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7 INTRODUÇÃO Em geral, ser mulher no século XIX era levar uma vida à parte. À parte das discussões sobre política, educação, cultura e economia. À parte na participação dos espaços públicos, como cargos governamentais, ou seja, era estar de fora das decisões relevantes para a cidade e para o País onde viviam. Seus lugares eram, prioritariamente, dentro de casa, sendo a “rainha do lar” dos seus maridos. Por outro lado, havia, ainda, as que trabalhavam, chegando a serem exploradas no trabalho, como as de classes mais baixas, as escravas, por exemplo. Ou, então, as que foram absorvidas pelas fábricas, mediante as mudanças impulsionadas pela Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo. Pessoas do sexo feminino dominando a leitura, a escrita e dispondo de um espaço para expressar idéias? Era um privilégio para poucas e, em geral, bem nascidas, cuja posição social era elevada. Quando possuíam acesso à educação, esta se limitava ao extremamente necessário para desempenharem um bom papel de mãe e esposa. Em diversas partes do mundo, as mulheres não podiam votar nem serem votadas, lhes era negado optar por uma profissão e muitas vezes sequer podiam escolher seus maridos. Enfim, elas eram subjugadas às decisões e às preferências do pai, maridos e, na falta de ambos, dos irmãos. Contanto que fossem do sexo masculino. Entretanto, na mesma proporção em que se instalam as limitações, também aparecem as contestações. E, o século XIX, é marcado por ser um período em que mulheres, em diferentes partes do mundo, começam a se mobilizar contra essa “determinação social” por sexo e a receber uma mínima alfabetização, exigência do capitalismo que se consolidava. Como resultado, tem-se o movimento denominado de “Feminismo” que, oriundo da Europa, acaba por ser propagado pelo Brasil.

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INTRODUÇÃO

Em geral, ser mulher no século XIX era levar uma vida à parte. À

parte das discussões sobre política, educação, cultura e economia. À parte

na participação dos espaços públicos, como cargos governamentais, ou

seja, era estar de fora das decisões relevantes para a cidade e para o País

onde viviam. Seus lugares eram, prioritariamente, dentro de casa, sendo a

“rainha do lar” dos seus maridos.

Por outro lado, havia, ainda, as que trabalhavam, chegando a

serem exploradas no trabalho, como as de classes mais baixas, as

escravas, por exemplo. Ou, então, as que foram absorvidas pelas fábricas,

mediante as mudanças impulsionadas pela Revolução Industrial e a

consolidação do capitalismo.

Pessoas do sexo feminino dominando a leitura, a escrita e

dispondo de um espaço para expressar idéias? Era um privilégio para

poucas e, em geral, bem nascidas, cuja posição social era elevada. Quando

possuíam acesso à educação, esta se limitava ao extremamente necessário

para desempenharem um bom papel de mãe e esposa.

Em diversas partes do mundo, as mulheres não podiam votar

nem serem votadas, lhes era negado optar por uma profissão e muitas

vezes sequer podiam escolher seus maridos. Enfim, elas eram subjugadas

às decisões e às preferências do pai, maridos e, na falta de ambos, dos

irmãos. Contanto que fossem do sexo masculino.

Entretanto, na mesma proporção em que se instalam as

limitações, também aparecem as contestações. E, o século XIX, é marcado

por ser um período em que mulheres, em diferentes partes do mundo,

começam a se mobilizar contra essa “determinação social” por sexo e a

receber uma mínima alfabetização, exigência do capitalismo que se

consolidava. Como resultado, tem-se o movimento denominado de

“Feminismo” que, oriundo da Europa, acaba por ser propagado pelo Brasil.

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Nas primeiras décadas do século, começam a aparecer

produções de autoria feminina como livros, artigos em jornais, até mesmo

periódicos dirigidos por elas, os quais continham reivindicações femininas e

feministas, como o direito à educação, ao voto, ao divórcio, entre outras.

Porém, como critica a pesquisadora Zahidé Muzart (2003), há uma

tendência brasileira a esquecer as mulheres que agiram politicamente, isto

é, as feministas. Em contrapartida, as que compactuaram com ditaduras e

opressões “ou simplesmente foram senhoras burguesas bem comportadas”,

(p.227), como define a pesquisadora, foram louvadas.

De fato, é preciso relembrar as ações de diversas mulheres que,

mesmo vivendo sob limitações e determinações sociais estreitas, usaram a

literatura e os jornais para propagar e defender os ideais feministas. No

Ceará, as histórias não são tão diferentes. A capital e o Interior sediaram

produções literárias de escritoras cujo conteúdo contestava o veto de

acesso da mulher ao espaço público. Em suma, elas abordavam temáticas

relacionadas com a vivência da mulher em sociedade.

Um exemplo é a escritora, professora e jornalista cearense Alba

Valdez, pseudônimo de Maria Rodrigues Alves Peixe. No século XIX, em

1877, ela veio para Fortaleza. Aqui estudou, formou-se e também

contribuiu, por meio da imprensa, para difundir as lutas femininas por

igualdade entre homens e mulheres, mesmo convivendo com o consenso

da “rainha do lar”, defendido pela sociedade patriarcal.

A intenção deste trabalho é registrar a história de Alba Valdez e

realizar uma análise de suas produções literárias nos jornais, a fim de

entender sua relação com o contexto, no qual estava inserida. O objetivo foi

identificar como ela utilizou os periódicos para propagar as temáticas do

feminismo no Estado e fora dele.

No primeiro capítulo, destaco características do Estado do Ceará

e do Brasil durante o século XIX. Em especial, foram narradas as mudanças

provocadas pela vinda da família real ao Brasil, ainda no início do século e o

surgimento da imprensa no País, como delineiam Aírton de Farias (1997),

Nelson Sodré (1983) e Isabel Lustosa (2000). Exponho ainda a relação com

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a Inglaterra, por conseguinte as transformações geradas pela Revolução

Industrial e a consolidação do modo de produção capitalista, produzindo as

modificações estruturais, econômicas, sociais e políticas ocorridas em

Fortaleza, tal como enumera José Ramos Tinhorão (2006). Em seguida,

retrato o período Belle Époque, por conta da estreita relação com a França,

e a adoção dos costumes franceses na capital, os quais contrastavam com

a seca que assolou estados nordestinos nessa época, conforme destacam

Sebastião Rogério Ponte (2001) e Lira Neto (1999). Desse século, discorro

ainda sobre o surgimento da imprensa no Estado, como detalham Geraldo

Nobre (1974) e Demócrito Rocha (1966). E, por fim, apresento como era

vista a mulher no século XIX, isto é, as limitações, as funções, a educação,

as quais eram subjugadas, de acordo com as histórias contadas por Norma

Telles (2002) e Michelle Perrot (1992).

No segundo capítulo, enfoco as iniciativas das mulheres de levar

a escrita feminina para os jornais. A partir daí, discuto o feminismo, quais

suas reivindicações, seus ideais, seu surgimento, sua ideologia, a relação

com a literatura, com o capitalismo e com os meios de comunicação de

massa, conforme define John B. Thompson (1995). Em relação à literatura,

foi estabelecida a ligação entre os gêneros predominantes da época como o

Romantismo, o Realismo e o Naturalismo com a escrita das mulheres, como

interpretam as pesquisadoras Zahidé Muzart (2003), Natália Méndez (2005),

Constância Lima Duarte (2003), Lygia Fagundes Telles (1997), entre outras.

Realizo também uma discussão acerca das reações diante da apropriação

das mulheres dos meios de comunicação e sua imersão na Esfera Pública,

definida por Jürgen Habermas (1984).

No terceiro capítulo, elaboro uma biografia de Alba Valdez,

interligada com a situação da mulher no Brasil. Nesse tópico, foi mostrada a

história da escritora cearense, desde sua chegada, formação e sua atuação

na sociedade literária do Estado, como registrados por Dollor Barreira

(1962), Raimundo Girão e Conceição Sousa (1987), Antônio Sales (1987) e

Olga Monte Barroso (1971). Foram listadas suas produções em jornais e

revistas, sobretudo, cearenses. Procedo a uma análise, segundo as

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indicações de Michel Foucault (2003) e Rosalind Gill (2003), de cinco textos

da autora (um conto, um ensaio, uma crônica, um artigo e uma entrevista)

na revista O Lyrio e nos jornais O Bandeirante, O Nordeste, o Jornal do

Comércio e O Estado, em cinco décadas diferentes do século XX. Essas

produções da escritora, professora e jornalista cearense são algumas das

ainda encontradas atualmente, apesar dela ter iniciado sua colaboração nos

periódicos no final do século XIX.

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CAPÍTULO I: RECORTES DO SÉCULO XIX CEARENSE

Certamente o Céu criou as mulheres para um

melhor fim, que para trabalhar em vão toda sua vida.

Nísia Floresta Brasileira, escritora e jornalista potiguar, em 1832.

Maria. Quem nunca conheceu uma Maria? Um nome tipicamente

comum no Ceará, que, como tantos outros, precisa de um complemento

que o diferencie, seja este um sobrenome ou um feito. Assim como José,

graça essa que se imortalizou devido aos versos de um poeta mineiro1, mas

também dependente de um “algo a mais”.

Na verdade, quando se fala de Maria ou José, é necessário

contar suas histórias para que os diferentes “Marias” e “Josés” possam estar

presentes nas recordações de alguns. A importância dessa lembrança dá-

se pelo fato da Província do Ceará2 ter recebido tanto “Marias” como

“Josés”, os quais, ainda hoje, precisam ser lembrados, pois compõem as

memórias das famílias ou, ainda, contribuíram de alguma forma para

mudanças na Província ou na vila, que mais tarde seria sua capital.

1.1 A VILA EMERGENTE

Com mais intensidade no final do século XIX e nas primeiras

décadas do século XX, o Brasil, como um todo, passou por um processo de

transformações sócio-econômicas: cidades cresceram; desenvolveram-se

os meios de transportes e comunicação; surgiram companhias de

navegação, de bonde e de iluminação a gás; implantaram-se indústrias nas

cidades; de outros países vieram mão-de-obra imigrante e, finalmente ao

término do século XIX (1888), a escravidão foi abolida. Essas mudanças,

1 Poesia “José” (1942), do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). 2 O historiador e professor Aírton de Farias (1997:59) esclarece que ‘província’ foi a nova denominação dada às ‘capitanias’, por volta de 1821.

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também urbanas, foram impulsionadas principalmente por conta da

chegada da família real ao País, em 1808. O motivo da vinda foi fugir das

tropas napoleônicas, que, no ano anterior, invadiram a Península Ibérica. O

Rio de Janeiro, então, tornou-se a sede do Império.

A primeira medida tomada por Dom João VI já transformara o

comércio, as relações sociais e a organização brasileira. Como passo inicial,

os portos da colônia são abertos para os navios das “nações amigas”,

terminando, por pressão inglesa, com o monopólio português sobre a

colônia. O interesse da Inglaterra nessa abertura foi o provável mercado

consumidor e a mão-de-obra que encontraria no Brasil.

De fato, quando a monarquia portuguesa transfere-se para a

colônia com a ajuda inglesa, a Inglaterra já havia passado, por volta de

1760, pela Revolução Industrial, que transformara os modos de produção.

“Todas as atividades da sociedade passaram a integrar o circuito da compra

e venda. A preocupação econômica toma conta da vida” (KOSHIBA,

2000:367). Nesse primeiro momento, a economia baseou-se em três

fatores: o ferro, o carvão e as máquinas a vapor, “propiciando o surgimento

das primeiras unidades produtivas, as fábricas”, conforme Sevcenko

(1998:08).

Em geral, com as fábricas e máquinas, a Inglaterra iniciou um

processo de produção em maior escala que, conforme Aquino et.al (2003),

indicam “representou o processo de mecanização da indústria, até então

como uma produtividade limitada porque baseada na produção artesanal ou

manufatureira” (p.187). Essa economia industrializada teve seu momento de

expansão com a chamada Segunda Revolução Industrial ou Revolução

Científico-Tecnológica, em meados de 1860.

De acordo com Sevcenko (1998), o advento dessa segunda

revolução industrial, resultou na aplicação das recentes descobertas

científicas da época aos processos produtivos. “[...] ela possibilitou o

desenvolvimento de novos potenciais energéticos, como a eletricidade e os

derivados de petróleo, dando assim origem a novos campos de exploração

industrial” (pp.08-09).

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Além disso, com a Revolução Científico-Tecnológica, houve uma

nova forma de organização. Para Nilson Lage (1979), “a Revolução

Industrial representou uma etapa mais avançada do processo do

capitalismo” (p.21). Este, “cujo início coincidiu com a Revolução Industrial”

(AQUINO et. al, 20003:183) passou a determinar o lucro nas relações

comercias.

Isto é, a sociedade agora passa a ser capitalista, baseada no

acúmulo de capital e na liberação da mão-de-obra. Os agentes desse

processo eram os denominados de burguesia, composta pelos burgueses,

oriundos dos burgos (comércios), nos quais a subsistência valia-se da troca

de mercadorias e do lucro.

Com essa nova fase, a Revolução Industrial começa a se

espalhar por outros países, pois, até então, se restringiu, praticamente, à

Inglaterra. Agora, países da Europa como Bélgica, França, Alemanha, Itália,

Rússia, entre outros, também passam a adotar novos valores e formas de

organização, resultando no fortalecimento da burguesia. O Brasil, por essa

parceria com a Inglaterra, também passa por profundas mudanças.

A economia capitalista, como não poderia deixar de ser, tornou-se global. Ela consolidou essa sua característica de forma mais intensa durante o século XIX, à medida que foi estendendo suas operações para regiões cada vez mais remotas do planeta, transformando assim essas áreas de modo mais profundo. Sobretudo, essa economia não reconhecia fronteiras, funcionando melhor onde nada interferia na livre movimentação dos fatores de produção. O capitalismo era não só internacional na sua prática, mas internacional na sua teoria. (HOBSBAWM3 apud SEVCENKO, 1998:08).

Com a abertura do comércio da colônia para Inglaterra criaram-se

as condições para as transformações no Brasil, já citadas anteriormente.

Em paralelo a essas mudanças de produção, a monarquia portuguesa

também fundou faculdades médicas na Bahia e no Rio de Janeiro, a

Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico, o Banco do Brasil e instalou a

3 HOBSBAWM, Eric. The age of empire, p.41

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primeira tipografia denominada de Impressão Régia, onde começaria a

imprimir a Gazeta do Rio de Janeiro, ainda na primeira década. “Estas

transformações, ao mesmo tempo que abriam uma nova fase da cultura

brasileira, expunham também o grau de retardamento com relação à cultura

européia” (PINTO, 1989:24).

Na Província do Ceará, também houve um processo de

transformações. Desde as primeiras décadas do século XIX, a Vila de

Nossa Senhora de Assunção ou Vila do Forte, depois nomeada de

Fortaleza4, atraiu imigrantes oriundos das diversas vilas da Província. De

acordo com Tinhorão (2006), essa emigração foi estimulada pela

possibilidade de mercado de trabalho e, consequentemente, novos

empregos gerados pela urbanização crescente na capital.

As mudanças urbanísticas deram-se, sobretudo, devido ao

desenvolvimento econômico autônomo, conseguido após a separação entre

as Capitanias do Siára e a de Pernambuco, em 17995. Agora, a capitania

deixava de ser “secundária”, passava a receber ordens diretamente de

Lisboa e, em vez de capitães-mores, seria administrada por governadores

nomeados pela metrópole.

O progresso da Província concretizou-se com os equipamentos

urbanos e os serviços públicos que passaram a ser oferecidos à população

local. Em algumas ruas centrais, iniciou-se o processo de calçamento. “Em

1857, começaram os calçamentos a defender os pés dos fortalezenses

contra a quentura das areias, conquanto ainda feitos de pedra tosca, por

operários sem a devida habilitação” (GIRÃO, 1979:104); linhas de vapor em

direção à Europa e ao Rio de Janeiro a partir de 1856; sistema de

canalização d’água, substituição do óleo do peixe pelo gás carbônico na

iluminação pública e a Biblioteca Pública em 1867; Educandários como o

Liceu em 1845 e o Seminário da Prainha e o Colégio Imaculada Conceição,

4 José Ramos Tinhorão (2006: 23) traz em nota que somente em 1823 a Vila de Nossa Senhora da Assunção ou Vila do Forte passaria a cidade. Para isso, o nome adotado foi Cidade de Fortaleza de Nova Bragança. A Vila é levada à categoria de cidade por ordem de D. Pedro I, no dia 17 de março de 1823. 5 A separação das capitanias aconteceu por meio da carta-régia “Amor e delícia do seu povo”, da Rainha D. Maria I, “a louca”, em 17 de janeiro de 1799.

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em 1864; transporte coletivo por bondes de tração animal em 1880;

telefonia em 1883 e telégrafos em 1891.

“Como reflexo desse surto de progresso, cidades como Aracati,

Icó, Sobral, Quixeramobim, e Granja tornaram-se centros polarizadores da

economia da Província, e a Vila de Fortaleza pôde assumir, afinal, o seu

papel de cabeça administrativa” (TINHORÃO, 2006: 23). Para se ter uma

idéia das migrações, o autor também enumera o contingente populacional

registrado em Fortaleza, à medida que alguns processos urbanísticos foram

instalados na cidade:

A capital cearense acusou, em pouco mais de 70 anos, os seguintes índices de aumento populacional: três mil habitantes em 1814, quando a receita da Câmara era de 154 mil-réis; oito mil e novecentos moradores em 1848, quando se inaugurou a iluminação pública a azeite de peixe; dezesseis mil em 1865, quando se abriu a primeira biblioteca pública; vinte e seis mil novecentos e quarenta e três em 1877, ao ser fundada a Companhia Ferro-Carril e, finalmente, trinta e cinco mil e sessenta e cinco em 1890, quando o surto do desenvolvimento chegou ao seu final. (TINHORÃO, 2006: 23-24).

Até 1799, a economia do Ceará era subsidiária, desenvolvendo-

se apenas para garantir alimentos como charques, açúcar, entre outros,

para os senhores de engenhos pernambucanos, para os quais a produção

era destinada e subordinada desde 16566. “O comércio direto com Lisboa e

depois com outras praças da Europa seria a grande mola da animação da

vida da Cidade. Engrossaram as trocas mercantis com os lucros dos

negociantes locais, fortalecendo o lastro de riqueza” (GIRÃO, 1979: 101).

No caso, o algodão, cujo cultivo já acontecia pelos índios antes mesmo da

chegada dos portugueses, era o principal produto da economia cearense.

Com a colonização, passou a fazer parte de toda a economia de

subsistência brasileira.

6 Antes dessa data, desde 1621, o Ceará era ligado ao Maranhão. Sobre o assunto ver Aírton de Farias (1997) págs. 40 a 46 e Revista Fortaleza, vol.3 Nossa Economia, Edição do Jornal O Povo, de 23 de abril de 2006.

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Por conta dele, o Ceará havia ingressado no mercado

internacional nas últimas décadas do século anterior, uma vez que a partir

da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, houve a

necessidade por parte das indústrias têxteis inglesas em importá-lo. Com a

quebra na insubordinação à Capitania de Pernambuco, o algodão passou a

ser uma das matérias-primas facilitadoras da urbanização local. “O algodão,

por vias de estimulantes financiamentos (...) entrou com peso substancial na

balança das exportações”. (GIRÃO, 1979:101).

A venda para o exterior foi intensificada no período de 1861-

1865, com a Guerra de Secessão nos Estados Unidos, conflito interno que

impediu que o País atendesse à demanda inglesa7 e garantiu ao Ceará um

crescimento econômico, provocando exaltação em parte da população:

Os homens descuidavam-se da mandioca e dos legumes, as próprias mulheres abandonavam os teares para o plantio do precioso arbusto; era uma febre que a todos alucinava, a febre da ambição (...) Durante a safra, o comércio da capital apresentava uma animação extraordinária: ruas e praças cheias de animais que tinham transportado do interior os fardos de algodão; lojas apinhadas de camboeiros, de freteiros, de donos de mercadorias, cada qual com seu rol de encomendas, a comprar o necessário e o supérfluo”. (GIRÃO apud FARIAS, 1997: 105).

Diante dessa efervescência em torno do algodão, vale a pena

atentar para o fato de que começaram a surgir as primeiras fábricas

cearenses ligadas, principalmente, ao algodão e ao setor têxtil. Por outro

lado, fica evidente a separação de classes que já se delineava na Província,

pois as fábricas vinham “produzindo tecidos grosseiros para o consumo das

classes mais pobres (a elite usava tecidos importados), e para utilização no

ensacamento de matérias-primas”. (FARIAS, 1997:106). Outras fábricas

ligadas ao cigarro, calçados, bebidas, sabão, chapéus também apareceram

na Província, apesar de não possuírem muita influência na economia

cearense, já que os estabelecimentos, em geral, eram pequenos e de

mínima produção. 7 Aírton de Farias (1997) assinala que pelo porto de Fortaleza, entre os anos 1870-75, mais de 30 kg de algodão foram escoados. De 1865-70, foram 18.620 kg.

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Em resumo, a economia local possuía seus sustentáculos na

agropecuária latifundiária e no próprio comércio exportador de produtos

primários e importados de manufaturados. Ainda na segunda metade do

século XIX, ocorre uma diversificação nos itens exportados. Agora, a cera

de carnaúba, a borracha de maniçoba e o café8 compunham as opções para

serem importadas.

Os novos produtos, e as transformações resultadas do comércio

deles, aconteciam em paralelo às mudanças também no âmbito nacional.

Por conta dessa diversificação, Raimundo Girão (1979) registra a nova

movimentação no porto da capital, que cresceu notadamente a partir da

segunda metade do século XIX:

As entradas e saídas de 1858 a 1863 cresceram de 65%. De 1863 a 1868, o aumento foi de 75%. A navegação ao longo curso, em 1858, era feita por 25 navios e, em 1866, por 65, quase uma triplicação, em dez anos (...) Em 1858, desceram âncora no porto de Fortaleza 243 embarcações e, no exercício de 1867-68, para mais de 300. Na tonelagem total, o acréscimo, no aludido decênio, foi de 150%. (GIRÃO, 1979: 104).

Segundo Ponte (2001), a inserção do Brasil no rol das

exportações desses produtos para as principais potências européias,

contribui para a emergência de novos grupos burgueses, agrários e urbanos

e, ainda, para formação de setores médios como bacharéis, médicos,

jornalistas, engenheiros etc. Deve-se ressaltar que o café, produto que

começara a ser exportado, também contribuiu para algumas modificações

em Fortaleza e, em especial, para a adoção de novo valores na Província.

No Ceará, o cultivo dos grãos de café aconteceu, principalmente,

em sítios localizados em serras como Baturité, Maranguape, Meruoca,

Aratanha, Serra Grande, Uruburetama e Araripe, onde o solo, a temperatura

8 Farias (1997:107) refere-se que o café começou a ser produzido no País ainda no século XVIII, mais precisamente em 1727, no Pará.

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e o clima eram favoráveis. No início, inclusive, a cafeicultura foi reduzida a

áreas de “fundo de quintal”, exclusivamente para o consumo caseiro9.

Com a penetração em Baturité na produção (em 1824) e os bons

preços no mercado, a procura aumentou. Para dar conta da colheita, foram

comercializados para o Estado negros e imigrantes que seriam usados

como mão-de-obra escrava e barata. Esses escravos seriam, anos mais

tarde, os primeiros a conquistarem o fim da escravidão, em 188410.

Em 1846, o café passou a constar de vez na lista de exportações

cearenses, sendo, até mesmo, vendido para outras províncias como Piauí,

Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, e Bahia. “Superou, em valor,

as exportações de algodão entre os anos de 1860-61 a 1864-65 e no ano

de 1877-78. De 1890 em diante, os dois gêneros conservaram mais ou

menos o mesmo volume..” (GIRÃO11 apud FARIAS, 1997:107).

Além do perfil comercial, o café foi, nessa época, um dos

responsáveis pelas mudanças ocorridas no âmbito social dos cearenses.

Em torno dos cafezais e dos “barões de café”, houve a formação de uma

“pequena nobreza”, como define Farias (1997: 108). Segundo o historiador,

não uma nobreza parecida com a do Centro-Sul do País, mas que, ao

adotar novos hábitos, costumes e posses obteve projeção na vida

econômica e política da Província.

As famílias Queiroz, Holanda, Linhares, Caracas, Ferreira Lima,

Dutra e Sampaio são representantes dessa época. A “importância” dessa

nobreza foi sentida justamente pelo fato de serem os filhos dos “barões do

café”, deve-se frisar que do sexo masculino, que iriam estudar em cidades

brasileiras como Recife ou em países da Europa, retornando com ideais de

libertação, emancipação entre outros para a Província do Ceará.

9 Farias (1997:107) relata que o café foi verificado no Ceará ainda em 1747, quando o rico proprietário José de Xerez Furna Uchoa, ao regressar da França, plantou uma muda de café no Sítio Santa Úrsula, na serra da Meruoca. Desde então, a atividade se espalhou para outras localidades. 10 Sobre o assunto ver SOUZA, Ésio de. A Fagulha da Abolição. Fortaleza: Livro Técnico, 2004. 11 GIRÃO, Raimundo. Evolução histórica cearense. Fortaleza: BNB, ETENE, 1985.

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Além desses filhos “doutores” que voltariam de outras cidades e

países, havia uma classe emergente que também seria seduzida pelos

interesses urbanos de outras localidades. Como reforça Tinhorão (2006),

essas transformações pelas quais Fortaleza passou, devido à urbanização,

contribuíram para a formação da classe média na cidade.

Alfabetizada, essa nova classe teve oportunidade de trabalhar

nos serviços públicos como água, iluminação, bondes, estradas de ferro e

administração. De fato, ela ainda depositou no aperfeiçoamento intelectual a

esperança de ascender socialmente, sendo um impulso para os

movimentos literários:

Eis como surgiu uma camada média, composta de burocratas que, por não estarem diretamente ligados à produção de riqueza, adotaram o aperfeiçoamento cultural como critério de ascensão social, passando a interessar-se pelos três temas que apaixonavam igualmente as camadas urbanas da Corte: a literatura, a libertação dos escravos e a República. (TINHORÃO, 2007:24).

1.2 LA “BELLE” FORTALEZA

Apesar de todos os exemplos de progresso presentes na capital

cearense desde o início do século, o marco da “modernidade” fortalezense

foi a implementação de um novo plano urbanístico. Em 1875, Adolfo

Hebster, engenheiro da Província do Ceará e da Câmara Municipal de

Fortaleza, contratado 20 anos antes pela Província de Pernambuco,

concluía a Planta Topográfica da Cidade de Fortaleza e Subúrbios, baseada

nas reformas realizadas em Paris pelo Barão de Haussman, no início do

século XIX. O projeto, iniciado pelo arruador Silvia Paulet, em 1818,

objetivava disciplinar a expansão urbana e, como acentua Sebastião

Rogério Ponte (2001), “aformosear a cidade”.

Segundo o novo mapeamento, a cidade passava a ser traçada

em xadrez, sendo as ruas alinhadas em 90º12. Dessa forma, Fortaleza

12 Neto (1999:87) e Ponte (2001:23) afirmam que o traçado em xadrez e, por conseguinte, as vias alinhadas e cruzadas em ângulos de 90º era usado desde os tempos do grego Alexandre,

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ganhava três boulevards (avenidas do Imperador, Dom Manuel e Duque de

Caxias), por onde aconteceria o fluxo de pessoas e produtos. “A

disciplinarização do espaço urbano da Capital cearense a partir do final do

século passado acha-se estreitamente relacionada com um leque de

medidas técnicas voltadas para o reajustamento social das camadas

populares, sobretudo por meio do controle da saúde, dos corpos, gestos e

comportamentos” (PONTE, 2002:25).

Nessa época, o Brasil já não era mais colônia portuguesa, a

Independência havia sido declarada, em 1822. Até 1889, ano da

proclamação da República, o imperador do Brasil foi D. Pedro II, que se

destacou pelo interesse na cultura, na literatura e no esforço de tornar o

País “civilizado” diante do mundo. “Pedro II fortaleceu sua imagem de

urbanidade civilizada ao adquirir o hábito de presidir sessões do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, o principal órgão erudito no Brasil, até

então”. (SKIDMORE, 1998:74).

A exemplo do Brasil, como esclarece Ponte (2001), as medidas

para disciplinar e remodelar a capital estavam associadas às noções de

progresso, civilização e luxo agora inclusos nos discursos e práticas dos

novos setores dominantes. A burguesia emergente, aliada aos latifundiários

do café, assimila idéias e valores franceses. Os integrantes da nova

“nobreza” eram:

[...] autoproclamados como restauradores da situação de ‘atraso’ em que o País estaria encerrado (...) travaram-se vibrantes campanhas e renhidas lutas sobre como organizar o novo Brasil Republicano, incluindo, entre outras, a questão da reordenação urbana. (PONTE, 2001: 27).

