pe. antônio vieira - sermão de santo antônio aos peixes

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Vos estis sal terræ (S. Mateus, 5)

I

VÓS, diz Cris to Senhor nosso , f a lando com os pregadores ,

s o i s o s a l da t e r r a : e c ham a- l he s s a l da t e r r a , p o rq u e q u e r q u efaçam na terra o que faz o sal . O efei to do sal é impedir a corrup-ç ão , m as q u ando a t e r r a s e vê t ão c o r ru p t a c o m o e s t á a no s s a ,havendo tantos nela que têm ofício de sal , qual será, ou qual podeser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou por-que a terra se não deixa salgar . Ou é porque o sal não salga , e osprega dores não pregam a verda deira doutr ina ; ou porque a terra senão deixa salgar , e os ouvintes , sendo verdadeira a doutr ina quelhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os

pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra senão de ixa sa lgar , e os ouvin tes querem antes imi tar o que e lesfa zem, que fa zer o que dizem. Ou é porq ue o sa l nã o salga , e os pre-gadores se pregam a s i e não a Cris to ; ou porque a terra se nãodeixa sa lgar, e os ouvint es, em vez de servir a Cr isto, servem a seusa peti t es. Não é tudo isto verda de? Ainda ma l .

Suposto, pois, que, ou o sal não salgue ou a terra se não deixe sal-ga r; que se há-de fazer a este sa l, e que se há-de fazer a esta terra ? Oque se há -de fazer a o sal q ue nã o salga ? Cristo o disse logo: Quod si sal 

evanuer i t , in quo sal i etur ? Ad ni h i l um valet ul t ra , nis i ut mi t ta tur foras et concul cetu r ab homi ni bus (M ateus V – 13 ). Se o sal perder asubstância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, oque se lhe há -de fa zer, é lan çá -lo fora como inútil, pa ra que seja pisadode todos. Quem se atreverá a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a nãopronun ciar a ? Assim como nã o há quem seja ma is digno de reverênciae de ser posto sobre a cabeça, que o pregador que ensina e faz o quedeve; assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixodos pés o que com a pala vra ou com a vida prega o cont rá rio.

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Is to é o que se deve fa zer a o sa l que não sa lga . E à terra , que se

não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveuCr isto Senhor n osso no Eva ngelho; ma s t emos sobre ele a r esoluçã odo nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e ama is galha rda e g loriosa resoluçã o que nenhum sa nto tomou. P re-ga va Sa nt o Ant ónio em Itá l ia na cida de de Arimino, cont ra os here-ges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dif i-cultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou opovo a se levan ta r cont ra ele , e fa l tou pouco par a que lhe nã o t ira s-sem a vida . Que fa ria neste caso o â nimo generoso do gra nde Ant ó-nio? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outroluga r? Ma s Ant ónio com os pés desca lços n ã o podia fa zer esta pro-testação ; e uns pés , a que se não pegou nada da terra , não t inhamque sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimula-ria? D a ria tempo a o tempo? Isso ensina ria porventura a prudência ,o u a c o v a r d i a h u m a n a ; m a s o z e l o d a g l ó r i a d i v i n a , q u e a r d i anaquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez?Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desist iu da dou-t r ina . De ixa as praças , va i - se às pra i as ; de ixa a te r ra , va i - se aoma r, e começa a dizer a a l ta s vozes: J á que me nã o querem ouvir oshomens, ouçam-me os peixes . Oh, maravi lhas do Al t íss imo! Oh,poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas,começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os peque-n o s , e p o s t o s t o d o s p o r s u a o r d e m c o m a s c a b e ç a s d e f o r a d aá gua, António pregava e eles ouviam.

Se a Igreja quer q ue preguemos de S a nt o Ant ónio sobre o Eva nge-lho, dê-nos outro. Vos esti s sal terræ . É muito bom o texto para osoutr os sa nt os doutores; ma s pa ra Sa nt o Ant ónio vem-lhe muito curto.Os outr os san tos doutores da Igreja fora m sa l da t erra , Sa nt o Ant óniofoi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para

toma r hoje. Ma s há muitos dia s que tenho metido no pensam ento quenas festas dos santos é melhor pregar como eles, que pregar deles.Qua nt o ma is que o sã o da minha doutr ina , qua lquer que ele seja , temtido nesta terra uma fortun a tã o par ecida à de Sa nt o Ant ónio em Ari-mino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregadonesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sem-pre com doutrina muito clar a , muito sólida , muito verda deira , e a q uemais necessária e importante é a esta terra, para emenda e reformados vícios qu e a corr ompem. O frut o que tenh o colhido desta doutrin a ,

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e se a t erra tem t omad o o sa l, ou se tem t oma do dele, vós o sabeis e eu

por vós o sint o.Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-

-me da terra ao mar e , já que os homens se não aproveitam, pregaraos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demaispodem deixar o sermão, pois não é para e les . Maria , quer dizer ,Domin a mar i s : «S enh ora do ma r»; e post o que o a ssu nt o seja t ã odesusado , e spero que me não f a l te com a cos tumada g raça . Ave 

Ma r i a  .

I I

Enf im, que havemos de pregar ho je aos pe ixes? Nunca p iora uditório. Ao menos t êm os peixes dua s boas qua lidades d e ouvin-tes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pre-gador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Masesta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente.Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim serámenos t r is te es te sermão, do que os meus parecem aos homens,pelos enca minha r sempre à lembra nça d estes dois f ins.

Vos esti s sal terræ . Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal ,f i lho do mar como vós , tem duas propriedades , as quais em vósmesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo, para quese nã o corrompa . E sta s mesmas propriedades t inha m a s pregaçõesdo vosso prega dor Sa nt o Ant ónio, como ta mbém a s devem ter a s detodos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal :louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservardele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também

no s pe ix es t e m s e u l u g a r . As s i m d i z o g r a nde do u t or da I g re jaS . Basí l io : N on car per e sol um , r epr ehendereque possum us pi sces,

sed sun t i n i l l i s, et quæ pr osequend a sunt im i tat i one . Não só há quenotar, diz o santo, e que repreender nos peixes, senão também queimitar e louvar . Quando Cris to comparou a sua Igreja à rede depescar: Sagenæ m i ssæ i n mar e (M ateus XI I I – 47 ), diz q ue os pesca -dores recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus: Ellege- 

r un t bonos in vasa, mal os aut em for as m iser un t (I b id . XI I I – 48 ). Eonde há bons e ma us, há que louva r e que repreender. Suposto isto,

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para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão

em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas at i tudes, nosegundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satis-faremos às obrigações do sal , que melhor vos está ouvi-las vivos,qu e experimen tá -la s depois de mortos.

