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Danilo Christiano Antunes Meira AS CRÍTICAS DE AMARTYA SEN ÀS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Direito, na área de concentração Teoria, Filosofia e História do Direito. Orientador: Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues Florianópolis 2015

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Danilo Christiano Antunes Meira

AS CRÍTICAS DE AMARTYA SEN ÀS TEORIAS DE JUSTIÇAFOCADAS EM ARRANJOS

Dissertação submetida ao Programa dePós-Graduação em Direito daUniversidade Federal de SantaCatarina para a obtenção do Grau deMestre em Direito, na área deconcentração Teoria, Filosofia eHistória do Direito.

Orientador: Prof. Dr. HorácioWanderlei Rodrigues

Florianópolis2015

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Danilo Christiano Antunes Meira

AS CRÍTICAS DE AMARTYA SEN ÀS TEORIAS DE JUSTIÇAFOCADAS EM ARRANJOS

Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do Títulode “Mestre em Direito”, na área de concentração “Teoria, Filosofia eHistória do Direito”, e aprovada em sua forma final pelo Programa dePós-Graduação em Direito.

Florianópolis, 20 de fevereiro de 2015.

________________________Prof. Luiz Otávio Pimentel, Dr.

Coordenador do Curso

________________________Prof. Horácio Wanderlei Rodrigues, Dr.

OrientadorUFSC

Banca Examinadora:

________________________Prof. Matheus Felipe de Castro, Dr.

PresidenteUFSC

________________________Prof. Delamar José Volpato Dutra, Dr.

UFSC

________________________Prof.ª Grazielly Alessandra Baggenstoss, Dr.ª

UFSC

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________________________Prof. Júlio Marcelino Júnior, Dr.

UNISUL

________________________Prof. Luiz Henrique Urquhart de Cademartori, Dr.

UFSC

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Este trabalho é dedicado aos meusavós, João e Nair.

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AGRADECIMENTOS

Em agradecimento à ajuda que recebi para o desenvolvimento dotrabalho aqui apresentado, devo começar lembrando que minha grandedívida é pela liberdade e pelos ensinamentos que o meu orientadorHorácio Rodrigues me proporcionou durante as minhas aulas, estágio epesquisas, fundamentais para o meu amadurecimento e para oamadurecimento deste texto final.

Devo registrar que fui muito feliz pelas lições que tive com osprofessores Aírton Seelaender, Antônio Hespanha, Antônio Wolkmer,Éverton Gonçalves, Jeanine Phillippi, Olga Oliveira e Vera Andrade emsuas disciplinas, refletidas em larga medida nesta pesquisa. De igualmodo, manifesto um especial agradecimento aos professores DelamarDutra e Luíz Cademartori pelas contribuições na avaliação do meuprojeto e Grazielly Baggenstoss, Júlio Marcelino e Matheus Castro que,com os dois primeiros, participaram da banca de defesa e ofereceramcríticas e sugestões verdadeiramente decisivas para que eu pudesseperceber inúmeras inadequações em minha proposta inicial.

À coordenação, na pessoa do professor Luiz Pimentel, e àsecretaria do PPGD, conduzida pelos amigos Fabiano Dauwe, MariaAparecida e Nelson, agradeço pelo auxílio e carinho com os quaissempre me receberam.

Aos companheiros de pesquisa do Núcleo de Estudos ConhecerDireito – NECODI, Gabriela Bechara, Leilane Grubba, Luana Heinen,Renata Ramos e Rubin Souza, aos colegas que também ingressaram noMestrado em 2013, Adircélio Ferreira, Aírton Ribeiro, DaianeTramontini, Débora Ferrazo, Eduardo Granzotto, Efendy Emiliano,Flávia Vieira, Isabella Lunelli, Juliano Rossi, Luciano Góes, Luís Orio,Natália Jodas, Renato Martinez, Vanessa Lema e aos demais amigos quefiz no PPGD, Adaílton Costa, Ademar Pozzatti, Elton Fogaça, GabrielaSá, Gislaine de Paula, Jackson Leal, Jonathan Elizondo, Macell Leitão,Marcel Laurindo, Patrícia Bortolotto, Rafael Cherobin, Suelen Carls,Valter do Carmo e Walter Marquezan, pessoas generosas e seriamentecomprometidas com a academia, não saberia descrever a gratidão quetenho por todas as conversas, críticas e sugestões. Vocês tornaram ocaminho mais fácil.

Aos professores Edson Fonseca, Enrique Haba e Oscar Sarlo,meu agradecimento pelas palavras, ensinamentos e amizade. Devomuito a vocês.

Por fim, agradeço ao financiamento da Coordenação deAperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, substituído

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pelo financiamento do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico – CNPq, sem o qual essa pesquisa não poderiater sido realizada.

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O que nos move, com muita sensatez, não é acompreensão de que o mundo é privado deuma justiça completa — coisa que poucos denós esperamos —, mas a de que a nossavolta existem injustiças claramenteremediáveis que queremos eliminar (AmartyaKumar Sen, 2009)

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RESUMO

A presente pesquisa procura oferecer uma avaliação das críticas que oeconomista indiano Amartya Kumar Sen faz às Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos. Começa com a justificação da exigência de que osproblemas de justiça devam ser refletidos pelo uso da razão pública eapresenta as características das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos,um tipo de abordagem sobre os problemas de justiça derivada datradição contratualista. Segue por uma exposição das deficiências queAmartya Sen identifica nessa abordagem e das vantagens que elepercebe em sua própria teoria de justiça. Confrontando as conclusões doeconomista indiano com as discussões deflagradas pela Teoria doDireito, com a perspectiva da metodologia das Ciências Sociais de KarlPopper e com as críticas que as receberam, revela que muitas reflexõesjá haviam sido feitas e que outras não foram percebidas comoadequadas. No entanto, conclui que várias lições ainda podem seraproveitadas.

Palavras-chave: Amartya Sen. Teorias de Justiça. Abordagem Focadaem Arranjos.

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ABSTRACT

The present research aims to provide a review of the criticisms that theIndian economist Amartya Kumar Sen does to the Justice TheoriesFocused on Arrangements. It begins with the justification for therequirement that justice problems must be reflected through the use ofpublic reason and presents the characteristics of Justice TheoriesFocused on Arrangements, a kind of approach to the justice problemsderived from the contractarian tradition. Follows by a presentation of thedeficiencies that Amartya Sen identifies in this approach and theadvantages that he realizes on his own theory of justice. By confrontingthe conclusions of the Indian economist with the discussions triggeredby Legal Theory, with the perspective of the Social Science'smethodology of Karl Popper and the criticisms that have received them,reveals that many considerations had already been made and others werenot perceived as right ones. However, concludes that several lessons canstill be enjoyed.

Keywords: Amartya Sen. Theories of Justice. Arrangements-focusedApproach.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................17

2 TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS.................39

2.1 O senso de justiça e o uso da razão................................................412.2 O uso da razão e o Esclarecimento.................................................482.3 O Contratualismo como explicação racional da sociedade............522.4 Do Contratualismo ao Institucionalismo Transcendental..............542.5 Institucionalismo Transcendental e Justiça Focada em Arranjos...562.6 Exemplares das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos..............58

2.6.1 A Justiça como equidade de John Rawls..................................602.6.2 Justiça e Estado mínimo em Robert Nozick.............................722.6.3 David Gauthier e a moralidade do mercado.............................78

3 PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS DAS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS.............................................85

3.1 A ideia reguladora de utilidade de uma teoria de justiça................863.2 As deficiências das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos.........883.3 Os dois problemas do transcendentalismo.....................................90

3.3.1 Sobre o problema da factibilidade............................................913.3.2 O problema da redundância......................................................94

3.4 O problema da concentração nas instituições................................963.5 A necessidade de uma abordagem comparativa...........................101

3.5.1 A Teoria da Escolha Social.....................................................1033.5.2 Aportes da Teoria da Escolha Social.......................................1103.5.2.1 Foco nas realizações.............................................................1113.5.2.2 Foco nas comparações.........................................................1143.5.2.3 Reconhecimento de princípios concorrentes.......................1143.5.2.4 Possibilidade de reexame.....................................................1143.5.2.5 Possibilidade de soluções parciais.......................................1153.5.2.6 Diversidade de interpretações e inputs................................1163.5.2.7 Enfatizar a articulação e a interpretação precisas................1163.5.2.8 Especificar o papel da argumentação pública......................117

4 CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS À CRÍTICA DE AMARTYA SEN........................................................................................................119

4.1 A concepção dos problemas de justiça na Teoria do Direito........1194.1.1 Hans Kelsen............................................................................1194.1.2 Chaïm Perelman......................................................................1264.1.3 Alf Ross...................................................................................128

4.2 A metodologia das ciências sociais de Karl Popper.....................131

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4.3 Críticas à crítica de Amartya Sen.................................................1394.3.1 Wilfried Hinsch.......................................................................1394.3.2 Francesco Biondo...................................................................1434.3.3 Laura Valentini........................................................................146

5 CONCLUSÃO..................................................................................153

6 POST SCRIPTUM...........................................................................165

REFERÊNCIAS..................................................................................169

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1 INTRODUÇÃO

Enquanto me dedicava ao estudo de algumas técnicas defotografia nas primeiras férias que tive após concluir a minha graduação,deparei-me com uma foto da revista francesa Numéro na qual DavidHarry Stewart registrou Oscar Niemeyer posando como quem acabavade assinar na parede do seu escritório uma frase que coleava entrerascunhos das suas obras mais conhecidas, dentre eles o do prédio doCongresso Nacional. A frase que assinava era: “o mais importante não éa arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemosmodificar”1. Essa imagem iconizava uma questão que tem orientado asminhas pesquisas e, em grande medida, o meu interesse pelo assunto noqual se vê inserido o tema do presente trabalho.

De um lado, nos vemos cercados de graves problemas de justiçasocial. Mesmo que não concordemos com a existência de todos eles, nãohá dúvida de que a maioria de nós compartilha uma clara percepção deque determinados fatos são injustos e até inconcebíveis em nossa época.A persistência de trabalho escravo, da desigualdade de oportunidades, daviolência de gênero, do preconceito racial, da restrição aos serviçosbásicos de saúde e das mortes contabilizadas em nome da guerra àsdrogas constituem apenas alguns exemplos de situações que poderiamatestar o caráter injusto que Niemeyer usou para descrever o nossomundo. Do outro lado, formulamos exigências e conjecturas acerca dosmeios e métodos que poderíamos empregar para eliminar ou ao menosreduzir as injustiças que percebemos e, além disso, também afirmamosque a dedicação a essa tarefa deve sobrepor às nossas própriasexpectativas de realização privada.

No entanto, a imagem registrada por David Harry suscitava-meum questionamento quanto ao caráter retórico da frase do arquitetocarioca e das convicções que sustentamos publicamente sobre o tema dajustiça. Os rascunhos dos prédios que Niemeyer fez ao longo da carreiraforam os primeiros traços a encontrar lugar na parede do seu escritório.A sua frase sobre a premência dos problemas de justiça foi escritadepois, contorcida entre os pequenos espaços que sobraram. Afinal, oque fazemos efetivamente para tornar o mundo menos injusto? Amaterialização da preocupação de Niemeyer com a premência das

1 STEWART, David Harry. Oscar Niemeyer, architect,104, Rest in Peace.David Harry Stewart's Blog. Disponível em<http://blog1.dhstewart.com/2012/12/oscar-niemeyer-architect104-rest-in-peace/> Acessado em 20 de setembro de 2014.

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transformações necessárias ao mundo injusto é geralmente identificadano seu apoio ao comunismo2, sustentado até sob os períodos maisseveros da ditadura, e em suas declarações simpáticas para com asquestões humanitárias em geral3. Já em sua profissão, que, em suaspalavras, era menos importante, os frutos foram bastante generosos eevidentes. Além de ter se tornado um arquiteto mundialmentereferenciado pelo talento e devoção ao trabalho, alcançou um padrão devida dificilmente imaginado pela camada social mais vitimizada eaprofundando uma desigualdade que é, ela mesma, usada como umdiagnóstico de injustiças.

Obviamente, não pretendo instituir um tribunal de inquisiçãomoral a perscrutar as boas ações de um senhor que já não está mais entrenós e nem sugerir algo como uma métrica capaz de aferir e denunciar adistância entre o empenho que dedicamos aos projetos estritamentepessoais e causas sociais. Na verdade, partilhando de uma perspectivaironista liberal rortyana, creio não haver sentido em tais questões4.Ademais, só de ter Niemeyer se posicionado heroicamente contrário aoregime militar e acreditado na sensibilidade das pessoas ao conselhá-lassobre aquilo que elas realmente deveriam se importar, ele ficou com umsaldo bem acima da média.

O que de fato me chamou a atenção na foto registrada por DavidHarry Stewart, porém, é que a frase controversa de Niemeyer pareciacair como uma luva para figurar como título de um bom número delivros sobre Direito, Filosofia, Política e Economia, cujas leiturasplanteavam em mim a mesma dúvida sobre o caráter retórico do

2 Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro. Oscar Niemeyer: umalegenda comunista para a história. Partido Comunista Brasileiro - PCB.Disponível em: <http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=5154:oscar-niemeyer-uma-legenda-comunista-para-a-historia&catid=56:memoria> Acessado em 21 desetembro de 2014.

3 BOFF, Leonardo. O comunismo ético e humanitário de Oscar Niemeyer.Leonardo Boff (blog). Disponível em:<http://leonardoboff.wordpress.com/2012/12/07/o-comunismo-etico-e-humanitario-de-oscar-niemeyer/> Acessado em 21 de setembro de 2014.

4 Rorty entende que, “for liberal ironists, there is no answer to the question'Why not be cruel?' - no noncircular theoretical backup for the belief thatcruelty is horrible. Nor is there an answer to the question 'How do youdecide when to struggle against injustice and when to devote yourself toprivate projects of self-creation?''. RORTY, Richard. Contingency, Ironyand Solidarity. New York: Cambridge University Press, 1989. p. XV.

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conteúdo dos mesmos, isto é, sobre as contribuições que esses trabalhosefetivamente deixavam. Eu me perguntava, perplexo diante de inúmerasabstrações e hipóteses idealistas que até os autores mais respeitadospropunham, como e onde aqueles trabalhos poderia auxiliar em nossosproblemas práticos que eles afirmavam resolver.

O assunto da promoção da justiça é central em um númeroindefinido de pesquisas e, ainda que colocada de modo velado outransversal, é possível dizer com segurança que a maior parte dosestudos do Direito, da Ciência Política e da Economia pretende exerceralguma influência na resolução de problemas práticos ligados àpromoção da justiça, uma questão que é até mesmo confundida com omotivo de ser dessas disciplinas. E é legítimo e razoável que taisdiscussões sobre os problemas de justiça tenham lugar na academia.Ademais, como já observou Hans Kelsen em seu artigo La Idea deDerecho Natural, de 1927,

desde que el hombre reflexiona sobre susrelaciones reciprocas, desde que la “Sociedad”como tal se ha hecho problema – y este problemaes más viejo que cualquier otro objeto deconocimiento, incluso que el denominado“Naturaleza” – no ha cesado de preocupar lacuestión de un ordenamiento justo de lasrelaciones humanas. Y a pesar de que esa cuestiónha ocupado, como apenas ninguna otra, tantonuestro pensamiento como nuestros sentimientosy voluntad hasta lo más profundo; a pesar de quese han afanado por ella las mejores cabezas, loscorazones más apasionados, los puños másfuertes; a pesar de que toda la Historia, toda lahistoria de sufrimientos de la Humanidad, puedeser interpretada como un intento único, siemprerenovado bajo los más horribles y sangrientossacrificios, por dar respuesta a esa cuestión,permanece hoy para nosotros tan falta de ellacomo en el instante en que por primera vezrelampagueó en un alma humana, la del primerhombre, este terrible secreto de la Justicia5.

5 KELSEN, Hans (1927). La idea del derecho natural. Trad. Francisco Ayala.In: KELSEN, Hans. La idea del derecho natural y outros ensayos. BuenosAires: Editorial Losada, 1946.

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Todavia, será que poderíamos fazer aos teóricos e pesquisadoresque se ocupam profissionalmente dos problemas ligados à promoção dajustiça a mesma concessão que fizemos à Niemeyer? Isto é, será que nãodeveríamos avançar na investigação das possibilidades de avaliarmoscriticamente o alcance prático das Teorias de Justiça sobre a promoçãoda justiça?

Creio haver boas razões para apostar na possibilidade dessainvestigação, a começar pela indiscutível polifonia desarmônica depropostas que se afirmam prestar aos mesmos objetivos. Algumas sãocomo prescrições ad hoc e limitadas a um problema específico,encobrindo ou tomando como pressupostas certas discussões sobre ajustiça, mas muitas outras se mostram sistematizadas na forma deTeorias de Justiça propriamente ditas que estendem suas pretensões, demodo genérico, à própria atividade de se promover a justiça. O quetemos ao final é um mosaico de teorias que compartilham de umobjetivo ao menos descritivamente idêntico e que parecem divergirapenas quanto aos métodos de abordar e concluir os problemas dejustiça. Esse mosaico metodológico nos convida a enfrentá-lo com umapergunta fundamental à epistemologia e à teoria do conhecimento: a dapossibilidade de se verificar a adequabilidade de uma dada teoria emfunção da realização ou alcance dos seus objetivos pretendidos. Para queeu me fixasse nessa questão, pesaram decisivamente algumasinfluências acadêmicas.

Em primeiro lugar, aprendi, desde as primeiras leituras de FredRodell, a cultivar um certo ceticismo em relação aos neologismos eornamentos linguísticos que alguns teóricos usam para descreverobviedades. As críticas de Rodell eram especialmente direcionadas aosjuristas, mas cabem perfeitamente aos teóricos e pesquisadores que seocupam com problemas de justiça. A título de exemplo, cito o primeiroparágrafo do seu iconoclástico Woe unto you, Lawyers!, de 1939:

In Tribal Times, there were the medicine-men. Inthe Middle Ages, there were the priests. Todaythere are the lawyers. For every age, a group ofbright boys, learned in their trade and jealous oftheir learning, who blend technical competencewith plain and fancy hocus-pocus to makethemselves masters of their fellow men. For everyage, a pseudo-intellectual autocracy, guarding thetricks of its trade from the uninitiated, andrunning, after its own pattern, the civilization of

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its day6.

Em segundo lugar, comecei a perceber, com Richard Rorty, queaté mesmo os maiores e mais complexos sistemas filosóficos poderiamestar mais próximos de algo como uma crítica literária das ideias que deestratégias hábeis a influenciar as práticas políticas, jurídicas eeconômicas que, em última instância, dão forma à sociedade. Como elesintetizou certa vez em entrevista, talvez “as histórias tristes sobrepadecimentos concretos muitas vezes são um melhor caminho paramodificar o comportamento das pessoas que citar regras universais”7.

Em terceiro lugar, não pude ficar indiferente ao tomarconhecimento das críticas que Karl Popper fez a respeito da postura doscientistas sociais em relação ao seu objeto de estudo. Para Popper, falta-lhes, dentre outras coisas, o comportamento combativo para com suaspróprias teorias, elemento fundamental para que as más ideias possamser rejeitadas em favor do progresso do conhecimento e, porconseguinte, em favor do alcance dos objetivos pretendidos. Como eledescreve no prefácio do seu Conjecturas y refutaciones, de 1962,

El conocimiento, especialmente el conocimientocientífico, progresa a través de anticipacionesinjustificadas (e injustificables), de presunciones,de soluciones tentativas para nuestros problemas,de conjeturas. Estas conjeturas son controladaspor la crítica; esto es, por intentos de refutaciones,entre las que se cuentan tests severamente críticos.Ellas pueden sobrevivir a estos tests, pero nuncapueden ser justificadas categóricamente: no se laspuede establecer como indudablementeverdaderas, ni siquiera como “probables” (en elsentido del cálculo de probabilidades). La críticade nuestras conjeturas es de importancia decisiva:al poner de manifiesto nuestros errores, nos hacecomprender las dificultades del problema que

6 RODELL, Fred. Woe Unto You, Lawyers! New York: Reynal & Hitchcock,1939. p. 3.

7 A entrevista em questão faz parte da série Van De Schoonheid en de Troost(O belo e a consolação, em tradução livre), conduzida por Wim Kayzer eproduzida pelo canal holandês VPRO. Pode ser consultada no original noendereço <http://www.vpro.nl/buitenland/speel.WO_VPRO_025264.html>ou legendada no endereço <https://www.youtube.com/watch?v=wYpibfFjRTU>.

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estamos tratando de resolver. Es así comollegamos a adquirir un conocimiento másprofundo de nuestro problema y a estar encondiciones de proponer soluciones más maduras:la misma refutación de una teoría —es decir, deuna solución tentativa seria para nuestro problema— es siempre un paso adelante que nos acerca a laverdad. Y es ésta la manera por la cual podemosaprender de nuestros errores8.

A meta que justificaria uma análise do alcance prático das Teoriasde Justiça não seria, portanto, equivalente a identificação de algo comouma teoria correta ou perfeita, mas a localização e exposição das falhase dos problemas estruturais onde quer eles possam existir nessas teorias.A indagação que pode sintetizá-la não seria traduzida em perguntascomo “qual das teorias da justiça é a adequada aos fins propostos?” ou“qual das teorias é a mais correta?”, mas “quais teorias apresentamproblemas que as tornam inadequadas aos fins propostos?”. Em termosepistemológicos, a questão que se coloca é a de saber se e comopodemos verificar se uma dada hipótese pode ser falseada e tentarfalseá-la. Obviamente, poderíamos identificar como produtossecundários as teorias não falseadas nas verificações. Isso nãosignificaria que estariam corretas, mas apenas que não conseguimosdemonstrar que estavam incorretas pelos métodos de prova acolhidos.

Porém, como também observa Karl Popper em sua A lógica daPesquisa Científica, de 1972, é preciso ter em conta uma clara distinção“entre o processo de conceber uma ideia nova e os métodos e resultadosde seu exame sob um prisma lógico”9. Essa ressalva impõe não apenas oreconhecimento das diferenças entre as duas áreas de análise quepodemos considerar nos processos de produção do conhecimento, mastambém uma percepção das limitações dos métodos dispostos à análisedessas respectivas perspectivas. Para Popper,

o estágio inicial, o ato de conceber ou inventaruma teoria, parece-me não reclamar análise

8 POPPER, Karl (1962). Conjeturas y refutaciones: El desarrollo delconocimiento científico. Trad. Néstor Míguez. Barcelona: EdicionesPaidos, 1983. p. 13.

9 POPPER, Karl (1972). A lógica da pesquisa científica. Trad. LeonidasHegenberg e Occtany Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2001. p.31-32.

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lógica, nem ser dela suscetível. A questão de sabercomo uma ideia nova ocorre ao homem – trate-sede um tema musical, de um conflito dramático oude uma teoria científica – pode revestir-se degrande interesse para a psicologia empírica, masnão interessa à análise lógica do conhecimentocientífico. [...] [Portanto,] não existe um métodológico de conceber ideias novas ou de reconstruirlogicamente esse processo. Minha maneira de verpode ser expressa na afirmativa de que todadescoberta encerra um 'elemento irracional' ou'uma intuição criadora'10.

Citando Einstein, Popper assim conclui: “não há caminho lógicoque leve a essas leis [ou teorias]. Elas só podem ser alcançadas porintuição, alicerçada em algo assim como um amor intelectual(Einfühlung) aos objetos de experiência”11.

Por outro lado, os métodos e resultados das teorias sãoperfeitamente passíveis de um teste de falseamento. Nesse sentido, KarlPopper afirma que

o método de submeter criticamente a prova asteorias, e de selecioná-las conforme os resultadosobtidos, acompanha sempre as linhas expostas aseguir. A partir de uma ideia nova, formuladaconjecturalmente e ainda não justificada de algummodo – antecipação, hipótese, sistema teórico oualgo análogo – podem-se tirar conclusões pormeio de dedução lógica. Essas conclusões são emseguida comparadas entre si e com outrosenunciados pertinentes, de modo a descobrir-seque relações lógicas (equivalência, dedutibilidade,compatibilidade ou incompatibilidade) existem nocaso.

Em casos de natureza semelhante à privilegiada neste estudo, ofalseamento costuma ser pensado como se demandasse necessariamenteuma espécie de teste empírico no nível da adequabilidade das teorias dejustiça, consideradas como hipóteses, em relação à promoção da justiça,que é o objetivo por elas pretendido e que pressupomos inicialmente ser

10 POPPER, 1972, p. 31.11 POPPER, 1972, p. 32.

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idêntico. Todavia, tal teste empírico demandaria tempo de observação decampo, isolamento de fatores que influem no resultado e vários outrosrequisitos impossíveis de serem cumpridos no escopo de umadissertação. Outra dificuldade que poderia ser apontada diz respeito àexigência de uniformidade dos critérios utilizados, algo talvezincompatível com a diversidade metodológica das teorias em análise.

Talvez esses obstáculos possam ser contornados com formasalternativas de falseamento que permitissem escolher apenasdeterminadas características compartilhadas por uma certa classe deteorias de justiça, facilitando um tratamento analítico mais estrutural emenos exaustivo. De modo mais específico, seria possível privilegiarum método de análise que permitisse identificar e categorizar as teoriasde justiça a partir de certas identidades e diferenças em relação aos seuscomponentes mais relevantes. Assim, os objetos submetidos àstentativas de falseamento seriam as categorias analíticas e os respectivoselementos que as caracterizam e não as próprias teorias individualmenteconsideradas. Por essa via, as conclusões poderiam alcançar inclusiveteorias que sequer foram utilizadas na amostragem. Desde quecompartilhem das mesmas características das categorias analíticas, eapenas na medida de identidade dessas características compartilhadas,não só o procedimento de verificação, mas também as própriasconclusões poderiam ser reutilizadas. O que essa alternativa representa,portanto, é a possibilidade de se adotar um método de teste específico aoqual as teorias de justiça poderiam ser submetidas.

A procura por uma via alternativa ao teste empírico não estásendo inventada aqui. É prática comum às mais diversas áreas doconhecimento a utilização de axiomas e critérios de verificação queprescindem da análise de resultados. Aparentemente, o problema é queas disciplinas das ciências sociais, que cuidam das questões relacionadasà promoção da justiça e remoção de injustiças, não levam muito emconta o incentivo à perspectiva crítica que mobiliza pesquisadores naprocura por falhas teóricas, axiomáticas e principiológicas como umaetapa necessária à produção do conhecimento. Com exceção de algunscírculos da filosofia analítica e da epistemologia, não é comumencontrar reflexões específicas sobre provas e métodos. Na verdade, ospróprios problemas encontrados em estudos e pesquisas das ciênciassociais são tratados como questões subsidiárias que devem ser deixadasde lado em favor do encanto do objeto ou teoria em estudo ou daideologia subjacente. Como esse não é o caminho que pretendo trilhar,seguimos à inquisição dos métodos de prova alternativos ao empírico e,

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nesse particular, enumero quatro tipos de abordagens possíveis para sesubmeter uma teoria à prova a partir de uma perspectiva popperiana, naqual o teste empírico é apenas uma das formas elencadas nessa lista.Para Karl Poper,

poderemos, se quisermos, distinguir quatrodiferentes linhas ao longo das quais se podesubmeter a prova uma teoria. Há, em primeirolugar, a comparação lógica das conclusões umasàs outras, com o que se põe à prova a coerênciainterna do sistema. Há, em segundo lugar, ainvestigação da forma lógica da teoria, com oobjetivo de determinar se ela apresenta o caráterde uma teoria empírica ou científica, ou se é, porexemplo, tautológica. Em terceiro lugar, vem acomparação com outras teorias, com o objetivosobretudo de determinar se a teoria representaráum avanço de ordem científica, no caso de passarsatisfatoriamente as várias provas. Finalmente, háa comprovação da teoria por meio de aplicaçõesempíricas das conclusões que dela se possamdeduzir12.

Nesse ponto, Karl Popper resgata uma observação feitaanteriormente a partir de outra obra desse autor: a de que não éadequado afirmar algo como a comprovação de uma teoria como se estaalcançasse o status de uma teoria verdadeira. O que podemos considerarem bom termo é que a teoria não pôde ser falseada, isto é, que ela estáapenas provisoriamente certa. Em suas palavras,

Se a decisão for positiva, isto é, se as conclusõessingulares se mostrarem aceitáveis oucomprovadas, a teoria terá, pelo menosprovisoriamente, passado pela prova: não sedescobriu motivo para rejeitá-la. Contudo, se adecisão for negativa, ou, em outras palavras, se asconclusões tiverem sido falseadas, esse resultadofalseara também a teoria da qual as conclusõesforam logicamente deduzidas. Importa acentuarque uma decisão positiva só pode proporcionaralicerce temporário à teoria, pois subsequentes

12 POPPER, 1972, p. 33.

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decisões negativas sempre poderão constituir-seem motivo para rejeitá-la. Na medida em que ateoria resista a provas pormenorizadas e severas, enão seja suplantada por outra, no curso doprogresso científico, poderemos dizer que ela“comprovou sua qualidade” ou foi “corroborada”pela experiência passada13.

Com esse impulso, iniciei a escrita da presente dissertação comuma expectativa demasiadamente otimista e pretensiosa. Apostava queconseguiria apontar, de modo sistemático, um certo número deinconsistências irremediáveis das teorias de justiça mais estudadascontemporaneamente.

Essa expectativa ancorava-se especialmente nas leituras que haviafeito dos trabalhos do economista indiano Amartya Kumar Sen14 e doprofessor uruguaio Enrique Pedro Haba Müller15. Ambos, apesar deutilizarem argumentos de naturezas significativamente diversas,compartilham do mesmo ceticismo quanto a influência da correntemajoritária das Teorias de Justiça na resolução de problemas práticos dapromoção da justiça e fundamentam tal ceticismo em determinadosproblemas nos métodos de abordagem dessas teorias. Além disso, euainda estava bastante confiante nas conclusões incendiárias sobre opapel e os limites da racionalidade jurídica que encontrei durante asleituras para o meu trabalho de conclusão de curso de graduação, guiado

13 POPPER, 1972, p. 33-34.14 Uma breve apresentação biográfica de Amartya Sen, acrescida de

observações sobre os temas de interesse desse autor, pode ser lida no siteoficial do Prêmio Nobel, com o qual fora agraciado em 1998 por suacontribuição teórica fundamental para a economia do bem-estar, dentreoutras coisas nos países em desenvolvimento. Ver Amartya Sen -Biographical. Nobelprize.org. Nobel Media AB 2014. Disponível em<http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1998/sen-bio.html> Acessado em 11 de novembro de2014.

15 Na ocasião do I Encontro Brasileiro de Pesquisa e Epistemologia Jurídica,organizado pelo Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI,elaboramos uma exposição resumida da trajetória acadêmica e bibliográficado professor Enrique Haba para o documento de exposição e apresentaçãodo evento. Ver Apresentação do I Econtro Brasileiro de Pesquisa eEpistemologia Jurídica. Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI.Disponível em <http://necodi.ufsc.br/2014/06/14/i-ebpej-apresentacao/>Acessado em 20 de outubro de 2014.

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de modo muito especial pela crítica de Max Horkheimer à ideia de que oprocesso de racionalização impulsionado pelas revoluções científicas epolíticas dos séculos XVII e XVIII nos havia deixado um legadonecessariamente positivo.

Na medida em que os meus estudos avançavam, no entanto, fuipercebendo que várias ponderações e recortes deveriam ser feitos. Naépoca em que cursei a disciplina de metodologia da pesquisa, aprofessora Olga Oliveira apontou que a principal adequação por fazerdizia respeito à necessidade de optar por um marco teórico específico,sob pena de incorrer em um evidente sincretismo metodológico. Entre ascríticas de Amartya Sen e Enrique Haba às teorias de justiçacontemporâneas, minha opção pelo primeiro se deu por um motivopragmático. Não avaliei qual dos dois autores traria argumentos maisconsistentes ao meu propósito, mas aquele cujo enfoque precipuamentemetodológico me possibilitasse enquadrar a minha pesquisa à linha deorientação na qual me encontro vinculado e, ao mesmo tempo, procederàs verificações pretendidas.

É desnecessário afirmar que a ideia de se promover a justiçaperpassa toda a obra do economista indiano. Todavia, é importante notarque para a pesquisa que proponho ganham relevo o artigo O quequeremos de uma teoria da justiça?, de 2006, e o seu mais recente livro,A ideia da Justiça, de 2009, pois ambos apresentam argumentosfundamentados que denunciam fragilidades metodológicas emdeterminadas Teorias de Justiça contemporâneas. Declaradamente, o queAmartya Sen quer nos oferecer em seus dois trabalhos citados é uma“teoria da justiça em um sentido bem amplo” com o objetivo de“esclarecer como podemos proceder para enfrentar questões sobre amelhoria da justiça e a remoção da injustiça”16. A orientação de suateoria da justiça tem assim a pretensão de ser diretamente influente“sobre a filosofia política e moral”, com argumentos relevantes “paraalgumas das disputas em andamento no direito, na economia e napolítica” e, “se nos dispusermos a ser otimistas, para os debates edecisões sobre programas e políticas práticas”17.

No entanto, como observam Costa e Carvalho, “o eixo teórico dolivro [A Ideia de Justiça] é uma oposição traçada por Amartya Sen entreteorias morais transcendentais e comparativas, que são as duas vertentes

16 SEN, Amartya. (2009) A Ideia de Justiça. Trad. Denise Bottmann e RicardoDoninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 10.

17 SEN, 2009, p. 11-12.

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éticas que ele identifica no iluminismo moderno”18, e uma delas nãoseria metodologicamente adequada a enfrentar os problemas práticos dajustiça. Assim, a análise que ele propõe das teorias de justiça ocorre natensão entre as duas tradições das quais elas são derivadas. Explicomelhor: o que Amartya Sen quer nos oferecer tanto em seu artigo quantoem seu livro é a sua própria teoria de justiça. No entanto, ambos ostextos são marcados desde o início pelo desvelamento de contrastesmetodológicos entre as teorias de justiça pertencentes à tradição moralcomparativa e outras teorias de justiça que pertencem à tradição moraltranscendental. Por conseguinte, esses contrastes não são expostosindividualmente por um cotejamento vis-a-vis, teoria por teoria, mas apartir das categorias analíticas que correspondem às duas tradiçõesmorais distintas. Obviamente, Amartya Sen dedica alguma atenção acertos elementos particulares da teoria que propõe e de outras teoriasconcorrentes, mas o argumento do seu livro é estruturado no sentido dedestacar os problemas e vantagens dos métodos de abordagem dessasdistintas categorias de teorias de justiça.

Nessa articulação, o que ele diz colocar em questão é a adequaçãodas estruturas e dos métodos de abordagem de duas grandes tradiçõesteóricas em relação à resolução de problemas práticos de promoção dajustiça. Assim compreendida, a obra de Amartya Sen ofereceria nãoapenas a possibilidade de considerarmos a pertinência dos argumentosem favor da sua própria teoria da justiça, mas também a de reutilizar emnovas pesquisas, na qualidade de categorias analíticas capazes deauxiliar na identificação de adequações e inadequações epistemológicasdo método de abordagem de uma dada teoria, os mesmos elementos quesingularizam as duas tradições teóricas que ela nos apresenta.

Por tais razões, julguei que poderia utilizar como legadosindependentes os dois principais elementos argumentativos que AmartyaSen usa na exposição da sua própria teoria sem apreciar imediatamenteo mérito da mesma. O primeiro elemento é a ideia reguladora19 que se

18 COSTA, Alexandre Araújo; CARVALHO, Alexandre Douglas Zaidan de.Resenha: Amartya Sen - A ideia de Justiça. Revista Brasileira de CiênciaPolítica, Brasília, n. 8, mai/ago. 2012. p. 306.

19 Karl Popper, especialmente em Conjecturas y Refutaciones, assume averdade como a ideia reguladora das ciências naturais, cujo alcance mesmoimpossível funciona como parâmetro para avaliar a assertividade de umahipótese ou conjectura (ver POPPER, 1962). No presente trabalho, porém, aexpressão ideia reguladora assume um sentido apenas aproximado e traduza noção de um objetivo buscado – o avanço da justiça ou a remoção de

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revela na expectativa de que uma teoria de justiça deva ter algumautilidade concreta. Por utilidade concreta Amartya Sen assume apossibilidade de uma teoria de justiça contribuir para a resolução deproblemas práticos tais como a escravidão, a fome, o analfabetismo e deacesso aos serviços de saúde20. O segundo elemento é composto pelascategorias analíticas que ele usa para classificar e contrapor aquilo quecompreende como duas tradições teóricas que divergem quando aométodo de abordar a tarefa de promoção da justiça: as Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos, derivadas da abordagem moral transcendental, eas Teorias de Justiça Focadas em Realizações, derivadas da abordagemmoral comparativa21.

Esses dois elementos interessam especificamente à análise críticadas teorias de justiça na medida em que Amartya Sen instrumentaliza-ospara expor as fragilidades de uma determinada categoria analítica e, porconseguinte, os argumentos que contestam a capacidade das teorias dejustiça a ela pertencentes de exercerem alguma influência na resoluçãode problemas práticos de justiça. Essa exposição poderia ser brevementeresumida nos seguintes termos: como traço característico fundamentalda primeira categoria analítica, a das Teorias de Justiça Focadas emArranjos, Amartya Sen visualiza um exercício que marca de formadominante muitas teorias da justiça na Filosofia Política atual e queconsiste em “objetivar apenas a caracterização das sociedadesperfeitamente justas”22; a segunda categoria analítica, a das teorias dejustiça focadas em realizações, ao contrário, é marcada principalmentepela inclusão de elementos que favorecem os “modos de julgar comoreduzir a injustiça e promover a justiça”23.

Além disso, Amartya Sen afirma que tornou-se comum, deThomas Hobbes à John Rawls, vincular as questões de justiça àreflexões sobre a natureza de sociedades idealmente justas e que a maiorparte dos teóricos de fato pressupõe que o caráter justo da sociedadedecorreria da escolha correta das instituições que lhe dão forma. Amaneira de se distribuir a riqueza, a abrangência da proteção à liberdade

injustiças – e que serve como parâmetro para aferir a adequabilidade deuma dada teoria.

20 SEN, Amartya. O que queremos de uma teoria da justiça? Trad. MárioNogueira de Oliveira. FUNDAMENTO – Revista de Pesquisa em Filosofia,Ouro Preto, n. 5, jul–dez – 2012. p. 25-26.

21 SEN, 2009, p. 43. 22 SEN, 2009, p. 9.23 SEN, 2009, p. 9.

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e à propriedade, a estratégia de organizar os meios de produção e asoportunidades de acesso aos bens primários são alguns exemplos desseexercício de escolha institucional que a maior parte dos teóricos dajustiça reconheceu como prioritário na construção de uma sociedadejusta. A tarefa da teoria da justiça passou a se concentrar na definição danatureza de uma sociedade perfeita e na escolha das instituiçõescorrespondentes – órgãos, leis, regimentos, mercados, etc.

Apesar de as Teorias de Justiça Focadas em Arranjossupostamente se apresentarem como o tipo de abordagem preponderantenas discussões contemporâneas sobre a promoção da justiça, AmartyaSen nos oferece razões para colocar a factibilidade dessas propostas emquestão. Ele observa, por exemplo, que os arranjos institucionais devemser considerados, mas que não constituem a única variável que exerceinfluência no surgimento de um dado tipo de sociedade. Não apenas asinstituições, portanto, mas também os resultados abrangentes precisamser avaliados. O mais importante, porém, é que as suas críticas levam àconclusão de que o exercício de escolha do arranjo social de umasociedade idealmente justa pode até ser intelectualmente atrativo, mas areflexão deveria ser comparativa e não transcendental. Para AmartyaSen, não há muito sentido na caracterização das sociedadesperfeitamente justas, pois isso não seria necessário e nem suficiente pararesolver os problemas práticos de justiça. O que se torna necessário e,possivelmente, suficiente é justamente o exercício comparativo entre asalternativas ou soluções viáveis que as teorias de justiça focadas emrealizações fornecem.