De fato, esse intercâmbio entre os países foi possível por

Fortaleza ter se tornado o principal entreposto comercial do Ceará, com a

produção algodoeira. E, por outro lado, como ressalta Sebastião Ponte

(2001), também houve o contato de jovens estudantes, filhos dos

latifundiários do café, com correntes como o positivismo, pragmatismo e

o Grande. Ao longo da história, também seria dotado por ingleses e espanhóis para corrigir becos e como estratégia política de controlar e vigiar os motins e manifestações nas vias públicas.

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racionalismo científico13 vigentes na Europa e no Brasil durante o século

XIX. Elas eram estudadas nas academias de Direito e Medicina, que

surgiram no País. A partir desses pensamentos, houve o fortalecimento da

idéia de ordem, da comprovação empírica.

Afinal, como símbolo do Positivismo no Brasil, tem-se a bandeira

do País, adotada na Independência, na qual está impressa a mensagem de

“ordem e progresso”. Ou seja, para progredir a sociedade precisa se

organizar, ideal positivista. Assim, vê-se que o projeto da planta topográfica

condizia com as novas “preocupações” vigentes. “Nesse contexto, o plano

de Hebster, com boulevards e disciplinarização da malha urbana, surgiu

como um dos itens centrais do conjunto de tentativas para remodelar a

Capital, embelezando-a e racionalizando-a” (PONTE, 2001:25).

Dessa forma, percebe-se que a ligação entre Fortaleza e

Europa, em especial com a França, inseriu na aristocracia fortalezense a

idéia de que a sofisticação dos hábitos, as roupas elegantes, o falar francês

e o envio dos filhos para estudar no exterior, davam status:

Fortaleza era uma festa. A cidade se sentia a própria Paris dos Trópicos. A febre de consumir produtos ingleses havia sido deixada de lado em troca da procura desenfreada por artigos franceses, nova matriz das novidades (...) Saias ficaram menores, menos armadas. Cavalheiros de gosto refinado trocaram o preto por ternos de cores mais claras. Pelas ruas do Centro, por todos os lados, as lojas ostentavam tabuletas escritas em francês (...) A pequena província de Fortaleza estava se transformando, a olhos vistos, em cidade de verdade. Fortaleza, a Paris dos Trópicos, descobria que sair à noite era chique. Noite feita de bailes, espetáculos teatrais, concertos vocais. (NETO, 1999:85-87).

Nesse período, denominado por Sebastião Rogério Ponte (2001)

de “Fortaleza Belle Époque”, há o interesse da emergente aristocracia

fortalezense em construir novas e deslumbrantes edificações. Na opinião

dele, isso ocorreu devido à assimilação pelas novas elites dos padrões e

13 O Positivismo é uma corrente filosófica, vigente no século XIX, que prega o empirismo, a comprovação científica como base para o conhecimento. Seu principal representante foi o francês Auguste Comte (1798-1857).

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valores europeus. Com as construções, ficaria evidente seu poderio

econômico e seu alinhamento com o senso estético do mundo moderno.

Para demonstrar o poderio, surgiram novos prédios e casas elegantes,

inclusive sobrados. “O número de casas baixas e modestas diminuía no

perímetro central, dando lugar a outras com estilos e fachadas mais

elaboradas, portando bandeirolas, persianas, cimalhas, cornijas, frontões

orgivais, varandas e balcões de ferro” (p.28).

Em meio à ordem e à modernização desejadas, a Fortaleza

civilizada, luxuosa e disciplinada teria que lidar com uma situação

inesperada, sobretudo para aquele momento de reajuste social. Em 1877,

no dia São José (19 de março), não choveu no Ceará. O inverno não

chegou e, como conseqüência, a seca assolou diversos estados

nordestinos14. “Com esse revés, a Paris cabocla não contava”, ironiza Lira

Neto (1999:87). Em função da perda das plantações, da morte de animais e

pessoas, da falta de comida, água e condições mínimas de permanência no

Sertão, centenas de retirantes, os quais também podem ser apelidados de

“Marias” e “Josés”, se deslocaram em direção à capital cearense.

Conforme registrou Lira Neto (1999), nos últimos meses desse

ano, cerca de 500 flagelados entraram, diariamente, em Fortaleza. No total,

dos 130 mil habitantes, pelos menos 110 mil eram retirantes.

A cidade inchou (...) Estavam por toda parte. Os abarracamentos na periferia já não eram mais capazes de abrigar todo mundo. Os flagelados ocupavam agora o centro de Fortaleza, arranchando-se debaixo dos cajueiros, no meio das praças, nos galpões... (NETO, 1999:88).

O interessante é observar que toda essa situação miserável

exposta nas ruas, agora alinhadas de Fortaleza, era “deixada de lado” por

boa parte da população local. A identificação do Ceará com a Europa traria

aspectos positivos e negativos. Em primeiro lugar, não apenas deixava os

fortalezenses “cegos” diante da desgraça da seca, por conta da

preocupação e exaltação com os costumes franceses, como ainda

14 Sobre o assunto consultar VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no Sertão: histórias das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000.

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contribuiu para relegar a mulher a uma posição social inferior a do homem,

embora alguns anos mais tarde esse mesmo contato influenciaria

positivamente para as mudanças no que se refere ao sexo feminino.

Deve-se levar em conta que o pensador positivista francês

Auguste Comte, além de defender o cientificismo já aderido no traçado em

xadrez, também se mostrava contra a emancipação feminina. Idéia essa,

pode-se supor, também absorvida e trazida pelos estudantes “nobres” no

regresso ao Ceará. De acordo com Perrot (1992):

Auguste Comte vai ainda mais longe, já que fala da ‘inaptidão radical do sexo feminino para o governo, mesmo da simples família’, em virtude da ‘espécie de estado infantil contínuo’ que caracteriza o sexo feminino. O doméstico não lhe poderia ser entregue sem controle; mas concorda-se em confiar às mulheres – dentro de certos limites – a família, a casa, núcleos da esfera privada. (PERROT, 1992:178).

Na opinião de Michelle Perrot (1992), o século XIX, diante das

teorias vigentes, acentua a racionalidade harmoniosa da divisão sexual.

“Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu

lugar quase predeterminados, até em seus detalhes” (p.178). Para reverter

esse quadro, as mulheres francesas ainda no século corrente, passam a

mostrar ações contrárias à tendência de exclusão e esse movimento

também chegará ao Brasil.

Um meio adotado pelas brasileiras, a exemplo de outras

mulheres pelo mundo, apresenta-se com a imprensa, cujo aparecimento se

dá ainda no século XIX, no Brasil e no Ceará. Embora, em verdade, a

apropriação pelo sexo feminino de jornais e revistas ainda demore um

pouco para acontecer.

1.3 E A IMPRENSA...APARECE!

No Brasil, a imprensa surge em paralelo às mudanças

econômicas e políticas decorrentes da vinda da família real ao Brasil, no

ano de 1808. Com a chegada dos monarcas portugueses, sabe-se que

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houve uma maior abertura da colônia para as transformações na Europa e,

consequentemente, para a adoção do modo de produção capitalista. Como

aponta José Marques de Melo (1985), a intensificação das relações de

troca, característica da organização capitalista, deposita na informação um

papel fundamental:

A intensificação e o refinamento das relações de troca, que ocorrem no bojo das transações capitalistas, as possibilidades de atuar e influir na vida da sociedade, que se afiguram na eclosão das revoluções burguesas, tornam a informação um bem social, um indicador econômico, um instrumento político. Não é acidental que o jornalismo tenha emergido historicamente na esteira dos acontecimentos que preparam e tornam realidade a transformação das sociedades européias. (MELO, 1985:11).

O Brasil também ingressara na produção capitalista, no decorrer

do século XIX. Com o aparecimento de fábricas, indústrias, máquinas e a

burguesia, aqui também era necessária a troca de informações entre

cidades e estados de cunho social, cultural ou financeiro. O relevante no

processo seria, ainda, a rapidez da informação e a reprodução do

conhecimento. Eis a razão da imprensa e do jornalismo no País.

A própria imprensa, que viabilizou tecnologicamente o jornalismo, também surgiu como resultado de crescentes exigências sócio-culturais que se manifestaram na nascente engrenagem burocrática, nas operações mercantis e financeiras que movimentavam as cidades, na circulação mais rápida das idéias e dos inventos que tornaram a reprodução do conhecimento um fator político significativo. (MELO, 1985:12).

De fato, em 13 de maio, no Rio de Janeiro, foi inaugurada a

Impressão Régia15, com a qual se imprimiu o jornal oficial “Gazeta do Rio de

Janeiro”, em 10 de setembro do mesmo ano. Como critica Geraldo Nobre

(1974), “o Brasil foi um dos últimos países civilizados a ter imprensa e,

consequentemente, jornalismo” (p.59).

15 Lustosa (2000:66) esclarece que a impressão Régia foi responsável por todas as publicações no Rio de Janeiro até 1821.

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Até então, as letras impressas eram proibidas aqui16. As poucas

tentativas de estabelecer tipografias na Colônia, esbarraram nas

autoridades portuguesas17. “Não convinha a Portugal que houvesse

civilização no Brasil. Desejando colocar essa colônia atada ao seu domínio

não queria arrancá-la das trevas da ignorância” (AZEVEDO apud SODRÉ,

1983: 18). Ou seja, manter a Colônia portuguesa alheia à cultura era mais

conveniente para a Metrópole. Assim exerceria melhor o seu poder de

dominação.

No entanto, após a instalação da família real no Rio de Janeiro,

as cidades sofreram diversas mudanças, o que se tornou “impossível”

controlar a troca de informações que se tornava mais preciosa para as

relações capitalistas. Segundo Nilson Lage (1979), “uma conseqüência

particular da Revolução Industrial foi a mecanização de produção dos

jornais”. No caso, por todo o mundo, houve implementação no processo de

produção de jornais. O Brasil, embora tardiamente, também participaria

dessa mecanização, apesar de seu início ainda ter se dado por acaso.

Como admitem Nelson Werneck Sodré (1983) e Isabel Lustosa

(2000), a implantação da gráfica só aconteceu devido à iniciativa do futuro

conde da Barca e ministro de Negócios Estrangeiros e da Guerra do rei, D.

Antônio de Araújo18. Na confusão da fuga da família de D. João VI para a

colônia, D. Antônio ordenou que colocassem no porão do navio Medusa o

material fotográfico que havia sido comprado para atender à Secretaria dos

16 De acordo com Lustosa (2000:65) o Brasil, a África e a Ásia eram, na época, os únicos que não produziam palavras impressas. Assim como o Brasil colonial, ao contrário de alguns vizinhos, não possuía universidades nem bibliotecas. 17 Conforme Lustosa (2000: 66), foram quatro as tentativas de instaurar gráficas na Colônia. A primeira foi registrada no ano de 1706, quando um negociante tentou imprimir letras de câmbio e orações devotas. A Carta Régia desse ano mandou seqüestrar as letras impressas e notificar os donos da gráfica para que não mais imprimissem nem mandassem imprimir livros. A segunda aconteceu em 1746. No caso, Antônio Isidoro da Fonseca, antigo impressor de Lisboa, tentou estabelecer uma gráfica, mas poucos meses depois a Ordem Régia de 1747 mandava que fosse apreendido todo o material. Em 1807, o padre José Joaquim Viegas de Menezes imprimiu em Vila Rica um opúsculo de 18 páginas. Por último, em 1820, o mesmo padre, patrocinado pelo comerciante Manuel Joaquim Barbosa improvisou uma tipografia inteira. 18 Lustosa (2000:453) traz em nota que D. Antônio de Araújo Azevedo foi nomeado o primeiro conde da Barca, em 17 de dezembro de 1815. Neste mesmo ano, quando o Brasil foi elevado à categoria de Reino, ele era o principal ministro da colônia.

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Negócios Estrangeiros e da Guerra, em Lisboa. Ao chegar ao Brasil, a

gráfica recém-adquirida foi instalada na casa de D. Antônio até que D. João

VI tomasse conhecimento da existência e, em decreto, anunciasse a

administração e a função da mesma:

Tendo-me constado que os prelos que se acham nessa capital eram os destinados para a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, e atendendo à necessidade que há de oficina de impressão nestes meus Estados, sou servido que a casa onde eles se estabeleceram sirva inteiramente de Impressão Régia, onde se imprimam exclusivamente toda a legislação e papéis diplomáticos, que emanarem de qualquer repartição do meu Real Serviço, ficando inteiramente pertencendo o seu governo e administração à mesma secretaria (...) Palácio do Rio de Janeiro, em 31 de maio de 1808. (SODRÉ, 1983: 19)

Não é tão difícil imaginar a que se refere João VI quando

declara “atendendo à necessidade que há de impressão nestes meus

Estados”. Como justifica Lustosa (2003), “também havia a necessidade de

se fazer imprimir os atos do governo e de divulgar notícias interessantes à

Coroa” (p.08). Por isso mesmo, o primeiro jornal impresso pela família real

no Brasil, o “Gazeta do Rio de Janeiro”, era apenas uma versão adaptada

da “Gazeta de Lisboa”, do qual ainda herdou a divulgação de notícias

acerca da vida imperial européia:

Por meio dela só se informava ao público, com toda a fidelidade, do estado de saúde de todos os príncipes da Europa e, de quando em quando, as suas páginas eram ilustradas com alguns documentos de ofício dos dias natalícios, odes e panegíricos da família reinante. Não se manchavam essas páginas com as efervescências da democracia, nem com a exposição de agravos. A julgar-se do Brasil pelo seu único periódico, devia ser considerado um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado um só queixume. (SODRÉ, 1983: 20).

Em geral, o jornal “Gazeta do Rio de Janeiro” continha quatro

páginas (poucas vezes mais), impresso em pobre papel, semanal de início,

depois três vezes por semana, chegando a custar 3$800 a assinatura

semestral e 80 réis o número avulso.

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Embora o jornal fosse rodado na Impressão Régia, a

administração da mesma caberia a uma junta que deveria “examinar os

papéis e livros quem se mandassem publicar e fiscalizar que nada se

imprimisse contra a religião, o governo e os bons costumes” (SODRÉ,

1983:18). Ainda como resume o autor, “era a censura” (p.18).

Todavia, por mais que houvesse a censura e as proibições

quanto às publicações de folhas impressas no Brasil, Portugal não

conseguiu impedir a criação do primeiro jornal brasileiro, que, bem verdade,

não foi o “Gazeta do Rio de Janeiro”, mas o “Correio Braziliense”, fundado,

redigido e dirigido por Hipólito da Costa, natural de Sacramento, na

Cisplatina.

O primeiro número desse periódico apareceu em primeiro de

junho de 1808, três meses antes da data de impressão do “Gazeta do Rio

de Janeiro”. Ele foi impresso em Londres. Como explica Lustosa (2003), por

mais que tenha sido publicado em outro País, o jornal de Hipólito não

deixava de ser brasileiro:

Chamou-o de Correio Braziliense porque, naquele começo de século XIX, chamava-se brasileiros aos comerciantes que negociavam com o Brasil e os brasilianos aos índios. Brazilienses eram os portugueses nascidos ou estabelecidos no Brasil e que se sentiam vinculados ao Brasil como à sua verdadeira pátria. Ao dar o seu jornal o nome de Correio Braziliense, Hipólito demonstrava que queria enviar sua mensagem preferencialmente aos leitores do Brasil. (LUSTOSA, 2003:14).

Sodré (1983) estabelece diferenças entre os dois jornais.

Segundo ele, a Gazeta era o embrião de jornal, com periodicidade curta,

intenção informativa mais do que doutrinária, formato peculiar aos órgãos

impressos do tempo, poucas folhas, preço baixo. Já o Correio era brochura

de mais de cem páginas, geralmente 140, de capa azul escuro, mensal,

doutrinário muito mais do que informativo, preço muito mais alto. Enfim, “o

jornal de Hipólito, ao contrário, destinava-se a conquistar opiniões; esta era

sua finalidade específica” (p.22).

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Aliás, como Pinto (1989) e Sales (2006) observam, a opinião e a

política eram principais características presentes na imprensa brasileira do

século XIX. Conforme Pinto, “ela é propriedade de um indivíduo ou de um

grupo de indivíduos e tem como objetivo defender ou combater uma causa

momentânea. Político por excelência, este jornal está diretamente ligado às

transformações do próprio Império” (p.25).

Como exemplo, o autor cita acontecimentos como a

Independência, o fechamento da Assembléia Constituinte, a abdicação de

D. Pedro I, as lutas no período regencial, o golpe da maioridade e a

abolição da escravidão, nos quais diversos jornais foram elaborados para

defender os diferentes grupos políticos. “Os grupos políticos brigavam

através dos jornais, fossem eles oficiais, governistas ou de oposição”

(SALES, 2006: 78).

1.3.1 A imprensa cearense

O Ceará também se inserira neste contexto. O surgimento da

imprensa no Estado também está associado aos princípios das

transformações da sociedade capitalista, mas, também, ao movimento

político conhecido por Confederação do Equador, em 1824. Segundo Farias

(1997), o movimento ocorreu devido ao descontentamento da população

das regiões Norte e Nordeste do País.

Conforme explica, mesmo após a Independência, os problemas

econômicos e sociais das regiões não cessaram. Na época, a crescente

queda das exportações de açúcar e algodão, provocara insatisfação por

conta da miséria, fome e altos impostos presentes nas províncias. Outro

dado é que os comerciantes portugueses dominavam o comércio local,

recebendo um apoio ostensivo do governo imperial. Como agravante, havia

o autoritarismo e a centralização exercidos por D. Pedro I.

Para se ter uma idéia, o imperador, em 1823, dissolve a

Assembléia Constituinte, cuja função, além de outras, era tentar limitar os

poderes pertencentes a ele e, meses depois, outorga a primeira constituição

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brasileira (em 1824), com características absolutista e centralizadora,

diminuindo a autonomia das províncias. Em virtude das atitudes do

imperador eclodira em Pernambuco, com adesão de províncias como

Ceará, Maranhão, Bahia, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, o

movimento separatista e republicano, denominado de Confederação do

Equador19.

O objetivo dos confederados era promover a união entre as

províncias do Norte e Nordeste em uma República Federativa, similar a dos

Estados Unidos. “A Independência e a República proporcionariam a

ascensão e consolidação institucional dos senhores das terras como chefes

de novo Estado” (FARIAS, 1997: 65). O Ceará aderira ao movimento tanto

pela influência da capitania de Pernambuco sobre a região como pela

ameaça à hegemonia dos latifundiários, provocada pela constituição de

1824.

À frente estavam o presidente da Província Tristão de Alencar

Araripe, o comandante de armas coronel José Pereira Filgueiras e, entre os

secretários, o padre Inácio de Loyola Albuquerque (Padre Mororó), todos

eleitos por governo provisório em 28 de abril, após a solicitação do primeiro

presidente da Província do Ceará, o cearense José Costa Barros, da

transmissão do seu cargo a Tristão Gonçalves. Costa Barros tinha sido

nomeado presidente para conter o movimento no Ceará.

Como medidas, o novo governo republicano cearense proibiu

portugueses de ocuparem cargos públicos e militares e garantiu a abertura

das fronteiras com Pernambuco, tradicional parceiro econômico do Ceará.

Pernambuco enviou ao Ceará vários armamentos, oficiais estrategistas e,

ainda, a primeira tipografia. “O maquinário veio de Recife, a bordo da

escuma Maria Zeferina, doado pelo presidente confederado de

Pernambuco, Manoel de Carvalho Paes de Andrade” (Jornal O Povo, 28 de

19 Anos antes, em 1817, Pernambuco também havia liderado o movimento nomeado de “Revolução Pernambucana” em prol da Independência e da Proclamação da República. Com as mesmas causas, tais como o quadro de miséria na região, as influências de idéias iluministas, da revolução francesa (1789) e norte-americana (1776), o movimento contou com a participação da elite cearense (apesar de pouca) e durou apenas oito dias.

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março de 2004). A partir daí, como mais um instrumento de luta, foi

impresso o primeiro jornal, o Diário do Governo do Ceará, sob a direção de

Padre Mororó, “servindo este como eficiente meio de propaganda das idéias

rebeldes” (FARIAS, 1997: 69).

Demócrito Rocha (1966), sobre o surgimento da imprensa

cearense, conclui: “o jornal impresso apareceu, no Ceará, como uma

necessidade política” (p.325). Embora no Brasil a imprensa tenha surgido

tardiamente, de acordo com Geraldo Nobre 20, o Ceará foi uma das

primeiras províncias a publicar jornal. Ceará, Pará e Pernambuco foram os

pioneiros:

Esse jornal contribui muito para que o Ceará tivesse um papel importante no movimento da imprensa no Brasil. A Europa, no século XIX, estava uma convulsão muito grande, a respeito de idéias, de pensamentos. Com a Revolução Constitucional de 1820, em Portugal, passou a haver mais liberdade e isso foi influindo aqui no Ceará. Foi aí que o Gonçalo Mororó pulou do galho inicial, que era junto ao governador Sampaio, e foi para o jornal que ele próprio procurou montar, com a ajuda de pessoas que já trabalhavam na imprensa em Portugal ou mesmo no Brasil. A colaboração do padre Gonçalo era firme, lúcida, de valor mesmo. O Diário do Governo foi o jornal da Revolução (NOBRE, Jornal O Povo em 28 de março de 2004).

Porém, apesar de ser considerado o “Diário do Governo” o

primeiro jornal impresso no Ceará, há ainda discordâncias sobre qual

periódico, na verdade, concretiza o aparecimento da imprensa cearense. O

“Diário do Governo” datou de primeiro de abril de 1824, mas Geraldo Nobre

(1974: 41) registra que no início do século XX, estabeleceu-se uma

controvérsia entre os historiadores Barão de Studart e João Batista

Perdigão de Oliveira.

De acordo com João Batista, já em 1817, em meio à Revolução

de Pernambuco, da qual o Ceará participou apesar da pouca mobilização

da elite, o Governador da Capitania do Ceará mandara fazer uma gazeta e

a distribuíra em vários lugares. A gazeta tratava de folhas impressas. Ou

20 Em entrevista concedida ao Jornal o Povo, caderno Vida e Arte, em 28 de março de 2004.

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seja, sete anos antes do jornal dirigido por Padre Mororó, teria sido

publicado um outro jornal.

Porém, o próprio Geraldo Nobre, em entrevista ao Jornal O Povo,

defende o “Diário do Governo” como marco da imprensa na Província:

O primeiro impresso é o Diário do Governo do Ceará. A gazeta era um jornal improvisado, manuscrito, através do qual o governo procurava disseminar suas idéias ou o que desejava fazer, apelando para a compreensão do povo. Tudo indica que quem o escreveu foi o padre Gonçalo Inácio, querendo bajular o governador Sampaio. Mas o padre Mororó era metido a revolucionário, mesmo. Era audaz. (NOBRE, apud Jornal O Povo, em 28 de março de 2004).

Discordâncias à parte, Geraldo Nobre (1974) afirma que a

História do Jornalismo Cearense pode ser dividida em duas fases principais.

Na primeira, como comenta, os jornais existiram em função de partidos

político, ou de outros grupos de opinião, e, consequentemente, deram

pouca atenção ao caráter religioso, ou mesmo comercial da imprensa. Para

ele, isso somente acontecerá em 1915, quando surge o “Correio do Ceará”,

a partir do qual a publicidade passa a ganhar espaço jornalístico e os

órgãos de orientação política tiveram duração mais efêmera.

Porém, antes mesmo do “Correio do Ceará”, Demócrito Rocha

(1966) registrou que houve um crescente número de jornais, entre os quais

também literários. Segundo ele, de 1824 até o fim de 1839, surgiram 15

jornais no Ceará, sendo um em Aracati e os demais em Fortaleza. Nos anos

de 1840 a 1849, foram mais 23 jornais, inclusive o primeiro jornal mundano

e literário, “A Sempreviva”, escrito por Juvenal Galeno e Gustavo Gurgulino.

Entre 1860 e 1869, apareceram mais 116 novos jornais.

Por fim, até a República, entre 1880 e 1889, Demócrito Rocha

calcula que apareceram no Ceará 175 novos jornais. “Foi nesses últimos

dez anos do Império que se multiplicaram os jornais neutros, literários,

diversionais, críticos, científicos, em sua grande maioria de vida efêmera,

muito dos quais não passaram do primeiro número” (p.327).

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Apesar de nem Demócrito Rocha e nem Geraldo Nobre

salientarem, com a efervescência no surgimento de novos periódicos no

Estado, também foram fundados jornais por/para o sexo feminino. No caso,

elas precisavam disputar o espaço na imprensa para expor suas opiniões

acerca das desigualdades no que diz respeito às limitações sofridas. As

mulheres tinham muito para reivindicar, afinal, a idéia predominante é de

que elas deveriam se ocupar com “outras coisas”, em outras palavras: seus

afazeres deveriam ser outros...

1.4 A VIDA FEMININA NO SÉCULO XIX

Mesmo diante de tantas transformações e progressos

acontecidos na Província do Ceará e em Fortaleza, o final do século XIX e o

início do século XX foram marcados por uma situação que não condiz com

as “mudanças civilizadas”: a situação e a educação da mulher. Para se ter

uma idéia, ao seguir uma tendência brasileira, a região não abrigava um

grande número de mulheres alfabetizadas21.

Como exemplo, Raimundo Girão (1957) afirma que somente em

meados da década de 1860 começou a funcionar o Colégio da Imaculada

Conceição, em paralelo ao Seminário Episcopal, (1864), destinado a educar

o sexo feminino em Fortaleza. Segundo o escritor, até então, as moças

eram presas a uma educação omissa e cheia de preconceitos. Com o

estabelecimento de ensino, “tem-se instruído e aperfeiçoado muitas

gerações femininas” (p.VII).

Dessa forma, percebe-se que a formação educacional e

intelectual das mulheres nunca foram prioridades na região22, na qual,

muitas vezes, sequer lhes era dado o direito a uma alfabetização ou

21 Almeida (2006) traz em nota que: “na década de 1870, apenas 10% das mulheres brasileiras eram alfabetizadas. Na segunda metade do século XIX, das quatro milhões de brasileiras existentes, somente 14% sabiam ler e escrever. A cidade de Fortaleza, até o final do século XIX, tinha por volta de 17 mil alfabetizados, em uma população de 30 mil habitantes” (p.138). 22 Raimundo Girão (1957: VII) registra que em toda área da Província não se contavam senão 43 escolas avulsas para os homens e somente nove para o sexo feminino.

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educação superior23. “(...) raramente os pais deixavam as filhas estudarem,

sob a alegação de que elas poderiam manter correspondências amorosas

não consentidas”, explica Buitoni (1990:36). Segundo ela, o hábito de enviar

as filhas à escola, no Brasil como um todo, só foi absorvido pelas famílias

“de posses” por volta da metade do século.

Diante desse quadro, não é difícil chegar ao resultado de que a

dedicação feminina era quase que exclusiva às prendas domésticas como

orientar os filhos, cuidar da casa, dos escravos (antes da abolição), ou seja,

servir o marido e ser o “anjo do lar”. Falci (2002) revela que, nessa época,

esse costume era tradicional no Sertão Nordestino.

Como regra, as mulheres não precisavam de dinheiro, já que não

necessitavam comprar nada (os maridos lhes traziam da rua tudo o que

desejassem) e, por isso mesmo, suas atividades eram restritas aos lares.

“As mulheres mais abastadas não tinham muitas atividades fora do lar.

Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas ‘prendas

domésticas’-orientar os filhos, fazer ou mandar fazer a cozinha, costurar e

bordar”(p. 249).

Michelle Perrot (1992) conclui que “a dona-de-casa está investida

de todos os tipos de função”. No Brasil e no exterior, ela esteve responsável

pela criação dos filhos e pela educação das adolescentes (já que a

educação dos meninos cabia ao pai), assim como às atividades domésticas,

por excelência, tais como alimentação, conservação da casa, vestimenta,

entre outras.

Hahner (1978) transcreve um trecho do livro de viagem de

Elizabeth C. Agassiz24, no qual, ao visitar o Estado do Amazonas, registrou

o enclausuramento em que se encontrava a mulher brasileira, da região

Norte do País, na metade do século:

23 June Hahner (2003:115) afirma que a educação superior feminina só se tornou possível a

partir de 1879, com a lei da reforma educacional. 24 AGASSIZ, Luiz; AGASSIZ, Elizabeth C. Viagem ao Brasil, 1865-66. Trad. Edgar S. de Mendonça. São Paulo: Comp. Edit. Nacional, 1938. (pp. 335-336).

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[...] é impossível imaginar coisa mais triste e mais monótona do que a existência da senhora brasileira das pequenas cidades. Nas províncias do Norte, principalmente, as velhas tradições portuguesas sobre o enclausuramento das mulheres prevalecem (...) Muitas senhoras passam meses e meses sem sair de suas quatro paredes, sem se mostrar, senão raramente, à porta ou à janela; pois a menos que esperem alguém estão sempre tão pouco vestidas que vão além da negligência. (AGASSIZ apud HAHNER, 1978: 56).

Uma forma de interação possível da mulher com outras famílias,

podia acontecer quando realizavam, e se realizavam, trabalhos para outras

casas, como lavar roupa, costurar, bordar etc. Entretanto, a entrega dos

produtos e a existência de tal tarefa deveriam funcionar às escondidas, pois,

caso chegasse aos ouvidos públicos, não seria de boa imagem para o

marido aceitar o dinheiro provido pela esposa. Ele era ou não o chefe da

família?