Começan do, pois, pelos vossos louvores, irm ã os peixes, bem v ospudera eu dizer, que entre todas as criaturas viventes e sensit ivas,vós fostes a s primeira s que Deus criou. A vós criou primeiro que asaves do ar , a vós primeiro que aos animais da terra , e a vós pri-meiro que a o mesmo homem. Ao homem deu Deus a mona rq uia e odomínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões,em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foramos peixes: U t præsi t pi sci bus m ar i s, et volat i l i bus cæl i , et besti i s,

un i ver saeque ter ræ (Génes. I – 26 ) . E n t r e t o d o s o s a n i m a i s d omundo, os peixes são os mais e os peixes maiores. Que comparaçãotêm em número as espécies das aves e as dos animais terrestrescom as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com abaleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes detodos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Cr eavi t D eus cete gr an - 

d i a (I bi d . I – 21 ). E os t r ês músicos da forna lha da B a bi lónia o ca n-ta ra m t a mbém como s ingular entre todos :

Bened i cit e, cete et omn i a quæ movent ur i n aqu i s, Domi no (Dan . II I – 79 ). Estes e outros lou-vores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vospudera dizer, ó peixes; ma s isto é lá pa ra os homens, que se deixa ml e va r de s t a s v a i dade s , e é t am b é m p ara o s l u g a re s e m q u e t e mlugar a a dulação , e nã o pa ra o púlpito .

Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podemda r o verda deiro louvor, a primeira qu e se me oferece a os olhos, hoje,é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honrade vosso Cria dor e Senhor, e a quela ordem, quieta çã o e a tenção com

que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh,grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta econfusão para os homens! Os homens perseguindo a António, que-rendo-o lançar da terra e ainda do mundo, se pudessem, porque lherepreendia seus vícios, porque lhe não queria falar à vontade e con-descender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerá-vel concurso acudindo a sua voz, atentos e suspensos às suas pala-vras, escutando com silêncio, e com sinais de admiração e assenso(como se tivera m ent endimento) o que nã o ent endiam . Quem olha sse

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neste passo para o ma r e pa ra a terra , e visse na terra os homens tã o

furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos,que hav ia de d i ze r? Poder i a cu idar que os pe ixes i r rac iona i s setinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas emferas. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; masneste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o usosem a razão. Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devo-ção que t ivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto maisqua nto nã o foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia J ona s, prega-dor do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantouaquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como otr a ta ra m os peixes? Os homens la nçar a m-no ao mar a ser comido dospeixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para quelá pregasse e sa lvas se aq ueles homens. É possível que os peixes a ju-dam a salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os minis-tros da salvação? Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quantomelhor sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para dei-ta r J ona s ao mar, e o peixe recolheu na s entr a nha s a J ona s, pa ra oleva r vivo à terra .

Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotên-ci a q u e a n a t u r e z a (com o t a m b ém e m t od a s a s m i la g r os a s q u eobram os homens) , passo às vi r tudes naturais e próprias vossas .Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles entre todos os ani-ma is se não doma m nem domest ica m. Dos a nima is terrestres o cã oé tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tãoamigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefí-c i o s s e am ans am . D o s an i m a i s do a r , a f o r a aq u e l a s ave s q u e s ecriam e vivem conn osco, o papa ga io nos fa la, o rouxinol nos ca nt a , oaçor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, enco-lhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento.

Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá semergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e nãohá nenhum tão grande que se f ie do homem, nem tão pequeno quenã o fuja dele. Os a utores comumm ente condena m esta condição dospeixes, e a deitam à pouca docil idade ou demasiada bruteza; maseu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muitoaos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza,e r a g r ande p ru dê nc i a . P e i x e s ! Q u an t o m a i s l o ng e do s ho m e ns ,tanto melhor; trato e famil iaridade com eles, Deus vos l ivre! Se os

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an i m a i s da t e r r a e do a r q u e re m s e r s e u s f am i l i a re s , f a ç am - no

m u i t o e m b o r a , q u e c o m s u a s p e n s õ e s o f a z e m . C a n t e - l h e a o shomens o rouxinol , mas na sua gaiola; diga-lhe ditos o papagaio,ma s na sua ca deia ; vá com eles à ca ça o açor , ma s na s sua s piozes ;faça-lhe bufonerias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão delhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se oboi de lhe chamarem fermoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre acerviz, puxa nd o pelo a ra do e pelo car ro; glorie-se o ca va lo de ma st i-ga r freios doura dos, ma s debaixo da va ra e da espora ; e se os t igrese os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram nos bos-ques, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretantovós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis sóconvosco, sim, ma s como peixe na á gua . De ca sa e das port a s a den-tro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lem-bra r, porque há f i lósofos que dizem qu e nã o tendes memória .

No t e m p o de No é s u c e de u o d i l ú v i o q u e c o b r i u e a l ag o u omundo, e de todos os animais quais l ivraram melhor? Dos leõesescaparam dois , leão e leoa, e ass im dos outros animais da terra ;das ág u i a s e s c ap a ram du as , f ê m e a e m ac ho , e a s s i m das o u t r a sa ve s . E do s p ei x es ? Todo s es ca p a r a m , a n t e s nã o s ó e s ca p a r a mtodos , mas f ica ra m muito ma is la rgos que da ntes , porque a terra eo mar tudo era mar . Pois se morreram naquele universal cas t igotodos os animais da terra e todas as aves , porque não morreramtambém os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque osoutros animais , como mais domést icos ou mais viz inhos , t inhammais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retira-dos deles. Fa cilment e pudera Deus fa zer que as á gua s fossem vene-nosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos osoutros a nimais . B em o experimenta is na força da quela s ervas comque, infeccionados os poços e lagos da mesma água vos mata; mas

como o di lúvio era um cast igo universa l que Deus da va a os homenspor seus pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, foi altís-sima providência da divina justiça que nele houvesse esta diversi-dade ou dist inção, para que o mesmo mundo visse que da compa-nhia dos homens lhe viera todo o ma l e que por isso os a nima is queviviam mais perto deles foram também cast igados e os que anda-vam longe f icaram l ivres. Vede, peixes, quão grande bem é estarl on g e d o s h om e n s . P e r g u n t a d o u m g r a n d e f i lós of o, q u a l e r a am e l ho r t e r r a do m u ndo , re s p o nde u q u e a m a i s de s e r t a , p o rq u e

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t i nha o s ho m e ns m a i s l o ng e . S e i s t o vo s p re g o u t am b é m S an t o

António, e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar gra-ças ao Criador , bem vos pudera a legar consigo , que quanto maisb u s c a v a a D e u s , t a n t o m a i s f u g i a d o s h o m e n s . P a r a f u g i r d o shomens deixou a casa de seus pais e se recolheu ou a colheu a umareligião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui odeixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depoisC o i m b r a , e f i n a l m e n t e P o r t u g a l . P a r a f u g i r e s e e s c o n d e r d o sho m e ns , m u do u o háb i t o , m u do u o no m e , e a t é a s i m e s m o s em u do u , o c u l t ando s u a g r ande s ab e do r i a de b a i x o da o p i n i ão deidiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado det odos, como lhe sucedeu com seus próprios irmã os no ca pítulo gera lde Assis. De al i se retirou a fazer vida soli tária em um ermo, doqual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara, e porf im acabou a vida em outro deserto tanto mais unido com Deus,qua nto mais apa rta do dos homens.

