz bulha (barulho, desordem)

guaribão - bugio, espécie de macaco guará - bela ave de habitat aquático, cujos adultos exibem bela plumagem avermelhada

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79 418 Lua, lama, leite, lago, Lagoa, limo e ladera, Lima, laranja e limão, Lenço, liga e lavandera, Branco liso e linguarudo, Parece vacca leitera.

419 Samba, sacco, soco, sujo, Saroê, sarto e sordado, Sacarroia e sariema, Surrão, serrote e serrado, Preto sonso, surdo e fanho, Parece um sino rachado.

saroê (saruê) - gambá-de-orelha-preta

sacarroia (saca -rolha) surrão - bolsa ou saco de couro, ou pessoa muito suja

420 Melão, mutuca, mutamba, Marimba, mez e machado, Macambyra e maniçoba, Mardicto, mau e marvado, Voz de branco é cuma um guincho, De um macaco aguniado.

421 Tatayra e truvuada, Taca, trumbeta e tapera, Timbó, tinguy e tapage, Trigue, tatu e panthéra, Preto incuido e ingiado, Tem geito de uma megéra.

mutamba (mutambo, camacã) - espécie de árvore (Guazuma ulmifolia) com propriedades terapêuticas maniçoba - prato à base de folhas de mandioca trituradas e longamente cozidas

tatayra (tataíra) - espécie de abelha timbó, tinguy (tingui) - cipó (Serjania lethalis) tóxico cujo suco, jogado nas águas, atordoa e mata peixes (uso em pesca) tapage (tapagem) - curral ou barragem feito no rio para captura de peixes

422 Dado, dedo, dança e data, Didal, dictado e dixóte, Dô ao Demo a noite e o dia, Dô ao Diabo o dom de um dote, Se eu não lhe dé, desta monção, Um insino neste pichóte.

423 Eu não nasci nesta terra, Nem deixei cá meu imbigo, Dexemo de intimidade, Se qué fugi do castigo, Apois não gosto de preto, Ne sô amante do artigo.

didal (dedal) dixóte (dichote) - gracejo, zombaria pichóte (pixote) - novato, inexperiente desta monção - nesta oportunidade

424 Cara de réo das prufundas, Se a me offendê tu te astreve, Arritira e ingole o dito, Ante que o Diabo te leve, Apois resposta a um insurto, É a minha faca quem iscreve.

425 Preto cambaio dangóla, Tem geito de vacca tonta, De um preto eu não me arriceio, Não temo, nem faço conta, Apois teu ferro em meu coiro, Parte o cabo e quebra a ponta.

cambaio - trôpego

ferro - faca

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80 426 Cara de porca do inferno, Phantasma, peste manguda, Se tu não ingole o dito, E o teu Saõ Braz não te ajuda, Vô-te ingasgá na garganta, Meu punhá de ponta aguda.

427 Lençó nojento de inferno, Cabeça seca de birro, Perna torta de jabota, Titella maga de guirro, Se tu avança no meu rumo, Faço de ti pó de ispirro.

manguda - lenda maranhense originada de farsa idealizada e executada por contrabandistas ao final do século XIX para afastar policiais, permitindo o desembarque ilegal de mercadorias, o bairro dos Remédios passou a ser ponto de aparições de um fantasma, logo batizada de Manguda, por trajar roupão alvo, de mangas muito largas e compridas, com rosto dissimulado por máscara, e da cabeça saindo uma nuvem de fumaça a farsa foi oportunamente revelada ...

lençó (lençol) birro - chapéu ou barrete vermelho jabota - fêmea do jabuti pó de ispirro (espirro) - rapé (fumo moído)

428 Caxa dágua iscummungado, Se teu pae, pur sê mufino, Não te poz côbo na língua, No tempo de piquinino, Vira de frente, e me incara, Que eu vô te dá um insino.

429 Quando um cão corre latindo, Me incontra sempre de testa, Reza o Credo e te cunfessa, Neste instantim que te resta, Que é hoje o úrtimo dia, que o Diabo te vê na festa.

mufino (mofino) - infeliz, acanhado, covarde, adoentado côbo (côbro) - termo, fim, limite

430 Mizéra branca que o Demo, Fez nascê da Damnação, Na noite de sexta-feira, No rescardo de um fugão, Tira a faca da bainha, Que eu não ataco à treição.

431 De vazias de teu jeito, Não temo nem de noventa, Apois preto cuma tu, Quando a guinchá me apuquenta, Ispremo e mato de arrôcho, De murro e soco na venta.

mizéra (miséria) apuquenta (apoquenta) - aborrece, chateia

arrôcho - aperto 432 Meu Deus do Céo, perdoae-me, Que eu já não sei o que digo, Livrae-me deste mardicto, Me dispensae do castigo, Pois é o primeiro cadelo, De que eu vô tirá o figo.

As violas emmudeceram de súbito, e um reboliço violento agitou intensamente a multidão. Uma gritaria ensurdecedora, pontilhada pelos estertores histéricos das mulheres assustadas, estabeleceu no auditório uma confusão diabólica. No meio desse barulho, que tomara proporções de um grande acontecimento, ninguém podia entender-se. Os mais covardes corriam, sem conhecer os motivos de uma tal agitação, e os mais

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81 corajosos e calmos penetravam no tumulto, indagando pressurosos das causas que o produziram.Vários grupos se formavam e desfaziam depois para se reconstituirem logo após, num frenezi delirante. Braços subiam ao ar em gestos desordenados, e as discussões prosseguiam, sem que ninguém se entendesse. Era uma tempestade num copo. Cessada a agitação passageira, os ânimos exarcerbados acalmaram-se pouco a pouco, e informações mais precisas trouxeram alguma luz sobre a origem do tumulto. É que os dois adversário na luta do Desafio, reciprocamente maguados e espicaçados no orgulho que se alicerçava na fama de que faziam alarde, haviam attingido um ponto no terreno do ataque, que o desforço pessoal se lhes afigurava, na cegueira da exaltação a que foram gradualmente arrastados, a única solução razoável para por termo à pendencia. E na desorientação a que o amor-próprio ferido na longa luta os lançara, não trepidaram, no momento em que a fermentação havia subido ao auge, em por em prática o instinto que a imaginação escaldada transformara em decisão. Mais sensível e exaltado, talvez, que o seu adversário, Collete havia perdido o domínio de si mesmo, antes que o companheiro mostrasse disposição aggressiva se não na própria defeza. De um tal estado de ânimo resultou, naturalmente, o seu gesto, investindo furioso, armado de um facão americano, que sacara da bainha, contra o ouzado contendor, que, prevendo, certamente, um semelhante desfecho, em face das directrizes que a luta havia tomado, puzera-se rapidamente em attitude de defeza, servindo-se do terçado ponteagudo que lhe pendia da cinta. A intervenção immediata da assistencia, no entanto, evitou, ainda a tempo, o desastre que se esboçara imminente. Separados os Cantadores, irritados pela rivalidade que se estabelecera entre ambos, serenou o ambiente. Era, porém, dia claro de uma segunda-feira de junho. Havia acabado a festa. E as raparigas saudosas recolhendo-se aos seus lares, despedindo-se com tristeza das collegas que partiam, lançavam ternos olhares aos sertanejos esbeltos que lhes deixaram no espírito os espinhos cruciantes de uma inquietação passional. Pelas estradas em fora alongavam-se avalanches de romeiros que partiam, em filas que caminhavam medindo com passos tardos as asperezas do solo, ao lado de várias outras cavalgando somnolentas pelo atalho das quebradas e pelas matas ínvias. Uma quietação somnolenta como os festeiros exhaustos cahira sobre a Fazenda, ainda há pouco agitada em tumultuária alegria. Nédias vaccas separadas das crias que reclamavam o seu quinhão matinal do leite que transbordava das tetas entumecidas pelo accumulo da noite, mugiam chamando os filhos que respondiam inquietos, recolhidos ao chiqueiro, de onde não podiam sahir, mau grado o esforço empregado. E o dia se adiantava sem que alguém viesse ordenhal-as, aumentando, a cada passo, a sua soffreguidão pela approximação dos bezerros. A Fazenda inteira dormia numa quietude beatífica, como se os seus habitantes houvessem sido atacados de profunda lethargia. Apenas a voz distante de um Cantador que partia, subindo a fralda da serra, quebrava o morno silêncio que o Sol de junho dourava em fulgurações de ouro líquido derramado sobre as cousas. E a sua voz melancholica que os echos multiplicavam numa repercussão atroante chegava até à Fazenda, mesclada de nostalgia e repassada de saudade: ínvias - onde não há caminhos

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82 Já vae o dia bem arto, E há muito callô-se o gallo, Minina que ficou longe, Daqui da serra eu te fallo, Prá te dizê que mi ispere, Na festa de São Gonçalo.

No coração de quem parte, Tendo a ôtro a arma presa, Pur motivo da sodade, Há mais amô e firmeza, Quem fica sempre disfarça, Quem parte soffre a tristeza.

Quem parte, parte saudoso, Purque dexa a quem qué bem, Quem fica, fica callado, Sem dizê nada a ninguém, Quem fica chora e não parte, Porém quem parte ainda vem.

Adeus, que eu parto, morena, Parto, purque não sô fôrro, Eu só vô purque me levam, Purque de amô eu não corro, Eu parto, mais sei que vorto, Purque sem ti sei que morro.

São Gonçalo - santo português (falecido em 10 de janeiro de 1259, tido por casamenteiro); a dança em seu louvor realiza-se em Portugal desde o século XIII; chegou à Bahia no início do século XVIII trazida por fiéis oriundos de Amarante; dança-se em frente ao altar do santo, homens e mulheres formando duas filas opostas, orientadas pelo guia e contra-guia, consulte http://www.lucianoqueiroz.com/sao%20goncalo.htm http://www.uepg.br/revistafolkcom/anteriores/revista06/ENSAIO_FOTOGRAFICO.htm http://www.rosanevolpatto.trd.br/dancasaogoncalo.html ver “Festa de São Gonçalo - Quadros Authenticos do Folk-Lore Nacional”

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FESTA DE SÃO GONÇALO Quadros Authenticos do Folk-Lore Nacional

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BURITYRANNA BURITYRANNA, situada na linha divisória entre a planície e a floresta, é talvez a mais pitoresca e saudável das povoações nordestinas. Affastada da cidade (São Luís) cerca de oitenta kilometros, destaca-se, focando ao sol o seu casario de palhas, numa elevação do terreno. Servida de um clima ameno e bafejada amplamente pelas rígidas correntes com as quaes os ventos geraes sacodem copas e frondes, imprimindo movimento à cabelleira revolta das florestas e das mattas, é o lugar mais procurado dessa zona sertaneja. Dahi o desenvolvimento que tomou em poucos annos, passando da posição de fazenda solitária, cheia de sombra e tristeza, à de centro populoso, cheio de vida e de alegria. Quem percorre a longa estrada que conduz o viajante da Capital do Estado à cidade nordestina, em cuja circunscrição ergue-se o lindo perfil desse refúgio saudável e transbordante de encantos, atravessa a rua central da formosa povoação, descambando lentamente por um declive suave tapetado de lajedos, para as margens arenosas de um riacho de águas clara de que a população se abastece. O espetáculo maravilhoso que se desdobra ao olhar dos que do alto do plano contemplam e examinam a paisagem de um lado e outro do leito da corrente transparente como o cristal em fusão, faz suppor que um jardineiro de incomparável perícia e profunda habilidade plantara um jardim edenico, regado de poesia e povoado de sonhos, nas margens paradisíacas dessa Castalia perdida nas aspereza das selvas. A vegetação luxuriante e pomposa, de variados matizes, que viceja exuberante seguindo o curso das águas, encerra, effectivamente, na harmonia natural de suas disposições, uns traços de arte hellenica, alguma cousa de esthetico que traz à objectiva de nossa imaginação, alcandorada num êxtase de contemplação do passado, o perfil dos artistas gregos dando vida aos corpos brutos ao toque maravilhoso de seu buril encantado, e semeando bellezas no selvagismo inclemente das regiões mais inhospitas e dos rincões mais adustos. Bacabeiras alinhadas em longas filas symetricas, balouçando a coma verde às carícias do nordeste, impregnado do aroma das madre-silvas viçosas que bordam toda a planície, alternavam-se dispostas em espaços regulares que pareciam medidos pela exactidão de uma escala, com extensos alinhamentos de burityseiros em flor expondo aos raios solares, em torno do entroncamento de suas copas frondosas, os seus cachos amarellos como feixes de topázios. Burityrannas esguias dispostas na mesma ordem, formando alas immensas nos intervallos deixados por várias outras palmeiras, apontavam para o céo, affagadas pelas brisas, suas palmas verde-gaio, de cujas extremidades pendiam ao sabor dos ventos, como espheras alongadas, caprichosos ninhos tecidos de talos de capim seco e fibras de várias plantas pelo intelligente xéxéo, mestre alado em construções de semelhante jaez, e ostentavam os seus cachos de cor vermelho-lustrosa à claridade ambiente, contrastando com a verdura do fundo amplo do quadro. E como se a mão divina que imprimio nessa paisagem o culto da perfeição pretendesse completal-a nos seus detalhes mais íntimos, expurgando-a de defeitos e approximando-a ainda mais da expressão real do sublime, boninas brancas e róseas, bugarys alvinitentes e papoilas encarnadas cobriam o solo e os troncos, espargindo pelo ar, como uma névoa diffusa, de vapores Buritirana - local ainda não localizado Castalia - (mitologia grega) ninfa que fugiu ao assédio de Apolo, sendo transformada numa fonte ao pé da montanha do Parnaso em Delfos; consagrada às musas, suas águas têm o poder de inspirar os poetas adusto - queimado, abrasado, ardente bacabeira (bacaba) - palmeira (Oenocarpus bacaba), da qual aproveita-se a madeira, folhas e frutos Burytiranna (Buritirana) - palmeira (Mauritia Armata), de tronco espinhoso, uma espécie de buriti xéxéo (xexéu) - japim, pássaro de bela plumagem negra e amarela, de canto muito variado boninas - planta de flores modestas e delicadas bugarys (bogaris) - arbusto (Jasminum sambac) de flores brancas e aromáticas

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85 subtilíssimos, uma onda embriagante de effluvios imponderáveis. Além, na curva distante, formando bosques espessos que davam à correnteza amena suavidade de sombras que a luz do sol não lograva atravessar, erguiam-se altos salgueiros de amplas cúpolas hemisphericas desafiando as rajadas da nortada dominante, e salpicadas em torno de milhões de pontos rubros de seus fructos coloridos. Os sofreus amarellados, de pés e bicos sanguíneos, os sabiás pardacentos, as arapongas ligeiras de vibrações quazi metálicas, os xéxéos e os xico-pretos pulando de galho em galho e deglutindo gulosos os fructos adocicados, cantavam em notas harmonicas como num coro regido pela batuta educada de um dirigente invisível, um hymno à natureza. E mais além reunidas em numeroso congresso, a que múltiplas famílias accudiam pressurosas logo ao primeiro chamado, várias dezenas de inhumas, soltando à copa das frondes modulações afinadas que constituiam um conjuncto de incomparável harmonia, impressionavam o ouvido com a illusão doce e suave de uma orchestra organizada de modernos instrumentos, de cujas notas vibrantes se destacavamo no ar, desde os rufos dos tambores associados ao bombo e ao estalejar do clarim, até o choro dolente da flauta melodiosa casado aos solos estrídulos do clarinete sonoro. Ao longe, nos terrenos ombrejados, que o braço do homem inculto que a natureza educou, com cyclopica energia arroteou pelos golpes de seu machado acerado e arou com o auxílio da enxada cobrindo-os de plantações, maduros cannaviaes occultado o pardo-escuro do massapê pegajoso numa vasta superfície de cerca de três kilometros, enchiam o azul do espaço com os seus pendões côr de rosa ondulando brandamente na extremidade das flexas, convidando o lavrador ao trabalho da colheita.

Leonor Da Re Lopes junto a um carro de boi

sertão de Alagoas, próximo a Delmiro Gouveia (Dezembro 2003) effluvios (eflúvios) - aromas, perfumes salgueiros - com tal nome e características, espécie de árvore não identificada sofreus (sofrês) - corrupião ou corrupião, pássaro de bela plumagem negra e laranja, bom imitador do canto de outros pássaros xico-preto - chico preto, cupido, graúna ou melro - grande pássaro, de bela plumagem negra e belo canto inhuma - anhuma, inhaúma - grande ave que nidifica em regiões alagadas massapê - tipo de solo argiloso e fértil

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86 Pesados carro puxados por duas juntas de bois, apontados para o ar os seus compridos fueiros destinados a prender a grossa lenha arrastada para antiquadas fornalhas do fabrico de assucar, firmados nas cantadeiras de hastes de maniçoba collocadas sobre o eixo por baixo das chumaceiras, passavam chiando alto em tons monótonos e tristes, espalhando atraz de si bastas nuvens de poeira e deixando impressos na areia os traços de suas rodas. E dois carreiros robustos, de estatura agigantada e de bustos descobertos expostos às soalheiras, instigavam os bois mansos que conduziam o carro com vergônteas flexíveis de mororó e mufumbo, aboiando aos seus ouvidos numa toada jucunda que hypnotisa as malhadas fazendo que o gado manso siga de perto o vaqueiro no mesmo passo do guia. O mês de Junho friorento, innundado de luar e rico de esperanças, entrara farto de messes e abundante de alegrias. Vinha risonho e tranquillo, benigno e convidativo, dispondo para o trabalho e animando aos regozijos de que é, para os sertões, a quadra pródiga e feliz. Os paus-d’arco enflorados e risonhos temperavam a aridez e a aspereza das quebradas já crivadas de secura e folhas que descoravam, com a eclosão exuberante de milhões de suas flores violetas e amarellas, cobrindo com profusão o esqueleto de seus galhos despidos da coma verde que os envolvia ainda há pouco. E as barrigudas, nas mattas, exibindo, altaneiras, suas hastes imponentes de regular forma cônica, juncavam o chão com a brancura de suas flôres alongadas com traços roxos nas pétalas, fornecendo à corça arisca e ao veado catingueiro um delicioso repasto. Era a época das colheitas e das festas populares. Mercadores ambulantes, com provisões de fazendas e artigos de pouco preço, accondicionadas em malas de couro seguras sobre as cangalhas que alguns burros pacientes conduziam com pachorra de brutos adaptados a serviços de tal ordem, faziam exposição de chitas com grandes ramos de côres fortes e vivas, de rosários e collares de vidro e massa pintados, de fitas e bugingangas que as mulheres desejavam e os homens adquiriam a fim de satisfazel-as. Um dos artigos, porém, de que ninguém se esquecia, eram as cordas de rabeca e alguns carrinhos de arame para encordoar as violas. Começara a safra da canna. O fabrico da farinha prosseguia adiantado. Nos serões da farinhada o elemento feminino dominava pelo número. Na espaçosa casa de forno, onde a mandioca cantadeira - cada uma das duas peças que se encaixam no eixo do carro de boi, em contato com a chumaceira maniçoba - árvore (Manihot glaziovii) que dá um látex, do qual produz-se borracha de qualidade inferior chumaceira - chumaço, peça de madeira na empolgueira do carro de boi, em que assenta e sobre a qual gira o eixo, assim protegido contra desgaste empolgueira - empolgadeira, cavidade onde encaixa cada extremidade do eixo do carro de boi http://www.revistaviolacaipira.com.br/link19-02.htm http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/11/textos/123/ carreiros - condutores de carro de boi mororó - pata de vaca, árvore (Baubinia forficata) da caatinga, de grande importância medicinal e econômica mufumbo (mofumbo) - arbusto (Combretum leprosum) da caatinga aboiando - aboiar é cantar para o gado jucunda - alegre, divertida, agradável pau d’arco - ipê amarelo (Tabebuia aurea) ou ipê roxo (Tabebuia impetiginosa) barriguda - paineira rosa (Chorisia speciosa) cangalhas - armação colocada no lombo de animais, com recipientes laterais para transporte de cargas rabeca - instrumento musical rústico semelhante ao violino, com quatro cordas de tripa

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87 trazida em possantes caçuás e nos jacás de bambú formava elevadas tulhas de metro e meio de altura, cerca de vinte mulheres assentadas sobre cepos de madeira que lhes serviam de bancos iam raspando as raízes de considerável grossura e notável comprimento pelo sistema de meias. Sentada num banco alto junto ao forno de cobre de gande capacidade, uma mulher ainda nova, de cormorena e olhos negros e cabellos de azeviche com os braços e o collo nus e um pedaço de escarlate amarrado na cabeça em forma de barretina, mexia com um forte rôdo em forma de meia-lua e cabo muito comprido a fornada de farinha, que começava a escaldar. Na masseira, uma mocinha de tronco desenvolvido e braços arregaçados acima dos cotovellos peneirava diligentemente numa urupema quadrada de talos de coco manso a massa fresca e cheirosa para fazer a farinha. Escanchada ao cevadouro, tendo as pernas resguardadas por uma alva toalha de algodão nacional, sobre a qual a mandioca ia sendo collocada, uma matrona gorducha, de roliços braços nus, applicava à serra movida pela polia da roda que os puxadores tangiam, grande porção de raízes, das quaes a massa esguinchava em jorros semi-aquosos para a cavidade angular do aparador de madeira destinado a recebel-a. No fundo de uma das ruas do próspero povoado estava a casa de engenho com as demais installações, de systema primitivo. Grandes carradas de canna em pedaços espontados de cerca de um metro e vinte iam sendo collocadas de um lado e outro do engenho em camadas superpostas de até dois metros de altura, que supportes de madeiras dispostos em quadrilongo sustinham em equilíbrio. Um engenho de madeira de três moendas cylindricas em posição vertical, a maior erecta ao centro accionando as menores, em disposição lateral, movia-se ao grande esforço de duas juntas de bois que a tiradeira e a canga prendiam pelo tambor ao extremo da almanjarra. Comprimida entre as moendas e espadanando garapa pela força da compressão, a canna introduzina pelo moedor de uma parte, coloccado ao lado opposto, era logo devolvida pelo que estava da outra, até ficar o bagaço expurgado de todo o líquido existente. E o doce licor rolando pela base reforçada que supportava as moendas ia cahir num depósito, feito de um couro de boi costurado a um retângulo de quatro grossas estacas, com fundo abaulado, collocado junto ao caçuá - cesto de cipó, vime ou bambu, com alças e tampa, prêso às cangalhas para transporte de cargas jacá - idem tulha - monte meeiras - meeiro é quem trabalha a terra de outrem, sendo pago com metade do produto obtido meias (medas) - monte de produtos vegetais (p. ex. mandioca) de formato aproximadamente cônico scenna (cena) thorax (tórax) veios - raios caititu - cilindro cortante do ralador de mandioca vida em Buriti Grande farinheira.htm azeviche - carvão mineral de côr negra bastante pronunciada masseira - depósito da massa de mandioca ralada urupema - tecido de palha utilizado para peneirar coco manso - côco comum (fruto da palmeira Cocos nucifera), nome dado para diferençá-lo do côco babaçu (fruto da palmeira Orbignia phalerata) cevadouro - ralador, mecanismo para ralar a mandioca http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/4modos/ndfarinha.html http://inema.com.br/mat/idmat002931.htm engenho de madeira de três moendas cylindricas em posição vertical tiradeira - tirantes entre os quais posicionam-se os bois canga - armação de madeira servindo para atrelar bois pelo pescoço almanjarra - alavanca de madeira, que põe em movimento o engenho de cana, ao ser tracionada pelos bois