No entanto, apesar das tarefas incumbidas a elas, e sua vivência

se restringir ao espaço familiar, o poder para tomar as principais decisões

ainda dependia da aprovação masculina. As mulheres deviam submissão

aos maridos que, mesmo dentro de casa, delimitavam espaços onde era

aceita a circulação da esposa e dos filhos. “O escritório onde mulher e filhos

só entram na ponta dos pés”. (PERROT, 1992:180).

Mesmo diante das evidências de “descaso” com a formação

intelectual do sexo feminino e do descrédito em sua capacidade de atuação

na vida pública, algumas mulheres recebiam alfabetização, muitas vezes,

com professores que lecionavam aulas particulares. “Enquanto o número de

escolas crescia, as moças de famílias ricas recebiam apenas uns poucos

anos de fina educação, casavam-se cedo e tinham pouco poder de decisão

nos assuntos domésticos”. (KIDDER25 apud HAHNER, 1978:57).

Enfim, a educação feminina se colocava como um verdadeiro

círculo vicioso, como define Norma Telles (2002). “Como não tem instrução,

não está apta a participar da vida pública, e não recebe instrução porque

não participa dela” (p.406). Isto é, os defensores da “exclusão educacional”

25 KIDDER, D.P.; FLETCHER, J.C. O Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo. Trad. Elias Dolianiti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. (pp. 181-188).

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vigente, pretendiam mantê-las na ignorância e fora do espaço público e

imersas na esfera privada.

Perrot (1998) esclarece que a esfera pública, “por oposição à

esfera privada, designa o conjunto, jurídico ou consuetudinário, dos direitos

e dos deveres que delineiam uma cidadania; mas também os laços que

tecem e fazem a opinião pública (..) o espaço público amplamente

equivalente à cidade” (pp.08-09). Por outro, a autora francesa (2005)

complementa e diferencia o espaço público do privado como este sendo

“mais do que uma linha, o privado é uma zona delimitada por duas

fronteiras: de um lado, a intimidade do eu, a câmara escura, a fortaleza do

foro (forte) interior; de outro lado, os territórios do público e do privado aos

quais o século 19 se esforçou para dar consistência das esferas” (p.456).

A mulher do século XIX, portanto, estava restrita à esfera do

privado. Por mais que recebesse certo grau de instrução, essa mulher não

se destinava à esfera pública, do mundo econômico, político, social e

cultural. Por conta disso, Falci (2002) conclui que “a mulher não era

considerada cidadã política” (p.251). Aliás, elas não podiam sequer votar e

serem votadas. Em relação a essa possibilidade, suas capacidades para a

política eram subjugadas, sendo, até mesmo, motivo para gozação. “Se se

colocam mulheres à frente do governo, o Estado se encontra em perigo.

Pois elas não agem conforme as exigências a coletividade, mas segundo os

caprichos de sua inclinação e seus pensamentos” (MICHAUD26 apud

PERROT, 1992: 177).

Michelle Perrot (1992), ao discutir sobre a participação da mulher

no espaço público, reproduz o trecho “ao homem, a madeira e os metais. À

mulher, a família e os tecidos”, (p.178) de um delegado operário francês da

exposição mundial, em 1867. Com essa frase, a autora esclarece que os

lugares para homens e mulheres eram pré-determinados e, a todo custo,

mantido pelos mais conservadores. Deixando sempre claro que o sexo seria

o principal determinante para a ocupação dos espaços públicos ou privados.

26MICHAUD, S. La muse et la madone, visages de la femme rédemptrice en France et en Allemagne de Lis à Baudelaire, tese de doutorado de estado, Paris III, 1983, p.815.

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“Existem lugares praticamente proibidos às mulheres - políticos, judiciários,

intelectuais e até esportivos...-, e outros que lhes são quase exclusivamente

reservados- lavanderias, grandes magazines, salões de chá...” (PERROT,

1998: 37).

Na opinião de Perrot (1992), o século XIX é responsável por

esboçar um triplo movimento: em primeiro lugar, ele estabelece um

retraimento das mulheres em relação ao espaço público. Constitui o espaço

privado familiar predominantemente feminino e provoca um

superinvestimento do imaginário simbólico masculino nas representações

femininas. Na opinião dela, “nem todo público é político, nem todo público é

masculino” (p.180).

Em todo caso, a Província do Ceará estava contida nessa

configuração de distinção entre homens e mulheres do século XIX. De

forma semelhante, as mulheres não eram, em sua maioria, alfabetizadas.

Quando eram, suas leituras eram dirigidas a autores como Olavo Bilac,

Escrich, George Ohnet, as poesias de Casimiro de Abreu e Castro Alves os

quais, supunha-se, não oferecia perigo à ordem familiar, já que não

estimulariam-nas transgredir os limites impostos, sobretudo pelos maridos.

Para o escritor cearense Antônio Bezerra (2001), essa

característica das cearenses seria, aliás, a qualidade mais apreciável de

uma jovem nascida e criada no Ceará. “A cearense, em geral, tem como

nenhuma outra mulher o receio de transgredir o seu dever de esposa: daí a

sua grandeza, a paz do lar, a felicidade do casal” (p.76). Outro escritor

cearense, Antônio Sales (1987), apesar de reconhecer a inteligência das

mulheres do Estado, também já apontava qual a posição ocupada por elas

na sociedade cearense do século XIX:

A cearense é por excelência a mulher do lar, a companheira dedicada ao homem, a mãe de família que tudo sacrifica por amor de sua gente e pela boa manutenção da casa. Não que lhe falte inteligência. Ao contrário: sempre que é posta à prova a mentalidade feminina em nossa terra, se revela apta para ilustra-se nas ciências e nas artes. Mas, em nosso meio e nosso clima, a mulher é muito feminina para ser feminista, e a família tem uma consciência tão forte que ser dona de um

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lar é ainda a suprema e quase exclusiva aspiração de uma moça cearense. (SALES, 1987:18).

Todavia, os homens de letras do Ceará estavam errados quanto

à conformação feminina. Não apenas no Estado, mas por todo o mundo,

meados do século XIX e as primeiras décadas do XX foram marcados pelo

início de movimentos femininos em prol de uma educação (alfabetização e

ensino superior), da igualdade de direitos, inclusive de votar e ser votada,

em suma, da participação feminina no espaço público.

Para lutar por isso, elas contaram com um meio de comunicação

surgido no País e no Ceará ainda na primeira metade do século XIX: a

imprensa. Isto é, mais tarde, as mulheres utilizariam-na para expressar suas

opiniões e convencer, até mesmo as próprias mulheres, de que o sexo

feminino, dito frágil, não era inferior aos homens e, por isso mesmo, as

representantes femininas deveriam ter igualdade de direitos e participação

na esfera pública.

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CAPÍTULO II: VAMOS “RETOCAR” A IMPRENSA

A palavra emociona, o livro instrui, só o jornal cava, revolve, afeiçoa as mais

endurecidas camadas intelectuais. A sua ação é lenta, mas contínua e, por isso

mesmo, irresistível, avassaladora.

Narcisa Amália, poeta e jornalista carioca, em 1888.

Sentir e expressar. Que ambos são verbos ninguém duvida, até

porque a gramática não nos deixa enganar. Porém, mais do que essa

coincidência morfológica, eles têm algo a mais em comum: o expressar está

intrinsecamente ligado ao sentir. É a partir do sentir emoções e sensações

que o expressar toma sentido. Ele vem da alma. Agora, imagine quando os

sentimentos são obrigados a ficar trancafiados dentro de nós. Lidar com

repressões, limitações e censuras, com certeza, mexe e remexe com quase

todos os sentimentos. Nessa hora é que as palavras brotam na mente para

tentar dar um sentido concreto ao que foi vivenciado. O problema ocorria

quando somente alguns, assim mesmo, no masculino, é que podiam “pôr

para fora” aquilo que os consumia por dentro. As mulheres não.

A lição que ficou de todo esse momento encarado pelas

representantes do sexo feminino no século XIX, foram os meios utilizados

quando elas (mulheres e palavras) precisaram se “soltar”. Muitas vezes,

bastou um caderninho, com contas da casa, para que o que estava preso

viesse à tona27. Mais, não raro, as palavras podem e, várias vezes

“querem”, um espaço mais amplo. Nessa hora, também vem à mente a

lembrança da Amélia28 cantada por Mário Lago. Ela é que era mulher de

verdade, pois, além de ficar ao lado do marido, não fazia exigência. “Mulher

precisa exigir o quê?” Por isso é importante conhecer as mulheres que não

se conformaram em ser Amélias e exigiram, sim, a palavra pública e ampla.

27 A escritora Lygia Fagundes Telles (1997:60) descreve os cadernos-goiabada, através dos

quais sua avó escrevia, junto às despesas da casa. 28 Música “Ai que saudades da Amélia” (1941), de autoria de Mário Lago e Ataulfo Alves.

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2.1 FEMINISMO: UMA TOMADA DE CONSCIÊNCIA

O século XIX, apesar do traço marcante de confinamento da

mulher ao espaço privado, o veto de acesso ao voto, à educação, e,

consequentemente à leitura, pode ser tido também como marco inicial para

o questionamento feminino das condições impostas. “Entender as

proibições é também compreender a força das resistências e maneira de

contorná-las ou de subvertê-las” (PERROT, 1998:91). E as mulheres

fizeram esse caminho (de questionamentos) que, mais tarde, resultaria em

movimentos que punham à prova a resistência do “sexo frágil” e

estimulariam a produção e inserção no espaço público.

No entanto, para chegar a tal desfecho, sobretudo de expor

publicamente pela escrita suas insatisfações quanto à “ordem pública”, as

mulheres ainda teriam de começar com mudanças internas. Nas primeiras

décadas do século XIX, Mariana Coelho (2002) apud Duarte (2003) assinala

que, nessa época, “as mulheres despertam do sono letárgico que jaziam” 29.

A partir daí, européias e brasileiras passam a contestar e exigir o que lhes

era negado, como a educação, direito ao voto e a questionarem o consenso

de que a existência e atividades femininas se restringiam ao lar e às

prendas domésticas. Até porque, durante a história, diversas mulheres

(como Joana D’Arc, as do cangaço, entre outras) haviam provado que elas

têm capacidade para atuar no espaço público.

Em contrapartida, como reconhece Jean Lebrun, em entrevista a

Michelle Perrot (1998), “para a maior parte das mulheres, acostumadas ao

silêncio, tomar a palavra pública era difícil” (p.68). Por isso mesmo, entende-

se a relevância do movimento que brota, com mais intensidade e adeptas,

na primeira metade do século XIX, por diversos países da Europa, nos

Estados Unidos e pelo mundo, denominado de feminismo30.

O feminismo, conforme Pitanguy e Alves (1981), não é apenas o

movimento organizado, publicamente visível. Segundo mencionam, ele 29 COELHO, Mariana. A evolução do feminismo, subsídios para a sua história, 2002, P.44. 30 A denotação de Feminismo como movimento social organizado só foi mundialmente reconhecido pela Organização das Nações Unidas (Onu) em 1975, considerado o Ano Internacional da Mulher.

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revela-se também na esfera doméstica, no trabalho, isto é, em todas as

esferas “em que as mulheres buscam recriar as relações interpessoais sob

um prisma onde o feminino não seja o menos, o desvalorizado” (p.09).

Em concordância a essa idéia, Duarte (2003:152) frisa que o

feminismo pode ser entendido “como todo gesto e ação que resulte em

protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a

ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual ou

em grupo”. Essa “versão” ou “defesa” articulada pelas próprias mulheres é

que o Méndez (2005) define como um discurso feminista, o qual começa a

se difundir por diversos países do mundo:

[...] esse discurso surge a partir da tomada de consciência de uma opressão específica que atinge as mulheres, articulada por um discurso misógeno com base na ciência, na lei, nos costumes, na religião e nas relações sociais de produção. Para se contraporem, as mulheres passaram a elaborar um discurso político próprio e a se identificar enquanto grupo social com identidade própria: as feministas. (MÉNDEZ, 2005: 51).

Para Méndez (2005), a proliferação do feminismo no século XIX

pode ser associada a vários fenômenos, vinculada, indubitavelmente, ao

processo de implementação e consolidação do capitalismo, que revelava

uma outra classe social, a operária.

Com a então instalada sociedade capitalista, a mão-de-obra

assalariada tornou-se necessária à produção. “(...) esta não abre mão da

disponibilidade de uma massa de trabalhadores que não tem mais seus

próprios instrumentos de trabalho e, por isso, para sobreviver é obrigada a

vender sua força de trabalho” (AQUINO et.al., 2003:182).

Nessa nova configuração, para garantir a sobrevivência, as

mulheres começaram a ser absorvidas como empregadas das fábricas.

Embora realizando muitas vezes os mesmos serviços, de forma desigual, os

salários das operárias eram inferiores aos dos homens e a jornada de

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trabalho superior31. No entanto, Méndez (2005) argumenta que o

capitalismo contribuiu, ainda, para o incremento na instrução escolar

feminina e, assim, favoreceu a difusão de idéias do emergente feminismo:

[...] era necessário capacitar minimamente as mulheres da classe operária para o desempenho das atividades laborais. Ao mesmo tempo, aquelas pertencentes a classes mais elevadas passaram a ter acesso à leitura e à escrita, pois ser letrada constituía um atributo necessário à boa esposa e mãe de família (...) a massificação da alfabetização teve uma repercussão fundamental para a proliferação de idéias emancipacionistas entre as mulheres. (MÉNDEZ, 2005: 52).

Diante das transformações econômicas e sociais dessa época, é

importante perceber que houve uma mudança estabelecida na condição das

mulheres: elas, agora, estavam sendo mais alfabetizadas. Isso traria o

contato delas com os ideais feministas e a proliferação destes, cuja

exigência básica era igualdade entre homens e mulheres.

Por conta de movimentos como o feminismo, elas foram

motivadas a agir contra a opressão. Seja esta sofrida tanto por aquelas

mulheres mantidas enclausuradas em casa ou por aquelas exploradas nas

fábricas, submetidas a precárias condições de trabalho.

Em geral, pode-se dizer que elas tinham motivos para se rebelar,

pois lhes eram negados, inclusive, os direitos de exercer seus deveres de

cidadãs, aliás, sequer eram reconhecidas como tal32. Nesse contexto,

percebe-se que a importância da organização do feminismo foi,

principalmente, a de convencer as mulheres da capacidade e dos direitos

que possuíam, a fim de alterar a posição ocupada socialmente33.

31 Pitanguy e Alves (1981) revelam que as mulheres eram submetidas, assim como os homens,

a precárias condições de trabalho. A jornada de trabalho delas e dos menores de idade era de 14, 16 e 18 horas. Os salários inferiores e a superexploração tinham como justificativa ideológica o fato de que “as mulheres necessitavam menos trabalho e menos salários do que os homens porque, supostamente, tinham ou deveriam ter quem as sustentasse” (p.38). 32 Nas palavras de Teles, M. (1999:40) “tal era o menosprezo pelas mulheres, consideradas

serem inferiores ou crianças, que as constituições latino-americanas do século XIX sequer proibiam o voto feminino, pois o título de cidadã era somente dado aos homens”. 33 Apesar de não se ter ao certo o local nem a primeira feminista no mundo, Pitanguy e Alves (1981: 18) defendem que a escritora francesa Christine de Pisan pode ser considerada uma das primeiras feministas. Ainda no século XIV, ela escreveu o que talvez seja o primeiro

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De acordo com Perrot (2005:324), o feminismo propagado entre

as mulheres “criou em espaço de palavra feminina, admitida, a partir de

então, com maior ou menor condescendência”. Segundo ela (1998), “ainda

mais que o espaço material, é a palavra e sua circulação que modelam a

esfera pública” (p.59). Assim, com o uso desse “recurso”, a escrita feminina

começa a se desvendar: “primeiro pela correspondência, depois pela

literatura e, por fim, pela imprensa” (PERROT,1998: 59). Com esse

percurso, os ideais feministas acabariam por se propagar para uma maior

quantidade de leitoras, por meio dos textos escritos, pelas próprias

mulheres.

Segundo Fraisse e Perrot (1994), “encontram-se os primeiros

gestos e escritos feministas anteriores a este século, mas o feminismo que

se entrevê na prática revolucionária de 1789 surge depois de 1830” (p.12).

Ano esse, que, conforme Decaux (1972) apud Méndez (2005), também é

marcado pelo movimento de mulheres surgido na França, entre 1830 e

1840,conhecido como sufragista, que estaria na origem do termo feminismo.

A partir das “sufragistas”, houve a reivindicação da igualdade de

direitos no matrimônio e acesso às profissões. “O sufragismo está no mote

de luta do feminismo (...) e foi também a primeira estratégia formal e ampla

para a política das mulheres”, reconhece Zahidé (2003:226). Então, para

ambos, o feminismo estaria relacionado inteiramente com esse movimento

em prol do voto feminino, que no Brasil do século XX, por volta da década

de 1920, seria o foco de luta das mulheres.

Os passos das “feministas” ecoam resultados em diferentes

partes do mundo. Peixoto (1936) revela que a educadora francesa É.

Legouvé, em 1852, viria a afirmar: “O século XIX deve, em nossa opinião,

definir a mulher: ser igual ao homem, mas diferente do homem” (p.93). Em

outras palavras, começa a ser difundida a idéia de que, embora haja

diferenças entre ambos os sexos, as mulheres podem, sim, ser iguais aos

homens no que se refere aos direitos na esfera pública. Dessa forma, elas

tratado feminista “A cidade das mulheres”, no qual afirma ser os homens e mulheres iguais por sua própria natureza.

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começam a tornar público seus descontentamentos, diante da exclusão

imposta.

Foi a partir dessa época que um grande número de mulheres começou a escrever e publicar, tanto na Europa quanto nas Américas. Tiveram de aceder à palavra escrita, difícil numa época em que se valorizava a erudição, mas lhes era negada a educação superior, ou mesmo qualquer educação a não ser das prendas domésticas. (TELLES, N., 2002: 403)

Sobre esse período e da apropriação feminina da palavra e, em

seguida, dos periódicos, Michelle Perrot (1998) ressalta: “Fazer jornal

tornou-se um modo de expressão do feminismo em quase toda a Europa”

(p.82). Para exemplificar essa ascensão feminina à escrita, sobretudo a

esses jornais no século XIX, é que Dulcília Buitoni (1990) enumera alguns

títulos de periódicos pioneiros franceses, alemães e italianos, os quais

visavam ao público feminino e possuíam algum caráter feminista, ou seja,

político.

Em 1693, na Inglaterra surgiu o “primeiro periódico que se tem

notícia”, conforme Buitoni (1990:25), com o nome de Lady’s Mercury. Como

diferencial, ele trazia o consultório sentimental, por meio do qual as leitoras

se aconselhavam. No entanto, não trazia reivindicações feministas. De

acordo com Buitoni (1990: 30), “a imprensa feminista germinou

principalmente na França, em parte como conseqüência da Revolução

Francesa, na Alemanha e na Itália”.

Na França, um dos primeiros foi o “Athénée des Dames”,

surgido logo após a Revolução Francesa e fechado em 1809, por ordem de

Napoleão Bonaparte. Nele, Buitoni (1990) comenta que por mais que

houvesse correio sentimental, as redatoras buscavam a luta. Entretanto,

parte das leitoras não as acompanhavam, uma vez que as respostas delas

aos textos no jornal apontavam “ser a resignação a solução para os

problemas femininos” (p.30).

Em 1848, surge o “La Voix des Femmes”, fundado por Eugénie

Niboyet, Désirée Gay e Jeanne Deroin, cujo lema era trabalho, pátria e

família. Na opinião de Buitoni (1990), “seus argumentos ainda eram

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moralistas” (p.30). No mesmo ano, um grupo de operárias lança “La

Politique de Femmes”, com o lema liberdade, igualdade e fraternidade para

todos e para todas. Depois, seu nome passaria para “L’Opinion des

Femmes”. Na Itália, nessa época, aparecem os primeiros “Circolo delle

Donne Italiane” e “Um Comitato de Donne”. Já as alemãs tiveram o “Neue

Bahnen” (1866-1920), dirigido por Augusta Schmidt e Louise Otto-Peters

“que lutavam por uma estrutura estatal e jurídica de proteção e organização

do trabalho feminino” (p.31).

Nos Estados Unidos, ainda em 1828, começa a circular um dos

primeiros “magazines” femininos chamado de “American Magazine”, sendo

mais conhecido por “Ladies Magazine”, dirigido por Sarah Hale. De acordo

com Buitoni (1981:10), ela “era uma mulher que lutava por uma vida melhor

para suas companheiras de sexo”. Para Sarah, a imprensa feminina

prezava por três pontos: entretenimento, serviço e esclarecimento. “Era

uma feminista que não falava em política; apenas defendia o direito da

mulher à educação, como o mais essencial de todos: o outros viriam por

acréscimo” (p.10).

2.2 FEMINISMO À BRASILEIRA E ASCENSÃO ÀS LETRAS

Como indica Teles, M. (1999), “os movimentos europeus e norte-

americanos influenciaram as mulheres latino-americanas mais rapidamente

do se pode imaginar” (p.40). Até porque, como já é sabido, o Brasil possuía

estreita ligação com a Europa, por conta, até mesmo, da Segunda

Revolução Industrial, comandada pela Inglaterra que, desde a vinda de D.

João VI (em 1808), focou-se em buscar mercado consumidor aqui.

Além disso, com a consolidação do capitalismo também no Brasil,

mais para o final do século, as mulheres brasileiras “passaram a ser vistas

como mão-de-obra em potencial, fosse nas terras como trabalhadoras

diárias ou nas fábricas como operárias” (MÉNDEZ, 2005: 58). E, assim, as

operárias encontraram as mesmas condições precárias e exploradoras de

trabalho.

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Nesse aspecto, ocorreu uma identificação com os movimentos

europeus, já que também tinham por que reivindicar. Afinal, a colonização

portuguesa, além de estreitar as relações com países da Europa, também

deixou resquícios da sociedade patriarcal, em que as mulheres eram

submissas e confinadas no espaço privado34.

Em virtude da influência dos movimentos e para se contrapor

também aos limites, as mulheres brasileiras, ainda nas primeiras décadas

do século XIX, começam a se utilizar da palavra, que tinha agora seu

espaço devido aos discursos feministas. Para elucidar a presença do

referido movimento no País, Duarte (2003:152) estabelece “quatro

momentos áureos na história do feminismo no Brasil”. Os momentos seriam

em torno de 1830, 1870, 1920 e 1970.

Conforme Duarte (2003), a primeira onda se dá ainda no século

XIX, quando mesmo “enclausuradas em antigos preconceitos e imersas

numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que não

podia ser outra que não o direito básico de aprender a ler e a escrever

(então reservado ao sexo masculino)” (pp.152-153).

A primeira legislação autorizando a abertura de escolas públicas

de 1º grau femininas, no Brasil, data somente de 1827. É nessa época que,

como descreve Duarte, começam a haver mudanças no que se refere à

educação feminina:

[...] aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender a benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava ler nem escrever. (DUARTE, 2003: 153).

Aliás, o magistrado tornou-se, além de uma forma de repassar as

lutas feministas, uma opção de trabalho para as poucas alfabetizadas da

34 De acordo com Buitoni (1990), no Brasil, ao seguir os costumes portugueses, devido à

influência moura, “a mulher quase não saía de casa, a não ser para ir à missa. Vivia cozinhando e fazendo rendas” (p.36). Já Teles, M. (1999) afirma que nessa época, século XIX, a sociedade aqui era formada sob a forma patriarcal. “(...) onde o poder, as decisões e os privilégios estavam sempre nas mãos dos homens” (pp. 18-19).

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época35. “Ensinar, mesmo sem preparo, foi para as mulheres do século

passado uma oportunidade de trabalho” (TELLES, N., 2002:410).

Para Zahidé Muzart (2003)36 apud Duarte (2003), embora o

feminismo no Brasil só tenha sido reconhecido em 1960, algumas mulheres

que se iniciaram no espaço público com produções literárias e depois

migraram para o jornalismo, já podiam ser chamadas de feministas. Para

ela, o que caracteriza o movimento é, na realidade, a idéia de subversão.

Esta, em sua opinião, foi relacionada desde seu princípio à literatura:

[...] no século XIX, as mulheres que escreveram que desejaram viver da pena, que desejaram ter uma profissão de escritoras, eram feministas, pois só o desejo de sair do fechamento doméstico já indicava uma cabeça pensante e um desejo de subversão. E eram ligadas à literatura. Então, na origem, a literatura feminina no Brasil esteve ligada sempre a um feminismo incipiente. (MUZART apud DUARTE, 2003: 153)

Apesar da relação direta que é estabelecida entre o feminismo e

a ascensão às letras, por parte das mulheres, no Brasil o movimento

organizado não era tão bem-visto assim. De acordo com Duarte (2003),

diferente de outros países, aqui houve uma forte resistência em torno da

palavra feminismo. No caso, o “antifeminismo”, transformou a imagem da

feminista em “sinônimo de mulher mal amada, machona, feia e o oposto de

feminina” (p.151).

A autora ressalta, ainda, que para não serem “mal vistas”, muitas

das escritoras e intelectuais “e a brasileira de modo geral” passaram a

recusar tal título. Dessa forma, pode-se presumir que contagiadas pelo

feminismo, as poucas escritoras e intelectuais da época, mesmo sem

conhecer ou aceitar o termo, passaram a propagar suas lutas inclusive em

periódicos organizados por mulheres, em geral, escritoras de romances.

35 Sobre o assunto ver: LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary

Del (org.). História das mulheres no Brasil, São Paulo: Contexto, 2002. 36 MUZART, Zahidé Lupinacci. Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a falar. In:

MOREIRA, Maria Eunice (org.). História da Literatura teoria, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003.

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2.3 A LITERATURA: UM IMPULSO PARA A ESCRITA FEMININA EM

MEIO À COMUNICAÇÃO DE MASSA

Independente das suas denominações (feministas ou não), o

relevante é observar que foram essas senhoras, ligadas às letras, que

primeiro chegaram a colaborar e a dirigir jornais femininos e feministas. “(...)

embora à margem, a literatura feminina foi presença constante nos

periódicos do século XIX, tanto nos dirigidos por homens quanto nos

inúmeros criados e mantidos por elas próprias” (MUZART, 2003:226). Aliás,

para esclarecer, foram primeiro “eles”, os escritores, que buscaram a

imprensa para, conforme relata Sodré (1983: 292), “(...) encontrar no jornal

o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco

de dinheiro, se possível”.

No que se refere ao âmbito das letras, no Brasil do século XIX,

os homens e, as raras mulheres de letras reconhecidas, estavam imersos

num País que contava com a prevalência de gêneros literários como o

Romantismo e, mais tarde, em meados da segunda metade, o Realismo e o

Naturalismo. O primeiro, condizia com a classe emergente no momento: a

burguesia.

Por trazer uma “orientação individual e (...) incorporar vocábulos

de uso cotidiano” (TELLES, N., 2002:402), o Romantismo ia ao encontro da

burguesia, cuja preferência era pelos acontecimentos da vida comum, pelas

fantasias e aventuras, elementos esses que compunham a narrativa da

principal produção do estilo, o romance.

Tanto na Europa quanto no Brasil, conforme reconhecem Cereja

e Magalhães (2000:205), “o romance surgiu sob a forma de folhetim,

publicação diária, em jornais, de capítulos de determinada obra literária”. Eis

uma relação direta entre as publicações (literárias e jornalísticas) e que, por

mais que escrito em sua maioria por homens, apresentavam-se como

espaço para a aproximação entre a mulher e os jornais:

[...] as mulheres insinuavam-se no jornal pelos rodapés - a parte de baixo das páginas nos jornais - que lhes eram

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progressivamente reservados, sob a forma de crônicas de viagens ou mundanas, sobretudo de romances-folhetins, cada vez mais femininos por suas intrigas, heroínas e até por sua moral. (PERROT, 1998:79).

No entanto, segundo Sales (2006), no final do século, a

literatura busca “desvencilhar-se dos ares românticos, coalhados em

profundo idealismo, sentimentalismo e subjetivismo, características agora

tidas como ultrapassadas” (p.80). De fato, como o autor aponta, apesar de

já haver a participação de literatos nos jornais, essa colaboração aumentou

com o aparecimento dos gêneros Realismo e Naturalismo no Brasil. A

ligação de um fenômeno com o outro não é complicada de se estabelecer,

uma vez que as características das duas correntes literárias aproximam-se

do fazer jornalístico.

Em termos gerais, o Realismo e o Naturalismo, este de forma

mais incisiva ainda, prezam por “mostrar a face nunca antes revelada: a do

cotidiano massacrante, do amor adúltero, da falsidade e do egoísmo

humano, da impotência do homem comum diante dos poderosos” (CEREJA

e MAGALHÃES, 2000:244). E, ainda como acentua Coutinho (1986) apud

Sales (2006: 80), “a precisão e objetividade científicas; a imagem da vida

contemporânea, sempre em estado de observação, com todas suas

questões”. Para esse momento, Sales (2006) faz uma observação

interessante sobre as correntes literárias e a produção dos jornais:

[...] no mesmo período em que se dá a assunção dessa corrente literária, ocorre o início da transfiguração da imprensa artesanal em industrial e, com isto, as oportunidades para a presença dos homens de letras nos jornais surgirão mais amplamente. (SALES, 2006:81).