I I I

E ste é, peixes, em comum o na tu ra l que em t odos vós louvo, e afelicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo aopar ticula r, inf ini ta ma téria fora se houvera de discorrer pela s virtu-des de que o autor da natureza a dotou e fez admirável em cada umde vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeirolugar entre todos como tão celebrado na Escri tura, é aquele santopeixe de Tobia s, a quem o texto sa gra do nã o dá outr o nome, que degra nde, como verda deira mente o foi na s virtud es interiores, em quesó consiste a verdadeira gra ndeza. I a Tobias cam inha ndo com o a njo

S. Rafael , que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó doca minho na s ma rgens de um r io, eis que o investe um gra nde peixecom a boca a berta em a cçã o de que o queria tr a ga r. Gri tou Tobiasassombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barba-tana e o arras tasse para terra ; que o abrisse e lhe t i rasse as entra-nhas e a s g u a rdas s e , p o rq u e l he hav i am de s e rv i r m u i t o . F ê - l oa s s i m Tob i a s , e p erg u n t a ndo q u e v i r t u de t i nha m a s en t r a nha sda quele peixe que lhe ma nda ra gua rda r, respondeu o an jo que o fele ra bom para sarar da cegue i ra , e o coração para l ançar fo ra os

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demónios: Cord i s eju s par t i cul am , si super car bones ponas, fum us 

eju s extr i cat omne genu s Dæmoni orum : et fel val et ad un gend os, ocu - 

l os, in qu i bus fuer i t al bugo, et sanabun tu r (Tob. V I – 8 ). Assim odisse o anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque sendo opa i de Tobias cego, a plica nd o-lhe o filho a os olhos um pequen o dof el , cob rou i n t e ir a m e nt e a v i s t a ; e t e ndo u m d e m óni o cha m a doAsmodeu morto sete ma ridos a Sa ra , ca sou com ela o mesmo Tobia s;e queiman do na ca sa par te do cora çã o, fugiu dal i o demónio e nuncamais tornou. De sorte que o fe l daquele peixe t i rou a cegueira aTobias , o velho, e la nçou os demónios d e cas a de Tobias , o moço. U mpeixe de tã o bom cora ção e de tã o proveitoso fel, qu em o nã o louva rámuit o? Cert o que se a est e peixe o vestira m de burel e o a ta ra m comuma corda , pa recia um r etra to ma rít imo de Sa nt o Ant ónio.

Abria Santo António a boca contra os hereges, e enviava-se aeles, levad o do fervor e zelo da fé e glória d ivina . E eles que fa zia m?G rit a va m como Tobia s e ass ombra va m-se com a qu ele homem e cui-da va m que os queria comer. Ah homens, se houvesse um an jo querevelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vosamarga, quão proveitoso e quão necessário vos é ! Se vós lhe abrís-seis esse peito e lhe vísseis a s ent ra nh a s, como é certo que h a víeisde achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretendede vós, e convosco: uma é a lumiar e cura r vossa s cegueira s, e outr alançar-vos os demónios fora de casa. Pois a quem vos quer t irar ascegueiras, a quem vos qu er l ivra r d os demónios, perseguis vós?! S óuma d i fe rença hav ia ent re Santo António e aque le pe ixe : que opeixe a briu a boca contr a quem se lava va, e S a nto António a bria asua contr a os que nã o queriam la va r.

Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizerneste ca so! Abri, abri esta s entr a nha s; vede, vede este cora ção. Ma s a hsim, que me nã o lembra va ! E u nã o vos prego a vós, prego a os peixes.

P a s s a n d o d o s d a E s c r i t u r a a o s d a h i s t ó r i a n a t u r a l , q u e mhaverá que não louve e admire mui to a vi r tude tão ce lebrada darémora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem pre-f e r i r ao s o u t ro s . Q u e m have rá , d i g o , q u e não adm i re a v i r t u deda quele peixezinho tã o pequeno no corpo e tã o gra nde na força e nopoder, que, não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme deuma na u da Índia , a pesa r da s ve la s e dos ventos , e de seu própriopeso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras ,sem se poder mover, nem ir por d ian te? Oh se houvera uma rémora

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na terra, que t ivesse tanta força como a do mar, que menos perigos

ha veria na vida , e que menos naufrá g ios no mundo!Se a lguma rémora houve na terra , fo i a l íngua de Santo Antó-

nio, na qual , como na rémora, se veri f ica o verso de São GregórioNazianzeno: L i ngua qui dem par va est , sed vi r i bus omni a vin ci t . OApóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, comparaa l íngua a o leme da na u e ao f reio do ca valo . U ma e outra compara -çã o ju n t a s d e cl a r a m m a r a v il h os a m e n t e a v i r t u d e d a r é m or a , aqua l , pega da a o leme da na u, é fre io da na u e leme do leme. E ta lfoi a virtude e força da l íngua de Santo António. O leme da natu-re z a hu m ana é o a l ve dr i o , o p i l o t o é a r a z ão ; m as q u ão p o u c asvezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Nesteleme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de Antó-nio quanta força t inha, como rémora, para domar a fúria das pai-xões human a s . Quant os , correndo fortun a na na u Soberba , com a svela s inchad a s do vent o e da mesma soberba (que ta mbém é vent o),se ia m desfazer nos baixos, que já rebent a va m por proa, se a l ínguade Ant ónio, como rémora, n ã o t ivesse mã o no leme, at é que a s velasse ama inassem, como ma nda va a ra zão , e cessa sse a tempesta de defora e a de dentro? Quantos , embarcados na nau Vingança, com aarti lharia abocada e os bota-fogos acesos, corriam enfunados a dar--se ba ta lha , onde se queima riam ou deita r iam a pique , se a rémorada l íngua de António lhe não detivesse a fúria, até que composta ai ra e ód io , com bande i ras de paz se sa lvassem amigave lmente?Quan tos , na vegan do na na u Cobiça , sobreca rregada a té às gá vea s eaberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem sedefender, da ria m na s mã os dos corsár ios com perda do que levava me do que iam buscar, se a l íngua de António os não f izesse parar,como rémora, a té que , a l iv iados da carga injusta , escapassem doperigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sem-

pre navega com cerração , sem sol de dia , nem estre las de noi te ,enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, seiriam perder cega mente, ou em Cila, ou em Ca ríbdis, onde nã o a pa-recesse navio nem navegante, se a rémora da l íngua de António osnã o cont ivesse, at é que esclar ecesse a luz, e se pusessem em vist a ?

Esta é a l íngua, peixes, do vosso grande pregador, que tambémfoi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda(posto que ainda se conserva inteira) se vêem e choram na terrat a n tos na u f rág ios .

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Mas par a que da a dmiraçã o de uma t ã o gra nde v ir tude vossa ,

passemos ao louvor ou inve ja de ou t ra não menor , admiráve l éigualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os lat inoschamaram torpedo . Ambos es tes pe ixes conhecemos cá mais defama que de vis ta ; mas is to têm as vi r tudes grandes , que quantosão maiores , mais se escondem. Es tá o pescador com a cana namão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando naisca o torpedo, começa a lhe tremer o bra ço. P ode ha ver ma ior, maisbreve e mais admiráve l e fe i to? De mane i ra que , num momento ,passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol , do anzol à l inha,da l inha à ca na e da cana a o bra ço do pesca dor.