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88 solo e denominado banguê. Dahi fazia-se o transporte para o alambique e a fornalha, para o fabrico do assucar, da rapadura ou aguardente. O trabalho de moagem tinha sempre seu início a contar de meia-noite às duas da madrugada, prosseguindo ininterrupto até às sete da noite. E quem, cruzando as estradas pela calada da noite, approxima-se, à madrugada, desse centro de labores em que a actividade se exerce nas mais largas proporções, ouve ao longe a melodia do engenho querange e canta, numa affirmação álacre de vida, de vigor e de energia, um hymno forte e vibrante ao grande poder do esforço. banguê - cocho de couro (também designação de um engenho de açucar primitivo) alambique - aparelho utilizado para destilação (p. ex. na produção de aguardente ou álcool) http://www.campograndems.net/fazbal/Engenho.htm http://aihca02.googlepages.com/dicion%C3%A1riotecnico-industrial vida em Buriti Grande rapadura.htm

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O SERTANEJO Só quem viveu nos sertões observando a vida simples, mas cheia, na apparência de suas maneiras rústicas, de sinceridade e nobreza, de franqueza e lealdade, do sertanejo affastado da civilização que corrompe e perverte as consciências pela dissolução da moral, prostituição dos costumes e degradação do pudor, é capaz de avaliar a pureza de seus hábitos, o respeito que cultiva e as emoções que o abalam quando sente a alma ferida pelos olhares ardentes, pela negrura dos olhos e pelos espontâneos requebros velados de castidade, da morena feiticeira que lhe acordou em tropel affectos e sensações que até então não sentia. Distante da creatura que o seu affecto elegeu, é melancholico e tristonho, taciturno e carrancudo, indifferente aos prazeres e alheio às cousas estranhas aos seus anseios profundos e sonhos vagos de amor. É trovador e poeta, traduzindo em notas sentidas de uma esponteneidade singela e enternecedora harmonia, de que a poesia nativa, em sua expressão natural, estua forte e serena, as deliciosas torturas e a volúpia acerba e doce dos soffrimentos amargos que a ausência determinou. Presa de zelos sem causa que geram na alma os ciúmes, os acicates mordentes de inquietações e cuidados elevam a tensão nervosa de sua organização, encaminhando-o com o auxílio da imaginação incendida nas labaredas azues de uma affectividade exaltada, à prática do fetichismo. O pequeno galho seco de manjericão perfumado que cahio da selva escura dos cabellos ondeados da arisca dominadora do indomável sertanejo que peleja contra o tigre abatendo-o pela forquilha e pela azagaia afiada, e vence pela coragem a aridez do solo ingrato e as aspereza do clima; a flor murcha abandonada que perdeu as sua cores ao calor brando dos seios da sensual criatura que domou com os seus encantos de odalisca acastellada no seu pudor semi-bárbaro a vontade e os sentimentos do robusto filho da aldeia, são para elle relíquias que guarda como um ávaro e beija como um devoto com uncção religiosa e exaltação quazi mystica. É nessa horas fugazes, que passam como segundos, de embriaguez dos sentimentos, que o lyrismo terno e sadio que lhe transborda do íntimo, tão simples quanto a florinha que enfeita os lábios da Terra como um sorriso divino que a Natureza desfere annunciando alleluias, brotando espontâneo e meigo como uma súpplica de amor, das represas emotivas de sua alma formada de sensibilidade e de sonho, esvae-se cadenciado em modulações agradáveis. deixando viva no espírito a impressão maravilhosa de uma música inspirada numa paixão oriunda dos seus mais puros ideaes. Quando, porém, a sereia que o jungio aos attrativos e graças de seu perfil de corça indomita affeita à agilidade da fuga, estanca o passo e dardeja no seu rosto requeimado pelas soalheiras bravias, os raios do seu olhar, coruscantes como lâminas pollidas brandidas à luz do sol, o homem da natureza, habituado a affrontar os lances mais perigosos, verga o busto e embasbacado tartamudeia nervoso phrases despidas de nexo e queda-se atônito e indeciso na contemplação axtactica do ser que o prende e escraviza. E quando a visão palpitante foge ondulando faceira e desapparece na curva deixando o ar saturado de fragância inebriante dos jasmins e açucenas que enfeitavam as tranças negras, de seu peito largo e franco escapam longos suspiros, traduzindo o estado da alma qua as emoções provocaram. É que a moral grave e rígida do homem habituado ao respeito que o pudor inspira aos que não perderam os sentimentos de honra no profundo atascadeiro da corrupção social e depravação dos costumes, o prende à mulher amada por laços de affectos puros que o fazem vêl-a intangível. estua - agita-se acicate - espora de um só aguilhão azagaia - lança odalisca - mulher que faz parte de um harém, mulher morena e atraente ideaes (ideais) jungio (jungiu) - atrelou, subjugou

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90 Dahi a sua atitude de platônica adoração a ter diante dos olhos, ao alcance de seus beijos, o objecto de seus sonhos e desejos soffreados. O habitante do nordeste, de caracter áspero e rude como as inclemências do clima que continuamente o hostiliza numa luta desigual, duro e rígido como as farpas do xique-xique eriçado erecto nos taboleiros com raízes no lajedo, pode ter, algumas vêzes, gestos ferozes ou ríspidos, compatíveis com o estado de seu espírito inculto, comettendo desatinos e praticando absurdos. É incapaz, entretanto, de uma deslealdade ou de uma trahição, de uma calumnia ou infâmia, de uma indignidade ou torpeza, de uma acção que o degrade ou de desrespeito à família. Quando quer desaffrontar-se,quando se sente ferido e o seu orgulho selvagem pede o preço da vindicta, age a peito descoberto, ataca sempre de frente, deixando ao adversário o campo livre à defesa. É que os vícios sociaes, occultos e disfarçados nas dobras cheias de lodo de uma organização social hypocrita e maculada pelo estygma das baixezas ainda não invadiram sua alma sincera, nem inocularam o micróbio do cynismo e da desfaçatez que collocam nas faces despudoradas e máscara das convenções, na sua austera orientação de sua conducta nobre. Dessa ausência de contacto com os ideaes polluídos que a desordem social que avassala o mundo inteiro como uma onda nefasta faz circular e propaga num delírio de loucura, resulta a feição moral que o sertanejo conserva como um patrimônio sagrado, imprimindo ao seu viver esse aspecto adorável e essa simplicidade sadia, desconhecidas daquelles que se abeberam dos preconceitos ridículos dos aggrupamentos formados nos moldes asphyxiantes de uma organização viciosa. E é por isso que os seus folguedos, as suas manifestações affectuosas em que os seus sentimentos transbordam, as revelações de suas tendências e aspirações limitadas, o seu carcater altivo e muitas vêzes feroz, a sinceridade e a rectidão que presidem os seus actos, a naturaliade do seu proceder e de sua linguagem vulgar, as suas maneiras crédulas e a boa-fé com que age em todas as circunstâncias de sua existência uniforme, enchem de admiração e de pasmo os que, habituados às astúcias e negaças de um meio em que os engôdos e intrigas, os embustes e a lisonja, as conspirações e as fraudes, as imposturas e os ódios, tem templos e altares e são elevados ao cimo das mais perfeitas virtudes, não podem comprehender espíritos sem avarezas, sentimentos emancipados da escravidão da inveja, da avidez e da cobiça, e consciências libertas de desejos desregrados e de rancores nascidos do exercício assíduo do mal. Em suas reuniões, nas diversões e folgares em que se diverte e descansa das agruras do trabalho, reinam a cordialidade e a alegria, a fraternidade e a paz. As ambições, quando existem, como estímulo e incentivo no campo da actividade, não geram lutas nem choques, nem cerceiam amizades que o convívio aumentou, e nunca o abutre infamante da volúpia e da lascívia estende as garras aduncas para ferir a pureza e atacar a castidade que formam o patrimônio dessa creaturas ciosas de sua prerrogativas moraes. xique-xique - (Pilocereus gounellei) cactáceo do Nordeste, muito usado como alimento para o gado taboleiros (tabuleiros) - sucessão de planaltos quase de mesmo nível, separados por escarpas

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A CASA DO CORONEL Além da rua central que serve de leito à estrada em toda a sua extensão, e a areia branca atapeta como christaes prateados derramados pelo solo, duas outras ruas menores, parallelas à primeira, concorrem à formação desse mimoso conjuncto que é Burityranna. Ao tempo em que se passavam os factos que descrevemos, só quatro casas de telhas havia no povoado. Só uma dellas, no entanto, pela estreita ligação que tem com as scennas descriptas, merece a nossa attenção. É a maior casa do núcleo, a mais limpa e asseiada de entre as demais do local. Nela reside a família do velho Fernando Marques, fundador do povoado, senhor do maior engenho de cannas existente na região e o mais abastado e importante, pela intelligencia e posição, dos habitantes da zona. Veterano da Guerra do Paraguai, onde estivera em destaque e merecera elogios pela indômita bravura que mostrara nos campos de batalha, onde, ao lado de Caxias, de Osório e de Gurjão, enfrentara o inimigo em notáveis arrancadas, exibia com orgulho, aos olhos dos que lhe ouviam as narrações dos combates em que havia tomado parte, as cicatrizes que atestavam o seu batismo de fogo e a guia da sua baixa, que encerrava as referências honrosas que merecera dos chefes das forças em que servira. Dahi o título de Coronel com o qual era distinguido e mais tarde effectivou, obtendo patente da Guarda Nacional. Terminada a luta sangrenta em que havia tomado parte, e onde, como voluntário, defendera com dênodo a honra da nossa Pátria ao lado de seus irmãos, regressou à velha fazenda, a que imprimio nova vida e deu mais movimento, fazendo com que ressurgisse da tristeza que a envolvera no curso da sua ausência, para transformar-se num centro de labor e de atividades. Foi então que a casa gande soffreu as transformações que a collocavam em destaque entre as demais do lugar, e foi construída a capella que attrahio à povoação forasteiros e família dos sertões que ahi se estabeleceram, tornando-a, em pouco tempo, populosa e cheia de vida. A casa do Coronel era sempre a preferida pelos viajantes illustres que, atravessando os sertões, vinham ahi pernoitar. Construída de madeiras escolhidas e telhas de barro branco, com paredes grossas de taipa caiadas de tabatinga de alvura immaculada, a vivenda de Fernando occupava o ponto mais alto daquella localidade. Situada na convergência do largo da capellinha com a ampla rua central, ostentava duas fachadas com entradas independentes, formando, no ângulo recto que enfrentava o campanário, uma varanda espaçosa cercada de parapeitos que grossas taboas de cedro firmadas na extremidade por esteios de braúna lavrados em quatro faces encimavam e protegiam. Três cancellões fabricados de tabiques de taipóca, muito alvos e lixados, facilitavam accesso à possante galeria, abrindo dois para o largo e um para o lado da rua. Era ahi que se faziam, em regra no mez de Julho, antes que se esgotassem de todo as impressões agradáveis das festas de São João, os festejos populares do adorado Thaumaturgo que elegeram padroeiro do pequeno templo branco de belleza campesina que, à sua invocação, fôra construído na praça. Guerra do Paraguai http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_do_Paraguai Guarda Nacional http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=946777 braúna (baraúna) - árvore (Schinopsis brasiliensis) de madeira pesada, dura, altamente durável cancellões (cancelões) - portões gradeados, porteiras tabiques - paredes finas tapioca - espécie de árvore não identificada thaumaturgo (taumaturgo) - santo milagreiro

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FESTA DE SÃO GONÇALO Era São Gonçalo, de facto, o padroeiro local, o único santo da igreja que poderia disputar ao milagroso São João, festejado com ardor em todo o sertão do nordeste, a primazia e o prestígio que adquirio e firmou em bases sólidas de fé na alma ingênua do povo. Entre as festas dos dois santos havia, não obstante, differenças muito notáveis. Enquanto nas de São João o Bumba-Meu-Boi e a Burrinha, as fogueiras e buscapés, o hábito de saltar o fogo de compadres e comadres, de afilhados e madrinhas, davam a nota corrente, espalhando por toda a parte, num bulício alvorotado e num esfuziar delirante, com o vozerio contente dos cantares e folguedos, o prazer e a alegria, as festas de São Gonçalo, embora muito ruidosas, não tinham a expressão nem revestiam o aspecto de festejos ambulantes que aquellas adqueriam. Constavam, ordinariamente, de novenas na capella com acompanhamento de harmônicas e rabecas, fortes salvas de ronqueiras, raros foguetes de lágrimas, e logo depois da reza, das afamadas Rodas ou Bailes, que eram executadas no immenso avarandado da fazenda do Fernando, onde, ao doce som da viola, terminada a dansa sacra, o baião e o chorado que cantadores de fama seguiam e accompanhavam na toada natural da Ligeira ou Desafio, rolavam até às seis horas, indo até segunda-feira, se começavam no sabbado. Os Bailes de São Gonçalo, também chamados de Rodas, offerecem ao espectador, alheio aos hábitos e práticas, às usanças e costumes daquella gente singela, de vida simples e franca, um espetáculo todo inédito, cheio de lances surprehendentes e curiosos aspectos, que traduzem suas crenças e o estado de sua alma, na qual o virus nocivo da anarchia corruptora que a civilização hodierna cultiva e dissemina, não chegou a penetrar. Nos actos daquella gente não se descobre a maldade com o requinte observado nas agglomerações citadinas, nem se revelam em seus gestos as perversões e as villezas, a deslealdade e a perfídia em que o aviltamento profundo a que vimos sendo arrastados pelos conductores das massas e pelos múltiplos defeitos da educação viciosa que nos tem ministrado, nos arroja com violência, cavando em nosso caminho, quer moral e quer político, um abysmo inevitável. As Rodas de São Gonçalo constituem, portanto, pas os quaes, à primeira vez, tiveram de observal-as, um quadro novo e estranho, um drama ignorado, cheio de lances soberbos e de São Gonçalo - santo português (falecido em 10 de janeiro de 1259, tido por casamenteiro); a dança em seu louvor realiza-se em Portugal desde o século XIII; chegou à Bahia no início do século XVIII trazida por fiéis oriundos de Amarante; dança-se em frente ao altar do santo, homens e mulheres formando duas filas opostas, orientadas pelo guia e contra-guia http://www.lucianoqueiroz.com/sao%20goncalo.htm http://www.uepg.br/revistafolkcom/anteriores/revista06/ENSAIO_FOTOGRAFICO.htm http://www.rosanevolpatto.trd.br/dancasaogoncalo.html Bumba-Meu-Boi http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/5ritmos/bumba.html http://imirante.globo.com/arraial2008/bumbaboi.asp http://www.culturapopular.ma.gov.br/artigos2.php?id=4 http://www.cefet-ma.br/publicacoes/artigos/revista13.7.2/Cap_XIX.pdf burrinha - figura do Bumba-Meu-Boi representando um burro saltar o fogo - pular por sobre brasas da fogueira de São João bulício - agitação, rumor alvorotado (alvoroçado) - alegre, turbulento ronqueiras - cano carregado com pólvora, detonada durante festejos baião - dança popular http://www.brasilfolclore.hpg.ig.com.br/baio.htm chorado - abertura da Dança do Lelê, característica de Rosário (Maranhão) Ligeira, Desafio - consulte página 112

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93 scennas empolgantes. Tinham lugar toda a noite, após o haver terminado o cerimonial religioso na capellinha local. As novenas de São Gonçalo eram divididas por noites entre as classes sociaes anteriormente escolhidas, com antecedência de um anno, pela Irmandade ou Confraria que dirigia os festejos e da qual o Coronel Fernando Marques era o presidente e o chefe. Nessas eleições de mordomos que a Assembléa da Irmandade fazia todos os annos ao terminar os festejos, contemplando as diversas classes em que se dividiam os habitantes da zona, numa meticulosidade afanosa, para que ninguém se queixasse da mágoa da exclusão, escolhiam-se os juízes entre os mais abastados e organizavam-se as mesas para o futuro período. Ninguém fugia ao encargo, e nas proximidades das festas os mordomos mais graduados iniciavam a collecta de donativos e espórtulas para os festejos da noite que coubera na eleição à classe a que pertenciam. Era uma azáfama sem tréguas. Cada classe pretendia dar maior brilho e realce, mais pompa e expressão aos festejos a seu cargo. novenas - período de nove dias de orações mordomos - responsável pelos negócios e administrador de uma irmandade ou confraria espórtulas - ajuda em dinheiro azáfama - grande pressa, dedicação, movimentação

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AS MULHERES Ao aproximar-se o mês de Julho notava-se em cada lar um intenso movimento, sobretudo entre as mulheres. Nas casas de mais recursos costureiras diligentes, em turmas que trabalhavam conforme as aptidões, que tinham exercitado, empunhando grandes tesouras talhavam peças de chita ou de cambraias abertas, ou pespontavam vestidos destinados à funcção, imprimindo aos dedos ágeis, que substitutiam a machina, uma presteza assombrosa. E largas saias de babados de chitas de cores vivas, vestidos brancos bordados a ponto de cacundê, e alguns outros preparados com rendas de almofadas feitas no próprio local, iam sendo executados com o maior cuidado e presteza para a grande exhibição em que um projectava apresentar-se trajdo da maneira mais decente e da melhor forma possível. Nas mulheres, sobretudo, a preoccupação principal gyrava em torno do modo, da maneira mais elegante de vestir-se, durante as noites de festas. É (que as) mimosas filhas de Eva, embora no Paraizo, não poderão jamais libertar-se dos caprichos da vaidade e impulsos da garridice. Requebros e galanteios, tafularias e coquetismos, attitudes petulantes, propositaes esquivanças e intencionaes abandonos, são qualidades innatas ao temperamento enygmatico e variável das mulheres. São recursos naturaes de que instintivamente se servem para conquistar desdenhando, triumphar como vencidas dominando o vencedor e attrahir pelo desejo, pela provocação disfarçada, fugindo aos que as perseguem no intuito de submetel-os ao se jugo prepotente. O instinto admirável de que em geral são dotadas as leva a comprehender que o que mais desperta no homem desejo e ânsia de posse é o que lhe é prohibido. Se as convenções sociaes, realmente, não collocassem a mulher na situação especial de um fructo quase prohibido, cuja colheita obedece a preconceitos ridículos, de uma moral duvidosa eivada de êrros e vícios, ella perderia, de facto, grande parte do valor como objecto de gôzo a que está reduzida em virtude das falhas e defeitos da organização social e política a que as collectividades chegaram. Mas ganharia a vantagem de sua emancipação, destruindo de vez a lenda de sua discutida inferioridade e collaborando com o homem nos problemas da vida prática, para a qual dispõe, sem dúvida, de iguaes aptidões em diversos sectores das actividades humanas. Na situação actual, entretanto, justificam-se os artifícios a que ordinariamente recorrem. Os dados physiologicos colhidos sobre as mulheres e as observações que a vida ordinária nos fornece a cada dia, fallam de um modo eloqüente sobre o seu temperamento e dizem do seu caracter e da sua organização com approximada certeza, esclarecendo-nos amplamente sobre as suas inclinações, tendências e necessidades, que entram no quadro geral das exigências das organizações animaes. Dotada de um organismo apparelhado dos mesmos órgãos exercendo as mesmas funcções, ella sente os mesmos impulsos, experimenta as mesmas sensações, supporta os mesmos desejos e recalca os mesmos instinctos que, educados no sexo opposto por processos modificadores que os adaptam a fins moraes encaminhando-os à sua finalidade pela disciplina de alguns e pela satisfação de alguns outros, são nellas, não obstante, suffocados e reprimidos pela tyrannia das convenções e dos hábitos anachronicos que a ignorância e o despotismo das épocas do patriarcado implantaram no regimen da vida familiar de então, contra os ensinamentos e as regras das próprias leis naturaes. machina (máquina) tafularia - mania de vestir-se e arrumar-se com exagerado cuidado physiologicos (fisiológicos) anachronicos (anacrônicos) - ultrapassados, em desuso

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95 Collocada, por conseguinte, numa tal situação, o seu organismo sente as conseqüências da repressão de suas necessidades physiologicas e procura reagir. Os instinctos e desejos recalcados, apesar das peias convencionaes que os procuram suffocar e reprimir por condemnaveis processo de forçada abstenção, rebellam-se contra os óbices de natureza moral que os refreiam e encarceram, e explodem como vulcões dentro da trama nervosa do organismo revoltado, impellindo violentamente a mulher à sua satisfação. Mas como as barreiras moraes que o convencionalismo edificou, traçando à acção e aos actos do sexo escravizado a um limite intranspnível, o condenaram, como a um Tântalo, ao supplicio innominavel de atrophiar as funcções dos órgãos reproductores pela regulamentação impraticável de sua satisfação, a mulher sente-se arratada à contingência de recorrer aos seus attrativos e encantos, aos seus donaires e graça e aos recursos da sympathia que faz a attração dos sexos para, illudindo os obstáculos que os preconceitos oppõem aos instinctos sexuaes, prender o homem ao seu jugo e realizar, no campo material, o objectivo supremo de sua funcção animal. Se, porém, os artifícios de que ella se socorre para libertar-se das peias do celibato forçado e das imposições inquisitoriais de uma abstenção a que se vê obrigada pelas exigências absurdas da civilização tortuosa, que a amordaça e escraviza, não conseguem emancipal-a dos sacrifícios physiologicos a que está condemnada, são várias as conseqüências que dahi podem provir, cada qual mais desastrosa, nos seus diversos pontos de vista. Desfeita, effectivamente, a illusão acariciada da realidade do sonho que o instincto da procreação fez nascer e alimentou, ou a mulher, conformada, se o seu temperamento permitte, aguarda resignada a marcha devastadora da atrophia do organismo capaz da reproducção e votado a estiolar-se pela ausência da funcção de órgãos cheios de vida. Ou, se os impulsos e rebeldias de certas funcções excitadas se antepõem ao controle que a educação exerceu nas taras instinctuaes, rompe as trincheiras e os muros que o convencionalismo em torno de seu recato para tornal-a abstêmia contra os protestos orgânicos, e esmagando os preconceitos a que esteve acorrentada, oferecendo-se, no altar de Venus, alheia aos gritos de escândalo da sociedade ofendida, ao noviciado do amor. A sertaneja formosa, muito embora alheia aos vícios e artimanhas artdilosas que a civilização incrementa elevando-os à altura de uma instituição, aprehende pelo instincto o estado da questão. Inspirada, de tal modo, por sentimentos sympathicos que a advertem e orientam, põe em acção, sem malícia, os seus dotes naturaes, contando, assim, com o triumpho de suas graças e encantos. A mulher é sempre mulher, tomada em consideração, simplesmente, a relatividade do meio em que ella se desenvolve e onde educou o caracter. óbices - obstáculos, empecilhos Tântalo - mitológico rei da Frígia ou da Lídia, perpetuamente castigado por ter desafiado os deuses: sempre que tentasse comer ou beber, os frutos e as águas afastavam-se de seu alcance; refere-se ao suplício de desejar algo próximo, porém inalcançável donaires - graças, elegâncias, adornos estiolar-se - definhar-se, enfraquecer-se, degenerar-se