Quando encaminhei o texto do projeto de dissertação aosmembros banca de avaliação, ele já estava adequado ao caminho abertopor Amartya Sen. A pergunta que orientaria o desenvolvimento do meutrabalho poderia ser colocada da seguinte maneira: estão as Teorias deJustiça Focadas em Arranjos em condição de auxiliar na resolução deproblemas práticos ligados à promoção da justiça? Em outras palavras, eexpondo a questão de modo mais específico, pretendia verificar se acategoria Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, na qual está inserida amaior parte das teorias de justiça contemporâneas, possuía falhas em suaestrutura e pressupostos e em que medida isso comprometeria apossibilidade de contribuir para a promoção da justiça. Odesenvolvimento da pesquisa estaria determinado pela apresentação dascaracterísticas da categoria analítica Teorias de Justiça Focadas emArranjos, pela identificação das teorias de justiça a ela pertencentes epela exposição das críticas pertinentes e dos contrastes verificáveis em

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relação à categoria Teorias de Justiça Focadas em Realizações.Todavia, as sugestões indicadas pelos membros da banca que

avaliou o texto do meu projeto de pesquisa foram precisas o bastantepara que eu pudesse perceber algumas dificuldades cujas soluçõesimplicavam invariavelmente na tomada de um novo direcionamento.Caso o novo caminho que passei a trilhar se mostre adequado, devodeixar desde agora reconhecido o mérito dos professores que meauxiliaram nesse sentido.

O professor Horácio Rodrigues, meu orientador, alertava-mesempre que as linhas principais que eu pretendia desenvolver napesquisa já haviam sido tratadas por Karl Popper com significativaantecedência. Eu estava familiarizado com alguns textos desse autor,mas realmente não havia percebido a similaridade entre as duasabordagens. Em primeiro lugar, o tema da justiça ocupa apenas um lugarsubsidiário nos trabalhos de Karl Popper. Em segundo lugar, o que maisimportava nas reflexões de Karl Popper sobre a justiça implicava umresgate de suas discussões sobre a metodologia das Ciências Sociais. Aorevisitar atentamente os textos desse autor, percebi que não poderiadeixar de registrar ao menos essa significativa coincidência. De certaforma, os textos de Karl Popper poderiam servir como parâmetro seguropara avaliar o caráter de inovação que o trabalho de Amartya Senparecia reivindicar.

O professor Delamar Dutra apontou diversas deficiências nosargumentos de Amartya Sen em sua crítica à ideia de que umaperspectiva transcendente não forneceria um parâmetro adequado paraas escolhas entre as alternativas possíveis e questionou a pertinência dosexemplos que o economista indiano usava para demonstrar suasconclusões. Esforcei-me para defender a posição, mas não era possívelfazê-lo a partir dos próprios textos de Amartya Sen. Além disso, eleobservou – por duas vezes – que o objetivo mediato de Amartya Sen erao de sugerir a substituição do uso dos bens primários pela suaabordagem de capacidades24 como critério objetivo de realização dejustiça. Num primeiro momento, acreditei que a crítica não se justificavaou que seria irrelevante pelo fato de a própria teoria de justiça deAmartya Sen não ser o objeto principal da minha pesquisa, mas minhasleituras posteriores indicavam que a hipótese levantada pelo professorDelamar Dutra poderia estar plenamente acertada. Além disso, ele

24 Uma comparação entre esses dois conceitos, bem como a apresentação desuas características, é oferecida no item 3.5.2.1, ocasião em que apontamoso foco nas realizações da abordagem de justiça proposta por Amartya Sen.

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sugeriu que eu apreciasse o trabalho de Amartya Sen com a mesmaperspectiva crítica com a qual apreciava as teorias de justiça cujasdeficiências ocupavam um lugar central em minha pesquisa. Espero tercumprido essa tarefa de modo satisfatório.

Sugestões com esse mesmo sentido foram dadas pelo professorLuiz Cademartori. Em primeiro lugar, ele chamou-me a atenção para apossibilidade de considerar algo de positivo nas teorias que eram objetode crítica em minha pesquisa. Afirmou que talvez os argumentos deAmartya Sen não fossem tão inquestionáveis ao ponto de eusimplesmente segui-los às cegas e confiar no diagnóstico de que asTeorias de Justiça Focadas em Arranjos seriam inábeis a fornecerqualquer contribuição positiva para enfrentarmos os problemas dejustiça. Seguindo a sua orientação, cheguei aos artigos de WilfriedHinsch, Francesco Biondo e Laura Valentini, que justificavam as suasressalvas. Apesar de Amartya Sen ter apontado os méritos da teoria deJohn Rawls, reconhecendo quais foram os aspectos que ele mesmotomou de empréstimo para usar como ponto de partida de sua própriateoria de justiça, eu havia deixado essas considerações fora de minhadiscussão ao me concentrar exclusivamente na análise das categoriasanalíticas. E essas categorias parecem não contemplar as dimensõespositivas das teorias de justiça objeto de crítica, mas apenas aquelas quelhes dão forma de maneira imediata.

Por fim, devo mencionar uma breve crítica feita pelo professorEnrique Haba. A respeito do meu projeto, ele afirmou não compreendera ausência de referências aos autores clássicos da Teoria do Direito quejá haviam se ocupado com o tema. Alertou-me que o tratamento dadopor Alf Ross, Chaim Perelman e até mesmo Hans Kelsen suprimiamalgumas lacunas deixadas em aberto por Amartya Sen e, ao mesmotempo, proporcionava argumentos razoáveis para sustentar a mesmacrítica direcionada à maior parte das teorias de justiça contemporâneas.Imediatamente procurei nos textos de Amartya Sen referências aosautores citados pelo professor Enrique Haba. Estavam presentesinúmeros economicistas e menções superficiais a algunscontemporâneos como Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. JohnRawls, Robert Nozick e David Gauthier recebiam bastante atenção, masnota-se mesmo a completa ausência de referências aos trabalhos deRoss, Perelman e Kelsen, cujas reflexões sobre os problemas de justiçanão podem ser substituídas ou ignoradas. Desde modo, e considerando aformação precipuamente econômica de Amartya Sen, tornou-seinevitável comparar o alcance de suas contribuições à luz das reflexões

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que já foram assimiladas pela Teoria do Direito.A partir das considerações feitas pelos professores que avaliaram

o meu projeto, percebi, portanto, que poderia oferecer um tratamentomais adequado e uma contribuição mais positiva com uma ligeiramudança do foco da minha pesquisa. Além de sistematizar as críticasfeitas por Amartya Sen ao que ele dá o nome de Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos, caracterizando-as tal como pretendia no projetooriginal, deveria colocar também sob análise o próprio alcance dessascríticas e o caráter de inovação que elas poderiam representar, tomandocomo parâmetro as reflexões oferecidas por Alf Ross, Chaïm Perelman,Hans Kelsen e Karl Popper, bem como as críticas que a comunidadeacadêmica tem direcionado aos trabalhos do economista indiano e quetomo como aqui marco teórico.

Assim, como tema que privilegio na presente pesquisapermanecem as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. O seu recorte,porém, terá um direcionamento mais amplo de modo a contemplar umaanálise dos próprios argumentos que Amartya Sen desenvolve acerca dadesnecessidade e da insuficiência das Teorias de Justiça Focadas emArranjos na tarefa de refletir a promoção da justiça em uma perspectivaprática. Nesse contexto, acredito que três questões iniciais precisam serrespondidas:

a) o que é e quais são as características das Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos?

b) quais os problemas epistemológicos que Amartya Sen apontana abordagem das Teorias de Justiça Focadas em Arranjosquanto a possibilidade de influírem na resolução de problemaspráticos de justiça?

c) poderíamos fazer ressalvas à análise proposta por AmartyaSen a partir daquilo que já foi refletido pelos clássicos daTeoria do Direito, por Karl Popper e por seus críticos?

A pesquisa procurará responder a essas questões com o objetivode, partindo dessas respostas, responder a outra questão, maisimportante, e que é o problema central da pesquisa: qual o alcance dascríticas que Amartya Sen faz às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos?

Como hipóteses a serem trabalhadas durante a pesquisa e queestão implicadas no problema apresentado, colocam-se as seguintes:

1) Questão: o que é e quais são as características das Teorias de

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Justiça Focadas em Arranjos?Hipóteses: a) é uma categoria analítica sugerida por AmartyaSen para identificar as teorias de justiça que b) partem dapremissa de que as questões que envolvem a promoção dajustiça devem ser conduzidas pelo uso da razão pública, qued) concentram a atenção naquilo que identificam como ajustiça perfeita, o que faz com que a investigação se dê noplano transcendental da natureza do justo, que e) procuramacertar as instituições e comportamentos justos quecaracterizariam, por si, a realização da justiça e que f)compreende a escolha dos princípios de justiça e de seurespectivo arranjo como objetos de uma deliberaçãocontratualista unânime; além disso, constitui exemplar dasTeorias de Justiça Focadas em Arranjos a maior parte dasTeorias de Justiça contemporâneas, dentre as quais destacam-se a de John Rawls, Robert Nozick e David Gauthier.

2) Questão: quais os problemas epistemológicos que AmartyaSen aponta na abordagem das Teorias de Justiça Focadas emArranjos quanto a possibilidade de influírem na resolução deproblemas práticos de justiça?Hipóteses: a) por um lado, há dois problemas na abordagemtranscendental: o primeiro diz respeito à infactibilidade doconsenso na escolha dos princípios orientadores dasinstituições e o segundo se refere à redundância daidentificação de um arranjo social idealizado na tarefa deescolha entre arranjos sociais reais; b) por outro lado, verifica-se a insuficiência de uma análise de justiça a partir de umaperspectiva fundamentalmente institucional, pois outroselementos influem no estado do arranjo social que emergirá;c) as reflexões sobre a melhoria da justiça pressupõem umaabordagem comparativa entre arranjos sociais viáveis, talcomo a oferecida pela Teoria da Escolha Social quepossibilita, dentre outras coisas, focar as realizações,reconhecer a concorrência de princípios, reexaminar oresultado, acolher soluções parciais, a abertura da baseinformacional, enfatizar a articulação e questões subjacentes eespecificar o papel da argumentação pública.

3) Questão: poderíamos fazer ressalvas à análise proposta porAmartya Sen a partir daquilo que já foi refletido pelosclássicos da Teoria do Direito, por Karl Popper e por seus

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críticos?Hipóteses: sim, a) quanto ao caráter de inovação, a análise dostrabalhos de Hans Kelsen, Chaïm Perelman e Alf Rossdemonstra que tais autores anteciparam muitas das questõesapontadas por Amartya Sen; b) ainda quanto ao caráter deinovação, a perspectiva da Mecânica Social Gradual de KarlPopper aplicada aos problemas de justiça coincide em muitospontos com as ideias que Amartya Sen afirmou quase meioséculo depois; c) em relação às críticas, as observações deWilfried Hinsch, Francesco Biondo e Laura Valentini semostram relativamente acertadas ao demonstrar algumasleituras tendenciosas feitas por Amartya Sen quanto às teoriaspor ele criticadas, além de colocarem em questão a crítica àutilidade da identificação do arranjo social ideal comoparâmetro avaliativo dos arranjos sociais viáveis.

O nosso objetivo geral, portanto, é oferecer uma análise doalcance das críticas que Amartya Sen faz ao que ele denomina comoTeorias de Justiça Focadas em Arranjos na tarefa de proporcionarsoluções aos problemas práticos de justiça. Considerando tal objetivogeral, constituem objetivos específicos da pesquisa:

a) a identificação dos elementos que dão forma ao que AmartyaSen denomina como Teorias de Justiça Focadas em Arranjos;

b) a identificação das principais críticas que Amartya Sen faz aospressupostos epistemológicos das Teorias de Justiça Focadasem Arranjos em função da possibilidade efetiva da promoçãoda justiça; e

c) a avaliação das conclusões do economista indiano à luz dasreflexões dos autores clássicos da Teoria do Direito, dametodologia da Mecânica Social Gradual de Karl Popper edas críticas da comunidade acadêmica ao seu trabalho.

Esses são os objetivos centrais da pesquisa proposta, quenortearão o desenvolvimento do projeto e definirão as estratégias aserem adotadas.

Ao que diz respeito à metodologia de pesquisa, o trabalhoenvolve pesquisa precipuamente bibliográfica (obras teóricas e manuaisde referência). No plano metodológico, o desenvolvimento seráorientado por uma permanente postura crítica, buscando colocar sob

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testes as hipóteses apresentadas. Como o professor Horácio Rodrigues,“não entendo que ao indicar a metodologia a ser utilizada em umapesquisa seja necessário lhe atribuir um rótulo”25, pois é mais adequadoà avaliação crítica da pesquisa a exposição dos passos nos quais ela sedesenvolverá. De toda sorte, como toma uma metodologia analíticacrítica cujo objeto se apresenta na qualidade de uma teoria, as hipótesese conclusões serão alcançadas a partir de um raciocínio dedutivo26.Nesse sentido, inicialmente a pesquisa pressupõe os seguintes passos:

a) analisar a importância do senso de justiça no debate sobre apromoção da justiça;

b) localizar a exigência do uso da razão nos debates sobre apromoção da justiça no período do Esclarecimento;

c) identificar o Contratualismo como explicação racional dasociedade;

d) apontar o deslocamento do Contratualismo ao InstitucionalismoTranscendental;

e) apontar derivação da abordagem de justiça focada em arranjosdo Institucionalismo Transcendental;

f) enumerar as características das Teorias de Justiça Focadas emArranjos e localizá-las nas teorias de John Rawls, RobertNozick e David Gauthier;

g) apontar os dois problemas do transcendentalismo: o dafactibilidade e o da redundância;

h) apontar o problema da concentração nas instituições;i) verificar a necessidade da abordagem comparativa para a

resolução de problemas de justiça;j) apontar as vantagens da Teoria da Escolha Social como

alternativa às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos;k) revisitar as considerações de Hans Kelsen, Chaïm Perelman e

Alf Ross sobre os problemas práticos de justiça;l) verificar as semelhanças entre a metodologia das ciências

sociais de Karl Popper e as considerações de Amartya Sen sobreos problemas de jsutiça; e

25 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Conhecer Direito - Os processos deprodução do conhecimento na área do Direito: o conhecimento jurídicoproduzido através da pesquisa, do ensino e das práticas profissionais.Projeto de Pesquisa submetido ao Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico - CNPq. Florianópolis, 2012. p. 17.

26 POPPER, 1972, p. 33

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m) avaliar as críticas que Wilfried Hinsch, Francesco Biondo eLaura Valentini fazem ao trabalho de Amartya Sen.

Esses passos listados, em grande parte sob a forma de objetivos,buscam indicar o caminho que pretendo seguir. Não refletemnecessariamente a organização do argumento pelo qual os temas serãoapresentados no trabalho. Estão redigidos de forma mais genéricaporque permitirei espaço para maiores delimitações, objetivandoespecialmente uma exposição mais compreensível e sistemática.

Quanto aos motivos que justificam a realização dessa pesquisa,por serem vários, preciso enumerá-los objetivamente. Em primeirolugar, a pesquisa se desenvolve em meio a alguns debates sobreestratégias concretas para remoção de injustiças no âmbito das teorias dejustiça. Trata-se de um tema de relevância indiscutível, tanto em termospráticos quanto intelectuais, e esta é a sua principal justificativa.Acredito que a resposta à pergunta pela qual se guia a presente pesquisapossui um grande valor instrumental. Caso os argumentos de AmartyaSen se mostrem plenamente consistentes, essa pesquisa pode deixar duascontribuições específicas em sua conclusão. A primeira e a maisevidente é a própria análise sistemática acerca da inviabilidade dasTeorias de Justiça Focadas em Arranjos na tarefa de se pensar epromover a justiça. A segunda possui um caráter mais metodológico ecorresponde a possibilidade de afirmarmos que as categorias sugeridaspor Amartya Sen podem ser reutilizadas em outras pesquisas quebuscam empreender análises críticas das Teorias de Justiça. De umaperspectiva popperiana, significa dizer que a tarefa de crítica às Teoriasde Justiça terá à disposição um instrumento de falseamentometodológico relevante, dada a possibilidade de reaproveitarmos, comoaxiomas, as conclusões sobre os limites de teorias que compartilham decertos pressupostos e características. Do contrário, isto é, caso venha aenfrentar problemas ou outras dificuldades nos próprios argumentos deAmartya Sen, terei igualmente condições de deixar apontamentos arespeito de sua abordagem, em especial ao que toca as categoriasanalíticas de Teorias de Justiça e suas respectivas críticas para outraspesquisas. Ademais, assumo como ponto central a análise dos elementosque caracterizam algumas das principais teorias de justiça como umgrupo específico, oferecendo assim uma abordagem analíticadiferenciada em relação aos trabalhos que geralmente se ocupam de umaou outra teoria particular. Os acertos e riscos dessa postura, porconseguinte, poderão ser igualmente avaliados. Como referencial será

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adotada uma obra ainda pouco explorada pela comunidade jurídicabrasileira, A Ideia de Justiça, em que pese o reconhecimentointernacional das grandes contribuições do seu autor. É umaoportunidade para que o seu conteúdo seja conhecido e debatidocriticamente. Entrarão em diálogo com o marco teórico outros trabalhosde grande envergadura intelectual e que, por algumas razões ou meroacaso, permanecem distantes do campo de interesse dos debatescontemporâneos sobre as Teorias de Justiça. A abordagem crítica queestas obras proporcionam se apresenta em um momento oportuno, noqual vemos crescer debates polarizados em torno de propostas deaspirações grandiosas, mas cuja relevância prática se deixou deproblematizar talvez pelo encantamento inerente a toda fantasia teórica.Além disso, o presente trabalho implica algumas intersecções entre asTeorias de Justiça e reflexões advindas do campo econômico, como oParadoxo de Condorcet, o Teorema da Impossibilidade de Arrow e aTeoria da Escolha Social. Creio se tratar de um encontro promissor eque pretendo desenvolver em próximas etapas acadêmicas. Pelaslimitações impostas pelo escopo de uma pesquisa de dissertação, porém,arrisco apenas os primeiros passos nessa intersecção.

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2 TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS

Amartya Sen desenvolveu diversos trabalhos de granderelevância à reflexão dos problemas de justiça. Em dois, no entanto,fornece ele subsídios à crítica a um determinado conjunto de teorias dejustiça. Como expus no capítulo anterior, ele identifica “duas linhasbásicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça”27 e queessa distinção remonta, pelo menos, aos importantes filósofos sociaisligados ao pensamento radical do período do Esclarecimento. Trata-sede uma distinção importante que, em sua opinião, recebeu muito menosatenção do que ela ricamente merece28. Em breves termos, uma linhaparte de uma perspectiva transcendental, isto é, procura pela resposta àpergunta: o que é uma sociedade justa? A segunda, fundamenta-se emuma perspectiva comparativa, isto é, procura pela resposta à pergunta:entre as alternativas viáveis X e Y, qual é a mais justa?

Estou imediatamente interessado na análise da primeira corrente,a qual ele dá o nome de Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. Essalinha de argumentação racional, apesar de contemporaneamente figurarcomo majoritária, teria o seu papel na resolução de questões práticas dejustiça prejudicado por determinados problemas epistemológicos desdeo método de abordagem que foi herdado da tradição contratualista. Paraque sejam estabelecidas as condições adequadas de avaliação danatureza e do alcance dessa crítica, é preciso identificar os conceitosenvolvidos e a própria localização da discussão proposta por AmartyaSen.

No primeiro tópico a ser tratado no presente capítulo tentareiesclarecer as razões da delimitação da discussão do economista indianoacerca da justiça. Tanto a teoria que ele mesmo propõe como as teoriaspara as quais que ele direciona a sua crítica estão localizadas em umaanálise que pressupõe um duplo recorte. O primeiro diz respeito àperspectiva racional da justiça, que é o seu ponto de partida. ParaAmartya Sen, ainda que as nossas impressões emotivas exerçam umimportante papel para deflagar os debates sobre os problemas de justiça,estes devem ser conduzidos envolvendo o uso da razão pública29. Esserecorte exclui de sua análise alguns elementos que foram objeto dedisputa especialmente na Teoria do Direito, que serão brevementeabordados.

27 SEN, 2009, p. 41.28 SEN, 2009, p. 41.29 SEN, 2012, p. 23.

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O segundo recorte será tratado no tópico seguinte. Ele poderia serinterpretado como uma relativa consequência do primeiro e se refere àjanela temporal que o estudo de Amartya Sen abrange. Apesar de asdiscussões públicas e racionais acerca dos problemas de justiça já seencontrarem estabelecidas em épocas e contextos anteriores, AmartyaSen privilegia uma reconstrução da forma como elas se desenvolveram apartir das mudanças políticas e econômicas ocorridas nos séculos XVIIIe XIV na Europa. Creio que contribuições de outros autores poderãofacilitar a compreensão da forte demanda por explicações racionaisnesse período particularmente singular, algo que julgo não ter ficadosuficientemente claro na obra de Amartya Sen.

No terceiro tópico, a tentativa será a de apontar a ideia deContrato Social como hipótese para a explicação racional da vida emsociedade. Para Amartya Sen, um certo grupo de filósofos doEsclarecimento, dentre os quais ele inclui Thomas Hobbes, Jean-JacquesRousseau, John Locke e Immanuel Kant30, concentrou-se nessa questãoe em suas implicações, como a legitimidade da autoridade e a naturezadas obrigações morais. Apesar de algumas sensíveis diferenças, elesconceberam a ideia de Contrato Social a partir da qual era pressupostoum acordo entre os indivíduos para que a sociabilidade fossecompreendida racionalmente. Uma análise dos elementos principais daproposta contratualista de Thomas Hobbes será usada para que acorreção de tal hipótese seja avaliada.

No quarto tópico, tentarei evidenciar algo como um deslocamentodo uso da ideia do Contrato Social como hipótese explicativa para umanoção de Contrato Social de caráter propositivo e normativo. Essaderivação ganha corpo e relevância na medida em que se apresentacomo resposta a uma pergunta que se tornou central na tradiçãocontratualista: o que é uma sociedade justa? A procura pela resposta aessa questão seria ainda central na maioria das teorias de justiçacontemporâneas e nos levaria ao que Amartya Sen chama de abordagemtranscendental da justiça31, pois o foco da investigação é direcionado àidentificação dos arranjos sociais perfeitamente justos, isto é,direcionado à identificação de arranjos institucionais justos para umasociedade.

No quinto tópico já se tornarão viáveis a conceituação daquiloque Amartya Sen denomina como Teorias de Justiça Focadas emArranjos e uma análise das teorias de justiça contemporâneas que

30 SEN, 2009, p. 42.31 SEN, 2012, p. 24.

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estariam filiadas a essa corrente. Entre os herdeiros diretos da tradiçãocontratualista, Amartya Sen cita os nomes de John Rawls, RobertNozick, David Gauthier e Ronald Dworkin32, para os quais a justiçadeve ser “conceitualizada quanto a certos arranjos organizacionais —algumas instituições, algumas regulamentações, algumas regrascomportamentais —, cuja presença ativa indicaria que a justiça estásendo feita”33. Além disso, notaremos que Amartya Sen reconhece queesses autores também fornecem em suas teorias análises “dosimperativos morais e políticos para o comportamento socialmenteapropriado”, ainda que idealizado, e, por tal motivo, elas “podem servistas, de forma mais ampla, como abordagens da justiça focadas emarranjos, em que arranjo se refere tanto ao comportamento certo como àsinstituições certas”34. E é por esse motivo, pelo reconhecimento dosimperativos morais e políticos pressupostos, que tomarei a categoriaanalítica Teorias de Justiça Focadas em Arranjos35 e não apenas aabordagem institucional transcendental como objeto de análise.

O sexto e último tópico do presente capítulo será dedicado àlocalização das principais características que Amartya Sen usa paradistinguir as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos no trabalho dos trêsautores que mais ganham a atenção do economista indiano em seustrabalhos. Antes de apresentar as críticas a essas teorias no terceirocapítulo, acredito que uma análise antecipada dessas mesmas teoriaspoderia contribuir para que deficiências apontadas não sejam tomadascomo incontroversas. Nesse sentido, passo a uma análise das propostasde John Rawls, Robert Nozick e David Gauthier, limitando-a à estritaobservação dos elementos que podem corroborar ou refutar as críticas deAmartya Sen.

2.1 O senso de justiça e o uso da razão

Amartya Sen inicia o seu livro A Ideia de Justiça chamando aatenção para a importância das nossas impressões emotivas acercadaquilo que percebemos como injusto. Para Sen, a identificação deinjustiças corrigíveis é o que nos anima a pensar em justiça e injustiça eque poderíamos pressupor corretamente “que os parisienses não teriamtomado de assalto a Bastilha, que Gandhi não teria desafiado o império

32 SEN, 2009, p. 588.33 SEN, 2009, p. 46.34 SEN, 2009, p. 42-43. 35 SEN, 2009, p. 46.

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onde o sol costumava não se pôr, que Martin Luther King não teriacombatido a supremacia branca”36 se não fosse a sensibilidade emrelação a injustiças que poderiam ser erradicadas.

Todavia, essas emoções precisariam ser assimiladas através deuma ponderação racional, pois “compreender o mundo nunca é umaquestão de apenas registrar nossas percepções imediatas. A compreensãoinevitavelmente envolve o uso da razão”37. Assim, o senso de injustiça“demanda um exame crítico, e deve haver um exame cuidadoso davalidade de uma conclusão baseada principalmente em sinais”38. Não setrata, portanto, de prescrever o descarte das nossas impressões emotivasdas nossas avaliações racionais acerca da Justiça, como afirmam alguns,e nem de afastar o assunto da argumentação racional, como dizemoutros39, mas apenas de uma constatação de que

não é plausível considerar as emoções, apsicologia ou os instintos como fontesindependentes de valoração, sem uma avaliaçãoarrazoada. Contudo, os impulsos e as atitudesmentais continuam sendo importantes, visto quetemos boas razões para levá-los em conta na nossaavaliação da justiça e da injustiça no mundo.Sustento que aqui não existe um conflitoirredutível entre razão e emoção, e há muito boasrazões para darmos espaço à relevância dasemoções40.

Nesse sentido, Amartya Sen conclui em seu artigo O quequeremos de uma teoria da Justiça? que devemos seguir a partir danoção de John Rawls de que “a interpretação da justiça está vinculadacom a razão pública”, cujo enfoque deve ser o de uma “estrutura públicade pensamento” que proporcione “uma noção de acordo nos juízos entre

36 SEN, 2009, p. 7.37 SEN, 2009, p. 7.38 SEN, 2009, p. 8.39 SEN, 2009, p. 39. A esse respeito, é também interessante notar a resposta

que o economista indiano dá em seu livro Desenvolvimento comoliberdade, de 2010, a Carl Manger e Friedrich Hayek sobre a conclusão queeles chegam a respeito do caráter impremeditado das mudanças erealizações sociais. Ver SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade.Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.324-332.

40 SEN, 2009, p. 18.

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agentes razoáveis”41.Com tais afirmações, Amartya Sen pressupõe implicitamente a

superação de discussões milenares acerca da natureza da justiça queainda ocupavam, por exemplo, os debates entre os juspositivistas ejusnaturalistas do início do século XX. Na superação dessas discussões,sequer encontram espaço em sua análise os elementos essencialistas emetafísicos que frequentemente viam-se vinculados à ideia de Justiça.De forma significativamente resumida, a discussão dizia respeito àreivindicação dos jusnaturalistas pelo reconhecimento da existência decertas leis de justiça que determinavam direitos e deveres inerentes aosindivíduos, estabelecidos por uma entidade divina ou derivados danatureza humana, que as leis positivas não poderiam violar.

Um registro particularmente ilustrativo da presença desseselementos essencialistas e metafísicos pode ser colhido da tragédiagrega Antígona, de Sófocles, escrita provavelmente em 442 a.C42.Justificando a desobediência ao édito do rei Creonte que proibia osepultamento do corpo de seu sobrinho Polinice, considerado traidor dacidade de Tebas43, Antígona, irmã do morto, reivindica a supremacia dasleis divinas da Justiça44 que, apesar de não terem sido escritas, exigiamque se sepultasse o cadáver45. Questionada por Creonte o motivo peloqual ela não observou as leis que havia editado, Antígona defendeu-seafirmando que

[...] Zeus não foi o arauto delas para mim, nemessas leis são as ditadas entre os homens pelaJustiça, companheira de morada dos deusesinfernais; e não me pareceu que tuasdeterminações tivessem força para impor aosmortais até a obrigação de transgredir normasdivinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje,não é de ontem, é desde os tempos mais remotosque elas vigem, sem que ninguém possa dizerquando surgiram. E não seria por temer homemalgum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a

41 SEN, 2012, p. 23.42 SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2013.

p. 1.43 SÓFOCLES, 2013, p. 8.44 SÓFOCLES, 2013, p. 34.45 SÓFOCLES, 2013, p. 11.

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ser punida pelos deuses por violá-las46.

Há, no discurso de Antígona, uma afirmação incontroversa deque, além e independente do Direito positivo e da razão humana, existetambém uma legislação divina que se confunde com o próprio sentidoda justiça. Nesses termos, a busca da justiça se confunde com aobediência às leis divinas, superiores e imutáveis. Essa é, a propósito, amesma leitura que se pode fazer de Aristóteles em sua Retórica. Nessaobra, além de caracterizar a justiça como uma ordem derivada de umavontade divina, Aristóteles assegura que as leis da justiça seriamconforme a natureza. Por tal motivo, afirma Aristóteles,

llamo ley, de una parte, a la que es particular y, deotra, a la que es común. (Ley) particular es la queha sido definida por cada pueblo en relaciónconsigo mismo, y ésta es unas veces no escrita yotras veces escrita. Común, en cambio, es la (ley)conforme a la naturaleza; porque existeciertamente algo que todos adivinan comúnmente(considerado como) justo o injusto por naturaleza,aunque no exista comunidad ni haya acuerdo entrelos hombres, tal como, por ejemplo, lo muestra laAntígona de Sófocles, cuando dice que es dejusticia, aunque esté prohibido, enterrar aPolinices, porque ello es justo por naturaleza47.

Por conseguinte, Aristóteles conclui a superioridade das leis dajustiça, comuns a todos, indiscutíveis e imutáveis, perante as leispositivas, particulares a cada comunidade e mutáveis com o tempo, pois

es evidente que, si la ley escrita es contraria alcaso, se debe recurrir a la ley común y a(argumentos de) mayor equidad y justicia. Comotambién, que (la fórmula) 'con el mejor espíritu'significa precisamente eso, o sea, el que no hayque servirse en exclusividad de las leyes escritas;y que la equidad siempre permanece y nunca

46 SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona.Trad. Mário da Gama Kury. v. 1. 8ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998. p. 214.

47 ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Quintin Racionero. Madrid: EditorialGredos, 1999. p. 381.

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cambia, como tampoco la ley común (pues esconforme a la naturaleza), mientras que las leyesescritas (cambian) muchas veces, de donde sedicen aquellas palabras en la Antígona deSófocles, cuando ella se defiende, en efecto, dehaber sepultado (a su hermano) contra la ley deCreonte, pero no contra la ley no escrita.

Além de Sófocles e Aristóteles, outro filósofo ateniense queconferiu características essencialistas e metafísicas à justiça foi Platão.Essa compreensão foi bastante esclarecida nas observações de WaynePomeleau48, professor da Universidade de Gonzaga. Ele nos faz notarque n'A República, livro celebrado, porém pouco compreendido, Platãodesenvolve o conceito de justiça por uma via negativa e por outrapositiva, e nas duas formas ele reivindica a origem divina e o caráterimutável das leis da justiça. Negativamente, ele afasta as concepções dejustiça defendidas por Céfalo, Polemarco e Trasímaco, visões nas quaisPlatão vê introduzida uma espécie de relativismo e/ou subjetivismotípico dos sofistas que rebaixam a concepção de justiça para o mundocontingente de homens, sujeitos a equívocos e imperfeições.Positivamente, a justiça de Platão representa necessariamente aquilo queé de interesse do Estado melhor e isso consiste em “cuidar cada um doque lhe diz respeito”, isto é, “fazer cada um o que lhe compete e nãoentregar-se a múltiplas ocupações”49. Tomando apenas essasconsiderações aparentemente arrazoadas, os caracteres essencialista emetafísico da justiça de Platão não se revelam, mas isso pode sercontornado pela elucidação dos pressupostos dessa concepção. ParaPlatão, o mundo encontra-se em um processo de desordem edegeneração. Possibilitar ao individuo a autodeterminação quanto ao seulugar e sua função na sociedade corresponde a degeneração das classessociais que sustentam o Estado50. O Estado melhor é, assim, o Estadomenos degenerado, aquele mais próximo do Estado Ideal que é aessência de Estado perfeito criada pelos deuses e que existe apenas nomundo das ideias. Uma vez descoberta a essência do Estado, que é a

48 POMERLEAU, Wayne P. Western Theories of Justice. IntertetEncyclopedia of Philosophy: a peer-reviewed academic resource. GonzagaUniversity. Disponível em: <http://www.iep.utm.edu/justwest/> Acessadoem: 1 de julho de 2014.

49 PLATÃO. A República: ou sobre a justiça, gênero político. Trad. CarlosAlberto Nunes. 3ª. ed. Belém: EDUFPA, 2000. p. 205.

50 PLATÃO, 2000, p. 207.

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tarefa do conhecimento puro ou ciência, a justiça também teria o seucaráter revelado: justa seria toda organização social hábil a impedir oprocesso de degeneração ou até mesmo revertê-lo.

Contemporaneamente, uma argumentação similar em defesa daexistência de um valor nuclear de justiça é compreendida na famosafórmula que o jurista alemão Gustav Radbruch sugeriu adotar quandonos deparamos com um dilema da mesma espécie daquele enfrentadopor Antígona. Entre a obediência incondicional à lei positiva e osentimento de justiça que a desafia, deveríamos optar pela prevalênciado nosso sentimento de injustiça caso ele atingisse um grauinsuportável. Dentre outros motivos que ele nos apresenta, está aafirmação de que a própria obediência incondicional ao direito positivose sustenta por um valor refletido na noção de segurança jurídica. Comoele observou em sua crítica aos tribunais alemães por não encontraremfundamentos capazes de invalidar as leis do regime nazista queexpropriaram os cidadãos judeus,

el positivismo ha desarmado de hecho a losjuristas alemanes frente a leyes de contenidoarbitrario y delictivo. El positivismo, además, noestá en condiciones de fundar con sus propiasfuerzas la validez de las leyes. Tal concepcióncree haber demostrado la validez de la ley sólocon señalar el poder de su vigencia. Pero en elpoder se puede quizá fundar un “tener que”(müssen) pero nunca un “deber” (sollen) o un“valor” (gelten). Estos se fundan más bien en unvalor inherente em la ley. En verdad, toda leypositiva lleva consigo un valor, sin consideraciónde su contenido: es siempre mejor que ningunaley, ya que crea al menos seguridad jurídica51.

Nesses termos, a segurança jurídica seria apenas um dos valoresque o Direito positivo deveria realizar. Ao lado dele estariam os valoresda justiça e o da conveniência, relacionados por uma ordem hierárquicaespecífica:

pero la seguridad jurídica no es el valor único ni el

51 RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal. Trad.María Izabel Azareto de Vásquez. Buenos Aires: Abeledo - Perrot, 1962. p.35-38.

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decisivo, que el derecho ha de realizar. Junto a laseguridad encontramos outros dos valores:conveniencia (Zweckmässigkeit) y justicia. En elorden de prelación de estos valores tenemos quecolocar en el último lugar a la conveniencia delderecho para el bien común. De ninguna maneraes derecho tudo “lo que al pueblo aprovecha”,sino que al pueblo aprovecha, en último análisis,sólo lo que es derecho, lo que crea seguridadjuídica y lo que aspira a ser justicia. La séguridadjurídica, inherente en toda ley positiva por esa supositividad, ocupa una notable posiciónintermedia entre la conveniencia y la justicia: porun lado es reclamada por el bien común, por elotro empero, también por la justicia. Que elderecho sea seguro, que no sea interpretado yaplicado hoy y aquí de una manera, mañana y alláde otra, es al mismo tiempo, una exigencia de lajusticia. Donde se origine una pugna entreseguridad jurídica y justicia, entre ley discutibleen su contenido, pero positiva, y un derecho justo,pero no plasmado en forma de ley, se presenta enverdad un conflicto de la justicia consigo misma,un conflicto entre justicia aparente y verdadera52.

Essas afirmações poderiam corroborar a conclusão precipitada ebastante difundida de que Radbruch partilharia da mesma ideia dosantigos gregos de que há, de fato, algo como uma justiça verdadeiraproveniente de alguma instância metafísica. Todavia, a fórmula dojurista alemão se completa e se fundamenta apenas com uma exigênciade igualdade, um apelo para que as leis que arbitrariamente criamdistinções prejudiciais entre os indivíduos possam ser questionadas paraalém dos recortes do Direito positivo. Como Radbruch observa,

el conflicto entre la justicia y la seguridad jurídicapodría solucionarse bien en el sentido de que elderecho positivo estatuido y asegurado por elpoder tiene preeminencia aun cuando por sucontenido sea injusto e inconveniente, bien en elde que el conflicto de la ley positiva con la justiciaalcance una medida tan insoportable que la ley,como derecho injusto, deba ceder su lugar a la

52 RADBRUCH, 1962, p. 35-38.

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justicia. Es imposible trazar una línea más exactaentre los casos de arbitrariedad legal y de las leyesválidas aún a pesar de su contenido ínjusto.Empero se puede efectuar otra delimitación contoda exactitud: donde ni siquiera una vez sepretende alcanzar la justicia, donde la igualdadque constituye la medula de la justicia es negadaclaramente por el derecho positivo, allí la ley nosolamente es derecho injusto sino que carece másbien de toda naturaleza jurídica. Pues no se puededefinir el derecho, aun el derecho positivo, deoutra manera que como un orden o institución quepor su próprio sentido está determinado a servir ala justicia53.

Assim, apesar de a exigência de igualdade figurar na fórmula deRadbruch como um valor absoluto, ela se apresenta como um argumentocompletamente razoável, que se justifica pelo uso da razão e que nãopode ser afastado por uma mera alegação de irracionalidade ou desustentação dependente de alguma autoridade metafísica. O que pode serquestionado é o valor da igualdade perante as outras razões de justiça,mas essa questão se passa necessariamente pelo debate públicoarrazoado.

2.2 O uso da razão e o Esclarecimento

O apelo ao uso da razão pública capaz de subsidiar um acordoentre os indivíduos para o enfrentamento das questões ligadas à justiça eo consequente afastamento dos caracteres metafísicos e essencialistaslevam Amartya Sen a privilegiar as discussões desenvolvidas a partirdos séculos XVIII e XIX. A localização temporal de sua investigação éexposta objetivamente. Como ele mesmo reconhece, “a análise dajustiça que apresento neste livro recorre a linhas de argumentaçãoracional que foram particularmente exploradas no período dedescontentamento intelectual durante o Iluminismo europeu”54,instituidor de uma das mais fortes tradições de argumentosfundamentados em razões, em lugar da dependência da fé e deconvicções injustificadas. Fortes tradições, no plural, pelo fato de asargumentações racionais sobre a justiça já se encontrarem estabelecidas

53 RADBRUCH, 1962, p. 35-38.54 SEN, 2009, p. 14.

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em outros contextos independentes. Como o próprio Amartya Senexplica,

a conexão desta obra com a tradição doIluminismo europeu não faz com que obackground deste livro seja particularmente“europeu”. Na verdade, uma das característicasinusuais — excêntricas, como talvez alguns dirão— deste livro, em comparação com outros escritossobre a teoria da justiça, é o uso extensivo quefaço de ideias oriundas de sociedades nãoocidentais, sobretudo da história intelectualindiana, mas de outras partes também55.

De fato, A Ideia de Justiça é permeada por discussões localizadasa partir de uma significativa distância da tradição europeia. A política detolerância à divergência do imperador indiano Akbar56 e as diferentesperspectivas de justiça entre Arjuna e Krishna no épico Mahabharata57

são exemplos de reflexões centrais na obra de Amartya Sen que foramdeflagradas longe da península ocidental da Eurásia. Contudo, suainsistência nos autores europeus dos séculos XVIII e XIX parece refletira identificação que fazemos do apelo à explicação racional do mundo,cujo início remonta às revoluções científicas, políticas e econômicasdesse mesmo período. Como ele observa,

ainda que a justiça social tenha sido discutida porséculos, a disciplina recebeu um impulsoespecialmente forte durante o Iluminismo europeunos séculos XVIII e XIX, encorajado pelo climapolítico de mudança e também pela transformaçãosocial e econômica em curso na Europa e nosEstados Unidos58.