Com muit a ra zã o disse, que este vosso louvor o ha via de referircom inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou queml he p u s e ra e s t a q u a l i dade t re m e nt e , e m t u do o q u e p e s c am nat e r r a ! M u i t o p e s c am , m as não m e e s p an t o do m u i t o ; o q u e m eespa nt a é que pesquem ta nt o, e que trema m t ã o pouco. Ta nt o pes-car e tã o pouco tr emer!

P u de ra- s e f a z e r p ro b l e m a : o nde há m a i s p e s c ado re s e m a i smodos e traças, de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que naterr a . Nã o quero discorrer por eles, aind a que fora gra nde consolaçãopar a os peixes; bast e fa zer a compa ra ção com a ca na , pois é o instr u-mento do nosso caso. No mar, pescam-se as canas, na terra pescama s var a s (e ta nta sorte de vara s); pesca m a s gineta s, pesca m a s ben-ga las, pesca m os bast ões e a té os ceptr os pesca m, e pescam m a is quetodos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível quepescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e obra ço?! Se eu prega ra a os homens e tivera a língua d e Sa nt o Ant ónio,eu os fizera tr emer.

Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermãode Sa nto António, e as pala vra s do Sa nto os f izera m t remer a todos

de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés, todos, tre-mendo , confessaram seus fur tos , todos , t remendo , res t i tu í ram oque podia m (que isto é o que fa z tr emer m a is neste peca do que nosoutros), todos enfim mud a ra m de vida e de of ício, e se emenda ra m.

Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixescom um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeudele a pregar. A verda de é que me pregou a mim, e se eu fora outro,ta mbém me convertera . Na vega ndo de a qui para o Pa rá (que é bemnã o f iquem d e fora os peixes da nossa costa ), vi correr pela tona da

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fazer neste mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, por-

q u e ne s t e m u ndo t u do é va i dade : Van i t as van i t a t u m , et omn ia 

vanitas (Ecles. I – 2 ). Logo, par a nã o verem os olhos de Da vid a va i-da de, ha via-lhos de volta r D eus de modo que só vissem e olha ssempar a o outr o mundo em a mbos seus hemisférios; ou pa ra o de cima ,olhando direi tamente só para o Céu, ou para o de baixo, olhandodirei ta mente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deusa quele gran de P rofe ta , e es ta a doutr ina que me pregou a quele pei-xezinho tão pequeno.

Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos pei-xes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças domuito que ajuda is a ir a o Céu e nã o ao Inferno, os que se sustenta mde vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todasas santas famíl ias, que professam mais rigorosa austeridade; vós osque a todos os verda deiros cristã os a juda is a levar a penitência da squaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a sua pás-coa , a s dua s vezes qu e comeu com seus discípulos depois de ressus ci-tado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidose cust osos os ba nq uetes d os ricos, e vós gloria i-vos de ser compa nh ei-ros do jejum e da a bst inência d os just os. Tendes t odos qu a nt os soistanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo Deus nojejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais deli-c ado p e i x e . E p o s t o q u e na s e m ana s ó do i s s e c ham am vo s s o s ,nenhum dia vos é vedad o. U m só luga r vos dera m os a str ólogos entreos signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são osq u e t ê m m a i s s e g u ro s o s l u g a re s do C é u . E n f i m , s o i s c r i a t u ra sda quele elemento, cuja fecundida de entr e todos é própria do EspíritoSanto : Spir it us Domi ni fæcun dabat aquas (Génes. I – 5 Sept .).>

Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; epara que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não

fa l ta r a os pobres com o seu remédio. E nt endei que no sustent o dospobres t endes segur os os vossos a ument os. Toma i o exemplo na si rmãs sard inhas . Porque cu ida i s que as mul t ip l i ca o Cr i ador emnúmero tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhose os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos reis edos poderosos ; mas o pe ixe que sus tenta a fome dos pobres deCristo, o mesmo Cristo o multiplica e aumenta. Aqueles dois peixescompanheiros dos cinco pães do deserto, multipl icaram tanto, quederam de comer a c inco mil homens. Pois se peixes mortos , que

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sus tentam a pobres , mul t ip l i cam tanto , quanto mais e melhor o

fa rã o os vivos! C rescei, peixes, crescei e mult iplicai, e D eus vos con-firme a sua bênçã o.

I V

Antes , porém, que vos vades , ass im como ouvis tes os vossoslouvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ãode confusã o, já que nã o seja de emenda . A primeira cousa que me

desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grandeescândalo é este , mas a circunstância o faz ainda maior. Não só voscomeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.Se fora pelo contrá rio, era menos ma l . Se os pequenos comera m osgrandes , bas tara um grande para mui tos pequenos; mas como osgrandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil ,p a r a u m s ó g r ande . O l ha i c o m o e s t r anha i s t o S an t o A g o s t i nho :H om i nes pr avi s, præver si sque cup i di tat i bus fact i sun t, si cut pi sci s 

i nv i cem se devoran tes : «Os h omens , com su a s má s e pervers a s cobi-ça s, vêm a ser como os peixes q ue se comem un s a os outr os». Tã oa l h e i a c o u s a é , n ã o s ó d a r a z ã o , m a s d a m e s m a n a t u r e z a , q u e ,sendo todos criad os no mesmo element o, t odos cidad ã os da mesmapát ria , e todos f ina lmente irmã os, vivais d e vos comer! S a nt o Agos-t inho , que pregava aos homens , para encarecer a f ea ldade des teescâ nd a lo, mostr ou-lho nos peixes; e eu, q ue prego aos peixes, pa raqu e vejais q uã o feio e abominá vel é, quero que o veja is nos homens.

Olhai , peixes, lá do mar para a terra . Nã o, nã o: nã o é isso o quevos digo. Vós virais os olhos para os ma tos e para o sertã o? Pa ra cá ,para cá ; para a c idade é que have i s de o lhar . Cu ida i s que só os

Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá,muit o ma is se comem os bra ncos. Vedes vós todo aq uele bulir, vedestodo a quele an da r, vedes a quele concorrer à s pra ça s e cruza r a s rua s;vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sairsem quieta çã o nem sossego? P ois tudo a quilo é an da rem busca ndo oshomens como hão-de comer, e como se hão-de comer. Morreu algumdeles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo.Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no oslega tá rios, comem-no os a credores; comem-no os oficia is dos órfã os, e

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os dos defunt os e a usent es; come-o o médico, que o curou ou a judou a

morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesmamulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velhoda casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e osque, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto onã o comeu a terra , e já o tem comido toda a terra .