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KYRIE ELEISON Raiava clara e risonha, banhada da luz dourada de um sol ardente e brilhante, a primeira manhan de Julho. Em toda Burityranna era intenso o movimento desde alta madrugada. Havia por toda parte preparativos de festas. Todo o trabalho da safra estava paralysado. Eram as festas do anno, tacitamente adotadas por todos os habitantes dessa vasta região, a fim de que todos pudessem tomar parte nos festejos do popular São Gonçalo, milagroso padroeiro da próspera povoação. Affirmam os entendidos em cousa eclesiásticas que o dia dez de Janeiro é o que a Igreja designa para as festas do famosos Thaumaturgo da parochia de Amarante. Seja, porém, como fôr, não é sob o signo do Aquário, mas sob a influência do signo do Leão, que naquella zona nortista o sertanejo o festeja com a mesma fé e ardor. Possantes canos de ferro de bacamartes antigos e de pistolas de bronze, atados solidamente a moirões firmados no solo entre a casa e a Capella, acordavam os echos distantes e repercutiam nas serras os seus ribombos sonoros desde o momento em que os gallos saudavam a meia-noite. Eram os primeiros annuncios das festas que começavam, convocando todos os crentes para a oração fervorosa que eleva as almas a Deus e para os folguedos singelos que desenervam o espírito sem sacrifícios inúteis e sem peccados mortaes. A capelinha elegante pintade de tintas claras, exhalando ainda o cheiro da therebentina empregada na dissolução do alvaiade, branquejava ao sol nascente, solemne e convidativa, como noiva immaculada à espera do sacramento nas immediações do altar. A vivenda de Fernando e o templo religioso ostentavam a orgia das cores na profusão dos ornatos. O próprio largo da festa, no qual a casa e a capella estavam localizadas, ostentavam, igualmente, uma ornamentação abundante. Grandes cordões destendidos em postes disseminados em toda a extensão da praça, ligando a moradia do chefe ao edifício sagrado, sustinham, enchendo o espaço e flutuando com os ventos, como se acenassem saudando os romeiros que chegavam, multidões de bandeirolas de papel de seda e escarlate, em cores variegadas, colladas com gomma de resina de cajueiro ou costuradas a fio. Nos dois extremos da rua que marcava a divisão do arraial em duas metades de proporções quase iguaes, grandes arcos de triumpho, alardeando a imponencia de abóbodas de perystillos, construídos de palmeiras de ararys com as suas hastes e folhas, de ramos verdes de murtas, de flores de grenadilhas e diversas trepadeiras, davam entrada aos romeiros que vinham pagar promessas ou demandavam o arraial para assistir as solemnidades e regozijos do mês. Nas escadinhas de acesso à ermida encantadora do solitário de Tâmega, apenas cahia a noite múltiplos focos de luzes começavam a brilhar. Em cada um dos extremos dos degraus do patamar pratinhos de barro branco construídos em forma cônica com biquinhos lateraes apparecendo nas bordas formavam duas fileiras de luzes que vacilavam ao sopro brando do vento, desde a base da subida até o ponto mais alto. Serviam parochia (paróquia) bacamarte - antiga arma de fogo de cano curto e largo alvaiade - pigmento branco (carbonato de chumbo) perystillos (peristilos) - conjunto de colunas rodeando ou frente a um pátio ou edificação solitário do Tâmega - alusão a São Gonçalo

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97 de combustores ao óleo de carrapato quem, em combustão com o pavio com a ponta espevitada, na franja da saliência, substituía o querosene usado nos candeeiros como combustível seguro na illuminação dos festejos. Vellas grossas e compridas, de cera de carnahuba a que o óleo de burity addicionado em fusão imprimira côr vermelho-amarellada, pontilhavam o altar-mor, crepitando sob as chammas e perfumando o ambiente, firmando-se pela base em quadradinos de táboas, e dispostas pelas paredes em castiçaes de folhas de flandre, illuminavam amplamente o recinto da capella. O átrio e o corpo da ermida regorgitavam, a essa hora, com as avalanches humanas que para ahi affluiam. As cantoras e a orchestra, esta formada de rabecas e harmonicas e de alguns pífaros de taboca e regida pela batuta do popular Luiz Grillo, tomaram luga no coro com as famílias dos Juízes. O Coronel Fernando Marques, solemnemente vestido com a capa de hollanda parda e gola de cetim roxo adoptada pela Irmandade, approximou-se do altar e com gesto grave e pausado, abrindo com muita emphase um livro de capa preta, deu começo à ladainha: Deus in adjutorium meum intende ... Então a alarida no coro, accompanhada da rochestra, numa desharmonia flagrante, em que os pífaros e harmonicas destoavam das rabecas, e as cantorias divergiam da música instrumental, rompeu sonora e barulhenta, num arranco ensurdecedor: Domine ad adjuvandum me festina ... E quando os últimos echos do intróito desafinado que a acústica da capella fazia tomar mais vulto começaram a amortecer-se, o chefe da Confraria, convicto da importância da missão que lhe estava confiada, pigarreou orgulhoso, endireitou com cuidado os óculos de vidros verdes que usava habitualmente, e acenando para as coristas entoou com austeridade, num vozeirão de comando: Kyrie eleison ... Christe eleison ... Kyrie eleison ... Christe, exaudi nos ... Pastor de coelis Deus, miserere nobis ... A algazarra subio ao auge. A tempestade de sons em completo desaccordo que o instrumental em acção espalhava pelo espaço, enchendo todo o recinto de guinchos ensurdecedores, contrastando com o vozerio de cerca de dez cantoras sem noção de harmonia, chocava-se com as vibrações do acompanhamento estridente a que a multidão de devotos se considerava obrigada. Lá fora relampejavam em sonoros estampidos, acordando montes e vales e sacudindo as almas tímidas, repetidos tiros de salvas, que atravessando as chapadas iam levar muito longe a notícia dos festejos e convidar novos crentes ao conforto da oração. Raros foguetes de lágrimas fendiam o ar resfriado, lançando na atmosphera globos azues e encarnados em altas trajectorias. A praça reverdecida pelos patys de hastes longas e bastas frondes revoltas com o ímpeto do vento norte, adquirira de súbito desusado movimento que lhe carrapato - arbusto (Ricinus communis), mamona, de cujas sementes extrai-se o óleo de rícino carnahuba (carnaúba) - bela palmeira (Copernicia prunifera), de madeira forte, de cujas folhas sêcas extrai-se cêra folha de flandre (folha de flandres) - chapa de ferro estanhada utilizada no fabrico de baldes, regadores, calhas, lamparinas etc pífaros - pífanos, espécie de flauta rústica de seis furos e som agudo taboca - taquara, bambu hollanda (holanda) - tecido fino de linho, originalmente fabricado na Holanda pathys (patis) - bela palmeira (Syagrus vermicularis)

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98 emprestava um aspecto de animação e de vida. Vendedores ambulantes sob barracas de palhas a que candeeiros de azeite com pavios de algodão, ou alguns círios fumarentos de cera de uruçu, davam uma luz muito escassa, apregoavam activos as suas mercadorias. Garrafinhas rotuladas de Água de Florida de Murray que as sertanejas disputam como seu perfume predilecto, pommadas em latas róseas de pequenos formatos com letreiros explicativos, baralhos italianos de papelão ordinário, colares de aljofar e missangas e de imitação de coral, fitas de todas as cores e tecidos de pouco preço, meias e pentes communs, grampos de cobre enfeitados com figurinhas de louças, lenços de margens chitadas e cachimbos de madeira, leques de pena ou papel com pinturas exquisitas, canudinhos de cosméticos, espelhos e outras pinóias que impressionavam os sentidos pelo tom de novidade que em taes momentos lhes davam, eram ali disputados como objecto de luxo, para presentes de festas. De extensos fios ligados às hastes dos arirys que ornamentavam a praça pendiam acalentados pelos bafejos das brisas lanternas de várias cores, mostrando na transparência do fino papel de seda de que eram fabricas a claridade da luz a que serviam de amparo contra o sopro das rajadas. Àquella hora, entretanto, vozes uníssonas cantavam no recinto da capellla um bendicto annunciador do término da ladainha: 1 Adoremos São Gonçalo, Varão do Deus escoído, No Céo, na terra, entre os homes Dos santos o mais querido. escoído (escolhido)

E no coro, num enthuziasmo fremente de fervor religioso, as cantoras, acompanhadas do estrugir de sons desconexos do instrumental da orchestra, respondiam pressurosas: 2 Glorioso São Gonçalo, Dae-nos a vossa alliança, Enchei-nos das vossas graças, E alentai nossa esperança. A que o chefe da Confraria, com o qual a onda dos crentes confundia as suas vozes, retrucava em seguimento: uruçu - espécie de abelha silvestre Água de Florida de Murray http://www.lanman-and-kemp.com/catalog/product_info.php?products_id=3 aljofar (aljófar) - pérolas miúdas exquisitas - muito bom, bonito, delicado (galicismo: do francês “exquis”) pinóias - coisas ordinárias, de pouca importância hastes dos arirys - folhas de uma bela palmeira (Syagrus cocoides)

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99 3 Santo de Deus muito amado, Doce pharó da verdade, Protegei as nossas armas, No reino da Eternidade. pharó (farol) Vinha, então, o estribilho, enchendo de súbito o templo: Glorioso São Gonçalo ... A réplica vinha do altar, onde o Fernando, suado, suffocado pelo calor, lançava a última estrophe, na soffreguidão de um allivio: 4 Protector dos que padecem Das máguas do coração, Dae-nos vida e amor na terra, No outro mundo a salvação. Ao repetir-se o estribilho na última etapa do canto, o sino da torrezinha, quebrando instantaneamente o silêncio que o fim das músicas sonoras ia permitir que reinasse, fez vibrar com alegria, numa torrente chromatica, pelo ar frio e pesado, as notas alvissareiras de seus repiques estrídulos, avisando que a novena do início dos festejos estava já terminada. Os tiros de bacamarte, num desperdício pródigo de pólvora alli mesmo fabricada, succediam-se quatro a quatro, despertando os echos adormecidos pelas fraldas das montanhas, enquanto a massa ondulante de fiéis que se apinhava lá dentro e no patamar da ermida acotovelava-se à sahida e movia-se na direcção da casa do presidente, à disputa de lugares para as Rodas a começar. As mulheres reunidas em bandos desordenados empuxavam-se e impelliam-se tagarellando contentes, e avançando sorridentes escolhiam sem tardança as posições mais vizinhas do grande altar que se erguia no extremo do avarandado. Ao penetrar neste, porém, a assistência dividia-se em duas filas lateraes, deixando aberto no centro um espaço reservado à passagem dos que compunham as Rodas de São Gonçalo. Ao pé do altar, entretanto, uma espaçosa área quadrada, sem espectadores nem móveis, permanecia vazia, à espera do momento do bailado a que era destinada. Eram dez horas da noite. Um frêmito electrizante saccudio a multidão, pondo-a e contínua ansiedade e emocionante alvoroço, como se um facto imprevisto, um acontecimento extraordinário, se desdobrasse de súbito ao seu olhar maravilhado. Um murmúrio de vozes vinha, bulhento e confuso, pronunciando-se aos poucos, do lado da larga rua pela qual passava a estrada. Era enorme o reboliço. A vaga humana movia-se na direcção da varanda. A assistência comprimia-se, na ânsia de apreciar, em todos os seus detalhes, os pormenores e cerimônias da chegada. O pessoal ensaiado para as danças exquisitas que se executavam nas Rodas attingira, finalmente, uma das cancellas de entrada do immenso avarandado preparado para os folguedos. E ao transpor os quatro degraus que davam accesso à varanda, os pífaros e as rabecas com acompanhamento de harmônicas (rosnavam) as suas cascatas de divergentes accordes, seguindo a música (cantada pelos) cantores do baile: 5 (Viemos) muito de longe Partindo ao cantá do gallo, Ferindo os pés no caminho, Para adorá São Gonçalo.

6 Subimos artas montanhas, Artas chapadas disertas, Para trazê a São Gonçalo Com fé as nossas offertas.

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100 7 Recebei, meu São Gonçalo, Esses raminhos e parmas, São fios das nossas crenças, São fulôs das nossas armas.

8 Meu divino São Gonçalo, Da terra consoladô, Consolae a nossa arma Quando deste mundo fô.

parmas (palmas) fios (filhos) fulôs (flôres) armas (almas)

fô (for-se)

9 Retirae de nossas vistas Do peccado o negro véo, Fazei ponte em nossa arma, Para nós subi ai Céo.

10 Padroêro de Amarante, Das Rodas formando o gyro, Viemos só te adorá, No lugá de teu retiro.

ponte - ponte sobre o Rio Tâmega, em Amarante (Portugal), cuja reconstrução após uma cheia destruidora é tradicionalmente atribuída a São Gonçalo

11 Muito embora tu fugisse, Para occurtá tua dô, É tu o guia e o pharó De todos nós, pecadô.

12 Só da manhan dos affritos, Estrella dos desgraçados, Dae-nos corage e alento, Prá nós fugi dois peccados.

occurtá (ocultar) dô (dor) pecadô (pecadores)

só (sol)

13 Inspiradô dos affectos, Protetô deste lugá, Graças de amô te pedimos Curvadas em teu artá.

14 Assim depondo contrictas Em teus pés os nossos beijos, Pedimos a tua clemença E amparo aos nossos desejos.

artá (altar) clemença (clemência) 15 Por tua grande bondade, Divino e bom protectô, Satisfaz, por piedade, Os nossos sonhos de amô.

amô (amor) Os componentes da Roda chegaram, nesse momento, junto aos degraus do altar erigido no fim do alpendre, conduzindo São Gonçalo. Depondo a imagem no ponto adaptado a tal fim, ajoelharam-se contrictos, e de mãos postas e olhos fitos sobre ella, que, em tamanho natural, parecia contemplas com attenção os que lhe imploravam o auxílio, oravam em doce e humilde attitude, recolhendo-se ao silêncio, trahido unicamente pelo movimento dos lábios aspreces de ordem íntima que murmuravam baixinho. O coro entrara em ordem até à frente do altar. O velho Adão, incumbido do papel de guia da Roda, puxava a marcha da ala, seguida a pouca distância pelo mestre Januário, arvorado em contra-regra.

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101 E logo após as mulheres, convictas da importância de sua alta missão na representação de ordem sacra que estavam desempenhando, obedeciam aos acenos do guia e do contra-regra. Vinham vestidas de branco, com “toilletes” talhadas pelo mesmo molde e feitio. Vestidos de rodas largas nas immediações da cintura, em cuja altura tomavam o formato de balões, regularmente suspensos um pouco acima dos pés, e feitos de corpo-inteiro com as mangas alongadas, formavam a vestimenta exigida na cerimônia. Circulando toda a cintura e descendo pela direita até abaixo da curva, laços de fitas azues pendiam esvoaçantes nos contra-choques da dança. Barretes de panno azul com amplos laços de fita da mesma cor e largura dos que pendiam das saias, cobriam meia cabeça das dançarinas da Roda. E sapatos razos de couro com a sua cor natural e saltos baixos de sola agasalhavam os pés contra a aspereza do solo. Nas mãos de cada cantora destacava-se um pandeiro de couro cru de raposa despido de todo o pello e ornamentado de fitas. O guia e o contra-regra conduziam iguaes instrumentos, de feitios semelhantes e tamanhos muito maiores. Terminaram, por fim, as preces em que o grupo do cordão que ia dançar a Roda estivera absorvido. A ansiedade expectante que empolgava todo o auditório havia chegado ao auge. Iam ter lugar, finalmente, as danças de São Gonçalo, tão ardentemente esperadas. Por entre os espectadores era profundo o silência. É que ninguém desejava perder passagem alguma desse drama curioso que só se repetiria em Julho do anno seguinte. O velho Adão adiantou-se, dando signal para o início. E alinhando as dançarinas em um círculo imperfeito com um dos lados aberto e uma das extremidades convergindo para o centro, collocou-se empertigado na frente da parte externa, sacudio com força o pandeiro em repetidos trilados, levou o pollegar aos lábios humidos e correndo-o com energia sobre o couro do pandeiro, começou a tirar dêle ruídos roucos e fortes como bramidos de fera. Seguido, então, pelo mestre contra-regra, rufando sempre o pandeiro, poz a Roda (em movimentos), em espirais caprichosas que descrevia com arte, sem (desfigurar jamais) a figura que desde o começo formara. E na qualidade de guia a (êle cumpria) a missão de dirigir os trabalhos e velar para que elles satisfizessem ao público em todos os seus detalhes, concertou com garbo a garganta, abrio com calma estudada a caixinha de rapé, levou às largas narinas uma pitada ruidosa, puxou o lenço vermelho e assou-se com alarde, e depois de dois espirros fêz ouvir a sua voz, guiando as trovas usadas durante as danças da Roda: 16 São Gonçalo, Padre santo, Padroêro do lugá, São Gonçalo vem chegando, No rumo do seu altá, Nós só viemos aqui, Gonçalo, prá te adorá.

17 Nas garras do nego monstro, Nossa arma naufragô, Mas foi Senhô São Gonçalo, Quem do inferno nos sarvô, Viva Senhô São Gonçalo, Que em seu altá já chegô.

nego (negro) monstro - diabo

naufragô (naufragou) sarvô (salvou) chegô (chegou)

raposa - gambá rapé - tabaco em pó usado para cheirar (costume corrente nos séculos XVIII e XIX)

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102 18 São Gonçalo é marinheiro, Mais também é brasileiro, São Gonçalo veio andando Por riba daquelle outeiro, Viva Senhô São Gonçalo, Que é santo casamentêro.

por riba - por cima Atiradas à guisa de estribilho, essas eram cantadas, somente, pelo Adão e o Januário, acompanhadas, no entanto, pelos rufos dos pandeiros que todas as mulheres da Roda manejavam ao mesmo tempo. Mas quando o guia e o contra-regra chegara à última phrase, as dançarinas, em coro, continuando o bailado, que a orchestra e os pandeiros acompanhavam de perto, soltaram as primeiras notas de seu cantar espontâneo, entoando ao padroeiro os innocentes louvores que a imaginação popular acceitou como uma expansão de fé e crença religiosa: 19 Lá vem a lua sahindo, Arva cuma Seraphim, No meio vem São Gonçalo, Cum seu manto de sitim.

20 Lá vem a lua subindo Por ditraz daquella serra, São Gonçalo vem no meio, Andando em busca da terra.

arva cuma Seraphim - alva como um Serafim sitim - cetim

21 São Gonçalo já chegou, De (um lugá) muito remoto, (Arribou) aqui na terra Prá vê quem é seu devoto.

22 Lá vem o carro cantando, Carregado de mandioca, São Gonçalo vem no meio, Espremendo tapioca.

23 São Gonçalo do Amarante, É santo casamentêro, Mas só pratica milagre, Quando recebe dinhêro.

24 São Gonçalo do Amarante, É santo muito vadio, Faz casa em riba da pedra, Faz ponte em riba do rio.

25 São Gonçalo casa as véias, Pelo preço de um vintém, Por este preço, meu Santo, Casae as moças também.

26 São Gonçalo foi prô mato, E escondeu-se num recanto, Mas quando vortô prá casa, Já tinha virado Santo.

27 Entrando da Santa Igreja, Quando do mato vortô, São Gonçalo disse missa, E o Padre Eterno ajudô.

28 São Gonçalo andou no mato, Por muito tempo escundido, Mas cuma nunca se esquece, Protege preto fugido.

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103 29 São Gonçalo por sê fio, De famia muito nobre, Dá valô a gente rica, Mais não faz caso do pobre.

30 Se São Gonçalo tivesse Mais amô pela pobreza, Não seria interessêro, Prá ganhá tanta riqueza.

fio (filho) famia (família)

31 São Gonçalo cavô terra, Cum sua inxada de ôro, Prá enterrá na Capella, Num buraco, o seu tisôro.

32 São Gonçalo pede ismola, Mais não é por carecê, Faz tudo que a gente pede, Mais não dá sem recebê.

tisôro (tesouro) carecê (carecer) 33 São Gonçalo vae-se embora, Prá despois torná a vi, Quem não lhe traz uma ismola, Nada lhe pode pidi.

34 São Gonçalo do Amarante, Com os pretos anda zangado, Por que só lhe dão ismolas, De frango e pinto pellado.

pidi (pedir) 35 São Gonçalo está bem triste, Cum gente que só vem cá, Prá cumê o seu arroz, E bebê o seu aluá.