Tal como sintetizado na justificativa de Amartya Sen, o uso darazão nas discussões sobre a justiça, de modo geral, e a justiça social,em particular, parece ter sido incluída por um mero encorajamento.Obviamente, não posso colocar em dúvida o conhecimento que ele tem arespeito das mudanças ocorridas desde a virada do século XVII. Sua

55 SEN, 2009, 14-15.56 SEN, 2009, p. 80.57 SEN, 2009, p. 319.58 SEN, 2009, p. 42.

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opção em privilegiar as discussões sobre a justiça a partir desse períodonão nos deixa dúvida. No entanto, a sua justificativa pela escolha desserecorte temporal desacompanhada de maiores explicações das questõessubjacentes fica significativamente fragilizada. Um tratamento maisdetalhado possibilitaria não apenas a compreensão dos acontecimentosdaquele período específico que demandaram a discussão racional acercados problemas de justiça, mas também do caráter profano de todos osconceitos a eles correlatos.

Nossas concepções de sociedade, governo, Estado e dos própriossujeitos foram forjadas ao longo do tempo. De uma perspectivahistórica, não é possível visualizar uma linha evolutiva gradual, lógica enatural desses conceitos, mas um emaranhado de noções e ideias quetransitam entre diversos campos e se influenciam reciprocamente peloacaso ou pela força. Em certos momentos, algumas dessas noções eideias permanecem tão inabaláveis que alcançam o status de fato59, masem outros as mudanças são tão significativas que podem alterar todauma visão de mundo e marcar a transição de uma era.

Assim, apesar de não ser possível identificar um únicoacontecimento como o responsável pela atual conformação dasferramentas conceituais relevantes ao presente estudo, há um certoconsenso de que os avanços nas ciências naturais entre os séculos XV eXVIII, por um lado, e uma intensa reconfiguração das práticas e arranjoseconômicos, por outro, guardam uma relação de influência inafastável.

Esse processo e o período correspondente ficaram conhecidospela palavra alemã Aufklarüng, traduzida comumente como Iluminismo.Prefiro, como já tenho feito, um termo mais direto, Esclarecimento,acolhendo a sugestão de Guido António de Almeida, responsável pelaversão portuguesa da obra-prima de Theodor Adorno e MaxHorkheimer. Como explica Almeida,

a tradução de Aufklärung por esclarecimentorequer uma explicação: por que não recorremos aotermo iluminismo, ou ilustração, que sãoexpressões mais usuais entre nós para designaraquilo que também conhecemos como a Época oua Filosofia das Luzes? Em primeiro lugar, comonão poderia deixar de ser, por uma questão de

59 FLECK, Ludwik. (1935). Gênese e desenvolvimento de um fato científico:Introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento.Trad. de Georg Otte e Mariana Camilo de Oliveira. Belo Horizonte:Fabrefactum, 2010. p. 94.

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maior fidelidade: a expressão esclarecimentotraduz com perfeição não apenas o significadohistórico-filosófico, mas também o sentido maisamplo que o termo encontra em Adorno eHorkheimer, bem como o significado corrente deAufklärung na linguagem ordinária. É bom que senote, antes de mais nada, que Aufklärung não éapenas um conceito histórico-filosófico, mas umaexpressão familiar da língua alemã, que encontraum correspondente exato na palavra portuguesaesclarecimento, por exemplo em contextos como:sexuelle Aufklärung (esclarecimento sexual) oupolitische Aufklärung (esclarecimento político).Neste sentido, as duas palavras designam, emalemão e em português, o processo pelo qual umapessoa vence as trevas da ignorância e dopreconceito em questões de ordem prática(religiosas, políticas, sexuais, etc.)60.

O Esclarecimento não foi um movimento homogêneo, umsistema de ideias ou uma escola, mas uma nova mentalidade, umaatitude cultural e intelectual de grande parte da sociedade da época61 quetinha como meta nada menos que “dissolver os mitos e substituir aimaginação pelo saber”, desencantar a natureza e destruir o animismo aoponto de tornar suspeito tudo o “que não se submete ao critério dacalculabilidade e da utilidade”62. Considerando o impacto de trabalhoscom a envergadura de Princípia Mathematica de Isaac Newton, de 1687,que conseguiu oferecer uma explicação razoável para um grandenúmero de fenômenos físicos a partir de um pequeno conjunto defórmulas matemáticas, tal ambição, notemos, não era infundada. Defato, o sistema newtoniano serviu de modelo e estímulo para pesquisas

60 ALMEIDA, Guido Antonio de. Nota preliminar do tradutor. In: ADORNO,Theodor; HORKHEIMER, Max (1969). Dialética do Esclarecimento:fragmentos filosóficos. Trad. Guido António de Almeida. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1985. p. 7-8.

61 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. (1983)Dicionário de Política. 11ª ed. Trad. Carmen C. Varriale, Gaetano LoMônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. Brasília:Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 605-6.

62 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. (1969) Dialética doEsclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido António de Almeida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

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de uma série de pensadores esclarecidos e pautou a postura da própriaatividade intelectual, incentivando a concepção secular de naturezacomo um domínio ordenado regido por rigorosas leis dinâmico-matemáticas e a ideia de que nós mesmos teríamos a capacidade deconhecê-las63.

As novas exigências decorrentes dos parâmetros de racionalidadeintroduzidos pelas ciências naturais logo alcançaram as demais áreas doconhecimento. O pensamento e a cultura daquela época passaram porverdadeiras e inevitáveis revoluções, produzindo alterações em toda adinâmica social64. O que se teve, em síntese, “não foi apenas aprofanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento dassociedades modernas”65. Por um lado, “o sucesso das ciênciasexperimentais alimentou a ideia de que o mesmo método leva a umprogresso concreto em todas as áreas da cultura e da vida”66. Por outrolado, sem o recurso ao animismo, diversas instituições sociais perderamseus respectivos pilares de sustentação. Algumas simplesmentedeixaram de existir. Outras, por ainda serem necessárias, demandavampor explicações que as justificassem de acordo com o pensamentoracionalista da época.

2.3 O Contratualismo como explicação racional da sociedade

Nesse segundo caso, isto é, no caso das instituições sociais quedemandavam uma sustentação racional que ao menos justificasse suaexistência após o desmantelamento das concepções pré-modernas,encontrava-se a questão da legitimidade da autoridade dos governantes edos princípios morais que regiam a vida em sociedade.

Immanuel Kant, um dos mais ilustres representantes doEsclarecimento, uma vez definiu esse momento de um modoparticularmente útil para compreender a dificuldade dessa questão. Paraele, o Esclarecimento significava “a saída do homem de sua

63 BRISTOW, William. (2010) Enlightenment. The Stanford Encyclopedia ofPhilosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em<http://plato.stanford.edu/archives/fall2010/entries/enlightenment/>.Acessado em: 10 de setembro de 2014.

64 BRISTOW, 2010.65 HABERMAS, Jürgen. (1985) O Discurso Filosófico da Modernidade: doze

lições. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: MartinsFontes, 2000. p. 4.

66 BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 1983, p. 606.

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menoridade”67, isto é, da “incapacidade de fazer uso de seuentendimento sem a direção de outro indivíduo”68. Como explicar a vidaem sociedade na ausência da vontade divina e na recusa de aceitar amera submissão à força? Como legitimar os governos e o dever deobediência às leis a partir da afirmação da própria razão dos indivíduosem um período inigualavelmente tumultuado?

Uma justificação particularmente conhecida foi dada pelo filósofopolítico Thomas Hobbes. Para Hobbes, foi o desejo que os indivíduostinham de sair da mísera condição de guerra e de isolamento do estadoda natureza, o cuidado com sua própria conservação e com uma vidamais satisfeita, que fez com que eles se aglomerassem e impusessemrestrições sobre si mesmos69. Essas restrições recíprocas, responsáveispela viabilização dessa nova forma de vida, materializavam-se na formade leis. Para que essas leis fossem observadas por todos e para que aproteção dos indivíduos em face dos seus iguais e dos estrangeiros fosseefetiva, completa Hobbes, era necessária a criação de um poder que lhesfosse comum e superior. Era preciso que todos os indivíduosdesignassem um homem ou uma assembleia de homens como seusrepresentantes e a eles transferissem o direito que cada um tem degovernar a si próprio. É da união da multidão na figura de uma sópessoa ou assembleia que veio a ideia do grande Leviatã, ou o Deusmortal, e é nele que consiste a própria ideia de Estado70.

Fica claro que a consistência racional da resposta hobbesianarepousa na pressuposição de um acordo entre os indivíduos que buscamsatisfazer seus próprios interesses. É justamente esse acordo pressupostoque possibilita a aceitabilidade das noções de convergência de vontadesdos indivíduos em busca da autoconservação e da promoção do própriobem-estar e a outorga do poder ao soberano serem explicadas a partir decritérios adequados ao espírito daquele período. Não foi por outromotivo que Hobbes definiu o Estado como

uma pessoa de cujos atos uma grande multidão,mediante pactos recíprocos uns com os outros, foiinstituída por cada um como autora, de modo a ela

67 KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier e Florianode Souza Fernandes. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. p. 100.

68 KANT, 1985, p. 100.69 HOBBES, Thomas. (1651) Leviathan: or the metter, forme, and power of a

common-wealth ecclesiasticall and civill. p. 85.70 HOBBES, 1651, p. 87-8.

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poder usar a força e os recursos de todos, damaneira que considerar conveniente, paraassegurara paz e a defesa comum71.

Essa ideia de acordo entre os indivíduos em busca de um bemcomum foi largamente utilizada e dela se originou a teoria que hojeconhecemos como Contrato Social.

2.4 Do Contratualismo ao Institucionalismo Transcendental

Como pontuado no tópico anterior, o contratualismo surgiu apartir de uma dupla recusa: a de se fundamentar os valores morais e aautoridade política na vontade divina ou em outro elemento queescapasse às exigências de racionalidade do Esclarecimento. Issoexplica o fato de a Teoria do Contrato Social ter se desenvolvido emduas modalidades. A primeira está mais próxima da Teoria Política e dizrespeito à legitimidade da autoridade política. Ela sustenta que aautoridade legítima do governo deve derivar do consentimento dosgovernados e que a forma e o conteúdo desse consentimento deriva daideia de contrato ou acordo mútuo. A segunda modalidade do ContratoSocial está mais próxima da Ética ou Teoria Moral e se ocupa da origemou do conteúdo legítimo de normas morais. De igual modo, ela tambémafirma que as normas morais derivam sua força normativa da ideia decontrato ou acordo mútuo72.

O desenvolvimento da teoria contratualista ocorreu de maneiragradual. Depois de Thomas Hobbes, vários outros autores seaproximaram da ideia de Contrato Social. Jean-Jacques Rousseau, JohnLocke e Immanuel Kant foram os seus sucessores modernos imediatos73.Cada um a seu modo ofereceu versões em alguma medida diferenciadas.Todavia, a presença de alguns elementos nucleares nessas diversasabordagens justifica uma identidade contratualista comum. Os principaissão a caracterização de uma situação inicial e a caracterização das partesdo contrato74,que podem ser assim apreendidos:

71 HOBBES, 1651, p. 88.72 CUDD, Ann. Contractarianism. (2013) The Stanford Encyclopedia of

Philosophy. Winter 2013 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Disponível em<http://plato.stanford.edu/archives/win2013/entries/contractarianism/>.Acessado em 01/04/2014.

73 SEN, 2009, p. 17.74 CUDD, 2013.

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a) a situação inicial, também chamada de estado de natureza,posição original ou posição de negociação inicial, é a situaçãona qual se encontram as partes do contrato antes de firmá-loou ao não aceitar os termos negociados. É uma situação queapresenta um caráter de hostilidade e sociabilidade que variade acordo com a ideia que o respectivo teórico faz de umasociedade sem regras morais e sem uma autoridade central; e

b) a caracterização das partes do contrato, que diz respeito àracionalidade e motivação que os contratantes têm para chegara um acordo em relação aos termos do contrato. Ofundamental nas teorias contratualistas é a escassez ou amotivação para a competição sem regras entre os indivíduosna situação inicial e a possibilidade de ganhos a partir dainteração social e da cooperação facilitada pelo contratosocial.

Como observa Amartya Sen, a ideia de um contrato socialhipoteticamente escolhido foi uma alternativa explicativaparticularmente adequada ao “caos que de outra forma caracterizariauma sociedade”75. Todavia, o seu desenvolvimento não ficou confinadoà perspectiva explicativa inicial, isto é, como uma explicaçãoracionalmente adequada sobre a vida em sociedade, os governos, suasleis e seus preceitos morais. Como os aspectos mais discutidos peloscontratualistas diziam respeito à identificação das instituições maiselementares que influenciavam a caracterização de uma sociedade, logose abriu espaço para a especulação a respeito das instituições necessáriaspara sociedades ideais. Para Amartya Sen, essa característica sublimaçãoé particularmente percebida nos contratualistas contemporâneos, comoRobert Nozick, John Rawls, David Gauthier, Jan Narveson, JamesBuchanan e Thomas Scanlon76. Como resultado se teve “odesenvolvimento de teorias da justiça que enfocavam a identificaçãotranscendental das instituições ideais”77.

Em verdade, a explicação da vida em sociedade a partir domodelo contratualista já vinha acompanhada desde o início em maior oumenor medida de elementos que o respectivo autor identificava comotermos contratuais mais adequados à concepção de uma sociedade justa

75 SEN, 2009, p. 36.76 CUDD, 2013.77 SEN, 2009, p. 36.

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e ao mesmo tempo desejável por todas as partes contratantes. Adiferença entre o contrato enquanto hipótese explicativa e enquantoidealização é, por conseguinte, muito tênue. Essa atitude é verificada,inclusive, desde Hobbes. Obviamente, a pretensão de alcançar umasociedade ideal tem suas raízes em períodos mais remotos, mas agoraela aparece como uma possibilidade de escolha racional a partir daidentificação dos princípios que orientariam a criação e o funcionamentodas instituições dessa sociedade. Em outras palavras, o que se tambémtentava era buscar a identificação das leis e arranjos sociais que,transcendentalmente, produziam a sociedade justa. A essa postura dasteorias derivadas do contratualismo o economista indiano Amartya Sendeu o nome de Institucionalismo Transcendental78.

2.5 Institucionalismo Transcendental e Justiça Focada em Arranjos

É possível definir o Institucionalismo Transcendental como umalinha de argumentação racional sobre a justiça social que é, como já foinotado, derivada das teorias contratualistas que surgiram no período doEsclarecimento, impulsionadas pelo clima político de mudanças sociaise econômicas em curso na Europa e nos Estados Unidos79, e queapresenta duas características distintivas, herdadas diretamente datradição contratualista.

A primeira característica é que o Institucionalismo Transcendental

concentra a sua atenção no que identifica como ajustiça perfeita, e não nas comparações relativasde justiça e injustiça. Ela apenas busca identificarcaracterísticas sociais que não podem sertranscendidas com relação à justiça; logo, seu foconão é a comparação entre sociedades viáveis,todas não podendo alcançar os ideais deperfeição80.

Assim, a sua investigação se dá no plano da natureza do justo enão no da identificação de critérios que possibilitem a afirmação sobreque uma alternativa é menos injusta que outra81.

A segunda característica corresponde ao fato de o

78 SEN, 2009, p. 36.79 SEN, 2009, p. 35.80 SEN, 2009, p. 36.81 SEN, 2009, p. 36.

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Institucionalismo Transcendental se preocupar principalmente emacertar as instituições justas82. Com efeito, o termo InstitucionalismoTranscendental decorre justamente da vinculação que as teorias dejustiça pertencentes a essa tradição fazem entre a ideia de realização dajustiça e o caráter de justiça das instituições. Para Amartya Sen, nãohaveria nessas teoris problematização ou reflexão posterior a respeitodos tipos reais de sociedade que poderiam emergir das instituiçõesidealizadas. Alguns autores simplesmente estabeleceriam que o limite dese pensar a justiça se encontra no nível institucional, não importando oque desse arranjo possa surgir83.

Ademais, cumpre transcrever uma consideração que o economistaindiano fez a respeito da abordagem institucionalista transcendental nosentido de apontar a possibilidade de uma teoria de justiça apresentarcaracterísticas transcendentais sem estar acompanhada do foco eminstituições. Como o seu livro privilegia uma crítica direcionada àsteorias que conjugam ambas as características, ele poderia ensejar umafalsa conclusão de que elas necessariamente se apresentamacompanhadas. Em que pese a relevância dessa observação, a mesma sóencontrou lugar em uma brevíssima nota de rodapé do capítulointrodutório do seu livro. Nas palavras de Amartya Sen,

ainda que a abordagem contratualista da justiça,iniciada por Hobbes, combine transcendentalismocom institucionalismo, é importante observar queas duas características não precisamnecessariamente ser combinadas. Por exemplo,podemos ter uma teoria transcendental quefocalize as realizações sociais em vez dasinstituições (a procura do mundo utilitaristaperfeito, povoado de pessoas maravilhosamentefelizes, seria um exemplo simples de busca da“transcendência baseada em realizações”). Oupodemos enfocar avaliações institucionais usandoperspectivas comparativas em lugar deempreender uma busca transcendental do pacoteperfeito de instituições sociais (a preferência porum papel maior — ou mesmo menor — para olivre mercado seria um exemplo deinstitucionalismo comparativo)84

82 SEN, 2009, p. 36.83 SEN, 2009, p. 40.84 SEN, 2009, p. 68 (nota “c”)

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De outro lado, Amartya Sen reconhece que muitos dos teóricosvinculados à tradição Institucionalista Transcendental, dentre os quaisinclui Kant e Rawls, fornecem em suas teorias análises “dos imperativosmorais e políticos para o comportamento socialmente apropriado” e, portal motivo, elas “podem ser vistas, de forma mais ampla, comoabordagens da justiça focadas em arranjos, em que arranjo se referetanto ao comportamento certo como às instituições certas”85. Tal arranjoseria objetivado pela escolha racional de um ou mais princípiosorientadores a partir de um contrato social hipotético e, uma vezescolhidos os princípios que orientariam a criação e o funcionamento dainstituição, a tarefa de se pensar a justiça se conclui.

No entanto, a adequação do comportamento das pessoas emrelação às instituições seria meramente pressuposto, isto é, os teóricosque partem da abordagem focada em arranjos acreditam que as pessoas,por serem razoáveis, seguirão o comportamento padrão para ofuncionamento ideal do arranjo institucional estabelecido no contratosocial. Por conseguinte, também tomam como certo o caráter justo dassociedades que podem surgir86.

A partir dessa perspectiva, as variáveis que não possuem naturezainstitucional, tais como o próprio comportamento real das pessoas e suasinterações sociais, são ignoradas ou tomadas como pressupostas de umamaneira perfeitamente adequada ao que se espera como resultado dasinstituições87. No mais, o critério de se aferir a realização da justiçausado pelas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos segue os mesmosmoldes da tradição do Institucionalismo Transcendental ao se proporque a justiça seja conceitualizada em termos de arranjos organizacionais,como instituições, regulamentações e regras comportamentais que dãoorigem a sociedades justas88.

2.6 Exemplares das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos

Pelo que restou exposto no tópico anterior, as Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos constituem um tipo de abordagem sobre osproblemas de justiça que poderia ser identificado a partir das seguintescaracterísticas gerais: a) parte da premissa de que as questões que

85 SEN, 2009, p. 42-43. 86 SEN, 2009, p. 37.87 SEN, 2009, p. 36.88 SEN, 2009, p. 40.

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envolvem a promoção da justiça devem ser conduzidas pelo uso darazão pública, b) concentra a atenção naquilo que identifica como ajustiça perfeita e não em comparações entre alternativas viáveis, o quefaz com que a sua investigação se dê no plano da natureza do justo, c)procura acertar as instituições e comportamentos justos quecaracterizariam, por si, a realização da justiça e d) compreende a escolhado(s) princípio(s) de justiça e de seu respectivo arranjo como objetos oucláusulas de uma deliberação contratualista unânime.

Para Amartya Sen, essas são as características mais presentes nasteorias de justiça contemporâneas. Em suas palavras, “é sobre oinstitucionalismo transcendental que a filosofia política de hoje seapoia”, de modo que “a caracterização de instituições perfeitamentejustas transformou-se no exercício central das teorias da justiçamodernas”89.

Apesar dessa forte afirmação, ele nos apresenta uma modesta listade nomes que, além de John Rawls, se completa apenas com “RonaldDworkin, David Gauthier, Robert Nozick, entre outros”90. Não fica claroquem ele inclui nesse entre outros. Em certas passagens, ele parecesugerir que a concepção de justiça de Jürgen Habermas, especialmenteao que se refere à deliberação pública como critério de objetividade e aouso da razão, não estaria muito distante da concepção rawlsiana91. Emoutras, indica que a perspectiva contratualista de Thomas Scanlonestaria bem mais aberta, completa e comparativa em relação aohermetismo contratualista visto, por exemplo, no próprio exercíciodeliberativo da Justiça como equidade de John Rawls92. Até mesmo aconcepção de justiça de Ronald Dworkin parece ser revisitada apenaspara que a crítica à abordagem de capacidades da sua teoria de justiçaseja respondida, ainda que para isso ele faça breves comentários sobre oexperimento mental do hipotético mercado de seguros que, na teoria deDworkin, ocorre numa posição original sob o véu da ignorânciarawlsiana93.

Em todos esses casos, porém, ficam expressas diversas ressalvasque podem ser interpretadas ou como um relativo caráter deacessoriedade que essas teorias apresentam na obra de Amartya Sen oucomo reticências que, por alguma razão, interrompem o raciocínio de

89 SEN, 2009, p. 38.90 SEN, 2009, p. 44.91 SEN, 2009, p. 86-87.92 SEN, 2009, p. 304-307.93 SEN, 2009, p. 392-397.

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que todas elas poderiam ser adequadamente classificadas como Teoriasde Justiça Focadas em Arranjos.

Por tais motivos, creio que se pode concluir com certa segurançaque a afirmação de Amartya Sen de que a abordagem da justiça focadaem arranjos e suas respectivas características se apresenta comoexercício central das contemporâneas teorias de justiça fica fragilizada.De minha parte, não poderia aqui arriscar avançando para uma inclusãoinopinada de uma ou outra teoria específica na lista de exemplares dacategoria analítica sugerida pelo economista indiano. Na medida em queos exemplares analisados são apresentados em um número bastanterestrito em relação à abrangência pretendida, sou convidado a confiar noacerto do diagnóstico oferecido por Amartya Sen tendo em conta que ofoco da sua obra não é tanto a exposição das fragilidades da abordageminstitucional transcendental, mas das vantagens de sua própria teoria dajustiça que se pauta por um tipo de abordagem distinta.

Até esse ponto, todavia, não seria problemática a ausência deindicação, para alcançar um número adequado à abrangência pretendida,de outras teorias de justiça contemporâneas vinculadas à tradição doInstitucionalismo Transcendental. Desde que seja acertado o diagnósticoem relação às teorias que, na obra do economista indiano, sãoapresentadas como exemplares das Teorias de Justiça Focadas emArranjos, seu diagnóstico e suas críticas ainda poderiam ser úteis.

Assim, para tornar possível uma avaliação do diagnóstico e dascríticas que Amartya Sen faz a respeito dos caracteres que dão forma àsTeorias de Justiça Focadas em Arranjos, é preciso analisar as teorias dejustiça que, de modo incontroverso, estariam filiadas a essa tradiçãoespecífica. E tal avaliação deve ser direcionada a estrita verificação dapresença ou da ausência das características das Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos e de outros elementos que podem corroborar ouprejudicar o diagnóstico que o economista indiano sustenta. Porconseguinte, embora possivelmente valiosos às discussões sobre osproblemas da justiça, não considerarei nessa avaliação os elementos queultrapassam o recorte da crítica de Amartya Sen e os limites impostospelo escopo deste trabalho.

2.6.1 A Justiça como equidade de John Rawls

Apesar de as principais ideias sobre os problemas de justiça deJohn Rawls terem sido concebidas ao longo de uma série de artigos

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escritos no período entre 1959 e 197194, elas ficaram mais conhecidas apartir da compilação e das revisões empreendidas em sua obra UmaTeoria da Justiça, de 1971. Como ali deixou enfatizado, ele sintetizouum conjunto de suas perspectivas em uma concepção que deu o nome deJustiça como equidade95, e a partir da qual Amartya Sen encontrasubsídios para as suas principais considerações acerca das Teorias deJustiça Focadas em Arranjos.

Sobre a premissa de que as questões que envolvem a promoçãoda justiça devem ser conduzidas pelo uso da razão pública, a concepçãoda Justiça como equidade de John Rawls não deixa dúvida. Há nela umclaro resgate das exigências estabelecidas pelo período doEsclarecimento acerca da legitimidade das regras que põem forma aoconvívio mútuo. Como observa Rawls,

partimos da ideia organizadora de sociedade comoum sistema equitativo de cooperação entrepessoas livres e iguais. Surge de imediato aquestão de como determinar os termos equitativosde cooperação. Por exemplo: eles são ditados poralgum poder distinto do das pessoas quecooperam entre si, digamos pela lei divina? Ouesses termos são reconhecidos por todos comoequitativos tendo por referência uma ordem moralde valores, por exemplo, por intuição racional, oupor referência ao que alguns definiram como 'leinatural'? Ou eles são estabelecidos por meio deum acordo entre cidadãos livres e iguais unidospela cooperação, à luz do que eles consideram sersuas vantagens recíprocas, ou seu bem? A justiçacomo equidade adota uma variante de resposta àúltima pergunta: os termos equitativos decooperação social provêm de um acordo celebradopor aqueles comprometidos com ela. Um dosmotivos por que isso é assim é que, dado opressuposto do pluralismo razoável, os cidadãosnão podem concordar com nenhuma autoridademoral, como um texto sagrado ou uma instituiçãoou tradição religiosa. Tampouco podem concordarcom uma ordem de valores morais ou com os

94 RAWLS, John. (1971) Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e LenitaM. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. XI.

95 RAWLS, 1971, p. XIII.

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ditames do que alguns consideram como leinatural. Portanto, não há outra alternativa melhorsenão um acordo entre os próprios cidadãos,concertado em condições justas para todos96.

Tais considerações acerca do acordo entre os indivíduos nosremetem imediatamente à questão da filiação da Justiça como equidadeà abordagem contratualista, outra característica das Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos. Rawls, explicitando-a, não nos deixa dúvida:

minha tentativa foi de generalizar e elevar a umaordem mais alta de abstração a teoria tradicionaldo contrato social representada por Locke,Rousseau e Kant. Desse modo, espero que a teoriapossa ser desenvolvida de forma a não mais ficaraberta às mais óbvias objeções que se lheapresentam, muitas vezes consideradas fatais.Além disso, essa teoria parece oferecer umaexplicação sistemática alternativa da justiça que ésuperior, ou pelo menos assim considero, aoutilitarismo dominante da tradição97.

É importante notar que a generalização e a abstração da teoriaclássica do Contrato Social na Justiça como equidade não a torna menoscontratualista ou uma teoria contratualista por mera inspiração. De fato,a concepção de justiça proporcionada na teoria da Justiça comoequidade de John Rawls é derivada diretamente da estrutura dopensamento contratualista, e, de modo mais específico, da versãokantiana do Contrato Social. Como o próprio John Rawls reconhece, asua Justiça como equidade

é altamente kantiana em sua natureza. Na verdade,devo abdicar de qualquer pretensão deoriginalidade em relação às visões que apresento.As principais idéias são clássicas e bemconhecidas. Minha intenção foi organizá-las emuma estrutura geral através da utilização de certosrecursos simplificadores, de modo que toda a sua

96 RAWLS, John. (2002) Justiça como equidade: uma reformulação. Trad.Cláudia Berliner. Rev. Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.20-21.

97 RAWLS, 1971, p. XXII.

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força pudesse ser apreciada. Minhas ambiçõespara o livro estarão completamente realizadas seele possibilitar ao leitor uma visão mais clara dasprincipais características estruturais da concepçãoalternativa de justiça que está implícita na tradiçãocontratualista, e se apontar o caminho para a umaelaboração maior dessa concepção. Entre asvisões tradicionais, acredito ser essa a concepçãoque mais se aproxima de nossos juízosponderados sobre a justiça, e que constitui a basemoral mais apropriada para uma sociedadedemocrática98.

Feitas tais considerações sobre a filiação da Justiça comoequidade à tradição contratualista, é preciso observar que ageneralização e abstração do conceito de contrato social são traduzidaspor John Rawls na sua ideia da posição original da Justiça comoequidade99. Nessa posição original, os indivíduos escolheriam dentreuma lista de princípios de justiça presentes na filosofia social e políticaaqueles que se mostrarem mais adequados à realização dos seus própriosinteresses. Como sintetiza Freeman,

The parties in the original position are presentedwith a list of the main conceptions of justicedrawn from the tradition of social and politicalphilosophy, and are assigned the task of choosingfrom among these alternatives the conception ofjustice that best advances their interests inestablishing conditions that enable them toeffectively pursue their final ends andfundamental interests100.

A ideia da posição original é central na teoria de justiça de Rawlsnão apenas pelo reconhecimento de que os termos da cooperação socialdevem ser estabelecidos na convergência dos juízos de pessoas livres eiguais, mas também pelo caráter de objetividade envolvido no exercício

98 RAWLS, 1971, p. XXI-XXIII.99 RAWLS, 1971, p. XIV.100 FREEMAN, Samuel. Original Position. The Stanford Encyclopedia of

Philosophy. Fall 2014 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Disponível em<http://plato.stanford.edu/archives/fall2014/entries/original-position/>Acessado em 10 de setembro de 2014.

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de deliberação. É que no momento da escolha dos termos dacooperação, as pessoas são consideradas como se estivessem encobertaspor um véu da ignorância que as colocaria em uma condição deequidade em relação umas às outras, isto é, pelo recurso ao artifício dovéu da ignorância, ninguém reconheceria seu lugar e suas chancesefetivas de alcançar os seus próprios objetivos na sociedade que estão aformular. Como observa Samuel Freeman,

The original position is a central feature of JohnRawls's social contract account of justice, 'justiceas fairness', set forth in A Theory of Justice (TJ). Itis designed to be a fair and impartial point of viewthat is to be adopted in our reasoning aboutfundamental principles of justice. In taking up thispoint of view, we are to imagine ourselves in theposition of free and equal persons who jointlyagree upon and commit themselves to principlesof social and political justice. The maindistinguishing feature of the original position is'the veil of ignorance': to insure impartiality ofjudgment, the parties are deprived of allknowledge of their personal characteristics andsocial and historical circumstances. They do knowof certain fundamental interests they all have, plusgeneral facts about psychology, economics,biology, and other social and natural sciences101.

Dessa pressuposição, John Rawls conclui que os princípios dejustiça seriam escolhidos por todos de modo a evitar que as inclinações einteresses pessoais prejudicassem a conformação de um sistema decooperação justo ao possibilitar que certos membros escolham regrasmais favoráveis a si mesmos em detrimento do interesse dos demais. Porconseguinte, o critério de objetividade estaria satisfeito.

O quid da proposta rawlsiana se dá na medida em que secompreende que os problemas de justiça serão resolvidos com a própriaconcepção de sociedade justa, moldada pelos princípios de justiçaescolhidos pelos indivíduos na posição original. Nesse sentido, Rawlsobserva que em sua Justiça como equidade, “a ideia norteadora é que osprincípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do

101 FREEMAN, 2014.

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consenso original”102. É dizer: aquilo que deve ser avaliado como justonão é um impasse específico, mas os princípios que orientam a criação eo funcionamento das instituições que dão forma à própria sociedade.Não é por outro motivo que Rawls considera que a estrutura básica dasociedade seja o objeto primário da justiça103, o que faz com que aidentificação da justiça em sua teoria seja transcendente em relação àprópria sociedade. Por conseguinte, sua teoria deveria exercer o papel deproporcionar uma estrutura de argumentação racional para que osindivíduos escolhessem com equidade e imparcialidade o princípio ouos princípios que deveriam ser aplicados para o estabelecimento dasinstituições e comportamentos sociais demandados na concepção deuma sociedade justa. Nesse ponto, é lícito considerar que a terceiracaracterística das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos estariaverificada.

Ademais, cumpre fazer um breve comentário sobre adiscricionariedade e a unanimidade na escolha dos princípios a partirdessa posição original. Em sua obra Uma Teoria da Justiça e em escritosdo mesmo período, Rawls pressupõe que os indivíduos sob o véu daignorância escolheriam um par específico de princípios dentre todos osdisponíveis na tradição social e política, os dois únicos princípios que“pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus própriosinteresses, aceitariam numa posição inicial de igualdade comodefinidores dos termos fundamentais de sua associação”104: o princípioda máxima liberdade e o princípio da igualdade de oportunidades e dacompensação das desigualdades. Em Uma Teoria da Justiça, eles seencontram assim resumidos:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual aomais abrangente sistema de liberdades básicasiguais que seja compatível com um sistemasemelhante de liberdades para as outras.Segundo: as desigualdades sociais e econômicasdevem ser ordenadas de tal modo que sejam aomesmo tempo (a) consideradas como vantajosaspara todos dentro dos limites do razoável, e (b)vinculadas a posições e cargos acessíveis atodos105.

102 RAWLS, 1971, p. 12.103 RAWLS, 1971, p. 3.104 RAWLS, 1971, p. 12.105 RAWLS, 1971, p. 64.

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Como explica Freeman,

Rawls contends that the most rational choice forthe parties in the original position are twoprinciples of justice: The first guarantees the equalbasic rights and liberties needed to secure thefundamental interests of free and equal citizensand to pursue a wide range of conceptions of thegood. The second principle provides fair equalityof educational and employment opportunitiesenabling all to fairly compete for powers andpositions of office; and it secures for all aguaranteed minimum of all-purpose means(including income and wealth) individuals need topursue their interests and to maintain their self-respect as free and equal persons106.

A listagem enumerada dos princípios de justiça da teoria de JohnRawls não é aleatória ou casual. O primeiro princípio é concebido comoocupando uma posição de importância maior que o do segundo. ComoAmartya Sen observa,

os princípios de justiça identificados por Rawlsincluem a prioridade da liberdade (o “primeiroprincípio”), atribuindo precedência à liberdademáxima para cada pessoa sujeita à liberdadesemelhante para todos, em relação a outrasconsiderações, incluindo as de equidadeeconômica ou social. A igualdade de liberdadepessoal tem prioridade sobre as exigências dosegundo princípio, que diz respeito à igualdade decertas oportunidades gerais e à equidade nadistribuição dos recursos de uso geral. Ou seja, asliberdades que todos podem desfrutar não podemser violadas em razão, digamos, da promoção dariqueza ou renda, ou para uma melhor distribuiçãode recursos econômicos entre as pessoas107.

Em obras posteriores, porém, Rawls viu-se obrigado a flexibilizar

106 FREEMAN, 2014.107 SEN, 2009, p. 111-112.

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a sua proposta no sentido de reconhecer que a prioridade da liberdadepoderia ser menos extrema, especialmente após as críticas feitas porHerbert Hart que Amartya Sen assim sintetiza: “por que deveríamosconsiderar a fome coletiva, a fome individual e a negligência médicainvariavelmente menos importantes do que a violação de qualquer tipode liberdade pessoal?”108.

Por conseguinte, em obras mais recentes como LiberalismoPolítico e O Direito dos Povos, Rawls reconheceu a possibilidade de osindivíduos escolherem princípios distintos daqueles que próprio haviaapontado. O que chama atenção nesse ponto específico é que AmartyaSen, embora plenamente consciente da mudança de postura de JohnRawls, faz uma intensa crítica à ideia da escolha unânime do conjuntode princípios sugeridos por Rawls na posição original nas primeirasversões da Justiça como equidade, como se fosse o único a se sustentarapós uma apreciação pública e objetiva. Essa postura poderia serjustificada na hipótese de sua crítica tomar como exemplo outra teoriaespecífica que faz uso de um expediente argumentativo similar ao deRawls, mas sua obra não deixa dúvida de que a teoria que ele tem emmente é justamente a Justiça como equidade em sua versão original,ainda sem as correções impostas pela crítica de Herbert Hart.

Todavia, Amartya Sen também observa que a mudança que JohnRawls empreendeu em sua teoria deixou aberta a questão de explicar amaneira pela qual se daria o processo de escolha entre os princípios dejustiça que sobreviveriam a um exame crítico de objetividade e que,mesmo depois das críticas de Herbert Hart, os princípios de justiça daJustiça como equidade permaneceram orientados ao funcionamento dasinstituições, isto é, como diretrizes principiológicas para criar e regularos sistemas institucionais básicos109. O comportamento real das pessoastambém não ganhou nenhum destaque específico, permanecendopressuposto como adequado ao cumprimento integral das exigências dofuncionamento apropriado dessas instituições. Como o próprio Rawlssugere, “supõe-se que cada homem tenha a capacidade necessária paraentender quaisquer princípios que sejam adotados e agir de acordo comeles”110.

Pela localização dos elementos que conformam a categoriaanalítica Teorias de Justiça Focadas em Arranjos na Justiça comoequidade de John Rawls, a proposta de Amartya Sen em empreender

108 SEN, 1009, p. 119. 109 RAWLS, 1971, p. 68.110 RAWLS, 1971, p. 21.

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essa classificação, nesse caso, parece procedente. Mesmo reconhecendoas ressalvas devidas a um tencionamento tendencioso de Amartya Sen,elas não prejudicam significativamente a precisão de enxergar na teoriade John Rawls as características que ele faz uso para configurar acategoria Teorias de Justiça Focadas em Arranjos.

Por outro lado, há algumas considerações marginais que precisamser ponderadas quando temos em mente que a ideia reguladora queAmartya Sen escolhe para definir o critério de adequação de uma Teoriade Justiça é a sua utilidade para a resolução de problemas práticos dejustiça, dentre os quais estão a fome, o analfabetismo, a privação doacesso aos serviços básicos de saúde e outros de mesma natureza. Tenhoassumido essa ideia reguladora como incontroversa desde o início, talcomo propõe Amartya Sen, mas aqui é preciso deixar claro que oimpulso que levou John Rawls a conceber a sua Justiça como equidadeparece não coincidir completamente com a ideia reguladora escolhidapor Amartya Sen.

Como o próprio John Rawls reconhece, dentre os motivos que olevaram a desenvolver sua própria perspectiva de justiça estava apercepção da inadequação da teoria utilitarista como fundamentopredominante da filosofia moral moderna. Poderíamos, assim, afirmarque este é um dos problemas gerais que pretendeu resolver com a suaproposta. Como ele mesmo pontua no prefácio da edição inglesa deUma Teoria da Justiça,

talvez eu possa explicar o meu objetivo principalneste livro da seguinte forma: em grande parte dafilosofia moral moderna, a teoria sistemáticapredominante tem sido alguma forma deutilitarismo. Um dos motivos para isso é que outilitarismo foi adotado por uma longa linhagemde brilhantes escritores, que construíram um corpode pensamento verdadeiramente impressionanteem seu alcance e refinamento. Algumas vezesesquecemos que os grandes utilitaristas, Hume eAdam Smith, Bentham e Mill, foram teóricossociais e economistas de primeira linha, e que suadoutrina moral foi estruturada para responder àsnecessidades de seus interesses mais amplos epara se encaixar em um esquema abrangente.Aqueles que os criticaram com frequência ofizeram a partir de uma perspectiva muito maisrestrita. Eles apontaram as obscuridades do

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princípio da utilidade e notaram as aparentesincongruências entre muitas de suas implicações enossos sentimentos morais. Mas creio que nãoforam capazes de construir uma concepção moralsistemática e viável que se opusesse a esseprincípio. O resultado é que muitas vezesparecemos forçados a escolher entre o utilitarismoe o intuicionismo. O mais provável é que no fimacabemos nos acomodando em uma variante doprincípio da utilidade que é circunscrita e limitadano âmbito de certas formas ad hoc por restriçõesintuicionistas. Tal visão não é irracional e não hácerteza de que possamos fazer coisa melhor. Masisso não é motivo para que não tentemos111.