J á se os homens se comera m somente depois de mortos, par eceque era menos horror e menos matéria de sent imento . Mas paraque conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai , peixes,q u e t am b é m o s ho m e ns s e c o m e m v i vo s a s s i m c o m o vó s . V i voesta va J ob , quando d iz ia : Quar e per sequi m in i me, et carn i bus mei s 

sa tu ram in i? (J ob, XI X – 22 ): «P orque m e perseguis t ã o desuma na -mente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minhacar ne?»Quereis ver um J ob dest es?

Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ouacusados de cr imes, e o lhai quantos o es tão comendo. Come-o omeirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicita-dor, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha,come-o o julga dor, e a inda nã o está sentenciado, já está comido. Sã op iores os homens que os corvos . O t r i s te que fo i à fo rca , não ocomem os corvos senão depois de executado e morto; e o que andae m j u í z o , a i nda não e s t á e x e c u t ado ne m s e n t e nc i ado , e j á e s t ácomido.

E par a que veja is como estes comidos na terra sã o os pequenos,e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deusqu eixan do-se dest e pecad o: N onne cognoscent omn es, qu i oper an tu r 

i n i q u i t a t em , qu i d ev or a n t p l eb em m eam , u t c i b um p a n i s  

(Salmo Xl l l – 4 ). Cuidais , diz Deus, que não há-de vir tempo emque conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem ama ldade? E q ue ma ldade é es ta , à qua l Deus s ingularment e cha ma

a m a l dade , c o m o s e não ho u ve ra o u t r a no m u ndo ? E q u e m s ãoa queles que a cometem? A ma lda de é comerem-se os homens unsao s o u t ro s , e o s q u e a c o m e t e m s ão o s m a i o re s q u e c o m e m o spequenos: Qui devor ant pl ebem meam , ut cibum pani s.

Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advir-t a i s muito ou t ra s t a n ta s cousas , quanta s são as mesmas pa l avra s .Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declara-damente a sua plebe ! Pl ebem meam , porque a plebe e os plebeus,que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos

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avul tam na repúbl ica , es tes são os comidos . E não só diz que os

comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qu i 

devorant . Porque os grandes que têm o mando das c idades e dasprovíncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos umpor u m, ou poucos a poucos, senã o que d evora m e eng olem os povosinteiros: Qu i d evor an t pl ebem m eam . E de que modo os devoram ecomem? U t cibum pan is : não como os outros comeres, senão comopão. A diferença qu e há ent re o pão e os outr os comeres, é que pa raa carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para asfrutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos osdias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que pade-cem os pequenos. S ã o o pão q uotidian o dos gra ndes; e a ssim como opão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos osmiserá veis pequenos, nã o tendo, nem fa zendo ofício em q ue os nã ocarreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, emq u e o s n ã o c o m a m , t r a g u e m e d e v o r e m : Qu i devor an t p l ebem 

meam, ut cibum panis .

Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movi-mento das cabeças es ta is todos dizendo que não , e com olhardesuns par a os outros , vos es ta is a dmira ndo e pa sma ndo de que entreos homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o quevós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes nãosó os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto conti-nuadamente sem di ferença de tempos, não só de dia , senão tam-b é m d e n o i t e , à s c l a r a s e à s e s c u r a s , c o m o t a m b é m f a z e m o shomens.

Se cuidais , porventura, que estas injustiças entre vós se tole-ram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as cas-tiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós.Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste

Estado, e quando menos ouvir íe is murmurar aos passageiros nasca noas , e mui to mais la menta r a os miserá veis remeiros delas , queos maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumen-tar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lát ra z iam, a far t a vam em comer e devora r os pequenos.

Assim, foi ; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que,seguindo a es te i ra dos navios , vão com eles a Portugal e tornampa ra os ma res pá t rios, bem ouviria m estes lá no Tejo, qu e essesmesmos maiores, que cá comiam os pequenos, quando lá chegam

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a cha m outros ma iores que os comam ta mbém a eles. Este é o esti lo

da divina justiça t ã o a nt igo e man ifesto, que at é os gentios o conhe-cera m e celebrar a m:

Vos qui bus rector m ar i s, atque ter ræ 

J us dedi t m agnum neci s, atque vi tæ; 

Poni te in f l atos, tum id osque vul tu s,

Qui dqu id a vobis mi nor ext im esci t 

M aior hoc vobis Domin us mi natu r 

Nota i , peixes, a quela definição de Deus: Rector m ar i s atqu e ter - 

rae. Governador do mar e da te rra ; para que não duvide i s que omesmo esti lo, que Deus guarda com os homens na terra, observatambém convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós enão façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande doutor daI g re j a , S a n t o Am b ró s i o, q u a ndo , f a l an do c onvo s co, d i s s e : Cave 

nedum al i um in sequer is , in cid as in val i d i orem . Guarde-se o peixeque persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca domais forte , que o engula a ele . Nós o vemos aqui cada dia. Vai oxaréu correndo atrás do bagre, como o cão após a lebre, e não vê ocego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de den-t es, que o há -de engolir de um boca do. É o que com m a ior elegâ nciavos disse ta mbém Sa nt o Agostinh o: Prædo m i nori s fi t præda mai o- 

r i s . Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de sepersuadir a vossa gula , que a mesma crueldade que usais com ospequenos, tem já a par elha do o ca stigo na vora cida de dos gra ndes?

J á que a ss im o experimenta is com t a nt o dano vosso, importaque de aqui por diante sejais mais repúbl icos e ze losos do bemcomum, e que este prevaleça contra o apet i te part icular de cadaum, para que não suceda que, assim como hoje vamos a muitos de

vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bas-tam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão as tutos ep e r t i naz e s , q u an t o s s ão o s p e s c ado re s , q u e ne m de d i a ne m denoite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos?!Nã o vedes que contr a vós se ema lham e entr a lham a s redes , contr avós se tecem as nassas, contra vós se torcem as l inhas, contra vósse dobra m e farpa m os anzóis, cont ra vós a s f isgas e os a rpões? Nã ovedes que contra vós a té as canas são lanças e as cort iças armasofensivas? Não vos basta , pois , que tenhais tantos e tão armados

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inimigos de fora , senã o que ta mbém vós de vossa s port a s a dentr o o

haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra maisque civi l e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse, já, irmãospeixes, e tenha f im algum dia esta tão perniciosa discórdia; e poisvos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome.Não estáveis vós mui to quie tos , mui to pac í f icos e mui to amigostodos , g randes e pequenos , quando vos pregava Santo António?P ois cont inua i a ssim, e sereis fel izes.

Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendesoutro modo de vos sust enta r. E d e que se sustent a m entr e vós mui-tos, que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fért i l ,mui to abundante , e só com o que bo ta às pra i as pode sus tentargrande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animaisa os outros é vora cidade e sevícia , e nã o esta tut o da na tureza . Os daterra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não secomia m, sendo a ssim conveniente e necessá rio pa ra que a s espéciesde todos se multipl icassem. O mesmo foi (ainda mais claramente)depois do di lúvio , porque tendo escapado somente dois de cadaespécie, mal se podiam conservar se se comessem. E finalmente notempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro naarca , o lobo estava vendo o cordeiro , o gavião a perdiz , o leão ogamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lát iveram essa tentação, todos lhe resist iram e se acomodaram com aração do paiol comum, que Noé lhes repartia. Pois se os animaisdo s ou t r os e l em e nt o s m a i s cá l ido s f or a m c a p az e s de s t a t e m p e -rança , porque o não se rão os da água? Enf im, se e les em tantasoca siões pelo desejo na tur a l da própria conserva ção e a umento f ize-ram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtudesem necessidade e será m a ior virt ude.