Ao relacionar as características realistas e naturalistas da

literatura e a industrialização dos jornais, é quase inevitável supor que as

mulheres também viram um momento peculiar para começarem a apropriar-

se dos escritos em jornais. Afinal, os estilos literários condiziam com a

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realidade que elas precisavam descrever e os jornais ofereciam mais

espaço para os letrados.

Com essa produção industrial, característica não só no Brasil da

metade do século XIX, mas no mundo, traz ainda a possibilidade da

produção de materiais impressos serem transmitidos a uma maior

quantidade de pessoas. Como reforça Perrot (1998), “a partir do século

XVIII, e principalmente do século XIX, a imprensa se torna a forma principal

de expressão e formação da opinião pública” (p.77).

Para se ter idéia da força que esse meio apresentava na época,

Thompson (1995) contextualiza a produção impressa diante da nova

configuração da sociedade, agora capitalista:

Jornais, panfletos e livros foram produzidos em quantidade sempre crescente através dos séculos XVII, XVIII, XIX; e, a partir do século XIX, os meios de produção, circulação em expansão foram acompanhados pelo crescimento significativo nos níveis de alfabetização, na Europa e em outros lugares, de tal modo que os materiais impressos pudessem ser lidos por uma proporção sempre crescente da população. Esses desenvolvimentos que normalmente se chamou de meios de comunicação de massa receberam um impulso posterior com os progressos na transmissão e codificação eletrônica das formas simbólicas. (THOMPSON, 1995:09).

Assim, ao se referir ao termo “massa”, Thompson (1995) explica

que agora as “mensagens transmitidas pela indústria da mídia são,

geralmente, acessíveis a audiências relativamente amplas” (p.287).

Segundo ele, os receptores das mensagens não se referem a um conjunto

homogêneo e nem passivo de pessoas. No caso, como defende, elas “vêem

as mensagens dos meios com graus diferentes de concentração,

interpretam-nas ativamente e dão-lhes sentido subjetivo, relacionando-as

com outros aspectos da sua vida” (p.287).

Ou seja, cada receptor receberá a mensagem específica

(referente à transmissão das formas simbólicas de gestos, ações, etc.) e, a

partir daí, há “a possibilidade de que a recepção das mensagens desse

meio possa ser um processo ativo” (p.287). Mcluhan (1984) também reflete

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sobre a indução à ação pelo jornal. Segundo ele, diferente do livro, o jornal

possui um caráter confessional. Para ele, enquanto o livro leva a um ponto

de vista, o jornal “induz à participação comunitária” (p.231). Além disso,

como anuncia, o jornal do século XIX já havia desenvolvido bastante sua

forma de mosaico. Por mosaico, ele entende “que é o modo de imagem

corporativa ou coletiva e implica em participação profunda. Esta

participação é antes comunitária do que privada, e antes inclusiva do que

exclusiva” (p.239).

Deve-se pensar ainda que o alcance proporcionado pelo veículo

de comunicação de massa também se tornava necessário para difundir a

ideologia do feminismo e, assim, resultar em uma ação por parte das

mulheres e estabelecer o ideal de igualdade entre os sexos. Thompson

(1995:90) define ideologia como o sentido, construído e transmitido através

das formas simbólicas (texto impresso, imagens etc.), que serve para

estabelecer e sustentar relações de poder ou dominação de determinado

grupo sobre outros.

Com base na definição, Thompson (1995) ainda reconhece o

papel que o desenvolvimento da comunicação de massa desempenha no

aumento do ”raio de operação da ideologia” (p.343), já que possibilita a

chegada do sentido a públicos mais amplos e em espaços e tempos

diferentes:

[...] o sentido nas formas simbólicas foi se tornando, cada vez mais, capaz de transcender o contexto social imediato em que essas formas eram produzidas (...) Foi somente com o desenvolvimento dos meios impressos da comunicação de massa que os fenômenos ideológicos puderam emergir como fenômenos de massa, pois, antes disso, a circulação das formas simbólicas estava restrita a locais particulares ou a estratos específicos, ou redes de indivíduos. (THOMPSON, 1995:343).

A partir da possibilidade do jornal repassar a informação (ou o

sentido ideológico) para a maior quantidade de pessoas e estas possuírem

a autonomia para dar às mensagens a interpretação que quiserem e, então,

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provavelmente agir ativamente, é que se tem a certeza de que as mulheres

estavam certas em levar suas lutas à imprensa.

De fato, o sexo feminino estava preso a uma realidade que as

transformavam em seres impotentes diante de regras sociais e “masculinas”

para o espaço público. Em outras palavras, elas precisavam ir aos jornais

para “denunciar” os costumes e as desigualdades das relações humanas,

que as impediam de ter direito à educação, ao voto, à cidadania em geral. É

perceptível a oportunidade vista por elas, pois, ao se apropriarem do meio

de comunicação de massa, antes exclusivamente masculino, poderiam

levar ao público a ideologia do feminismo (que prezava pela igualdade entre

os sexos), por meio da prosa realista-naturalista, que se apresentava

feminista.

Essa passagem dos livros para os jornais, foi o que resultou num

aumento significativo no número dos escassos periódicos femininos, em

relação aos anos anteriores. Duarte (2003) reconheceu essa fase, em

meados da década de 1870, como sendo a segunda onda do feminismo no

Brasil. Mas, antes, é preciso estabelecer a lista das pioneiras desde a

década de 1830.

2.3.1. Jornais femininos aliados às causas feministas no Brasil

De acordo com Zahidé Muzart (2003:226), uma das razões para

a criação dos periódicos por mulheres no século XIX “partiu da necessidade

de conquistarem direitos. Em primeiro lugar, o direito à educação, em

segundo, o direito à profissão e, bem mais tarde, o direito ao voto”, (p.226).

Com base nisso, entende-se que as mulheres utilizaram a imprensa na

intenção de agir contra a série de limitações e em prol dos acessos que lhes

foram vetados, desde a colonização brasileira.

Além disso, em decorrência das mudanças ocorridas no século

XIX, inclusive com a legislação de 1827, algumas mulheres, agora,

encontravam-se de posse da palavra. Tanto para ler quanto para escrevê-

las. Por isso mesmo, Dulcília Buitoni (1990:40) descreve a nomeada

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imprensa feminina como “(...) um canal de expressão para as sufocadas

vocações literárias das mulheres, principalmente no caso das produções

menores”.

De toda forma, como revela a escritora Lygia Fagundes Telles

(1997), a escrita feminina no Brasil daquela época era marcada pela

privação, até mesmo da própria escrita. Segundo ela, enquanto as mulheres

do mundo já se comunicavam através de cartas, “a mulher brasileira estava

fechada em casa, vivendo a vida das senhoras das fazendas, as senhoras

da casa grande... viviam aprisionadas, não sabiam ler, não sabiam sequer

escrever, não sabiam coisa nenhuma” (p.57).

Por outro lado, as que já eram alfabetizadas, tinham até mesmo

que esconder o ato da escrita. Ou seja, mascarar o próprio verbo “escrever”.

Quando mocinhas, elas podiam escrever seus pensamentos e estados d’alma nos diários de capa acetinada...Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer em guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o recurso do cadernão do dia-a-dia, onde, de mistura com os gastos da casa cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousavam escrever alguma lembrança ou uma confissão que se juntava na linha adiante com o preço do pó de café e da cebola. (TELLES, L. 1997: 59-60).

Na opinião de Perrot (1998), a formação de jornais femininos

demonstra também a inserção das mulheres em uma estrutura maior de

comunicação e contato com a opinião pública. “Imprensa efêmera, na maior

parte dos casos, mas renascente, ela assinala a entrada das mulheres na

esfera pública do jornalismo.” (p.82). E, para ela, o exercício do jornalismo

“significa ao mesmo tempo ter uma parte ativa na construção da opinião

pública, liberdade de movimento e abertura para o mundo. Uma mutação

completa na condição das mulheres” (p.84).

A pesquisadora francesa Evelyne Sullerot (1963) 37 apud Buitoni

(1990), estabelece que a classificação de periódicos femininos se aplica às

produções que “se proclamam destinados à clientela feminina e que foram

37 SULLEROT, Evelyne. La presse féminine. Paris: Colin, 1963.

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concebidos objetivando um público feminino” (p.16). Na opinião de Buitoni

(1990), então, há uma diferença entre imprensa feminina e feminista. “a

imprensa feminina é aquela dirigida e pensada para mulheres. A feminista,

embora se dirija ao mesmo púbico, se distingue pelo fato de defender

causas” (p.16). No entanto, apesar de haver essa distinção entre gênero e

concepção ideológica por Buitoni, pode-se dizer que no Brasil os periódicos

femininos do século XIX, reuniam as duas concepções.

Aliás, há ainda uma diferenciação que deve ser feita a esse

respeito. No Brasil, houve a publicação de periódicos dirigidos por mulheres,

mais comum a partir da metade do século XIX. No entanto, antes mesmo

desses jornais, foi registrada a participação de mulheres em periódicos que

não eram dirigidos por representantes do sexo feminino. Como exemplo,

encontra-se um dos primeiros escritos, conforme Muzart (2003:228), já no

ano de em 1831.

No caso, Nísia Floresta Brasileira, escritora e jornalista potiguar38,

chegou a colaborar, nesse ano, com o jornal “Espelho das Brasileiras” que,

apesar de dedicado às senhoras pernambucanas, era dirigido por homens.

Ainda teve vários jornais dedicados às mulheres, mas dirigidos por homens,

como “A Fluminense Exaltada” em 1832, no Rio de Janeiro e “Espelho

Diamantino” em 1827, também na cidade do Rio de Janeiro.

Em geral, eles traziam conselhos sobre casa, cozinha, moda,

entre outros temas, para as mulheres. Inclusive, Buitoni (1990) ressalta que

mesmo os feministas tinham também a presença de conteúdos ligados a

assuntos não-políticos.

Os jornais feministas dessa época não diferiam muito da imprensa feminina no geral. Todos traziam literatura, moda, entretenimento. Os órgãos feministas não deixavam de lado a distração, conseguindo, deste modo, garantir a simpatia do público (BUITONI, 1990:53).

38 Buitoni (1990:52) assinala que NísiaFloresta Brasileira Augusta foi provavelmente nossa

primeira feminista. Telles, N. (2002:405) ressalta que em 1832, Nísia traduziu livremente, a partir da versão francesa, o livro “Vindications for the rights of woman” (1792), de Mary Wollstonecraft. No mesmo ano, ela lança “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, com idéias “emprestadas” da autora inglesa, para reivindicar igualdade, educação e enfrentar os preconceitos da sociedade patriarcal em que vivia.

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Outra característica da imprensa feminina, como afirma Buitoni

(1990), é que os nomes desses periódicos traziam uma peculiaridade. Com

nomes de flores, pedras preciosas, animais graciosos, todos metáforas da

figura feminina, ou mencionando a mulher e seus objetos, “tivemos (...) A

Camélia, A Violeta, O Lírio, A Crisália, A Borboleta, O Beija-Flor, a

Esmeralda, A Grinalda, O Leque, O Espelho, Primavera, Jornal das Moças,

Eco das Damas” (p.40).

Em relação aos jornais escritos e dirigidos por mulheres, segundo

Muzart (2003), apesar de constar nos dicionários sobre imprensa feminina

que o primeiro fundado por mulheres em nosso País foi o “Jornal das

Senhoras”, da argentina Joana Paula Manso de Noronha, em 1852, na

verdade, o primeiro surgiu 19 anos antes. Conforme assegura, o primeiro

periódico dirigido por mulher teve “o estranho título” (p.230) de “Belona

Irada contra Sectários de Momo”, foi redigido pela poetisa, escritora,

professora e jornalista Maria Josefa Barreto Pereira Pinto, sendo o primeiro

número publicado em novembro de 1833.

Maria Josefa Barreto, como assinava, nasceu em Vilamão, no Rio

Grande do Sul, em 1775. Além de ter sido pioneira na fundação de um

jornal dirigido por mulher, também se destacou por ter “inovadoramente,

uma escola primária mista que ficava na sua casa. Esse seria o primeiro

curso misto do País, o que já mostrava o quanto era avançada” (p.229). No

caso, a escola mista foi criada como meio de subsistência, já que seu

marido Manuel Inácio Pereira Pinto, primeiro carcereiro da cadeia de Porto

Alegre, deixou escapar um preso e respondeu a um processo sobre o caso

e, depois de condenado, desapareceu deixando a esposa e os filhos.

Na opinião de Muzart (2003), Maria Josefa pode ser considerada

uma pioneira como feminista e fundadora do primeiro jornal dirigido por uma

mulher. “E um jornal que provavelmente não trazia bordados nem culinárias,

nem boas maneiras. Por isso estava muito à frente do seu tempo!” (p.230).

Para Zahidé, o “Belona”, apesar do pioneirismo e do caráter político, não fez

escola. O que se tornou o modelo inicial para os periódicos feministas do

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século XIX foi o “Jornal das Senhoras”. Zahidé Muzart (2003) também

atribui isso ao fato do “Belona” ter sido fundado na província. Diferente do

jornal de Joana Manso, que era realizado na Corte.

Guilhermino César (1973) 39 apud Muzart (2003) descreve Maria

Josefa: “política e literatura, exasperação romântica e ideologia- eis a dieta

dessa mulher que foi também adversária dos Farrapos e contra eles

manejou a pena” (p.230). Conforme Muzart, ela “não era lady, era

trabalhadora e uma mulher de ‘faca na boca’” (p.230). Mais tarde, Maria

Josefa, ainda em 1833, fundou o outro jornal “Idade d’Ouro”, junto com

Manuel de Passos Figueroa, que se definia como “jornal político, agrícola e

miscelânico” (MUZART, 2003:230).

Por ordem dos periódicos que se tem notícia, na década de 1850

apareceu o já citado “O Jornal das Senhoras”, dirigido pela argentina

radicada no Rio de Janeiro, Joana Paula Manso. Ele foi publicado no Rio de

Janeiro e no primeiro editorial já expunha o firme propósito a que vinha: “de

incentivar as mulheres a se ilustrarem e buscarem um melhoramento social

e emancipação moral” (DUARTE, 2003:155). Em seus escritos, Joana

acusava os homens, assim como Nísia Floresta, “de egoísmo por

considerarem suas mulheres como crianças mimadas, ou sua propriedade,

ou bonecas disponíveis ao prazer masculino” (DUARTE, 2003:155).

Como diferencial, “O Jornal das Senhoras” trazia a colaboração

de mulheres “tímidas e anônimas” (DUARTE, 2003:155). Para Duarte

(2003:155), o periódico e suas colaboradoras “representaram um decisivo

passo na longa trajetória das mulheres em direção à superação de seus

receios e conscientização de direitos”. Como acentua Muzart (2003), “seu

periódico trazia não somente moda e receitas de cozinha, mas também

idéias e sugestões, pensamentos e críticas” (p.229).

Na década seguinte, apareceu outro jornal de grande relevância

feminista “O Belo Sexo”, publicado no Rio de Janeiro e editado por Júlia de

Albuquerque Sandy Aguiar. Buitoni (1990) fala que “além de fazer

39 CÉSAR, Guilhermino. Mulheres, o assunto. Correio do Povo, Porto Alegre, 24 mar.1973. Caderno de sábado.

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reivindicações, não hesitava em propor um quebra cabeças” (p.53). Nesse

clima de contestação e descontração, Duarte (2003) indica que “a novidade

deste periódico é que as colaboradoras eram incentivadas a assinar seus

trabalhos e participavam efetivamente do jornal, discutindo entre si os temas

a serem publicados” (p.156). No primeiro número, Júlia Albuquerque

afirmava possuir “uma crença inabalável na capacidade intelectual da

mulher” (p.156).

Ao adentrar a década de 1870, Duarte (2003) identifica esses

anos como a segunda onda do feminismo no Brasil. Segundo ela, o período

se caracteriza “pelo espantoso número de jornais e revistas de feição

nitidamente feminista, editados no Rio de Janeiro e em outros pontos do

país” e, ainda, “considerá-la menos literária e mais jornalística” (p.156).

Como exemplo de alguns importantes nos anos 1870, tem-se “O Sexo

Feminino”, dirigido pela professora mineira Francisca Senhorinha da Mota

Diniz.

A trajetória do “Sexo Feminino” é dividida em três fases. A

primeira de 1873 a 1875, a segunda de 1887 a 1889 e a terceira de 1890 a

1896. No ano em que se inicia (1873), “O Sexo Feminino” é lançado em

Minas Gerais, com a tiragem de 800 exemplares. Alguns anos depois, a

professora muda-se com a filha para o Rio de Janeiro, quando se inicia a

segunda fase do periódico. Na terceira fase, entusiasmada com a

Proclamação da República, muda o nome do jornal para “O quinze de

novembro do sexo feminino”.

Em seus artigos, Francisca Senhorinha alertava às mulheres que o grande inimigo era a ignorância de seus direitos, que a ciência dos homens se encarregava de manter. E que apenas com a instrução seria possível quebrar as cadeias que desde séculos de remotos obscurantismo nos rodeia. (DUARTE, 2003: 156).

O sucesso do periódico de Francisca Senhorinha foi tamanho e é

comprovado “quando se sabe que foram impressos mais quatro mil

exemplares dos dez primeiros para atender aos ilustres novos assinantes

do Rio de Janeiro, como o Imperador D. Pedro II e a Princesa Isabel”

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(DUARTE, 2003:156). A professora mineira não se acanhava em expor a

realidade de ignorância, a qual várias mulheres se submetiam. Ela não

ponderava em “atacar” os maridos e a sociedade que tencionava mantê-las

alheias à educação e aos direitos.

É fato averiguado por demais, que os homens se têm descuidado de ornar o espírito da mulher, contentando-se em enfeitar o físico, lisonjeando-lhe a vaidade. (...) É inegável que a mulher (salvo poucas exceções) vive na mais completa ignorância de seus direitos, desconhecendo até aqueles em que a legislação de país a considera solidária - qual é a outorga na alienação de bens imóveis. (...) Quantas mulheres casadas ignoram que o marido não pode dispor por maneira alguma de um imóvel do casal sem ser especial consentimento? (...) Porém, nesta sociedade corrupta, sem moral e sem religião, o casamento é um meio de fazer fortuna, é o fim a que se propõe o homem malandro que não quer trabalhar (...) para apanhar um bom dote, não importa que seja de moça bonita ou feia, velha ou viúva rica; tudo lhe serve. (O Sexo Feminino, 25 de outubro de 1873 pp.1-2, apud HAHNER, 1978:80).

A década de 1870 também foi marcada por outros jornais

feministas. Em 1875, no Rio de Janeiro, foi publicado o “Echo das Damas”.

Editado por Amélia Carolina da Silva Couto, a publicação defendia “a

igualdade, o direito da mulher à educação” (DUARTE, 2003:156). E, ainda,

divulgava as realizações femininas em outros países. Também surgiram

nessa época, “O Domingo” e o “Jornal das Damas”. Segundo Duarte (2003),

ambos “divulgavam idéias novíssimas como a dependência econômica

determina a subjugação e o progresso do país depende de suas mulheres”

(p.157). Além de querer convencer as leitoras de seus direitos à

propriedade e ao trabalho profissional.

Ao aproximar-se do final do século, surge o jornal “A Família”,

dirigido por Josephina Álvares de Azevedo, irmã do poeta Álvares de

Azevedo. Como qualifica Buitoni (1990), “apesar do nome do seu jornal – A

Família- sugerir uma cabeça mais conservadora, seus pensamentos eram

bastante avançados” (p.53). Para se ter uma idéia, Josephina era favorável

ao divórcio e achava absurdo que “no homem residirá sempre o princípio da

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autoridade” (p.53). A duração do periódico de Josephina foi de 1888 a

1897, primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro. Dentre as lutas

travadas por Josephina, Duarte (2003) destaca:

[...] tom assumidamente combativo em prol da emancipação feminina, por questionar a tutela masculina (...) realizou intenso trabalho de militância feminista, sendo incansável na denúncia contra a opressão, nos protestos pela insensibilidade masculina por não reconhecer o direito da mulher ao ensino superior, ao divórcio, ao trabalho remunerado e ao voto. (DUARTE, 2003:157).

Nesse contexto, de produções feministas e femininas, é que se

passa do século XIX para o XX. Nos anos posteriores, diversas mulheres

também marcarão a imprensa brasileira com seus escritos contestatórios.

Dentre elas estão Maria Lacerda de Moura, Carmem da Silva, entre tantas

outras. No entanto, essa inserção das mulheres na imprensa e, por

conseqüência, na formação da opinião púbica, não agradará a muitos,

independente do estado onde as publicações aconteçam.

2.3.2 Efervescência literária no Ceará

A década de 1870, identificada por Duarte (2003) como o período

da segunda onda do feminismo no Brasil, caracterizada com um aumento

nas publicações de periódicos, também foi uma época marcante no que se

refere às produções literárias e, por conseguinte, jornalísticas, inclusive

femininas, no Estado do Ceará. Para Tinhorão (2006), “a década de 1870

marcou, no Ceará, o despontar de uma série de movimentos intelectuais” 40

(p.19), os quais possuíam como instrumento de divulgação das atividades e

idéias, os jornais. Afinal, Demócrito Rocha (1966) já concluíra que a

“imprensa não pode existir sem um fator-lema” (p.327).

40 Tinhorão (2006:19) ainda traz em nota que: “a tal ponto chegou a importância dos movimentos literários do Ceará que o crítico José Veríssimo, na última década do século passado, (...) poderia escrever: ‘Depois do Rio, é o Ceará a terra do Brasil onde é menos apagada a vida literária’”.

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Para Geraldo Nobre (1974), entretanto, mesmo antes de 1870, já

havia se manifestado um “interesse puramente literário na Província do

Ceará” (p.108), onde diversos jornalistas recorriam ao jornalismo como

instrumento da literatura. Apesar de reconhecer que os movimentos

literários aconteceram com maior intensidade no decênio de 1870-1879,

“quando o cearense José de Alencar, na Corte, já havia se firmado como

um dos mais insígnes homens de letras do Império, oferecendo-se à

imitação de seus conterrâneos” (p.p.108-109), Nobre considera que a

iniciação literária no Estado ligou-se ao Liceu do Ceará, cujo funcionamento

iniciou-se em 1845.

Instituição essa que, como define, “mais do que influências

exteriores, e, por motivos óbvios, teve nos jornais o instrumento principal,

visto como os jovens não dispunham de meios para publicar livros”

(NOBRE, 1974:108). Com isso, vê-se que os jornais ou periódicos também

estiveram bastante ligados à literatura, no Ceará. Na década de 1870, as

“agremiações” literárias no Estado foram crescendo em número e adeptos

até que, mais para o final do século, fossem absorvidas algumas mulheres

alfabetizadas e já escritoras. Para Tinhorão (2006), a literatura aflorada

nessa época foi importante porque sinalizou uma “tomada de consciência”

da classe média, recém-formada.

Até porque, embora para ele a literatura representasse, à época,

o aperfeiçoamento cultural visado pela nova camada média, “composta por

burocratas”, como se refere Tinhorão (2006:24), as associações literárias

concretizavam a prova de algo a mais. Segundo ele, o surgimento da

primeira associação literária Fênix Estudantil (1870), formada por um grupo

de meninos de 15 a 19 anos, demonstrou “a prova de que a sociedade de

Fortaleza começava a transcender do rígido dualismo representado pela

existência de uma dezena de famílias ricas, de um lado, e uma população

quase miserável, do outro” (p.26).

Na opinião de Oliveira (2000) apud Almeida (2006), o caráter

gregário de clubes e sociedades se sobressaem nesse período, porque

“eles representavam, para aqueles intelectuais, a única possibilidade de

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verem publicados seus trabalhos, embora em jornais e revistas de vida

curta, seja pelas disputas entre seus sócios, seja pela ausência de um

alicerce econômico mais sólido” (p.p. 39-40). E é, a partir do Fênix

Estudantil, como ressalta Tinhorão (2006), que outras associações vão

surgir. Tais como a Academia Francesa (1872), que em 1873 funda o jornal

“A Fratenidade”; Academia Cearense de Letras (1894), que em 1896 funda

a “Revista da Academia Cearense”; Padaria Espiritual (1892), que fundou o

periódico “O Pão”, também em 1892, entre outros.

Nessas últimas décadas do século XIX, os gêneros literários no

Ceará, acompanharam as mudanças também acontecidas no Brasil. Por

todo o País, espalhavam-se os gêneros Realismo, Naturalismo, seguidores

do Romantismo, no início do século, que tratavam de privilegiar temas reais,

a narração da realidade vivenciada pelos indivíduos. Além de já acontecer,

desde a década de 1830, publicações de jornais dirigidos por mulheres em

outros estados do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro.

De acordo com Almeida (2006), desde os romances que as

mulheres cearenses, tal como as brasileiras, começam a se inserir na

literatura, sejam como leitoras, com as leituras ‘”vigiadas”, ou como

escritoras. Afinal, desde 1827, já havia sido concedido às mulheres o direito

de receber uma alfabetização referente ao 1º grau.

O público leitor ganha consistência e começa a ser integrado por mulheres burguesas. Através dos romances, elas estabeleciam contato com outras culturas, novas vivências e diferentes modos de pensar. Verdadeiro ‘perigo’ para a unidade do lar, sem dúvida, seria um livro ‘errado’ e ‘proibido’ cair nas mãos delas. E a figura feminina, que era o centro do lar, tornava-se também sua ameaça. ‘Influenciáveis’, deviam ser ‘protegidas’ pelos pais, irmãos e maridos, para que leituras ‘frívolas’ não as guiassem para idéias perniciosas, adultérios, rebeldias. (ALMEIDA, 2006:26).

No Ceará, além de ler, as mulheres também começaram a

publicar seus escritos. Na última década do século XIX, mais precisamente

em 1899, é lançado o romance “Rainha do Ignoto”, de Emília de Freitas

considerado com o primeiro de autoria de uma cearense, com traços

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regionalistas. Em 1891, ela já havia lançado um livro de poesia “Canções do

Lar”. Outra escritora que se destaca na época é Serafina Pontes que lança

em 1894 o “Livro d’Alma” e, em 1902, Francisca Clotilde que, além de ser

escritora já era jornalista, publicava o seu romance “A Divorciada”. As três

foram envolvidas com as causas abolicionistas, que perduram nos anos

1880 e também publicaram artigos em jornais em prol da causa, entre

outros assuntos.

2.3.3 Periódicos das mulheres cearenses

Para Teles, M. (1999), essa ligação com os jornais, mais do que

para publicar livros como se apresentava, significou o papel que eles

possuíam em propagar as idéias de um grupo, para trocar informações,

sendo, também, um meio onde as mulheres puderam defender suas idéias

feministas. “Vários brasileiros recorriam à imprensa para informação e troca

de idéias sobre suas crenças e atividades. As feministas brasileiras também

lançaram mão desse recurso” (p.33).

E, ao comparar as brasileiras às cearenses, percebe-se que em

Fortaleza não foi tão diferente assim, embora não sejam encontrados

muitos registros sobre os jornais de autoria feminina no Estado. Conforme

reforça Olga Monte Barroso (1971), a presença feminina na imprensa

cearense tem início ainda na década de 1870:

Admira-se, no entanto, que, na história do Jornalismo Cearense, de 1824 a 1924, o Barão de Studart tenha registrado dezessete periódicos dirigidos por senhoras, entre impressos e manuscritos (...) O primeiro surgiu em 1875, numa seqüência apreciável que colocavam a antiga Província do Império em excelente situação. Chamava-se o ‘Lírio’ e era manuscrito (BARROSO, 1971:486).

Demócrito Rocha, apenas acentua que foram 116 nesse período

e Geraldo Nobre (1974) não enumera seus nomes (de jornais e de

redatoras)41. Ao contrário dos referidos autores, o historiador Barão de

41 Geraldo Nobre (1974:112) apenas registra que Francisca Clotilde, identificada como esposa do capitão Duarte Bezerra, contribuiu com o jornal “Evolução”, ao lado do marido, em 1888. O

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Studart (1924 e 1898) ainda registra outros jornais redigidos por mulheres

na capital e no Interior cearense. Sobre o “Lírio”, Barão de Studart (1924)

ainda esclarece que a publicação era “recreativa dedicada ao bello sexo e

collaborada por algumas senhoras” (p.70). Seu primeiro número saiu em 16

de maio de 1875, em Fortaleza, e o editor era Suitberto Padilha.

Ainda segundo Olga (1971), o movimento abolicionista desperta

os espíritos de Emília de Freitas e Francisca Clotilde e, por isso, “em 1888

surgiu ‘a Evolução’, redatoreados por Francisca Clotilde, Antônio Bezerra

Duarte e Joaquim Fabrício de Barros”. Daí por diante, segundo a autoria,

mais uma dezena de revistas iterarias femininas fundadas em Fortaleza e

nas cidades do interior.