A partir do prefácio da edição brasileira, traduzida a partir dascorreções da edição alemã de 1975, porém, é possível conceberclaramente o problema da Justiça como equidade a partir dos doisobjetivos específicos contidos em seu objetivo geral:

Uma explicação das liberdades e direitos básicos,e também de sua prioridade, foi o primeiroobjetivo da justiça como equidade. Um segundoobjetivo foi integrar essa explicação a umentendimento da igualdade democrática, o queconduziu ao princípio da igualdade equitativa deoportunidades e ao princípio da diferença112.

Esse objetivo geral e os objetivos específicos não estãodesconexos. Ao contrário: a preocupação com as liberdades e direitosbásicos decorre exatamente das deficiências do pensamento utilitarista.Rawls afirma explicitamente que sua

intenção foi formular uma concepção da justiçaque fornecesse uma alternativa razoavelmentesistemática ao utilitarismo, que, de uma forma oude outra, dominou por um longo tempo a tradiçãoanglo-saxã do pensamento político. A razãoprincipal para buscar essa alternativa é, no meumodo de pensar, a fragilidade da doutrina

111 RAWLS, 1971, p. XXII.112 RAWLS, 1971, p. XIV.

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utilitarista como fundamento das instituições dademocracia constitucional. Em particular, nãoacredito que o utilitarismo possa explicar asliberdades e direitos básicos dos cidadãos comopessoas livres e iguais, uma exigência deimportância absolutamente primordial para umaconsideração das instituições democráticas113.

Concluída nesses termos, a Justiça como equidade parece quedarem um campo de interesse mais sistemático que contingente,distanciando assim dos parâmetros implícitos na ideia reguladoraproposta por Amartya Sen. Se tal for o caso, a conclusão de que a teoriade justiça de John Rawls padeceria dos problemas típicos das Teorias deJustiça Focadas em Arranjos seria inadequada, posto que seus objetivos,mais interessados com o caráter sistemático da filosofia política e morale com a consistência dos fundamentos teóricos que sustentam certasgarantias democráticas e liberais, permaneceriam distantes dos critériosque Amartya Sen usa para julgar a adequação de uma teoria de justiça.

De certa forma, porém, observa-se que John Rawls avançou umpouco mais em relação à mera substituição dos fundamentos utilitaristasda moderna filosofia moral e da explicação das liberdades e direitosbásicos. Lemos, por exemplo, no prefácio da edição brasileira, que eleconsidera

as ideias e os objetivos centrais dessa concepção[da Justiça como equidade] como os de umaconcepção filosófica para uma democraciaconstitucional. Minha esperança é a de que ajustiça como equidade pareça razoável e útil,mesmo que não seja totalmente convincente, parauma grande gama de orientações políticasponderadas, e portanto expresse uma parteessencial do núcleo comum da tradiçãodemocrática114.

Embora semelhante às transcrições anteriores, a declaração deJohn Rawls de que possui uma expectativa de que a sua Justiça comoequidade pareça útil para uma gama de ponderações políticas sinalizaum certo direcionamento prático de sua teoria. Com efeito, no seu artigo

113 RAWLS, 1971, p. XIV.114 RAWLS, 1971, p. XIII – XIV.

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de 1985, sobre essa expectativa de alcance prático em relação àresolução de problemas práticos de justiça, ele explicou que

há períodos – às vezes longos – na história dequalquer sociedade durante os quais certasquestões fundamentais suscitam controvérsiaspolíticas agudas polarizadas, e parece difícil,senão impossível, encontrar qualquer basecompartilhada de acordo político. Realmente,certas questões podem revelar-se imanejáveis enão ter solução plena. Uma das tarefas da filosofiapolítica numa sociedade democrática é debruçar-se sobre essas questões e examinar se alguma basesubjacente de acordo pode ser descoberta e se ummodo mutuamente aceitável de resolvê-las podeser publicamente estabelecido. Alternativamente,se essas questões não podem ser plenamenteresolvidas, como pode ocorrer, talvez se possadiminuir suficientemente a divergência de opiniãode modo a que a cooperação política com base norespeito mútuo possa ainda ser mantida115.

Essa última citação colacionada também atenuasignificativamente a crítica de Amartya Sen que pressupõe um JohnRawls que ainda ambiciona que a sua teoria oferecesse necessariamenteao final um acordo mutuamente aceitável por todas as partes envolvidasna deliberação, como foi notado na discussão sobre a prioridade doprincípio da igualdade máxima.

Dessa forma, ainda que concebida inicialmente como umajustificação moral sistemática substituta ao utilitarismo, a teoria dejustiça de Rawls pode ser colocada dentre aquelas que pretendemexercer influência direta na resolução de problemas práticos da justiça e,além disso, e que considera que essa questão deva se desenvolver apartir de ou aberto ao debate público arrazoado. Por outro lado, há umevidente descompasso entre o critério de avaliação sugerido porAmartya Sen - o de verificar a capacidade de uma teoria de justiçaoferecer soluções a problemas imediatos tais como a fome, oanalfabetismo, o preconceito racial e outros de mesma natureza - e aprópria concepção de justiça implícita na Teoria de John Rawls. De

115 RAWLS, John (1985). Justiça como equidade: uma concepção política, nãometafísica. Trad. Regis de Castro Andrade. Lua Nova, São Paulo, n. 25,Abr./1992, p. 29.

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certo modo, é possível enxergar nos princípios de justiça da Justiçacomo equidade uma espécie de incompatibilidade entre a urgência e oconsequencialismo de Amartya Sen e a confiança e a importância queJohn Rawls deposita nos procedimentos e nas instituições.

Mesmo reconhecendo que tal afirmação deveria ser melhorfundamentada, acredito que a justiça como equidade carrega consigoalgo do imperativo categórico kantiano, pelo qual as ações são avaliadasa partir do seu próprio escopo (são valiosas em si) e não porconsequências ou por seu valor instrumental (são valiosas pelo resultadoque proporcionam). Talvez não seja por outro motivo que John Rawlsconsidera as liberdades básicas como direitos incondicionáveis. Todavia,a justiça como equidade parece se distanciar do juízo categórico namedida em que permite uma avaliação contextual das desigualdades edas medidas necessárias ao maior benefício dos mais prejudicados, oque torna o procedimento de escolha dos princípios de justiçarelativamente consequencialista.

Talvez o problema aqui não seja metodológico, mas sim entreexpectativas distintas de como a justiça deve ser compreendida.

2.6.2 Justiça e Estado mínimo em Robert Nozick

Outra teoria de justiça que também é percebida por Amartya Sencomo um exemplar das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, aindaque como derivativamente fundamentalista em relação às instituições enão aos arranjos abrangentes116, é a do filósofo americano RobertNozick. Em que pese a sua baixa popularidade no Brasil e na AméricaLatina em geral, foi um renomado teórico com trabalhos aclamados emvários campos e amplamente reconhecido como autor do clássicolibertário Anarquia, Estado e Utopia, de 1974, pelo qual foi laureadocom o National Book Award de Filosofia e Religião de 1975117.

Seu trabalho sobre os problemas de justiça está exposto em umalarga série de artigos compilados e sistematizados em Anarquia, Estadoe Utopia, no qual o pano de fundo é a busca pela desconstrução oudeslegitimação das pretensões de ampliar as atribuições do Estado paraque ele exerça funções típicas defendidas pelas teorias de justiça

116 SEN, 2009, p. 147.117 MACK, Eric. Robert Nozick's Political Philosophy. The Stanford

Encyclopedia of Philosophy. Fall 2014 Edition. Edward N. Zalta (ed.).Disponível em <http://plato.stanford.edu/archives/fall2014/entries/nozick-political/> Acessado em 12 de março de 2014.

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distributiva, tal como vistas na obra de John Rawls118. Ainda que RobertNozick conceba a Justiça como equidade suficientemente relevante, e épelo reconhecimento da importância da teoria de John Rawls nasdiscussões políticas e filosóficas norte-americanas que ele reserva umaatenção especial na sua obra para criticá-la exaustivamente, seu impulsopara pensar a justiça segue por um caminho oposto. Essa diferença évisível inclusive na exposição dos argumentos que compõem UmaTeoria da Justiça e Anarquia, Estado e Utopia: ambos os livros possuemestrutura, pontos de partida e de chegada um tanto quanto distintos.

Assim como lemos na primeira versão de Uma Teoria de Justiça,de John Rawls, uma defesa aberta aos princípios liberais e igualitáriosda Justiça como equidade enquanto únicos princípios de justiça aceitospor todos unanimemente na posição original, na obra de Robert Nozickpercebe-se uma clara afirmação dos princípios de justiça libertários eindividualistas diante de qualquer ação possível de ser exercida peloEstado desde o primeiro parágrafo. Para Robert Nozick,

Indivíduos têm direitos. E há coisas que nenhumapessoa ou grupo podem fazer com os indivíduos(sem lhes violar os direitos). Tão fortes e de tãoalto alcance são esses direitos que colocam aquestão do que o Estado e seus servidores podem,se é que podem, fazer. Que espaço os direitosindividuais deixam ao Estado? A natureza doEstado, suas funções legítimas e suasjustificações, se existem, constituem o temacentral deste livro, e uma grande e diversificadavariedade de tópicos entrelaça-se no curso denosso estudo119.

Na parte I de Anarquia, Estado e Utopia, Robert Nozick faz usoda ideia de estado de natureza para explicar a existência do Estado120 ejustificar a ideia de Estado Mínimo em relação ao EstadoUltramínimo121 pela necessidade do monopólio da força. Ainda noprimeiro parágrafo, Robert Nozick nos revela sem nenhum rodeio o seulugar de fala e a conclusão que pretende sustentar com a argumentação

118 NOZICK, Robert (1974). Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Ruy Jungmann.Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1991. p. 12.

119 NOZICK, 1974, p. 9.120 NOZICK, 1974, p. 18.121 NOZICK. 1974, p. 130-131.

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desenvolvida nos capítulos seguintes do seu livro. Como se depreendeda primeira citação colacionada, para Robert Nozick as discussões sobrea justiça estão intimamente relacionadas à discussão sobre as funções doEstado. Com certa segurança, se pode afirmar que a concepção derealização de justiça em Robert Nozick se traduz na garantia dos direitosindividuais libertários e que essa garantia só pode ser alcançada pelalimitação das funções do Estado, incluindo as ações direcionadas àredução de desigualdades. Como ele afirma,

nossa principal conclusão sobre o Estado é queum Estado mínimo, limitado às funções restritasde proteção contra a força, o roubo, a fraude, defiscalização do cumprimento de contratos e assimpor diante justifica-se; que o Estado mais amploviolará os direitos das pessoas de não seremforçadas a fazer certas coisas, e que não sejustifica; e que o Estado mínimo é tanto inspiradorquanto certo. Duas implicações dignas de nota sãoque o Estado não pode usar sua máquinacoercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarema outros ou para proibir atividades a pessoas quedesejam realizá-las para seu próprio bem ouproteção.122.

Tal como apresentado por John Locke, seu argumento objetivademonstrar os motivos pelos quais os indivíduos associam-se livrementee criam mecanismos de autoproteção contra seus semelhantes, queseriam os únicos termos do contrato social cuja escolha respeitaria osdemais direitos individuais. Essa associação de proteção teria comoobjetivo exercer exclusivamente “funções restritas de proteção contra aforça, o roubo, a fraude, de fiscalização do cumprimento de contratos eassim por diante”123.

Na parte II, Nozick esforça-se para demonstrar que qualquerampliação do Estado para além das funções de proteção à integridadefísica e patrimonial, em especial para um Estado de bem-estar eredistributivo, fere as liberdades individuais e, portanto, não pode serjustificada. Considerações idênticas foram feitas por Friedrich Hayek,para quem

122 NOZICK, 1974, p. 9.123 NOZICK, 1974, p. 9.

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não só é impossível para a Grande Sociedademanter-se e aplicar, ao mesmo tempo, normas dejustiça social ou distributiva, como é tambémnecessário, para sua preservação, que nenhumgrupo específico com concepções comuns acercade seus direitos possa impô-las124.

Uma das principais teses trazidas por Robert Nozick em defesadesse argumento é a de que, em funcionamento, as políticas deredistribuição nos Estados Unidos não beneficiavam os menosfavorecidos, mas a classe média. E essas políticas não eram conduzidaspor razões humanitárias, mas por motivos eleitorais125. Este é, aliás, umargumento de natureza muito comum da perspectiva da Escola Austríacaacerca dos efeitos concretos das políticas de redistribuição. Nessesentido, em outra observação de Friedrich Hayek lemos que

não devemos esquecer, entretanto, que, na origemda luta pela 'justiça social' se encontrava olouvável intuito de abolir a miséria, e que aGrande Sociedade teve brilhante êxito em abolir apobreza no sentido absolutos. Hoje, nos paísesdesenvolvidos, ninguém que seja capaz de exercertrabalho útil fica privado de alimento e abrigo e,para os incapazes de ganhar por si mesmos osuficiente, essas necessidades em geral sãoatendidas à margem do mercado. A pobreza, nosentido relativo continuará existindo, é claro, emtoda sociedade que não seja completamenteigualitária: havendo desigualdade, sempre haveráalguém no patamar mais baixo da sociedade. Masa abolição da pobreza absoluta não é auxiliadapelo empenho em realizar a “justiça social”126.

Por fim, na parte III que encerra o livro, Nozick propõe aconcepção de um modelo utópico de Estado que funcionaria como umaestrutura básica de uma sociedade na qual fosse possível experimentar

124 HAYEK, Friedrich (1976). Direito, legislação e liberdade: uma novaformulação dos principias liberais de justiça e economia politica. v. 2. Trad.Maria Luiza X. de A. Borges. Rev. Aníbal Mari e José Ítalo Stelle. SãoPaulo: Visão, 1985. p. 163.

125 NOZICK, 1974, p. 295-296.126 HAYEK, 1976, p. 166.

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qualquer tipo de arranjo social possível ou imaginável127. Seu EstadoUtópico seria

um lugar onde pessoas têm liberdade de seassociarem voluntariamente para seguir e tentarrealizar sua própria visão da boa vida nacomunidade ideal, mas onde ninguém pode imporsua própria visão utopista aos demais128

Com essa reflexão, Nozick pretende demonstrar como a condiçãode justiça plena e em harmonia com as aspirações de cada indivíduopoderia ser alcançada pela implementação dos únicos requisitos básicospara o funcionamento dessa estrutura utópica que são, na verdade,exatamente os mesmos requisitos que ele aponta como funções legítimasque podem ser exercidas por um Estado. Ao final dessa reflexão, apropósito, Nozick revela que essa estrutura utópica plenamente justanada mais é que o próprio Estado Mínimo129 que ele buscou defenderdesde o primeiro parágrafo do livro, o “Estado vigilante-noturno dateoria liberal clássica”130, um Estado Mínimo que

trata-nos como indivíduos invioláveis, que nãopodem ser usados de certas maneiras por outroscomo meios, ferramentas, instrumentos ourecursos. Trata-nos como pessoas que têm direitosindividuais, com a dignidade que isso pressupõe.Tratando-nos com respeito ao acatar nossosdireitos, ele nos permite, individualmente ou emconjunto com aqueles que escolhermos,determinar nosso tipo de vida, atingir nossos finse nossas concepções de nós mesmos, na medidaem que sejamos capazes disso, auxiliados pelacooperação voluntária de outros indivíduospossuidores da mesma dignidade131.

Seja como for considerado o seu argumento, utopia voltada àexperimentação de utopias ou defesa explícita do estabelecimentoexclusivo das funções de proteção à integridade física e patrimonial, o

127 NOZICK, 1974, p. 357.128 NOZICK, 1974, p. 338.129 NOZICK, 1974, p. 357.130 NOZICK, 1974, p. 40.131 NOZICK, 1974, p. 357-358.

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que Robert Nozick propõe é justamente uma concepção transcendentede justiça realizável através das instituições sociais correspondentes.Como observa Amartya Sen, o critério de avaliação de justiça na obra deRobert Nozick se revela na medida da exigência de satisfação dosdireitos libertários, que é sua imagem transcendental de sua justiça132:

quando Robert Nozick defende a necessidade, porrazões de justiça, de garantir as liberdadesindividuais, incluindo os direitos de propriedade,livre-troca, livre transferência e livre herança, elefaz das instituições necessárias para esses direitos(o enquadramento jurídico, bem como oeconômico) requisitos essenciais de sua visão deuma sociedade justa133

A partir da exposição desses elementos, já é possível verificar apresença de duas características centrais da categoria Teorias de JustiçaFocadas em Arranjo. A primeira é a concentração da atenção de RobertNozick naquilo que ele compreende como a justiça perfeita e não emcomparações entre alternativas viáveis, o que faz com que a suainvestigação se dê no plano da natureza do justo. Perfeitamente justo,para Robert Nozick, é a não-violação dos direitos libertários. A segundacaracterística é a identificação das instituições sociais necessárias àrealização, por si, da justiça perfeita. Em Anarquia, Estado e Utopia,essas instituições correspondem necessariamente e exclusivamente àsleis e funções do Estado que visem garantir a proteção contra a força, oroubo, a fraude, de fiscalização do cumprimento de contratos e assimpor diante.

Por outro lado, não fica claro como seria possível sustentar que aconcepção de justiça de Robert Nozick parte da premissa de que asquestões que envolvem a promoção da justiça devem ser conduzidaspelo uso da razão pública e como compreender a escolha do(s)princípio(s) de justiça e de seu respectivo arranjo como objetos oucláusulas de uma deliberação contratualista unânime.

Apesar de sua forte inspiração na teoria contratualista de JohnLocke, a fundamentação dos direitos individuais libertários naperspectiva de Robert Nozick é sustentada por sua própria afirmação deque esses direitos são invioláveis. Na medida em que ele canoniza certos

132 SEN, 2009, p. 163.133 SEN, 2009, p. 146.

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direitos individuais, ele não deixa espaço para que os indivíduosconcebam um contrato social que disponha o contrário. Mesmo seconsiderássemos a hipótese da sociedade utopista, os acordosindividuais deveriam ser realizados a partir de uma estrutura mínimapressuposta na qual qualquer ampliação que buscasse legitimar outrasfunções do Estado, tais como a garantia de renda mínima à subsistênciaou fornecimento de educação gratuita aos menos favorecidos,encontrariam obstáculo de implementação ao serem consideradasincompatíveis com os direitos libertários.

Como Robert Nozick não recorre a nenhum artifício semelhante àpressuposição de que os direitos libertários seriam escolhidosunanimemente em um contrato social hipotético, como os direitosliberais e igualitários da Justiça como equidade de John Rawls, não seriaarriscado concluir que sua teoria está ancorada em uma fundamentaçãoessencialista e absoluta, como se tais direitos libertários – e somente eles– fossem inerentes à condição humana. Por conseguinte, podemosafirmar certas dessemelhanças entre aquilo que Amartya Sencompreende como Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e a teoria dejsutiça de Robert Nozick.

Ademais, também aqui parece haver uma imprecisão entre ocritério de avaliação que Amartya Sen sugere e os propósitos de RobertNozick. Talvez um Estado vigilante-noturno não consiga resolverproblemas como a fome e o analfabetismo, mas esse fato não autoriza aconclusão de que a teoria de justiça de Nozick é metodologicamenteinadequada. Evidentemente ela não foi concebida para tais fins e, demodo mais geral, a justiça para Robert Nozick não possui o mesmosentido que o economista indiano privilegia.

2.6.3 David Gauthier e a moralidade do mercado

A terceira teoria justiça que, de acordo Amartya Sen, estariaclaramente vinculada à categoria Teorias de Justiça Focadas em Arranjosé a do filósofo canadense David Gauthier, egresso das universidades deToronto, Harvard e Oxford134. Embora os seus livros PracticalReasoning, de 1963, e The Logic of Leviathan, de 1969, contenhamimportantes reflexões sobre as questões relacionadas aos problemas dejustiça, a sistematização das suas ideias que receberam atenção e críticas

134 VALLENTYNE, Peter. Contractarianism and Social Choice: Essays onDavid Gauthier's Morals by Agreement. New York: Cambridge UniversityPress, 1991. p. XV.

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de Amartya Sen sobre o tema concentram-se na sua obra Morals byAgreement, de 1986, derivada de duas décadas de trabalho nodesenvolvimento de uma teoria contratualista moral no âmbito da Teoriada Escolha Racional135.

Como David Gauthier confessa no prefácio do seu Morals byAgreement, sua atenção era direcionada inicialmente à ideia de umateoria moral contratualista tradicional que em certa circunstância odeixou desconcertado com as palavras pela dificuldade em relacionarmoralidade e vantagens individuais136. Esse desconcerto dizia respeitoao problema das fundamentações morais tradicionais se pautarem oupela pressuposição de algo como um sentimento humanitáriocompartilhado ou pela ideia de um estado natural no qual haveria umaguerra de todos contra todos. Como Gilvan Luiz Hansen observa, napercepção de David Gauthier

toda pessoa defende somente seus própriosinteresses. Ao contrário da tradição do Idealismoalemão, especialmente da vertente kantiana,Gauthier não acredita que a razão possua uminteresse universal, um interesse capaz de moverum indivíduo em prol de causas coletivas ouglobais. Cada indivíduo é um centro de interesse ebusca realizar única e exclusivamente o conjuntodos seus próprios interesses137.

Por outro lado, o terror e o medo, pressupostos nas posiçõesoriginais das teorias contratualistas clássicas e que supostamenteatormentariam a existência humana na ausência de limitações moraisrecíprocas, estariam prejudicados uma vez que o acordo fosse celebrado.Posto não haver mais a persistência da condição que estimulou a adoçãode princípios morais, os indivíduos poderiam simplesmente nãoobservá-los mais.

A alternativa desenvolvida por David Gauthier a esses problemasmantém a estrutura moral contratualista, mas assume diversas reflexõesoferecidas pela Teoria da Escolha Racional e pela Teoria dos Jogos. O

135 VALLENTYNE, 1991, p. XV.136 GAUTHIER, David. Morals by Agreement. New York: Oxford University

Press, 1986. p. V.137 HANSEN, Gilvan Luiz. A Ética segundo David Gauthier. In: CARVALHO,

José Maurício de. Problemas e teorias da ética contemporânea. PortoAlegre: EDIPUCRS, 2004. p. 367-368.

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insight de David Gauthier para incorporar os elementos dessas teoriasem sua concepção moral ocorreu quando foi apresentado a um problemabastante conhecido e estudado pela Teoria dos Jogos e que lhe serviucomo um ponto a partir do qual poderia responder a questão ceticistasobre o fundamento racional para seguir de padrões morais: o Dilema doPrisioneiro. Com auxílio das reflexões implícitas no Dilema doPrisioneiro, David Gauthier pode ponderar a importância de seconsiderar os ganhos individuais a partir de uma estrutura de cooperaçãosocial que garantisse um mínimo de vantagens aos que tomam parte epermanecem vinculados ao Contrato Social. Como Hansen observou,

O caráter contratualista da MBA [Morals byAgreement] se encontra alicerçado na concepçãode que as pessoas firmam contratos umas com asoutras, não por sentimentos de altruísmo ou porinteresses coletivos de qualquer ordem, mas paraviabilizar e maximizar os seus próprios interessesenquanto indivíduos. Tal convicção de Gauthier ésimilar àquela presente no contratualismo deHobbes; as divergências básicas de Gauthier comrelação a Hobbes, porém, parecem se depositarprimeiramente na noção de que o contrato não éfruto exclusivo do temor de aniquilação contidonum pressuposto estado de natureza(précontratual), mas expressão da decisão livre depessoas que decidem interagir; por conseguinte, eaí encontramos uma segunda diferença, oestabelecimento de contratos não implica naabolição das liberdades individuais (em função deum Leviatã), mas na sua maximização, sob aforma de acordos cooperativos. Sob esse prisma, aMBA é um empreendimento cooperativo dasociedade, estruturado a partir de contratos entrepessoas livres que não abrem mão de sualiberdade individual no momento em que firmamcontratos138.

Considerações semelhantes foram feitas por Cudd, para quem

Gauthier's project in Morals By Agreement is toemploy a contractarian approach to grounding

138 HANSEN, 2004, p. 362-363.

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morality in rationality in order to defeat the moralskeptic. (However, Anita Superson (2009) pointsout that Gauthier attempts to answer only theskeptic who asks “why should I be moral?” butleaves both the motive skeptic, who argues that itis enough to act morally but need not bemotivated by morality, and the amoralist, whodenies that there is any such thing as morality.)Gauthier assumes that humans can have no naturalharmony of interests, and that there is much foreach individual to gain through cooperation.According to Gauthier, moral constraint on thepursuit of individual self-interest is requiredbecause cooperative activities almost inevitablyinvolve a prisoner's dilemma: a situation in whichthe best individual outcomes can be had by thosewho cheat on the agreement while the others keeptheir part of the bargain. This leads to the sociallyand individually sub-optimal outcome whereineach can expect to be cheated by the other. But bydisposing themselves to act according to therequirements of morality whenever others are alsoso disposed, they can gain each others' trust andcooperate successfully139.

A partir desas considerações, já conseguimos identificar o carátercontratualista que seria típico da categoria Teorias de Justiça Focadasem Arranjos sugerida por Amartya Sen, mas ainda não está clara alocalização da sua concepção de justiça perfeita, dos arranjosinstitucionais correspondentes e nem da relevância da argumentaçãopública racional demandada nessas etapas.

Todavia, esses elementos parecem encontrar lugar no capítuloThe Market: freedom from morality, do seu Morals by Agreement, cujotítulo escolhido já aponta por quais caminhos a Teoria de Justiça deDavid Gauthier seguirá. Com efeito, nessa seção específica o seu autorafirma que uma sociedade ideal seria aquela na qual as pessoas fossemlivres para perseguir o próprio interesse sem serem impedidas poralguma espécie de coerção externa. Essa é, portanto, a sua ideia dejustiça suprema, realizável caso o mundo fosse como um mercadoperfeitamente competitivo. Como o mundo não constitui um mercadoperfeitamente competitivo, a moralidade torna-se uma restrição

139 CUDD, 2013.

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necessária à interação das pessoas racionais. A necessidade dasrestrições, isto é, da moralidade, decorre, portanto, das falhas domercado140. Por conseguinte, os arranjos sociais necessários aoestabelecimento de uma sociedade que seja a mais justa possível sãoaqueles que se mostrem hábeis a corrigir tais falhas de mercado e quesejam aceitas pelos indivíduos na posição original do hipotético contratosocial. Como observa Cudd,

The contractarian element of the theory comes inthe derivation of the moral norms. According toGauthier, the compliance problem—the problemof justifying rational compliance with the normsthat have been accepted—must drive thejustification of the initial situation and the conductof the contracting situation. Gauthier likens thecontract situation to a bargain, in which each partyis trying to negotiate the moral rules that willallow them to realize optimal utility, and then heargues in favor of a bargaining solution that hecalls “minimax relative concession.” The idea ofminimax relative concession is that each bargainerwill be most concerned with the concessions thatshe makes from her ideal outcome relative to theconcessions that others make. If she sees herconcessions as reasonable relative to the others,considering that she wants to ensure as much forherself as she can while securing agreement (andthereby avoiding the zero-point: no share of thecooperative surplus) and subsequent compliancefrom the others, then she will agree to it. Whatwould then be the reasonable outcome? Gauthierargues that it is the outcome that minimizes themaximum relative concessions of each party tothe bargain141.

Como se depreende dessa síntese, uma das principais distinçõesentre a formulação contratualista de David Gauthier e a de John Rawlsestá na ausência do véu da ignorância, isto é, do obstáculo colocado paraque os indivíduos não tivessem acesso às informações quanto aos seuspróprios interesses e posições na sociedade. Considerando que os

140 GAUTHIER, 1986, p. 84.141 CUDD, 2013.

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indivíduos devem avaliar o que perdem e o que ganham efetivamente apartir da adoção das restrições morais, David Gauthier não vê sentidoem impedir que as partes que celebram o contrato social levem em contaas vantagens relativas das posições que já ocupam na posição original.Nesse sentido, Cudd observa que, na concepção de David Gauthier,

Equally important to the solution as the procedureis the starting point from which the parties begin.For Gauthier there is no veil of ignorance—eachparty to the contract is fully informed of theirpersonal attributes and holdings. But Gauthierargues that the initial position must have beenarrived at non-coercively if compliance to theagreement is to be secured. He thus adopts whathe calls the “Lockean proviso” (modeled afterLocke's description of the initial situation of hissocial contract): that one cannot have betteredhimself by worsening others. In sum, the moralnorms that rational contractors will adopt (andcomply with), according to Gauthier, are thosenorms that would be reached by the contractorsbeginning from a position each has attainedthrough her own actions which have not worsenedanyone else, and adopting as their principle foragreement the rule of minimax relativeconcession142.

A relevância do acesso a todas as informações que entram emconta na ponderação sobre os ganhos e concessões possíveis dosindivíduos é também relevante para a compreensão de que os tipos e oalcance das restrições morais na teoria de David Gauthier dependem docontexto no qual o contrato social é celebrado. Assim, apesar de serafirmado em sua teoria de justiça a centralidade das cláusulasdemandadas para a concepção das instituições justas, isto é, dasinstituições que dariam origem a um mercado perfeitamente competitivoou algo aproximado disso, a natureza dessas instituições varia de acordocom as características do contexto onde esse mercado funcionará143.

Por conseguinte, as observações feitas por Amartya Sen sobre ateoria de justiça de David Gauthier, em especial a de que ela “baseia-seem acordos entre as diferentes partes, que assumem a forma de uma

142 CUDD, 2013.143 GAUTHIER, 1986, p. 83-4.

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concordância sobre os arranjos institucionais, o que supostamente nosleva a percorrer todo o caminho até a justiça social”144 e a de que aprioridade absoluta que David Gauthier dá às instituições corretas, istoé, aquelas necessárias ao estabelecimento de um mercado competitivo,isola as considerações acerca das consequências reais do seufuncionamento, parecem adequadas.

De fato, desde que estabelecidas as instituições corretas, isto é, asinstituições capazes de corrigir as falhas de mercado e assim garantir aotimização dos ganhos individuais, a Teoria de Justiça de DavidGauthier pressupõe que as pessoas estariam seguras em suas mãos elibertas das limitações morais145 e que, por conseguinte, a tarefa depensar uma sociedade justa terminaria com a escolha racional dessasinstituições. Não há, portanto, maiores preocupações acerca docomportamento real das pessoas.

Por fim, uma pequena incompatibilidade entre as característicasdas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e a Teoria de Justiça deDavid Gauthier precisa ser notada. Na medida em que a escolha dosprincípios de justiça por parte dos indivíduos é forçosamentedirecionada à correção das falhas de mercado, não fica claro como aTeoria de Justiça de David Gauthier assimilaria a hipótese de osindivíduos acordarem sem considerar exclusivamente a realização dospróprios interesses e que, por um ou outro motivo, não fossem osnecessários ou suficientes para a manutenção de um mercado perfeito. Aesse respeito, são evidentes algumas semelhanças entre a concepção dejustiça de David Gauthier e a de Robert Nozick. Ao fim e ao cabo,ambas as Teorias de Justiça objetivam o funcionamento de um Estadomínimo cujas funções se limitam relativamente à proteção física epatrimonial dos indivíduos que, em outros termos, se traduzem emmeios de manutenção de um mercado perfeito que funciona semcoerções externas.

144 SEN, 2009, p. 114.145 SEN, 2009, p. 114.

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3 PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS DAS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS

No capítulo anterior, expus as principais características dacategoria analítica Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, dentro daqual Amartya Sen afirma estar incluída a maior parte das teorias dejustiça contemporâneas. Apontei a vinculação entre o senso de justiça eo uso da razão, pressuposta para se pensar as funções das Teorias deJustiça, identificando a forte demanda por explicações racionais e não-metafísicas dos princípios morais e das autoridades constituídas noperíodo do Esclarecimento, bem como essa exigência funcionou comoimpulso às Teorias Contratualistas; indiquei o deslocamento, ocorrido noseio das Teorias Contratualistas, entre a função explicativa e a funçãonormativa, cujo objeto tornava-se a concepção de uma sociedade justa;ao fim, resumi as características da abordagem institucionaltranscendental da justiça, que está implícita no exercício de concepçãode uma sociedade justa, e a sua derivação em Teorias de Justiça Focadasem Arranjos, cujos principais elementos, tal como apontados porAmartya Sen, foram localizados nas teorias de justiça de John Rawls,Robert Nozick e David Gauthier com algumas ressalvas importantes.

O presente capítulo, por sua vez, se desenvolverá em torno daexposição do conjunto de críticas de fundo epistemológico emetodológico que Amartya Sen endereça aos pressupostos das Teoriasde Justiça Focadas em Arranjos. Para o economista indiano, essesproblemas prejudicariam o alcance prático das Teorias de Justiça que seencontram filiadas a essa tradição. Dessa forma, a ideia reguladora queorienta a crítica de Sen não se relaciona necessariamente tanto compossíveis inconsistências internas ou incompletudes sistêmicas, quepareciam ser o objeto de preocupação de John Rawls em relação àsubstituição do fundamento utilitarista dos direitos e liberdades básicas,mas com a utilidade prática dessas teorias para a resolução de problemastais como a fome, o analfabetismo, o preconceito racial e outrosproblemas semelhantes de justiça.

Todavia, como notei brevemente na ocasião em que foicomentada a localização das características das Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos nas teorias de justiça de John Rawls, RobertNozick e David Gauthier, o emprego dessa ideia reguladora pode ser umtanto quanto problemático. Assim, a exposição das críticas às Teorias deJustiça Focadas em Arranjos será antecedida por uma breve ressalva arespeito desse ponto.

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3.1 A ideia reguladora de utilidade de uma teoria de justiça

Amartya Sen assume que as teorias de justiça devem seravaliadas quando suas possibilidades de influírem na resolução deproblemas práticos de justiça. Por problemas práticos de justiça, como jáapontei aqui algumas vezes, o economista indiano entende questõessociais tais como a fome, o analfabetismo, a falta de acesso aos serviçosbásicos de saúde, o preconceito racial, epidemias evitáveis e outras demesma natureza. Para Amartya Sen, as teorias de justiça que compõemaquilo que ele denomina como Teorias de Justiça Focadas em Arranjosnão estariam em condições de oferecer respostas a esses problemas. Dealguma forma, ele concebe essas teorias como um empreendimentointelectual inapto ao auxílio prático, algo que deveria ser próprio delas.Essa é uma postura que remete ao famoso questionamento que MárioLosano fez à figura do cientista jurídico pensada por Hans Kelsen emsua Teoria Pura do Direito:

Sem metáforas, é preciso neste ponto tomarposição entre dois juízos de valor mutuamenteexcludentes: o conhecimento é fim em si mesmoou deve servir à ação? Volta-se assim, mais umavez, às concepções opostas de ciência –instrumento cognoscitivo fechado em si mesmoou instrumento do progresso humano146.

Por outro lado, o caminho que foi percorrido no capítulo anteriormostrou-se suficientemente seguro para sugerir que essa ideiareguladora pode ter algo de arbitrário ao assumir que as teorias que sãoobjeto de sua crítica buscam, tal como a própria teoria do economistaindiano, exercer alguma influência na resolução de problemas práticosde justiça e que por problemas práticos de justiça todos os autorescompartilham da mesma compreensão, isto é, que todas as teoriasbuscam abolir das injustiças evidentes e corrigíveis como a fome, oanalfabetismo e a privação aos serviços básicos de saúde.

Na ocasião em que foram analisadas as Teorias de Justiça de JohnRawls, Robert Nozick e David Gauthier, a barreira que separa o resolver

146 LOSANO, Mário. Introdução. In: KELSEN, Hans (1960). O problema dajustiça. Trad. João Baptista Machado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes.1998. p. XXX.

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do não resolver um problema prático de justiça pareceusignificativamente turva em relação aos propósitos declarados dessesrespectivos teóricos. De certo modo, aquilo que John Rawls pretende econsegue oferecer com fundamentos consistentes em sua Justiça comoequidade é a justificação dos direitos e garantias básicas de umaconcepção democrática liberal e igualitarista. Não é por outro motivoque o seu trabalho foi consagrado no Brasil especialmente porpesquisadores que sustentavam a necessidade das ações afirmativas. Asteorias de justiça de Robert Nozick e David Gauthier, da mesma forma,constituem argumentos plausíveis em favor de uma posição políticalibertária na qual a concepção de realização da justiça se resumenecessariamente na defesa dos direitos individuais e da propriedadeprivada, pois ambos compartilham a convicção de que não deve serexigido coercitivamente do indivíduo qualquer tipo de auxílio para osmenos favorecidos e que o resultado pretendido com as políticas sociaispode ser alcançado de modo mais eficiente pela ação de um mercadolivre de qualquer regulamentação. A grande injustiça que esses autoresbuscam combater, a propósito, é a coerção estatal operada na forma dearrecadação tributária para o financiamento de serviços que sãopressupostos nas soluções viáveis dos problemas identificados porAmartya Sen.

Na verdade, o que parece estar em jogo é mesmo uma disputaentre concepções inconciliáveis de justiças. Enquanto Rawls, Nozick eGauthier trabalham em um campo principiológico típico da tradiçãopolítica norte-americana e que é particularmente adequado à defesa daprioridade das liberdades individuais, Amartya Sen convoca-os àsdisputas políticas abertas no lado subdesenvolvido do mundo, onde afome impede até mesmo a discussão sobre a liberdade. Em favor dessainterpretação, cito uma argumentação do economista indiano localizadano final de A Ideia de Justiça que, ao mesmo tempo, afirma e contradiz apressuposição de que exista uma noção compartilhada, pelas maisdiversas teorias a respeito, do modo como a justiça seria realizada.Como ele observa,

a filosofia pode produzir — e de fato produz —um trabalho de extremo interesse e importânciasobre vários temas que não guardam nenhumarelação com as privações, as injustiças e a falta deliberdade das existências humanas. Não há porque não ser assim, e só podemos nos alegrar coma ampliação e a consolidação dos horizontes de

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nosso entendimento em todos os campos dacuriosidade humana. No entanto, a filosofiatambém pode contribuir para trazer maisdisciplina e maior alcance às reflexões não sósobre os valores e prioridades, mas também sobreas negações, subjugações e humilhações que osseres humanos sofrem no mundo. As teorias dajustiça têm como compromisso comum levar essasquestões a sério e ver o que podem fazer quanto auma reflexão da razão prática sobre a justiça e ainjustiça no mundo. Se a curiosidade epistêmicaem relação ao mundo é uma tendência comum amuitas pessoas, o interesse pelo bom, certo e justotambém tem uma presença importante — explícitaou latente — em nosso espírito. As diferentesteorias da justiça podem divergir quanto aodirecionamento correto dessa preocupação, mascompartilham a característica significativa de sededicarem ao mesmo objetivo147.

Assim, antes de expor os problemas epistemológicos emetodológicos que Amartya Sen aponta nas Teorias de Justiça Focadasem Arranjos, se deve assumir que a ideia de verificar o alcance práticodas teorias que fazem parte dessa categoria será problemática se nãotivermos em conta essas considerações.

3.2 As deficiências das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos

Tomando a justiça como equidade de John Rawls comoparâmetro, Amartya Sen enumera algumas deficiências das Teorias deJustiça Focadas em Arranjos.

Em primeiro lugar, as teorias de justiça pertencentes a essacategoria analítica ignoram a tarefa de “de responder a perguntascomparativas sobre a justiça, concentrando-se apenas na identificaçãodas demandas de uma sociedade perfeitamente justa”148. Para oeconomista indiano, a realização da justiça pressupõe a comparaçãoentre alternativas sociais viáveis, mas o que as Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos oferecem é apenas uma idealização acerca do queseria uma sociedade plenamente justa.

Em segundo lugar, as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos

147 SEN, 2009, p. 591.148 SEN, 2009, p. 155.

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formulam seus objetivos ou exigências de justiça em termos deprincípios dirigidos exclusivamente ao que seus autores compreendemcomo instituições justas numa perspectiva restrita que ignora asrealizações sociais efetivamente verificáveis. É dizer: contentam-se emfocar as instituições que, desde que concebidas em acordo aos princípiosde justiça, refletiriam a realização da justiça149.

Em terceiro lugar, por se pautarem por uma perspectivacontratualista cuja abrangência coincide com as fronteiras do Estado-nação, as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos ignoram

os possíveis efeitos negativos sobre as pessoasalém das fronteiras de cada país a partir das açõese escolhas internas do país, sem necessidadeinstitucional alguma de ouvir as vozes das pessoasafetadas em outros lugares150.