Outra coisa mui to geral , que não tanto me desedi f ica , quanto

me l as t ima em mui tos de vós , é aque la t ão no táve l i gnorânc ia ecegueira que em todas as viagens experimentam os que navegampara es tas part es . Toma um homem do ma r um a nzol , a t a -lhe umpedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-opor um ca bo delgado a té t oca r n a á gua , e em o vendo o peixe, a rre-mete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspensono ar , ou lançado no convés , acaba de morrer . Pode haver maiorignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por umreta lho de pa no, perder a vida ?!

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Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá

um exérc i to bata lha contra outro exérc i to , metem-se os homenspelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Por-que houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos depan o. A va ida de ent re os vícios é o pescador ma is as tut o e que ma isfac ilmente enga na os homens. E que faz a vaida de? P õe por isca naponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhosde pano, ou bra nco, que se cham a há bito de Malt a , ou verde, que sechama de Avis, ou vermelho, que chama de Cristo e de Santiago; eos homens por chegarem a passar esse re ta lho de pano ao pei to ,n ã o r ep a r a m e m t r a g a r e e n g ol ir o f er r o . E d e poi s d i s s o q u esucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferr o, ou a li , ou nout raocasião f icou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outravez ao anzol pa ra pesca r outros.

Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem omesmo que vós, posto que me par ece que nã o foi este o funda mentoda vossa resposta ou escusa, porque cá no Mara nhã o ainda que sederram e ta nto sa ngue, nã o há exérc itos , nem esta a mbiçã o de há bi-tos.

Ma s nem por isso vos nega rei que ta mbém cá se deixam pescaros homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignorante-mente . Quem pesca as v idas a todos os homens do Maranhão , ecom quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem ummestre de navio de Portuga l com q ua tro va rredura s da s loja s , comqua tro panos e qua tro seda s , que já se lhe pa ssou a era e nã o têmgasto e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossaterra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhessobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todosesfaima dos aos tra pos, e al i f ica m enga sga dos e presos, com dívida sde um a no pa ra ou t ro ano, e de uma sa f ra para ou t ra sa f ra , e l á va i

a vida . Isto nã o é encar ecimento. Todos a t ra ba lha r t oda a vida , ouna roça , ou na ca na , ou no engenho, ou no ta bacal ; e es te t ra balhode toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as l i tei-ras , nem os cavalos , nem os escudeiros , nem os pajens , nem oslacaios , nem a s ta peça rias , nem a s pintur a s , nem a s baixelas , nemas jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste far-ra po com que sa em à r ua , e pa ra i sso se mat a m t odo o a no.

Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com quevos escusais? Cla ro está que sim; nem vós o podeis negar. P ois se é

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grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem

tem obrigação de se vest i r , vós , a quem Deus vest iu do pé até àcabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de esca-mas pra teadas e douradas , ves t idos que nunca se rompem, nemg a s t a m c o m o t e m p o , n e m s e v a r i a m o u p o d e m v a r i a r c o m a smodas; n ã o é ma ior ignorâ ncia e ma ior cegueira deixa rde-vos enga -nar ou deixarde-vos tomar pelo beiço com duas t irinhas de pano?Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundocom essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de queaquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e umacorreia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, pare-cendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou asarja pelo burel e a corre ia pela corda. Com aquela corda e comaque le pano , pescou e le mui tos , e só es tes se não enganaram efora m sisudos.

V

Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contraa lguns de vós. E começan do aq ui pela n ossa costa , no mesmo dia emque cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho,tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós unspeixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se comuma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um alei-jado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais.Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente,quem tem muita espada, tem pouca l íngua. Isto não é regra geral ;ma s é regra geral que D eus nã o quer ronca dores, e que tem par ticu-

lar cuidado de aba ter e humilha r a os que muito ronca m. S. P edro, aquem muito bem conheceram vossos antepassados , t inha tão boaespada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldadosroma nos; e se Cris to lha nã o manda ra meter na bainha , eu vos pro-meto que havia de cort a r ma is orelhas q ue a de Ma lco. Contudo, quelhe sucedeu naque la mesma no i te? Tinha roncado e barba teadoPedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante atémorrer, se fosse necessá rio; e foi ta nt o pelo contr á rio, que só ele fra -queou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o

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f azer t remer e negar . Antes disso já t inha f raq uea do na mesma hora

em que prometeu ta nt o de si. Disse-lhe Crist o no hort o que vigia sse,e vindo de a í a pouco a ver se o fazia , a chou-o dorm indo com ta l des-cuido, que não só o acordou do sono, senão também do que t inhablasonado: Sic non potui st i un a hora vi gi l are mecum ? (M ar cos XI V 

– 37 ). Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, enão pudes tes uma hora v ig i ar comigo? Pouco há t an to roncar , eagora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes daoca siã o, é sina l de dormir nela . P ois que vos pa rece, irmã os ronca do-res? Se i s to sucedeu ao maior pescador , que pode acontecer aomenor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendesde bla sona r, nem roncar.

Se as bale ias roncaram, t inha mais desculpa a sua arrogânciana s u a g r ande z a . M as a i nda nas m e s m as b a l e i a s não s e r i a e s s aarrogância segura. O que é a baleia entre os peixes, era o giganteG olias ent re os homens. Se o rio J ordã o e o ma r de Tibería des têmcomunicação com o Oceano , como devem te r , po i s de le manamtodos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos f i l is-teus . Quarenta dias cont ínuos esteve arma do no ca mpo, desaf iandoa todos os ar ra ia is de Isra e l, sem ha ver q uem se lhe a trevesse; e noca bo, que fim teve toda a quela a rrogância ? Ba stou um pa storz inhocom um cajado e uma funda, para dar com ele em terra . Os arro-gantes e soberbos tomam-se com Deus, e quem se toma com Deus,sempre f ica debaixo. Assim que , a migos roncadores, o verdadeiroc o ns e l ho é c a l a r e i m i t a r a S an t o A nt ó n i o . D u as c o u s as há no shomens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham:o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescit i s qu i dquam 

(J oão, X I – 49 ). Pi latos roncava de poder: N esci s qui a potesta tem 

habeo? (J oão, X I X – 10 ). E a mbos contra Cr isto.Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já

vos disse , e tanto poder , como vós mesmo experimentas tes , nin-guém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quantomais b lasonar disso . E porque tanto calou, por isso deu tamanhobrado.