Na década de 1890, Barão de Studart (1924) registra o jornal

“Pimpão”, de Fortaleza, em 1891. “Dizia-se orgam do bello sexo, ter a

redacção no ouco do mundo nº00 e como redactor Mane Cornim” (p.101).

Ainda no século XIX, Studart (1898) menciona a publicação aos domingos

do jornal “O Orvalho”, em Fortaleza. O primeiro número é de quatro de

fevereiro de 1894, sendo manuscrito. “Sob a redacção e collaboração de

algumas jovens de Fortaleza. Redactoras principais: M.”es Célia e Noemi

(pseudonymos)” (p.30).

Na virada do século, Studart (1924) informa o aparecimento de

mais periódicos femininos. Em primeiro de março de 1902, é publicado em

Baturité, o jornal bi-mensal “O Astro”, fundado pelas irmãs Amélia e Olga

Alencar. Como destaca, “O Astro” depois passou a ser publicado na capital

cearense. Ainda em Baturité, Barão de Studart (1924) informa sobre o jornal

“A Estrella”, de 28 de outubro de 1906, dirigido por Antonietta Clotilde e

Carmem Thaumaturgo. De Baturité, o jornal iria ser publicado em Aracati.

Em Camocim, no dia 26 de maio de 1907, é publicado o jornal “A

Violeta”, que saía da tipografia A Palavra. De acordo com Studart (1924),

autor não comenta mais nada sobre a escritora. Nobre (1966:333) aponta, no decênio de 1900 a 1909, o jornal “O Astro”, em Baturité, dirigido pelas irmãs Amélia e Olga Alencar. Por fim, Nobre (1974) cita o jornal o “Lírio” (p.109), mas em explicar a que se destinava e o “Violeta” (1966:333) também sem esclarecer que se referia ao belo sexo.

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ele é um “orgam dedicado ao bello sexo” (p.163). Porém, não é citado quem

dirigia o jornal. No ano seguinte, em 12 de julho de 1908, aparece o jornal

manuscrito aos domingos “O Lyrio”, de Maranguape. Segundo Studart

(1924), as redatoras eram “as meninas Inah Montezuma, Icléa Brazil e

Bebella Rodrigues, alunnas da professora Maria Leonese” (p.167).

A cidade de Baturité ainda contaria com mais uma publicação

feminina. Em 15 de setembro de 1909, é publicado o primeiro número do “A

Innocencia”, manuscrito redigido por Maria Luiza Campello e Eulália

Magalhães. Studart (1924) diz que se tratava de “um jornalzinho literário”

(p.173). Provavelmente, nos anos posteriores, devem ter aparecido mais

jornais redigidos e dirigidos por mulheres cearenses.

Em paralelo a esses periódicos, as mulheres também passaram a

colaborar com jornais dirigidos por homens, como ressalta Antônio Bezerra

(2001), elas “(...) honram os jornais com os seus escritos” (p.75). Elas

possuíam relação com a literatura, como já foi ressaltado, mesmo que

algumas ainda reclusas em suas casas. Aos poucos, elas foram

conquistando o espaço público, inclusive a participação em associações e

clubes literários, com se vê mais adiante com Alba Valdez, integrando o

quadro de participantes da Academia Cearense de Letras.

2.4 MULHERES COM A PALAVRA EM PÚBLICO

Sem entrar em pormenores, a terceira lei do físico inglês Isaac

Newton (1642-1727), também conhecida como princípio da ação e reação,

já dizia que: “se um corpo A aplica uma força sobre um corpo B, este corpo

B aplicará simultaneamente uma força de igual intensidade e direção, mas

sentido contrário, sobre o corpo A". Certo que não se pode guiar todos os

comportamentos humanos por princípios físicos, no entanto, com a inserção

das mulheres no espaço público e a emergência das lutas feministas,

sobretudo a partir das produções impressas, em jornais, pôde-se perceber

que a “reação” não foi tão diferente da que prega a lei assim.

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Na verdade, desde quando começaram a surgir publicamente

textos (sejam livros ou artigos) literários de autoria feminina, as críticas,

principalmente masculinas, são ferrenhas à “Nova Mulher” 42. Afinal, como

afirmam Perrot e Fraisse (1994) a idéia que predomina durante o século XIX

e nas primeiras décadas do século XX é que se a mãe continuar “educando

os seus filhos como bons cidadãos, reforça a ordem cívica na qual ela vive”

(p.36). Ou, ainda, como assinala Teles, M. (1999):

Com esse conteúdo educacional, a mulher se tornava mais tímida, ignorante e submissa. E os valores e idéias que transmitiam eram os mesmos que aprendera: tradicionais, conservadores e atrasados. Assim, ela se tornava um elemento fundamental para manter a situação existente. (TELES, M., 1999: 20).

De toda forma, a mulher se tornava o principal elemento familiar

para perdurar a idéia de que o sexo feminino deve ser submisso ao

patriarca, se restringir ao lar, não lidar com política, isto é, com assuntos do

espaço público destinados aos homens, enfim, educar tanto os filhos quanto

as filhas para que soubessem, ainda na infância, qual seu “lugar” na

sociedade.

Inclusive, conforme ressalta Telles, N. (2002), entre os anos de

1889 e 1900, médicos, jornalistas e políticos, alarmados com a onda

crescente da denominada “Nova Mulher”, uniram-se para condená-la e

celebrar a “antiga”. “Na Inglaterra, os médicos sustentavam que desenvolver

o cérebro, para a mulher, implicava em não nutrir o útero e, por isso, se o

fizesse ela não poderia mais servir à reprodução da espécie” (p.432).

42 De acordo com Telles, N. (2002:432), “nas últimas décadas do século XIX, avançava a idéia da Nova Mulher. (...) muito difundida na Europa, vinha tentar substituir as esquisitices da mulher antiga, a solteirona da literatura ou da opinião pública, sexualmente reprimida (...). A Nova Mulher pretendia ser sexualmente independente, criticava a insistência da sociedade do casamento como única opção de vida”.

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Entende-se que a separação ou divisão de espaços (públicos e

privados) deveria permanecer. Por isso mesmo, a mulher que ousasse

mudar essa concepção, ou determinação biológica, não era bem–vista43.

Uma mulher que falasse agressivamente ou afirmamente, o que nos homens era sinal de personalidade, era considerada mal-educada, tresloucada e até histérica. A não-afirmação social da mulher se repetia na sua não-afirmação na palavra. (TELLES, N., 2002:423)

E nessa intenção de não-afirmação pela palavra, tentativa de

negar à mulher a possibilidade de transgredir as normas e questionar o que

já estava estabelecido, é o que Colasanti (1997) aponta como sendo o

motivo para o não reconhecimento de uma literatura de autoria feminina.

No reconhecimento de uma literatura feminina, viria embutido o reconhecimento de uma linguagem individual. E esse reconhecimento levaria, não apenas à legitimação de transgressão por parte das mulheres, como à afirmação inequívoca de que transgredir faz parte da sua natureza e não diminui em nada a feminilidade. (COLASANTI, 1997: 41).

Por conta disso, diversas mulheres que escreviam, e mais além,

começavam a se inserir no espaço público, encontravam críticas ao seu

trabalho, à sua capacidade e, sobretudo, no que se refere ao estilo e aos

temas abordados em seus textos.

Certo crítico ironizou o narcisismo da ficcionista brasileira preocupada demais com a própria face. Com o próprio umbigo. E não se lembrou de pesquisar nesse feitio intimista...a tradição da mulher-goiabada mexendo infinitamente o tacho de doce.. Trancada a sete chaves, não dispunha de uma fresta sequer para se expressar. Agora ela está se descobrindo: que o mundo há de querer mostrar senão o próprio? (TELLES, L. 1997:58).

43 Perrot (1992) discute que a exclusão da mulher pela diferenciação entre os sexos é um velho

discurso que retoma no século XIX. Segundo ela, “é um discurso naturalista que insiste na existência de duas espécies com qualidade e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que falo), a inteligência, a razão lúdica, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos” (p.177).

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Para Lygia Telles (1997), nada mais “normal” do que uma mulher

adotar como enfoque privilegiado o próprio universo feminino. Afinal, de

acordo com ela, a escrita reflete a mudança assumida pelo sexo feminino

durante os anos. Por isso mesmo, para a escritora, essa literatura possui

características particulares:

A ficção feita por mulheres tem suas características próprias, é mais intimista, mais confessional: a mulher está podendo se revelar, se buscar e se definir, o que a faz escolher um estilo de mergulhos em si mesma, aparentemente narcisista porque precisa falar de si própria, deslumbrada às vezes com as suas descobertas, como se acabasse de nascer. (TELLES, L., 1997:57).

De fato, diante da escrita literária e também em jornais sobre si

próprias e dos ideais libertários, já discutidos, as mulheres foram, no

decorrer dos anos, mudando a postura (de comportamento e pensamento)

na sociedade em que se encontravam.

Segundo Maluf e Mott (1998), ao se deparar com a variedade de

questionamentos agora existentes e de linguagens novas nas cidades

brasileiras, intelectuais de ambos os sexos elegeram como legítimos

responsáveis pela suposta corrosão da ordem social a quebra de costumes,

“as inovações nas rotinas das mulheres e, principalmente, as modificações

nas reações entre homens e mulheres” (p.371).

Ainda como ressaltam as autoras, “homens e mulheres se

acusavam reciprocamente como os principais causadores de uma

intolerável corrosão dos costumes” (MALUF e MOTT, 1998:372). A

propósito, os jornais e revistas eram os únicos meios de comunicação de

massa existentes até a chegada do rádio no Brasil, em 192244. E eles

também serviram de espaço para as acusações mútuas. A exemplo, tem-se

o texto publicado na Revista “Fon Fon”, em 4 de janeiro de 1908, no qual

ironicamente são retratadas várias reivindicações femininas. Nesse texto,

até mesmo a barba torna-se uma demanda delas:

44 Sobre o assunto ver: CALARE, Lia. A era do rádio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

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Já não somente as profissões, já não se limitam aos direitos civis e políticos; não param também nos vestiários as reivindicações das nossas ardentes feministas. Há agora uma tendência pronunciada para usar coisas até agora permitida para o sexo feio. É assim que brevemente aparecerá uma obra da ilustrada Sra. X... reivindicando o direito das senhoras usarem barbas também. (SOIHET apud ALMEIDA, 2006:48).

A imprensa cearense também estava permeada de conselhos,

críticas e “ataques” a essa nova mulher que se apresentava. Além da

revista Fon-Fon, tem-se também o jornal “O Nordeste”, dirigido pela Diocese

de Fortaleza. O periódico trazia a “Página Feminina”, espaço dedicado às

mulheres no qual havia “orientações cristãs” para as leitoras. Na edição do

dia 09 de março de 1927, a página feminina trouxe dois textos. O primeiro

foi intitulado de “A utilidade da mulher”, no qual três críticas foram feitas ao

comportamento das mulheres e às feministas.

O maior encanto da mulher reside na sua fragilidade. É esse o seu poder mais irresistivel. No dia em que ella em tudo se assemelhar aos homens, é porque sentiu a certeza que poderá prescindir da sua protecção... E neste caso a sua graça dissipar-se-á como o fumo..../ Entre uma mulher literata, feminista, que fume e faça versos e outra que apenas conheça os arranjos de uma bôa dona de casa – opto pela ultima. Assim, tem-se sempre a certeza da hora do jantar!/ Ha três missões divinas da mulher na terra: ser filha obediente, ser esposa carinhosa e fiel e mãe amavel e educadora. Desde que não seja integralmente uma destas três coisas, a mulher deixa de representar um papel social para ser um elemento inutil. A graça e a formosura não bastam para justificar os males que advêm da falta de cumprimento daquella. (sic)

Já o segundo texto levou o título de “O codigo da mulher” (sic). O

primeiro conselho dizia: “O pudor vale mais que o corpo. Conserva o teu

pudor”. O seguinte sugeria: “Não tenhas muitas amigas. As mulheres são

egoistas” (p.03). No mesmo periódico, no dia 23 de março de 1927, a

“Página Feminina” abordou dessa vez o tema do feminismo. O artigo levou

o nome do tema “Feminismo” e foi assinado por Mattos Além. O autor se

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propôs a explicar o que seria, na verdade, o movimento, que estaria sendo

distorcido pelas mulheres:

Feminismo não é deitar verbo inflammado em reuniões anti-masculinas, de onde não sae proveito algum para a mulher. O verdadeiro feminismo, a meu ver, consiste em fazer a mulher com carinho e zelo o seu papel no mundo que é ser rainha do lar. Não digo que ella não appareça na vida publica na vida publica. Mas nos devidos limites do conveniente e proprio ao seu sexo. (sic).

Mattos Além continua seu artigo opinando sobre a leitura e

reivindicações feministas como o voto:

Estudam nos livros que lhes vêm de paises em que o feminismo vence. Mas não assimilam o que lêem. Dahi o absurdo do seu feminismo feito de despeito e inveja. Que tanto desejo de serem homens... Os homens, porém, que me conste, nunca desejaram ser mulheres. A mulher, nos governos, seria um desastre... A administração publica não é bem a direcção de um lar. Ellas desejam o voto feminino. E isto, num país em que nem os homens votam, esse voto de nada vale! Não tenho nenhum motivo para dizer mal da mulher. Respeito todas como mães, pois, quando não o são poderiam e poderão sê-lo. Mas sou contra esse feminismo de mentira e exibição. (sic).

De uma forma geral, o jornal se opunha à moda e indicava a

religião como o caminho a ser seguido pelas leitoras. As mulheres eram

vistas como suscetíveis aos “desfrutes da moda”, sendo esta responsável

por “corromper a mulher pelo luxo”. No texto “A moda nacional”, publicado

no mesmo periódico, no dia 11 de abril de 1927, o autor (desconhecido)

afirma que:

[...] a moda, de que é figurino a literatura immoral, tem por objetivo corromper a mulher pelo luxo e, pelo prazer, pela sensualidade, por falsos e ignaros direitos. (...) Corrompida a mulher, o lar desfaz-se, a família desmorona-se, a sociedade resvala para o abysmo. A mulher é fraca, e o homem que devia defender, desampara-a rendendo também culto à trivialidade. Só a religião a defende[...]. (sic).

Outro jornal cearense com uma postura semelhante ao “O

Nordeste”, é o “Jornal do Comércio”, dirigido por Meton Gadelha, para

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atender os interesses do Partido Republicano Conservador. Na edição do

dia cinco de maio de 1930, a colaboradora do periódico Carmem Sylva

assina o texto com o título “A Felicidade do Lar”. Por meio dele, a autora

enumera algumas atitudes que uma mulher deve tomar, para o bem da vida

conjugal:

[...] 3º - Não peça muitas vezes dinheiro a teu marido. Esforça-te para te arranjares com o dinheiro que elle te dá. 4º-Se perceberes que teu marido tem o coração um tanto vasto, lembra-te igualmente que elle tem um estomago. Cuida bem do seu estomago e, em breve, ganharás o seu coração. 5º- Uma vez ou outra, mas não muito frequentemente, permite ao teu marido a ultima palavra; com isso, dá-lhe prazer e em nada te prejudicas. (...) 8º- Uma vez ou outra, elogia-o, dizendo-lhe que elle é o mais amável dos companheiros, mas dá-lhe a entender que tu não deixas também de ter defeitos. 9º- Si teu marido é intelligente, activo, sê para elle uma boa companheira, si é menos vivo, sê para elle uma amiga e uma conselheira. (sic).

Ainda no “Jornal do Comércio”, na edição dia 23 de maio, é

encontrado o texto nomeado “Os 10 mandamentos da boa dona de casa”.

Dentre os dez, os tópicos que mais chamam atenção é o IX que indica:

“Faze as tuas compras, determina o serviço e depois cuida de ti” e o X, que

diz: “Não importunes nunca o teu marido com o serviço de criadagem”.

Conforme lembra a jornalista Luciana Almeida (2006), mesmo em

meio às críticas às mulheres e tentativas de convencê-las a permanecer

submissas ao casamento, havia, sim, dois elogios possíveis às escritoras.

“(...) a escrita com características masculinas – caso a mulher escrevesse

“quase” tão perfeitamente quanto um homem – e a vida exemplarmente

digna” (p.47). Nesse sentido, também predominava a descrença no talento

feminino. Almeida ressalta que “ainda havia os críticos que tentavam

adivinhar qual o famoso escritor que se escondia sob os pseudônimos45

femininos...” (p.47).

45Telles (2002: 431) esclarece que no início do século foi comum escritoras usarem um pseudônimo para encobrirem a identidade e serem aceitas pelo público. Nas últimas décadas, a adoção passou a ter outra conotação. Agora, começa a ser usado como palavra de poder, marca de um batismo privado “para o nascimento de um outro eu”.

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Para Colasanti (1997), a solução para as mulheres mudarem o

quadro de discriminação quanto à escrita de gênero, é não aceitar a

pergunta se existe uma literatura feminina. Em sua opinião, por trás desse

questionamento, prevalece a tentativa de colocar em dúvida a existência

dessa literatura:

Aquilo que se duvida está em suspeição. Está em suspensão. Enquanto a pergunta foi aceita, a dúvida estará sendo aceita com ela. E a nossa literatura a literatura das mulheres, estará suspensa, no limbo, num espaço intermediário entre o paraíso da plena literatura e o inferno da não-escrita (COLASANTI, 1997:37).

Além disso, é perceptível a necessidade vista pelos mais

conservadores em evitar a inserção das mulheres nos espaços públicos e

também a apropriação por elas dos meios de comunicação de massa. Ao se

pensar no contexto social da época (século XIX e início do XX), lembra-se

que com o capitalismo, desde o final do século XVIII, houve a emergência

da classe social que não dirige o Estado e é, ainda nos primórdios do

capitalismo, privada do poder. A burguesia, nas palavras de Almeida (1998),

na época “é fraca no poder público mais vai assumindo uma posição central

no público” (p.02).

No entanto, apesar do Estado ser administrado pela nobreza, ele

vai sendo palco para a burguesia que, durante o século XIX, “está se

tornando mais educada (letrada) e se constituindo como um público

economicamente poderoso que consome informações (imprensa), discute

suas preocupações culturais e matérias em variados fóruns informais (como

café e salões de festa) ou formais (gabinetes de leitura) e busca influir nos

rumos políticos” (ALMEIDA 1998:02).

Jürgen Habermas (1984) nomeia esse espaço público que a

burguesia penetra como “esfera pública burguesa”. Como define, ela é:

[...] a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera

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fundamentalmente privada, mas publicamente relevante (HABERMAS, 1984:42).

Ou então, como indica: “A própria esfera pública se apresenta

como uma esfera: o âmbito do que é setor público contrapõe-se ao privado”

(HABERMAS, 1984:14). Isto é, ao se participar da esfera pública, pode-se

interferir nas principais discussões e decisões acerca das instituições de

caráter público. Para Habermas (1984), “incluem-se entre os ‘órgãos da

esfera pública’ os órgãos estatais ou então os mídia que, como a imprensa,

servem para que as pessoas se comuniquem” (p.15). Bem verdade que

Habermas (1984) reconhece que, com a ascensão da burguesia, houve

uma mudança nos interesses antes vigentes na esfera pública.

[...] o tema da esfera pública moderna, em comparação com a antiga, deslocou-se das tarefas propriamente políticas de uma comunidade de cidadãos agindo em conjunto (jurisdição no plano interno, auto-afirmação perante ao plano externo) para as tarefas mais propriamente civis de uma sociedade que debate publicamente (para garantir a troca de mercadorias). (HABERMAS, 1984:69)

No entanto, embora tenha havido essa distorção das tarefas da

esfera pública, baseada em agora ser um espaço para mediação e de

interesse da burguesia, ainda é possível ela ser um espaço de diálogo e

mudanças entre/ para os indivíduos. De acordo com Silva (2001), Habermas

desenvolve a Teoria da Ação comunicativa, com a qual se busca “uma

sociologia da ação comunicativa em que o universo subjetivo, a ação

política e a racionalidade dos indivíduos se constituem em elementos

estruturados de formação e revitalização da esfera pública na busca da

emancipação social” (p.05).

Como explica Silva (2001), a ação ou razão comunicativa se

contrapõe à razão instrumental, que é definida por Weber (1992) por possuir

um caráter utilitarista em que “(...) as ações dos indivíduos são mediadas

por algum tipo de interesse com um sentido subjetivo. (...) os meios estão

justificados na busca de determinados fins, fundamentados pela

individualização da ação social” (SILVA, 2001:03). No capitalismo moderno

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ocidental, percebe-se essa lógica racional ordenada, no qual há o

desenvolvimento da nova “ordem” de lucro acumulativo.

No entanto, como enumera Silva (2001), Habermas defende que

é possível ocorrer uma reabilitação da esfera pública. Para o filósofo, isso é

possível a partir da comunicatividade e mundo de vida. No que se refere à

comunicatividade, que mais nos interessa no contexto, a ação comunicativa

“serve para uma ampliação compreensiva que dê conta de outras formas de

expressividade do agente comunicativo que não se limita apenas a

formalidade normativa da ação” (SILVA, 2001:06). Dito de outra forma, o

agente comunicativo não precisa limitar à função normativa do comunicar,

mas também deve se ater às “orientações dialógicas das ações sociais”

(p.05). Como continua o autor, isso deve ser feito “por uma postura

dialógica, compreensiva e democrática na órbita de um consenso

comunicativo, que nesse sentido deveria ser construído dentro das relações

sociais em função das racionalidades das ações” (p.05).

Com base na teoria de Habermas, pode-se perceber a

necessidade das mulheres conseguirem expor suas lutas e ideais nos

meios de comunicação de massa. Afinal, se a imprensa é um órgão que faz

parte da esfera pública e só ela pode mudar o foco de troca de mercadorias,

através da comunicação dialógica com os indivíduos (razão comunicativa),

eis a sua lógica e explicação para as críticas “ferozes” para barrar a mulher

nessa “inserção comunicativa”. E, ainda, a importância delas assumirem e

lutarem pelo direito de se representarem através da própria palavra (de

autoria feminina) nos meios de comunicação.

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CAPÍTULO III: NÃO APENAS MAIS UMA MARIA

Tudo em mim é fraqueza. Pois da própria fraqueza construirei a força necessária para

comunicar as minhas emoções.

Alba Valdez, escritora, professora e jornalista cearense, em 1937.

Ao unir as “Marias” e a expressão por meio de palavras,

consegue-se visualizar a junção que floresceu no século XIX e nas

primeiras décadas do século seguinte, por todo o Brasil. No Ceará, por

exemplo, centenas de “Marias”, acompanhadas de “Josés”, instalaram-se na

capital. Ao mesmo tempo, elas, antes misturadas em um grupo sem o “algo

a mais” da educação, começam a ser alfabetizadas; a contestar as

determinações; a questionar os limites e as tradições, enfim, a fazer ecoar

as transformações anunciadas por diversas mulheres pelo País afora.

Assim, vai-se ao encontro de uma Maria, que como já foi

pronunciado, não se contentou em ser apenas mais uma Maria Rodrigues

Peixe, que, como tantas outras, tinham seus direitos negados. Ela leu,

escreveu, lecionou e lutou, tendo a palavra como arma, para mudar o

destino das muitas “Marias”, que por serem do sexo feminino, deviam se

portar como tal. Com a ajuda dos novos tempos e a força dos ventos

emancipatórios, esta Maria despontou para a vida pública, mostrou-se com

as suas palavras e emoções. Eis seu exemplo.

3.1. A TRAJETÓRIA DA MARIA CONHECIDA POR ALBA

Ela chegou em Fortaleza como tantos outros cearenses

chegaram: trazida pela seca. O ano era 1877, e, a hoje capital do Ceará,

vivia um momento de ebulição em vários sentidos. Seja no econômico, com

a participação efetiva no rol das exportações; seja no cultural, com a

emergência de movimentos literários e filosóficos, os quais permearam toda

essa década; no social, com as inovações de embelezamento e

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aformoseamento da cidade ou no comunicacional, com um número elevado

de periódicos, totalizando 116 até 1879. Ou seja, quando os retirantes e os

demais imigrantes de mais uma seca, cujo fim só se deu no último ano da

década de 1870, transferiram-se para o “centro das mudanças”, os

fortalezenses, que aqui já residiam, viviam num verdadeiro êxtase

europeu46.

As características físicas dessa Maria até lembravam a

descendência e a origem européia, as quais muitos cearenses sonhavam

despontar, em virtude da influência francesa. De acordo com Barroso

(1971), Maria Rodrigues Peixe assim era descrita: “bonita, olhos azuis

safira, cabelos louros, porte elegante e naquela última moda vestida até o

tornozelo” (p.487). Maria Rodrigues Peixe era seu nome de menina, pois,

com o passar dos anos, adotaria o pseudônimo de “Alba Valdez”, por meio

do qual se tornou conhecida no universo das letras.

Chegou à capital aos três anos de idade, já que nascera em 12

de dezembro de 1874. Sua cidade natal era a Vila de São Francisco de

Uruburetama, hoje nomeada Itapajé, situada na região Norte do Estado, a

125 km de Fortaleza. Ao sair de lá, Maria veio na companhia da mãe Isabel

Alves Rodrigues Peixe e do pai João Rodrigues Peixe, deixando para trás o

sítio Espírito Santo, onde de fato nascera.

Realizou seus primeiros estudos na escola primária pública

Isabel Teófilo Spinosa. “Sempre se destacando como a primeira da classe”,

como ressalta Olga Barroso (1992:55). Ou, ainda, como complementa

Raimundo Girão (1975:77), “vencendo as cinco classes com notas

distintas”.

Não se sabe ao certo em que ano Alba Valdez concluiu o

primário, no entanto, ela fazia parte de uma pequena parcela de

alfabetizados no País. Hanher (2003) afirma que, na época, essa era uma

realidade para poucos, denominados de “bem nascidos”:

46 O jornal “O Retirante”, editado por Luiz de Miranda entre os anos de 1877 e 1878, em Fortaleza, registra essa contradição existente na cidade. O periódico se proclamava como “orgaum das victimas da secca” e criticava os costumes europeus mantidos diante das dezenas de miseráveis que chegavam à capital, diariamente.

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[...] poucos brasileiros tinham acesso à escola. A educação continuava limitada em grande parte aos seus bem nascidos ou aos de boa posição social e econômica. De acordo com o censo de 1872, somente 19,8% dos homens e 11,5% das mulheres no país sabiam ler e escrever. Em 1873, o Império contava com apenas 5.077 escolas primárias públicas e privadas. Estas escolas tinham um total de 114.014 alunos e 46.246 alunas, enquanto a população brasileira excedia a 10 milhões de pessoas. (HAHNER, 2003:75) 47.

Em seguida à alfabetização, mais precisamente em 1886, Alba

matriculou-se na Escola Normal do Ceará. A instituição, para formar

professoras primárias, havia sido inaugurada dois anos antes, em 22 de

março, pelo presidente da Província Satyro Dias. O então presidente foi o

mesmo que três dias depois declarou que o Ceará estava livre de escravos.

De acordo com a nota “Escola Normal” publicada no jornal “O

Nordeste”, de 22 de março de 1927, em comemoração aos 43 anos de

existência da escola, é reconhecida a importância que o espaço adquiriu

com o passar dos anos. “(...) ninguém negará que (a escola) tenha sido de

maior proveito para os interesses attinentes á educação popular em nosso

Estado“(sic). Além disso, o periódico descreve que a instituição “está cada

vez mais apta para prestar ao Estado a maior somma de benefícios,

armando, as professoras que dali saem, de ponto em branco para as lides

afanosas do ensino primário entre nós” (sic).

“Ótima aluna”, segundo Raimundo de Menezes (1978), Alba

conquistou o “almejado diploma”, conforme adjetiva Dolor Barreira (1962),

em 1889, quando ainda não contava dezesseis anos completos. Com o

diploma, Alba passou a compor o quadro de professoras primárias no

Estado e lecionou no Grupo Escolar de Fortaleza.

Conforme June Hahner (2003), no Brasil, o componente feminino

que tinha suas ocupações como profissionais liberais, incluindo professoras

e parteiras, era de 22,4 %, das 3,365 mulheres, em 1872. Em 1920, esse

47 Fonte: Brasil, Diretoria Geral de Estatística, Recenseamento da população do Império do

Brasil a que se procedeu no dia 1º de agosto de 1872. Município Neutro, 21:102; (HAHNER, 2003:75).

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percentual sobe para 32,4%, das 51,474 mulheres brasileiras 48. Isto é, Alba

compunha o crescente número brasileiro de mulheres quem, ao concluir

seus estudos, destinavam-se a educar.

Na opinião de Olga Barroso (1971), “Alba exercia o magistério

com muita dedicação” (p.487). Tanto é que, em 1892, no governo do Major

Benjamim Liberato Barroso, foi nomeada professora efetiva em Fortaleza,

onde permaneceu até se aposentar em 1921. Entretanto, como destaca

Raimundo Girão (1975), embora houvesse essa dedicação por parte da

professora, isso não a impediu de se dedicar ao jornalismo e aos estudos

literários.