Em quarto lugar, ainda pelo tratamento contratualista, as Teoriasde Justiça Focadas em Arranjos ignoram os riscos de se confiar apenasnas perspectivas e valores que circulam no seio do Estado-Nação, pois“não ter nenhum procedimento sistemático para corrigir a influência dosvalores paroquiais à qual qualquer sociedade pode ser vulnerávelquando separada do resto do mundo”151.

Em quinto lugar, ignoram a possibilidade de que as pessoas naposição original continuem a considerar como adequados princípios dejustiça inconciliáveis mesmo depois do debate público, algorelativamente inevitável por causa da “pluralidade de suas normas evalores políticos baseados em razões (e não devido a suas diferenças deinteresses pelo próprio benefício)”152.

Por fim, Amartya Sen acusa como deficiência das Teorias deJustiça Focadas em Arranjos o fato de não proporcionarem

espaço para a possibilidade de que algumaspessoas nem sempre se comportem“razoavelmente”, apesar do contrato socialhipotético, e isso poderia afetar a adequação detodos os arranjos sociais (incluindo, naturalmente,a escolha das instituições), o que é drasticamente

149 SEN, 2009, p. 155.150 SEN, 2009, p. 155.151 SEN, 2009, p. 155.152 SEN, 2009, p. 155.

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facilitado através do uso rígido da amplasuposição de cumprimento de um tipo específicode comportamento “razoável” por parte detodos153.

Todas essas deficiências que Amartya Sen enumera constituemuma espécie de reflexo necessário do método de abordagem das Teoriasde Justiça Focadas em Arranjos. De modo mais específico, essesproblemas derivam do caráter transcendental e do caráterfundamentalista institucional, ambos implícitos na abordagemproporcionada pelas teorias de justiça pertencentes a essa categoriaanalítica.

Como já foi notado, o caráter transcendental na obra doeconomista indiano diz respeito à ênfase dada na identificação de umconjunto de princípios escolhidos unanimemente para que reger acriação e o funcionamento das instituições de uma sociedade. A críticaaqui se faz é de caráter duplo: o primeiro se relaciona com o equívocode se pressupor a factibilidade desse acordo, especificamente sobre apretensão de unanimidade e exclusividade dos princípios; o segundo éligado ao problema da redundância da identificação de um arranjotranscendental justo ou ideal quando o que importaria à realização dajustiça é a comparação entre alternativas viáveis. Já o caráterfundamentalista institucional se traduz na ênfase quase exclusiva queessa corrente confere aos arranjos institucionais. Para Amartya Sen, nãoparece razoável confinar as questões e análises sobre a promoção dajustiça ao nível meramente institucional. Essa postura pode deixar delado outras variáveis relevantes e ignorar a natureza do resultado quepode emergir de fato do arranjo idealizado.

3.3 Os dois problemas do transcendentalismo

Para Amartya Sen, as Teorias de Justiça Focadas em Arranjospressupõem a possibilidade de os indivíduos estabelecerem um acordosobre o princípio ou o conjunto de princípios que direcionariam acriação e o funcionamento das instituições de uma sociedade justa. Noentanto, tendo em vista a pluralidade de princípios que serviriam aosmesmos propósitos e que poderiam ser sustentados por razõesigualmente consistentes, essa pressuposição torna-se significativamentemais frágil.

153 SEN, 2009, p. 155.

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Sendo as instituições regidas por princípios de justiça e sendoesses princípios materializados e sustentados por argumentos em umaapreciação deliberativa e crítica, a pergunta que Amartya Sen coloca é:não seria problemática a ideia de um acordo sobre um único argumento?Para responder essa questão, é preciso verificar a possibilidade dediversos princípios de justiça resistirem a um exame crítico. Ao mesmotempo, se deve também questionar a possibilidade de não haver acordoarrazoado a respeito da escolha dos princípios que eventualmenteresistam ao exame crítico. Essas questões dizem respeito à factibilidadeda característica transcendental das teorias focadas em arranjos.

Além dessas questões, é também preciso verificar a relaçãoexistente entre um arranjo institucional ideal e a escolha entre osarranjos institucionais possíveis, pois, como sugere Amartya Sen, não émuito clara a função heurística que um arranjo idealizado exerceenquanto parâmetro avaliativo de outros arranjos viáveis. Em primeirolugar, essa relação parece não levar em conta que cada arranjo éformado por um número de N instituições, cada uma com diversasdimensões valorativas. Em segundo lugar, dentre as diversas diferençaspossíveis entre o arranjo ideal e os arranjos possíveis, algumas podemser mais importantes que outras. Essas questões se referem a umapossível redundância da tarefa de se identificar um arranjo ideal.

3.3.1 Sobre o problema da factibilidade

Amartya Sen afirma que as Teorias de Justiça Focadas emArranjos tomam como certa a hipótese de os indivíduos entrarem emconsenso acerca dos princípios que definirão a estrutura e ofuncionamento das instituições de uma sociedade justa. Para oeconomista indiano, nas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos há umapressuposição implícita de que existe “apenas um tipo de argumentoimparcial que satisfaça as exigências da justiça e do qual os interessespelo próprio benefício tenham sido aparados”154. Não há previsão dedesacordos.

Nas análises do capítulo precedente, porém, foi notado que essaafirmação precisa ser bastante atenuada. Ela não pode ser totalmenteválida para a Justiça como equidade de John Rawls a partir dos seustextos revisados, pois ele passou a admitir a possibilidade de escolha deprincípios diferentes daqueles que ele havia indicado em Uma Teoria daJustiça e, apesar de não oferecer uma resposta ao problema do consenso

154 SEN, 2009, p. 40.

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sobre outros conjuntos de princípios, ele não estava alheio àpossibilidade de desacordos persistentes. Em relação às teorias de justiçade David Gauthier e Robert Nozick também não foi possível identificarqualquer espaço para que houvesse uma deliberação que pudesse pôr emrisco a canonização das liberdades individuais, pois ambos os autoresafirmam que os direitos individuais simplesmente não poderiam serrelativizados. Todavia, apesar dessas importantes ressalvas, é ainda lícitointerpretar essas teorias de justiça como relativamente enquadradas noproblema aqui comentado, que pode ser resumido com as seguintesquestões: é mesmo possível encontrar argumentos convincentes aoponto de estabelecer uma unanimidade em torno de um dado conjuntode princípios de justiça e afastar os demais? É a pluralidade de razões afavor da justiça compatível com um conjunto único de princípios dejustiça?

Para Amartya Sen, as respostas são negativas. A unanimidadepressuposta é artificial. O consenso não é factível. Na verdade, existemdiversos princípios de justiça que poderiam resistir a um exame crítico e“pode não haver nenhum acordo arrazoado, mesmo sob estritascondições de imparcialidade e análise abrangente” a respeito da naturezada “sociedade justa”155, é dizer, sobre quais os princípios que deveriamreger as instituições dessa sociedade idealizada.

Para ilustrar esse problema, Amartya Sen apresenta um exemplosobre a distribuição de uma única flauta entre três crianças que areivindicam156. Anne argumenta que a flauta deve ficar com ela, pois é aúnica que de fato sabe tocá-la. Se essa informação fosse a únicadisponível, seria injusto recusar o pedido de Anne. Em um segundocenário, Bob defende que a flauta fique com ele, pois as outras criançassão ricas e possuem outros brinquedos, mas ele é pobre e a flautasignificaria a sua possibilidade de brincar. Se essa informação fosse aúnica disponível, seria injusto recusar o pedido de Bob. No terceirocenário, Carla argumenta que foi ela quem construiu a flauta com aspróprias mãos durante meses e que, por isso, com ela deveria ficar - enão com os expropriadores que apareceram quando o trabalho já estavafeito. Se essa informação fosse a única disponível, seria injusto recusar opedido de Carla.

Cada argumento em favor da distribuição representa as posiçõesde utilitaristas, igualitaristas e libertários. Ambos, se estivessemconscientes de todas as informações, apontariam a existência de uma

155 SEN, 2009, p. 39-40.156 SEN, 2009, p. 43.

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única solução justa. Porém, cada um ofereceria uma solução diferente.Essas três soluções poderiam ser reconhecidamente fundamentadas, comargumentos sérios em favor de cada uma e não há como escolher umaúnica solução como correta sem reconhecer que a decisão seja arbitrária.O problema ilustrado pelo exemplo não se resume na diferença entre osinteresses pelo próprio benefício das três crianças. Cada um dos trêsargumentos aponta para um tipo diferente de razão imparcial e nãoarbitrária que diz respeito aos princípios que regulam a alocação derecursos em geral, isto é, “sobre como os arranjos sociais devem serestabelecidos e quais instituições sociais devem ser escolhidas e, atravésdisso, sobre quais realizações sociais devem vir a acontecer”157.

Esse problema foi comentado extensamente por Amartya Sentomando como parâmetro a Justiça como equidade antes de suasrevisões. Mesmo consciente das mudanças procedidas por seu amigoJohn Rawls, ele insiste em afirmar que o filósofo político americanopressupõe que a sociedade justa se materializaria a partir de uma escolhaunânime dos dois princípios de Uma teoria da justiça na posiçãooriginal, isto é, sob o “véu da ignorância”, momento “em que as pessoasnão sabem quais são seus interesses pelo próprio benefício”158. Aindaassim, sua crítica permanece pertinente no sentido de apontar aincontornável dificuldade de afirmar uma escolha unânime e semrecurso à arbitrariedade de apenas um valor ou conjunto de valoresespecíficos de justiça. Como ele observa, assim como persistiramargumentos conflitantes na decisão sobre a distribuição da flauta, podehaver diferenças nos pesos comparativos exatos a serem dados à, porexemplo, igualdade distribucional e na melhoria geral ou agregada159.

Ademais, cumpre ressaltar que é sobre o problema dafactibilidade de um acordo unânime sobre o arranjo social perfeitamentejusto que Amartya Sen faz a sua crítica mais contundente à abordageminstitucionalista transcendental pressuposta nas Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos. Afirma o economista indiano que se o diagnósticoou identificação de arranjos sociais perfeitamente justos forincuravelmente problemático, toda a estratégia do institucionalismotranscendental está prejudicada, ainda que fosse possível escolher entretodas as alternativas concebíveis no mundo e que todas elas estivessesdisponíveis160.

157 SEN, 2009, p. 43-5.158 SEN, 2009, p. 41.159 SEN, 2009, p. 41.160 SEN, 2009, p. 41.

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3.3.2 O problema da redundância

Amartya Sen afirma que, apesar dos teóricos da justiça estaremconscientes do problema da factibilidade de um acordo unânime sobrequais os princípios de justiça deveriam orientar a criação e ofuncionamento das instituições da sociedade justa, eles poderiam sertentados

pela ideia de que somos capazes de classificar asalternativas [realizáveis] quanto a sua respectivaproximidade com a escolha perfeita, de modo queuma identificação transcendental pudesse,indiretamente, produzir também um ranking dasalternativas161.

Assim, embora a concepção de uma justiça perfeita não sejafactível, ela poderia assumir uma função heurística em relação àsalternativas realizáveis. É dizer: as alternativas realizáveis poderiam serclassificadas de acordo com a sua proximidade descritiva em relação àideia de justiça ideal. Por conseguinte, o exercício de identificação deuma justiça perfeita, embora possível apenas num plano hipotético, seriajustificado e necessário.

Entretanto, afirma Amartya Sen, essa suposição ignora algumasdificuldades metodológicas envolvidas no exercício de aproximaçãoentre a escolha transcendental e as escolhas comparativas. Em primeirolugar, há diferentes dimensões nas quais os objetos diferem entre si. Umarranjo transcendental, ideal ou realizável, possui diversos elementos.Cada um desses elementos inseridos no arranjo transcendental éavaliado por perspectivas distintas e, dessa mesma forma, em relaçãoaos demais elementos. Disso decorre que a reconfiguração doselementos presentes na escolha comparativa descritivamente maispróxima do ideal dificilmente guardaria as relações de peso ourelevância que cada elemento recebeu no arranjo ideal. Em segundolugar, há um problema adicional implícito na avaliação da importânciarelativa das distâncias em dimensões distintas. Desse modo, um pequenonúmero de diferenças pode se revelar mais problemático que um grandenúmero de diferenças por ser mais relevante em seu respectivo arranjo.Por fim, a proximidade descritiva não é necessariamente um guia para a

161 SEN, 2009, p. 46.

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proximidade valorativa162.Para ilustrar o problema da redundância, Amartya Sen oferece

três exemplos envolvendo o exercício de identificação de modelos ideaisa partir dos quais se procederia à escolha da alternativa factível. Oprimeiro exemplo diz respeito a escolha entre vinhos distintos, no qualuma pessoa concebe como sua escolha ideal o vinho tinto. Todavia, selhe fosse dado a escolher entre vinho branco e uma mistura entre ovinho branco e o vinho tinto, que é uma alternativa descritivamente maispróxima a do seu vinho ideal, ele poderia optar pelo vinho branco,refletindo a não-coincidência entre a proximidade descritiva e aproximidade valorativa163. O segundo exemplo se refere a escolha dequadros, no qual haveria um consenso de que o quadro ideal é a MonaLisa, de Leonardo da Vinci. Todavia, a identificação desse ideal, caso talcoisa fosse possível, seria inútil se uma pessoa precisasse escolher entreuma obra de Pablo Picasso e outra de Salvador Dalí164. O terceiroexemplo diz respeito à comparação entre as alturas do montesKilimanjaro e do monte McKinley. Para Amartya Sen, podemos aceitarcom grande certeza que o monte Everest é o maior do mundo quanto asua estatura, “mas essa compreensão não é nem necessária nemparticularmente útil para comparar as alturas dos picos, digamos, domonte Kilimanjaro e do monte McKinley”165.

Apesar dessas observações, Amartya Sen argui que algumasteorias podem ainda pretender oferecer as duas avaliações, ou seja, acomparação entre as alternativas disponíveis e uma identificaçãotranscendental. Seriam teorias conglomeradas. Todavia, afirma ele,nenhum dos dois tipos de juízo decorre do outro e, ademais,

as teorias padrão da justiça, associadas àabordagem de identificação transcendental (porexemplo, as de Hobbes, Rousseau, Kant ou,atualmente, Rawls e Nozick), não são de fatoteorias conglomeradas166.

Por outro lado,

no processo de desenvolvimento de suas

162 SEN, 2009, p. 46.163 SEN, 2009, p. 54.164 SEN, 2009, p. 46.165 SEN, 2009, p. 132-3.166 SEN, 2009, p. 54.

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respectivas teorias transcendentais, alguns dessesautores apresentaram argumentos específicos quepor acaso valem para o exercício comparativo167.

Essa tímida ressalva do economista indiano, de que por acasoalguns argumentos dos autores que partem de uma abordagemtranscendental valem para o exercício comparativo, deve ser enfatizada.Amartya Sen não faz nenhuma menção aos argumentos específicos queservem aos juízos comparativos. No máximo afirma que procedeu aalgumas apropriações genéricas da Justiça como equidade e quepressupõe, como Rawls, que as soluções aos problemas de justiça devemser refletidas pelo uso da razão pública. O problema que percebo aquinão é tanto a ausência de referências, mas a incompatibilidade doreconhecimento de elementos positivos com suas duras e insistentescríticas a respeito da inutilidade das teorias que assumem umaabordagem institucionalista transcendental. Se essa questão não forobservada atentamente, a leitura das críticas de Amartya Sen podeinduzir conclusões equivocadas. A única concessão que podemos fazernesse ponto é a de que sua obra não toma como meta tanto a crítica adeterminada categoria de teorias de justiça como a apresentação de suaprópria teoria de justiça.

3.4 O problema da concentração nas instituições

Como já foi apontado, as teorias de justiça que se desenvolveramno seio da tradição do institucionalismo transcendental propõem “que ajustiça seja conceitualizada quanto a certos arranjos organizacionais”168.Os arranjos organizacionais corresponderiam a “algumas instituições,algumas regulamentações, algumas regras comportamentais”, cujapresença “indicaria que a justiça está sendo feita”169. Essa característicaficou significativamente evidenciada nos trabalhos dos autoresvinculados a essa tradição, citados anteriormente. Apesar de John Rawlsse ocupar com determinadas exigências quanto ao comportamentoadequado, ele simplesmente pressupõe que as pessoas razoáveis agirãoem conformidade com o que acordaram no contrato. Robert Nozick eDavid Gauthier, por outro lado, partem da perspectiva de que se osdireitos individuais estivessem assegurados dentre os princípios da

167 SEN, 2009, p. 54.168 SEN, 2009, p. 46.169 SEN, 2009, p. 40.

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sociedade justa que conceberam, não há mais nenhum trabalho a fazer. Ajustiça já se encontraria estabelecida.

Essa perspectiva fundamentalista não seria exclusiva das Teoriasde Justiça. Como observa Sen, há uma “longa tradição na análiseeconômica e social de identificação da realização da justiça com o que éconsiderado a estrutura institucional correta”170. Exemplos dofundamentalismo institucional nesses outros campos são vastos ebastante conhecidos, variando “desde a panaceia do livre mercado elivre-comércio funcionando maravilhosamente até a Shangrilá dapropriedade social dos meios de produção e do planejamento centralmagicamente eficiente”171. Não há dúvida de que a crítica aqui éendereçada às ideologias do liberalismo econômico e do comunismo,cujos ideais são refletidos em concepções de justiça encampadas pordiversas teorias.

No entanto, Amartya Sen afirma que não há razão para que areflexão sobre a justiça considere apenas o acerto organizacional e suasinstituições supostamente justas. Para ele, esses elementos são simmuito importantes, constituem o mundo real e influenciam o que de fatoacontece, mas a influência sobre as realizações ultrapassam o quadroinstitucional. Por um lado, o fundamentalismo institucional ignora aproblematização sobre o tipo de sociedade que de fato surge a partir daconfiguração institucional que propõe e o tipo de vida que as pessoasseriam capazes de levar172. Por outro lado, ele omite que o resultadopara o qual a organização foi pensada é também influenciado pordiversas variáveis. Esses dois problemas do fundamentalismoinstitucional pode ser visualizado em duas aventuras político-econômicas bastante conhecidas: a da Rússia comunista pós guerra civile a do México pós Nafta. Em ambos os casos, nutriam-se grandesexpectativas a respeito de resultados positivos no campo da justiçasocial que poderiam ser alcançados pela simples adoção de algunsarranjos institucionais. No caso da Rússia, a expectativa era depositadana estatização dos meios de produção. No caso do México, a esperançavinha da celebração de acordo de livre-comércio com os vizinhos norte-americanos e da redução de encargos sociais. Os resultados foramcatastróficos e frustraram até as mais modestas previsões. Ainda assim,algumas discussões econômicas sérias continuam sendo pautadas poressa perspectiva.

170 SEN, 2009, p. 113.171 SEN, 2009, p. 113.172 SEN, 2009, p. 48.

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Esse fundamentalismo institucional é também evidente em algunsestudos jurídicos contemporâneos, principalmente aqueles produzidosdentro de uma perspectiva normativista estrita. Como já observou ojurista uruguaio Enrique Haba173 na ocasião em que criticava umaconcepção normativista que pode ser compreendida como incluída numavisão institucionalista fundamentalista, alguns autores da Teoria doDireito parecem acreditar que a simples inclusão de Direitos Sociais eEconômicos em tratados, constituições ou outras instituições normativasé suficiente ou necessária para a efetivação desses direitos. Todavia, elesignoram que dentro de uma ampla gama de variáveis que influenciam aconcretização de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a dimensãonormativa não é a única e aparentemente nem é a mais relevante. Hácondicionantes de outras ordens que não podem ser modificados por ummero decreto. A título de ilustração, Enrique Haba nos traz o exemplo daConstituição de Honduras. Ela foi promulgada com nada menos que setecapítulos e setenta artigos que afirmavam os mais diversos DireitosEconômicos, Sociais e Culturais. Podemos concluir com poucos riscosque talvez nenhuma outra constituição no mundo tenha dado umtratamento normativo tão adequado e bem-intencionado sobre o tema.Todavia, dessa inclusão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais noinstituto normativo mais elevado de Honduras não se seguiu aimplementação de fato de tais Direitos. Por conseguinte, dizer que umdos países mais pobres da América Latina efetivou ou vai efetivar osdireitos promulgados em sua Constituição pelo simples fato depromulgá-los soa como uma piada de péssimo gosto.

Ainda assim, a limitação dessa perspectiva estritamentenormativistas parece não ser suficientemente evidente. Além dasobservações de Enrique Haba acerca do otimismo infundado que sepassou em Honduras, podemos verificar o mesmo problema eminúmeros trabalhos acadêmicos que seguiram, por exemplo, apromulgação das constituições latino-americanas mais recentes, como asda Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia. Seus autores sepreocuparam tanto com a beleza folclórica dos arranjos institucionaisprevistos nessas constituições que uma leitura de suas conclusões, cujaseriedade não pode ser colocada em dúvida, desacompanhada dosíndices socioeconômicos dos países em questão leva-nos a umamiragem que não reflete o atual estado de coisas. Muito se falou do

173 HABA, Enrique Pedro. Magia verbal, realidades y sentido fermental de los,así llamados, “derechos” económicos. Revista Criterio Jurídico. v. 4, p. 7-30. Santiago de Cali: Pontificia Universidad Javeriana Cali, 2004.

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resgate dos valores nativos, dos mecanismos formais de participaçãopopular, do reconhecimento das diferenças étnicas, da coletivização dosconflitos, etc., mas pouca ou nenhuma atenção foi dada ao que poderiasurgir dessa configuração e aos elementos que mais aproximadamenteinfluem no processo de consolidação de Direitos, como o mercado e ascondições de investimento público e privado nos setores estratégicos.

O problema de se basear uma teoria de justiça a partir de umapostura fundamentalista institucional não se limita apenas ao fato de umenfoque exclusivo sobre os arranjos institucionais não ser suficiente paradeterminar o estabelecimento de um determinado tipo de sociedadejusta. É também preciso considerar uma hipótese pouco usual aosotimistas fundamentalistas: a de que os resultados do funcionamento dasinstituições podem ser estranhos e até mesmo completamente opostos aoque era esperado. É muito comum, por exemplo, pensar que seja eficaz apromulgação e a aplicação de uma norma que estatui uma coerção emface de uma conduta indesejável. Os mais críticos poderiam mitigar onível de eficácia, dizendo que a conduta indesejável não seria evitada,mas reduzida. Essas perspectivas não assumem ou não consideramrazoável a hipótese de a instituição, isto é, a norma que prescreve acoerção, funcionar não como um fator de coerção, mas como estímulo àconduta indesejável.

Entretanto, esse resultado contraditório e impensável para ofundamentalismo institucional foi verificado em inúmeros estudos. Emum deles, dois economistas analisaram o impacto do estabelecimento demulta aos pais que não buscassem os seus filhos deixados na creche atéo horário adequado174. Tomando como parâmetro a cobrança de multaem dez diferentes creches da cidade de Haifa, Israel, os doiseconomistas verificaram que, após as creches estabelecerem apenalidade pecuniária, os atrasos aumentaram. Apesar de a multa tersido estabelecida em um valor considerável, muitos pais perceberam queera mais vantajoso deixar as crianças na escola por mais tempo emdeterminadas circunstâncias. Além disso, o pagamento da multafuncionava como uma espécie de livramento pelo descumprimento dodever moral vinculado ao cuidado com os filhos.

Há, portanto, muitas razões para levar adiante e desenvolver osinterrogantes postos por Amartya Sen175: para pensar a justiça

174 LEVITT, Steven D.; DUBNER, Stephan J. (2005) Freakonomics: o ladooculto e inesperado de tudo que nos afeta. Trad. Regina Lyra e AfonsoCelso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

175 SEN, 2009, p. 40.

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precisamos nos limitar à análise dos arranjos institucionais, deixando delado outras influências como os comportamentos reais? Não seriaigualmente importante examinar o que surge na sociedade e a vida queas pessoas são capazes de levar?

Todavia, o fato de Amartya Sen perceber esse problema comouma limitação de natureza metodológica das Teorias de Justiça Focadasem Arranjos parece problemática quando confrontado com a avaliaçãode teorias de justiça tais como as de David Gauthier e Robert Nozick.Na medida em que avançamos na exposição das críticas que AmartyaSen faz em sua obra, ganha mais força a hipótese de que o que pareceser colocado em disputa não é a questão de as teorias de justiça dessesautores serem deficientes metodologicamente, mas o fato de os objetivosidentificados em suas respectivas concepções de justiça não coincidiremcom os objetivos da perspectiva de justiça privilegiada por Amartya Sen.Aos propósitos de Gauthier e Nozick, a abordagem transcendental e ofundamentalismo institucional de suas respectivas teorias lhes servemtão bem que sequer conceberiam como problemas as deficiências que oeconomista indiano identifica em seus trabalhos. E tal fato é mesmoreconhecido por Amartya Sen. Como ele próprio observou na ocasiãoem que apontou um problema na perspectiva institucionalista de Nozick,

se a coletividade das supostas “instituições justas”gerar resultados terríveis para as pessoas em talsociedade (sem realmente violar seus interessesimediatos, como a garantia dos direitos libertários,como no caso de Nozick)? Nozick não reconheceuque poderia haver um problema aqui176.

E Nozick, como já notamos, não concordaria que fosseconsiderada como justa uma exigência direcionada aos outros indivíduosno sentido de contribuírem para eliminar os resultados terríveis de quefala o economista indiano, pois a natureza dos resultados é irrelevanteem sua concepção de justiça. Esse problema fica bastante evidentequando Amartya Sen aborda aquilo que concebe como uma antigadistinção entre concepções de justiça no Direito indiano:

considere duas palavras diferentes, niti e nyaya;no sânscrito clássico, ambas significam justiça.Entre os principais usos do termo niti, estão aadequação de um arranjo institucional e a

176 SEN, 2009, p. 148.

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correção de um comportamento. Contrastandocom niti, o termo nyaya representa um conceitoabrangente de justiça realizada. Nessa linha devisão, os papéis das instituições, regras eorganizações, importantes como são, têm de seravaliados da perspectiva mais ampla e inclusivade nyaya, que está inevitavelmente ligada aomundo que de fato emerge, e não apenas àsinstituições ou regras que por acaso temos. […] Oreconhecimento central aqui é que a realização dajustiça no sentido de nyaya não é apenas umaquestão de julgar as instituições e as regras, masde julgar as próprias sociedades. Não importaquão corretas as organizações estabelecidaspossam ser, se um peixe grande ainda puderdevorar um pequeno sempre que queira, então issoé necessariamente uma evidente violação dajustiça humana como nyaya. […] No século xvi,Ferdinando I […] fez a famosa afirmação […]'Que a justiça seja feita, embora o mundo pereça'.Essa máxima severa poderia figurar como umaniti [...], mas seria difícil aceitar uma catástrofetotal como exemplo de um mundo justo177.

Por conseguinte, não há como compreender como plenamenteacertadas as observações críticas que Amartya Sen faz às Teorias deJustiça Focadas em Arranjos. Elas podem ter algum valor de diagnósticose e somente se as teorias de justiça analisadas compartilhassem damesma perspectiva nyaya do economista indiano, isto é, se elasconsiderassem relevantes a análise não apenas das instituições, mas doresultado abrangente que engloba as instituições, os comportamentos e aprópria sociedade.

3.5 A necessidade de uma abordagem comparativa

Nos tópicos anteriores, vimos que a abordagem oferecida pelasTeorias de Justiça Focadas em Arranjos foi desenvolvida a partir danoção de um contrato social hipotético, que ela se concentra na ideia deque o caráter justo de uma sociedade decorreria do caráter justo dasinstituições que lhes dão forma e que essa concentração nas instituições,segundo Amartya Sen, é significativamente problemática.

177 SEN, 2009, 58-59.

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As sérias limitações na metodologia de fundo desse núcleoteórico comprometeriam o alcance e a factibilidade das reflexões queapresentam. Para Amartya Sen, não haveria razões para presumir quealguma fórmula institucional grandiosa proporcionaria o que seusdefensores esperam e nem que elas devam ter um caráter deexclusividade nas análises sobre a justiça. O que o fundamentalismoinstitucional faz, para o economista indiano, é ignorar a complexidadedas sociedades e impedir análises críticas das consequências de suasinstituições a partir da autossatisfação que acompanha a supostasabedoria institucional178. Por outro lado, há certa confusão implícita naconotação metodológica que Amartya Sen dá aos problemas que eleaponta nas Teorias de Justiça Focadas em Arranjo. Talvez o que tenhasido colocado em disputa, como vimos, é uma divergência quanto aoque se pode compreender como uma sociedade justa.

De qualquer forma, percebemos que a crítica de Amartya Sen seconcentra principalmente numa reivindicação de que, nas análises dosproblemas de justiça, se deva reconhecer a importância de variáveis nãoinstitucionais e do próprio estado de coisas que emerge de uma dadaconfiguração social. Por conseguinte, como a análise dessas questõesenvolveriam necessariamente a comparação entre alternativas viáveis enão apenas ideais, a identificação de uma alternativa transcendental dasTeorias de Justiça Focadas em Arranjos não ofereceria uma solução parao problema das comparações entre essas alternativas nãotranscendentais179, pois as instituições não agregam em si as variáveisque influem no estado da sociedade que se pretende construir. Assim, asTeorias de Justiça Focadas em Arranjos idealizados encontrariam umlimite intransponível no sentido de oferecer soluções aos problemaspráticos de justiça. Uma escolha entre alternativas reais e viáveisexigiria uma estrutura para compará-las a partir de um exercício darazão prática, mas não a identificação de uma situação supostamenteperfeita e inacessível180. Consequentemente, o que precisaria ocupar olugar central nas reflexões sobre a promoção da justiça são asalternativas factíveis e não os arranjos idealizados, que não contribuemem nada para a tarefa de escolha que precisa ser feita.

Para Amartya Sen, é preciso seguir por um caminho quepossibilite a concepção dessa estrutura comparativa e que absorva e queconsidere as variáveis não-institucionais. Esse caminho alternativo

178 SEN, 2009, p. 113.179 SEN, 2009, p. 47.180 SEN, 2009, p. 40.

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começaria desde a substituição da pergunta que move as Teorias deJustiça. A questão como construir uma sociedade perfeitamente justa?não seria adequada, pois não estaríamos tentando alcançar um mundoperfeitamente justo, mas “remover claras injustiças até ondepudessem”181. A mudança no ponto de partida, isto é, o abandono dabusca por um mundo perfeitamente justo em favor da luta contra asinjustiças, teria como efeito uma dupla divergência que exige umamudança radical na formulação da teoria da justiça: a primeira é aadoção da abordagens comparativas em vez da abordagemtranscendental; a segunda é que o foco passa a ser dado não apenas àsinstituições e regras, mas igualmente às realizações que ocorrem nassociedades182.

Para apreciar as razões pelas quais Amartya Sen insiste nocaminho comparativo e, por conseguinte, as razões pelas quais ascríticas que ele faz às Teorias de Justiça Focadas em Arranjo seriamjustificáveis, é relevante considerar a outra face da moeda, isto é, ascaracterísticas da teoria da justiça de Amartya Sen que, segundo opróprio, seria adequada para enfrentar os problemas práticos de justiça.

Mesmo que o foco do presente estudo não seja uma avaliação daTeoria de Justiça do economista indiano, ela pode contribuir para revelara verdadeira dimensão de sua crítica, afastando conclusõespossivelmente precipitadas. Nesse sentido, proponho a seguir umaanálise dos principais elementos da estrutura argumentativa de suaTeoria de Justiça, pautada pela Teoria da Escolha Social, e os aportesque ela poderia oferecer à tarefa de remoção de injustiças corrigíveis.

3.5.1 A Teoria da Escolha Social

Amartya Sen afirma que a tarefa de remoção de injustiçasdemanda uma estrutura que permita a comparação de alternativasviáveis, mas as Teorias de Justiça Focadas em Arranjo não ofereceriamsoluções nesse sentido. Todavia, ele observa que a abordagem focadaem arranjos institucionais não é o único tipo de argumentação racionalpossível sobre a justiça, que há outro caminho para refletir sobre apromoção da justiça com o uso da razão pública. Ainda no período doEsclarecimento, vários teóricos se ocuparam com os problemas dejustiça e adotaram uma abordagem distinta da tradição contratualista.Teóricos como Adam Smith, Marquês de Condorcet, Mary

181 SEN, 2009, p. 9-10.182 SEN, 2009, p. 39.

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Wollstonecraft, Jeremy Bentham, Karl Marx e John Stuart Mill, apesarde assumirem pressupostos e conclusões significativamente diversas eaté conflitantes, de modo que a associação dos seus nomes em torno deuma perspectiva comum poderia parecer um pouco despropositada,compartilhavam um interesse específico em fazer comparações entrediferentes vidas que as pessoas podem levar, tomando em consideração,além da influência das instituições, também o comportamento realdessas pessoas, de suas interações sociais e de outras variáveisrelevantes183. Às teorias de justiça que tomam a perspectiva desse grupocomo ponto de partida Amartya Sen deu o nome de Teorias de JustiçaFocadas em Realizações184.

Essa postura comparativa e aberta à análise de outros elementosnão-institucionais adotada por esses autores já se revelaria bastantepositiva em relação às abordagens focadas em arranjos. No entanto, amera indicação do exercício de comparação entre alternativas viáveisnão seria suficiente para enfrentar todas as questões e dificuldadesimplícitas nos problemas de justiça. Persistem outros interrogantes,como a superação da impossibilidade de um acordo unânime sobre aescolha de um conjunto de princípios de justiça e das formas de seproceder à análise das realizações, isto é, daquilo que de fato acontecena sociedade em termos de promoção de justiça e em todas as suasdimensões.

Tal como foi notado nas críticas às Teorias de Justiça Focadas emArranjos, aqui também não seria possível simplesmente afirmar quealgumas razões se impõem em face de outras e nem conferir níveis deimportância arbitrariamente aos elementos que influem na tarefa deremoção de injustiças. A perspectiva comparativa é o caminho, mas nãodá a resposta completa sobre a avaliação entre alternativas viáveis.

Coincidentemente, diz Amartya Sen, a abordagem comparativa eaberta à análise de elementos não-institucionais assumiu um lugarcentral em uma disciplina analítica iniciada pelo Marquês de Condorcete outros matemáticos franceses ainda no século XVIII185. A disciplinaficou conhecida como Teoria da Escolha Social e apresentaria, em seuescopo, respostas aos interrogantes em aberto.

A Teoria da Escolha Social não é propriamente uma teoria, masum conjunto de axiomas, modelos e resultados derivados de análisessobre processos de escolhas. Seus precursores, igualmente inspirados

183 SEN, 2009, p. 18.184 SEN, 2009, p. 43.185 SEN, 2009, p. 47.

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pelos ideais do Esclarecimento, também buscavam oferecer subsídios àconstrução de uma ordem social fundamentada racionalmente porprocessos de decisões coletivas186, mas não assumiam os pressupostosproblemáticos da abordagem contratualista como o da escolha unânimee o foco nas instituições. Na verdade, apesar de compartilharem ummesmo objetivo, os teóricos da Teoria da Escolha Social tambémestavam preocupados em investigar o método de agregação de juízosindividuais de um grupo de diferentes pessoas, incluindo os modos deevitar a arbitrariedade e a instabilidade nesses processos de escolhasocial187. Aquilo que os contratualistas tinham como incontroverso, osautores da Teoria da Escolha Social problematizaram da forma maisanalítica possível. Como observa Christian List,

Social choice theory is the study of collectivedecision processes and procedures. It is not asingle theory, but a cluster of models and resultsconcerning the aggregation of individual inputs(e.g., votes, preferences, judgments, welfare) intocollective outputs (e.g., collective decisions,preferences, judgments, welfare). Centralquestions are: How can a group of individualschoose a winning outcome (e.g., policy, electoralcandidate) from a given set of options? What arethe properties of different voting systems? Whenis a voting system democratic? How can acollective (e.g., electorate, legislature, collegialcourt, expert panel, or committee) arrive atcoherent collective preferences or judgments onsome issues, on the basis of its members'individual preferences or judgments? How can werank different social alternatives in an order ofsocial welfare? Social choice theorists study thesequestions not just by looking at examples, but bydeveloping general models and proving theorems.Pioneered in the 18th century by Nicolas deCondorcet and Jean-Charles de Borda and in the19th century by Charles Dodgson (also known asLewis Carroll), social choice theory took off in the20th century with the works of Kenneth Arrow,Amartya Sen, and Duncan Black. Its influence

186 SEN, 2009, p. 122.187 SEN, 2009, p. 122-3.

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extends across economics, political science,philosophy, mathematics, and recently computerscience and biology. Apart from contributing toour understanding of collective decisionprocedures, social choice theory has applicationsin the areas of institutional design, welfareeconomics, and social epistemology188.

Essa observação é particularmente interessante também por nosfazer lembrar dos motivos que concorreram para que os precursores docontratualismo refletissem sobre a legitimidade da autoridade e doconteúdo das normas que regulam a vida em sociedade, mas essasemelhança, como notamos, não vai muito longe em termosmetodológicos ou conclusivos. Em verdade, os resultados obtidos pelosteóricos vinculados à Teoria da Escolha Social foram pessimistasespecialmente aos propósitos contratualistas.

O Marquês de Condorcet, por exemplo, demonstrou em seuTeorema do Júri que a possibilidade de um julgamento correto aumentana medida em que o número de jurados aumenta:

if each member of a jury has an equal andindependent chance better than random, but worsethan perfect, of making a correct judgment onwhether a defendant is guilty (or on some otherfactual proposition), the majority of jurors is morelikely to be correct than each individual juror, andthe probability of a correct majority judgmentapproaches 1 as the jury size increases. Thus,under certain conditions, majority rule is good at‘tracking the truth’189.

Por outro lado, em seu Paradoxo de Condorcet, ele demonstra quea regra da maioria no processo de tomada de decisão em escolhascoletivas, apesar de ser um método plausível, no fundo se revelabastante problemático:

Condorcet's second insight, often called

188 LIST, Christian. Social Choice Theory. The Stanford Encyclopedia ofPhilosophy. Winter 2013 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Disponível em<http://plato.stanford.edu/archives/win2013/entries/social-choice/>.Acessado em 22 de outubro de 2014.

189 LIST, 2013.

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Condorcet's paradox, is the observation thatmajority preferences can be ‘irrational’(specifically, intransitive) even when individualpreferences are ‘rational’ (specifically, transitive).Suppose, for example, that one third of a groupprefers alternative x to y to z, a second thirdprefers y to z to x, and a final third prefers z to xto y. Then there are majorities (of two thirds) for xagainst y, for y against z, and for z against x: a‘cycle’, which violates transitivity. Furthermore,no alternative is a Condorcet winner, analternative that beats, or at least ties with, everyother alternative in pairwise majority contests.Condorcet anticipated a key theme of modernsocial choice theory: majority rule is at once aplausible method of collective decision makingand yet subject to some surprising problems.Resolving or bypassing these problems remainsone of social choice theory's core concerns190.

Depois de Condorcet, os estudos no entorno da Teoria da EscolhaSocial permaneceram suspensos. Não houve nenhuma contribuição ouqualquer desenvolvimento significativo. Em parte pelos péssimosresultados obtidos e em parte pelo caráter eminentemente matemático desua formulação, os poucos trabalhos que se seguiram estavamdirecionados apenas à teoria do voto.

Como observou Sen, o resgate dessa disciplina ocorreu apenas noséculo XX através de uma monografia de Kenneth Arrow191, que tinhadentre as suas preocupações também as dificuldades implícitas nasdecisões coletivas e as inconsistências que elas podem produzir. Nessapesquisa, Arrow conferiu à Teoria da Escolha Social

uma forma estruturada e analítica, com axiomasafirmados explicitamente e analisados, exigindoque as decisões sociais preencham determinadascondições mínimas de razoabilidade, das quaisemergiriam ordenações e escolhas sociaisapropriadas de estados sociais alternativos192

190 LIST, 2013.191 Ver ARROW, Kenneth Joseph. (1963) Social Choice and individual values.

New Haven: Yale University Press, 1963.192 SEN, 2009, p. 123.

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São esses, aliás, os caracteres que definem a Teoria da EscolhaSocial contemporânea, substituindo a abordagem relativamente aleatóriade seus fundadores pelo

reconhecimento da necessidade de declararexplicitamente quais condições devem sersatisfeitas por qualquer procedimento de decisãosocial para que seja aceitável, permitindo queoutros contribuintes alterem os próprios axiomas eexigências de Arrow, após uma críticafundamentada193.