36 São Gonçalo do Amarante Só agradece e consola A quem canta em seu lovô, Quando lhe traz uma ismola.

aluá - bebida fermentada de abacaxi, milho ou arroz, mais açúcar http://www.soutomaior.eti.br/mario/paginas/cur_rec.htm

lovô (louvor)

37 Cachinga, gente, cachinga, Cachinga, que tá na hora, Cachinga, que São Gonçalo, Diz adeus e vae-se imbora.

38 Vamo-nos imbora, gente, Que é hora de drumi, Cuidado, que São Gonçalo, De seu artá qué fugi.

cachingar (caxingar) - coxear, mancar, puxar a perna

drumi (dormir)

Os movimentos da dança tomaram, nesse momento, um impulso desesperado, e o círculo irregular, que conservava com rigor a figura primitiva, adquirio, pouco a pouco, uma rapidez quase incrível. E o velho Adão sempre à frente, acompanhado do contra-regra, agitando nervosamente o seu enorme pandeiro, conservando o peito aberto e a camisa de chita rosa puxada para as espáduas, repetia sem cessar: Cachinga, minha gente ! Num dado instante, porém, a figura do círculo desfêz-se, e as mulheres misturadas, sem direcção e sem ordem, numa confusão que crescia em terrível alarido entremeado de cantos e vozes estridentes, approximaram-se do altar, estabelecendo em tôrno delle um verdadeiro pandemonio de aspecto assustador e causas desconhecidas para os que desconhecessem os costumes e usanças dessas festas originaes. Parecia, realmente, que alguma cousa de grave e extraordinário

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104 se passava, naquelle instante, no meio da alegria e prazer que reinavam nos folguedos e animavam as dançarinas. Uma espécie de embriaguês seguida de movimentos que pareciam histéricos teria empolgado, talvez, communicando-se a todos os actores daquela scenna. A assistência, curiosa e aturdida por essa mudança brusca, comprimia-se, apertava-se e estorcia-se, esmagada e opprimida pelos choques e empuxões de toda a massa em tumulto, ansiosa pelo desfêcho dessa inesperada parte do drama. Quando, porém, a desordem attingio as culminâncias, alcançando o ponto máximo a que poderia chegar, a avalanche desenfreada precipitou-se na direcção de uma das três cancellas do alongado amphitheatro, como vagas fustigadas pelo látego violento das procellas. Então uma exclamação quase unânime echoou pelo ambiente, prendendo todas as vistas num ponto de convergência: São Gonçalo fugio do altar ... O altar, effectivamente, tinha ficado deserto. O Santo lá não estava ! Havia desapparecido no meio desse bulício, desse tumulto vertiginoso, de maneira inexplicável. Ninguém vira a mão subtil que o arrebatara do altar. Restava encontrá-lo agora, no seguro esconderijo onde o foram depositar. E a exploração dos arredores teve lugar, desde logo, numa azáfama sem pausa, numa soffreguidão (incendida), em que todos tomavam parte com alegria ruidosa e immensa satisfacção. (Reboavam por) toda parte explosões álacres de risos e gritos, que traduziam (assim) o prazer collectivo que extravasava da alma, aberta às emoções. Perseguidas à distância pela vigilância discreta e cauta dos pretendentes, as odaliscas roceiras approveitavam o ensejo para prolongar a batida e arrastal-os como satellites na sua trajectoria, que iam traçando em curvas e espiraes estudadas como se pusessem à prova a sua perseverança. As velhas também moviam-se disputando as honras do achado, ora sozinhas e mudas agitando os lábios murchos em preces cheias de fé, ora em grupos murmurantes, censurando com azedume a garridice das moças e relembrando saudosas os folguedos e diversões de seu tempo, em que, segundo affrimavam, as meninas tinham mais modos, as raparigas mais recato, e os homens mais sentimentos e um pouco mais de vergonha. A fuga de São Gonçalo, como um dos quadros das Rodas, é um velho costume consagrado pela antiguidade do uso entre as populações do nordeste, e revele traços symbolicos de origem não ventillada, porquano, se na vida do famoso Thaumaturgo colhe-se a tendência accentuada que sempre revelou ao isolamento, não se descobrem ahi factos que justifiquem o symbolismo da fuga. Essa parte da representação, entretanto, é a mais empolgante das homenagens prestadas peal ingenuidade crédula do povo ao festejado e popular Thaumaturgo portuguez que o célebre historiador britannico apresentou como architecto, devido ao facto, sem dúvida, da construção da ponte do Tâmega. A tradicção e a crença emprestam, de facto, à cerimônia da fuga, uma importância e uma grande significação de alcance religioso e moral aos olhos do sertanejo, que, simples na rusticidade de seu viver natural, em que as especulações philosoficas e indagações scientificas não lançaram, ainda, os elementos da dúvida, acredita sinceramente nas coisas sem a preoccupação mortificante da averiguação de seus fundamentos e origens, e as conserva com a mesma fé com que as recebeu do passado, transmittindo-as aos descendentes como verdades (isentas) de interpretações controversas. procellas - tempestades marítmas bulício - agitação, rumor

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105 É, pois, tradicional no sertão e admitida e acceita como um facto indiscutível, a crença de que fica agraciado com cem annos de indulgência e habilitado a obter tudo aquillo que pedir, aquelle que encontrar São Gonçalo após o acto da fuga. E o que o conduzio ao altar soffrerá penas terríveis (se concorrer), de algum modo, para que se lhe descubra o paradeiro. (Dissimula-se), pois, desde logo, quem fêz o rapto do Santo, por que, temendo revelar por um gesto ou por qualquer imprudência o local do esconderijo, o autor da gloriosa façanha, que também recebe indulgência e menores porporções se consegue effectual-a com destereza e habilidade, desviando as attenções da direcção que tomou, só volta ao avarandado ou só consente em ser visto depois do Santo encontrado. Cada qual, por conseguinte, emprega o máximo esforço, desenvolve habilidade e despende muita energia na procura do Santo fujão, cujo encontro todos desejam e ansiosamente disputam numa afanosa porfia. E as promessas se succedem a diversos outros Santos para a descoberta sagrada, que colloca o felizardo, desde o momento em que as graças lhe adejam sobre a cabeça, em situação invejável de oráculo purificado, isento de pena e culpa e capaz de penetrar todos os segredos da vida e de ver com precisão através do espaço e do tempo e mysterios mais profundos. Santo Antonio e São Dino, tidos na gyria do povo como os investigadores mais hábeis na caça às coisas perdidas, são os que mais promessas recebem para mostar o caminho do sítio em que São Gonçalo se encontra. Quando o descobridor do Santo é uma moça, as demais lhe invejam a sorte. Não lhe faltam dahi em diante offertas de casamentos. A grande difficuldade fica, somente, na escolha ... Se, porém, é um rapaz, todas as solteiras o disputam, todas as mães o desejam como um partido soberbo para uma des suas filhas. As velhas o abençôam, e não há bailes ou festas que tenham animação se falta a sua presença ... Dessa superstição arraigada no espírito frívolo do povo dimana a explicação dos esforços empregados e da ânsia de cada um por achar o Santo escondido. As crenças extravagantes acceitas e transmittidas por antepassados devotos são, para as massa incultas, sérios artigos de fé. Estão isentas de dúvidas, e não comportam, por isso, nenhum argumento contrário. As pesquizas, entretanto, tinham attingido ao seu termo. Quando a agitação refervia innundando o pateo de vozes e já ninguém se entendia na busca minuciosa dada a todos os lugares das circumvizinhanças da praça, um rumor estrondoso e alarmante abalou com violência, como um terremoto em explosão, sacudindo em vibrações o tecto do casario, a terra e os edifficios, repercutindo nas serras como trovões monstruosos e estampidos de canhões. Cerca (de cem) ronqueiras com cargas duplas de pólvora, socadas até à bocca com (tabatinga) de barro que elevava a compressão a uma formidável potência, reboaram ao mesmo tempo em relâmpagos sinistros e estampidos assustadores. Uma nuvem de foguetes de bombas de alto calibre explodio no ar em conjuncto com o lampejar das ronqueiras; e rompendo a nuvem espessa do fumo escuro da pólvora, a multidão em desordem, como se fôsse atacada de um accesso de loucura, avançou tumultuária rugindo com tal estrépito, que até os próprios repiques do sino da capellinha desappareciam no ar, abafados pelos echos da gritaria furiosa que a cada passo subia num crescendo desmedido. A alegria, em taes momentos, leva as multidões ao delírio, e cada homem tocado de nevrose collectiva perde a noção dos excessos, o controle de seus actos e a consciência das coisas. Só quando a razão se levanta e o chama à realidade, elle adquire o domínio de si mesmo, que alienara um instante. No auge do enthuziasmo, quando a allucinação momentânea o empolga e alcandora aos píncaros da exaltação, é capaz de todos os desatinos e apto a todos os disparates e excessos. indulgência - remissão, perdão dos pecados dimana - flui, brota tabatinga - argila branca, argamassa feita com a mesma

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106 Parece que nesses instantes o selvagismo primitivo que a educação recalcou no fundo do consciente desperta com mais vigor, alienando do espírito o controle da razão. Não há, em taes momentos, barreira que não transponha, nem reconhece limites à fúria impetuosa de seus instinctos revoltos. À porta do avarandado a onda humana estancou. No alto do parapeito surgio a figura esconsa do velho guia das Rodas, gritando em voz aflautada: Viva Senhô São Gonçalo ! A multidão a rugir correspondeu pressurosa, num brado enthuziastico. O velho Adão, entretanto, descendo do parapeito e empertigando-se à porta, como um general dando ordem, acenou ao contra-regra: Forma a Roda e marcha à frente ! A ordem executou-se com disciplina e presteza, e o guia tomando a frente ao lado da felizarda que descobrira o local em que o Santo estava occulto e o conduzia em triumpho, agitava no ar o pandeiro, e voltando-se para as mulheres que constituiam a Roda, deu si signal de rebate: Atenção ! E começou com (esgares), cantando em voz fanha e rouca, em música desafinada as quadras que vão seguir-se e que as componentes da Roda acompanhavam no (mesmo tom), ao som áspero dos pandeiros que enchiam o ambiente do estridente (som) metálico das rosetas de flandre arredondadas que substituíam, em taes instrumentos, o mechanismo das cordas, de que as rabecas e as violas estavam apparelhadas: 39 São Gonçalo do Amarante, Que fugio por seu querê, Não nos querendo vê trites, Já tornô a apperecê.

40 Pastô das armas devotas, São Gonçalo nos insina, Que fugio de seu artá, Prá cumpri a sua sina.

trites (tristes) apperecê (aparecer)

pastô (pastor)

41 Aderemos São Gonçalo, Nosso santo Padroêro, Que livra as armas do inferno, E os homes do cativêro.

42 Abre ala, minha gente, Prá que possa passá Nos hombros de seus devotos O senhô daquelle artá.

aderemos (adoremos) 43 São Gonçalo que recebe, De todos nós o lovô, em seu artá qué ismola E em seu camin qué fulô.

44 Botemos, pois, com esperança, Com vontade até o fim, Muita ismola no seu artá, E as fulôs em seu camin.

camin (caminho) selvagismo - selvageria estancou - parou, deteve-se esconsa - inclinada, pensa para um lado esgares - caretas, feições retorcidas

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107 45 Com todas essas ismolas, Dadas com fitas e velas, Ampara as pobres viúvas, Protege as moças donzellas.

46 São Gonçalo vem chegando, (Trajando) um manto vermeio, Prá recebê São Gonçalo, Vamo nos pô de joeio.

pô (pôr) de joeio (joelho) - ajoelhar-se 47 Quem encontrô São Gonçalo, De noite, na iscuridão, Terá tudo o que pedi, E mais cem annos de perdão.

48 Abri, por deus, nossos ´pios, Dae-nos paz e paciença, Em nossas armas afflitas, Derramae graça e clemença.

clemença (clemência) 49 Divina istrella do norte, Junto ao throno de Deus, Na hora istrema da morte, Vem sarvá os fios teus.

50 São Gonçalo foi andando, No rumo do seu andô, Onde pisava o chão, Nascia um pé de fulô.

andô (andor) 51 Rodemos todas, rodemos No cordão, andando às pressas, Prá pagá a São Gonçalo, Todas as nossas promessas.

52 Vamos, vamos, minha gente, Dá graças ao Criadô, Em lovô a São Gonçalo, Que é o santo de nosso amô.

53 Iscutae, pois, nossos rogos, Furgente istrella do norte, Vinde ampará nossas armas, Na hora istrema da morte.

54 Na hora das agonias, Quando o Senhô nos chamá, Vem buscá as nossas armas, Vem nossos óios fechá.

furgente (fulgente) - brilhante 55 Lá no Reino da Gulóra, Onde tu veves também, Dae entrada às nossas armas, Para todo o sempre, amen.

gulóra (glória) Essas quadras populares, na linguagem simples e franca em que o sertanejo as externa, eram cantadas pelo conjuncto que formava a grande Roda, ao compasso cadenciado das danças que iam sendo executadas ao mesmo tempo que os cantos. E a voz aflautada do guia elevava-se de vez em quando, animando as bailarinas: Cachinga, gente, cachinga ! E ellas, conservando com esmero a mesma figura do círculo, movimentado em espiraes, levavam a mão direita à altura da cintura, dobravam-se deste lado, e fingiam com muita graça movimentos claudicantes. Manquejavam com tal arte, coxeavam de tal maneira nas vira-voltas da dança, que

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108 davam a idea perfeita de defeitos naturaes nos membros daquelle lado. E quando os sons estridentes do último verso cantado foram-se perdendo no espaço, vibrante salva de palmas, prolongadas com insistência, recompensou as bailarinas do esfôrço que tinham feito, e do cuidado empregado no correr da execução, para agradar a assistência. Restava a parte final, chamada Offerecimento. Todos os ramos de flores que as dançarinas traziam atados em fitas verdes ao laço azul da cintura, foram sendo desfolhados e lançados pelo solo nas immediações do altar, deixando o chão innundado de pétalas de várias côres. O guia e o contra-regra rufaram, então, os pandeiros e tomaram a frente do grupo de mulheres, formando-as em duas filas parallellas. É o guia, geralmente, que inicia as cerimônias, seguindo-se-lhe, logo após, a intervenção do contra-regra, depois do qual as mulheres apparecem duas a duas. O velho Adão avançou na direção do altar, fez soar o seu pandeiro, curvou-se diante do Santo, e fallou com voz rouquenha: 56

Varão, archanjo de luz, Que com (meus) votos suffrago, Acceitae, (meu) São Gonçalo, Essas flores que vos trago.

57 Se a fé que em vós deposito, Alguma coisa merece, Acceitae, meu São Gonçalo, A offerta de minha prece.

Os Offerecimentos revestem-se, para o sertanejo, de extraordinária importância. Por isso, nas proximidades das festas, as pessoas mais lettradas das immediações são assediadas por pedidos de sertanejos de ambos os sexos, que solicitam com interêsse a confecção de versos próprios a essa parte dos festejos. Para as mulheres, sobretudo, é uma questão capital arranjar offerecimentos que se destaquem das normas ali seguidas pelas camadas incultas. Aquelles, porém, que não conseguiram obter a confecção dos versos que desejavam, ou recorrem à própria intelligencia, arranjando-os com é possível, ou se socorrem do auxílio dos trovadores locaes, que os engendram, geralmente, dentro dos limites traçados ao seu poder inventivo. O mestre Adão, porém, na qualidade de guia, alto papel no arranjo das Rodas de São Gonçalo, não quiz submeter-se à inspiração dos cultores da poesia nativa, aos quae não podia, na convicção em que estava de sua elevada missão, confiar o successo final de um trabalho em que havia empenhado o seu orgulho e o seu amor próprio. Por isso fôra à cidade e lá arranjara os seus versos. Estava, pois, satisfeito. Tinha obtido successo no seu Offerecimento. Era a vez do contra-regra. Este approximou-se do Santo, fêz a mesura de estylo aos rufos de seu pandeiro, fitou a imagem de frente, e recitou: 58

Padroeiro São Gonçalo, Vós que sois tão milagroso, Livrae-nos, por piedade, De todo homem invejoso.

idea (idéia) trovadores - originalmente, cantores e poetas medievais engendram - criam, inventam

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109 Chegara a vez das mulheres. Cada par approximava-se, preenchia com rigor as fórmulas do cerimonial, recitava o Offerecimento, beijava os pés da imagem, e em seguida retirava-se para que um outro viesse. E os versos mais singulares iam sendo recitados de diversos modos e formas. Há, no linguajar abundante das camadas populares que povoam o nordeste esquisitices curiosas nascidas da riqueza inexgotável de uma gyria que varia de lugar para lugar, pedindo ao observador intelligente uma interpretação que traduza o seu verdadeiro sentido, que lhes determine a significação e a origem, deixando-as de maneira a serem comprehendidas e incorporadas ao patrimônio da língua. O sertanejo cria expresões formula phrases e termos, constrói modos de dizer, faz provérbios e sentenças de significação obscura, que emprega comumente sem que as possa explicar de modo claro e preciso. E no se cantar, sobretudo, há vários desses exemplos. Em alguns dos versos colhidos com absoluta autenticidade no próprio local dessas festas, qeu o autor observou desde a sua primeira infância no sertão onde nasceu e viveu por muitos annos e ainda hoje visita com o mais sincero interêsse, há a prova concludente da observação registrada. Os versos que vão seguir-se foram colhidos, de facto, em festas de São Gonçalo, feitas no próprio sertão, em noites claras e alegres passadas com o sertanejo ao pé de sua viola, onde os tachigraphei com cuidado, conservando com rigor a pronúncia original do filho da natureza com seus vícios e defeitos de linguagem. Como os que antecederam no correr deste trabalho, revestem-se todos elles de um cunho authentico de absoluta realidade que procurei conservar tanto quanto foi possível. Os que registro a seguir representam a parte dos Offerecimentos das Rodas, feitos pelas bailarinas. Cada um dos pares formados recitava um destes versos: 59 Senhô São Gonçalo, Da fulô do piqui, Livrae-nos, meu Santo, Da gente daqui.

60 Senhô São Gonçalo, Da fulô da aruêra, Livrae-me, meu Santo, Da gente de Oêra.

piqui (pequi) - fruto do pequiseiro (Caryocar brasiliense), muito apreciado, porém dotado de perigosos espinhos

Oêra - Oeiras (antiga capital do Piauí)

61 Senhô São Gonçalo, Da fulô do mamão, Livrae-me, meu Santo, Das mãos de um ladrão.

62 Senhô São Gonçalo, As Rodas dançadas, Livrae-me, meu Santo, Das línguas marvadas.

63 A gente (só liga), Naquillo que gosta, Há tempo te escrevo, Nã tenho resposta.

64 Eu vivo já véia, Sozinha e cansada, Nã quero milagre, Não quero mais nada.

nã (não) tachigraphei (taquigrafei) - taquigrafia ou estenografia, sistema de escrita fonética em alta velocidade

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110 65 Senhô São Gonçalo, Ouvi-me um momento, Livrae-me, meu Santo, De um mau casamento.

66 Sois luz, sois istrella, Mimosa e tão bella, Protege-me, ampara-me, Sô moça donzella.

67 A fulô que te trago, Tá véia, tá murcha, Livrae-me, meu Santo, Das pragas da bruxa.

68 Por ti, São Gonçalo, Há tempo que espero, Ouvi-me, meu Santo, Em tudo que quero.

69 Eu vivo doente, Soffrendo sozinha, Me ajuda, meu Santo, Achá a meisinha.

70 Meu Padre, meu Santo, A quem me confesso, Memanda o que há pouco, Com fé eu te peço.

meizinha (mezinha) - remédio caseiro Com o término dos Offerecimentos, encerrou-se a Roda às dez horas da noite. Cruzavam-se os comentários e succediam-se as críticas à execução do bailado. As opiniões se chocavam e as discussões acaloradas generalizavam-se aos poucos, formando-se aqui e além grupos de ambos os sexos, interessados no prélio. Esses grupos, de ordinário, constituíam um velho hábito, que os sertanejos de então acharam ali implantado. Dispersos e desorganizados, a princípio, formavam, por fim, organizações partidárias em torno das dançarinas, applaudindo com enthusiasmo e premiando com flores atiradas no momento em que executavam as danças, àquellas quem apoiavam como verdadeiras eleitas. Era, em regra, a partir da segunda noite de festas, que esses partidos, com a vehemencia de seus arrebatamentos, começavam a manifestar-se. Cda um delles, ao terminar a festa da noite, acompanhava as suas eleitas com ruidosas manifestações de sympathia, cobrindo-as de flores e offerecendo-lhes mimos. Essas divertidas novenas, que se multiplicavam por doze noites seguidas de folguedos e distracções, terminavam, usualmente, pelo samba, que, guiado e accionado pelos sons das violas e pandeiros e acompanhados pelos Desafios cerrados de Cantadores de fama que affluiam ao local por notícias ou convites, rolava sem discrepância até o raiar do dia. Concluídos, pois, os Offerecimentos da Rodas, afinaram-se as violas, retesaram-se os pandeiros ao calor das coivaras que ardiam illuminando o largo da festa, os bancos foram dispostos em frente do avarandado, na amplitude do terreiro, a fim de dar mais espaço às expansões do baião, e vários pharoes de folha de flandre com pavios grossos de fios que o óleo de carrapato ensopava para que pudessem dar chammas que projectassem ampla luz, foram dependurados às hastes das palmeiras de arirys que ornamentavam a praça. A disposição dos bancos, no entanto, foi feita em duas ordens, distanciada uma da outra, com um grande espaço no centro. Uma dellas ficava reservada aos Cantadores e violeiros, aos tocadores de pandeiros que acompanhavam as violas e ao acompanhamento de pífaros e harmônicas, que só entravam em scenna no momento do chorado. A outra era reservada às mulheres, elemento principal à animação das danças profanas que iam principiar. O espaço aberto no centro, entre as duas ordens de bancos, era o lugar destinado ao sapatear do baião e aos requebros e volteios do chorado. retesaram-se os pandeiros ao calor das coivaras - retesar o couro dos pandeiros ao calor de fogueiras de galhos e ramos, para que produzam o som correto chorado - gênero musical assemelhado ao choro baião - gênero musical e dança originados do lundu e do toque de violas do interior do Nordeste

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111 Os Cantadores e violeiros, nos festejos e folguedos populares, gozam de uma imporância extraordinária e são sempre tratados e considerados como pessoas de categoria distincta, essencialmente imprescindíveis ao successo de todas as brincadeiras em que se deseja alegria e se procura prazer. É para elles o melhor petisco, reservam-se para elles os melhores lugares, são ouvidos e apreciados com especial agrado e attenção, mesmo quando se preoccupam com os assuntos mais banaes. Por isso os que compareceram à festa estavam, nesse momento, cercados pela insistência de uma multidão de concorrentes ao baião, que pediam soffregamente o início imediato do samba. Conhecedores do prestígio de que nesses instantes desfructam, deixavam-se primeiramente rogar para se tornarem mais desejados, cedendo, afinal, sem pressa, aos apellos que todos lhes faziam. Foi assim que dois violeiros de fama em todos os arredores, dois mestres experimentados no manejo dos pandeiros, e dois dos mais diversos Cantadores afamados que concorreram ao samba, approximaram-se vagarosamente, por entre os anseios da multidão reunida em torno delles, dos assentos que lhes foram destinados, para darem começo à funcção. Uma ovação estrepitosa marcava-lhes a trajectoria, acompanhando-os ruidosamente desde o avarandado, onde estavam accomodados, até tomarem lugar nos largos bancos de encostos que lhes foram reservados, no terreiro do casarão, entre este e a capella. A numerosa assistência, em soffrega ansiedade, esperava o primeiro signal para atirar-se aos folguedos. Concertaram-se as violas numa combinação demorada, e, por fim, com geral satisfacção, rufaram sonoramente os pandeiros, e o baião, num dedilhado amestrado, que revelava o treino extraordinário dos dedos que feriam os instrumentos, rompeu vibrante e álacre, enchendo a noite de sons fortes e festivos que traduziam o estado d’alma de um povo ingênuo e enérgico em suas manifestações affectivas. Um frêmito de gôzo e prazer, fazendo que o systema nervoso vibrasse com violencia ao choque das sensasões raramente pressentidas, parece que electrizava a alma dos assitentes numa corrente contínua a que os sons da viola e o calor do Desafio serviam de conductores. Os primeiros pares surgiram, rompendo a marcha ao baião. As castanholas perfeitas de cascas de cajazeiras atadas ao pollegar e fortemente accionadas com toda a força do médio estalavam com estrépito acompanhando as violas e os volteios rápidos das danças. Os pares substituiam-se e alternavam-se, numa successão contínua e intérmina, dando à execução do baião o caracter de um movimento sem fim. O primeiro a romper a série de pares que iam continuar os sapateados e bamboleios gymnasticos que a natureza da dança reclamava e exigia, depois de haver posto em prática as habilidade choreographicas de ordem rudimentar de que era capaz, assestou os dedos armados dos pares de castanholas, em forma de pontaria, para uma das mulheres que estavam em sua frente, convidando-a, deste modo, a formar com elle um par, aos estalos do apparelho rudimentar que habilmente accionava. A “alvejada” attendia prontamente e o “atirador” retirava-se, deixando-a só no terreiro. Seguindo o mesmo processo, ella alvejava outro par, encolhendo-o entre os homens que estavam à sua frente. E o baião continuava de maneira indefinida, até chegar a occasião de suspender toda a pândega para dar descanso ao organismo e fazer as refeições. concertaram-se - afinaram-se cajazeiras - espécie de árvore não identificada (os frutos da Spondias mombin não serviriam para castanholas) pândega - brincadeira, folia