No que se refere às publicações em jornais, Dolor Barreira (1962)

registra que sua estréia foi em 1895, conforme afirma Eusébio de Sousa. “O

Dr. Justiniano de Serpa, redator-chefe do Diário do Ceará, a convidou para

colaborar nessa folha que circulou até o ano seguinte. De então em diante,

não cessou mais sua apreciável contribuição a jornais outros” (p.180).

No período em que Alba Valdez iniciou sua participação com

contos, crônicas, discursos, poesias e artigos na imprensa, Geraldo Nobre

(1966) indica que Demócrito Rocha, para a segunda edição do livro “O

Ceará” (1945), fez um levantamento de jornais com base nos dados do

catálogo geral de Barão de Studart. Segundo ele, “nada menos de 265

títulos foram arrolados pelo grande pesquisador da nossa história de 1880 a

1899, contra 175 nos últimos dez anos do ‘Antigo Regime’” (p.329).

Com a virada para o século XX, diversas foram as mudanças

ocorridas no Estado, em especial no jornalismo, e na atuação de Alba

Valdez na sociedade, na imprensa e na literatura cearenses. Em relação ao

jornalismo, Sodré (1983) afirma que, em todos os estados brasileiros,

ocorreram mudanças na estrutura e nas produções dos jornais, agora

reconhecidos como empresas jornalísticas:

48 Fonte: Brasil, Diretoria Geral de Estatística, Recenseamento da população do Império do

Brasil a que se procedeu no dia 1º de setembro de 1920, vol.4, parte 4 p.xii, xvi (HAHNER, 2003:75).

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A passagem do século, assim, assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande imprensa. Os pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função. (SODRÉ, 1983:275).

Nilson Lage (1979) reconhece essa nova etapa como resultado

direto da Revolução Industrial. “Uma conseqüência particular da Revolução

Industrial foi a mecanização do processo de produção dos jornais. Isto lhes

permitiu multiplicar as tiragens, estabelecendo padrões de circulação bem

acima dos da fase anterior”(p.21). No Estado, Geraldo Nobre (1996)

ressalta que foi perceptível o crescente o número de jornais. Segundo ele,

foram 345 publicações entre 1900-1909 e 311, entre 1910-1919.

No entanto, conforme atentou, não se pode atribuir o aumento

nas publicações somente à passagem do século XIX para o XX. Ele

também ressalta que houve modificações no equipamento técnico,

sobretudo na capital, antes mesmo do final do século, além de outros

motivos particulares à região.

Em primeiro lugar, nos últimos anos da Monarquia fôra retomado o desenvolvimento industrial, com o estabelecimento de fábricas e oficinas, inclusive tipografias nas principais cidades do país, entre elas Fortaleza. Na capital cearense eram numerosas, relativamente às condições da época, as emprêsas exploradoras do ramo das artes gráficas, mesmo antes de 1889. (...) Também exerceu considerável influência no surto da imprensa, durante o último decênio do século passado, em Fortaleza, o funcionamento da Escola Militar, responsável pelo surgimento de publicações. (...) Igualmente, influiu a intensificação da vida associativa, representada, principalmente, pela fundação ‘Fênix Caixeral’, cujos associados redigiram, de parceria com alunos da Escola Militar [...]. (NOBRE, 1966: 329).

Com o notável aumento na quantidade de periódicos, também

pelas mudanças técnicas na produção destes, houve mais espaço para a

participação de outros escritores nos jornais. A professora e colaboradora

da imprensa, Alba Valdez, também acompanhou a nova abertura e se

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inseriu, mais incisivamente no século XX, nos jornais e revistas literários,

informativos, políticos e católicos do Estado e fora dele.

[...] encontramos notícias de Alba Valdez, jovem, participando ativamente da vida cultural de Fortaleza, fazendo palestras e publicando, na imprensa da época, artigos em que se manifestava a respeito de política, da condição feminina, da sociedade patriarcal e do papel social da educação. Colaborou intensamente em diversos jornais, revistas e almanaques de seu tempo (...). (DUARTE, 2004:626).

Com base nos temas, percebe-se que Alba estava ligada, mesmo

com pouca idade, às reivindicações feministas que já circulavam na

imprensa, inclusive nos jornais dirigidos por mulheres, desde a década de

1830, por todo o País. É bem verdade que, no século XX, quando Alba

intensificou sua colaboração nos jornais, as reivindicações não eram as

mesmas do início do século XIX. Entretanto, ela discutiu sobre o veto ao

voto e as discriminações abusivas na sociedade brasileira.

Essa nota de precocidade, que se pode considerar uma tônica na sua vida, fê-la sempre antecipar-se na manifestação de seu talento literário, e de suas atividades feministas, não obstante as incompreensões e dificuldades de um meio ambiente que jamais foi favorável à expansão do talento feminino. Reagiu constantemente contra as limitações desse condicionamento patriarcal, pastoril e provinciano, em que a mulher era inferiorizada, vivendo distanciada dos problemas sociais, políticos e econômicos de seu Estado. (BARROSO, 1992: 55).

Como exemplos de suas contribuições em periódicos e revistas

cearenses, pernambucanas e gaúchas são encontrados textos como “A

Boda”, “Descrição Cearense” e “Visão do Crepúsculo” no jornal O Lyrio, de

Recife, em março, abril e maio de 1903, respectivamente. “Eterna História”,

conto, em Revista do Ceará, ano I, n.2, 1905 e, no segundo tomo, “História”,

p.210. “Poeira”, estudo crítico sobre o livro de versos de igual título, de

Humberto Campos, na revista A Jangada, Fortaleza, em março de 1911.

“Uma definição de Gross”, in Panóplia, ano1, n.4, jan-fev. de

1914, Fortaleza. “Liga Cearense contra o Analfabetismo”, discurso proferido

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no Palácio Fênix Caixeral, por ocasião da festa inaugural de três escolas

noturnas, em Diário do Ceará, Fortaleza, 17 de abril de 1917. “Musa

maranhense”, uma “crítica simpática”, nas palavras de Dolor Barreira

(1962:180), do livro de versos “Cambiantes”, da poetisa maranhense

Leonete Oliveira, em Correio do Ceará, Fortaleza, julho de 1917. “Às

senhoras cearenses”, em Correio do Ceará, Fortaleza, 1919. “Ceará, terra

do Brasil”, em Íris, Porto Alegre, 1920.

“A sempre nova questão do ensino”, em Ano Escolar, Rio de

Janeiro, 1921, pp.304-307. “O espírito popular cearense”, em Almanaque do

Ceará, 1922. “Nacionalismo”, em Correio do Ceará, Fortaleza, 1922. “Os

jangadeiros”, em O Nordeste, Fortaleza, em junho de 1923. “Carta a

Rodolfo Teófilo”, em A Tribuna, Fortaleza, 1922. “O horrível morbus”, em O

Nordeste, Fortaleza, em 1927. “O horrível brasileiro”, em A Razão,

Fortaleza, 1929. “De pé”, em Jornal do Comércio, em maio de 1930, que

também foi transcrito para o jornal A Nação, Rio de Janeiro, no mesmo ano.

“Mensagem da mulher cearense à mulher pernambucana”, em

Diário da Manhã, Recife, 1935. “A jangada abolicionista”, em Revista da

Sociedade Cearense de Geografia e História, vol.1, ano 1, outubro de 1935.

pp.60-64. “Trabalho lido por comemoração do Quinquagenário do Instituto

do Ceará”, em Revista do Instituto do Ceará, março de 1937. “Uma

conversa no Café Art-Nouveau” (capítulo inicial de um romance em

preparo), em Revista da Academia Cearense de Letras, v.1, tomo 1, pp. 30-

35,1938. “Barão de Studart e operosidade intelectual”, em Revista do

Instituto, tomo especial, pp.117-118, 1938.

“Palavra da mulher cearense” (entrevista concedida sobre as

eleições de 1946, o voto feminino, entre outros), jornal O Estado,

Fortaleza,1945. “Uma grande figura educacional do Ceará” (esboço do uma

biografia do prof. José Barcelos), em Revista do Instituto do Ceará, em

1949. “A bela missão de Ana Facó” (discurso em homenagem ao centenário

de nascimento da romancista e teatróloga cearense), em Unitário,

Fortaleza, em 1955, entre outros.

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Além dos trabalhos citados, que constam nas publicações sobre

Alba Valdez, acrescento mais três produções, inéditas, da escritora,

professora e jornalista cearense49. O primeiro é “Impressões d’um livro”, no

jornal literário O Bandeirante, Fortaleza, em setembro de 1910. “A belleza

errante da luz” (poesia sobre o sol), em Correio do Ceará, Fortaleza, em

março de1928 e “Sobre Cartliharias” (carta de Alba Valdez e Padre Cícero),

em Correio do Ceará, Fortaleza, em outubro de 192950.

Em paralelo às contribuições nos jornais, Alba Valdez também foi

atuante na sociedade literária. Ainda no século XIX, a professora chegou a

compor várias agremiações voltadas para literatura. Como exemplo, tem-se

o “Centro Literário”, fundado no escritório da redação do Jornal “O

Comércio”, em 27 de setembro de 1894 (cerca de um mês depois do

aparecimento da Academia Cearense). Apesar de Dolor Barreira (1962:183)

afirmar a presença da escritora na associação, ele não a coloca na lista de

sócios efetivos, sequer na de correspondentes (1948:232-233), na qual

estão Julieta de Melo Monteiro, Revocata de Melo e Maria Matilde.

Segundo Barreira (1948), a criação do Centro Literário foi idéia

do escritor Pápi Júnior, que se uniu a Temístocles Machado e Álvaro

Martins, os três oriundos da Padaria Espiritual. A fundação da associação

ocorreu por não concordarem com o exclusivismo da Padaria Espiritual “que

só admitia no seu grêmio determinados estreantes, que muitas vezes não

oferecia requisitos mentais compatíveis com a reputação da Sociedade”

(p.229). Em dois de abril de 1895, sob a redação de Pedro Moniz e Júlio

Olímpio foi publicado o primeiro número da revista da sociedade intitulada

49 Pelo menos os três textos não constam no material acessado sobre a escritora. Vide referências bibliográficas. 50 O encontro com essas três publicações inéditas, cuja a existência não consta no material existente sobre a escritora, só foi possível graças à historiadora Getrurdes Costa Sales, responsável pelo setor de microfilmagem da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. No caso, ela realiza um trabalho de catalogação dos escritos de mulheres cearenses, em jornais dos séculos XIX e XX.

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de “Iracema”. Como enumera Barreira (1948), os objetivos da nova

agremiação eram51:

a)difundir o gosto literário e artístico no seio da sociedade em geral; b) realizar conferências públicas e sessões literárias(...);c) criar fundos para editar obras de seus consócios, que fossem carecendo de publicidade e d) por-se em comunicação e auxiliar todas as sociedades congéneres, que fossem fundadas neste Estado ou mesmo fora dele. (sic). (BARREIRA, 1948:234).

Outra associação da qual Alba Valdez fez parte foi a “Iracema

Literária”, instalada em Fortaleza, no dia 23 de abril de 1899, sob a

presidência de José Cunha Sombra. Por mais que autores, como o próprio

Dolor Barreira (1962), registrem sua participação, Barreira (1948) não

coloca o nome da professora na lista dos “ardorosos moços, cheios dos

inefáveis entusiasmos, que as coisas do espírito provocam” (p.323).

Os sócios reuniam-se aos domingos e cada um contribuía “de

jóia, Cr$ 3,00, contribuindo Cr$ 1,00 mensalmente” (BARREIRA:1948:324).

Em 19 de outubro de 1900, a associação publicou o primeiro número da

revista literária, humorística e ilustrada “Praça do Ferreira”. A sociedade

literária sobreviveu até 1902, mesmo “com inúmeras dificuldades, não tendo

mesmo um logar certo onde os seus associados se pudessem reunir em

ordem e tratar dos assuntos relativos aos seus altos fins” (sic) (pp.323-324).

Por outro lado, além de participar de grupos literários, Alba

Valdez também publicou trabalhos autorais, obtendo sua consagração como

escritora. Em 1901, lançou seu primeiro romance intitulado “Em Sonho”, que

consistia numa coletânea de textos em prosa semelhante a crônicas e

contos. De acordo com Girão e Sousa (1987), a própria autora o definiu

como “contextura de concepções líricas em que há evocações de tardes

que são amanhãs e sombras que são claridades” (p.228).

O escritor Antônio Sales apud Dolor Barreira (1951) afirma que

Alba Valdez é “a pena mais aprimorada que tem produzido a mentalidade 51 Dolor Barreira (1948:234) traz em nota que no artigo 9º, da lei orgânica do Centro Literário,

os fundadores ainda prometiam “empregar todos os esforços” para conseguir mudar o nome desta capital de Fortaleza para Iracema, em homenagem à memória de José de Alencar.

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feminina entre nós, fragmentos de imaginação, enfeixados em um livro com

o título Em Sonho” (p.57). Dolor Barreira (1951) também traz a impressão

do escritor Rodrigues de Carvalho sobre a escrita da autora. São “fantasias

e endeixas de uma alma artìsticamente sonhadora. Estilo fluente, fácil e

delicado, concepção de um subjetivismo cerúleo, próprio da mulher

sonhadora” (p.57). Sobre o livro, Guiomar Torresão apud Barreira (1951),

escreve:

[...] Um livro de mulher desperta sempre ainda a nossa curiosidade! – lida a primeira página, a leitura seguiu ininterrupta até o fim! O contrário era impossível! Um encanto tudo aquilo! Um ramilhete de flores das mais suaves cores, do mais delicado aroma! Meditações de uma doce e poética melancolia! Narrativas singelas, despretenciosas, descrições primorosamente feitas, e em tudo isto disputando primasias a elevação do pensamento com a correção da frase.

(TORRESÃO apud BARREIRA, 1951:58).

Menezes (1978), Girão e Sousa (1987) e Barreira (1962)

informam que alguns capítulos desse livro foram traduzidos para o sueco

pelo Dr. Goran Bjorkman, da Academia Sueca e membro do Instituto Nobel,

publicados no “Ilustreradt Hwad Nytt”, de Stockolmo. “O que, sem dúvida,

fez a Agripino Grieco dizer que a escritora Alba Valdez é a brasileira que os

escandinavos prezam tanto e é quase desconhecida no Brasil” (GIRÃO e

SOUSA, 1987:228). Houve, ainda, a tradução do conto “A carta” para o

francês, sendo publicado no jornal “Le Matin”, de Paris.

Alba também foi uma artífice na propagação das lutas feministas

na capital. Como exemplo da união da literatura cearense com as

reivindicações femininas por todo o Brasil, a professora fundou, em 1904, a

primeira agremiação literária feminina, nomeada de “Liga Feminista

Cearense”. “O título dessa agremiação mostra-nos o espírito evoluído de

nossa homenageada, com uma tônica diferente das de suas antecessoras

intelectuais” (BARROSO, 1971:487).

A diretoria foi composta da seguinte forma: presidente - Alba

Valdez; vice-presidente – Maria A.F. Portugal; primeira secretária –

Aurelinda Simões; segunda secretária – Olga Alencar; tesoureira – Amélia

Alencar e oradora – Júlia Moura. De acordo com a doutora em Sociologia

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Gema Esmeraldo (2006), há registros de que a Liga Feminista Cearense

também desempenhou um papel importante durante a crise política entre os

grupos de Nogueira Accioly e de Franco Rabelo. Segundo a autora, “é a

Liga quem dirige uma grande passeata em janeiro de 1912, em Fortaleza,

em favor da política de Rabelo” (p.33) 52.

Em março de 1907, a escritora cearense publica seu segundo

livro, com o título “Dias de Luz”. Desta vez, a obra é um “romance

memorialista que registra lembranças da infância e da adolescência”

(DUARTE, 2004:627). O jornal “A República”, apud Duarte (2004), de oito

de março do mesmo ano, registra o surgimento e o diferencial da escrita de

Alba Valdez:

Dias de Luz é um volumezinho de 120 páginas – à moderna, portanto. Estão abolidos os livros maçudos em que, quase sempre, a carência de idéias contrastava com o profuso exterior. Alba Valdez veio firmar com a sua novela os créditos de estilista primorosa há muito tempo proclamada pela crítica. (...) Mas não se pense que só por amor de estilo escreveu ela o seu livro, Dias de Luz seja um obra de entretenimento, literatura para preguiceiras. A autora, pela boca de suas personagens, enuncia as idéias sobre instrução pública, incita o povo ao amor à pátria e torna-se eloqüente quando pinta quadros domésticos. (...) Os tipos do livro de Alba Valdez são bem estruturados, a ponto do leitor se familiarizar com eles, idealizar-lhes as feições, como se na realidade os conhecesse. A escritora observa os menores caprichos da mente dos seus heróis, e nem esquece aquela singularidade de Inês (uma personagem) gravando na memória o número 27, da idade de certa condessa dos contos de Catulle. Vinte e sete anos! E isto lhe ficou parecendo uma idade galante que a moçoila, zombando muitas vezes por ter apenas dezesseis, almejava como a coisa mais feliz deste mundo. (Jornal “A República”, Fortaleza, oito de março de 1907 apud Duarte, 2004:627).

Pedro de Queiroz (1916), na época escritor, juiz, desembargador

e vice-presidente da Academia Cearense (de Letras) na primeira fase 52 Segundo informa Farias (1997: 128-129) essa passeata aconteceu em 21 de janeiro em

Fortaleza. De acordo com ele, o protesto foi contra os desmandos e a tentativa de Nogueira Accioly de permanecer no Governo do Ceará, com as eleições que se aproximavam em 1912. Ele ocupava o cargo de governador desde 1896 e, para não se candidatar novamente, indicou um “amigo de confiança”, o jurista de 80 anos Domingos Carneiro Vasconcelos, que não obteve aprovação popular. No caso, a passeata foi reprimida com violência pela polícia resultando na morte de uma menina de 10 anos.

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(1894), também ressalta o talento de Alba e a escrita envolvente da sua

segunda publicação. “Dias de Luz de que tanto enche a terra da Luz vieram

confirmar o mais alto renome das mais aparadas penas da nossa terra. A

sua prosa é clara, segura e muito vibrante. Alba Valdez tem o dom da

descripção” (p.18) 53.

O pioneirismo da escritora e professora cearense ainda é notado

em 1922. Neste ano, no dia oito de setembro, Alba Valdez se tornou a

primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras (ACL), antes

mesmo de haver um membro efetivo do sexo feminino na Academia

Brasileira de Letras. Esse feito só foi conseguido pela escritora cearense

Rachel de Queiroz, em quatro de novembro de 197754.

A época em que Alba passou a compor o quadro de sócios da

ACL é denominada como segunda fase da Academia, em virtude da

reorganização da que foi fundada em 1894. À frente das mudanças na

Academia Cearense, que passou a ser chamada de Academia Cearense de

Letras, estava o escritor Leonardo Mota. A necessidade de reorganizá-la foi

vista, conforme Barreira (1948), pelo desfalque da antiga agremiação. No

caso, dos 28 associados, apenas oito encontravam-se na capital. Os outros

20 haviam falecido ou se achavam ausentes.

Por isso, agora, de 28 passaram para 40 os sócios. Em sua

posse, no Clube Iracema, Alba Valdez fala sobre o descaso com a

sociedade literária. “A Academia Cearense de Letras parecia um solar cujos

proprietários viviam ausentes. Anos depois, na sucessão do estado amorfo

dos espíritos, surgiu daquela opressão e desânimo um estágio de vontade

de renovação” (VALDEZ apud BARROSO, 1971:487).

Como característica da nova forma de organização, ficou

acertado que a cada uma das cadeiras dos seus membros efetivos seria

dado, como patrono, o nome de um cearense notável. O patrono de Alba,

53 QUEIROZ, Pedro de. Fragmentos. Fortaleza: Typographia Minerva, 1916, pp.17,18 e 19. 54 De acordo com o site oficial da Academia brasileira de letras <www.academia.org.br>, acesso em 27 de maio, em 20 de julho de 1897, numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio (Rio de Janeiro), realizou-se a sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, na qual estiveram presentes dezesseis acadêmicos.

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nesse ano, foi Álvaro Martins. Dolor Barreira (1948) acentua que segundo o

estatuto da Academia, recém-organizada, a associação teria “por objetivo

geral animar a actividade intelectual do Ceará, e por fins particulares

promover a cultura da íngua nacional e a nacionalização da produção

literária cearense” (p.199).

Nesse intuito seriam realizadas sessões públicas; publicada uma

revista trimestral, semestral ou anual; seria instituído um concurso de letras

com prêmios; haveria a reimpressão de obras notáveis de cearenses mortos

ou contemporâneos que não encontrassem editor; promoveriam o

intercâmbio de homens de letras do Ceará com outras unidades pelo País,

entre outras atividades.

No ano de 1930, há uma segunda refundição na Academia

Cearense de Letras. Esse momento ficou conhecido como terceira fase da

associação. Desta vez, Alba Valdez não participaria, até que foi eleita para

ocupar uma das vagas abertas como a morte de Pápi Júnior, José Sombra

e Leiria de Andrade. Nesse período, antes da decisão final de Alba compor

o quadro de sócios mais uma vez, há uma discussão no jornal “O

Comércio”, durante o mês de maio de 1930, sobre a exclusão do sexo

feminino da Academia.

Na nota “Academia Cearense Lettras”, de 12 de maio, sobre a

fundação da mesma, o jornal afirma que “será constituída de 40 membros

effectivos, todos do sexo masculino” (p.04). Segundo o redator “não somos

nem pró nem contra a coparticipação feminina nos cenaculos intellectuaes”

(p.04). Inclusive, o jornal se mostra um incentivador da agrupação feminina,

e crítico da criação tradicional da mulher, embora traga em outras edições

conselhos para a mulher contribuir para um lar feliz, entre outros

Na nota “Pavilhão Literário”, de 17 de maio, o jornal a partir do

gancho do décimo aniversário do sufrágio para as mulheres no Estado do

Tennesse (EUA) comenta:

Já que estamos no Ceará, lembramos à mulher cearense, principalmente às nossas intellectuaes, a idéia de se agruparem em torno de um objetivo alevantado, pleiteando

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para o sexo reivindicações de ordem geral, no terreno social e político. Como sabemos, a mulher brasileira educada nesse sentimentalismo ancestral, é escrava passiva sob os aspectos da família e da sociedade. (sic) (Jornal O Comércio, 17 de maio de 1930).

No dia 23 de maio, o próprio jornal com a nota “Os quarenta

acadêmicos” publica o nome dos escritores que comporão a nova

reorganização da ACL. No texto está presente o nome de Alba Valdez, mas

também de Henriqueta Galeno, Adília de Albuquerque Moraes, Rachel de

Queiroz, Stela Rubens e Suzana Alencar Guimarães. É de se estranhar a

notícia, já que apenas o nome de Alba Valdez consta na lista de nomes de

sócios efetivos da Academia, como exemplo da elaborada por Dolor

Barreira (1948:211). Em 1953, Alba toma, de fato, posse pela segunda vez

da Academia Cearense de Letras.

Alba Valdez também foi sócia efetiva do Instituto Histórico,

Geográfico e Antropológico do Ceará, fundado em quatro de março de

1887. O objetivo do Instituto, desde seu início, é estudar cientificamente a

História, a Geografia e a Antropologia, especialmente do Estado. Para a

divulgação das pesquisas de cunho histórico, geográfico e antropológico

realizadas pelos sócios, há desde 1887 a publicação anual da Revista do

Ceará, na qual Alba contribui até sua morte, em 1962.

Em 1936, ela tomou posse da cadeira, antes ocupada pela

primeira mulher a fazer parte da instituição, Júlia Carneiro Leão de

Vasconcelos. Júlia foi admitida no Instituto Histórico do Ceará em 22 de

abril de 1930, em decorrência da morte do escritor Antonio Augusto de

Vasconcellos55. No ano seguinte, em comemoração ao cinqüentenário do

Instituto, Alba faz “numa oração viva e entusiástica em homenagem àquela

elite de homens de letras” (BARROSO, 1971:485). Porém, ela não deixa de

criticar a posição ocupada pela mulher durante os anos no Estado:

55O Jornal O Comércio de 24 de abril de 1930 traz a nota “No Instituto do Ceará”, na qual informa que Júlia Carneiro assumiu a vaga no Instituto Histórico, sendo o “primeiro elemento feminino que, no Brasil, ingressa no seio de uma associação scientífica” (p.05).

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A mulher cearense do fim do século dezenove vivia naquele círculo fechado e compressor da família. Numa sociedade receiosa de escândalo diante de tantos preconceitos, tendo ainda o pai da família na figura patriarcal e temida. O chefe que fechava o seu clã doméstico dentro dos limites de uma conveniência exagerada e artificial, tendo, como principal efeito desse rigor o irrealismo da formação de suas filhas. A leitura da jovem vigiada com severidade, assim sendo, perdia ela grande parte do interesse por um prolongamento. As prendas domésticas, sabías-as quase todas, tocava piano, cantava e enfeitava-se. (VALDEZ apud BARROSO, 1971: 486).

Sem precisar a data, Duarte (2004) ainda afirma que Alba Valdez

foi membro da Academia Feminina de Letras, na qual “ocupou a cadeira 16,

cuja patrona era Francisca Clotilde, bem como participou da Ala Feminina

da Casa Juvenal Galeno” (p. 627). A professora e escritora também

participou da “Boêmia Literária” e da “Sociedade Cearense de Geografia e

História”. No jornal “Unitário”, dirigido pelo escritor João Brígido, há uma

matéria, no dia 14 de junho, sobre a escritora, na qual se reconhece o

trabalho e a importância dela para a sociedade cearense, no momento:

Foi ela a primeira representante do belo sexo que apareceu na imprensa citadina, escrevendo crônicas, artigos e concedendo entrevistas sobre os mais variados assuntos. Constituindo-se uma excepcional novidade na própria imprensa, a jovem cronista de então (princípio desse século) empolgou a opinião pública e movimentou a classe dos profissionais da pena, numa época em que o Estado possuía um número restrito de afamados jornalistas e não havia o interesse que existe hoje, partido espontaneamente de todas as camadas sociais, pela evolução e desenvolvimento da Sexta Arma. (...) Inteligente, vivaz, irrequieta e afável, a ilustre colaboradora de jornais alencarinos muito cedo conquistou uma legião de leitores e o seu nome passou a ser comentado pelos seus conterrâneos que admiravam com surpresa o seu rápido e vitorioso ingresso no jornalismo fortalezense. (Jornal “O Unitário”, 14 de junho de 1961, apud Duarte, 2004:628).

Alba faleceu em cinco de fevereiro de 1962, quando estava bem

próxima de completar 80 anos. Porém, não se sabe o motivo, uma vez que

nenhum autor registra o que provocou a sua morte. Sobre sua família

também não se possui muitos detalhes. Até mesmo acerca de Alba, que

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tanto se destacou na literatura do Ceará, são poucos os dados de sua vida

particular. No material encontrado de autores que registram sua existência,

tais como Olga Barroso (1875 e 1992), Antonio Bezerra (2001), Antônio

Sales (1987), Raimundo de Menezes (1978), Raimundo Girão e Conceição

Sousa (1987), Raimundo Girão (1975 e 1976), Constância Lima Duarte

(2004), Dolor Barreira (1962) e Luciana Almeida (2006) não há indícios da

situação econômica, social e cultural dos Peixe. Além de não haver

informações sobre a educação dada à Alba pelos pais.

Como exemplo também não são citados: a profissão dos pais, se

havia parentes na capital, se ela se casou, se teve filhos, em suma, as

biografias apenas indicam os caminhos que a menina vinda de Itapajé

trilhou até se tornar escritora, professora e jornalista em Fortaleza56. Para se

conseguir saber um pouco mais sobre Alba, é preciso partir para a análise

atenta dos textos deixados pela própria escritora e, assim, descobrir as

opiniões e reflexões dessa professora, poetisa, contista, cronista e jornalista

feminista cearense.

3.2 O DISCURSO FEMINISTA EM CINCO DÉCADAS

Para entender e conceituar o discurso de Alba Valdez foi

estabelecida a seguinte metodologia. Primeiro, foi realizada uma pesquisa

bibliográfica acerca da autora e do contexto histórico social, político,

econômico e cultural do Brasil e do Ceará, durante o século XIX. Além da

história do movimento feminista, da evolução nos meios de comunicação e

da literatura da época, para compreender como eles se configuraram e a

relação que se estabeleceu entre esses diferentes aspectos, no período.

Entender o século XIX é relevante, pois foi quando Alba Valdez veio para

Fortaleza, estudou, formou-se professora, participou de movimentos

literários e começou a publicar na imprensa.

56Sobre os familiares, tem-se apenas o registro que fez Olga Barroso (1971:497) ao agradecer a sobrinha de Alba, D. Rosinha Monteiro, que “até sua morte”, não fica claro se a de Alba Valdez ou da própria Rosinha, guardou os manuscritos da escritora “com uma dedicação extrema e desvelada”.

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Em seguida, optou-se por fazer uma análise das publicações

deixadas pela escritora cearense para entender seu discurso na imprensa.