Isso resume o lado positivo e construtivo aberto por KennethArrow na Teoria da Escolha Social em seu trabalho pioneiro, pois osresultados que ele alcançou a respeito dos próprios axiomasconseguiram ser mais pessimistas que o experimento do Marquês deCondorcet, mas que hoje servem como subsídio para um grande númerode estudos sobre a economia do bem-estar. Conhecida como Teorema daImpossibilidade Geral ou Teorema da Impossibilidade de Arrow,

answers a very basic question in the theory ofcollective decision-making. Say there are somealternatives to choose among. They could bepolicies, public projects, candidates in an election,distributions of income and labour requirementsamong the members of a society, or just aboutanything else. There are some people whosepreferences will inform this choice, and thequestion is: which procedures are there forderiving, from what is known or can be found outabout their preferences, a collective or 'social'ordering of the alternatives from better to worse?The answer is startling. Arrow's theorem saysthere are no such procedures whatsoever—none,anyway, that satisfy certain apparently quitereasonable assumptions concerning the autonomyof the people and the rationality of theirpreferences. The technical framework in whichArrow gave the question of social orderings aprecise sense and its rigorous answer is now

193 SEN, 2009, p. 123.

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widely used for studying problems in welfareeconomics. The impossibility theorem itself setmuch of the agenda for contemporary socialchoice theory194.

Essa formulação desenvolvida por Kenneth Arrow foi apropriadapor Amartya Sen em dois sentidos. O primeiro pelo fato de Arrow terdemonstrado que

mesmo algumas condições muito suaves derazoável sensibilidade das decisões sociaispretendidas pelos membros de uma sociedade nãopodem ser simultaneamente satisfeitas porqualquer processo de escolha social que sejadescrito como racional e democrático195.

A apropriação mais importante, porém, se relaciona com apossibilidade de ultrapassar impasses no processo de escolha. Como oeconomista indiano observa, tanto com os estudos de Kenneth Arrowcomo com aqueles que o sucederam, verificou-se que os impasses noprocesso de escolha poderiam ser em grande parte resolvidos ao tornar“os processos de decisão social informacionalmente mais sensíveis”,especialmente com a inserção de “informações sobre comparaçõesinterpessoais de bem-estar e vantagens relativas”196.

Essas importantes reflexões jogaram mais luz ao fato de “amaioria dos procedimentos mecânicos de escolha política (como o votoe as eleições) ou de avaliação econômica (como a avaliação da rendanacional)”197 acomodarem poucas informações e, portanto, não seapresentarem como elementos adequados à compreensão do processo deremoção de injustiças. Em face dessas considerações, Amartya Senconclui que “para chegarmos a uma adequada compreensão dasexigências da justiça (…) teremos de buscar muito mais informações eprovas analisadas e justificadas”198. Assim, mesmo frustrando as

194 MORREAU, Michael. Arrow's Theorem. The Stanford Encyclopedia ofPhilosophy. Winter 2014 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Disponível em<http://plato.stanford.edu/archives/win2014/entries/arrows-theorem/>.Acessado em 14 de outubro de 2014.

195 SEN, 2009, p. 123.196 SEN, 2009, p. 124.197 SEN, 2009, p. 125.198 SEN, 2009, p. 125.

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expectativas iniciais, a Teoria da Escolha Social despontou-se como umcampo significativamente relevante para se pensar as estruturas e osprocessos que permitam uma análise comparativa e a escolha dealternativas viáveis eventualmente pensadas enquanto propostasdirecionadas à remoção de injustiças.

Obviamente, Sen não pretende enumerar a totalidade dos camposinformacionais relevantes para a análise de propostas sobre a remoçãode injustiças e nem os métodos adequados para expô-las e avaliá-las; asua sugestão aponta apenas para o caminho de agregar o maior númerode variáveis possíveis, dentre as quais figuram inclusive os processos eos resultados abrangentes. Tampouco ele exige que essa reflexão seapresente nos moldes de uma rigidez matemática, apesar de deixaraberta a porta para incursões mais profundas da Teoria da EscolhaSocial.

Dito de outro modo: Amartya Sen não nos oferece um programadefinitivo, algo como um passo-a-passo tabulado para a remoção dasinjustiças. Na verdade, apesar de adotar a Teoria da Escolha Social comoum ponto central na sua análise e assumir que os argumentosapresentados a partir de axiomas e teoremas têm raízes em firmesformulações matemáticas, ele mesmo se utiliza dessa teoria apenascomo uma fonte de insights199 e como uma estrutura argumentativa200

para a sua concepção e teoria da justiça. Não há nenhuma demonstraçãodo funcionamento ou da comprovação dos teoremas e axiomas que elereconhece como fontes dos seus insights. Ele apenas nos indica asferramentas de sua estrutura argumentativa que diz ter tomado da Teoriada Escolha Social e se contenta em enumerar os aportes que delaspoderíamos aproveitar para pensar sobre os problemas de justiça.

3.5.2 Aportes da Teoria da Escolha Social

Embora de modo precário, é preciso proceder a uma incursãonesses pontos de relevância da Teoria da Escolha Social que AmartyaSen afirma constituírem contribuições às Teorias da Justiça. De modoespecífico, ele nos revela oito diferentes características e possibilidadesda Teoria da Escolha Social: o foco nas realizações e comparações, oreconhecimento da existência de princípios concorrentes, a possibilidadede reexame e de soluções parciais, a ênfase na articulação einterpretação precisas e a especificação do papel da argumentação

199 SEN, 2009, p. 48.200 SEN, 2009, p. 137.

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pública.Caso os insights e a estrutura argumentativa da Teoria da Escolha

Social tenham mesmo contribuições a oferecer à tarefa de remoção deinjustiças, especialmente em vista das limitações da tradiçãoinstitucionalista transcendental, teremos boas razões para levar adiante aproposta do economista indiano.

3.5.2.1 Foco nas realizações

Amartya Sen afirma que a abordagem focada em arranjos nãotem muito a dizer sobre a justiça que acontece de fato no mundo, paraalém da caracterização justa de suas instituições. As próprias instituiçõescontam, obviamente, mas não contam toda a história. Dentro da Teoriada Escolha Social, por outro lado, o que importa são as realizaçõessociais e elas

são avaliadas com relação às capacidades que aspessoas de fato têm, e não com relação a suasutilidades ou sua felicidade utilitarista. Assim asvidas humanas são então vistas sem exclusão,levando em conta as liberdades substantivas queas pessoas desfrutam201.

Como o problema deixa de ser a idealização da justiça e setransforma em compromisso com a remoção de injustiças, as avaliaçõesnão podem deixar de considerar a dimensão material das realizações.Além disso, um outro ponto positivo na abordagem a partir de umaperspectiva de liberdade seria possibilidade de tornar os indivíduosresponsáveis pelo que fazem202.

Talvez não seja irrelevante o fato desse aporte específico ser oprimeiro apontado na lista oferecida por Amartya Sen. Ele pressupõe ainclusão de uma dimensão distributiva na avaliação da justiça e, alémdisso, afirma que essa dimensão distributiva não seja pensada em termosde bens primários, tal como proposto por John Rawls, mas em sua ideiaoriginal de capacidades.

Na Justiça como equidade de John Rawls, a ideia de bensprimários

201 SEN, 2009, p. 49.202 SEN, 2009, p. 49.

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consiste em diferentes condições sociais e meiospolivalentes geralmente necessários para que oscidadãos possam desenvolver-se adequadamente eexercer plenamente suas duas faculdades morais,além de procurar realizar suas concepções dobem203.

Além disso, o filósofo político estadunidense aponta a distinçãoentre cinco tipos diferentes de bens primários em sua teoria de justiça:direitos e liberdades básicos, como as liberdades de pensamento, deconsciência, e todas as demais condições institucionais essenciais para odesenvolvimento e exercício consciente das duas faculdades morais; asliberdades de movimento e de livre escolha de ocupação sobre um fundode oportunidades diversificadas que propiciam a busca de váriosobjetivos e a possibilidade de alterá-los; poderes e prerrogativas decargos e posições de autoridade e responsabilidade; renda e riqueza, istoé, meios polivalentes (que tem valor de troca) necessários para atingiruma ampla gama de objetivos, sejam eles quais forem; e as bases sociaisdo auto-respeito, os aspectos das instituições básicas essenciais para queos cidadãos possam ter um senso vívido de seu valor enquanto pessoas eserem capazes de levar adiante seus objetivos com autoconfiança204.

O enfoque de capacidades do economista indiano, por outro lado,

concebe a vida humana como um conjunto de“atividades” e de “modos de ser” que poderemosdenominar “efetivações” (functionings) — erelaciona o julgamento sobre a qualidade da vida àavaliação da capacidade de funcionar ou dedesempenhar funções. […] Se se concebe a vidacomo um conjunto de 'atividades e modos de ser'que são valiosos, a avaliação da qualidade da vidatoma a forma de uma avaliação dessas efetivaçõese da capacidade de efetuá-las. Essa avaliação nãopode ser feita levando-se em conta apenas asmercadorias ou rendimentos que auxiliam nodesempenho daquelas atividades e na aquisiçãodaquelas capacidades. […] Isso equivale aconceber a pessoa como ativa, por assim dizer, enão passiva (embora nem os vários estados do sere nem mesmo as atividades devam

203 RAWLS, 2002, p. 81. 204 RAWLS, 2002, p. 83.

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necessariamente ser 'atléticas'). Pode-se listardesde efetivações elementares como evitar amorbidade ou a mortalidade precoce, alimentar-seadequadamente, realizar os movimentos usuais,etc, até muitas efetivações complexas tais comodesenvolver o autorrespeito, tomar parte da vidada comunidade e apresentar-se em público sem seenvergonhar205.

Essa divergência entre aquilo que John Rawls e Amartya Sencompreendem como critérios de avaliação dos elementos distributivosde suas respectivas teorias é bem antiga. A última versão que o filósofoamericano apresentou de sua ideia de bens primários, a propósito, foi emgrande medida influenciada pelas objeções apontadas por Amartya Sen.Não há registros de que esses velhos amigos alcançaram umdenominador comum e a insistência de Amartya Sen em usar aconcepção de bens primários de Rawls como um exemplo a sersubstituído pela noção de capacidades sugere que, de fato, não houveacordo ou posteriores concessões.

É evidente que há uma maior abrangência na perspectiva decapacidades em relação aos bens primários, especialmente aos bens quecorrespondem às liberdades básicas e renda206. Também não pode haverdúvida quanto as dificuldades apontadas por Amartya Sen na conversãode renda em modos de vida que a pessoa pode levar. No entanto, essamesma abrangência parece criar dificuldades quando se torna objeto dedeliberações. Como um elemento multidimensional e não redutível a umcoeficiente quantificável, fazer comparações em função do quantumdistributivo envolvendo indivíduos ou grupos de indivíduos comdiferentes necessidades e/ou deficiências em uma dada circunstânciapode ser impraticável.

205 SEN, Amartya. O desenvolvimento como expansão de capacidades. LuaNova, São Paulo, n. 28-29, Abr. 1993. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451993000100016&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 12 de novembro de2014.

206 Um interessante argumento em favor da substituição da abordagem de bensprimários pela abordagem das capacidades pode ser lida em REGO,Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família -Autonomia, Dinheiro e Cidadania. São Paulo: UNESP, 2013. p. 48-55.

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3.5.2.2 Foco nas comparações

Sen observa que a mais importante das contribuições da Teoriada Escolha Social para a Teoria da Justiça talvez seja o interesse nasavaliações comparativas. Por essa perspectiva, abandona-se a viatranscendental e as suas limitações para privilegiar uma perspectivarelacional. Assim, a análise se concentra “na razão prática por trásdaquilo que deve ser escolhido e em quais decisões devem sertomadas”207. As especulações sobre idealização de uma sociedade justa eos seus arranjos aqui não são necessárias, pois “uma teoria da justiçadeve ter algo a dizer sobre as escolhas que de fato são oferecidas, e nãoapenas nos manter absortos em um mundo imaginado e implausível deimbatível magnificência”208.

3.5.2.3 Reconhecimento de princípios concorrentes

Como já notado anteriormente, a ideia de prevalência de umúnico princípio ou de um único conjunto de princípios sobre os demais éproblemática, mas a Teoria da Escolha Social prevê a possibilidade deanálises que consideram a pluralidade inescapável e às vezesconflitantes de razões que não podem ser descartadas em questões dejustiça social. Além disso, pela abordagem da escolha social aprevalência de conflitos e impossibilidades não é vista como umimpedimento à reflexão ou um sinal de fracasso do empreendimentoanalítico. Ao contrário, “conflitos duradouros de princípios nãoelimináveis pode ser muito importante na teoria da justiça”209.

3.5.2.4 Possibilidade de reexame

A Teoria da Escolha Social mantém espaço para reavaliações eanálises cada vez mais aprofundadas. Isso leva em conta a possibilidadede os resultados demandarem uma reconfiguração de hierarquias deprincípios, por exemplo. Isso ficou claro a partir do Teorema daImpossibilidade de Arrow: os princípios gerais de decisões sociaisinicialmente plausíveis podem se revelar problemáticos ou entrar emconflito com outros princípios gerais igualmente plausíveis. Com efeito,frequentemente começamos por conceber a plausibilidade de um

207 SEN, 2009, p. 137.208 SEN, 2009, p. 137.209 SEN, 2009, p. 137.

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princípio a partir de uma série de casos específicos, restritivamente.Porém, quando passamos a formular os princípios em termos irrestritos,“podemos deparar com dificuldades não previstas anteriormente, quandoassinamos, por assim dizer, o cheque em branco”210. A abordagem daescolha social permite que as decisões sejam reformuladas, fato peloqual alguns a classificam como demasiado permissiva e indecisa. Noentanto, a permissividade e a indecisão permanecem como alternativasmais atraentes às questões de justiça que as teorias dominantes dejustiça, com as suas regras inflexíveis e imunes às críticas.

3.5.2.5 Possibilidade de soluções parciais

Sen diz que “a Teoria da Escolha Social permite a possibilidadede que mesmo uma teoria completa de justiça produza ordenaçõesincompletas de justiça” e que essa incompletude pode ser assertiva,“produzindo afirmações como x e y não podem ser ordenados emtermos de justiça”211, ou pode ser tentativa, que é aquela verificadaenquanto aguardamos ou trabalhamos para a conclusão com maisinformações, exames ou critérios complementares. Essa incompletudetentativa pode refletir mais dificuldades operacionais do que impassesconceituais ou valorativos212. Tais problemas operacionais podemdecorrer da limitação do conhecimento, da complexidade do cálculo oude outras barreiras práticas na aplicação – e aqui entra a noção de“racionalidade limitada” de Herbert Simon.

Como explica Sen, o conceito de Racionalidade limitada

diz respeito à possibilidade de as pessoas nãoconsiderarem escolhas totalmente racionais emtodos os casos devido a sua incapacidade de sersuficientemente focadas, ou adequadamentefirmes ou atentas, para buscar e utilizar asinformações que seriam necessárias paraexercitarem completamente a racionalidade.Vários trabalhos empíricos têm acrescentadoevidências de que o comportamento real daspessoas pode afastar-se da maximização completade suas metas e objetivos. Há boa comprovação— vigorosamente mostrada, por exemplo, por

210 SEN, 2009, p. 137-8.211 SEN, 2009, p. 138.212 SEN, 2009, p. 138-9.

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Kahneman, Slovik e Tversky — de que as pessoaspodem não compreender de forma adequada anatureza das incertezas envolvidas na decisãosobre o que cabe esperar em cada caso específicocom base nas evidências disponíveis213.

3.5.2.6 Diversidade de interpretações e inputs

A estrutura formal da teoria da escolha social está aberta ainterpretações alternativas. Muitas vezes ela “assume a forma de umaexploração das ligações funcionais, guiadas por conjuntos de axiomas,entre as ordenações e prioridades individuais, por um lado, e asconclusões sociais, por outro”214. Há uma atenção particular na distinçãoentre a agregação dos interesses individuais e a dos juízos individuais.As razões de uma pessoa podem contar porque seus interesses estãoenvolvidos ou porque podem simplesmente iluminar a discussão. Alémdisso, as razões de uma pessoa podem ser consideradas importanteporque ela é uma das partes envolvidas (“direito de um membro”) ouporque a sua perspectiva traz discernimento para a avaliação(“relevância para o esclarecimento”) – e vozes distantes podem evitar oparoquialismo de perspectivas locais. Além disso, as ordenações eprioridades “individuais” podem ser não apenas de pessoas distintas,mas de uma mesma pessoa a partir de diferentes abordagens para asquestões decisórias envolvidas. Por fim, “outra variação refere-se àpossibilidade de que as ordenações individuais podem não ser [...] depreferências individuais [...], mas diversas ordenações geradas pordiferentes tipos de argumento”. Ademais, a Teoria da Escolha Social estáinteressada em juízos globais para a escolha social a partir de diversasperspectivas e prioridades215.

3.5.2.7 Enfatizar a articulação e a interpretação precisas

Valores humanos e a argumentação social são complexos e podeser difícil capturá-los em termos axiomáticos precisos, mas anecessidade de explicitação persiste. A explicitação dos axiomas e suasderivações torna “mais fácil ver o que está sendo pressuposto eexatamente o que é implicado”. Demandas ligadas à busca da justiça na

213 SEN, 2009, p. 209.214 SEN, 2009, p. 139.215 SEN, 2009, p. 140.

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discussão pública e até nas teorias da justiça muitas vezes deixammargem para uma articulação mais clara e uma defesa mais ampla e“essa explicitação pode proporcionar, ela mesma, algumacontribuição”216. É um exemplo a alegação presente nos primeirostrabalhos de Rawls de que surgiria um contrato com as prioridadesidênticas as que ele mesmo especificou: prioridade total da liberdade(primeiro princípio) e a prioridade condicional dos interesses do grupomais pobre (segundo princípio); porém, há contratos alternativos sobreos quais pode haver acordo nas mesmas circunstâncias da posiçãooriginal. As correspondências axiomáticas podem não dar certeza sobreo que deve ser escolhido, mas apontam um bom caminho para osdebates normativos prosseguirem. Avançar na axiomatização não podedeixar de ser uma questão de ajuizar as reivindicações concorrentes decaracterização precisa e a necessidade de se levar em conta ascomplexidades que, mesmo de difícil axiomatização, são significativas ecuja discussão em termos mais gerais e informais pode ser proveitosa217.

3.5.2.8 Especificar o papel da argumentação pública

A teoria da escolha social foi iniciada por matemáticos, mas atemática sempre associou-se à defesa de razão pública. Seja como for, osresultados matemáticos podem servir como inputs na discussão pública,inclusive os resultados de impossibilidade. Trabalhos como os deCondorcet e Arrow podem contribuir para um debate “sobre como essesproblemas podem ser enfrentados e quais variações devem sercontempladas e escrutinizadas”218. O teorema da impossibilidade doliberal paretiano, por exemplo, demonstrou “a incompatibilidade damínima insistência na liberdade dos indivíduos em suas respectivasvidas pessoais com respeito a preferências unânimes de todos emrelação a qualquer outra escolha”. Isso leva ao escrutínio crítico darelevância da preferência (o argumento por trás de uma preferência podefazer a diferença), bem como à maneira correta de capturar o valor daliberdade e do liberalismo na escolha social, à discussões sobre anecessidade de as pessoas respeitarem reciprocamente os direitos sobresuas próprias vidas pessoais. Aquilo que formalmente é um meroresultado de impossibilidade pode se revelar valioso e ter implicações

216 SEN, 2009, p. 140.217 SEN, 2009, p. 141.218 SEN, 2009, p. 141.

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em vários tipos de argumentação pública219.

219 SEN, 2009, p. 142.

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4 CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS À CRÍTICA DE AMARTYA SEN

Os argumentos trazidos por Amartya Sen em sua crítica àsTeorias de Justiça Focadas em Arranjos parecem bastante convincentes.Todavia, eles soam algo como familiares em algumas discussõesdesenvolvidas na Teoria do Direito e na perspectiva metodológica dasCiências Sociais de Karl Popper. Caso suas conclusões já tenham sidooferecidas anteriormente, elas não significarão uma verdadeiracontribuição. Podem ter o mérito de estimular uma releitura ou proporum novo vocabulário para demonstrar uma solução já conhecida.

Além disso, é preciso verificar as possíveis críticas que acomunidade acadêmica tem feito em relação ao seu trabalho. Um textocom a envergadura do de Amartya Sen, que tenta desacreditar toda umagama de teorias de justiça de grande reputação com apenas um conjuntode argumentos, talvez tenha arestas a cortar. Essa é a conclusão defilósofos tais como Wilfried Hinsch, Francesco Biondo e LauraValentini, que trataremos em seguida.

4.1 A concepção dos problemas de justiça na Teoria do Direito

A Justiça tem sido sempre um assunto recorrente na Teoria e naFilosofia do Direito. É um dos temas mais caros dessas disciplinas.Mesmo assim, na obra de Amartya Sen são encontrados apenas algunspoucos nomes de teóricos mais recentes. Autores clássicos como HansKelsen, Chaïm Perelman e Alf Ross, responsáveis pela conformação doatual paradigma das discussões sobre a justiça no campo do Direito,foram simplesmente ignorados.

Nesses termos, temos razões para suspeitar que alguma coisapossa ter ficado por dizer na abordagem de Amartya Sen ou que nelatenha sido apenas uma repetição de reflexões já reconhecida eassentadas em outros termos. Para avaliar essa hipótese, tentarei resumiras considerações mais relevantes que os autores citados fazem a respeitoda concepção e dos problemas de justiça.

4.1.1 Hans Kelsen

Os problemas de justiça ou até mesmo as estratégias para aremoção de injustiças corrigíveis não estavam dentre as principaispreocupações de Hans Kelsen. De certo modo, a justiça tornava-se um

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problema considerável para Hans Kelsen apenas na medida em que erausada para justificar as teses dos defensores da doutrina do DireitoNatural, opositores de concepções juspositivistas tais como as suas. Essaquestão torna-se evidente no seu texto O problema da justiça, de 1960,incluído na segunda edição de sua Teoria Pura do Direito. Ainda queHans Kelsen tenha se dedicado ao tema por reconhecer que “talproblema é de importância decisiva para a política jurídica”220, muito doseu esforço foi gasto apenas para esclarecer a confusão provocada pelaafirmação dos jusnaturalistas de que o Direito Natural refletia, dealguma forma, a própria justiça. Entretanto, a par da discussão suscitadapor Amartya Sen a respeito dos problemas das Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos, as contribuições de Hans Kelsen podem sersignificativamente relevantes.

Em primeiro lugar, é importante notar que para Hans Kelsen ajustiça é apenas uma “qualidade ou atributo que pode ser afirmado dediferentes objetos”221. Desses objetos, porém, ficariam excluídos aquelesde caráter metafísico, inexistentes “no tempo e no espaço”, pois “o que éavaliado, o que pode ser valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ounegativo é a realidade”222. Além disso, nem toda norma moral poderiaser compreendida como uma norma de justiça. Normas de justiça seriamapenas as normas morais que prescrevem um determinado tratamento deum indivíduo por outro indivíduo. Só se pode compreender comovalioso ou justo aquilo que corresponde a uma norma de caráter socialque regula “a conduta de indivíduos em face de outros indivíduos”223.Podemos, por exemplo, julgar o suicídio como algo imoral, mas nãocomo algo injusto. A norma que prescreve que não devemos cometersuicídio “pode ser norma de uma moral que proíbe tal conduta em razãodos seus maus efeitos sobre a comunidade”, mas não será, por isso,“uma norma de justiça, pois não prescreve um determinado tratamentode um homem por parte de outro homem”224. Por outro lado,poderíamos fazer uma avaliação de justiça a respeito do fato de seinumarem os suicidas em cemitério distinto ao reservado às pessoascomuns. Esse caso, sim, pode ser apreciado “segundo uma norma queprescreve um determinado tratamento dos homens, o impõe ou o proíbe

220 LOSANO, 1998, p. VII.221 KELSEN, Hans. (1960) O problema da justiça. Trad. João Baptista

Machado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 3.222 KELSEN, 1960, p. 4-5.223 KELSEN, 1960, p. 4.224 KELSEN, 1960, p. 4.

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– e, assim, constitui o valor justiça, tem o caráter de uma norma dejustiça”225.

Esse perfeccionismo metodológico de Hans Kelsen faz com queele coloque a conduta humana no primeiro plano de análise em todo equalquer juízo de valor de justiça. É o que ocorre, por exemplo, naavaliação que ele faz do caráter de justiça das normas jurídicas. Emconfronto aberto com a doutrina do Direito Natural, que pretendia fazerdepender a validade do Direito Positivo da avaliação de justiça dasnormas, Kelsen226 afirma que

a justiça e a injustiça, que são afirmadas comoqualidades de uma norma jurídica positiva cujavalidade é independente desta sua justiça ouinjustiça, não são - ou não são imediatamente,pelo menos - qualidades desta norma, masqualidades do ato pelo qual ela é posta, do ato deque ela é o sentido.

Assim, desde que se tenha em mente que a validade de umanorma não depende da avaliação de justiça que faz dela e desde que seconsidere que a norma pressupõe uma conduta humana que a põe nomundo do ser, o conceito de justiça de Kelsen também permite avaliar,mediatamente, instituições e circunstâncias criadas por elas em relaçãoaos indivíduos tal como se passa no senso comum.

Essa distinção de uso imediato e mediato do atributo justiçatambém cria uma atalho à reflexão sobre a localização daresponsabilidade que os problemas de justiça pressupõem. É que quandoconcordamos que a justiça é a qualidade de uma conduta que consiste notratamento dado a outros homens227, sempre que avaliarmosadequadamente um ato ou circunstância como injusto, haverá umaconduta humana pressuposta, isto é, uma responsabilidade pela causa oumanutenção da injustiça. Talvez não seja arriscado afirmar que aconclusão proporcionada pela concepção de justiça de Hans Kelsenantecipa aquilo que Amartya Sen considera como injustiças corrigíveis.

Em segundo lugar, a discussão de que Hans Kelsen propõe sobreos problemas de justiça só tem início quando se exclui do debate aquiloque ele compreende como normas de justiça de tipo metafísico. Para

225 KELSEN, 1960, p. 4.226 KELSEN, 1960, p. 9.227 KELSEN, 1960, p. 4.

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Kelsen,

as normas de justiça do tipo metafísicocaracterizam-se pelo fato de se apresentarem, pelasua própria natureza, como procedentes de umainstância transcendente, existente para além detodo o conhecimento humano experimental(baseado na experiência), pelo que pressupõemessencialmente a crença na existência de uma talinstância transcendente. Estas normas sãometafísicas não só pelo que toca à suaproveniência mas ainda por seu conteúdo, namedida em que não podem ser compreendidaspela razão humana. O homem deve acreditar najustiça que elas constituem - tal como acredita naexistência da instância de que elas procedem-,mas não pode compreender racionalmente essajustiça. O ideal desta justiça é, como a instânciada qual ele provém, absoluto: de conformidadecom o seu próprio sentido imanente, exclui apossibilidade de qualquer outro ideal de justiça228.

Tais considerações são significativamente parecidas com as queJohn Rawls formulou quase cinquenta anos depois ao apelar pelo uso darazão pública como o único meio pelo qual se poderia enfrentar a tarefade definir os termos de cooperação social propostos no âmbito de UmaTeoria de Justiça e com as que Amartya Sen adotou como o ponto departida para a sua Ideia de Justiça. Todavia, essa conclusão torna-seainda mais sólida quando se avança ao argumento usado por HansKelsen para ponderar o sentido de racionalidade que se pode conferir auma norma de justiça. Para Kelsen, as normas de justiça de tipo racionalsão

caracterizadas pelo fato de não pressuporem comoessencial nenhuma crença na existência de umainstância transcendente, pelo fato de poderem serpensadas como estatuídas por atos humanospostos no mundo da experiência e poderem serentendidas pela razão humana, isto é, serconcebidas racionalmente229.

228 KELSEN, 1960, p. 16-17.229 KELSEN, 1960, p. 17.

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Isso não significa, porém, que as normas de justiça sejamencontradas na razão humana, como um valor de justiça absoluto àespera de ser descoberto por algum método. Como observa Kelsen,quando uma norma de justiça “prescreve um determinado tratamentodos homens” e se apresenta “com a pretensão de ser a única válida”, istoé, “quando exclui a possibilidade de qualquer outra norma que prescrevaum diferente tratamento dos homens”230, ela constitui um valor absolutoe “uma tal norma de justiça, constitutiva de um valor absoluto, apenaspode – como já se acentuou – provir de uma autoridadetranscendente”231.

Vemos aqui um claro reconhecimento da possibilidade de umapluralidade de princípios de justiça resistir a um exame crítico deobjetividade, tal como proposto por Amartya Sen em sua crítica àpretensão da prevalência do princípio de liberdade na Justiça comoequidade de John Rawls ou de qualquer consenso exclusivo acerca dequalquer conjunto único de princípios de justiça. Ambos chegam àmesma conclusão, apesar de tomarem argumentos de natureza diversa.Enquanto Amartya Sen apoia-se nos axiomas da Teoria da EscolhaSocial, Hans Kelsen contenta-se a afirmar que qualquer pretensão deautoridade de um princípio específico só pode ter um fundamentometafísico. Essa consideração fica mais clara quando Kelsen avança àanálise de vários princípios de justiça de tipo racional. Como eleobserva, tratando os princípios de justiça como ideais de justiça,

se, no problema da justiça, partirmos de um pontode vista racional-científico, não-metafísico, ereconhecermos que há muitos ideais de justiçadiferentes uns dos outros e contraditórios entre si,nenhum dos quais exclui a possibilidade de umoutro, então apenas nos será lícito conferir umavalidade relativa aos valores de justiçaconstituídos através destes ideais232.

Em terceiro lugar, quando Hans Kelsen procede à análise dosdiversos princípios que podem ser usados como parâmetro avaliativo dejustiça, ele antecipa quase todos os debates que emergem da verificaçãoda incompatibilidade das concepções de justiça apresentadas nas obras

230 KELSEN, 1960, p. 17.231 KELSEN, 1960, p. 68.232 KELSEN, 1960, p. 17-18.

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de Amartya Sen, John Rawls, Robert Nozick e David Gauthier. De fato,sua análise reforça a conclusão de que o que esses autores colocam emjogo não pode ser concebido como uma disputa metodológica entreteorias concorrentes que buscam um mesmo objetivo, tal como sugere oargumento de Amartya Sen, mas uma disputa sobre a prevalência deuma determinada compreensão de justiça sobre as demais – e nessaconsideração incluímos a própria concepção de justiça do economistaindiano.

Sobre o argumento de que a liberdade individual deve sustentar-se face aos demais princípios, e esse argumento é central na primeiraversão da Justiça como equidade de John Rawls e nas concepções dejustiça de Robert Nozick e David Gauthier, Hans Kelsen já observavaque

um princípio de justiça do mais alto valor políticoé o que se apresenta com base num sistema moralem que a liberdade individual é tida como o valorsupremo. […] Nesta sua forma originária, a ideia da liberdade éum princípio anti-social. Como princípio moral,ou seja, afinal, como princípio social eparticularmente como princípio de justiça, a ideiade liberdade tem de sofrer transformação. Aliberdade (=libertação) da ordem normativa temde tornar-se liberdade sob a ordem normativa, aliberdade individual tem de transformar-se emliberdade social. Se tem de existir uma ordemnormativa que vincule os homens na sua condutarecíproca, ela apenas poderá ser uma ordemerigida com base no assentimento dos indivíduosque lhe vão ficar submetidos233.

As coincidências em tais considerações sobre o valor absoluto daliberdade ficam ainda mais evidentes quando completadas pelasreflexões de Hans Kelsen sobre a ideia do Contrato Social como ideal dejustiça da democracia liberal. A esse respeito, lemos em O Problema daJustiça que

Sobre esta idéia de liberdade se apóia a teoria docontrato social do jusnaturalismo individualista.Somente será justa uma ordem social instaurada

233 KELSEN, 1960, p. 48-49.

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através do acordo dos que lhe estão subordinados,ou seja, afinal, através de contrato ou deliberaçãounânime. O princípio de justiça daautodeterminação não se refere ao conteúdo mas àprodução ou criação da ordem social. Todavia, eleapenas pode ser sustentado para a hipóteseimaginária da primeira constituição da ordemsocial, mas já não pode ser aplicado ao processoda sua modificação. […]E é esta ideia originária de liberdade, o ideal anti-social do não-estar-sujeito à vinculaçãonormativa, que leva a exigir que a competência doEstado seja reduzida a um mínimo, isto é, que oconteúdo das normas que constituem a ordemjurídica seja modelado de forma tal que aliberdade individual das pessoas sujeitas a estaordem seja restringida o menos possível234.

Em relação à teoria de justiça de Amartya Sen, cumpre observarcertas coincidências em relação à avaliação das capacidades comocritério de justiça e o princípio de justiça econômica de Karl Marxidentificado por Hans Kelsen. Apesar de o termo capacidades ser usadopor Amartya Sen em um sentido diverso daquele empregado na obra deKarl Marx – este último prefere o termo necessidades, suasconsiderações parecem razoavelmente próximas. Como observa HansKelsen,

Na sua crítica da ordem social capitalista afirmaKarl Marx que o princípio de justiça que está nabase desta ordem social é o postulado: a igualprestação de trabalho cabe igual salário, isto é,cabe igual participação no produto do trabalho.Este seria o pretenso direito igual deste sistemaeconômico. Seria na verdade, porém, um direitodesigual, pois não toma em consideração asdesigualdades entre os indivíduos no que toca àsua capacidade de trabalho - pelo que não seriaum direito justo mas um direito injusto.[...]A crítica de Marx à ordem econômica capitalistareconduz-se ao postulado de que não devemosignorar, ao pagar o salário do trabalho, certasdesigualdades, a saber, a desigualdade das

234 KELSEN, 1960, p. 49-50.

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capacidades e necessidades dos diferentesindivíduos em singular, desigualdades essas quesão ignoradas no sistema de salário da ordemeconômica capitalista235.

Assim, apesar de Hans Kelsen não ter desenvolvido seusargumentos com a mesma sofisticação de Amartya Sen e dos autorescujas teorias foram objeto de crítica na obra do economista indiano, oseu trabalho, escrito com considerável antecedência, já oferecia algumasreflexões idênticas. Além disso, a sua abordagem favorece oreconhecimento das questões subjacentes na disputa instaurada porAmartya Sen a respeito da utilidade das teorias em relação aosproblemas práticos de justiça.

4.1.2 Chaïm Perelman

Assim como Hans Kelsen, Chaïm Perelman já observava em seuartigo Da Justiça, de 1963, publicado em nossa língua no livro Ética eDireito, de 1996, o equívoco em se tentar estabelecer um sentido ou umvalor que fosse o único ou o melhor para a aferição da justiça, um dosprincipais problemas observados por Amartya Sen nas Teorias de JustiçaFocadas em Arranjo. Ele o faz procedendo a uma análise dos princípiosorientadores de diversas concepções correntes de justiça, problemáticase inconciliáveis236:

a) o primeiro princípio verificado é o princípio a cada qual amesma coisa, que teria o problema de desconsiderarcircunstâncias particulares cuja inobservância em casosconcretos configuraria uma situação injusta;

b) o segundo princípio é o a cada qual segundo os seus méritos,cujo problema se dá na definição do critério do mérito;

c) o terceiro é o a cada qual segundo as suas obras, que teria oproblema de não avaliar a intenção ou o sacrifício envolvidona ação;

d) o quarto é o a cada qual segundo suas necessidades, que,como a ideia de capacidades de Amartya Sen, aproxima a

235 KELSEN, 1960, p. 41-42.236 PERELMAN, Chaïm. (1963) Da Justiça. In: PERELMAN, Chaïm. Ética e

Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. -São Paulo: MartinsFontes, 1996. p. 9-13.

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avaliação da justiça das circunstâncias contingenciais doindivíduo, como sua idade, saúde, encargos familiares, etc., eseu problema estaria na não consideração dos méritos;

e) o quinto princípio é o a cada qual segundo sua posição,fórmula aristocrática da justiça habitualmente sustentada pelaforça, o que, por si, já poderia configurar uma situação deinjustiça; e

f) o sexto princípio é o a cada qual segundo o que a lei lheatribui, paráfrase do princípio romano cuique suum, cujoproblema se dá na medida em que qualquer atribuição legalserá considerada justa.

Como ele sintetiza, diversos indivíduos em disputa poderiamreivindicar a justiça de sua pretensão apoiando-se em quaisquerprincípios de justiça e que

pode não haver nenhuma má-fé nessas afirmaçõescontraditórias [acerca de qual pretensão é justa].Cada um dos antagonistas pode estar sendosincero e acreditar que sua causa é a única justa. Eninguém se engana, pois cada qual fala de umajustiça diferente237.

Por outro lado, ele considera que o valor de justiça não pode sertotalmente arbitrário e, ao justificar a sua tentativa de definição dejustiça, reconhece, como Amartya Sen o fez, a força social que estáimplícita no uso do juízo de justiça. Como ele observa, não seria“indiferente que se defina a justiça, o bem, a virtude, a realidade, desteou daquele modo, pois com isso se determina o sentido conferido avalores reconhecidos, aceitos, a instrumentos muito úteis na ação, queconstituem verdadeiras forças sociais”238.

Além dessas considerações, cumpre observar que Perelman jáoferecia, a um só tempo, a mesma conclusão do Teorema daImpossibilidade de Arrow e razões para abandonarmos a ideia de buscapor uma justiça perfeita e atentarmos às questões mais imediatas – que,com boa segurança, podemos supor tratarem de injustiças corrigíveis esoluções incompletas. Ao mesmo tempo, lembra-nos que de umaconcepção de justiça pautada pela sua própria coerência sistêmica,

237 PERELMAN, 1963, p. 8.238 PERELMAN, 1963, p. 5.

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inevitavelmente vinculada a um valor de justiça arbitrário, poderia nosoferecer resultados nada desejáveis:

um sistema normativo, seja ele qual for, contémsempre um elemento arbitrário, o valor afirmadopor seus princípios fundamentais que, eles, nãosão justificados. Esta última arbitrariedade, élogicamente impossível evitá-la. […]Essa imperfeição de todo sistema de justiça, aparte inevitável de arbitrariedade que contém,deve sempre estar presente na mente de quemquiser aplicar suas mais extremas consequências.É somente em nome de uma justiça perfeita queseria moral afirmar pereat mundus, fiat justitia.Mas todo sistema normativo imperfeito, para sermoralmente irrepreensível, deveria aquecer-se nocontacto de valores mais imediatos e maisespontâneos239.

Assim, podemos concluir que, tal como Hans Kelsen, ChaïmPerelman já havia impulsionado discussões que relativamenteantecipavam algumas das conclusões de Amartya Sen. Os métodos sãodiversos, obviamente, tendo Amartya Sen o privilégio de contar com osavanços das ferramentas de análise econômica do final da segundametade do século XX. Todavia, é importante considerar a simplicidadeda exposição de Perelman não como uma deficiência, mas um aspectopositivo: não são muitos os teóricos envolvidos nas discussões deproblemas de justiça que compartilham do mesmo vocabuláriomatemático da Teoria da Escolha Social.

4.1.3 Alf Ross

O dinamarquês Alf Ross foi outro dos teóricos do Direito que seocuparam dos problemas de justiça, especialmente pelo interesse noesclarecimento das confusões que se encontram ligadas ao próprioconceito que julgava de forte apelo emocional. Como ele observa,

A idéia de justiça parece ser uma idéia clara esimples dotada de uma poderosa forçamotivadora. Em todas as partes parece haver uma

239 PERELMAN, 1963, p. 67.

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compreensão instintiva das exigências de justiça.As crianças de tenra idade já apelam para a justiçase uma delas recebe um pedaço de maçã maiorque os pedaços das outras. Tem-se afirmado quemesmo os animais possuem o gérmen de umsentimento de justiça. O poder da justiça é grande.Lutar por uma causa 'justa' fortalece e excita umapessoa. Todas as guerras têm sido travadas emnome da justiça e o mesmo se pode dizer dosconflitos políticos entre as classes sociais. Poroutro lado, o próprio fato dessa aplicabilidadequase onipresente do princípio de justiça despertaa suspeita de que algo 'não anda bem' com umaidéia que pode ser invocada em apoio de qualquercausa.