Nesta viagem, de que f iz menção, e em todas as que passei aLinha Equinocial , vi debaixo dela o que muitas vezes t inha visto enotado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido estaronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes deque a gora fa lo, e com gr a nde propriedad e, porq ue sendo pequenos,

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não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam

a o s c o s t a d o s , q u e j a m a i s o s d e s f e r r a m . D e a l g u n s a n i m a i s d emenos força e indústr ia se conta que vão seguindo de longe aosleões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmofa zem estes pegadores, tã o seguros a o pert o como a queles a o longe;porq ue o peixe gra nde nã o pode dobra r a ca beça , nem volta r a bocasobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais afome.

Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se pas-sou e pegou de um elemento a outro, sem dú vida que o a prendera mos peixes do alto, depois que os nossos portugueses o navegaram;porque não parte vice-re i ou governador para as conquis tas , quenã o vá rodeado de pega dores , os qua is se a rr ima m a e les , para quecá lhe matem a fome , de que l á não t inham remédio . Os menosignorantes desenganados da experiência, despegam-se e buscam avida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê efortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no f im o que aos pegado-res do mar.

Rode ia a nau o tubarão nas ca lmar i as da L inha com os seuspegadores às costas , tão cerz idos com a pele , que mais parecemremendos ou manchas naturais , que os hóspedes ou companheiros.Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados ,arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, ef ica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente oconvés com os últ imos a rra ncos; enfim, morre o tuba rã o, e morremcom ele os pegadores.

Parece-me que estou ouvindo a S . Mateus , sem ser Apóstolopescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz oE va ngelista , a par eceu o a njo a J osé no Egipto, e disse-lhe, que já sepodia tornar para a pátr ia , porque eram mortos todos aqueles que

queriam t i rar a vida ao Menino: Defuncti sun t eni m qui quærebant an im am Puer i (M at. I I – 20 ) . Os que queriam t i rar a vida a Cris toMenino eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos osseus aderentes , todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna.Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Hero-des? Sim: porq ue em morrendo o tuba rã o, morrem ta mbém com eleos pegadores: Defun cto H er ode, defun ct i sun t qui quaer ebant ani - 

mam Puer i . Eis aqui , peixezinhos ignorantes e miseráveis , quãoerra do e enga noso é est e modo de vida qu e escolhest es. Toma i o

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exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem,

como devera m, o de Sa nt o Ant ónio.Deus ta mbém t em os seus pegadores . Um destes era Da vid, que

diz i a : M i hi au tem ad hær er e Deo bonum est . (Salm o L XX I I – 2 ).P eguem-se outr os a os gra ndes da terr a , que eu só me quero pegar aDeus. Assim o fez também Santo António , e senão, o lhai para omesmo santo , e vede como está pegado com Cris to e Cris to comele. Verda deira mente se pode duvida r q ua l dos dois é al i o pegad or;e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega aomaior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António.Mas António t ambém se fez menor , para se pegar mais a Deus .Daqui se segue que todos os que se pegam a Deus, que é imortal ,seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros,que a inda no ca so em q ue Deus se fez homem e morreu, só morreupara que não morressem todos os que se pegassem a ele . Bem seviu nos que estavam já pegados, quando disse: Si er go me quær i ti s,

si ni te hos abi r e (J oão, XVI I I – 8 ): Se me buscais a mim, deixa i ir aestes. E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós,meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros ani-m a i s do a r e da t e r r a , q u e q u ando s e c he g am ao s g r ande s e s eamparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram jun-tamente com eles . Lá diz a Escri tura daquela famosa árvore , emque era signif icado o grande Nabucodonosor, que todas as aves docéu descansavam sobre os seus ramos, e todos os animais da terrase recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seusfrutos ; mas também diz , que tanto que fo i cortada es ta árvore , asaves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aosgra ndes ; mas nã o de ta l ma neira pegad os , que vos ma te is por e les ,nem morr a is com eles.

Considerai , pegadores vivos, como morreram os outros que se

pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porquecomeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maiorignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tuba-rão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegadorpelo que nã o comeu, é a ma ior desgra ça que se pode imagina r! Nã oc u id e i q u e t a m b é m n o s p e ix e s h a v i a p eca d o or i g i n a l . N ó s , oshomens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o paga-mos. Toda a nossa mort e teve princípio na gulodice de Adã o e E va ;e que ha ja mos de morrer pelo que outrem comeu, gra nde desgra ça !

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Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós

não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem omar .

Com os voa dores tenho ta mbém uma pala vra , e nã o é pequenaa queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Poisporque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o arpara e las . Contentai-vos com o mar e com nadar , e não queiraisvoar, pois sois peixes. Se aca so vos nã o conh eceis, olha i par a a s vos-sas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não soisaves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir--me-e i s , voador , que vos deu Deus maiores barba tanas que aosoutros de vosso tam a nho. Pois porque t ivestes ma iores barba ta na s ,por isso ha veis de fazer das ba rba ta na s asa s?! Mas a inda ma l , por-q u e t an t a s ve z e s vo s de s e ng ana o vo s s o c a s t i g o . Q u i s e s t e s s e rm e l ho r q u e o s o u t ro s p e i x e s , e p o r i s s o s o i s m a i s m o f i no q u etodos. Aos outr os peixes do a l to, mat a -os o a nzol ou a f isga, a vóssem fisga nem anzol , mata-vos a vossa presunção e o vosso capri-cho. Va i o navio na vega ndo e o ma rinheiro dormindo, e o voa dortoca na vela ou na corda , e ca i palpita ndo. Aos outros peixes mat a --os a fome e enga na -os a isca; a o voa dor ma ta -o a va ida de de voa r, ea sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixoda qui lha e viver, que voa r por c ima da s a ntena s e ca i r morto!

G ra nde a mbiçã o é que , sendo o ma r t ã o imenso, lhe não basta aum peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento maislargo. Mas vede, peixes, o castigo da ambição. O voador, fê-lo Deuspeixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha osperigos de a ve e mais os de peixe. Toda s a s velas pa ra ele sã o redes,como peixe, e toda s a s corda s, la ços, como a ve. Vê, voador, comocorreu pela posta o teu cast igo. P ouco há na da va s vivo no ma r coma s barba t an a s , e a gora jazes em um convés amor ta lhado nas a sas .

Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nempeixe ; nem voar poderá s já , nem na dar . A na tureza deu-te a á gua ,t u nã o quisest e senã o o a r, e eu já t e vejo posto a o fogo. P eixes, con-tent e-se ca da um com o seu elemento. Se o voa dor nã o quisera pas-s a r d o s e g u n d o a o t e r c e i r o , n ã o v i e r a a p a r a r n o q u a r t o . B e ms e g u ro e s t ava e l e do f o g o , q u ando nadava na ág u a , m as p o rq u equis ser borboleta da s onda s, viera m-se-lhe a queima r a s a sa s.