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PEDRO DA VENANCIA E ZÉ DA COBRA A parte mais importante, porém, em festas de tal natureza, é a que cabe aos Cantadores que acompanham o baião, ora cantando a Ligeira, logo mais o Elogio, e por fim o Desafio, conforme a opportunidade que o desdobrar da festa offerece. Cada uma das partes em que a gyria popular da zona aqui estudada divide o cantar espontâneo e cheio de alto lyrismo do inculto sertanejo em que a intelligencia viceja numa superabundância notável, tem as suas características e formas especiaes, inteiramente distinctas e positivamente traçadas. A Ligeira é uma quadra, de que o Cantador faz geralmente os dois primeiros versos na rima que bem lhe ocorre no momento de fazel-os, deixando ao adversário a missão de completal-os com os outros dois que lhe faltam. E os que observam a facilidade e rapidez com que, no aceso da peleja em que consideram em jogo a própria dignidade, orgulho e amor próprio, executam taes exercícios durante noites seguidas sem repetição de uma rima e com raridade de imagens interessantes e ricas, poderão avaliar a intelligencia e a capacidade de que são dotados esses abandonados patrícios nossos, aos quaes nunca dedicaram os Governos um só instante de sua disputada attenção. O Elogio é de natureza diversa. Destina-se a por em realce, a collocar em destaque, as qualidades das pessoas a quem desejam agradar, ou por que esperem recompensas - o que às vêzes succede - ou pelo simples desejo de angariar sympathias e amizades. E tão minuciosos se tornam, muitas vêzes, nos elogios dedicados a uma determinada pessoa que, iniciando os seus louvores pela hora do nascimento, cantam, com graça e propriedade de conceitos, desde a primeira banheira que servio ao primeiro acto de hygiene individual, até aos demais factos communs da vida, sem omittir antepassados. O Desafio, porém, é a parte da poesia nativa e dos cantares dos homens rústicos dotados de grande intelligencia, que mais se presta à revelação da sua índole, de suas inclinações e tendências, do seu amor próprio, de seu orgulho algumas vêzes exaggerado e feroz, da extensão de sua capacidade, do seu poder e da sua imaginação creadora, de seus recursos intellectuaes, às expansões de seu sentir, de suas aspirações, de suas preferências affectivas, e às manifestações de suas qualidades, defeitos e prejuízos. Foi pelo Desafio, portanto, que os Cantadores iniciaram a polêmica, esperada ansiosamente pela numerosa onda humana agglomerada no pateo. O Desafio é o gênero de polêmicas populares que mais interessa o público e põe em jogo os sentimentos dos próprios Cantadores, que, não podendo conformar-se com a idea de uma derrota, lançam mão de todos os recursos de que a imaginação é capaz, no intuito de levar de vencida o contendor ou de lhe resisitir, pelo menos, aos ataques e investidas. E é tal a importância que emprestam aos resultados de uma dessas polêmicas, que recorrem algumas vêzes aos próprios meios physicos, se pelo engenho de que dispõem não podem neutralizar as vantagens que o adversário obtém. Convictos, pois, do valor attribuido à parte que desempenhavam nos festejos, os dois Cantadores concertaram a garganta, dando o signal do começo. Eram ambos conhecidos pelo orgulho que alimentavam, na convicção de uma superioridade, que suppunham ter sobre os outros. Cada qual se considerava invencível, vendo sempre no adversário um indivíduo inferior. Por isso, todos os que lhes conheciam a arrogância e o arrôjo previram, desde logo, que poderiam resultar desse encontro conseqüências desagradáveis. Eram o PEDRO DA VENANCIA e o ZÉ DA COBRA, grandes mestres do Desafio, temidos e respeitados em todo o sertão, audaciosos no ataque, furiosos e violentos na réplica, eloqüentes

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113 no improviso e hábeis em formular calemburgos e quebra-cabeças para desnortear e ridicularizar o adversário. Era a primeira vez, no entanto, que iam medir suas forças em luta de Desafio. Nunca tinham tido a opportunidade de un encontro, pelo qual, não obstante, desde muito suspiravam. Zé da Cobra era um caboclo alto e robusto, de peito largo e olhos vivos, cabellos negros e ondeados, dentes alvos e perfeitos, dotado de uma musculatura potente e de uma voz admirável. Era um athleta perfeito, medindo um metro e noventa e seis centímetros de altura, com sessenta e cinco centímetros de peito. Era manso e bonachão, mas resoluto e atrevido quando se fazia mystér. Dispunha de força hercúlea de que só fazia demonstrações em caso de necessidade imprescindível. Pedro da Venancia era um mulato forte e esbelto, olhos castanhos e vivos, brilhantes como lâminas de aço pollido, dentes limados, musculatura possante, cabellos pretos annellados, testa larga continuamente franjada, thorax desenvolvido, nariz um pouco achatado, representando uma altura de um metro e oitenta e oito. Era desconfiado em extremo e absolutamente reservado nas palavras e nos gestos. Tinha a falla um pouco fina e uma voz maravilhosa. Timbrava em cantar somente com Cantadores de fama. O encontro com Zé da Cobra, afamado em todo o sertão e temido geralmente pela grande maioria dos Cantadores nordestinos, agradou-o de certo modo. Se conseguisse triumphar da resistência do notável mestre caboclo, seria extraordinariamente ruidoso o triumpho que obtivesse. A idea da derrota não entrava em seus cálculos. Não podia admittil-a, nem mesmo por absurdo. Estava inteiramente convicto de que se tornara invencível nos torneios e lutas de tal gênero. Seu orgulho não permittia a supposição da existência de um Cantador que se lhe pudesse equiparar. Foi nessa disposição de espírito e de ânimo que o Pedro da Venancia, presumçoso e malcriado, enfrentou o Zé da Cobra, resolvido a não deixal-o emquanto não houvesse conhecido de quanto era capaz e tomado com cuidado todo o vigor de seu pulso de Cantador respeitado. Como um chefe pelle-vermelha que junta em cada batalha, aos seus trophéos de selvagem, mais uma cabelleira inimiga, tirada com o próprio couro, queria levar, também, dessa luta de eloqüência no improviso, mais um louro que juntasse aos seus constantes triumphos, com a derrota do oppositor. Quando estava nessa altura de suas cogitações, engolfado nas rajadas de seus pensamentos voltados para o egoísmo selvagem que cultivava com esmero, foi subitamente despertado pela voz de Zé da Cobra, que pollidamente saudava: os versos nas colunas à esquerda (números ímpares) são de autoria de Zé da Cobra; os demais, nas colunas à direita (números pares) são de Pedro da Venança

Zé da Cobra Pedro da Venança 1 Eu cheguei de muito longe, De onde o só drome e descança, Trazendo junta cumigo, Por companhêra a Esperança, De dá um abraço de irmão, Em Seu Pedro da Venança.

2 Seu Zé da Cobra, você Mostra tê bom sintimento, Sê fio de gente boa, Tê tido bom tratamento, Seu Zé da Cobra, obrigado, Agradeço o cumprimento.

o só drome (o sol dorme) calemburgo (calembur) - trocadilho

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114 3 Seu Pedro, você não sabe, Oque já fui e o que sou, Onde nasci e onde moro, De onde vim e prá onde vô, Vô lhe contá minha história, Cuma meu pae me contô.

4 Eu vim do ôco do mundo, Me iscute, Seu Zé da Cobra, Se só hoje é que lhe incontro, Eu já cunheço de sobra, Pedaços da sua fama, Retaios da sua obra.

cuma (como) ôco do mundo - lugar muito afastado, o fim do

mundo retaios (retalhos) - fragmentos

5 Meu pae era um preto véio, tocadô de birimbáu, Minha mãe é uma curuja, Que mora no ôco do pau, Prá meus amigos sou bom, Prá Cantadô eu sô mau.

6 Muito istimo, Zé da Cobra, Que não use de isperteza, Prá me fallá cuma home, Cum corage e cum franqueza, Pois só em rabo de saia, Deve a gente achá fraqueza.

7 Nasci na bocca da furna, Canguçu foi meu amigo, Uma vara de quexadas Passô treis noites cumigo, Cascavé, minha partêra, Foi quem cortô meu imbigo.

8 Eu vim da grota do inferno, Cum mil demônios atrás, Sô fio do diabo coxo, Sô neto de Satanás, Gunverno cum Berzebuth, Meu padrim é Caifás.

furna - caverna, gruta canguçu - onça pintada quexada (queixada) - porco do mato cascavé (cascavel) partêra (parteira) imbigo (umbigo)

fio (filho) gunverno (governo) - cuido de meus interesses Berzebuth - Belzebú

9 Não me amedronta o demonho, Nem Satanás me seduz, Que a christão não mette medo, O Cão, que foge da luz, Prá liquidá todo Inferno, Faço só o signá da Cruz.

10 Nem cordão de São Francisco, Nem Cruz, nem mesmo São Bento, De minhas unhas de trigue, Te tira neste momento, Vô te levá de vencida, Prá teu castigo e tromento.

demonho (demônio) signá (sinal)

trigue (tigre) tormento (tormento)

11 Deus dá castigo à soberba, Mais ajuda a quem tem fé, Quem tem seus óios bem vê, Quem se engana é por que qué, Não acredito no home, Que falla cuma muié.

12 Drumi no fundo do rio, Mamei leite em cabra preta, Eu nunca chorei desgraça, Não conto léras nem pêta, Não sô macaco ou soim, Que morra só de careta.

mais (mas) qué (quer) muié (mulher)

drumi (dormi) léra (léria) - palavreado, lengalenga, lábia pêta - mentira soim (soim-de-coleira) - sagüi

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115 13 Cantadô de teu quilate, Morre seco e não me atrasa, Eu drumo in riba de agúia, Eu piso in riba de brasa, Derrubo muro de um murro, Com sopro derrubo casa.

14 Nem Deus contem os arrancos Da minha grande osadia, Quando eu canto na chapada, Todo o bicho se arrupia, Eu faço casa de páia, Sem isteio e sem furquia.

in riba (em cima de) agúia (agulha)

osadia (ousadia) arrupia (arrepia) páia (palha) isteio (esteio) furquia (forquilha)

15 De um empurrão boto in baxo A Serra de Biapaba, E a do Araripe, se eu piso, De ponta a ponta disaba, Eu faço cinto de cobra, Chapéu de chapim de caba.

16 Quando eu isturro no samba Os gallos viram gallinha, Os novios viram vacca, E inté cordão vira linha, Com soco da mão dereita, Reduzo pedra a farinha.

Biapaba (Ibiapaba) - chapada na divisa Piauí / Ceará Araripe - chapada na divisa Piauí / Ceará / Pernambuco caba - espécie de vespa social chapim - ninho de vespas sociais, de fibras de madeira

isturro (esturro) - exalto-me novios (novilhos)

17 Com cada brado que eu dô Todo o sertão istremece, O só no céo não caminha, No rio a água não desce, E inté o trigue zangado, De longe já me cunhece.

18 Cascavé mato de bejo, Sucuruiú não me ispanta, De onça tirgue faço armôço, De preta aperparo a janta, Aparo chifre de tôro, E arranco rabo de anta.

cascavé (cascavel)

sucuruiú (surucucu) - a maior cobra peçonhenta da América do Sul armôço (almoço) aperparo (preparo) tôro (touro)

19 Espaio de um pontapé Todas as pedras da praia, Ninguém me come por tolo, Não sô arara ou jandaia, Sô home, sô bicho macho, Eu visto carça e não saia.

20 Eu danço em gume de faca, Ando em ponta de arfinête, De um graveto faço ispada, E de um pallito um cacête, E quando fico zangado, Rebento qui nem fuguête.

espaio (espalho) jandaia - espécie de periquito que vive em bando, maritaca carça (calças)

arfinête (alfinete) ispada (espada) rebento qui nem fuguête - estouro como um rojão

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116 21 Só com o fogo de meus óios, Derreto ferro e montha, Eu tenho unha de gato, Tenho dente de piranha, Quem canta cummigo chora, Morre de doido e não ganha.

22 Eu sô boto, sô lião, Sô preáca de mandy, Sô isporão de arraia, Sô ispinho de piqui, Furo tanto como as flêpas Das ripas de bacury.

cummigo (comigo) boto - golfinho (alusão aos mitos dos mágicos

poderes dos botos amazonicos) preáca de mandy - ponta, extremidade aguda do esporão do mandi (peixe também conhecido por bagre) isporão (esporão) ispinho (espinho) flêpas - farpas perfurantes bacury (bacuri) - árvore amazônica (Platonia insignis) de grande porte, madeira-de-lei, de deliciosos e perfumados frutos

23 Minha guéla é um bacamarte Que nunca se inferrujô, De cano de aço pullido, Que a mão de Deus carregô, De cada tiro que eu dé Boto im baxo um Cantadô.

24 Cum tiro e faca de ponta Mi castigava meu pae, Tua ispingarda não presta, Quando arma o cão não cae, Se dispara o cano intorta, Intope e o chumbo não sae.

guéla (goela) - garganta inferrujô (enferrujou) dé (der)

arma - engatilha cão - peça da arma de fogo que percute a espoleta do cartucho, disparando o tiro

25 O meu tupete é de bronze, Meu peito é feito de aço, Cantadô põe de joeio No lugá por onde eu passo, Tira o chapéu da cabeça, Mette debaxo do braço.

26 Sô Papa, sô Arcibispo, Cardiá e sachristão, Digo missa e dô hóstia, Cummundo e dô cunfissão, Quando chego em quarqué parte, Cantadô me beja a mão.

tupete (topete) joeio (joelho)

cardiá (cardeal) cummundo (comungar, no sentido de celebrar a comunhão)

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117 27 Não tenho medo de home, Purque faz muita zuada, Purque ispivita a garganta, Cum buia de truvuada, Pois bizôro é baruiento, Vae-se vê, não vale nada.

28 Só quem faz roda é pirú, Quem bate a aza é guiné, Dominé, é paz, é dome, Paz é dome, é dominó, Gargantiá sem tê obra, Só assenta prá muié.

zuada (zoada) ispivita (espevita) - no sentido de pigarrear, preparando a garganta para o canto ou a fala buia (bulha) - barulho truvuada (trovoada) bizôro (besouro)

pirú (peru) guiné - galinha d’angola ou capota dominé (dominó) - cantiga de roda portuguesa: Olha o passarinho, Dominé Cahiu no laço, Dominé Dae-me um beijinho, Dominé Dae-me um abraço, Dominé Por esta rua, Dominé Passeou meu bem, Dominé Será por mim, Dominé Ou por mais alguém, Dominé! gargantiá (gargantear) - contar vantagem assenta - cai bem

29 Minha língua corta tanto Cuma gume de navaia, É raro o gorpe que eu dô, Que a tira logo não caia, Minhapalavra é um tiro, E arraza que nem metraia.

30 Meu costado tem coiraça, Tem torre e tem cumiêra, Cega o gume e vira o fio Da navaia cortadêra, E mofa da pontaria, Da metraia mais certêra.

navaia (navalha) gorpe (golpe) metraia (metralha)

coiraça (couraça) cumiêra (cumeeira) mofa (zomba)

31 Pego tôro pelo chife, Prendo a chuva e aparo o raio, Nunca soffri de vertige, Pois só muié tem dismaio, Caminho in riba das nuve, Ando trepado e não caio.

32 Atravesso o má de nado, Não me afogo em quarqué poço, Óio de riba prá baxo, Piso duro e fallo grosso, Cabra que canta cummigo, Não pisa in meu pescoço.

chife (chifre) nuve (nuvens)

má (mar) quarqué (qualquer) óio de riba prá baxo (olho de cima para baixo)

33 Cabôco, me óia de frente, Abre a vista e aperta as cunhas, Cuma cavallo cansado, Que no atolêro pisunha, Te agarro o fino da perna E tu morre em minhas unha.

34 Não sô minino, não brinco, Não visto mais camisão, Não brinque, meu camarada, Agüente firme o rojão, Se você qué mi pegá, Só acha o vento na mão.

cabôco (caboclo) aperta as cunhas - prepare-se (?) no atolêro pisunha (fica repisando no atoleiro) fino da perna - tornozelo (?)

minino (menino) camisão - camisola (roupa infantil) agüente firme o rojão - resista com firmeza pegá (pegar)

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118 35 Sô gavião da chapada, Sô cracará do amarello, Das unhas faço tarracha, Do bico faço cutello, Quando arguém me cae nas garras Pego e reduzo a farello.

36 Sô caçadô de incummenda, Sei qui curuja não falla, Caburé grita cum frio, Mais seu grito não me abala, Prá gavião tenho chumbo, Prá cracará tenho bala.

cracará (carcará) - espécie de gavião tarracha (tarraxa) - parafuso, cunha ou cavilha, no sentido de instrumento para prender, segurar, sujeitar cutello (cutelo) - instrumento cortante, semicircular

sô caçadô de incummenda (sou caçador de encomenda) - sou caçador em boa hora, a calhar curuja (coruja) caburé - espécie de pequena coruja

37 Sô dotô em reza forte, Tenho a mandinga iscundida, Bode macho cuma eu Não pode cum minha vida, Bala me bate no peito, E cae no chão dirritida.

38 Pára a conversa fiada, Cabôco, nem mais um passo, Sei muito bem o que digo, Cunheço bem o que faço, Você só derrete bala Quando ella não é de aço.

dotô (doutor) em reza forte - entendido em encantamento, feitiço, mandinga mandinga iscundida (escondida) - feitiço oculto dirritida (derretida)

39 Sô cuma pinica-pau, De penna vermeio-iscura, Que não respeita miolo, Da catinguêra madura, Eu tenho púa no bico, Furo a aruêra mais dura.

40 Eu sô duro cuma angico Que se criô na catinga, Prá mim teu bico é de cêra, Que derrete, iscorre e pinga, Faz buraco em pinho mole, Mais quebra contra a batinga.

pinica-pau (pica-pau) vermeio-iscura (vermelho-escura0 catinguêra (catingueira) - pequena árvore (Caesalpinia pyramidalis) característica da caatinga aruêra (aroeira) - árvore (Myracrodruon urundeuva) de madeira pesada, dura, de grande durabilidade

angico - árvore (Anaderanthera macrocarpa) de madeira pesada, dura, de grande durabilidade catinga (caatinga) batinga - árvore (Gomidesia affinis) de madeira pesada, dura, de baixa durabilidade

41 Arranco dente de cobra, Pego fera no cachaço, Eu toco fogo no mundo, Fazendo da língua um facho, Cantadô, metto no ingenho, Môo e reduzo a bagaço.

42 Eu não sô canna de assúca Que dêxa a páia na roça, Tenho os ossos de granito, Cacunda de casca grossa, Cum gente da tua laya, Mofo, brinco e faço troça.

cachaço - cangote, nuca facho - archote ingenho (engenho)

assúca (açucar) dêxa a páia (deixa a palha) cacunda - dorso, costas mofo - zombo

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119 43 Te ispremo e faço garapa, Te ponho todo em fubá, Desta língua eu faço um bife, Do miolo um vatapá, Te corto o lombo aos pedaços, Cum tacada de manguá.

44 De garganta eu vivo farto, Prosa fiada é calote, Eu me atrepo no teu costado, Me assento no teu cangote, E inquanto tu tivé vida, Te corto a pelle a chicote.

miolo - cérebro cum tacada - a pancadas manguá - chicote com o qual se tocam animais

atrepo (trepo)

45 Braboleta não me come, Que eu não fui feito de mé, Te tiro o sangue das veias, Prá fazê sarapaté, Da tua língua marvada, Faço um bandão de pasté.

46 Te arranco a língua da bocca, Te arranco os óios da cara, Eu ti isfolo cuma porco, Quando sae morto da vara, Garrote, quando é veiaco, Eu prendo na caiçara.

braboleta (borboleta) mé (mel) sarapaté (sarapatel) - prato feito com sangue, miúdos de porco ou carneiro e tempero forte bandão de pasté - grande quantidade de pastéis

veiaco (velhaco) caiçara - cerca tosca feita de galhos, ramos ou varas

47 Eu jogo faca piquena, E atiro bem de trabuco, Quem é moço eu faço véio, E todo véio é caduco, Quem canta cummigo chora, Sae doido, lerdo ou maluco.

48 Toda barrêra é buraco, Todo o serrote é montanha, Toda a fruita tem caroço, Só no caju tem castanha, Todo o cabôco é vedóia, Veiaco e cheio de manha.

trabuco - espingarda de cano curto e largo véio (velho)

barrêra (barreira) serrote - serra de modestas dimensões e altura vedóia - caloteiro, traficante

49 Toda a lagoa tem água, Todo o brejo é alagado, Todo o cavallo dá coice, Todo o preto é marcriado, Todo o mulato é patife, Canaia, farso e safado.

50 Desta vez sei que me perco, Sei que me botô a perdê, Nossa Senhora me ajude, Jesus me quêra valê, Furo os óios, quebro os dente, De um cão que qué me mordê.

marcriado (malcriado) canaia (canalha) farso (falso)

botô a perdê (botou a perder) quêra valê (queira valer)

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120 51 Eu me chamo Espaia-Brasa, Nasci no Chapéo-Virado, Tiro serpente do ninho, Curo cachoro damnado, Se tu tem má de São Lazo Desta vez tu sae curado.

52 Sô mulato, mais não temo Todo o teu farrancho junto, Tira a faca e te alevanta, Vamos tratá de ôtro assunto, Põe-te em guarda e te defende, Que eu não dô gorpe em difunto.

espaia-brasa (espalha-brasas) - barulhento, desordeiro, espalhafatoso chapéo-virado (chapéu-virado) - praia em Mosqueiro (PA), talvez significando nascido em lugar muito remoto damnado - raivoso má de São Lazo (mal de São Lázaro) - hanseníase

farrancho - grupo de pessoas que vai para romaria ou divertimento, bando de pessoas gorpe (golpe) difunto (defunto)

53 Se aquella que te deu leite É muié e não macaca, Avança, marcha de frente, Impunha a arma e me ataca, Que eu te mando prôs infernos, Cum trinta gorpes de faca.