De fato, a sua preocupação de que algo não anda bem com a ideiade justiça estava relacionada aos mais diversos usos políticos que sepode fazer eficientemente desse conceito. De certa forma, Rosspreocupava-se com o uso do conceito de justiça tal como fizeramAmartya Sen, John Rawls, Robert Nozick e David Gauthier. Ambosafirmavam colocar a realização da justiça como objetivos ouconsequências de suas teorias, mas já percebemos que o fundamental eraa defesa de determinada concepção de justiça ou, para sermos maisprecisos, a defesa de determinado estado de coisas. Como reconheciaAmartya Sen, o apelo à justiça é capaz de mobilizar os indivíduos emtorno de uma causa e, obviamente, e ele e os autores cujas teorias foramobjeto de sua crítica conduziram suas discussões de modosuficientemente racional e ponderado, mas Ross também já advertia que

visto que a idéia formal de igualdade ou justiçacomo estrela polar para a orientação político-social carece de todo significado, é possíveladvogar a favor de qualquer postulado materialem nome da justiça. Isto explica porque todas asguerras e conflitos sociais (…) foram travados emnome da exaltada idéia de justiça. E é demasiadoesperar que isto mude no futuro. Apelar para ajustiça é usar uma arma demasiadamente eficientee conveniente do ponto de vista ideológico, paraque alimentemos a esperança de que os estadistas,os políticos e os agitadores, mesmo quandopercebam a verdade, ousem pactuar o

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desarmamento nesse ponto. Ademais a maioriadeles são, provavelmente, vítimas da ilusão. Emuito fácil crer nas ilusões que excitam asemoções pelo estímulo das glândulassuprarrenais240.

Em decorrência dessas considerações, Alf Ross afirmava que épreciso reconhecer que a definição de critérios objetivos e aconsideração dos problemas subjacentes às avaliações de justiça ouinjustiça tornam-se requisitos necessários a um debate arrazoado. Essaconsideração foi nitidamente colocada em seu livro Direito e Justiça.Para esse autor, a omissão da discussão dos problemas subjacentes àsreivindicações dá lugar àquilo que ele chama de “a ideologia da justiça”,que nada mais é que “uma atitude militante de tipo biológico-emocional,para a qual alguém incita a si mesmo à defesa cega e implacável decertos interesses”241. Essa ideologia da justiça “conduz à intolerância eao conflito” por dois motivos: “incita à crença de que a exigência dealguém não é meramente a expressão de um certo interesse em conflitocom interesses opostos, mas, sim, que possui uma validade superior, decaráter absoluto” e “exclui todo argumento e discussão racionais quevisem a um acordo”242.

Assim, a mera avaliação de uma situação como justa ou injustapode até ser importante para revelar a necessidade da discussão, comoponderava Amartya Sen, mas não auxilia na conformação dos juízos quese dispõem a buscar soluções. Como Ross observa,

uma pessoa que sustenta que certa regra ouconjunto de regras – por exemplo, um sistematributário – é injusto não indica nenhumaqualidade discernível nas regras; não apresentanenhuma razão para sua atitude. Simplesmente selimita a manifestar uma expressão emocional. Talpessoa diz: “Sou contra essa regra porque éinjusta”. O que deveria dizer é: “Esta regra éinjusta porque sou contra ela”. Invocar a justiça écomo dar uma pancada numa mesa: umaexpressão emocional que faz da própria exigênciaum postulado, absoluto. Não é o modo adequado

240 ROSS, Alf (1962). Direito e Justiça. Trad. Edson Bini. Rev. AlyssonLeandro Mascaro. Bauru: EDIPRO, 2000. p. 320.

241 ROSS, 1962, p. 320.242 ROSS, 1962, p. 320.

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de obter entendimento mútuo. E impossível teruma discussão racional com quem apela para a“justiça”, porque nada diz que possa receberargumentação a favor ou contra. Suas palavras sãopersuasão, não argumentos243.

Uma vez que o problema de justiça emergente de um complexomeio social é traduzido em argumentos estruturados e razões que podemser colocadas à apreciação, nos deparamos com o problema do métodoem que essa apreciação deve ser operada. Em outros termos, é dizer queessa diversidade de razões demanda uma estrutura de ponderação quepressupõe o estabelecimento de regras e critérios objetivos.

4.2 A metodologia das ciências sociais de Karl Popper

Incluir o filósofo da ciência Karl Popper em discussões acercados problemas de justiça poderia soar estranho para quem desconhece oseu interesse pelas questões políticas e humanitárias, estimuladograndemente por suas experiências enquanto judeu em meio aoshorrores nazistas e enquanto marxista desencantado pela insensibilidadeda militância comunista. De todos os autores cujas contribuiçõestrouxemos para avaliar o caráter de inovação das críticas feitas porAmartya Sen, porém, são as de Karl Popper que parecem oferecer osmelhores subsídios para a apreciação crítica que propomos.

Assim como Hans Kelsen e Alf Ross, Karl Popper não vê sentidona busca por uma definição conclusiva de um critério ou conteúdo paraa nossa concepção de justiça. No primeiro volume da sua A sociedadeaberta e seus inimigos, de 1957, Karl Popper expõe essa questão daseguinte forma:

Que queremos realmente dizer, quando falamos de'Justiça'? Não penso que indagações verbais dessaespécie sejam particularmente importantes ou queseja possível dar-lhes resposta definida, vistocomo tais termos são sempre usados em diversossentidos244.

Nessa afirmação, Karl Popper faz duas considerações relevantes

243 ROSS, 1962, p. 320.244 POPPER, Karl. (1957a) A sociedade aberta e seus inimigos. v. 1. Trad.

Milton Amado. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974. p. 103.

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ao presente trabalho. A primeira diz respeito à importância indevida dese buscar uma definição para a justiça; para ele, essa busca somente sejustifica em uma concepção essencialista que pressupõe a possibilidadede se descobrir a natureza oculta ou até mesmo racional de um conceitoúnico, ambas metafísicas, empreendimento que ele condenaveementemente tal como Hans Kelsen. A segunda consideração,derivada da primeira, se refere ao reconhecimento do caráter dinâmicodo conteúdo ou sentido que se pode conferir ao termo justiça. De certaforma, podemos interpretar essas considerações como uma antecipaçãoda crítica de Amartya Sen de que várias razões ou princípios de justiçapodem ser justificados objetivamente sem que nenhum deles tenha umgrau de correção maior que o outro.

Por outro lado, Karl Popper também percebe a utilidade da ideiade justiça e a função que ela exerce no meio social como veículo dereivindicações das demandas subjacentes. Nesse sentido, ele desenvolveuma interessante argumentação observando que o homem criou mundosnovos, como o da linguagem, música, poesia e ciência, mas que o maisimportante deles seria o mundo das exigências morais, isto é, o dasexigências de igualdade, de liberdade, do amparo aos fracos245. Alémdisso, ele pontua aquilo que humanitaristas como ele interpretam comoexigências morais veiculadas pelo conceito de justiça:

[...] acho que a maioria de nós, especialmenteaqueles cuja formação geral é humanitária, dá-lheum sentido mais ou menos de: a) igualdistribuição dos ônus de cidadania, isto é, daslimitações de liberdade que são necessárias navida social (4); b) tratamento igual dos cidadãosperante a lei, desde que, naturalmente, c) as leisnão se mostrem favoráveis nem desfavoráveispara com determinados cidadãos individuais, ougrupos, ou classes; d) imparcialidade das cortes dejustiça; e) parte igual nos benefícios (e não só nosônus) que o caráter de membro do estado podeoferecer a seus cidadãos246.

Ainda que esse conteúdo compartilhado pelos humanitáriospudesse refletir aquilo que a maioria de nós entende como justiça, KarlPopper faz questão de lembrar que essas normas morais, como todas

245 POPPER, 1957a, p. 79.246 POPPER, 1957a, p. 103.

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elas, são arbitrárias, isto é, são criadas pela vontade dos indivíduos e nãopor fatos naturais. No contexto do seu livro, essa afirmação servia paraafastar os resquícios de um essencialismo disfarçado na tentativa dealcançar ou legitimar um arranjo social justo historicamente definido,tentativa essa que, para Karl Popper, teria nascido em Platão, sesofisticado em Hegel e culminado na concepção historicista de Marx247.

Além disso, Karl Popper já havia percebido, como Amartya Sen ofez quase meio século depois, que não é a busca por uma justiça perfeitaou pela máxima felicidade de todos que mobiliza as pessoas em tornodos problemas de justiça, mas a sensibilidade diante das injustiçasidentificáveis e corrigíveis. Em relação à busca pela realização doprincípio moral utilitarista, por exemplo, que se traduz num parâmetrode avaliação da justiça que apenas leva em conta a maximização dautilidade ou felicidade total, Karl Popper afirma não enxergar muitosentido. Ele diz que

tanto o princípio da felicidade máxima dosutilitários como o princípio de Kant – 'promover afelicidade dos demais' – parecem-me (pelo menosem suas formulações) fundamentalmente erradosneste ponto248

O que ele coloca em questão aqui é o fato de não existir um apelomoral, um apelo para o auxílio, um apelo “para que se aumente afelicidade de um homem que de qualquer modo vá indo muito bem”249.Ele afirma que “toda premência moral”, ao contrário, “tem sua base napremência do sofrimento ou da dor”, e que “a promoção da felicidade é,em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e atentativa de prevenir sua dor”250.

Assim como hoje conclui Amartya Sen, Karl Popper tambémenxergava um problema no ponto de partida das reflexões sobre osproblemas de justiça. Com efeito, Karl Popper já havia feito essaconsideração expressamente ao afirmar que “em vez de maior felicidadepara o maior número, dever-se-ia mais modestamente reclamar o menorquinhão de sofrimento evitável para todos”251. Por tais motivos, Popper

247 POPPER, Karl. (1957b) A sociedade aberta e seus inimigos. v. 2. Trad.Milton Amado. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974. p. 7.

248 POPPER, 1957a, p. 311.249 POPPER, 1957a, p. 311.250 POPPER, 1957a, p. 256.251 POPPER, 1957a, p. 311.

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sugere que a fórmula “buscar a menor quantidade possível de dor”poderia até mesmo se converter “num dos princípios fundamentais (porcerto que não o único) da política pública”252.

Uma conclusão precipitada poderia sugerir que Popper propõeum utilitarismo às avessas. Todavia, parece não ser esse o caso. Oproblema não é propriamente a escolha do lado da escala de justiça doutilitarismo, negativo ou positivo, mas a própria ideia de escala deutilidades. Na sua segunda crítica à fórmula utilitarista “elevar aomáximo o prazer”, Popper é mais incisivo. Assevera ele que na fórmulautilitarista está implícita, ao menos em princípio, uma escala contínuaprazer-dor que nos permitiria avaliar os graus de dor como grausnegativos de prazer. Entretanto, ele observa que “do ponto de vistamoral, a dor não pode ser pesada pelo prazer e, especialmente, não a dorde uma pessoa pelo prazer de outra pessoa”253. A respeito dessasafirmações de Karl Popper, aqui também podemos perceber uma certaanalogia com o problema apontado por Amartya Sen em relação aosdiferentes pesos que as preferências pessoais têm entre si e entre aspreferências de outros indivíduos.

Além disso, ele nota certa analogia entre essa concepçãoalternativa da ética e a concepção da metodologia científica quedefendeu na sua Lógica da Pesquisa Científica254. Assim como é “maisclaro, no campo da ética, formularmos nossas exigências em formanegativa, isto é, reclamando a eliminação de sofrimentos, em vez dapromoção de felicidade”, também é mais “útil formular a tarefa dométodo científico como a eliminação das teorias falsas (dentre as váriastentativas apresentadas para prova), em vez do alcance de verdadesestabelecidas”255.

Essa aproximação entre a metodologia científica e a adequadaformulação das exigências morais na obra de Karl Popper não se resumeà demonstração da clareza que se pode chegar pela via negativa daexposição dos problemas de justiça. Para Karl Popper, a busca pelarealização de nossas exigências morais, que assumiria formas concretasno âmbito político a partir de reflexões provenientes do campo dasciências sociais, poderia mesmo tomar a fórmula metodológica quepreconiza a crítica, pelo debate crítico apreciativo, das hipóteses ou

252 POPPER, 1957a, p. 256.253 POPPER, 1957a, p. 311.254 POPPER, Karl. (1972) A lógica da pesquisa científica. Trad. Leonidas

Hegenberg e Occtany Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2001.255 POPPER, 1957a, p. 311.

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soluções apresentadas. Como ele afirma no artigo A lógica das CiênciasSociais, de 1976,

a) O método das ciências sociais, como aquele dasciências naturais, consiste em experimentarpossíveis soluções para certos problemas; osproblemas com os quais iniciam-se nossasinvestigações e aqueles que surgem durante ainvestigação. As soluções são propostas ecriticadas. Se uma solução proposta não estáaberta a uma crítica pertinente, então é excluídacomo não científica, embora, talvez, apenastemporariamente.b) Se a solução tentada está aberta a críticaspertinentes, então tentamos refutá-la; pois todacrítica consiste em tentativas de refutação.c) Se uma solução tentada é refutada através donosso criticismo, fazemos outra tentativa.d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-latemporariamente; e a aceitamos, acima de tudo,como digna de ser discutida e criticada mais além.e) Portanto, o método da ciência consiste emtentativas experimentais para resolver nossosproblemas por conjecturas que são controladas porsevera crítica. Ê um desenvolvimento críticoconsciente do método de “ensaio e erro”.f) A assim chamada objetividade da ciênciarepousa na objetividade do método crítico. Istosignifica, acima de tudo, que nenhuma teoria estáisenta do ataque da crítica; e, mais ainda, que oinstrumento principal da crítica lógica acontradição lógica - é objetivo256.

Nesse ponto, interessa notar que o exercício de crítica concebidono momento do debate crítico apreciativo pressupõe a inclusão de tantasvozes quanto possível. Desse modo, mesmo não assumindo que a suapreocupação estaria direcionada ao problema dos juízos e interessesparoquiais, a sua estratégia permite alcançar os mesmos objetivos que oeconomista indiano buscou oferecer com a ideia do expectador

256 POPPER, Karl (1976). A lógica das ciências sociais. Trad. Apio CláudioMuniz Acquarone Filho. In: POPPER, Karl. Lógica das ciências sociais.Trad. Estevão de Rezende Martins et al. 3ª ed. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 2004. p. 16.

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imparcial em sua Teoria da Justiça como substituto ao problema dohermetismo da teoria contratualista. Além disso, outro ponto relevante aser considerado nessa estrutura metodológica é o de que Karl Popperassume que não se pode alcançar algo como uma solução conclusiva, oque implica que o exercício de tentativa e erro seja mantidocontinuamente em aberto. Também aqui a solução de Karl Popperantecipa a exigência de possibilidade de revisão que Amartya Senconsidera como componente necessário às teorias de justiça, ausente nasTeorias de Justiça Focadas em Arranjos.

Por fim, e não menos importante, é que essa estruturametodológica funciona nos moldes daquilo que Karl Popper denominacomo mecânica social gradual ou reconstrução social democrática, umapostura oposta à busca por algo como a persecução de uma justiçaperfeita ou uma sociedade completamente justa. Ela não só encerrapraticamente todas as considerações que fizemos anteriormente sobre oparalelo entre as perspectivas de Karl Popper e Amartya Sen comotambém avançam para outras. A semelhança dessa postura, da MecânicaSocial Gradual, em relação às conclusões que nos são oferecidas na AIdeia de Justiça de Amartya Sen é tão impressionante que, para afastarqualquer suspeita de que posso tencionar uma aproximação inexistente,prefiro transcrever integralmente as considerações feitas por KarlPopper. A respeito da Mecânica Social Gradual, Popper afirma que

O político que adota êsse método pode ter, ou não,um projeto de sociedade em mente, pode esperar,ou não, que a humanidade realize um dia umestado ideal e alcance a felicidade e a perfeiçãosôbre a terra. Mas será consciente de que essaperfeição, se puder ser atingível, está muitodistante, e de que cada geração de homens, oscontemporâneos também, portanto, têm umareivindicação; talvez não tanto uma reivindicaçãode serem felizes, mas a de não serem infelizessempre que isso se puder evitar. Têm areivindicação de que lhes seja dado todo o auxíliopossível quando sofrerem. A mecânica gradual,em consequência, adotará um método depesquisar e combater os maiores e mais prementesmales da sociedade, em vez de buscar seu maiorbem definitivo e combater por êle. Esta diferençaestá longe de ser meramente verbal. De fato, é damaior importância. É a diferença entre um método

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razoável de aperfeiçoar o quinhão do homem e ummétodo que, se realmente experimentado, podefacilmente levar a um intolerável acréscimo desofrimento humano. É a diferença entre ummétodo que pode ser aplicado a qualquermomento e outro cuja defesa pode facilmentetornar-se um meio de transferir continuamente aação para data posterior, em que as condiçõessejam mais favoráveis. E é também a diferençaentre o único método de aperfeiçoar as coisas queaté agora obteve êxito em qualquer tempo e emqualquer lugar (inclusive na Russia, comoveremos), e um outro que, onde quer que tenhasido tentado, só tem levado ao uso da violênciaem lugar da razão, se não ao próprio abandonodesta e, de qualquer modo, ao de seu projetooriginal.Em favor dêste método, pode o mecânico socialgradual proclamar que uma luta sistemática contrao sofrimento, a injustiça e a guerra tem maispossibilidades de ser sustentada pela aprovação econsenso de um grande número de pessoas do quea luta pelo estabelecimento de algum ideal. Aexistência de males sociais, isto é, de condiçõessociais sob as quais muitos homens sofrem, podeser relativamente bem estabelecida. Os quesofrem podem julgar por si mesmos e os demaisdificilmente podem negar que êles não prefeririammudar de situação. Infinitamente mais difícil éraciocinar a respeito de uma sociedade ideal. Avida social é tão complicada que poucos homens,ou nenhum, poderão julgar um projeto demecânica social em grande escala, ou se êle épraticável ou se resultará num verdadeiromelhoramento, ou que espécie de sofrimento podeenvolver, ou quais serão os meios para suarealização. Em oposição a isto, os projetos damecânica gradual são relativamente simples. Sãoprojetos de instituições determinadas, de segurode saúde e desemprêgo, por exemplo, ou de côrtesde arbitramento, ou de um orçamento contra adepressão, ou de reforma educacional. Se nãoandarem bem, o dano não é muito grande, nemum reajustamento muito difícil. São menos

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arriscados e, por essa razão, menos sujeitos àcontrovérsia. Mas se é mais fácil alcançar umacôrdo razoável acerca dos males existentes e dosmeios de combatê-los do que acêrca de um bemideal e dos meios de sua realização, também hámais esperança, então, de que usando êsse métodogradual podemos superar as maiores dificuldadespráticas de tôda reforma política razoável, a saber,as de empregar a razão, em vez da paixão e daviolência, na execução do programa. Haverá apossibilidade de alcançar uma negociaçãorazoável e, portanto, de efetuar o melhoramentopor métodos democráticos ('Negociação' é umapalavra feia, mas é importante que aprendamosseu uso apropriado. As Instituições sãoinevitavelmente o resultado de uma negociaçãocom circunstâncias, interesses, etc., embora, comopessoas, resistamos a influências dessaespécie.)257

Isso foi dito há quase meio século. Contemporaneamente, lemoscom Amartya Sen que

os membros de qualquer comunidadepoliticamente organizada podem contemplar comouma reorganização enorme e totalmenteabrangente pode ser realizada, movendo-nos deuma só vez para o ideal de uma sociedadeplenamente justa. Uma teoria transcendental quenão seja contrária ao bom senso pode servir, nessesentido, como algo tal qual “o manual completodo grande revolucionário”. Mas esse manual nãoseria muito invocado nos debates sobre a justiçanos quais constantemente participamos e queenfocam as múltiplas maneiras para reduzir asinjustiças que caracterizam o mundo258.

Feitas tais considerações, a tarefa de sustentar o caráter inovadordas reflexões oferecidas por Amartya Sen sobre os problemas dasTeorias de Justiça Focadas em Arranjo e sobre a sua alternativasupostamente mais adequada para lidar os problemas práticos de justiça

257 POPPER, 1957a, p. 173-175.258 SEN, 2012, p. 29.

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torna-se significativamente mais difícil.

4.3 Críticas à crítica de Amartya Sen

Além de observarmos aquilo que a Teoria do Direito e aconcepção de metodologia das Ciências Sociais de Karl Popper jáhaviam refletido muito tempo antes das considerações de Amartya Sensobre os problemas das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e sobreas abordagens mais adequadas para lidar com os problemas práticos dejustiça, cumpre encaminhar a finalização do presente estudo trazendoalgumas considerações críticas que a academia tem direcionado aotrabalho do economista indiano no que toca aos temas aqui abordados.

4.3.1 Wilfried Hinsch

As primeiras considerações são a do filósofo alemão WilfriedHinsch. Ele começa apontando a impropriedade do uso do termotranscendental que Amartya Sen usa para identificar o método deabordagem das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. Nos dias atuais,afirma Hinsch, o termo transcendental teria uma significação diferente,totalmente ignorada pelo economista indiano:

According to Sen, these authors take justice to bea concept that primarily applies to socialinstitutions, and they see it as the main task of atheory of justice to work out a conception ofideally or perfectly just institutions. Sen does notexplain the term 'transcendental'. From what hesays in the book, it is clear, however, that the justinstitutions described by transcendentalinstitutionalists are supposed to be ideal or perfectin the sense that they 'cannot be transcended interms of justice'. And it goes without saying thatin our days 'transcendental' conveys a sense ofirreality, otherwordliness, and lack of practicalmeaning259.

Todavia, a primeira questão significativamente relevante que

259 HINSCH, Wilfried. Ideal Justice and Rational Dissent. A Critique ofAmartya Sen’s The Idea of Justice. Analyse & Kritik, v. 33, n. 2, p. 371-386, 2011. p. 372.

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Hinsch faz às críticas que Amartya Sen endereça às Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos diz respeito ao problema da redundância. ParaAmartya Sen, como foi apontado, a reflexão sobre o avanço da justiçademanda um juízo comparativo entre alternativas viáveis ou reais, demodo que a identificação daquilo que se compreende como uma justiçaperfeita não influiria na identificação da alternativa viável mais justa.Para Hinsch, no entanto, simplesmente não há como se pensar nosignificado de uma avaliação de justiça entre arranjos alternativosviáveis sem que levemos em consideração um mínimo da ideia de umarranjo perfeito. Como ele afirma,

We simply cannot understand the notion of'comparative justice' and what it means to advancejustice without at least some understanding ofwhat 'ideal justice' requires260.

Ainda sobre o problema da redundância apontado por AmartyaSen, Hinsch denuncia a inadequação dos exemplos trazidos parasustentar a proposição de que a identificação do ideal não nos auxilia naescolha da alternativa viável. Os exemplos, como vimos, foram os daidentificação do quadro mais belo e da montanha mais alta. Sobre esseproblema, Hinsch nos assevera que

unlike paintings or mountains ideally justinstitutions are not the kind of objects that weeasily identify by proper names or by pointing tothem.[…]The Mona Lisa example and the Mount Everestexample are also misleading because they do notadequately capture the dynamic and instrumentaldimension of political choices261.

E é justamente por isso, pela complexidade, dinamismo edimensão instrumental das escolhas políticas que a ideia de algo comoum arranjo social perfeitamente justo seria valiosa no exercíciodeliberativo envolvido na escolha entre arranjos sociais viáveis: elafuncionaria como identificadora ou propositora dos critérios deavaliação dessas instituições alternativas viáveis, e sem esses critériosnenhuma decisão não poderia suceder. Em seus termos,

260 HINSCH, 2011, p. 372.261 HINSCH, 2011, p. 373-374.

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Rather we specify the features that make aninstitutional arrangement a just or, for that matter,a perfectly just arrangement. Indeed, this is what,among other things, we expect a theory of justiceto do, is to specify a set of criteria that institutionshave to satisfy in order to be just. These criteria ofjustice refer to objective features of alternativeinstitutional settings and we require the same setof criteria to apply to all alternatives underconsideration, ideal and nonideal. As aconsequence, reasoned choices between non-idealpolitical alternatives are based on criteria that atthe same time characterize an ideal institutionalarrangement, i.e. an alternative that fully meetsthe criteria. And the same holds good not only forinstitutions, but for all objects of rationalevaluation or measurement, including the beautyof paintings and the height of mountains.[…]Political alternatives and decisions taken 'toadvance justice', however, are diferent in thisrespect. There is an ambiguity in the expression'to advance justice'. It may mean 'making thingsmore just' which involves an evaluation as to howjust a state of affairs is in comparison with otherstates. It may, however, also be understoodinstrumentally as 'being conducive to justice' bymaking it more likely, or less burdensome toobtain, or to make it happen sooner. Taken in thissense, the question of whether something is anadvancement of justice is an empirical questiononce we have identified the (ideally) just state ofaffairs at which we are aiming. In order to makereasonable political choices we have to take intoaccount both senses in which justice can beadvanced.262.

A segunda ressalva significativa feita por Hinsch a respeito dascríticas de Amartya Sen às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos sãodirecionadas à suposta inviabilidade de se conceber algo como umasolução ideal de justiça supostamente pretendida pelas Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos. Para ilustrar esse problema, Amartya Sen nos

262 HINSCH, 2011, p. 373-374.

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oferece um exemplo em que a distribuição de uma flauta a três criançasdeveria ser decidida a partir de três princípios de justiça concorrentessem que nenhum pudesse ser afastado sob a alegação de parcialidade.No exemplo, nenhuma solução idealmente justa poderia ser identificada.Para Hinsch, há um equívoco no argumento de Amartya Sen. Segundoele,

Sen maintains that the existing conflict betweencompeting individual claims of justice cannot beresolved by any account of ideal justice. […][But] If the competing claims in a givendistributive conflict are really irreconcilable, theywould seem to be so not only in terms of 'ideal'solutions, but with regard to all possible solutions,ideal or non-ideal, that can be contested becauseof contrary considerations of justice.[...]

Hinsch argui que o problema apontado por Amartya Sen seestenderia não apenas às soluções propostas no escopo de uma Teoria deJustiça Focada em Arranjos, com sua pretensão de oferecer uma soluçãoúnica e justa, mas também às soluções propostas não ideais. Além disso,Hisch sugere que se esse problema de distribuição fosse enfrentado como recurso a um consenso entre os indivíduos sobre uma solução baseadaem critérios, teríamos a vantagem de contar que tais critérios seriamaplicados de modo uniforme a casos semelhantes:

If, on the other hand, we have a criteria-basedconsensual solution to a distribution problem, theagreement would seem to carry over to othercases, once the criteria are employed in a uniformmanner263.

A respeito dessas considerações, creio que uma ressalva deve serindicada. O problema apontado por Amartya Sen sobre a pretensão dasTeorias de Justiça Focadas em Arranjos de se alcançar uma únicasolução justa por meio de um acordo prévio sobre os critérios deavaliação não seria resolvido por um método ad hoc não-ideal e avesso àuniformidade. Amartya Sen deixou claro que regras prévias acordadas euniformidade de soluções importam, mas disso não se segue que são osúnicos elementos que devem ser considerados. Os pontos que Amartya

263 HINSCH, 2011, p. 378.

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Sen quer esclarecer nessa discussão dizem respeito, por um lado, ànecessidade de se ampliar a base informacional relevante na avaliaçãode justiça e, por outro lado, à necessidade de considerarmos o resultadoabrangente. A satisfação e a confiança na escolha transcendental dosprincípios de justiça impedem que a solução alcançada possa serquestionada enquanto um resultado abrangente. É como seguir aorientação kantiana de não usar os indivíduos como instrumentos em suaúltima consequência e, portanto, evitar a mentira até mesmo quando sejanecessária para se salvar vidas.

Por fim, Hinsch questiona a propriedade do problema dadistribuição exemplificado pela distribuição da flauta ser usado parainvalidar a abordagem das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos eobserva que a busca por uma teoria de justiça ideal está vinculada ànecessidade de elaboração das instituições básicas da sociedade. Emseus termos,

Sen's flute example and his argument fromincompatible claims do not apply in any direct orobvious way to the problem of ideal institutionalbackground justice. Moreover, we have seen howthe quest for an ideal theory of justice links upwith the need to work out a theory of justice forthe institutional basic structure of society264.

4.3.2 Francesco Biondo

Além de Hinsch, outro teórico que se ocupou em rebater ascríticas de Amartya Sen e sua perspectiva de justiça foi o italianoFrancesco Biondo. Para esse autor,

el enfoque metaético de Sen es débil por dosrazones: no ofrece una reconstrucción adecuadade la teoría de Rawls, equivocándose sobre sucarácter 'completo', y no explica de qué maneralos juicios comparativos de valor entre dossituaciones sociales no sean el resultado de unateoría 'trascendental' de la justicia265.

264 HINSCH, 2011, p. 381.265 BIONDO, Francesco. ¿Qué podemos pedir a una teoría de la justicia?

Algunas consideraciones acerca de un debate entre Amartya Sen y JohnRawls. ISEGORÍA: Revista de Filosofía Moral y Política. n.º 42, enero-

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A respeito da alegada má compreensão da teoria rawlsiana dejustiça nas críticas de Amartya Sen, Francesco Biondo observa que

Sen imputa a la doctrina de la justicia comoequidad […] defectos que en realidad estasdoctrinas no tienen, o, mejor dicho, que son elresultado de interpretaciones parciales de unaconstrucción teórica de enorme alcance266

O problema na interpretação de Amartya Sen diria respeito aoinexistente caráter de determinação e completude que, como o próprioJohn Rawls expõe explicitamente, não existiria em sua teoria. Nessesentido, Francesco Biondo nos diz que

parece que el próprio Rawls no considere su teoríacomo 'completa', al menos en el sentido que leatribuye Sen. Al hablar de la modalidad deaplicación de su doctrina de la justicia comoequidad en determinados procesos políticos detoma de decisiones, él admite que el resultado nopuede más que ser 'indeterminado', es decir, no sepuede decir cuál, de las posibles medidascoherentes con los límites establecidos por losprincipios de justicia, sea la mejor, la más justa ola más eficaz267.

Já foi notado que Amartya Sen, embora consciente da mudançana perspectiva de John Rawls na pressuposta escolha de um determinadoe único conjunto de princípios na posição original da sua Justiça comoequidade, mas aqui também Francesco Biondo aponta uma espécie deinterpretação descontextualizada, um espantalho com o qual AmartyaSen parece justificar as suas críticas e conferir-lhes um alcance maiorque de fato possui. Até esse ponto das considerações de FrancescoBiondo, o problema não está na conclusão que Amartya Sen oferece,mas no diagnóstico equivocado das teorias de justiça pelas quais sepauta para apresentar as vantagens de sua própria proposta.

Por outro lado, mesmo ao tornar evidente a má interpretação da

junio, 2010. p. 184.266 BIONDO, 2010, p. 195.267 BIONDO, 2010, p. 189.

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teoria rawlsiana de justiça feita por Amartya Sen, persistiria a polêmicasobre a necessidade de uma concepção ideal de justiça para a avaliaçãoentre alternativas viáveis e não ideais. Mas Biondi, à semelhança deHinsch, também diz que haveria uma má compreensão nesse ponto. Eleafirma que

Sen parece equivocarse sobre las finalidades de lainvestigación moral: averiguar qué es lo mejorque hacer no significa que esto siempre sea lo quese deba hacer. Él no considera,sorprendentemente, que el hecho de que losideales puedan entrar em conflicto no los haceinnecesarios a la hora de valorar lasalternativas268.

Para demonstrar que “al contrario de lo que Sen opina, sí que esnecesario que detrás de una comparación entre dos alternativas haya unmodelo ideal, aunque no sea completo, es decir, que no nos ayude avalorar todas las alternativas posibles”269, Francesco Biondo sugere umcaso hipotético:

Imaginemos que somos los responsables de unamisión de ayuda a una población pobre,compuesta mayoritariamente por campesinos, enun rincón de África. Nos interrogamos sobrecuáles son los ideales que intentamos realizar através de este proyecto de cooperación. Pero, ¿poreste motivo debemos asegurarnos de que talesideales puedan solucionar todos los casos difícilesa los que podemos enfrentarnos? Puede ser quetengamos unas metas ideales (reducir ladependencia de unos campesinos de los dictadosde una multinacional), pero puede ser también queestas metas no nos proporcionen soluciones aotras cuestiones, como por ejemplo si estoscampesinos deben reivindicar derechos depropiedad individual. ¿Somos entonces partidariosde teorías trascendentales? Esta posibilidad no setiene en cuenta por parte de Sen270.

268 BIONDO, 2010, p. 193.269 BIONDO, 2010, p. 192.270 BIONDO, 2010, p. 193.

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Todavia, o exemplo trazido por Francesco Biondo parecetraduzir-se numa abordagem comparativa e não totalista de justiça, talcomo defendida por Amartya Sen. Mesmo que Biondo não tenhaexposto as reflexões comparativas entre arranjos viáveis, ela estápressuposta no problema que ele sugere. A concepção de justiça ou osideais de justiça não foram questionados a priori, não houvedeliberações ou acordos sobre quais seriam os arranjos ideais para sealcançar uma sociedade que refletisse os ideais de justiça e osmissionários estavam mais preocupados com os resultados realizáveisque com esses dois problemas anteriores.

A interrogação feita acerca de quais são os ideais cuja realizaçãoé tentada na missão do seu exemplo não transforma a abordagem emtotalista ou institucional transcendental, como o próprio Biondoreconhece. De fato, não lemos que os missionários se esforçaram paraverificar quais deles apresentaria o arranjo mais ideal dos ideais e nemque a solução viável foi comparada com esse ideal supremo. Parece quehaver uma confusão aqui feita por Biondo entre o exercício deidentificação de arranjos idealmente justos e a utilização de princípiosde justiça como critérios de comparação entre arranjos viáveis. Essaconfusão parece mais visível na sua exclamação de que em “nuestrasargumentaciones morales están influenciadas por el pluralismo de losvalores y el particularismo ético”271, que é totalmente alinhada àperspectiva de Amartya Sen sobre os problemas de Justiça.

Para que ele pudesse refutar a crítica de Amartya Sen, FrancescoBiondo teria que orientar a resolução do problema contido no seuexemplo a partir de exercícios argumentativos tais como osdesenvolvidos nas concepções de justiça de John Rawls, Robert Nozicke David Gauthier. Não é preciso aqui reconstruir os argumentos dessesautores para perceber que nenhum deles ofereceria uma soluçãoespecífica ao problema. De minha parte, arrisco afirmar que a misériados pobres africanos não seria atenuada pelo estabelecimento daliberdade como princípio constitucional, tampouco pela sacralização dosdireitos libertários – pelo menos não nessa geração.

4.3.3 Laura Valentini

Outra resposta relevante às críticas que Amartya Sen faz àsTeorias de Justiça Focadas em Arranjos foi dada no artigo A Paradigm

271 BIONDO, 2010, p. 192.

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Shift in Theorizing about Justice? A Critique of Sen, de Laura Valentini,professora de Ciências Políticas da London School of Economics andPolitical Science. Nesse artigo, Valentini constata uma crescenteinsatisfação dos filósofos políticos com o paradigma metodológicodominante de inspiração rawlsiana sobre as teorizações sobre a justiçaque, nas palavras dos críticos, seria incapaz de orientar a ação emcircunstâncias do mundo real272. Nesse contexto, ela vê a obra deAmartya Sen como um apelo à mudança desse paradigma, sendo aabordagem ideal do institucionalismo transcendental substituída pororientações práticas da abordagens comparativas focadas emrealizações. Todavia, a partir de duas respostas, Valentini sugere que amudança proposta por Amartya Sen não seria tão segura quanto parece.

Uma resposta fácil às críticas de Amartya Sen poderia serencontrada em concepções de justiça como a de G. A. Cohen, para quemo objetivo das teorias de justiça não é fornecer orientações práticas.Teóricos como Cohen percebem que a justiça diz mais sobre o quedevemos pensar do que sobre aquilo que devemos fazer e que arelevância das teorizações independe de qualquer relevância prática273.

Todavia, por acreditarem que uma teoria da justiça deve serorientada à ação, essa resposta fácil não estaria disponível aos teóricosrawlsianos. Como ela mesma o faz, eles deveriam responder a trêscríticas gerais que o economista indiano a eles endereça: que (i) oinstitucionalismo transcendental não é necessário ou suficiente pararealizar julgamentos comparativos sobre a justiça; que (ii) oinstitucionalismo transcendental é inerentemente paroquial; e que (III) oinstitucionalismo transcendental é inflexível274. Dessas respostas, aprimeira nos interessa particularmente por não se limitar a uma defesaespecífica da teoria de John Rawls, mas das Teorias de Justiça Focadasem Arranjos e da abordagem institucional transcendental que ascaracterizam.

Antes conhecer a resposta de Valentini sobre a alegação deinsuficiência ou irrelevância do institucionalismo transcendental natarefa de avaliar comparativamente arranjos sociais viáveis, porém,cumpre observar o seu questionamento acerca de uma supostaambiguidade no uso do adjetivo transcendental e de certa imprecisão do

272 VALENTINI, Laura. A Paradigm Shift in Theorizing about Justice? ACritique of Sen. CSSJ Working Paper, SJ011, Nov. 2010. Oxford:University of Oxford, 2010. p. 2.

273 VALENTINI, 2010, p. 5.274 VALENTINI, 2010, p. 2.

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adjetivo institucionalista na obra de Amartya Sen.Num primeiro sentido, o adjetivo transcendental corresponderia

ao fato de uma teoria de justiça estabelecer princípios para umasociedade que, de tão perfeitamente justa, transcenderia os limites daexistência humana. Caso Amartya Sen tenha usado essa interpretação,ele estaria incorreto ao menos na leitura da Justiça como equidade deJohn Rawls, que concebeu os princípios de justiça de sua teoria de modoplenamente compatível com a escassez moderada e com o altruísmohumano limitado275. Todavia, Valentini reduz a força da sua resposta aoadmitir que essa interpretação parece não ser aquela que Amartya Sentem principalmente em conta. O economista indiano teria usado o termotranscendental como um sinônimo de absoluto, de não-comparativo:

This, however, is not the principal sense of“transcendental” Sen appears to have in mind. ForSen, a theory is transcendental first and foremostwhen it is, “absolute”, namely non-comparative.While comparative principles of justice takeroughly the following form “Society X is morejust than society Y if (or iff)…”, transcendentalones are formulated in a categorical manner“Society X is perfectly just iff…”. From this moreformal perspective, Sen is correct in describingRawls‘s theory as transcendental (although hecould have chosen a better label, such as“categorical”). Its two principles tell us what ittakes for a society to be perfectly just, rather thanfor it to be more just than another276.

Acredito não haver no artigo O que queremos de uma teoria dajustiça? ou no livro A Ideia da Justiça qualquer afirmação que permita aprimeira interpretação sugerida por Valentini. Até mesmo a segundainterpretação, apesar de estar mais próxima do sentido que Amartya Senprivilegia, ainda é incompleta277.

Sobre a alegação da imprecisão do adjetivo institucionalista, poroutro lado, as observações de Valentini corroboram ainda mais ahipótese de Amartya Sen forçar indevidamente algumas interpretações.O trabalho de John Rawls, por exemplo poderia ser caracterizado como

275 VALENTINI, 2010, p. 5-6.276 VALENTINI, 2010, p. 6.277 Ver itens 2.4 a 2.6 do presente trabalho.

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institucionalista, mas não no sentido ou com o mesmo alcance que lhe éatribuído por Amartya Sen. A justiça como equidade é institucionalistaapenas na medida em que o seu autor aplica os princípios de justiça àsinstituições fundamentais da sociedade e não ao comportamentoindividual. Por outro lado, ao contrário da sugestão do economistaindiano, John Rawls não oferece um conjunto invariável de instituiçõesperfeitas, mas apenas a previsão de que os arranjos institucionais devamobedecer aos princípios estabelecidos de justiça e também seremadaptados às características peculiares de cada sociedade e dosrespectivos cidadãos. Em resumo,

there is no such thing as an 'ideal set ofinstitutions' in Rawls's theory, but rather a set oflexically ordered principles (equal basic liberties,fair equality of opportunity, and the differenceprinciple) which can be realized by a number ofdifferent institutional arrangements278.