Por discurso, adotou-se a definição de Foucault (2003) que o entende tanto

como algo que o autor deseja, que reflete as lutas, como também o próprio

objeto do desejo, ou seja, a necessidade de conquistar o direito de ter um

discurso próprio. Assim ele define o discurso:

[...] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo (...) não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2003:10).

Ter essa definição de discurso torna-se importante, uma vez que,

ao retirar as produções de Alba do contexto em que estão inseridos,

percebe-se como as mulheres, além de usarem o discurso para expor seus

questionamentos e defenderem seus ideais, também objetivavam dominar o

próprio ato de discursar. Afinal, elas, por muitas décadas, foram obrigadas a

se contentar em ter alguém (na maioria das vezes pais e maridos) que

dissessem por elas o que queriam, “o que era melhor para elas”.

Com esse estudo, buscou-se saber de que forma a professora

utilizou os jornais para propagar os ideais feministas em seus escritos e

instigou a ação feminina (na intenção de produzir o próprio discurso) na

sociedade, em momentos diferentes. Na análise, são discutidas tanto as

formas (artigo, crônica, conto, entrevista, ensaio), como as temáticas

abordadas pela autora.

Torna-se relevante detalhar o uso dos gêneros literários (exceto a

entrevista) usados por Alba, já que no Ceará, mesmo no século XX, eles

ainda caracterizavam o fazer jornalístico da época, rendendo inclusive a

denominação de jornalismo literário57. A presença da literatura nos jornais

não era à toa, porque a grande parte dos “jornalistas” nesse período eram

os letrados, isto é, aqueles que dominavam as letras, como os escritores.

57 Segundo a definição de Seabra (2002:32), o jornalismo literário, a primeira das cinco fases

do jornalismo brasileiro, vai do surgimento da imprensa no Brasil até o final da do século XIX, aproximadamente.

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Sobre a relação entre o jornalismo e a literatura na imprensa brasileira

Juarez Bahia (1990) apud Seabra (2002) esclarece:

Pode-se dizer que essas duas carreiras crescem juntas na imprensa, uma influenciando a outra. É por isso que, na sua primeira fase e até mesmo no limiar da tecnologia eletrônica, o jornalismo mantém seu perfil acentuado traço literário. (BAHIA apud SEABRA, 2002:33)58.

Ainda segundo Bahia (1990) apud Seabra (2002), a técnica

jornalística se aperfeiçoa e desenvolve “à medida que os jornais conciliam a

natureza polêmica com a natureza reflexiva que a expressão literária

fornece” (p.33). Para atingir o objetivo de identificar a reflexão, por meio da

literatura suscitada por Alba, é que foram selecionados alguns textos

publicados na imprensa (revista e jornais), de sua autoria. Apesar de ter se

iniciado no jornalismo ainda no século XIX, hoje, tem-se acesso às

publicações da escritora cearense, em sua maioria, do século XX.

Dessa forma, foi escolhida uma publicação de cada década, em

jornais distintos, a fim de enumerar as diferentes temáticas discutidas

durante os anos. Por ordem cronológica, o primeiro a ser analisado foi o

conto “A Boda”, publicado na revista O Lyrio, de Recife, em 01 de março de

1903. Em seguida, o ensaio “Impressões d’um livro” presente no jornal

cearense O Bandeirante, em 15 de setembro de 1910. O próximo foi a

crônica intitulada “Horrível morbus”, publicada no jornal cearense O

Nordeste, no dia 07 de abril de 1927.

O penúltimo foi o artigo “De pé” escrito no Jornal O Comércio, em

22 de maio de 1930. Por último, analisou-se a entrevista concedida por Alba

Valdez ao jornal fortalezense O Estado, em 24 de junho de 1945, com o

título “A palavra da mulher cearense”. A intenção de ir somente até o ano de

1945 é pelo fato de que em 1946 as mulheres conquistam seu direito de

voto nas eleições presidenciais. Afinal, teoricamente, essa seria “a última”

reivindicação feminina no Brasil.

58 BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica –(1)- História da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990, p.43.

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3.2.1 A Boda (1903)59

O ano da narrativa é 1903 e Alba Valdez nos leva a uma festa de

casamento permeada de aluá; música; animação, com direito ao ensaiado

grito: “Viva os noivos! (...) - Viva a família dos noivos por muitos anos! – Vivô

ô ô ô!”; com a noiva que “era a mais linda”; um noivo “privilegiado” e várias

recordações do passado. Fossem essas, estimuladas por cantigas pedidas,

“um fato memorável ocorrido em épocas distantes”, “as façanhas de um

facínora célebre” ou “os horrores das secas passadas”.

Todos os aspectos da celebração nos levam a crer que os noivos

serão felizes. Pelo menos, os convidados estão comemorando essa

possibilidade. No entanto, nem todos estão tão satisfeitos assim. Uma dose

de nostalgia é pronunciada pela conversa entre o ouvinte Leontino e um

velho senhor (de bigode), cuja memória relembra alguns momentos felizes e

agradáveis de um casamento finado.

Com base na análise de Massaud Moisés (2005) do conto

“Garden Party”, semelhante ao “A Boda”, pode-se chegar à conclusão de

que a história contada por Alba Valdez pode ser caracterizada como um

conto poético. Segundo ele, o conto “é um autêntico paradigma da ‘arte do

implícito’ (...) A arte do implícito pressupõe que o ‘eu’ do narrador esteja

presente, ainda quando a narrativa está situada na terceira pessoa” (p.33).

O implícito, propriamente dito, é entendido por ele dessa forma:

O implícito consiste na recusa do realismo fotográfico, em favor de noções sutis em que a superfície das coisas, das palavras e dos acontecimentos, é a dimensão visível de uma esfera íntima, inaccessível ao olhar e ao registro positivo. Tudo se passa como se o ‘eu’ guiasse o espetáculo, à maneira de um filtro que transfigurasse alquimicamente a matéria que por ele fluísse, ou de uma lente que emprestasse à realidade concreta uma permanente aura de incerteza ou de subentendido. (MOISÉS, 2005:33).

59Conto publicado na revista “O Lyrio”, Recife, a.2, n.5, 01 de março de 1903, apud Constância Duarte (2004:633-634).

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No conto escrito por Alba, o implícito é constantemente

percebido. Afinal, durante a festa para os recém-casados, as peculiaridades

dos noivos e dos convidados são repassados com se ela mesma estivesse

presente na ocasião. “(...) continuou o velho, depois de enxugar com o lenço

de chita encarnada o encanecido bigode molhado das libações do aluá

misturado com um trago de cana” (p.633). Mais do que isso, é como se ela

estivesse observando através dos trajes de festa, nos incitando a entender

esse percurso mental dos personagens.

O caminho do implícito é marcante também nos personagens

apresentados, uma vez que, como defende Moisés(2003), “as personagens

têm existência condicionada à do narrador, que em momento algum se

afasta da cena ou deixa que o relato se desenvolve como um mecanismo

autogerido, independente do criador externo” (p.33).

Esse fato fica claro pela descrição minuciosa que a autora faz,

sobretudo dos pensamentos dos personagens, fazendo com que nos

preocupemos em entrar em contato com o que ela entende do momento.

Sua opinião acerca do que se passa. Como exemplo, tem-se dois trechos

com o velho de bigode e com o cantor.

Em primeiro lugar, a infelicidade do senhor fica clara nas frases,

como se conhecêssemos a vida que havia levado há algum tempo e

pudéssemos saber o que se passava em sua mente. “Enternecia-se o

ancião – quem diria?! – ao recordar venturas esvaídas há muito tempo,

alegrias extintas cuja lembrança luciolava no seu cérebro como na treva

noturna a pupila fosforescente de um pirilampo” (p.634).

Ainda é percebido o implícito quando ela nos remete ao “emérito

cantador”. Sobre ele não se sabe absolutamente nada, a não ser que era

orgulhoso, por não se deixar ser surpreendido pelo rival, e também era

bajulador dos convidados. “(...) de voz harmoniosa cheia fazia as delícias

dos convidados, ora respondendo com acerto e inspiração ao desafio de um

rival, ora entoando, a pedido, cantigas” (p.633).

O poético do conto, conforme Moisés (2003), “é entendido como

a expressão do ‘eu’, reside aí: a narrativa é um episódio, como se espera de

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um conto, mas não é a festa que importa” (p.34). Em comparação ao conto

analisado por Massaud, A Boda não tem a festa como elemento mais

importante da narrativa. Para se comprovar isso, Alba sugere “a vaguidade,

temporal e geográfica” (p.34), a que se refere o teórico. A partir da leitura do

conto da autora cearense, não se sabe ao certo onde se passa a ação, que

horas ocorre a festa, nada além sobre os personagens do que ela nos

confidencia, sequer o nome dos noivos nos são dados, enfim, a união dos

noivos se torna o menos relevante.

É nesse momento que se conclui a intenção do discurso de Alba.

Ao se levar em consideração que o conto foi publicado em 1903, quando o

casamento ainda era visto como o objetivo principal de uma jovem e seu

futuro certo, entende-se o papel central desempenhado pelo velho de

bigode. Ao se recordar da ex-esposa, o senhor anuncia qual a visão tida

pelos maridos de suas “rainhas do lar”. Ao desabafar com Leontino, ele fala:

Isto de um homem viver só no mundo não é vida. (...) Casa arranjaste e limpa, comida, roupa, quem nos pode fazer tudo isso a tempo e a hora, senão a nossa mulher? Já fui casado, Leontino, já soube o que valia uma boa esposa: muitas vezes a raiva que trazia da rua dissipava-se ao avistar o rosto sereno e carinhoso de minha mulher que me recebia com um sorriso feiticeiro. (VALDEZ apud DUARTE, 2004: 633).

O interessante é que Alba Valdez, por meio da fala do senhor,

expõe quais as funções a serem desempenhadas por uma mulher casada e,

se bem cumpridas, resultariam no título de “uma boa esposa”. No geral,

uma esposa exemplar deveria fornecer casa limpa, comida e roupa. Quem

mais faria tudo isso “a tempo e a hora” senão a mulher dona-de-casa? Além

disso, Alba usa a expressão “valia uma boa esposa”, que nos remete a

pensar que as mulheres que não seguissem a regra de agradar ao marido e

mantivessem “o rosto sereno e carinhoso” ao recebê-lo, não poderiam ser

consideradas companheiras realmente valiosas.

Em suma, para ser um objeto de valor, a mulher devia se manter

em casa, para possibilitar tudo que o homem necessitasse. Além de estar

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sempre bem-humorada e satisfeita para esperar pela volta do esposo “com

raiva”. Tudo isso, toda essa explicação dada pelo senhor experiente,

acontece durante um casamento, que revela um novo ciclo que se inicia de

“boas esposas”. Tanto é que, como reforça Alba, “o noivo reunia todos os

requisitos de um ser privilegiado”, até porque sua mulher “a noiva, guapa

moiçola no verdor dos anos, distribuía sorrindo, as flores do seu bouquet”,

mostrando sua simpatia, qualidade apreciável.

Para terminar, a autora, ainda na última frase do texto, ressalta

que ambos estavam entrando nos mistérios do amor com os quais nunca se

sabe o que pode acontecer no amanhã. “E, num minuto, a orquestra

rompeu vibrante e apaixonada em homenagem àqueles que envoltos nas

roupagens coruscantes das ilusões partiram em demanda das paragens

ideais e misteriosas do amor” (p.634).

Rosalind Gill (2003) discute sobre a “orientação do discurso” ou

“orientação da função do discurso”, no qual o texto é visto como prática

social. Na opinião dela, “as pessoas empregam o discurso para fazer coisas

- para acusar, para pedir desculpas, para se apresentar de maneira

aceitável etc. Realçar isto é sublinhar o fato de que o discurso não ocorre

em um vácuo social” (p.248).

E, por atentar para o fato do objetivo que se tem com o discurso

e o contexto social que está inserido, é preciso que se entenda a proposta

da revista em que o conto foi publicado. A “O Lyrio” foi fundada, escrita e

dirigida por mulheres, de 1902 a 1905. Criada por iniciativa de Amélia

Beviláqua e outras intelectuais de Recife, de acordo com Muzart (2004), o

Lyrio era “uma revista literária exclusivamente feminina (...) que defendia a

educação das mulheres e a igualdade de direitos” (p.252). Nela,

contribuíram diversas escritoras, inclusive do Nordeste, como a cearense

Úrsula Garcia, cujo cargo era de “redatora-secretária”.

Através do tema abordado, da época em que foi escrito e da

revista em que foi publicado o conto, conclui-se que o objetivo de Alba era

contestar, no mínimo, chamar a atenção das leitoras, para as circunstâncias

em que eram “colocadas” as mulheres socialmente. Em 1903, Alba já

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participava de associações literárias no Estado, já possuía até mesmo livro

lançado, o que nos leva a crer que ela uniu a defesa da educação e

igualdade de direitos das mulheres (pregados pelo veículo de comunicação)

à literatura, na imprensa da época. De forma sutil, ela criticou uma tradição

brasileira, a do casamento.

Sem afirmar ou impor sua opinião, ela deixou a cargo do leitor

entender que a felicidade dos noivos na comemoração do casório, com o

passar dos anos, seria marcada pela lembrança da noiva como boa esposa,

assim como o senhor de bigode recordou, dependendo da atenção e dos

cuidados dispensados ao marido. Eis, portanto, o sentido feminista do

discurso de Alba, uma vez que se lança a escrever sobre algo imposto às

mulheres.

3.2.2 Impressões d’um livro (1910)60

Alba começa o texto como quem acabou de se deliciar e se

emocionar com a leitura de um livro profundo, intenso e forte que suscitou

reflexões sobre a essência humana, a partir da experiência com o autor da

obra. “Quanta amargura a philosophia infiltrou nessas paginas! O espírito

angustiado debate-se num ambiante de pálude sem poder librar-se no

infinito azul e ouvir o segredo milenario das espheras” (sic).

A escritora cearense não revela o nome do livro que provocou

tantas sensações, deixando que ela chegasse a pensar que “por vezes

surge um desgosto de viver”. O autor da obra, também desconhecido,

provoca Alba. A partir disso, ela tenta interpretar o que moveu a escrita

masculina: “no estylo reflecte-se a alma do escriptor com os seus amores e

os seus ódios, com os seus sonhos e desesperanças. Esse, de certo, deve

ter sofrido, visto muita decepção barrar-lhe a estreiteza do caminho” (sic).

60Ensaio publicado no jornal “O Bandeirante”, a.1, n.10, em 15 de setembro de 1910.

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No entanto, por outro lado, ela se coloca, mostrando seus

sentimentos para transmitir suas impressões acerca das situações e

circunstâncias que a vida oferece aos seus protagonistas.

Suggestionado pela inspiração grandiosa, mas sombria de força intelligente e investigadora, segue a humanidade no seu evoluir lento ou precipitado, assistindo autopsias que interrompem a alegria, desvendando realidades que confragem as fibras sensíveis do coração (sic).

A partir daí, ela passa a discutir sobre o que estimula e instiga as

ações humanas. Percebe-se que as suposições são delas, existe um “eu”

de Alba dentro do texto. Entretanto, ela ainda pretende mais. Mesmo que

haja uma mascarada inocência na exposição de suas idéias, ela faz

questão de nos remeter aos interesses das relações humanas.

A impressão é que ela nos interpela a sentir a vivência entre

humanos, compostos de sentimentos, nem sempre os mais nobres, e

percebamos o que nos faz agir ou reagir aos estímulos externos:

Como que um véu se abate e feixes de luz crua incidem sobre o desfile meio fantástico das multidões. Não é a virtude que as move nem o bem fazer incondicional que as dirige na estrada accidentada da vida. As acções têm por timoneiro a ambição e a vaidade resguardadas cuidadosamente na enganadora capa da hypocrisia (sic).

Sobre o texto em prosa de Alba Valdez, Massaud Moisés (2003)

nos dá o caminho para reconhecê-lo como um ensaio literário. Angel del Río

apud Moisés (2003:79) enumera três espécies de saber, referente aos tipos

do ensaio. O “impressões d’um livro”, no caso, seria um “ensaio poético-

descritivo, lírico (...) um tanto emocional e impressionista”. Afinal, os

aspectos são percebidos durante o escrito, pois é composto de descrição,

de emoção e impressões da autora, como já foram citados.

Outra característica que nos faz chegar à idéia de que se trata de

um ensaio é pelo que ressalta Massaud (2003). Segundo ele, “quando se

assume a postura ensaística, torna-se praticamente impossível fixar a

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atenção em um só assunto; sem perceber, a mãe se desloca para outros

lados” (p.82). Em verdade, Alba nos começa a falar sobre o livro e parte

para a vaidade e a ambição, presentes nas ações humanas.

Sobre a sensação de a escritora estar nos interpelando, Moisés

(2003) reconhece ser esta uma das funções e objetivos de um ensaio, que

vem ao lado da estrutura por ela assumida:

[...] o ensaio subordina-se a uma disposição lógica, não no sentido duma lógica matemática, mas duma ordenação que pressupõe começo, meio e fim. Tratando de expor e/ou indagar, o ensaio organiza-se como um diálogo, entre o ensaísta (ou o próprio ‘eu’), porém em diálogo em que as idéias se enfileiram numa seqüência que não precisa ser, necessariamente, a do silogismo. Sem desprezar a lei da causalidade, e antes chamando-a quando oportuna, o ensaio dissimula somente até certo ponto que alguém busca persuadir-se a si próprio e persuadir o leitor. [...] Persuadir conquistando a adesão espontânea do leitor para o saber equilibrado e sensato que ali se cristaliza, não pelo saber dogmático e direto. (MOISÉS, 2003:94-95).

Ainda de acordo com Massaud (2003), o fato do texto ter sido

publicado em jornal, e não em livros como de praxe, não deixa de ser

atribuído seu caráter de ensaio. “Dessa discriminação perambular decorre

que um artigo de jornal ou de revista pode tornar-se um ensaio, uma vez

que o caráter ensaístico não é dado pelo veículo onde o texto se imprime

mas pelo tom” (p.80). Tom esse permeado de uma intenção, mesmo que

disfarçada. “(...)a crônica e o ensaio caracterizam-se pela subjetividade,

envolvem idêntico movimento do ‘eu’, mas enquanto o ensaio guarda

sempre uma intenção, ainda que sob o disfarce da informalidade” (p.109).

Então, diante do exposto, fica a pergunta: que intenção tinha

Alba? Primeiro é preciso entender o contexto em que o ensaio foi escrito.

Em 1910, por todo o Brasil, as mulheres já concretizaram sua apropriação

da escrita em periódicos, muitas vezes dirigidos por elas mesmas. Por outro

lado, na virada do século, são mais comuns as crítica à nova mulher61,

vindas através de teóricos, médicos, enfim, dos mais conservadores que as

acusavam de estar “quebrando” os costumes.

61Definição dada por Telles, N. (2002:432).

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Na época, também, não era grande o número de mulheres

alfabetizadas, apesar dos dados informarem que houve um crescimento

entre 1890 e 192062. Deve-se levar em conta ainda que em Fortaleza, Alba

já havia fundado a Liga Feminista Cearense, exclusivamente para literatura

das senhoras, enquanto no Brasil já ecoavam o movimento feministas

desde o século XIX.

Ou seja, as mulheres, nas primeiras décadas do século XX,

estavam lidando com mudanças que punham à prova as relações humanas,

inclusive os interesses dos que tentavam barrar a emancipação feminina. É

como se houvesse um movimento em “que tudo deve ser igual a antes”. Por

isso, é importante para o momento a “hypocrisia” denunciada por Alba, já

que, apesar de muitos se “vestirem” de modernos, havia o desejo (tanto por

vaidade como por ambição) que suas mulheres permanecessem mesmo em

casa. Havia ainda as próprias mulheres que, desfrutaram e desfrutariam das

conquistas das feministas, mas rejeitavam as representantes do movimento.

Em relação à leitura, é como se a autora quisesse nos estimular,

pelo prazer, a ler e a adentrar o universo do autor da obra literária. Afinal,

após essa nova relação estabelecida entre ela e ele, Alba nos leva a

questionar a mulher como protagonista na interpretação literária. E qualquer

um também o podia. Desde o início do feminismo, a literatura esteve

atrelada ao movimento. Mais uma vez, isso é percebido. Alba a usa para

ressaltar, mesmo que de forma embutida, a idéia de subversão, de reflexão,

de provocação, muito claro nos textos analisados.

O texto da escritora cearense foi publicado em um jornal que se

autodenominava de “órgão literário, moral e noticioso”, intitulado “O

Bandeirante”, editado por José M. Nogueira. O periódico começou a circular

em Fortaleza no dia 25 de março de 1910, sendo o último exemplar

publicado em 28 de setembro de 1911. E Alba, exatamente no órgão “moral

62Hahner (2003:75) afirma que, de acordo com a Diretoria Gral de Estatística, os recenseamentos da população, de 1872 e 1920, mostram que em 1890 eram 10,4% das mulheres alfabetizadas, enquanto em 1920 foram 19,9%, em todo o Brasil.

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e noticioso”, expôs sua opinião sobre a falsa moral nas relações, em um

jornal que tratava de literatura.

Enfim, com base dos aspectos ressaltados, pode-se supor a

intenção de Alba foi sugerir uma maior aproximação entre a mulher e a

literatura e a reflexão acerca da posição social ocupada por elas. Raimundo

Girão (1957) afirma que os livros só começaram a ser vendidos em

Fortaleza na primeira metade do século XIX, mais precisamente em 1849.

“(...) não havia onde comprar livros, pois só em 1849 é que o português

Manuel Antônio da Rocha Júnior abriu na sua loja uma seção livresca, na

qual, além da venda, alugava romances e novelas a tanto por mês” (p.VIII).

Porém, apesar da chegada tardia dos livros à capital e a

alfabetização feminina, também atrasada, não deviam impedir que elas

entrassem em contato com a literatura e questionassem os caminhos que

os livros fazem perceber. “Ah! Os livros! Não há negar que muitos se

assemelham aos bellos lagos cor de saphira em cujas ondas cariciosas se

embala não raro o germe fatal da morte”.

3.2.3 Horrível morbus (1927)63

Jorge de Sá (2005) já repassou a postura inicial de um cronista:

“Um narrador-repórter registra o circunstancial” (p.07). E, por circunstancial,

o autor explica: “(...) o termo assume aqui o sentido específico de pequeno

acontecimento do dia-a-dia, que poderia passar despercebido ou relegado à

marginalidade por ser considerado insignificante” (p.11). E, muitas vezes,

por ser uma cena (ou situação) comum ao cotidiano, ela passa a ser vista

como insignificante, justamente pelo fato de ser tão “natural”.

E, para agir diante dessa naturalidade das circunstâncias, eis o

papel de um autor de crônicas:

Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição

63Crônica publicada duas vezes no jornal “O Nordeste”, Fortaleza, em 07 de abril de 1927 (p.03) e 12 de abril de 1927 (p.04).

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humana e lhe confere (ou lhe desenvolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. (SÁ, 2005:11).

Na década de 1920, o Brasil enfrentava um grave problema de

saúde pública com a proliferação da hanseníase, mais popularmente

conhecida como lepra64. Para se ter uma idéia, foi inclusive “a década de

maior atuação do Governo Federal na causa lepra”, segundo Santos

(2003:421)65. Conforme ressaltou, nesse período, o governo federal criou o

Departamento Nacional de Saúde Pública, além de incluir a doença, pelos

regulamentos sanitários, entre as enfermidades de notificação compulsória,

isto é, obrigatória 66.

Em Fortaleza, essa situação também é registrada. Aliás, é

confrontada pela escritora Alba Valdez. No ano de 1927, uma crônica

escrita pela professora cearense nos mostra que a doença não tardava em

atingir centenas de fortalezenses, encontrados “apodrecendo ao ar livre, em

pleno coração da civilizada capital cearense”, como assinalou a escritora.

Outro dia subia a rua São Paulo, quando, ao atingir, por esse lado, a calçada do edifício do Banco do Brasil, ouvi gemer perto voz moça, que implorava – Dê uma esmola ao pobre morphetico. Rápido, descendo a vista para o chão deparou-se me sentado, tronco apoiado à parede, um rapazito cuja idade não calculei ao certo, porquanto a physionomia, como que obumbra-os caracteres mais comprabatorios dos annos da sua presa (sic).

A partir desse primeiro contato com o doente, que se encontrava

sozinho nas ruas do Centro de Fortaleza, Alba passou a refletir sobre “o

dever christão”, como define sua atitude ao intencionar abrir a carteira. No

início, de acordo com sua narrativa, ela pensou em contribuir, com esmolas,

64 A lepra possui vários sinônimos como morféia, hanseníase elefantíase-dos-gregos. 65SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Pesquisa documental sobre a história da hanseníase no Brasil. História, Ciência e saúde - Manguinhos. Vol. 10 (supplement 1), 2003: pp. 415-1426. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v10s1/a19v10s1.pdf>. Acesso em 30 de maio de 2007. 66Informações contidas no Ligeiro histórico até 1935 (inclusive) - Realizações do Governo Federal apud Santos (2003:421).

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com “aquelle farrapo de adolescencia”. No entanto, por uma “objeção íntima

de grande peso”, a professora não conclui o ato. “Queres comer alguma

cousa? Perguntei-lhe, depois de reflectir um instante” (sic).

Nas palavras de Moisés (2005), “a crônica oscila, pois, entre a

reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um

acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia”

(p.105). Uma fantasia que, apesar de ligada ao acontecimento real, traz a

mais relevante das características da crônica, a subjetividade, na opinião de

Moisés (2005):

[...] o foco narrativo situa-se na primeira pessoa do singular, mesmo quando o ‘não-eu’ avulta por encerrar um acontecimento de monta, o ‘eu’ está presente de forma direta ou na transmissão do acontecimento segundo sua visão pessoal. A impessoalidade não é só desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é a sua visão das coisas que lhes importa ao leitor; a veracidade positiva dos acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam o mundo. (MOISÉS, 2005:116).

Durante todo o texto, é possível perceber como a escritora expõe

sensações, impressões e reflexões acerca da “misera creança” com que ela

se deparou ao caminhar nas ruas do Centro. “Conglomeram-se de modo

impressionante, de causar calefrios, ali, no morro do moinho, onde a

promiscuidade (parece incrível!) de pessoas sãs affectadas da lepra é

tenebrosa realidade” (sic).

Porém, não há uma separação do relato de Alba do fato ocorrido,

embora ela “convoque” o leitor a pensar em conseqüências daquela

situação. Nas palavras de Massaud Moisés (2005), “o cronista reage de

imediato ao acontecimento, sem deixar que o tempo lhe filtre as impurezas

ou lhe confira as dimensões de mito, horizonte ambicionado por todo

ficcionista de lei” (pp.104-105).

A propósito, como explica o autor, o objetivo do cronista é

registrar o fato circunstancial, mas transcender ao mero acontecimento

deste.

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[...] o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender o dia-a-dia pela universalidade de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de ofício. O cronista pretende não o repórter, mas o poeta ou ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia. (MOISÉS, 2005:104).

É notável a transcendência de Alba, em especial quando relata a

ajuda dada ao leproso por um “desconhecido de boa aparência”, e, que, a

partir daí, nos leva a refletir, ao seu lado, sobre as providências tomadas

para amenizar ou resolver o problema da lepra. Primeiro, narrou que o

senhor “despejou no regaço do infeliz uma moeda de 500 réis”. Após a

atitude, a escritora revela como agiu: “Recuei, os nervos em desordem.

Senti mesmo as maxillas esbarrarem-se uma contra a outra, como si me

insultasse maleira de plaga malsã. – Oh! Senhor, fez mal! Exclamei afflicta!”

(sic).

Com base na “caridade” do “cavalheiro”, como ela o descreve, a

Alba cronista passa a chamar atenção para os casos de lepra que cresciam

no Estado e como as pessoas, as quais passavam pelo rapaz doente, não o

viam e em nada fizeram para reverter o caos que se instalara na capital.

Muitos transeuntes iam e vinham, cruzando-se, tomando direcções differentes. Ninguém se detinha. Todos pareciam ensimesmados nos seus projectos, nos seus negócios, na sua vida. Pus-me a andar sob o lastro da imaginação que perdera o freio. Recordava-me de que há poucos annos relativamente os casos de mosphéa no Ceará se contavam por unidades simples. Presentemente, o resultado numerico se eleva às centenas aos milhares, já pelo contagio, já pela entrada fanca de doentes vindos de outras partes (sic).

Após essa reflexão, Alba passa a interrogar sobre as possíveis

conseqüências da esmola dada pelo senhor que, como ela, se sensibilizou

com o estado da criança faminta e adoentada.

E amanhã? Pensei na moeda do cavalheiro fazendo continuo: das mãozinhas cheias de pús, ella iria para outras mãos que a conduziriam até a gaveta do marceeiro, do padeiro, do magarefe, contaminando tudo. Das gavetas commerciaes passaria para a bolsa do empregado de bondes, que daria em trôco ao grosso publico; entraria na

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minha casa, em todas as casas, em innumeras algibeiras, e voltaria, quem sabe? Às palminhas donde tinha saído para reencetar outro cyclo maléfico. Pensei ainda na embalagem de papel vazia, rastejando alhures, lobrigada por mulher do povo, que a aproveitara para empacotar a compra (sic).