54 Não nado in riba de lama, Não margúio em poço raso, De bravata eu não me assusto, Nem de ti eu faço caso, Pois não temo de um cachorro, Que não pertence a São Lazo.

margúio (mergulho) A numerosa assistência, conhecendo a impetuosiade dos dois vates sertanejos, e vendo a marcha violenta que o Desafio tomava, cercava-os desde o começo, empolgada pelos arroubos audazes a que a imaginação incendida vertiginosamente os impellia. Os partidos se formaram, apostando cada qual pelo triumpho daquelle que havia eleito e considerava indiscutivelmente o campeão daquella luta de rimas. Assim, quando a pugna se elevou, no auge do enthuziasmo, ao cume da exaltação, e marcharam um para o outro, frementes de indignação, rubros de assomos de cólera que o amor-próprio beliscado puzera em ebulição, arrancando resolutos os punhaes de ponta acerada que traziam à cintura e medindo-se de frente, cheios de arrojo e de coragem, a multidão, de permeio, impedio com energia a peleja de ordem physica em que iriam engalfinhar-se com resultados funestos, sem dúvida, para ambos os contendores. Olharam-se, então, da pequenina distância em que estavam um do outro, manietados pelos tentáculos dos braços de mais de cem homens que os impediam de avançar, e dos seus olhares incendidos pela raiva que delles estuava calcinante, fuzilaram relâmpagos sinistros, chispando de ódio e de cólera. Na alma forte e selvagem desses dois homens criados no seio da natureza que pela primeira vez se encontravam num prélio imflammado de rimas, numa pugna abrasada de improvisos em que entravam em jogo, no seu mode especial de examinar a questão, o seu orgulho, o seu amor-próprio, a sua dignidade e até mesmo a sua honra, rugia um vulcão rumoroso de paixões em ebulição, uma tormenta a desencadear-se, os ímpetos e os impulsos de uma procella contida contra a rocha do impossível, despertadas pelos golpes recebidos de um adversário que se revelava, a cada passo, na sua estatura de Cantador amestrado e audacioso, um perigo e uma ameaça à sua fama. Conheceram-se e comprehenderam-se. Cada um via no outro um poderoso rival, cheio de vigor e prélio - disputa, embate

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121 recursos, de arrôjo e de ouzadia, de atrevimento e intrepidez, de resolução e dênodo, mesclados de certa dose de insolência e affouteza. Essas qualidades que se reconheciam um no outros irritavam a cada um delles de uma maneira cruel. Um Cantador nunca pode admittir que haja um outro capaz de lhe fazer sombra à fama e ao prestígio. O que lhe oppõe resistência, tirando-lhe, desde o princípio, a illusão de mais um triumpho, não pode continuar a ser visto sem preoccupações e cuidados. É uma espinha na garganta. É mais uma onça no pasto, que é necessário abater. Da resistência recíproca que pressentiram logo um no outro e do choque das energias com que se atacaram desde o início da luta nasceu, immediatamente, entre elles, um sentimento de rivalidade hostil e inconciliável, que poderia trazer, de futuro, conseqüências lamentáveis. Pelo espírito quase selvagem de cada um desses homens, em que o trabalho da educação não modificou a violência e a fereza dos instinctos e em que passavam rugindo, tempestuosas e bravias, rajadas indômitas de rancor oriundas do orgulho espicaçado pela attitude do adversário, perpassavam projectos extravagantes de desforras, despropósitos absurdos de vindictas, visando a repulsa de uma affronta que só existia, de facto, nos domínios de sua imaginação, perturbada pelos effeitos de um amor-próprio obediente ao serviço da ignorância. No plano dessas intelligencias incultas, ricas de fantazias e criações rudimentares accumuladas no contacto contínuo com a natureza, de cujas observações se utilizam, idealizando imagens exóticas e comparações bizarras, nos assomos arrojados de seus improvisos espontâneos, não há lugar para a tolerência ou margem para a condescendência, quando se trata de um rival capaz de desfazer uma reputação ou uma fama, que é, para o Cantador, uma parcella essencial de sua vida, uma cellula de sua alma, um dos fundamentos e uma das razões de toda a sua existência. Tendo, pois, cada um delles experimentado as farpas terríveis da ironia do adversário e sentindo-se magoado e contundido por golpes tão mordazes e vibrantes como ainda não tinha soffrido, guardava desse encontro sensacional, de que nenhum tirara vantagem, um ressentimento que difficilmente desappareceria e que talvez os arrastasse a um novo encontro de caracter decisivo. Os golpes que se vibraram tinham sido demasiadamente profundos, e, para a aspereza e o temperamento e caracter de que cada um era dotado, afigurava-se que só nos meios physicos encontrariam uma satisfação às affrontas com que se tinham fustigado no correr da pugna acirrada em que se haviam metido. O sertanejo do nordeste, habituado à rigidez da sinceridade nativa que não comporta o disfarce nem conhece a hypocrisia, não sabe contemporisar nem fingir. Quando se sente contrariado ou ferido nos seus brios, a sua franqueza transborda e manifesta o seu sentimento com lealdade às vêzes rude. Não guarda ressentimentos apparentando satisfação, nem cultiva uma amizade que a desconfiança toldou. Desconhece o meio-termo que a civilização engendrou para occultar pela máscara de um sorriso de encomenda sentimentos de hostilidade que fermentam dentro da alma. Não occulta pensamentos, nem se enleia ao labyryntho de situações duvidosas. Ou é amigo ou não é. Em taes condições, o Pedro da Venancia e o Zé da Cobra não podiam mais entender-se. Estabelecera-se entre elles um sentimento de rivalidade de tal gravidade e extensão, que os incompatibilisara para sempre. Qualquer tentativa que se fizesse, portanto, no sentido de reconcilial-os seria trabalho inútil. Um novo embate entre elles acarretaria, sem dúvida, um conflicto inevitável. De ponderações de tal ordem teriam resultado, talvez, as medidas postas em prática para evitar novo encontro. Por isso, novos actores appareceram em scenna, em substituição àquelles que, pela intransigência de uma rivalidade inconciliável, tornaram-se incompatíveis para um torneio do gênero. dênodo - coragem, intrepidez fereza - ferocidade, fúria vindictas - vinganças, desforras

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JOÃO DA ROMANA E RIO-PRETO Corriam com animação e ampla fraternidade todas as noites de festa. Um ambiente de paz e de alegria convidava às diversões. O incidente anterior tombara no esquecimento. Os mordomos em cada noite tinham impresos nas faces traços vivos de prazer e um riso alegre e feliz lhes aflorava dos lábios. Cada qual mantinha o desejo de preparar anoite a seu cargo com mais pompa e enthuziasmo, sem nutrir, porém, a idea nem alimentar o propósito de ferir, de qualquer modo, a susceptibilidade ou o amor-próprio dos noitantes anteriores. Esses pequeninos assomos de vaidade um pouco christan e de rivalidade inocente não perturbavam, no entanto, nem a cordialidade reinante nem as ligações fraternas que faziam desse accumulo de pessoas differentes, reunidas com o mesmo intuito, uma única família. Nem a crítica ferina que faz nascer dissenções interrompendo amizades e criando ressentimentos, nem cochichos affrontosos e murmurações maliciosas que geram desconfianças e provocam prevenções, tinham ali agasalho ou encontravam apoio. A franqueza e a lealdade constituem, geralmente, a feição característica, a nota predominante, da alma do sertanejo, affeito à realidade e ao positivismo das cousas e sempre aberta e disposta à generosidade e ao bem. É que, habituado aos modos simples em que a natureza o educou, encarando sempre as cousas pelo lado que a sinceridade lhe aponta como real, olhando-as taes como o raciocínio lhe indica que devem ser, e conhecendo-as, somente, na expressão verdadeira da sua significação, desconhece as convenções, não sabe contradizer-se nem fingir o que não sente. Diz rudemente o que pensa, sem rodeios nem ambages, imprimindo, sem planos preconcebidos e sem preoccupações de effeitos, à firmeza da palavra, a sua legítima funcção de expressão do pensamento. É por isso que em suas festas, despidas de etiquetas e de formalidades inúteis, a sinceridade domina, o prazer se manifesta sem sorrisos contrafeitos e sem attitudes forçadas, e um sentimento espontâneo de franca hospitalidade jovial e acolhedora nivela todas as classes na forma do tratamento. Os que são mais acanhados acabam sendo vencidos pelas expansões collectivas. Em face da exteriorização dessa alegria ruidosa, que é a nota predominante da alma do sertanejo, não medra o constrangimento, e todos experimentam a influência, communicativa e saudável, do regozijo commum. Comno as noites anteriores que foram deixando infiltrado na alma o perfume da saudade, passadas, como num sonho, entre o rufar do baião, o estalo das castanholas e os vae-vens do chorado, esse derradeiro dia de festa communicava um delírio e tornava mais agradáveis a todos os assistentes as sensações duradouras que estavam a extinguir-se e que receberiam um novo alento ou um impulso de franca revivescência somente em Julho do anno seguinte, com o início das mesmas festas. Parece que as despedidas traziam à assistência um accesso de loucura de caracter collectivo. Queriam, como à porfia, o maior quinhão de gôzo na folia a expirar. As violas e os pandeiros vibravam com mais vigor, as danças tinham alcançado um alto grau de violência, e os dois Cantadores frementes de inaudito enthuziasmo saudaram o raiar da aurora numa porfia arrojada, de que nenhum desejaria affastar-se sem ter derrotado o rival. E quem, mesmo de grande distância, concentrasse a attenção e apurasse o ouvido affeito a chistan (cristã) ambages - rodeios, voltas vae-vens - vai-e-vens

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123 distinguir os ruídos por entre o gorgeio das aves e o farfalhar da folhagem, escutaria bem nítidas, nos arroubos do improviso e nos ardores das réplicas que a refrega cada vez mais acirrava, as vozes dos dois rivaes que se haviam empenhado num torneio vasto de rimas, que iria muito mais longe se a festa se prolongasse. O Desafio seguinte foi travado entre os Cantadores João da Romana e Rio-Preto (apresentados mais adiante). Os versos nas colunas à esquerda (números ímpares) são de autoria de João da Romana; os demais, nas colunas à direita (números pares) são de Rio-Preto.

João da Romana Rio-Preto 1 Quando canto na viola, E assunto o som do pandêro, Me arrupio e piso em brasa Pro riba de um frumiguêro, Fico damnado da vida, Prá me espaiá no terrêro.

2 Camarada, prá nois dois, Não fica coisa decente No samba intrá de cum força, Dançá baião dérépente, Sem premêro tê cuidado, De lová toda esta gente.

assuntar - prestar atenção arrupio (arrepio) por riba de um frumiguêro - por cima de um formigueir) espaiá (espalhar) terrêro (terreiro)

intrá de cum força (entrar com força) dérépente (de repente) premêro tê (primeiro ter) lová (louvar)

3 Pois antão, meu camarada, Viva Deus Nosso Senhô, Viva Senhô São Gonçalo Que a todos nós ajudô, A brincá nesta fulia, E a carregá seu andô.

4 Lóvo seu Fernando Marque, Patrão que garante a zona, Da casa grande da festa, Lóvo a bondade da dona, Que quando vem no terrêro, Nos traz um copo de artona.

antão (então) fulia (folia) - festa andô (andor)

lóvo (louvo) artona - o verso seguinte sugere ser uma bebida alcoólica inglesa (seria um gin ?)

5 Camarada, essa bibida, Tem verdete e rosalgá, E é feita por inguilez, Da ôtra banda de lá, É forte cuma veneno, Damnada prá imbebedá.

6 Não me importa a istripulia, Desse inguilez feiticêro, Eu boto o copo na guéla E a bicha desce ligêro, O que importa é a morena Que agora tá no terrêro.

bibida (bebida) verdete - acetato de cobre, azinhavre, zinabre rosalgá (realgar) - mineral de côr laranja-avermelhado, quimicamente sulfeto de arsênico inguilez (inglês) imbebedá (embebedar)

istripulia (estrepolia) - bulha, travessura feiticêro (feiticeiro) ligêro (ligeiro)

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124 7 Morena dos óios preto, Do cabello pintiado, Segura a saia na mão, E agüenta o sapatiado, Prá dexá meu coração, De uma só vez machucado.

8 Sô bicho baita em três-sete, Eu faço tento e dislavro, Toda véia é rabugenta, Toda a moça chêra a cravo, Minina, diz a teu pae, Que eu quero sê te iscravo.

sapatiado (sapateado) sô bicho baita em três-sete - sou muito bom no

três-sete (um jogo com baralho) faço tento - marco ponto dislavro (deslavro) - desinviolar, restabelecer o crédito chêra (cheira) iscravo (escravo)

9 Minina que istá dançando, Na toada do baião, Bota o pezinho de fora, Pisa cum força no chão, Faz terrêro de meu peito, Machuca meu coração.

10 Se essa morena é Maria, E eu me chamasse José, Eu queria está deitado, Na istêra de catolé, Prá que elle me pisasse, Com toda a força do pé.

istêra (esteira)

catolé - espécie de palmeira 11 Se eu fôsse um pente de ôro, Fôsse uma jóia bunita, Queria andá bem lustroso, Bem cheroso e bem catita, Nas tranças de teus cabellos, Preso num laço de fita.

12 Se eu fôsse um beija-fulô, Andando sempre em passeio, Bejando de ramo em ramo Toda a fulô sem receio, Ia fazê o meu ninho Bem juntinho de teu seio.

ôro (ouro) catita - enfeitado, elegante

beija-fulô (beija-flor)

13 Tenho uma dô em meu peito, Tenho paxão, tenho pena, De não pudê me virá Numa fulô de açucena, Prá vivê preso no grampo, Das tranças dessa morena.

14 Muita vontade se perde, Muito christão perde a fé, Cajuêro não dá manga, Nem fedegoso café, De prisunção e água benta, Cada quá toma o que qué.

paxão - paixão pudê me virá - poder virar(-me)

fedegoso - pequeno arbusto (Senna occidentalis) com propriedades terapêuticas, suas sementes torradas e moídas podem ser usadas como sucedâneo do café (café-de-mangerioba) prisunção (persunção) quá (qual) qué (quer)

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125 15 Eu não sô pêxe moído, Nem sô bizerro ingeitado, Eu nunca fui gato morto, Nem sô pavão de teiado, Em meu sertão tenho roda, Sô limpo e sô disejado.

16 Você se afoba e se zanga, Mais da carma eu não me affasto, Agüento cum paciença, Quarqué graça, e não me agasto, Mais novio perde o preço, Quando sahe fora do pasto.

pêxe (peixe) bizerro ingeitado (bezerro engeitado) pavão de teiado (telhado) - alusão ao pavão que sobe ao telhado e exibe sua plumagem roda - agrupamento de pessoas, de admiradores disejado (desejado)

carma (calma) paciença (paciência)

17 Quem qué se fazê não pode, Quem é bom já nasce feito, Meu valô trago cummigo, No sucavão de meu peito, Em quarqué parte da terra, Eu raio do mesmo jeito.

18 Quem véve na terra aleia, Mesmo quando é cabra macho, Pisa no chão cum tenença, E apaga o fogo do facho, Tira o chapéo da cabeça, E põe debaxo do braço.

sucavão (socavão) - esconderijo, abrigo raio (ralho)

véve (vive) aleia (alheia) tenença (tenência) - prudência, precaução apaga o fogo do facho - comporta-se respeitosamente

19 Sô raio, sô tempestada, Sô generá, faço guerra, Arranco pau cum raiz, De um pulo atravesso serra, Dô carta e jogo no chão, Em toda a parte da terra.

20 Cochicho em roda de moça, É signá de casamento, Não revela valentia, Quem arrota atrevimento, Eu sei que cae pôca chuva, Quando vejo muito vento.

tempestada (tempestade) generá (general) arranco pau cum raiz - arranco árvore pela raiz dô carta - dou as cartas, estou no comando

signá (sinal) pôca (pouca)

21 Todo campo tem capim, Tôro brabo qué ferrão, Todo o branco qué tê luxo, Muita prosa e prisunção, Todo o preto é feiticêro, E fôfo que nem mamão.

22 Todo o mulato arrufado, De trunfa cubrindo a testa, Querendo sê coisa boa, Só purquê canta na festa, É traste sem serventia, É caco véio, não presta.

tôro brabo qué ferrão (touro bravo quer ferrão) - um touro bravio é conduzido usando-se uma aguilhada, vara com um ferrão na ponta

arrufado - agastado, irritado, de maus modos trunfa - cabelho desgrenhado, grenha

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126 23 Todo o preto tem catinga, Tem cara feia de réo, Nêgo preto cô da noite, Da canella de tetéo, Primitta Nossa Senhora, Que preto não vá no Céo.

24 Se tu não agüenta a carga, Pega a trôxa, arriba e sae, Se preto não vae para o Céo, Mulato também não vae, Purque tem cabello duro, Isbarra na nuve e cae.

réo (réu) cô (cor) tetéo (tetéu) - quero-quero, um pássaro canella de tetéo - de pernas finas como as do tetéu primitta (permita)

pega a trôxa (trouxa) - arruma as malas arriba - parte isbarra (esbarra) na nuve (nuvem)

25 Crio fazenda de onça, Tiro leite em canguçu, Eu andei por toda a parte, Viajei do norte ao sú, E nunca vi em parte arguma, Um preto do ôio azú.

26 Sô Rio-Preto, sô fundo, Mais tenho a água azulada, De remanso e cachuêra, A correnteza é lastrada, Eu nunca dei água limpa, A mulato da chapada.

sú (sul) ôio azú - olho azul

cachuêra (cachoeira) lastrada - tornada mais firme

27 Se você faz tanta búia, Se me qué assá de ispêto, É purquê você não sabe, Do perigo em que me metto, Eu venho de incumenda, Prá intupí Rio-Preto.

28 Se qué uvi meu conseio, Não se metta em tá fundura, Se qué tapá Rio-Preto, Faça parede segura, Apois onde é mais istreito, Tem mil braças de largura.

assá di ispêto (assar no espeto) intupí (entupir) - obstruir

uvi meu conseio (ouvir meu conselho) tapá (tapar) parede segura - barragem resistente apois (pois) istreito (estreito) braça - antiga medida de comprimento (1,8 m)

29 Nas catacumbas de fogo, Onde ninguém sente frio, O Inferno apaguei de assopro, Tapei o má de assobio, Se o má tapei dérépente, Mais dipressa tapo um rio.

30 Nos fundos de minhas águas, Tem boto, arraia e arricife, Se lontra preta te apanha, Te reduz o corpo a um bife, Corre antes que um remanso, Contra as pedras te ispatife.

catacumbas de fogo - o inferno subterrâneo, em chamas apaguei de assopro - apaguei com um sôpro tapei o má (mal) - abafei, estanquei o mal

arricife - recife ispatife (espatife)

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127 31 Não corro sem vê de quê, Não nado em fundo de tacho, Não me afogo em água pôca, Quando não posso, dispacho, Eu pensei que achava um rio, Mais o que achei foi riacho.

32 Canoa que não tem leme, Não pode pegá profia, Arriba, João da Romana, Dêxa dessa teimosia, Se tu não pode com o pote, Larga no chão a rudia.

sem vê (ver) de quê (que, ou quem) pôca (pouca) dispacho (despacho) - mato (?)

pegá (pegar) profia (porfia) - participar de uma disputa rudia (rodilha) - pano enrolado em rosca, colocado sobre cabeça como apoio para carregar uma carga (p. ex. um pote dágua)

33 Faço tapage de bronze, Paredão de pedra e cá, Derrubo o morro da Arara, No fundo do teu caná, Toco o sino em teu interro, Canto a missa e o funerá.

34 Muito imbora isteja morto, E inté da terra cumido, Levanto da sipurtura, Prá ripilli um atrivido, Apois bôbo cuma tu, Não me apuquenta o uvido.

cá (cal) caná (canal) interro (entêrro) funerá (funeral)

isteja (esteja) inté (até) cumido (comido) - decomposto, apodrecido sipurtura (sepultura0 ripilli (repelir) apuquenta (apoquenta) - importuna, aborrece uvido (ouvido)

35 De sipurtura que eu faço, Nem o Cão pode sahi, Que eu cavo cincoenta braça, Prô marvado se sumi, E maio a terra a soquete, Inquanto o bicho buli.

36 Cantadô não me ismagaia, Nem me apanha de surpreza, Quarqué parede de terra, Não me isbarra a correnteza, Que eu passo sempre pur riba, Do paredão da repreza.

maio (malho) a terra a soquete - compacto a terra com um malho buli (bulir) - mexer-se, isto é, enquanto o Cão ainda estiver vivo

ismagaia (esmigalha)

37 Eu pego a Serra Vermeia, Que do próprio raio zomba, Carrego a da Meruoca, Que é dura e a água não romba, Atravesso em teu caminho, E seco a água cum bomba.

38 Eu tenho nas cachuêras, Um bojo muito prufundo, Um jato dágua tão grande, Tão baruiento e tão fundo, Que ispaiado aqui na terra, Pode alagá todo o mundo.

romba (arromba) prufundo (profundo)

baruiento (barulhento) alagá (alagar)

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128 39 Sô sarva-vida e piloto, No má sô chefe e cacique, Quando a onda é muito forte, No caná levanto um dique, Sô leve cuma a curtiça, Frutúo e não vô a pique.

40 Sô mestre da giringonça, Sô perito na negaça, Eu te bebo de um só trago, Cuma quem bebe cachaça, Eu te assompro e te isbandaio, E te reduzo a fumaça.

sarva-vida (salva-vida) curtiça (cortiça) frutúo e não vô a pique (flutuo e não afundo)

giringonça (geringonça) - algo precário, desajeitado isbandaio (esbandalho) - fazer em pedaços, destruir

41 Tiro-te o côro e o cabello, Sem tê pena nem tê dó, Môo-te os ossos num rufo, Te reduzo a cinza e pó, Com três ispirro te istrompo, Eu te sumo, e fico só.

42 Eu já te vejo cercado, Cuma gado na ipuera, Cuma carro carregado, Quando ingancha na barrêra, Avoando pelos ares, Cuma se fôsse puêra.

côro (couro) - pele rufo - espécie de lima ispirro (espirro) istrompo (estrompo) - deterioro, estrago eu te sumo - faço-te sumir, desaparecer

ipuera (ipueira) - terreno alagado, represa natural ou lagoeiro carro (de boi) ingancha (engancha) na barrêra - atola no lamaçal puêra (poeira)

43 Berra o bode no bachi, Rincha cavallo no lote, No currá quem urra é tôro, No matto berra o garrote, Bode piqueno é cabrito, Sapo piqueno é caçote.

44 Ôvo ruim não dá pinto, Quando é bom tira e não gora, Quero que você me diga, Sem ingasgo e sem demora, Qual é a fruita de rama, Que bota e não infulora.

bachi (baxio ?) - baxão, baixada, planície, depressão do terreno caçote - pequena rã

ingasgo (engasgo) fruita (fruta) de rama - fruta que dá em galhos bota - dá (frutos) infulora - floresce

45 Banana não dá caroço, Nem vacca cria cupim, Prigunta deste quilate, É sopa, é nada prá mim, QUem dá fruita sem fulô, Só pode sê mudubim.