Como exemplo da imprecisão do uso do termo institucionalistanos moldes descritos por Amartya Sen, Valentini aponta a adoção deações afirmativas à luz da Justiça como equidade. Em sociedades emque o preconceito racial é verificado, as ações afirmativas sãojustificadas. Em sociedades em que o preconceito racial inexiste, asações afirmativas não se justificam279.

Feitas tais considerações preliminares, Valentini passa àsrespostas que um teórico rawlsiano poderia oferecer às três principaiscríticas que Amartya Sen faz à justiça como equidade, das quais aprimeira se mostra fundamental à análise aqui proposta pelapossibilidade de ser ampliada como defesa das Teorias de JustiçaFocadas em Arranjos.

À conclusão de que o que precisamos de uma teoria da justiça éuma estrutura que permita comparar arranjos sociais viáveis e que asTeorias de Justiça Focadas em Arranjos não nos auxiliam nessa tarefa,Valentini oferece uma dupla recusa, pois a ideia de que uma sociedade éou poder ser perfeitamente justa pode dizer algo importante sobre anatureza do valor da justiça e sobre como nos orientar em situaçõespráticas280.

278 VALENTINI, 2010, p. 6.279 VALENTINI, 2010, p. 6.280 VALENTINI, 2010, p. 7.

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A respeito da primeira questão, sobre a natureza do justo,Valentini aponta uma importante distinção estrutural entre teorias nasquais o grau de justiça pode ser incrementado e comparadoindefinidamente, tal como no utilitarismo, e teorias que oferecem umaanálise sobre a natureza do valor da justiça e um ponto de corte a partirdo qual a justiça não pode ser incrementada – e consequentementecomparada – por uma questão de princípio, como a justiça comoequidade. A objeção de Amartya Sen às teorias desse último tipo, pornão serem intrinsecamente comparativas como o utilitarismo, não seria,portanto, acertada281. Se há algo como uma justiça absoluta, uma boateoria da Justiça deveria também nos dizer o que é282.

Sobre a segunda questão, a suposta inutilidade das Teorias deJustiça Focadas em Arranjos na tarefa de comparar arranjos sociaisviáveis, Valentini concorda parcialmente. Não seria preciso estabeleceruma ideia de arranjo perfeitamente justo para verificar que umasociedade que permite prisões arbitrárias é menos justa que outra quenão permite, mas precisaríamos da ideia de arranjo perfeitamente paradecidir se uma sociedade que permite prisão arbitrária é mais ou menosjusta que outra que possui cidadãos em situação de pobreza. Temosintuições partilhadas sobre o modo de distribuir certos recursos, masdivergimos a respeito da maior parte das questões e de suas respectivasprioridades. Por conseguinte, a menos que queiramos nos contentar comos nossos assistemáticos e divergentes julgamentos intuitivos, oraciocínio moral no estilo rawlsiano se apresentaria como inevitável283.Como ela conclui,

We need to develop a general account of justice tobecome clear about our priorities, about what ismore or less important as a matter of justice, andabout how our seemingly divergent intuitions fittogether. The process of achieving greater clarityand coherence in our judgements of justicegradually delivers a picture of what justice (call it'perfect' justice) requires. Without such a picture,coherent guidance in matters of justice wouldsimply be impossible284.

281 VALENTINI, 2010, p. 7-8.282 VALENTINI, 2010, p. 9.283 VALENTINI, 2010, p. 8-9.284 VALENTINI, 2010, p. 9.

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Além disso, a justiça como equidade de Rawls ofereceriaorientações comparativas a partir da própria ordenação lexical dosprincípios de justiça, pois claramente estabelece que as violações deliberdades básicas são mais graves que violações de igualdade deoportunidades que, por sua vez, são mais graves que violações doprincípio de diferença. Por outro lado, não nos diz qual violação deliberdade básica é mais grave que outra violação de liberdade básica.Nesses termos, Valentini alega que a crítica de Amartya Sen poderia serválida se afirmasse não a impossibilidade de a justiça como equidadeservir como parâmetro comparativo, mas apenas a impossibilidade defazer todas as comparações necessárias285.

285 VALENTINI, 2010, p. 10.

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5 CONCLUSÃO

Oferecer algo sob o título de conclusão após enveredar por umdebate ainda em aberto e com teóricos influentes aguerridos em posiçõesextremamente opostas é uma tarefa delicada. E é ainda mais difícilquando tento deixar um saldo positivo depois de todas as surpresas queuma pesquisa em sentido literal oferece.

No primeiro capítulo, investigamos as origens e as característicasdas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. Apontamos, e procuramosjustificar, a importância que Amartya Sen confere ao nosso senso deinjustiça como ponto de partida ou impulso para as reflexões sobre osmeios pelos quais poderíamos promover o avanço da justiça. Ao mesmotempo, expusemos os motivos pelos quais essa reflexão deve serconduzida pelo uso público da razão, uma exigência que remonta aoperíodo do Esclarecimento e suas demandas por explicações racionaisda vida em sociedade, da legitimidade da autoridade política e dasnormas jurídicas e morais. Localizamos a teoria do Contrato Socialcomo uma explicação racional desses elementos e notamos odeslocamento ou ampliação funcional do pensamento contratualista parauma perspectiva propositiva que tomava como objeto a resposta àquestão de saber como seria uma sociedade justa e as instituições quelhe dariam forma. Dessa função propositiva, que Amartya Sen denominacomo abordagem institucional transcendental, derivou-se aquilo que sepoderia chamar de Teorias de Justiça Focadas em Arranjos,compreendendo como arranjo tanto as instituições justas como ospadrões comportamentais justos.

Após sumariar as características da Teoria de Justiça Focada emArranjos, investigamos a presença dessas mesmas características nasteorias de justiça de John Rawls, Robert Nozick e David Gauthier que,nas considerações de Amartya Sen, constituiriam exemplares dessaespécie de teoria de justiça. Notamos, porém, algumas incoerências. Emprimeiro lugar, Amartya Sen sustenta que a maior parte das teorias dejustiça contemporâneas estão localizadas dentro da categoria Teorias deJustiça Focadas em Arranjos, mas não apresenta uma análise com umnúmero suficiente de teorias capaz de sustentar a sua conclusão. Naverdade, percebemos que a sua análise privilegia as teorias de justiçados autores mais próximos a ele, deixando de fora praticamentesignificativas reflexões já assimiladas pela Teoria do Direito no séculoXX. Em segundo lugar, percebemos também um tencionamentoinadequado na tentativa de enquadrar as teorias de justiça que ele aborda

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na categoria Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. A percepção dessetencionamento não conduz à invalidação total do diagnósticoapresentado pelo economista indiano, mas reduz significativamente aabrangência do seu argumento, tornando necessárias diversasponderações sobre os objetivos e elementos que dão forma às teoriasque ele aborda em sua obra.

No segundo capítulo, sistematizamos e expusemos os problemasepistemológicos que Amartya Sen imputa às Teorias de Justiça Focadasem Arranjos. Iniciamos com a ressalva de que a ideia reguladora deavaliar o alcance das teorias de justiça na tarefa de auxiliar na resoluçãode problemas práticos de justiça parece não ser adequada por inteiro;dadas as justificativas e conclusões apresentadas pelos autores dasteorias que ele toma como objeto de crítica, talvez essas teorias tenhamuma função mais aproximada da legitimação de um determinado estadode coisas que do propósito da erradicar a fome, o analfabetismo, opreconceito e problemas de mesma natureza, que o economista indianoassume como objetivos que devemos exigir das teorias de justiça.

Feita tal ressalva, avançamos para os dois problemas daabordagem transcendental das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos.O primeiro diz respeito ao equívoco de se pressupor a factibilidade deum acordo unânime acerca do princípio ou princípios de justiça queorientariam a criação das instituições básicas da sociedade. Mesmoexpostos a exames críticos de objetividade e imparcialidade, váriosprincípios de justiça resistiriam e nenhum deles poderia ser afastado deforma não-arbitrária. O segundo problema se relaciona ao que AmartyaSen afirma ser uma suposta redundância na identificação de um arranjotranscendental justo ou ideal quando o que importaria à realização dajustiça é a comparação entre alternativas viáveis. Para Amartya Sen, nãoé necessário ou suficiente a identificação desse arranjo social ideal, poisele não serviria de modo adequado como parâmetro para a escolha entreas alternativas viáveis. Cada arranjo possui elementos distintos e asdistâncias valorativas implícitas entre elementos de mesma natureza e denatureza diversa é tão problemática que mesmo o arranjo viáveldescritivamente mais próximo do arranjo ideal poderia ser menosdesejável que o arranjo descritivamente mais distante. Assim, oexercício de escolha do arranjo ideal seria redundante pelo fato de umoutro exercício de escolha entre as alternativas viáveis se mostrarnecessário, e nele o arranjo ideal em nada contribuiria. Por outro lado,os exemplos que ele usa para sustentar essa conclusão são de naturezasdiversas daquela que está implícita nas escolhas políticas entre arranjos

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sociais viáveis.Outro problema que Amartya Sen aponta nas Teorias de Justiça

Focadas em Arranjos é o da excessiva concentração ou confiança naidentificação das instituições sociais justas. Para o economista indiano,uma análise sobre os meios de se fazer avançar a justiça precisariaconsiderar variáveis de natureza não-institucional, tal como ocomportamento real das pessoas que pode destoar do comportamentoidealizado, e até mesmo o resultado que pode emergir da soluçãoproposta. Não seria plausível, sustenta Amartya Sen, considerar que ajustiça foi realizada com a mera concepção das instituições justas. ParaAmartya Sen, uma escolha entre alternativas reais e viáveis exigiria umaestrutura para compará-las a partir de um exercício da razão prática, masnão a identificação de uma situação supostamente perfeita e inacessível

Para que as críticas de Amartya Sen às Teorias de Justiça Focadasem Arranjos e a sua insistência na abordagem comparativa fossemapreciadas adequadamente, julgamos conveniente apresentar umasíntese de sua própria teoria de justiça que, segundo suas considerações,estaria em boas condições de auxiliar na tarefa de fazer avançar ajustiça. Assim, vimos que o economista indiano propõe, para se pensarnuma perspectiva comparativa, a substituição da pergunta sobre comoseria uma sociedade justa ou ideal pela questão de saber comodeterminadas injustiças poderiam ser erradicadas ou reduzidas. Alémdisso, notamos como a comparação entre alternativas viáveis demandauma estrutura de argumentação capaz de assimilar uma maior entrada deinformações e a análise dos resultados abrangentes, que incluem aspróprias instituições da sociedade.

Na teoria de justiça de Amartya Sen, essa estrutura é oferecida apartir da Teoria da Escolha Social, uma área composta principalmentepor pensadores da filosofia social e da economia e que tem comoprincipal objeto de pesquisa os processos de escolhas individuais. Aadoção da argumentação e dos axiomas da Teoria da Escolha Socialseria justificada pelos aportes que auxiliariam nas tarefas de se pensar ede se promover o avanço da justiça. Entre esses aportes, Amartya Senaponta a) a mudança do foco institucional para o das realizações, isto é,a justiça seria avaliada não pelo caráter de justiça das instituições e simpelo resultado abrangente; b) o foco nas comparações entre asalternativas viáveis e não na identificação das instituições justas; oreconhecimento da pluralidade de princípios de justiça; c) aconsideração da hipótese de erros ou resultados indesejáveis, o quepressupõe o reexame dos resultados e das próprias ações; d) a adoção de

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uma perspectiva não totalista, isto é, de uma perspectiva que considera ahipótese de soluções parciais; e) a abertura a mais informações einterpretações, tornando desejável e relevante a escuta de vozes distantese não envolvidas ou afetadas pelo problema de justiça, vozes que podemtrazer reflexões importantes e afastar o paroquialismo dos valores einteresses locais; f) a ênfase na necessidade de articulação einterpretação de formas mais precisas e axiomáticas, de modo apossibilitar um exame adequado das questões subjacentes nasreivindicações de justiça e suas implicações; e g) a aproximação dodebate público de alguns inputs já ponderados pela teoria econômica,que poderiam servir como parâmetro para apreciação de questões queenvolvem desde o respeito recíproco ao reconhecimento da importânciada liberdade.

No terceiro e último capítulo, colocamos em questão o alcancedas críticas e considerações feitas por Amartya Sen acerca das Teoriasde Justiça Focadas em Arranjos a partir da apreciação do caráterinovador de suas críticas e propostas. Trouxemos algumas reflexões quejá foram feitas e assimiladas pela Teoria do Direito desde a primeirametade do século XX. A partir de textos selecionados de Hans Kelsen,Alf Ross e Chaïm Perelman sobre os problemas de justiça, percebemosque várias das principais conclusões de Amartya Sen já haviam sidoantecipadas. Considerações acerca da importância da razão pública nasdeliberações sobre os problemas de justiça, a impossibilidade de sealcançar um princípio ou conjunto de princípios de justiça que fosse omais justo ou o escolhido unanimemente por acordo e a necessidade deconsiderar o comportamento real das pessoas, por exemplo, são temas jábastante familiares.

Ainda sobre o caráter inovador das contribuições de AmartyaSen, indicamos um número surpreendente de coincidências entre o seutrabalho e o trabalho do filósofo da ciência Karl Popper. Mesmo usandode um vocabulário distante daquele partilhado pelo economista indiano,Karl Popper já havia apresentado em sua perspectiva sobre ametodologia das ciências sociais conclusões tais como a de ser sempropósito a busca por uma definição ou sentido da justiça, mas, aomesmo tempo, reconhecendo a força social desse conceito. O maisimportante, porém, é a sua consideração sobre a inadequação dapergunta ou do direcionamento de esforços à realização de algo comouma justiça perfeita. Como Amartya Sen, Karl Popper já haviaobservado a importância do apelo moral às reivindicações de justiça quebuscavam encontrar soluções para injustiças evidentes. Assim como é

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útil às ciências naturais, uma postura voltada à resolução de problemasde justiça e não à localização do justo é mais razoável e eficaz. Alémdisso, ele desconstrói a ideia utilitarista de se medir a dor e o prazer, atémesmo de pessoas diferentes, em uma mesma escala, consideraçãobastante parecida com o problema de avaliação indicado por Sen. Porfim, Karl Popper também propõe a adoção de uma postura metodológicaàs Ciências Sociais que denomina como Mecânica Social Gradual, umametodologia política que não objetiva utopias, mas alternativasrealizáveis; que não pressupõe um caminho determinado e imutável,mas a possibilidade de desvios e erros; que vê maior possibilidade deacordo em torno de problemas pontuais; que não sustenta umaorientação principiológica de justiça, mas a sua construção por viasdemocráticas.

Ao final do terceiro capítulo, apontei algumas críticas que acomunidade acadêmica tem direcionado ao trabalho de Amartya Sen,trazendo a título exemplar as considerações do filósofo alemão WilfriedHinsch, do filósofo italiano Francesco Biondo e da cientista políticaLaura Valentine.

Hinsch afirma Amartya Sen se equivoca desde o emprego dotermo transcendental, mas suas principais intervenções se dão no sentidode sustentar que a identificação dos requisitos de um arranjo ideal ou aomenos alguma ideia a respeito dele seja necessária para a conclusão dejuízos comparativos entre arranjos alternativos não ideais. Ao contráriodas comparações entre os quadros mais belos e montanhas mais altas,exemplos usados por Amartya Sen para demonstrar o problema daredundância, Hinsch reclama que a complexidade das exigências dejustiça pode e deve ser assimilada auxílio de uma noção ideal. Alémdisso, Hinsch aponta uma impropriedade no exemplo da distribuição daflauta entre as crianças que Amartya Sen usa para justificar aimpossibilidade de se alcançar uma solução idealmente justa; se oproblema é o impasse em um critério distributivo, o problema alcançariaaté mesmo o tipo de abordagem proposto por Amartya Sen. Porconseguinte, um acordo prévio sobre o princípio da distribuição teria avantagem de poder ser aplicado em casos semelhantes. Nesse ponto,fizemos a ressalva de que a perspectiva de justiça de Amartya Sen não éavessa à regularidade. O exemplo traduzia a necessidade de se ampliar abase informacional e a consideração do resultado abrangente comosubsídios para que um acordo mais aceitável fosse alcançado.

Além das considerações de Wilfried Hinsch, também observamosas críticas do filósofo italiano Francesco Biondo. Para ele, Amartya Sen

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peca por dois motivos. O primeiro erro é a má interpretação que ele fazda Justiça como equidade de John Rawls, atribuindo-lhe um caráter decompletude que sequer o próprio autor sustentaria. Para Biondo, aJustiça como equidade é suficientemente indeterminada para escapar àscríticas de Amartya Sen que são dirigidas às pretensões de totalismo. Osegundo erro é o de Amartya Sen ter se equivocado com a finalidade dasinvestigações morais: do investigar o que é o melhor a fazer não sesegue que sempre o melhor é o que se deve fazer. Além disso, o fato deos ideais entrarem em conflito não justificaria a acusação de que seriamdesnecessários. Nesse ponto, considerei um aparente equívoco feito porBiondo em relação aos princípios de justiça e a identificação de umarranjo idealmente justo, especialmente pelo exemplo que ele usa parailustrar as suas considerações. O problema e a solução proposta porBiondo se desenvolvem por uma via comparativa, tal como AmartyaSen julga adequada. Não há, no exemplo trazido por Biondo, qualquerreferência à concepção transcendental do justo e de suas respectivasinstituições justas, mas a um problema que reclama por uma análise deresultados abrangentes.

Laura Valentini, por sua vez, também contesta o emprego dosadjetivos institucionalista e transcendental que o economista indiano usapara caracterizar a justiça como equidade de John Rawls. Sua leitura dainterpretação do termo transcendental na obra de Amartya Sen pareceestar equivocada, mas suas considerações sobre a impropriedade doadjetivo institucionalista corrobora a hipótese de que o economistaindiano às vezes atribui às teorias que são objeto de suas críticasalgumas características e deficiências que elas efetivamente nãoapresentam. Apesar de responder as acusações de Amartya Sen naqualidade de uma teórica de linhagem rawlsiana, algumas afirmaçõespodem ser aproveitadas como respostas às críticas feitas as Teorias deJustiça Focadas em Arranjos. Em primeiro lugar, Valentini sustenta queuma teoria de justiça não deve oferecer apenas uma estrutura paracomparar arranjos sociais viáveis, mas também dizer algo sobre anatureza da justiça. Em segundo lugar, a justiça como equidade não seriatotalmente incapaz de auxiliar em comparações, posto a ordenaçãolexical dos princípios de justiça fornecer critérios para decidir, porexemplo, que uma violação às liberdades básicas é mais grave que umaviolação ao princípio de igualdade de oportunidades.

Por tudo o que foi exposto, e muito foi exposto, uma avaliação doalcance da crítica que Amartya Sen faz às Teorias de Justiça Focadas emArranjos precisa ser pontual.

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Sobre a impossibilidade de encontrar ou acordar um princípio ouconjuntos de princípios de justiça único ou mais justo, a Teoria doDireito e a perspectiva de metodologia das Ciências Sociais de KarlPopper já haviam feito considerações idênticas em argumentos maissimples. O mesmo se pode dizer do uso da razão pública, da crítica aototalismo, das soluções parciais, da inclusão de vozes distantes (como noDebate Crítico Apreciativo), da constatação da existência de um maiorapelo social na procura de soluções por injustiças evidentes e danecessidade de se privilegiar uma avaliação de justiça que considerealgo como um resultado abrangente e não apenas o caráter de justiça dasinstituições.

Por outro lado, ficou relativamente evidente que é possívelcompreender a disputa de fundo suscitada por Amartya Sen não noplano metodológico, mas em torno das próprias concepções de justiça.Mesmo não concordando com a perspectiva da justiça libertária deRobert Nozick e David Gauthier, não podemos acusá-las demetodologicamente inaptas a oferecer soluções aos problemas dejustiça. É que faz parte do próprio ideário libertário conceber a justiça damaneira como eles a concebem, isto é, acertando as instituições de modoque os direitos individuais e de propriedade sejam protegidos peloEstado e confiando que o mercado faça o resto. Qualquer ação estatalque vise algo como a distribuição de renda, por exemplo, seria injusta namedida em que pressupõe a captação de recursos e tributação, o que é omesmo que obrigar os indivíduos se ajudarem mutuamente, ferindo-lhesem seus direitos. O mesmo pode ser dito da Justiça como equidade deJohn Rawls, considerando a justificação que ele mesmo deu à sua teoriade justiça. Até a própria teoria de justiça de Amartya Sen não é tãometaética como pareceu a Francesco Biondo. Quando o economistaindiano direciona a nossa atenção para problemas tais como a fome, oanalfabetismo, o preconceito racial e outros problemas de mesmanatureza e afirma que outras teorias de justiça são incapazes de resolvê-los, ele introduz, no debate, determinados valores de justiça que nãopodem ser compreendidos adequadamente apenas por uma perspectivametodológica.

No fundo, a avaliação de justiça de Amartya Sen assume omesmo critério de distribuição implícito em sua abordagem decapacidades. Não podemos compreender de outra forma a sua exigênciapela avaliação não apenas das instituições, mas também dos resultadosabrangentes. Essa reivindicação tem uma estreita ligação com adistinção já traçada por Max Weber entre a justiça formal e a justiça

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material, bastante difundida na Teoria do Direito, e com a própriaobservação de Karl Marx sobre a atenção que se deve conferir àsnecessidades materiais particulares dos indivíduos – e a esse respeitoAmartya Sen reconhece plenamente as suas inspirações. Sobre asconsiderações feitas por Hinsch, Biondo e Valentini, elas parecemreforçar a hipótese de que Amartya Sen distorce as caracterizações dasteorias de justiça que constituem o objeto de sua crítica – e de modoespecial a Justiça como equidade – para que elas se tornem alvos maisfáceis e atrativos.

Bastante problemática, porém, é a questão da adequação do usode um arranjo ideal como um parâmetro para avaliar arranjos viáveis.De um lado, mesmo que Amartya Sen não tenha oferecido exemploscomparativos concretos entre arranjos ideais e arranjos viáveis, suaressalva acerca dos problemas entre as distâncias avaliativas dasinstituições que compõem os arranjos não pode ser desconsiderada. Deoutro lado, o fato dessa crítica ser direcionada às teorias de Rawls,Nozick e Gauthier parece torná-la imprópria. Os arranjos ideiasapresentados nas teorias desses autores exercem uma função dejustificação para as concepções transcendentais de justiça que nãopoderia ser compreendida como um mero elemento comparativo que sepode aspirar realizar enquanto ideal. Eles são parte das própriasexigências de justiça que seus autores propõem e, por isso,imprescindíveis. Ademais, Rawls, Nozick e Gauthier não escreverammanuais para revolucionários e eles deixaram isso claro o suficiente paraque a alegação de Amartya Sen sobre dificuldade de se proceder a umareorganização institucional total286 também seja vista como umespantalho.

Por outro lado, não creio que podemos deixar despercebidas aosolhos as contribuições proporcionadas por meio das críticas queAmartya Sen faz às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. A suainsistência em comparar arranjos sociais viáveis se mostraparticularmente interessante ao nosso contexto. Fora dos círculosespecializados, não são frequentes análises comparativas razoáveisentre, por exemplo, os sistemas de tributação e de fornecimento deserviços básicos entre o Brasil e países em que as coisas parecem estarem melhor caminho. Nossas teorizações sobre a justiça parecem muitoocupadas com aspirações grandiosas para dar lugar a questões(supostamente) tão insignificantes assim. Outra lição positiva deAmartya Sen diz respeito à importância da abertura das discussões sobre

286 SEN, 2012, p. 29.

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os problemas de justiça. Ainda que o Debate Crítico Apreciativoproposto por Karl Popper tenha como pressuposta uma aberturaconsiderável, Amartya Sen nos chama a atenção para o problema doparoquialismo dos juízos e interesses locais. Isso traz implicaçõessubstantivas como a necessidade de incrementar o nível de educação dosindivíduos e proporcionar uma maior abertura à participação deindivíduos e grupos colocados à margem dos processos decisórios.Também é relevante a insistência de Amartya Sen na importância de seproporcionar uma maior captação de informações nos processos dedecisão como meio para se otimizar as chances de acordos. Por fim, algoque merece ser louvado à exaustão nas críticas feitas por Amartya Sen éa necessidade de consideração do comportamento real das pessoas, algoparticularmente raro em teorias de justiça. No plano político, esse recadofoi dado de modo menos romântico e mais objetivo por Popper, aoafirmar que não devemos esperar que os avanços necessários sejamrealizados por bons líderes e bons governantes, mas sim acertar asnossas instituições de modo a nos proteger daqueles que não são tãobons assim e assumir maiores responsabilidades sobre o curso dosacontecimentos. Para o filósofo austríaco, o problema não é o de reduziras nossas expectativas acerca dos comportamentos reais em face doscomportamentos desejáveis, mas o de reduzir ao máximo os efeitos doscomportamentos indesejáveis.

Concluo a pesquisa sobre o alcance das críticas de Amartya Senàs Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e, de uma perspectivametodológica, minhas considerações positivas se mostraram maislimitadas quanto o que objetivava. Pelo exposto, não poderia serdiferente. Porém, de um ponto de vista humanitário, que ultrapassa osobjetivos da presente pesquisa, o saldo é bastante positivo. Osargumentos de Amartya Sen nos incitam a pensar teoricamente sobreremoção de injustiças evidentes e remediáveis de uma perspectivamenos totalista e mais pragmática. Eles nos convidam a sair do nossoplano de auto-criação privada e do nosso paroquialismo referencial paraperceber que, embora não tenhamos condições de fazer muito, podemosfazer algo.

Na manhã do dia 13 de dezembro de 2014, sábado, o reverendoAl Sharpton, conhecido ativista dos direitos civis, reuniu milhares depessoas na capital dos Estados Unidos, Washington, para manifestaremum sentimento de indignação diante dos recentes assassinatos de jovensnegros pela polícia. Ao protesto foi dado o nome de Justice for all e osmanifestantes, conduzidos pelos familiares de Eric Garner, Michael

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Brown, Tamir Rice e Trayvon Martin, jovens negros mortos duranteabordagens policiais, marcharam da Freedom Plaza em direção aoCongresso clamando por justiça: sem justiça, sem paz287. O significadodo clamor à justiça é evidente: eles reivindicavam o fim da posturaracista da polícia e a respectiva punição dos responsáveis peloshomicídios. Eles não protestavam por um mundo plenamente justo,orientado por um dado conjunto de princípios de justiça, e nem estavamdispostos a decidir ali os problemas do sistema público de saúde oudeliberar sobre os incentivos à manutenção dos postos de trabalho. Oque o unia aquela multidão era um sentimento de justiça acompanhadopela certeza de que algo poderia e deveria ser feito.

Além disso, os manifestantes sequer colocavam em pautaexigências institucionais como leis de repressão ao preconceito. Hámuito tempo a Constituição Americana prevê a igualdade de tratamentoentre seus nacionais. Mas há um descompasso entre o que se poderiaesperar do funcionamento dessa instituição e aquilo que de fatoacontecia na sociedade. Voltando os olhos aos desdobramentos daspersecuções criminais que seguiram aos assassinatos que ensejaram asmanifestações, percebemos que reduzir a justiça em algo que está deacordo o caráter de justiça das instituições nos leva a dificuldadesconstrangedoras. O único caso pendente de julgamento é o do policialTimothy Loehmann, autor dos tiros que levaram o garoto Tamir Rice, deapenas 12 anos, a óbito288. Nos demais, o Direito foi aplicado e osvereditos seguramente não corresponderam aos anseios de justiça dosmanifestantes. Darren Wilson, o policial que efetuou os disparos fataiscontra Michael Brown em 9 de agosto de 2014, foi considerado inocentepor um juri popular e não terá de enfrentar nenhuma pena289. George

287 VALLONE, Giuliana. Marcha contra violência policial reúne milhares nosEUA. Folha de São Paulo, (online) 13 de dezembro de 2014. Disponívelem <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/12/1562157-marcha-contra-violencia-policial-reune-milhares-nos-eua.shtml> Acessado em 13de dezebro de 2014.

288 SCHOICHET, Catherine E. Cleveland cop who shot 12-year-old slammedfor 'immaturity' in past job. CNN, (online) 5 de dezembro de 2014.Disponível em <http://www.cnn.com/2014/12/04/justice/cleveland-police-officer-timothy-loehmann/> Acessado em 13 de dezembro de 2014.

289 SWAINE, Jon; LEWIS, Paul; ROBERTS, Dan. Grand jury decline tocharge Darren Wilson for killing Michael Brown. The Guardian, (online)25 de novembro de 2014. Disponível em <http://www.theguardian.com/us-news/2014/nov/24/ferguson-police-darren-wilson-michael-brown-no-charges> Acessado em 13 de dezebro de 2014.

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Zimmerman, segurança que alvejou Trayvon Martin em 26 de fevereirode 2012, também foi inocentado pela acusação de assassinato290. DanielPantaleo, policial que matou Eric Garner por estrangulamento, tambémfoi inocentado por juri popular291. Em verdade, os vereditos queinocentaram os acusados pesaram decisivamente para que a populaçãose sensibilizasse em torno dessa manifestação.

Como poderíamos refletir teoricamente e oferecer soluçõespráticas para problemas dessa natureza? Propomos um novo ContratoSocial, criamos os arranjos institucionais idealmente justos eaguardamos que as pessoas simplesmente sigam as normas que elashipoteticamente concordaram em estabelecer? Precisamos garantirapenas as liberdades básicas e direitos de propriedade e confiamos que oresto seja acertado pela ação do livre mercado ou, ao contrário,estabelecemos que todas as questões serão resolvidas pela eliminaçãodas classes com a propriedade coletiva dos meios de produção? Será queo problema do preconceito racial num país distante poderia nosimportar? Deve ele ser refletido apenas com os argumentos e interessesparoquiais ou nossas experiências e razões podem ser relevantes? Pensoque o trunfo do economista indiano tenha sido plantear essas questõessob uma roupagem metodológica sem expor imediatamente aabordagem de capacidades que ele propõe. Por outro lado, essaestratégia controversa compromete em uma ampla medida a acuidade desuas críticas direcionadas às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos.Elas se mostraram válidas, mas apenas na medida em quecompartilhamos da mesma perspectiva de que a vida que as pessoas sãorealmente capazes de levar292 deve ser o objeto por excelência de umateoria de justiça.

290 FORD, Dana. George Zimmerman was 'justified' in shooting TrayvonMartin, juror says. CNN, (online) 17 de julho de 2013. Disponível em<http://www.cnn.com/2013/07/16/us/zimmerman-juror/>. Acessado em 13de dezembro de 2014.

291 GOODMAN, J. David; BAKERDEC, Al. Wave of Protests After GrandJury Doesn’t Indict Officer in Eric Garner Chokehold Case. The New YorkTimes, (online) 3 de dezembro de 2014. Disponível em<http://www.nytimes.com/2014/12/04/nyregion/grand-jury-said-to-bring-no-charges-in-staten-island-chokehold-death-of-eric-garner.html> Acessadoem 13 de dezembro de 2014.

292 SEN, 2010, p. 104.

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6 POST SCRIPTUM

Defendi a presente dissertação às 9 horas do dia 20 de fevereirode 2015. A banca de avaliação, presidida pelo professor Matheus Felipede Castro, foi composta pelos professores Delamar José Volpato Dutra,Grazielly Alessandra Baggenstoss, Júlio Marcelino Júnior e LuizHenrique Urquhart de Cademartori. As contribuições desses professoresforam muito oportunas e algumas até necessárias para que asincompletudes do meu trabalho fossem reconhecidas e analisadascriticamente. Assim, mesmo que de modo sumário, creio que devoacrescer ao texto este post scriptum com as principais questõesdebatidas. Além de constituir o encerramento fático do ciclo depesquisa, a transcrição dos debates é também uma forma deagradecimento aos professores que gentilmente se dispuseram a leratentamente o meu texto e participar de uma banca em plena semana decarnaval.

O professor Júlio Marcelino observou, com toda a razão, quetalvez no título do trabalho mereceria figurar o nome de Amartya Senpor ter sido ele o autor-chave de minha pesquisa. O título original era AsTeorias de Justiça Focadas em Arranjos e os seus problemasepistemológicos. Eu estava ciente dessa questão e já havia inclusivepreparado as folhas de aprovação com o título atual, As críticas deAmartya Sen às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, mas essaintervenção antecipou o pedido que programei fazer após os debates.Outra questão levantada pelo professor Júlio Marcelino dizia respeito aalgo que ele chamou de dosagem de expectativas em relação aos temasque eu havia proposto abordar, ao alcance dos problemas nelesenvolvidos e aos adjetivos usados para qualificá-los. De modo maisespecífico, ele chamou a minha atenção para dois pontos sensíveis: oemprego do termo epistemologia, que sinalizaria ao leitor um conteúdoprecipuamente epistemológico, e a relativização do caráter problemáticoa ser identificado (ou não) nas teorias de justiça postas em análise. Sobreo termo epistemologia, tomei-o não tanto como campo filosófico que seocupa da natureza ou escopo do conhecimento, mas como, na tradiçãopopperiana, campo que se dispõe a problematizar métodos científicos(inclusive das ciências sociais) ou de testes de falseamento de teorias293.Nesse segundo sentido, não haveria impropriedade significativa. Dequalquer forma, devo reconhecer que o uso corrente do termo se

293 Tenho em conta A Lógica da Pesquisa Científica, A Sociedade Aberta eSeus Inimigos e Conjecturas e Refutações, ambos de Karl Popper.

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aproxima mais do primeiro sentido e que a minha pesquisa avançoumuito mais para um problema específico nas críticas feitas por AmartyaSen que para uma análise metodológica. Sobre a relativização dosproblemas apontados nas teorias de justiça analisadas em meu trabalho apartir da obra de Amartya Sen, creio que tenha sido um reflexo do meureceio de que o diagnóstico apontado pelo economista indiano nãofossem tão acertados e fatais como o próprio afirmava. Por esse motivo,não reproduzi em todo o trabalho a afirmação de que as Teorias deJustiça Focadas em Arranjos, especialmente pela impossibilidade doacordo único na posição original e dos problemas dotranscendentalismo, eram totalmente incapazes de contribuir para aredução de injustiças294. Em algumas passagens, a expressãoimpossibilidade foi substituída por sinônimos mais brandos. Por outrolado, essa atenuação também serviu para sempre manter em vista oreconhecimento do próprio Amartya Sen de que muitas dessas teoriaspossuem em seus respectivos escopos alguns elementos que contribuempara a reflexão sobre a realização da justiça.

O professor Delamar Dutra, por sua vez, propôs duasprovocações em forma de perguntas: a) seria mesmo possível avaliaruma teoria de justiça, de natureza filosófica, nos moldes falseacionistapopperiano? e b) estaria a própria proposta popperiana sujeita aosmesmos critérios falseacionistas? Em relação à primeira pergunta,sustentei que, a partir da ideia reguladora de justiça proposta na obra deAmartya Sen, isto é, a partir da ideia de que uma teoria de justiça devese prestar a resolver problemas práticos e concretos como fome,analfabetismo e ausência de serviços básicos de saúde, poderíamos simavançar na verificação da possibilidade de uma teoria de justiça emrealizar tais objetivos. Essa é a pressuposição na qual Amartya Sen seapoia para justificar suas críticas às Teorias de Justiça Focadas emArranjos. Todavia, pelo que restou exposto na pesquisa, as teoriaslocalizadas na categoria Teorias de Justiça Focadas em Arranjos nãocompartilham desses mesmos objetivos. Na verdade, elas não serevelam como métodos distintos para implementar um mesmo estado decoisas acreditado como justo, mas estruturas argumentativas comdiferentes e inconciliáveis concepções de justiça. Fiz essa observação aolongo da análise dessas teorias e em outras seções do meu texto,indicando que esse era o motivo pelo qual não se poderia afirmar, comoo faz Amartya Sen, que as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos são

294 Ver, por exemplo, as afirmações de Amartya Sen nas páginas 48, 163-175da sua A Ideia de Justiça.

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inaptas a oferecer soluções para a fome, o analfabetismo, acesso aosserviços básicos de saúde, etc. Por outro lado, não deixei claro que, emse tratando de uma concepção de justiça, isto é, em se tratando docritério de natureza filosófica pelo qual valoramos moralmente umadeterminada conduta ou estado de coisas como justo, é impossívelproceder a qualquer tipo de falseamento. Sobre a segunda questão, a dapossibilidade de submeter a própria concepção popperiana defalseamento a um teste de falseamento, o professor Horácio WanderleiRodrigues pediu a palavra para nos lembrar que o próprio Karl Popper jáhavia indicado que a estrutura que propõe para avaliar os avanços, aintegridade e outras perspectivas das teorias ou hipóteses explicativasnão está no mesmo campo das ciências, mas no da filosofia das ciências.Por conseguinte, não tem a mesma natureza das teorias que ela mesmase submeter aos testes que propõe.

Por fim, a professora Grazielly Baggenstoss fez diversasconsiderações relevantes sobre o conteúdo e estrutura do trabalho que eutambém não poderia deixar de acolher. Já empreendi as correçõesformais no próprio texto a partir da cópia impressa que ela me devolveucom sublinhados, destaques coloridos, páginas dobradas e váriosindicativos de que havia se dedicado verdadeiramente à leitura eavaliação do meu trabalho em pleno carnaval. Sou muitíssimo grato portudo isso. Quanto às questões substantivas, ela primeiramente destacou aimportância da tradição cultural indiana na obra de Amartya Sen que, nomeu texto, aparece como um elemento meramente subsidiário. Ela temrazão. Em A Ideia da Justiça, Amartya Sen constrói a exposição do seuargumento com muitos componentes e reflexões próprias da sua culturanativa, ganhando o mesmo espaço ou até mais destaque em certaspassagens que os argumentos comuns às culturas europeia e americanaque, de tão onipresentes em discussões políticas e filosóficas,assumimos implicitamente como nossa. Em segundo lugar, alertou queeu poderia ter dado um tratamento mais atento em vários pontos deminha conclusão. Afirmou que eu não delimitei satisfatoriamente aconclusão que o meu trabalho oferece sobre o seu problema principal,que era o de avaliar o alcance das críticas de Amartya Sen às Teorias deJustiça Focadas em Arranjos. Minha opção por um resumo mais pontualsobre essa questão se deve à própria redação que o desenvolvimento dapesquisa me impôs. Foi necessário observar as incoerências nas críticasde Amartya Sen, e de modo bem explícito, desde o título 2.6 até o fim.Eu não poderia reservar as conclusões parciais para o capítulo deconclusão, pois elas se impuseram como pressupostos dos tópicos

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seguintes. Por tal motivo, julguei que o texto seria demasiadamenterepetitivo se me dispusesse a reconstruir todos os pontos de modoanalítico. Assim, minhas considerações principais aparecem apenascomo uma espécie de resumo na primeira parte da conclusão, seguidapor uma reflexão crítica que encerra o trabalho. Todavia, reconheço quea opção que fiz impediu que eu identificasse e enfatizasse na conclusão,ponto a ponto, aquilo que avaliei ser positivo, negativo ou controversonas críticas que Amartya Sen faz às Teorias de Justiça Focadas emArranjos. Tentei moldar o texto à sugestão da professora Grazielly, eestou certo de que alcançaria um resultado final melhor assim, mas essatarefa passou a demandar um tempo incompatível com aquele que tenhoà disposição para o depósito final. Por fim, registro a observação feitapela professora Grazielly sobre a ausência de maiores considerações emrelação ao debate entre bens primários e capacidades. Nodesenvolvimento da pesquisa, várias discussões se mostraram bastanterelevantes e essa foi a que mais despertou interesse. Nas versõespreliminares deste texto, escrevi mais de uma dezena de páginas sobreessa discussão. Só não mantive a ênfase nesse ponto pelo risco de elefuncionar como um desvio temático que poderia comprometer aintegridade discursiva do meu trabalho. Mesmo reconhecendo que portrás das críticas de cunho metodológico de Amartya Sen às Teorias deJustiça Focadas em Arranjos pode estar o debate entre bens primários ecapacidades, uma avaliação detida sobre essas alternativas requer umdesvio fundamental que poderia escapar ao recorte que propus e, alémdisso, não ajudaria na compreensão dos acertos e equívocos das críticasde Amartya Sen no plano metodológico. De qualquer modo, acrescialgumas notas de referência e preparei o conteúdo que pesquisei sobre otema para uma publicação apartada.

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