Por outro lado, percebe-se que toda essa problemática levantada

por Alba Valdez tem o intuito de chegar a um denominador comum.

Segundo Luiz Beltrão (1980)67 apud Melo (1985), há duas classificações

possíveis para a crônica: a partir do tema em si e do tratamento que o

cronista lhe dá. A “Horrível morbus” pode ser encaixada na definição, em

relação ao tratamento dado pelo cronista, da crônica sentimental. “Os fatos

são apresentados a partir dos seus aspectos pitorescos, líricos, épicos,

sendo capazes de comover e influenciar a ação, num impulso quase

inconsciente; predomina portanto o apelo à sensibilidade” (p.117).

E é nesse apelo à sensibilidade, que a escritora cearense, além

de tentar comover o leitor, objetiva mobilizar o poder público para que tome

qualquer providência:

Senhor Deus! Os cearenses, seremos, porventura, neste libérrimo e prospero regime de governo do povo pelo povo,náufragos sem sorte, atirados em praia inhosphita? Que fazem os responsáveis pelo bem geral e pela saúde colectiva? Quantos terão de desaventurados e indesejáveis lázaros um asilo apropriado, onde estejam ao abrigo de maiores penas e onde escondam as suas carnes tumefactas e sua inexprimível dor? (sic).

Na opinião de Teles, M. (1999), “o feminismo tem também um

caráter humanista”. E, de acordo com Hahner (2003), a década em que

Alba escreve o artigo é marcada pelas ações feministas em prol do social,

do político e do civil. “No início da segunda década do século XX, as ações

feministas no Brasil tinham proliferado a passos rápidos. Na época, era

crescente o apoio às lutas por melhoria de situação social, civil e política

67 BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980.

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levadas a feito pelas mulheres” (p.267). Vê-se que a preocupação com

lepra, encontra-se como um problema social debatido pela escritora.

E, nesse sentido, percebemos o contexto do movimento feminino

presente na crônica ligada de Alba Valdez. Dessa vez, ela não traz explícita

a situação feminina, mas recorre ao sentimento cristão dos leitores para que

se comovam e, quem sabe, pressionem o poder público para que ajam na

intenção de evitar que o contágio da lepra continue a se propagar.

A crônica “horrível morbus” foi publicada duas vezes no jornal “O

Nordeste”. O periódico se destinava à comunidade religiosa do Ceará e foi

fundado pela Diocese de Fortaleza, em 29 de junho de 1922, para defender

os postulados do catolicismo cearense. Ele se autodenominava de

“vespertino do acção e informação catholica”. Ao todo, foi rodado nas

gráficas por 45 anos e seus redatores foram Andrade Furtado e José

Martins Rodrigues.

Ao se pensar na proposta no jornal, nada mais cabível que Alba

escrevesse para os “cristãos” sobre uma cena em que a maioria destes

sequer se atentava, nem em prol da caridade com o próximo. Ou seja, com

as palavras impressas, Alba acaba por perguntar aos fortalezenses: onde

se encontram os preceitos cristãos tão pregados pela Igreja e pelo Estado,

já que centenas de leprosos, no momento, estão largados à própria sorte

nas calçadas de suas próprias casas?

3.2.4 De pé (1930)68

O título da escrita já é bem sugestivo: “De pé”. Em geral, as

pessoas ficam de pé quando vão iniciar algum movimento ou para poder,

até mesmo, movimentarem-se com mais facilidade. Na publicação, Alba dá

o título “De pé”, ao texto no qual se refere à fundação da nova Academia

Cearense de Letras, divulgada por toda a imprensa no mês de maio de

193069.

68 Artigo publicado no “Jornal do Comércio”, Fortaleza, em 22 de maio de 1930.

69 Em 21 de maio de 1930, acontece, de fato, uma segunda refundição da Academia Cearense

de Letras. Dolor Barreira (1948:208) afirma que “quando da reorganização da Academia

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Agora a imprensa fortalezense divulga a nota sensacional de que literatos da terra vão fundar uma Academia Cearense de Letras. É sério. Quem se recorda mais do que ocorreu com na remotíssima era de 1922? Pois os mencionados literatos vão fundar a mencionada Academia. Pelos termos parece que foi cousa que nunca existiu no Ceará (sic).

No entanto, a escritora cearense não escreveu o material para

parabenizar o ato da criação, mas, sim, para dar o seu ponto de vista

acerca da nova organização da Academia, que se propunham a fazer os

literatos, sem contar com qualquer presença feminina entre os sócios

efetivos. Na época, em 1930, a professora já participava da mesma

sociedade literária desde 1922.

A primeira nota informando sobre a refundição da Academia

Cearense, no jornal em que Alba Valdez também escrevera, havia sido

publicada no dia 12 do mês corrente, o veículo era o “Jornal do Comércio”.

O periódico era dirigido e gerenciado por Meton Gadelha, desde seu

começo em três de abril de 1924, cujo objetivo era defender os interesses

do Partido Republicano Conservador. A duração do periódico cearense deu-

se até o dia primeiro de dezembro de 1937.

Conforme a explanação de José Marques de Melo (1985), o

material publicado por Alba possui aspectos de um artigo, cuja definição:

“trata-se de uma matéria jornalística onde alguém (jornalista ou não)

desenvolve uma idéia e apresenta sua opinião” (p.92).

Martín Vivaldi (1973) 70 apud Melo (1985) enumera que o artigo

possui como características a atualidade e a opinião. Em relação à

atualidade, Vivaldi destaca que “o articulista tem liberdade de conteúdo e de

forma, mas ele deve tratar de fato ou idéia da atualidade, coadumando-se

com o espírito do jornal. (...) o sentido da atualidade não se restringe ao

cotidiano, mas ao momento histórico” (p.93).

Por outro lado, no que se refere à opinião, ele afirma que:

Cearense, em 1922, foi esta última, em 1930, recomposta ou refundida”. Com isso, inaugurou-se a terceira fase da academia “a qual se estende (...) até os nossos dias”. 70 MARTÍN, Vivaldo Gonzalo. Gêneros periodístico. Madri: Paranifo, 1973. (cap. IV o artigo

jornalístico).

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A maior significação do gênero está contida no ponto de vista que alguém expõe. Essa avaliação pode estar oculta, eventualmente dissimulada na argumentação (como por vezes ocorre no comentário), mas deve apresentar-se claramente, explicitamente. A opinião ali emitida vincula-se à assinatura do autor; o leitor a procura exatamente para saber como o articulista pensa e reage diante da cena atual. (MARTÍN apud MELO, 1985: 93).

E, para fazer jus à relação com o artigo, é notável como Alba

Valdez deixa clara sua opinião. Para chegar até o momento em que

contesta enfaticamente a negada participação feminina, como se pensava

para a reorganização da Academia Cearense de Letras (em 1930), ela inicia

seu texto com uma analogia com o agricultor que, como ela, também ama a

terra e a pátria, mas que também se decepciona e se entristece ao sentir-se

com o direito à propriedade, ou à participação, burlado, esquecido.

O direito de propriedade classifica-se no rol daquelles que se chamam sagrados. Mesmo entre as sociedades rudimentares á lei da natureza. Mais. Descendo-se a escala zoológica, observa-se que elle não é desconhecido entre os irracionaes. Nos paizes policiados que servem de paradigma a outros no tocante ao progresso cultural, um attentado ao direito de propriedade soffre a sancção de penas severas. (...) Planta o lavrador a semente após haver preparado a terra, que jamais deixa de reclamar cuidados especiaes para o êxito da futura mésse. Surge o vegetal. Alteia-se-lhe o caule. Avoluma-se-lhe a fronde. Desata-lhe a flor. Debuxa-se-lhe o fruto. O cultivador contempla enlevado o formoso quadro. Vê a realidade de um sonho na qual se cristaliza o melhor da sua energia actividade. Enfim, vae ter o permeio que merece a intelligencia, o esforço incoercivel. Lá está a belleza do fruto! São sempre bellas as manifestações do trabalho. Feliz, o cultivador ergue o braço para colhê-lo, já pensando em mostra-lo aos amigos e conhecidos. Crê com isso valorizar a gleba, incentivar virtudes. Elle ama a pátria o ingênuo sonhador. Nisto, um empuxão brutal o remessa para longe. Elle cáe, o coração a sangrar (sic).

Assim como o “cultivador”, Alba também está com “o coração a

sangrar”. Ela descreve, antes de tentar incitar o leitor, como se sente ao

deparar-se com tal situação, na qual estão lhe tirando o direito à

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propriedade e não percebendo a beleza dos seus “frutos”. Afinal, o que

parece, é que ela acreditava que estar na Academia Cearense, mostrando

seus trabalhos aos amigos e conhecidos, conseguiria “valorizar a gleba e

incentivar virtudes”. Dessa forma, ela revela sua descontentação:

Nasci e criei-me nesta terra. A minha existencia se há passado no convivio dos livros e nas agraras do magistério. Professora primaria, no entrar da adolescência, comtudo minha actuação no ensino publico e particular ultrapassou o limite que me estava traçado. Espraiou-se além. Jamais encarei distancias e obstaculos para levar uma rastea de luz aos que tacteavam na escuridão. Fui um espirito ávido de perfeição. Se dentro de glorias e grandezas para a minha raça. Pobre raça combatida, achincalhada por filhos ingratos e aproveitadores desalmados que, no negror da noite, se acocoram, seguros da impunidade, em desprezíveis tocaias. O amor da terra natal entalou-me a penna entre os dedos. Occupação esta que nunca me desviou de outros deveres, do respeito devido ao meu nome e á sociedade (sic).

Conforme estabelece José Marques de Melo (1985), a finalidade

do artigo é composta por duas feições. Segundo ele, o artigo pode ser

identificado como científico ou como doutrinário. O texto da professora

cearense pode ser entendido com doutrinário, uma vez que esse tipo de

artigo, como diz, “se destina a analisar uma questão da atualidade,

sugerindo ao público uma determinada maneira de vê-la ou de julgá-la”

(p.93). Com base na explicação, percebe-se a intenção de Alba, ao expor a

discriminação por sexo. Ela faz um apelo aos leitores, inclusive às leitoras

que também cultivam as letras:

E para não ficar atraz da sua congênere no Rio de Janeiro, mulher lá não forma. Alfim não sou a única envergonhada pela descortezia do gesto. São vocês também, minhas intelligentes e virtuosas patricias, especialmente vocês, mulheres que, como eu, mourejam na seara das letras. Sois também vós, meus illustres confrades, que soffrestes o desar de serem postos em duvida o vosso caracter e vosso discernimento. São ainda os senhores, respeitaveis conterraneos, os senhores que assistiram á festa inaugural da Academia Cearense de Letras. Os senhores que fazem parte do publico que lê e julga, o publico que constróe e destróe reputações, o publico amado e temido, para quem, ‘ultima ratio’, apella o torturado artista (sic).

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Ao chegar ao final do artigo, não é difícil entender a que se

propôs Alba Valdez. Quando relaciona sua vivência na sociedade cearense

com a do cultivador, não resta dúvidas que ela, naquele momento, sentia-se

sem a sua terra, sem seu espaço, traída pela pátria que, como o agricultor,

ama como uma ingênua sonhadora.

O “De pé”, título do artigo, não se refere à fundação de uma

sociedade literária que será levantada, em alguns dias estará de pé. Mas,

provavelmente, ao movimento que ela desejava que os leitores (homens e

mulheres) realizassem. De forma explícita, ela cita seu exemplo para

comprovar e chamar a atenção para a distinção feita, por conta do sexo.

E, talvez, alguém, ao seu lado, pudesse ficar “de pé” para contestar

tal distinção. Que, pelo menos desde 1922, no Ceará se diferenciava do Rio

de Janeiro, por exemplo, em que as mulheres só começaram a participar da

Academia Brasileira na década de 197071.

Proclamo isto com orgulho. Escrevi. Oh! A via crucis! O ar desfeito. Os trovões! Os raios! A água a jorrar, dando-me pancadas a cabeça. A lama a crescer, ameaçando tragar-me! Lama nojenta! Lama pútrida! (...) A penna agarrava-se-me nos dedos inteiriçados. Não caiu. Não cairá! Morrerá commigo a fiel companheira. Força invencivel a do amor (sic).

3.2.5 A palavra da mulher cearense (1945)72

O subtítulo e o abre da entrevista no jornal “O Estado”, em 24 de

junho de 1945, deixa claro que Alba Valdez estava sendo ouvida sobre a

política brasileira em fins de uma Ditatura no País, aspecto quase

impensável há alguns anos: “A candidatura de Dutra apreciada por ilustre

71O “Jornal do Comércio” publicou, em 27 de junho de 1930, uma matéria, intitulada “As mulheres e as academias”, que tratava da não admissão de mulheres na Academia Brasileira de Letras. Segundo a nota, “notícias no Rio affirmam que há um forte movimento entre influentes elementos femininos no sentido de apresentar a candidatura da poetisa e escriptora Maria Eugenia Celso, à vaga de Alfredo Pujol, na Academia Brasileira de Letras”. Ainda como afirma o jornal, a “escriptora Sra. Amélia Beviláqua já se havia dirigido o assumpto, á Academia Brasileira, sendo-lhe negada a inscripção que pleiteara”. O motivo teria sido a “interpretação de disposição dos Estatutos que declara que podem ser acadêmicos, os brasileiros que se tenham mobilizado nas letras”. “Brasileiros”, portanto, no masculino. 72 Entrevista concedida ao jornalista Alencar Monteiro, do periódico cearense “O Estado”, em 24 de junho de 1945.

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escritora conterrânea – Aspectos da realidade brasileira, política no sentido

nobre - O Governo no Estado do Ceará – A Lei Eleitoral e o voto feminino”.

Aliás, desde sua fundação em 24 de setembro de 1936, o jornal

“O Estado”, aparecia “como órgão político”, conforme Nobre (1966:338). Por

conta desse viés político, já no abre da entrevista, o periódico aponta a

relevância do momento atual para a história das mulheres:

Faltava-nos ouvir a palavra da mulher cearense. E ela tem razão para falar sobre política, do mesmo modo que teve motivo para ensarilhar armas na grande luta pela liberdade. (...) A mulher de hoje não é mais um animal de cabelos compridos que não precisa pensar, como ensinavam erradamente os nossos recuados e anacrônicos tataravôs. Há mulheres hoje que discorrem com muito mais segurança e conhecimento sobre questões internacionais do que sôbre as propriedades alimentícias e vitamínicas do xuxu, do repolho ou da alface. (...) é justo portanto que se dê a apalavra a uma mulher cearense. E isto fizemos ouvindo Dona Alba Valdez. A figura de renome de intelectuais de quem a fama se projetou além das fronteiras do país autorizam-nos a uma tentativa de entrevista política.

Neste ano, quando Alba Valdez concede a entrevista para o

jornalista Alencar Monteiro, as mulheres brasileiras se preparavam para

exercer no próximo ano, de fato, o direito assegurado pela Constituição

Federal de 193473, mas prorrogado por conta do Estado Novo instalado

1937, que outorgava uma nova Constituição a “polaca”, assegurando uma

Ditadura no Brasil.

O País acabara de sair da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),

na qual Getúlio Vargas (1930-1945) envolvera, por pressão norte-

americana, o Brasil ao lado dos países aliados, como Estados Unidos,

França e Inglaterra. Apesar de seu governo ser semelhante aos do nazi-

fascistas como o da Alemanha e da Itália.

73 Teles, M (1999:45-46) afirma que, no Rio Grande do Norte, o voto feminino foi considerado válido ainda em 1927. “No Rio Grande do Norte, por exemplo, o presidente da província (cargo equivalente ao do governador do Estado de hoje), Juvenal Lamartine, fez passar uma lei que permitia o direito do voto às mulheres. Em 1927, registraram-se as primeiras eleitoras de lá, e em abril de 1928, 15 mulheres votaram no Rio Grande do Norte. Contudo, a nível federal, esses votos não foram reconhecidos”.

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O fato de estar lutando no exterior pela democracia enquanto mantinha internamente um regime ditatorial tornou insustentável a permanência de Getúlio no poder. Na noite do dia 29 de outubro de 1945, os militares que serviram de sustentáculo da ditadura mudaram de lado e depuseram seu antigo chefe, pondo fim ao Estado Novo. (KOSHIBA e PEREIRA, 2003:424)

E, com a queda de Getúlio, há a promulgação da Constituição

Federal de 1946, no período de redemocratização do País. Antes de sua

deposição, ainda em 1945, “o ditador brasileiro baixou um decreto que

marcava as eleições para dois de dezembro de 1945” (KOSHIBA e

PEREIRA, 2004:462).

Para as mulheres, surgia a possibilidade de irem às urnas e

defender seus interesses. “Sem poder político não se pode fazer nada”. A

conclusão de Carmem Portinho, em entrevista a June Hahner (2003:305)74,

demonstra a esperança depositada no direito de voto feminino.

Segundo Hahner (op.cit), “elas acreditavam que o voto

forneceria a chave para futuras conquistas femininas” (pp.304-305). Em

função disso, desde a década de 1920, houve uma maior mobilização das

mulheres em torno do voto, que “tornou-se foco da atividade feminista nos

anos 20”. Afinal, alguns direitos como a educação primária e a superior já

haviam sido conquistados no século passado.

Tanto é que em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, na qual

mulheres como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral se sobressaíram, houve

também a fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino,

organizada por Bertha Lutz, “que vai dar impulso à luta da mulher pela

conquista do voto”, conforme alega Teles, M. (1999:44).

Vinte anos depois, ao dar a entrevista, a escritora cearense

comprova sua relação com as reivindicações femininas atuais, a partir do

contato com o jornalista. Para Cremilda Medina (1986), a entrevista é

definida como um “diálogo possível”. Para ela, “o diálogo é democrático (...)

74 Entrevista com Carmem Portinho, Rio de Janeiro, 20 de junho de 1983 apud Hahner

(2003:305).

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interpreta as vozes dos grandes movimentos populares do século XX”

(p.07). O feminismo era um deles.

Segundo afirma, com o diálogo estabelecido entre entrevistador e

entrevistado, há modificações em ambos: “Tanto um como o outro se

modificaram, alguma coisa aconteceu que os perturbou, fez-se luz em certo

conceito ou comportamento, elucidou-se determinada autocompreensão ou

compreensão do mundo” (p.07). Ou seja, como explica, a entrevista tende a

ser um diálogo a partir do momento em que algo passa a ser modificado e,

assim, também há a oportunidade do público participar dessa “compreensão

de mundo”.

Medina (1986) resume que o objetivo do entrevistado é “dar o

recado” (p.70). E, com a entrevista, fica explícito que a escritora cearense

deu seu recado. Com uma postura de quem acompanha o feminismo no

Brasil, Alba apresenta em seu discurso o direito à igualdade pregado pelas

feministas. Quando interrogada sobre o voto feminino, Alba defende a

participação da mulher:

Não deve ser negado à mulher o direito de votar e de ser votada. E nesse ponto a atual legislação eleitoral satisfaz a medida das aspirações femininas. É um ato de justiça. A cooperação da mulher na guerra que terminou, em parte, foi deverás notável. A sua tarefa se multiplicou nas fábricas e nas oficinas; nos hospitais nos campos de batalha; nas defesas anti-aéreas das cidades, nos navios de guerra e nos aviões de combate.

Depois de afirmar a importância da mulher, sobretudo na guerra

que findara, Alba passa a frisar a coragem da mulher brasileira. E, conclui,

que a “difícil e arriscada tarefa do voto” não deve ser negada a quem

enfrentou piores situações. Afinal, na guerra, as mulheres participaram ao

lado dos soldados, sejam em campos de luta ou nas cidades ocupando

cargos destinados aos homens.

Ela afirma e alega que a mulher pode assumir mais

responsabilidades do que as que sempre foram depositadas nelas. Em

verdade, nos leva a crer que as mulheres são capazes de votar e participar

da vida pública:

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Ela abandonou o próprio lar, para formar uma ênia coluna, construtora da vitória dos povos livres. E essa cooperação lhe valeu conduzir para o futuro do archote da liberdade que iluminou como clarões da alvorada a tradição e o nome de Ana Nery e Joana D’Arc! Se as mulheres desempenharam brilhantemente encargos arriscadíssimos no cenário bélico e sangrento que passou, porque não enfrentar essa arriscadíssima tarefa de votar e ser votada?

Nessa entrevista, Alba Valdez deixa claro o seu discurso

feminista, a luta do feminismo na época. É possível identificar na escritora a

defesa da autonomia feminina, no sentido das mulheres possam decidir a

partir da escolha dos representantes o que consideram melhor para o País.

O desempenho do sexo frágil durante o conflito mundial, provou de forma

incontestável a igualdade dos gêneros, na coragem, na abnegação e no

sacrifício. Agora, por conquista podem contribuir para a melhoria da nação,

sem necessariamente “pegar em armas”.

Como característica da sua escrita, do seu discurso, Alba explora

em todos os textos analisados, a capacidade de indução à participação

comunitária, como estabelece Mcluhan (1984). Mesmo quando não convoca

o leitor, ela dá subsídios para que ele se sensibilize e possa então agir, um

aspecto da comunicação de massa elucidado por Thompson (1995). É

perceptível que a escritora cearense se insere no órgão da esfera pública,

que é a imprensa, e utiliza a capacidade de comunicação mais ampla e sua

razão comunicativa, (HABERMAS, 1984) para propagar e manter a

ideologia do feminismo, assim como a define Thompson (1995)75.

75 Características dos meios de comunicação de massa já explicadas, por meio dos autores citados, no segundo capítulo.

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CONCLUSÃO

Alba Valdez foi uma cearense, dentre tantas mulheres escritoras,

que apresentou um discurso feminista na imprensa. Como explica Foucault

(2003), o discurso, além de refletir as lutas, também ele mesmo é o próprio

objeto do desejo. De uma forma geral, ao considerarmos as reivindicações

do feminismo, percebe-se que o direito de possuir um discurso também era

prioridade das feministas e de Alba.

Afinal, o fato delas editarem e escreverem em jornais comprova a

tentativa de serem donas de uma expressão própria, sem depender de pais,

maridos ou irmãos para indicar o que seria melhor para elas, o que elas

queriam ou, ainda, representá-las. Como afirma Norma Telles (2002),

durante muito tempo por serem “excluídas do processo de criação cultural,

as mulheres estavam sujeitas à autoridade masculina/ autoria masculina”

(p.408).

Com base na análise das produções da escritora cearense em

periódicos, pôde-se chegar à conclusão de que a professora estava

envolvida com as temáticas do feminismo, que desde o século XIX ganhou

mais adeptas pelo País. Sua escrita girou em torno de situações e assuntos

relacionados à mulher, os quais também foram tratados por demais

“escritoras-jornalistas-feministas”, durante os séculos XIX e XX.

Nas narrativas de Alba Valdez, encontro uma crítica à submissão

ao casamento, tido na história da mulher como opção primordial, sem

sequer se cogitar qualquer outra, era o “futuro certo”, o destino a ser

cumprido e a garantia de uma vida feliz para uma donzela

A jornalista não se intimidou diante das normas não expressas,

mas consensuais na sociedade efetivadas por uma elite intelectual de

“machos”, que mesmo com acesso ao mais rebuscado conhecimento e de

posse de informações, por meio de jornais de grandes centros no início do

século XX e depois por meio do rádio, ainda assim agem de acordo com a

sociedade patriarcal que excluía a mulher do espaço público. Fato esse

comprovado quando da reorganização da Academia Cearense de Letras,

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em 1930. Embora Alba Valdez já pertencesse ao quadro de sócios efetivos

desde 1922, foi excluída pelo fato de ser mulher.

O tratamento dado às mulheres escritoras e jornalistas na

ocasião foi de completo esquecimento, pois foram ignoradas de forma

intencional. Alba não se calou e expressou a revolta e o desagrado, não só

dela, mas de todas as mulheres, que por conhecimento e mérito podiam

integrar a Academia Cearense que despontou como precursora no Brasil.

Alba não se abate e de forma contínua e instigante exorta as mulheres a

intensificar o contato com os livros. Destemida e até certo ponto ousada

coloca-se como exemplo para mostrar como as mulheres podem e devem

ser protagonistas na vida a partir da interpretação e do envolvimento com os

textos literários.

Percebe-se na jornalista cearense um olhar que vai além da

defesa dos interesses de sua categoria ou de gênero. As preocupações

sociais e a consciência de que a negligência das autoridades no tocante à

assistência social está presente nas suas reflexões. Ela transforma em

notícia o encontro casual com uma criança contaminada pela lepra. O

objetivo era despertar a sociedade fazê-la refletir e posicionar-se de forma

crítica diante da miséria, da hanseníase e da necessidade de medidas

saneadoras por parte dos governantes. Na crônica “Horrível morbus”,

mesmo com a linguagem romantizada e realista próprias da época, Alba

denuncia a forma como a doença se transmite, caso medidas higiênicas não

fossem postas em prática.

O direito ao voto, luta do movimento feminista no século XX em

todo o mundo, reverbera na escrita feminista brasileira e pauta a agenda da

jornalista. Em “Palavra da mulher cearense”, Alba levanta sua voz e faz a

defesa da participação da mulher na escolha dos representantes do povo

para os cargos governamentais.

Maria Rodrigues apresenta em suas narrativas literárias nos

periódicos, um estilo focado na expressão do “eu”. É perceptível que ela nos

incita a sentir sua presença, suas impressões, suas decepções e seu senso

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crítico. Além disso, há uma identificação da prosa de Alba com os gêneros

Realismo e Naturalismo.

A autora não hesitou em nos apresentar uma realidade tal como

ela se apresentava aos seus olhos. No conto “A Boda”, a professora nos

retrata o egoísmo das relações entre os homens, quando o senhor de

bigode afirma o quanto “valia uma boa esposa”, baseado nos agrados que

sua mulher lhe oferecia como comida e roupa lavada.

No ensaio “Impressões d’um livro”, ela criticou a vaidade e a

ambição, disfarçadas na hipocrisia, que move as ações dos homens. Na

crônica “Horrível morbus”, ela traz à tona e escancara as questões sociais

negligenciadas pelo poder público e dissimuladas pela sociedade. No artigo

“De pé”, a autora declara a discriminação sofrida pelas mulheres, em virtude

do sexo. E, na entrevista “Palavra da mulher cearense”, Alba usa o termo

“justiça” para defender o voto feminino.

Entretanto, apesar de ter havido o movimento feminista e a

escrita das mulheres nos periódicos, como a de Alba, o discurso patriarcal

era a tônica da imprensa cearense. No mesmo veículo em que foram

publicados os textos da feminista, foram também encontrados conselhos,

mandamentos e artigos que ensinavam a mulher como se portar

socialmente e diante do esposo, contribuindo assim para a felicidade do lar.

No jornal “O Nordeste”, no período de janeiro a abril de 1927, são

encontradas notas, por vezes de autores desconhecidos, que tratam de

assuntos voltados para as mulheres. No periódico, havia semanalmente um

espaço destinado às mulheres, chamado “Página Feminina”, cujo conteúdo

ampliava as restrições sociais ao sexo feminino e rebatia com veemência as

reivindicações feministas. Era uma cartilha de bom comportamento.

Em outro periódico cearense, o “Jornal do Comércio”, entre os

meses de abril e junho de 1930, também constam artigos e “mandamentos”

para a dona-de-casa. Nele, não há uma página específica para as

“senhoras”, mas de forma similar ao jornal “O Nordeste”, as leitoras também

são aconselhadas e guiadas para facilitar a relação com o marido e

proporcionar a alegria da família.

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Enfim, os jornais são apenas dois exemplos da tentativa de

manter a mulher no lugar social que sempre ocupou. No Ceará, o

interessante é observar que ambos os periódicos, abrigaram os textos de

Alba Valdez e, como foi exposto, ao lado das suas publicações feministas,

também havia os conselhos que indicavam a submissão constante e perene

da mulher. Isso comprova que, mesmo diante das reivindicações, artigos e

opiniões das feministas, a voz corrente era daqueles que entendiam ser a

casa o único espaço adequado à mulher.

De fato, os periódicos apenas reforçam que apesar de todo o

discurso “anti-feminismo”, as mulheres escritoras, professoras e jornalistas

foram capazes de saírem na defesa do direito a atuarem no espaço público

e, em especial, libertarem-se do jugo masculino e serem as únicas

responsáveis pelo seu destino. Alba Valdez foi um exemplo. Embora

houvesse um extremo cerceamento, ela se ergueu apoiada exatamente no

que negaram ao gênero: a educação. Da escrita fez sua trincheira. Por meio

das palavras, agiu em descompasso com a família tradicional, a religião, o

Estado e até a própria imprensa, instaurando na sociedade provinciana

junto ao pensamento patriarcal os ideais de igualdade entre os gêneros.

Reforço a importância de estudar e divulgar a história dessas

mulheres, para que se possa entender o pioneirismo de suas ações e suas

lutas, ampliadas pelo poder da imprensa e com reflexos no momento atual.

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ANEXOS

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Figura 1: Alba Valdez, escritora, professora e jornalista cearense.