46 Pelo que eu istô vendo, Você não chega prá armoço, Apois não sabe dizê, Divagá, sem arvoroço, Qual é a fruita que dento, Tem água em vez de caroço.

prigunta (pergunta) é sopa - é fácil mudubim - amendoim

você não chega prá armoço (almoço) - você não vale nada arvoroço - alvoroço dento (dentro)

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129 47 Não vejo nada na frente, Quebro pau, arranco tôco, Um home prá mim é nada, Mesmo um cento ainda é pôco, Vejo só água por dento, Mais não caroço, é no côco.

48 Multao, arregala a vista, Que desta vez te dô cabo, Se tu qué sê sabe-tudo, Se tu tem pauta cum o diabo, Me arresponda quá o bicho, Que come sempre com o rabo.

mais (mas) arregala a vista - abre os olhos 49 Não me atrapaio nem ingasgo, Discutindo com você, Purisso, seu Rio-Preto, Eu posso lhe arrespondê, Que bicho argum neste mundo, Tira o rabo prá cumê.

50 Tem na casa quatro canto, Cada canto tem um gato, Cada gato inxerga dois, À ispera que passe o rato, Me arresponda quantos são, Que ali isiste de facto.

atrapaio (atrapalho) argum (algum)

inxerga (enxerga) ispera (espera) isiste (existe)

51 Se você me assegurô, Que a casa tem quatro canto, E em cada um tem um gato, Não me imbruio nem ispanto, Apois tudo sommadinho, Dá quatro gato, garanto.

52 Pega, então, na taboada, Mulato bom de Inhamum, Faz teus carcos e aresponde, Buchecha de ariticum, Quantos fica, toda a vez, Que de dois se tira um.

taboada (tabuada)

Inhamum = inho/inha (sertão) + mu (alto) - Inhamuns, região do interior do Ceará, antigamente habitada pela temida nação indígena dos Jucás http://www.institutodoceara.org.br/Rev-apresentacao/RevPorAno/1970/1970-PrimitivosDonosTerraInhamuns.pdf carcos (cálculos) buchecha (bochecha) ariticum (araticum) - árvore (Annona coriacea) de porte médio, sua fruta (comestível) é um tipo de pinha, com casca irregular e enrugada

53 Cangambá não teme cobra, Faiô teu bote esta vez, Num carco deste quilate, Eu não vô perdê um mez, Meu pae e minha mãe era dois, E eu nasci, nós ficô três.

54 Mulato do ôio cinzento, Da cabeça de cuscuz, Conta sem tutubiá, Quantos pinguinhos de luz, Deus dexô prá se apregá, Na casaca de Jesus.

cangambá - jaritataca, mamífero carnívoro, de pequeno porte, que como o gambá, também lança um líquido malcheiroso quando ameaçado faiô (falhou) mez (mês)

tutubiá (titubear) - hesitar dexô (deixou) apregá (pregar)

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130 55 Eu conto somente sete, Nas rôpas da Divindade, Três cravos, além da crôa, Feita de ispinho e mardade, Somado com as três pessoa, Da Santíssima Trindade.

56 Eu quero te dá deploma, Prá cantá junto da gente, Se agora me arrespondê, Limpo, ligeiro e descente, Quantos urús de pedrinha, Tem no Morro da Vartente.

rôpas (roupas) crôa (corôa) ispinho - espinho

deploma (diploma) arrespondê (responder) urú - cesto de palha de carnaúba, com alças Vartente (Vertente)

57 Eu metto o Morro num só, Arrumadinho e intêro, Se o urú fô muito grande, Muito maió que o oitêro, E assim as pedras não chega, Nem prá inchê o premêro.

58 Pinga a pipa, apara o prato, Pia o pinto no pulêro, Budêja o bode na baxa, Tatu trota em tabulêro, Todo multao é malandro, Bobo, boçá e brejêro.

intêro (inteiro) maió (maior) oitêro (oitero) inchê o premêro (encher o primeiro)

pulêro (poleiro) budêja (bodeja) - emitir a voz do bode, gaguejar baxa (baixada) - planície, depressão do terreno tabulêro (tabuleiro) boçá (boçal) - estúpido, grosseiro brejêro (brejeiro) - vadio, biltre

59 O gallo grita na grota, Paca pula e sapo salta, Quem na festa firma a fama, Furceja firme e não falta, Todo o preto é pobre e pronto, Pimpão, pachola e peralta.

60 Sô catolé, coco caro, Corto crista de capão, Caboré canta na copa Do burity do baxão, Quem topa tôro na testa, Não corre de curujão.

furceja (forceja) - esforça-se pimpão - valentão, jactancioso pachola - cheio de si, vaidoso, gabola peralta - janota, vadio

catolé - pequena palmeira (possivelmente Syagrus comosa), de palmito e frutos comestíveis capão - frango capado caboré (caburé) - espécie de pequena coruja baxão (baixada) - planície, depressão do terreno curujão (corujão)

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131 61 Potó, purga e praga preta, Purçubejo e procotó, Me ponha a pelle em pedaço, Me coma num cafundó, Se eu dexá nesses dez dia, De te ruê o mocotó.

62 Carrapato corta côro Cru, cabilludo ô curtido, Nenhum bicho, por mais bruto, Mata ô machuca o atrivido, Bem-te-vi bilisca o boi, E o carrapato é ingulido.

potó - besouro que segrega um líquido cáustico purga - talvez referindo-se a uma das etapa da limpeza do couro durante curtimento praga-preta - talvez peste negra (bubônica/pneumônica) purçubejo (percevejo) procotó - barbeiro (inseto) cafundó - quarto escuro usado como prisão/castigo ruê (roer) mocotó - calcanhar, tornozelo

cabilludo(cabeludo) atrivido (atrevido) bilisca (belisca) ingulido (engulido)

63 Tenho as juntas muito mole, Sei manobrá na iscápula, Ninguém se ingane cummigo, Não me toque, não me bula, Não sô quarqué carrapato, Que passarinho me ingula.

64 Bastião, baque, batique, Batoré, bota, butão, Bacia, bola, biscaia, Banana, bolo, e buião, Quem bate um bobo na bruta, É bicho baita, é barão.

juntas muito mole - articulações muito flexíveis manobrá (manobrar) na iscápula (escápula, omoplata) - talvez o indivíduo, como um contorcionista, consiga alterar as articulações do ombro (por exemplo, deslocando a escápula)

batique - talvez baticum, batida de tambores batoré - indivíduo baixo, gordo, corpulento butão (botão) biscaia - égua, mulher dissoluta ou de hábitos grosseiros, prostituta buião - forno a lenha, de barro, para defumação do látex baita - grande, importante

65 Zabelê, zumby, zaroio, Zinabre em zinco não faia, Zuzu, zumbaia, zarcão, Zuarte, zebra e zagaia, Quem zurze um zebu zangado, Zomba de zanga e zumbaia.

66 Papa, pipa, popa, papo, Sapucaia e sarapó, Pilão, pulia, polaca, Salina, sapo e socó, Quem pega purga na perna, Surra um sonso de cipó.

zabelê - pássaro, uma espécie de nambu zumby (zumbi) - fantasma, ou nome do chefe do quilombo de Palmares zinabre - acetato de cobre, azinhavre,verdete zinco - folha de flandres faia (falha) zuarte - pano de algodão zagaia (azagaia) - lança zurze - açoita, maltrata zumbaia - cortesia exagerada, salmaleque

sapucaia - árvore (Lecythis pisoni) de madeira resistente, seus grandes frutos servem para fazer cuias sarapó - pessoa de pele clara e cabelo crespo pulia (polia) polaca - dança de origem polonesa socó - espécie de ave purga (pulga ?) sonso - dissimulado, velhado

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132 67 Ronquêra, remo, rajada, Ritiro, rumo e ramage, Rato rasga e róe a rôpa, Bicudo bilisca a bage, Quem rompe e arreia o rojão, Perde o pulo e a pabulage.

68 Quem pesca pêxe no poço, Quem é veiáco ô vadio, Fazendo facho e foguêra, Fugindo à fúria do frio, Só tem fofice e farofa, Não pesca pêxe no Rio.

ronquêra (ronqueira) retiro (retiro) ramage (ramagem) róe (rói) rôpa (roupa) bicudo - uma espécie de ave bilisca (belisca) a bage (vagem) rompe e arreia o rojão - talvez significando desafinar no rojão (= toque arrastado de viola), e abandoná-lo perde o pulo e a pabulage - talvez significando fracassar e perder a pabulagem (= fatuidade, gabolice)

veiáco (velhaco) - enganador, patife

69 Lontra latindo no lago, Não róe raiz de rochedo, Que não é caco de cuia, Nem burity, nem brinquedo, Se o má já não me amedronta, Rio argum me mette medo.

70 Pelo só que assobe e raia, Por riba daquella serra, Furando as nuves mais grossa, Você morre e não me aterra, Apois Deus não fêz um home, Prá me intupi cá na terra.

nuves (nuvens)

aterra - amedronta 71 Não me importa que o só nasça, Que o vento sacuda a rama, Tapo o Rio e pesco o pêxe, Seja de côro ô de iscama, Te corto a grimpa e o tupete, Tiro-te a proa e a fama.

72 Se hové argum Cantadô, Que me tire o nome e a fama, O só se apaga no céo, Do ar cae chuva de lama, Toda a água vira azeite, E todo o mundo arde em chamma.

côro ô de iscama (couro ou de escama) grimpa - crista tupete (topete)

Cantadô (Cantador)

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133 73 De Cantadô do teu jeito, Conheço o cangaço e o cirro, Cum istrupiço e pabulage, Desde criança eu imbirro, As chammas que você toca, Apago só de um ispirro.

74 Cantô toda a natureza, Toda a Terra istremeceu, No dia em que Rio-Preto, Neste mundo appareceu, Pindurei o só no espaço, Quem fêz a Terra fui eu.

cangaço - palavra derivada de canga, peça de madeira que prende os bois pelo pescoço e sujeita-os ao carro de boi ou ao arado; à imagem de armas e pertences carregados às costas cirro - cincerro, sino ou chocalho preso ao pescoço dos animais istrupiço (estropício) - dano, malefício imbirro (embirro) - teimar, antipatizar

cantô (cantou) istremeceu (estremeceu)

75 Deus ti livre, Deus ti guarde, De eu me torná furibundo, Apago o só de um assopro, Na passage de um sigundo, Eu viro tudo do avêsso, Toco fogo e acabo o Mundo.

76 Mulato do chapéo grande, Papa-mingau da chapada, Sustenta a remandióla, E arresponde sem mais nada, Purquê é que o sapo berra, Só quando incontra inchurrada.

furibundo - furioso, colérico remandióla - viravolta, contratempo

inchurrada (enxurrada) 77 Preto de bocca de furna, Testa chata de carnêro, Só no inverno berra o sapo, Quando inchorra, e o aguacêro Móia a terra onde elle véve Interrado o anno intêro.

78 Papa-angú dos brocotós, Breberé do pé rachado, Discobre quá é o bicho, Que quando fica infezado, Arrodêa e ataca a gente, Em bando cuma sordado.

furna - buraco sob pedras, lapa, loca carnêro (carneiro) inverno - no nordeste, é a estação das chuvas inchorra (enxorra) - alagar com enxurro aguacêro (aguaceiro) - chuva forte móia (molha) véve (vive) interrado (enterrado) intêro (inteiro)

angú - papa grossa feita com fubá, mandioca ou arroz brocotó (borocotó) - terreno difícil, acidentado, roído pela erosão breberés (bérberes) - tribos nômades do norte da África infezado (enfezado) - raivoso sordado (soldado)

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134 79 Peito de aço de papo de rola, Cara de cabra isfolada, Quem pressegue e ataca a gente Cuma tropa, na chapada, Gritando e batendo o dente, É a vara dos quexada.

80 Cangaty da pança grande, Só tem água na barriga, Cuma mandioca insuada, Dismancha em água e não briga, Eu cunheço pelos óios, Mulato que tem lumbriga.

isfolada (esfolada) pressegue (persegue)

cangaty (cangati) - espécie de peixe que se abriga em locas pança - barriga insuada (ensoada) - flácido, diz-se da fruta cujo desenvolvimento foi prejudicado por excesso de calor dismancha (demancha) cunheço (conheço) lumbriga (lombriga) - verme parasita intestinal

81 Preto de pé de champrão, Urubu-tinga do norte, Prá te mandá prô diabo, No carro triste da morte, Dô-te uma purga damnada, De ramifuge bem forte.

82 Oreia mole de abano, Dos óios de bacurau, Tripa não é coração, Gaita não é berimbau, Te desmancho a urucubaca, Cum quatro tundas de pau.

champrão - indivíduo gordo, obeso urubu-tinga - urubu-rei, espécie de grande porte purga damnada (danada) ramifuge (vermífugo)

bacurau - espécie de ave de hábitos noturnos, curiango urucubaca - caiporismo, azar, infelicidade tundas - surras

83 Lugá de porco é na lama, Cama de preto é jirau, Tua rêde é o istralêro, Muito arto e sem degrau, Taca é armoço de preto, Tua janta é bacaiáu.

84 Fucinho grosso de tromba, Dentuça de cavadô, Cabeça de ripulêgo, Que carrapicho intrançô, Com esse jeito de macaco, Não foi Deus que te criô.

jirau - estrado de varas apoiadas sobre forquilhas, servindo de cama ou prateleira istralêro (estaleiro) - armação de madeira para secar carne ou cereais arto (alto) taca - chinelo, chicote usado para espancar bacaiáu (bacalhau)

fucinho (focinho) dentuça de cavadô (cavador) - prognatismo ripulêgo (ripulego) - indivíduo de nariz achatado carrapicho - designação de diversas plantas cujas sementes aderem com facilidade às roupas intrançô (entrançou) - sugerindo tranças formadas por carrapichos agarrados à cabeça criô (criou)

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135 85 Bocca funda de sulapa, Cum nariz de buquerão, Preto de perna cambaia, Não reza, nem é christão, Deus dexô dito que nêgo No céo não tem sarvação.

86 Venta de fole furado, Canella feita garrancho, Quêxo de arco de rebeca, Dedo torto, mão de gancho, Tudo que tu fô fazendo, Eu vô atraz e dismancho.

sulapa - indivíduo de boca e lábios grandes buquerão (boqueirão) - abertura de rio ou canal cambaia - torta dexô (deixou) sarvação (salvação)

quêxo (queixo) rebeca (rabeca) fô (fores)

87 Carcanhá de rachadura, Preto de cara pellada, Mais valia tem um bode, Que tem a cara barbada, Nas brechas de tuas pata, Bicho de pé faz morada.

88 Intrei na casa da Orde, Sahi na Thezoraria, Peguei no rabo da cobra, Metti na bocca da gia, Na bocca de quarqué preto, Nenhum branco tem valia.

carcanhá (calcanhar) orde (ordem) religiosa

thezoraria - tesouraria gia (jia) - espécie de rã de grande porte

89 Danço conforme se toca, Da viola uvindo o som, Purisso, seu Rio-Preto, Lhe digo no memsmo tom, Que eu nunca vi nese mundo, Um preto que fôsse bom.

90 Já é tarde e eu vô-me imbora, Mais nem Jesus me convence, Que um home cuma você, Me dá rodeio ô me vence, Se ôtra vez nos incontrá, O futuro a Deus pertence.

imbora (embora) 91 Tôro que me cae no laço, Meus vaquêro marca e ferra, Bizerro, quando tem fome, Pela vacca chora e berra, Quem foge apresenta sempre, Discurpa de papa-terra.

92 De cachorro mordedô, Quebro os dente, e se me ladra, Tenho a cabeça bem grande, Teu barrete não me quadra, Quem infrenta um veterano, Não teme um cabo de isquadra.

vaquêro (vaqueiro) bizerro (bezerro) discurpa (desculpa) papa-terra - espécie de peixe, acará

mordedô (mordedor) barrete - gorro quadra - serve infrenta (enfrenta) cabo de isquadra (esquadra) - antiga patente militar que comandava um efetivo de 25 soldados (em Portugal, uma companhia de infantaria era composta por 10 esquadras)

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136 93 Posso sê cabo de isquadra, Mais na rusga sô disposto, Morro seco e não me intrego, Istico e não te dô gosto, De abandoná a faxina, De disertá do meu posto.

94 não tenho medo de infuca, De pajahú quebro a ponta, Não carrego disaforo, Nem prá casa levo affronta, Se a occasião não primitte, De ôtra vez nós faz as contas.

rusga - luta intrego (entrego) istico (estico) - morro faxina - tarefa, luta (no sentido original, maço de ramos ou galhos utilizado para obstruir um fosso ou aterrar um terreno alagado) disertá (desertar)

infuca - intriga, mexerico, fuxico pajahú (pajeú) - faca pontuda com cabo de chifre disaforo (desafôro) primite (permite)

95 Conta que eu faço não fáia, Anda bem certa e bem justa, Cantadô do teu calibe, É coisa que não me assusta, Quem entra em turra cummigo, Acaba pagando as custa.

96 Meus sinhores e sinhoras, Cada um conserve e guarde, Que já vô me arretirando, Desta terra, purquê é tarde, Que não sahi da fulia, Fugindo feito um cuvarde.

calibe (calibre) turra - briga, disputa custa (custas)

sinhores (senhores) sinhoras (senhoras) arretirando (retirando) fulia (folia) cuvarde (covarde)

97 Meu véio pae me insinô, Num dia de sexta-fêra, Que todo aquelle que é fôrro, Com argum vintém na argibêra, Prá morrê nunca tem pressa, Prá brincá não tem carrêra.

98 Já vae o só muito arto, Já vae no meio a semana, Eu vô parti, vô-me imbora, vô regressá a Imburana, Onde me teme e me foge, Inté a sussuarana, Adeus, adeus, vô-me imbora, Adeus, seu João da Romana.

insinô (ensinou) fôrro (alforriado) - escravo liberto, a quem concedeu-se a alforria argum (algum) vintém na argibêra (algibeira) - algum dinheiro no bolso carrêra (carreira) - pressa

parti (partir) Imburana - cidade do Piauí, próxima a Matias Olímpio, não muito longe da fronteira com o Maranhão (Rio Parnaíba) inté (até) sussuarana (suçuarana) - felino de grande porte das 3 Américas, puma

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137 99 Eu sinto que tão dipressa, Clareie e o dia amanheça, Mais não vá acreditando, Que eu fique e me disvaneça, De lhe incontrá noutro dia, Seu RIo-Preto, e cunheça, Que aqui achô cabra macho, Que lhe fez dô de cabeça.

dipressa (depressa) disvaneça (desvaneça) - desapareça incontrá (encontrar) cunheça (conheça) achô (achou) dô - dor

Eram nove horas do dia. Os festejos haviam terminado. Avalanches de romeiros, cruzando as várias estradas que davam accesso à praça, em todas as direcções, iam demandando tristonhas, cansadas e somnolentas, diversas localidades do interior do sertão. Passos pesados e lentos que o esgotamento oriundo de doze noites de festas tornava arrastados e tardos, cada um dos que partiam sentia, não obstante, muito mais que a fadiga, a nostalgia pungente dos folguedos que se foram e as saudades cruciantes dos requebros das morenas que jungiam ao cortejo de suas faceirices e graças os sertanejos indômitos, que cativaram aos lampejos de seus olhos fascinantes. Vultosas tropas de burros, que também gozaram as férias que as festas lhes permittiram num farto ócio dormido em capinzaes abundantes, tilintando campainhas e casquinando nas pedras que juncavam as estradas, gemiam ao peso das cargas que conduziam ao costado, solidamente amarradas por fortes cordas de embyras e caroá. Arfando o peito ansiado entre suspiros saudosos que lhes enchiam a alma de doce melancholia que a esperança temperava, sertanejas transbordantes de viço e de formosura, em cujas faces coradas pelo rubor do momento o sol com ardente volúpia depunha beijos de fogo, agitavam lenços brancos, acenando carinhosas aos que partiam levando uma jura de seus lábios e uma promessa de amor, que o coração ainda virgem, como um relicário sagrado, guardaria avaramente, como um usurário o thezouro. Numerosos grupos montados nos cavallos mais briosos, tratados durante o anno para os torneios garbosos dessas folias de luxo, em que cada um se apresentava exibindo aos circumstantes o melhor que pôde obter, partiam estrada a fora entre nuvens de poeira, desapparecendo na curva em marcha vertiginosa. E os animaes descançados com a folga de doze dias que lhes deixaram os folguedos, cortavam rapidamente os estirões dos caminhos, com as narinas dilatadas e as crinas soltas ao vento, como se sentissem a volúpia de devorar as distâncias e reduzir os espaços. A povoação, envolta ainda há pouco numa algazarra bulhenta que ao longe repercutia as notas sempre ruidosas de uma alegria feliz, ia pouco a pouco voltando à somnolencia lethargica dos dias em que o trabalho permittia a cada homem abandonar-se ao repouso das lutas e das canseiras, a que quotidianamente o obriga o seu viver dependente da cultura árdua do solo. Os habitantes do povoado, logo após as despedidas dos romeiros e devotos que haviam agasalhado durante os dias de festa, recolhiam-se, sedentos de algum silêncio e descanço, ao casquinar - dar pequenas risadas sucessivas (aludindo ao som das pedras revolvidas pelos cascos dos animais) embyras (embiras) - fibras vegetais caroá - bromeliácea de fibras utilizadas para fazer cordas e outros usos têxteis

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138 recinto de seus lares. Uma paz estertorante, como se com o término das festas ficasse a povoação reduzida a uma verdadeira necrópole, começava a cahir suavemente, envolvendo todas as coisas. As contendas ou polêmicas, desafios ou rojões em que esses homens incultos de admirável engenho e penetrante intelligencia se empenham um contra o outro nas folias de grande vulto, não ferem tanto o orgulho da fama que julgam ter, se vencem ou são vencidos depois de haverem travado com rivaes de grande nome uma pugna seguida em vários dias de encontro. Quando, porém, o torneio é de pouca duração e um dos dois não sae vencido, o amor próprio se exaspera e nenhum dos dois se conforma em admittir a hypothese da victoria do rival. Procuram então, dahi em diante, encontrar-se numa decisiva peitada, em que um fique convencido da superioridade do outro. Dahi resulta o motivo de nenhum dos Cantadores querer deixar o terreno ao adversário teimoso, que é tido pelo contrário como seu inferior. Dessa convicção acariciada e mantida por ambos os Cantadores, dominados pela idea do triumpho considerado infallive, nasce a louca persistência de se apodarem e ferir de modo às vêzes cruel emquanto a distância permitte que a sua voz seja ouvida. Foi o que succedeu, sem dúvida, entre esses dois sertanejos, cada um dos quaes pretendia, estygmatizado pelo zêlo com que defendia e guardava a sua fama e prestígio, arrastar o contendor a uma derrota estrondosa que ficasse memorável em todo o rincão nordestino. Rio-Preto, intelligente e audaz, presumçoso e fanfarrão, mas ignorante e atrasado, ennumerando a todo o propósito como um padrão incomparável de seus feitos e victorias o ter sido convidado e admittido a cantar por duas vêzes no Palácio do Governo, insinuava-se como o mestre de todos os Cantadores. Fazia-se acompanhar de alguns rapazes que dizia seus discípulos, fazia espalhar por estes, entre as camadas crédulas e incultas, que aprendera com João Curisco as artes de Salamão timbrava em ser pontual no desempenho de seus compromissos, e nunca faltar aos folguedos em que se compromettera a cantar. E levava a tal ponto a convicção de seu valor e da inferioridade daquelles com os quaes se digladiava que, quando interrogado sobre o que pensava de um rival que não tinha conseguido vencer, de sobrolhos carregados e attitude de importância respondia: - “É um bom principiante, se continuá no officio, ficará bom de rosca. Precisa ainda é de uma esfrega de mestre. Com mais duas lambimbadas que eu lhe sapecasse no coco esparrava na rojões - toques arrastados ou rasgados de viola peitada - embate apodarem - escarnecerem artes de Salamão - o Livro dos Provérbios, o Livro do Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos (na Bíblia), são atribuídos ao Rei Salomão, e por uns considerados como livros sapienciais; o Livro da Sabedoria e o Testamento de Salomão são-lhe apocrifamente atribuídos, compondo com o Sêlo de Salomão etc um corpo de conhecimentos e artefatos esotéricos com poderes supostamente mágicos digladiava - lutar com o gládio, combater officio (ofício) - profissão rosca - algo difícil de ser realizado esfrega de mestre - uma boa surra (lição) lambimbadas (lambadas) coco - cabeça esparrava - esparramava-se (?)

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139 manha da futrica e ficava baita. Farta um badejo que lhe bata no púrpirto inté ficá peijoaba.” João da Romana, mulato pernóstico e tagarella, criado com algum cuidado por gente de tratamento, assignando mal o nome e lendo um pouco pior a “Donzella Theodora”, e as proezas de “Roldão e Oliveiros”. Tocador de violão e cantador de modinhas em músicas alambicadas, com trejeitos e denguices que lhe davam cotação entre as mulheres do povo, era o typo convencido do galan das serranias, empavesado e ridículo nas pretenções e attitudes, affectando austeridade e procurando distanciar-se da classe a que pertencia e em cujo seio era tido como um lider armado de saber e de importância, capaz de orientar e dirigir com segurança as camadas que o cercavam. Apesar do enthuziasmo insolente com que procurava alardear a sua superioridade, tinha a sua roda no “Junco”, onde habitualmente morava, era ouvido e consultado por toda a grey do rincão, e nenhum negócio importante por ali se decidia sem as luzes dos seus conselhos. Possuidor de taes requisitos e dotado, além disso, de uma boa intelligencia que se manifestava abundante no mistér de Cantador, a que a vocação e a influência do meio imperiosamente o arrastaram, considerava-se invencível e encarava os demais Cantadores com desdém e algum desprêzo que não tentava occultar. E quando os seus admiradores o interrogavam em relação aos seus pares, revestia-se de uma attitude de julgador em última instância, tirava o cachimbo da bocca, e despejava sobre o infeliz o raio destuidor de sua sentença implacável: “- É um pobre ignorante. Não sabe lê nem inscrevê. Nunca uvio a História de Carlos Magno, nem a da Donzella Thiodora.“ E com essa apostrophe terrível ficava fulminado o adversário no conceito daquella gente, que, de bocca aberta e olhos esbugalhados, na admiração de tanto saber religiosamente o ouvia. Escravo de taes ideas e imbuído de taes preconceitos, originaes e extravagantes, considerava manha - destreza, habilidade futrica - dito impertinente, pilhéria baita - muito bom, ótimo, excelente badejo - mestre (?) bata no púrpito (púlpito) - insistir, repetir lições (?) inté (até) ficá (ficar) peijoaba - até ficar bom peijoaba (pejibaye) - palmeira (Bactris gasipaes) espinhosa, alta, mais conhecida por pupunha Donzella Theodora (Donzela Teodora) - história de origem árabe sobre uma escrava, bela e sábia, que continua encantando o povo do Nordeste, freqüentando a literatura de cordel http://pt.wikisource.org/wiki/ abra este link e copie no campo pesquisa o seguinte título: História da Donzela Teodora (recolha de Luís da Câmara Cascudo) http://www.flogao.com.br/arievaldocordel/foto/08/23707875 Roldão (Roland) e Oliveiros (Olivier) - remete à História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França http://books.google.com/books?id=keVuIpYrstAC&pg=RA1-PA34&lpg=RA1-PA34&dq=rold%C3%A3o+carlos+magno&source=bl&ots=L7UYRNs__q&sig=1omzuTUbrVOoRPb8md2xHzTX5CM&hl=pt-BR&ei=b-ynSeLKHI3BtgfHioHcDw&sa=X&oi=book_result&resnum=3&ct=result#PPP5,M1 La Chanson de Roland, poema épico do século XI, tem por fundo histórico a batalha de Roncesvalles (15 de agosto de 778), onde morreu Roldão (Roland), sobrinho de Carlos Magno http://pt.wikipedia.org/wiki/La_chanson_de_Roland alambicadas - presunçosas, afetadas galan (galã) empavesado - orgulhoso grey (grei) - povo

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140 uma baixeza que affectaria a sua honra e deslustraria a sua fama e o seu nome, desmoralizando-o para sempre na opinião daquella gente que o admirava e temia, o deixar que um rival ignorante das histórias e lendas que encontrara nos dois livrinhos que soletrava com esforço e persistência, o considerasse vencido, fallando em último lugar. Dahi a razão pela qual, affastando-se, muito embora, em direcções muito oppostas, continuavam a insistir no Desafio enquanto a distãncia permittia que ouvissem a voz um do outro, repercutida nas serras e levada pelo vento. Assim o João da Romana fazia echoar nas quebradas as notas christalinas e vibrantes da sua voz de tenor, crivando ainda o rival, que também lhe respondia, com os seus engenhosos ataques: Vô-me imbora, vô-me imbora, Por este mundo tão ermo, Levando dentro do peito, Uma dô que não tem termo, De não tê feito cadave, De um Cantadô já infermo.

Cum meu facão boto em baxo, Teu cabello pixaim, Tudo no mundo se acaba, Tudo no mundo tem fim, Não canta ainda a victoria, Mulatao, ispera pur mim, Que eu te esmagaio no dedo, Cuma a um pobre micuim.

cadave (cadáver) infermo (enfêrmo) - doente

esmagaio (esmigalho) micuim - carrapato-pólvora

Eu ti ispero inté no inferno, Perna torta de macaco, Casca véia de madêra, Já reduzida a cavaco, Cabaça mole de lama, Que eu já dexei feita caco.

Margúio a nado no seco, Venho na tona e te ispero, Prá te interrá de uma vez, Apois já te considero, Pexe visgado no anzó, Difunto no cimitéro.

madêra (madeira) dexei (deixei) feita (feito) - como

visgado (fisgado) anzó (anzol) difunto (defunto) cimitéro (cemitério)

Minha gente me discurpe, Se eu cummetti argum erro, Eu vorto daqui a um anno, Prá vi fazê o interro, Deste mardito canaia, Que mesmo morto inda é perro, Mittido dentro de um saco, De côro cru de bizerro.

discurpe (desculpe) cummetti (cometi) vorto (volto canaia (canalha) perro - cachorro, cão mittido (metido)

A vida e o movimento que até há pouco renavam, fazendo do lugarejo um centro de animação e de actividade febril, iam cedendo lugar a uma quietação suave e morna, a uma espécie de apathia ou de torpor, que envolvia lentamente o quadro de cores vivas daquella estância afagada pelos beijos das montanhas na somnolencia lethargica das coisas adormecidas. E quando o Rei dos Espaços, como um globo incandescente que o Architecto Omnipotente dependurasse no céo, se alcandorava ao zenith, projectando sobre a terra as cascatas

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141 coruscantes de ouro líquido de seus raiosm só o ladrar de algum cão, ou o cantar de algum gallo, davam uma idea de vida no meio desse silêncio que cingia a natureza por um abraço lethal. A povoação, fatigada por doze dias de festas, e exgotada pelos effeitos das emoções variadas que nesse espaço de tempo a agitaram, dormia profundamente. A quietude anterior que pairava a essa hora, como uma onda anesthesica, nos lares adormecidos, reflectia-se cá fora, na tranqüilidade ambiente e na serenidade das coisas. Era a convalescença da febre, do delírio e da vertigem daqulles dias ruidosos, que vinha tonificar o espírito, pelo bálsamo do repouso, para as lutas do trabalho e para as sensações extenuantes, do mesmo gênero e aspecto, que iam reproduzir-se, pela accção dos mesmos agentes, dentro do espaço de um anno.

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BURITY-GRANDE O pequeno Povoado de Buryti-Grande, no Piauí, fica a algumas centenas de metros da BR 316 (que liga Picos a Teresina), a poucos quilômetros de seu entroncamento com a BR 230 (que liga Picos a Oeiras). Mais precisamente, abraçando o trecho inicial da estrada secundária que, partindo da BR 316, dirige-se ao município de Santa Cruz do Piauí. O Povoado de Buryti-Grande pertence atualmente ao município de Dom Expedito Lopes, que dista 27 km de Picos. No passado, pertenceu ao município de Oeiras.

olho d’água (nascente), cercado por buritis, próximo de onde ficava a casa de

Joaquim Antonio Ferreira Lopes, pai de Cecílio Ferreira Lopes

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BR 316 - a entrada para o Povoado de Buryti-Grande fica à esquerda

entrada do Povoado de Buryti-Grande

curral e serra

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OEIRAS “O Estado do Piauí teve sua colonização realizada partindo do interior rumo ao litoral. No princípio, vaqueiros destemidos oriundos da Bahia tangendo as boiadas em busca de novos pastos para seus rebanhos que se ampliavam, avançavam perseguindo os vales verdejantes. Atravessaram o rio São Francisco, ultrapassaram as serras que separam os terrenos cristalinos dos da bacia sedimentar do Parnaíba. Nesse ponto, a partir das nascentes dos rios Canindé, Piauí e Marçal, desceram margeando seus cursos fundando fazendas. Muitas delas transformaram-se em nossas cidades. Nas margens do Canindé e de seus principais afluentes foram estabelecidas grandes fazendas de gado por Domingos Jorge Velho e seu irmão. Outros fazendeiros também fundaram suas fazendas e fizeram daqueles sertões longínquos sua terra definitiva de morada. A igreja católica assistia àqueles pioneiros desbravadores com a presença de padres visitadores que percorriam as propriedades rurais, evangelizando e ministrando os ritos católicos. Aqueles "homens de bem" decidiram então que era tempo de se ter uma freguesia religiosa para dar oficialmente, início a primeira povoação civilmente organizada. Naquele tempo, a maioria dos principais fazendeiros do Piauí, habitavam os vales do Tranqueiras e do Canindé. Decidiram então realizar uma reunião na casa de Antônio Soares Touguia no ano de 1696, para escolher onde construir sua Igreja. O lugar foi o brejo da Mocha por ser ponto eqüidistante entre suas fazendas. Registraram o acontecimento e enviaram o documento ao rei de Portugal. Com a devida autorização e presença do padre visitador Miguel de Carvalho, na pressa de firmarem aquela vontade, foi erigida a primeira capela de taipa em invocação a Nossa Senhora da Vitória. Sua primeira missa celebrada no ano de 1697. Em seguida, chegou o pároco da freguesia o padre Thomé de Carvalho que deu início a construção da majestosa Igreja Catedral de Nossa Senhora da Vitória inaugurada definitivamente no ano de 1733 - ícone de nossa história. E depois, como pastor de todo aquele território, saiu construindo outras igrejas por todo o Piauí.”

Oeiras (*) - vista aérea

Morro do Leme - estátua de Nossa Senhora da Vitória

Igreja Nossa Senhora da Vitória Igreja Nossa Senhora da Vitória

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Oeiras - vista a partir do Morro do Leme (ao fundo, Igreja de Nossa Senhora da Vitória)

Igreja Nossa Senhora da Vitória - nave lateral

Igreja Nossa Senhora da Vitória (*) - Procissão do Fogaréu

“Oeiras nasceu ao redor da igreja de Nossa Senhora da Vitória. Naquele sítio, os fazendeiros construíram suas casas, ocupando-as apenas durante os períodos das festas religiosas da Semana Santa, do Divino Espírito Santo, Corpus Cristhi, da Padroeira, Santo Antônio, da Conceição com suas fiéis, centenárias procissões. Aos poucos a localidade foi crescendo e formando suas primeiras ruas. No dia 30 de dezembro de 1712, por ato do rei de Portugal, a povoação foi elevada a condição de Vila da Mocha. O ato foi localmente oficializado no Paço do Senado da Câmara, localizado na praça da Matriz da Vila da Mocha, em 26 de dezembro de 1717. Com o desmembramento da Capitania de São José do Piauhy, do Maranhão, o rei nomeia em 26 de agosto de 1758 o primeiro governador da recém criada Capitania, o coronel João Pereira Caldas que tomou posse em 20 de setembro de 1859. Em 13 de novembro de 1761 o Governador Pereira Caldas publica Decreto mudando o nome de Vila da Mocha para Oeiras. Depois, no dia 24 de janeiro do ano de 1823, o Brigadeiro Manoel de Sousa Martins - Visconde da Parnaíba, de Oeiras, proclamou oficialmente a adesão do Piauí ao Brasil independente. E a mais velha cidade piauiense permaneceu como capital até o ano de 1852 quando a sede da Província foi transferida para Teresina. Mas Oeiras permaneceu invicta. Seu domínio territorial chegou a limitar-se das fronteiras do Ceará, Pernambuco e Bahia ao Maranhão. Ao longo dos tempos ele vem sendo continuamente fracionado, provocado pelo aparecimento de novos núcleos populacionais, tais como Paulistana, Jaicós, Picos, Pio IX, Simplício Mendes ...”

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Igreja Nossa Senhora da Vitória - portal

Igreja Nossa Senhora da Vitória - altar-mor

“No ano de 1999 o município de Oeiras está a dominar uma área superficial de 2.749 quilômetros. Como resultado de tantas emancipações, seu contigente populacional tornou-se essencialmente urbano. Sua população é de aproximadamente 31.800 habitantes onde, 19.800 encontram-se na sede municipal. Apenas 12.000 habitantes ainda se encontram residindo pelo interior do município. Hoje, como núcleos populacionais rurais, restam apenas os povoados de Alagoinhas e Buriti do Rei. Desse total 16.000 pessoas estão habilitadas para o direito de uso do voto. Seu perímetro territorial é limitado ao norte com os municípios de Cajazeiras do Piauí, Santa Rosa do Piauí e Várzea Grande, ao sul com São Francisco do Piauí, Colônia do Piauí e Wall Ferraz, a leste com Santa Cruz do Piauí, São João da Varjota, Inhumas e Novo Oriente e a oeste com Nazaré do Piauí e parte do município de Arraial. Sua economia é baseada no comércio com suporte na agricultura e na pecuária. Oeiras, primeira cidade fundada neste Estado, palco de atos corajosos de afirmação da nossa independência, berço de nossa cultura, marco referencial da quase totalidade das famílias piauienses, resiste com determinação e empenho. “

Praça da Vitória e Pousada do Cônego (prédio azul à direita) - vista tomada a partir do portal da Igreja Nossa Senhora da Vitória

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Praça da Vitória Igreja Nossa Senhora do Rosário

Casa da Pólvora - 1674 (antigo depósito de munições e armamento)

Casa da Pólvora (interior)

“Oeiras é o mais antigo núcleo populacional do Piauí. Suas origens remontam há mais de três séculos. Segundo alguns historiadores foi um arraial de índios domesticados, estabelecido por Julião Afonso Serra, em 1676. Outros querem o início do povoamento com a mais importante fazenda do português Domingos Afonso, versão mais aceita pela maioria dos historiadores, levando-se em conta que a colonização do Piauí deu-se com o gado e os primeiros currais. Sobre esses tempos primeiros, assim se expressa o historiador da cidade, Dagoberto Carvalho Jr.: "Lá pelos anos setenta do século XVII, as trilhas sem medo dos vaqueiros românticos da Casa da Torre esbarraram aqui. E aqui se plantou, ‘do Mocha a corrente a mirar cristalina’ - como no verso bonito de Expedito Rego - o mais audaz desses vaqueiros: Domingos Afonso, um português de Mafra, chamado também pela bravura, Domingos Afonso Sertão. É por isso que ainda hoje esta terra e esta gente se dizem de Mafrense, apelido primeiro do bravo sertanista. Em 1696 criou-se, em terras da fazenda primitiva, uma freguesia com capela dedicada a Nossa Senhora da Vitória. Seu território foi, no espiritual, desmembrado da freguesia pernambucana de Cabrodó, jurisdição eclesiástica a que estava, então, sujeito. A ereção canômica do primeiro templo do Piauí deve-se a D. Frei Francisco de Lima, Bispo de Olinda, em atitude de transcendente interesse histórico pois que, a bem dizer, definiu o povoamento, que já recebera o nome de Mocha, riacho que banha a localidade. Por carta Régia de 30 de junho de 1712, o povoado foi elevado à categoria de vila, conservando o nome. Criou-se, então, a Vila da Mocha, cuja instalação ocorreu em 26 de dezembro de 1717. E o 26 de dezembro, pela importância de que se reveste para a cidade, passou a ser o Dia de Oeiras, através da Lei Municipal nº 1.147, de 16 de agosto de 1979. Criada a Capitania do Piauí, independente do Maranhão, por Carta Régia de 29 de julho de 1758, foi a Vila da Mocha designada para a sede do novo Governo, capital, portanto, antes de elevada categoria de cidade, o que somente se deu em 19 de junho de 1761, com a denominação de

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148 Oeiras. Homenageou-se, assim, o Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e futuro Marquês de Pombal. O primeiro Governador, João Pereira de Caldas, em honra de El-Rei D. José I, impôs à Capitania o nome de São José do Piauí. A esse tempo já a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória, primeiro templo regular do Piauí, ostentava feição definitiva, construída no local da primeira ermida e inaugurada em 1733, há, portanto, 266 anos. Evento que a cidade e o povo comemoram com louvor e júbilo. Oeiras foi capital da Província até o ano de 1852, quando o Presidente José Antônio Saraiva transferiu o predicamento para a Vila do Poti, depois Teresina, denominação dada á nova capital em homenagem a Da. Teresa Cristina, esposa do imperador Dom Pedro II.” Instituto Histórico de Oeiras, textos de Antônio Reinaldo Soares Filho e Pedro Ferrer Mendes Freitas http://www.oeiraspi.hpg.ig.com.br/viagens/9/index_pri_1.html 2 fotografias (*) deste site, as demais são de autoria de Dilermando Ferreira Lopes Filho

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BIBLIOGRAFIA Estas obras de Cecílio Ferreira Lopes, meu avô, desafiaram-me a compreendê-las em sua plenitude. Assim, as abundantes referências a costumes, crendices, fauna e flora do sertão foram esclarecidas mediante pesquisa em livros e na internet. Os verbetes explicativos foram escritos com base nestas fontes - a cujos autores, por vêzes anônimos, agradeço em nome de meu avô. Árvores Brasileiras - Manual de Identificação e Cultivo de Plantas Arbóreas Nativas do Brasil - Volumes 1 e 2 Harri Lorenzi Instituto Plantarum de Estudos da Flora Ltda. (2002) Árvores Exóticas no Brasil - Madeireiras, Ornamentais e Aromáticas Harri Lorenzi, Hermes Moreira de Souza, Mário Antonio Virmond Torres, Luís Benedito Bacher Instituto Plantarum de Estudos da Flora Ltda. (2003) Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês Paulo José Cunha Oficina da Palavra e Empreendimentos Culturais Ltda (2008) http://querumbloggratuito.blogspot.com/2007_04_01_archive.html Pequeno Dicionário de Termos e Expressões Populares Maranhenses José Ribamar Martins (2008) Palmeiras Brasileiras e Exóticas Cultivadas Harri Lorenzi, Hermes Moreira de Souza, Judas Tadeu de Medeiros Costa, Luís Sérgio Coelho de Cerqueira, Evandro Ferreira Instituto Plantarum de Estudos da Flora Ltda. (2004) Plantas Medicinais no Brasil - Nativas e Exóticas Harri Lorenzi, Francisco José de Abreu Matos Instituto Plantarum de Estudos da Flora Ltda. (2002) Plantas Ornamentais no Brasil - Arbustivas, Herbáceas e Trepadeiras Harri Lorenzi, Hermes Moreira de Souza Instituto Plantarum de Estudos da Flora Ltda. (2003) Vaqueiros e Cantadores Luís da Câmara Cascudo Global Editora e Distribuidora Ltda. (2004) Assim é que se fala no Sertão http://www.overmundo.com.br/banco/assim-e-que-se-fala-no-sertao-enredo-em-dez-cantos-sextilhados

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150 Debutade http://www.luckens.nl/achtergr_info/debutade.html Dicionário de Folclore para Estudantes http://www.soutomaior.eti.br/mario/paginas/dic_a.htm Dicionário Informal http://www.dicionarioinformal.com.br/ Dicionário da Língua Portuguesa http://www.hostdime.com.br/dicionario/cafute.html Dicionário de Matutês http://www.pe-az.com.br/subsecao_ler.php?id=OTk0 Dicionário Nordestino http://salmy_de_lacerda.vilabol.uol.com.br/DICIONARIO.htm Dicionário de Pernambuquês http://www.perguntascretinas.com.br/dicionario-de-pernambuques/ Escritas e Falares da Nossa Língua http://falaresdanossalingua.blogspot.com/2007/08/landra-landre.html Folclore Piauiense http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=11523&cat=Artigos&vinda=S Glossário: Equinos e Asininos http://letratura.blogspot.com/2006/12/glossrio-equinos-e-asininos.html Glossário de Medicina Sertaneja http://sertaodesencantado.blogspot.com/2007/12/glossrio-medicina.html iDicionário Aulete http://www.aulete.portaldapalavra.com.br/site.php?mdl=aulete_digital Índice de Plantas e Ervas Medicinais por Nomes Populares http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/index_np_aa-al.htm Lista de Expressões Idiomáticas http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_express%C3%B5es_idiom%C3%A1ticas Medicina Folclórica no Piauí http://www.jangadabrasil.com.br/julho59/pn59070b.htm

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151 Novo Dicionário Rogério da Língua Piauiesa http://www.capivaratur.com.br/dicionario_rogerio.htm Significado dos Nomes http://www.significado.origem.nom.br/nomes_i/ há algumas outras referências citadas ao longo dos textos

livro à venda no Clube de Autores http://clubedeautores.com.br/search?what=festas+sertanejas&commit=BUSCA

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