À vis ta deste exemplo , peixes , tomai todos na memória es tasentença: Quem q uer ma is do que lhe convém, perde o que qu er e o

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que tem. Quem pode na da r e quer voar, tempo virá em que nã o voe

nem na de . Ouvi o ca so de um voador da terra : S imã o Ma go, a quema a rt e mágica, na qua l era fa mosíssimo, deu o sobrenome, f ingindo--se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que nosolhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou avoar mui to a l to ; porém a oração de S . Pedro , que se achava pre-sente, voou ma is depressa que ele, e ca indo lá de cima o mago, nã oquis D eus que morresse logo, senã o que a os olhos t a mbém de todosqu ebra sse, como quebrou, os pés.

Não quero que repareis no castigo, senão no género dele. Quec a i a S i m ão , e s t á m u i t o b e m c a í do ; q u e m o rra , t am b é m e s t a r i amuito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica omerecia . Mas que de uma queda tão a l ta não rebente , nem quebrea cabeça ou os braços, senão os pés?! Sim, diz S. Máximo, porquequem tem pés para a nda r, e quer a sa s para voa r, justo é que percaas asas e mais os pés . Elegantemente o Santo Padre : Ut qu i pau lo 

an te volar e tent aver at, subi to ambul ar e non posset; et qu i penn as 

assum pser at , p lan tas am i t t er et . S e S i m ão t e m p é s e q u e r a s a s ,pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas, para que nãovoe , e também os pés , para que não ande . Eis aqui , voadores doma r, o que sucede aos da terra , para que ca da um se cont ente com oseu elemento. Se o ma r t oma ra exemplo nos r ios, depois que Í ca rose afogou no Da núbio, nã o ha veria t a nt os Ícar os no Ocea no.

Oh, a lma de António , que só vós t ivestes asas e voastes semp er i g o, p or q u e s o u be s t e s v oa r p a r a b a i x o e n ã o pa r a ci m a ! J áS. J oão viu no Apocalipse a quela mulher, cujo orna to ga stou toda sas luzes ao Firmamento , e diz que lhe foram dadas duas grandesasa s de águ ia : Datæ sun t m u l i er i alæ duæ aqu i læ magnæ: (Apoc. XI I – 14 ) . E para quê? U t vol ar et i n d eser tum . Para voar ao deser to .No t áve l c o u s a , q u e não de b a l de l he c ham o u o m e s m o P ro f e t a ,

g rande marav i lha . Es ta mulher es t ava no céu : Signum magnum appar au i t i n cælo, mul i er am i cta sol e. Pois se a mulher es tava nocéu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto?P orque há a sas para subi r e asa s pa ra descer. As asa s pa ra subi rs ão m u i t o p e r i g o s as , a s a s a s p a ra de s c e r m u i t o s e g u ras ; e t a i sf o r am as de S an t o A nt ó n i o . D e ram - s e à a l m a de S an t o A nt ó n i oduas asas de águia , que fo i aquela dupl icada sabedoria natural esobrena tur a l tã o sublime, como sa bemos. E ele que fez? Nã o esten-deu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas,

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qu e, sendo a Arca do Testa ment o, era reput a do, como já vos disse,

por leigo e sem ciência. Voa dores do ma r (nã o falo com os da terr a ),imita i o vosso san to pregador. Se vos parece que as vossa s bar bat a -na s vos podem servir de a sa s , nã o as es tenda is para subir , porquevos nã o suceda encont ra r com a lguma vela ou algum costa do; enco-lhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aíestiverdes ma is escondidos, esta reis ma is seguros.

Ma s já que esta mos na s covas do ma r, a ntes que saia mos dela s ,temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes,não menos que S. Basí l io e Santo Ambrósio. O polvo, com aqueleseu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ra iosestendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espi-n h a , p a r e c e a m e s m a b r a n d u r a , a m e s m a m a n s i d ã o . E d e b a i x odesta aparência tão modesta , ou desta hipocris ia tão santa , tes te-munha m consta ntemente os dois gra ndes Doutores da Igreja la t inae grega, que o di to polvo é o maior traidor do mar. Consiste estatraição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmascores de todas a quelas cores a que está pega do. As cores , que nocamaleão são gala, no polvo são malícia; as f iguras, que em Proteusão fábula, no polvo são verdade e art i f íc io. Se está nos l imos, faz--se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-separdo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente cos-tuma es tar , f az-se da cor da mesma pedra . E daqu i que sucede?Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desa-cautelado, e o sal teador, que está de emboscada dentro do seu pró-prio engano, lança- lhe os braços de repente , e fá- lo pris ioneiro .Fizera mais Judas? Não f izera mais , porque nem fez tanto . Judasa bra çou a Cr isto, ma s outr os o prendera m; o polvo é o que a bra ça ema is o qu e prende. J uda s com os bra ços fez o sina l, e o polvo dospróprios bra ços fa z as corda s. J uda s é verda de que foi tr a idor, ma s

com la nterna s dia nte ; t r a çou a t ra içã o às escura s , ma s executou-am u i t o à s c l a r a s . O p o l vo , e s c u re c e ndo - s e a s i , t i r a a v i s t a ao soutros , e a primeira t ra ição e roubo que faz é a luz , para que nãodis t inga a s cores . Vê, peixe a leivoso e vi l , qua l é a tua ma ldade ,pois J uda s em tua compara çã o já é menos t ra idor !

Oh, qu e excesso tã o afront oso e tã o indigno de um elemento t ã opuro, tão claro e tão cristal ino como o da água, espelho natural nãosó da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por encareci-ment o, que «na s nu vens d o ar a t é a á gua é escura »: Tenebr osa aqu a 

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in nu bibus aer is . (Salm o XV I I – 12 ) . E disse nomeadamente nas

nuvens do ar, pa ra a tr ibuir a escurida de ao outr o elemento, e nã o àágua; a qual em seu próprio e lemento sempre é c lara , diá fana etransparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimu-lar. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercitecom tanto dano de bem público um monstro tão dissimulado, tãof ingido, tã o a stut o, tã o enga noso e tã o conhecida ment e tr a idor!

Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras emque ba tem os vossos ma res, me esta is respondendo e convindo, quetambém nelas há falsidades, enganos, f ingimentos, embustes, c i la-das e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmosuje i to que defendeis , também podereis apl icar aos semelhantesoutra proprieda de muito própria ; ma s pois vós a cala is , eu ta mbéma calo . Com grande confusão , porém, vos confesso tudo, e mui tomais do que dizeis, pois o não posso negar. Mas ponde os olhos emAntónio, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar dacandura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, f in-g imento ou engano. E sabei também que para haver tudo is to emca da um de nós bast a va a nt iga mente ser português , não era neces-sá rio ser sa nto .

Tenho a caba do, irmã os peixes, os vossos louvores e repreensões,e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto quedo mar, e não da terra : Vos esti s sal terr æ . Só resta fazer-vos umaadver tênc ia mui to necessár i a , para os que v ive i s nes tes mares .Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis quese perdem e dã o à costa muitos na vios, com que se enriquece o ma re a te rra se empobrece . Impor ta , po i s , que adv i r t a i s , que nes tamesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que seaproveitam dos bens dos naufragantes f icam excomungados e mal-ditos.

Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vóssenão aos homens, mas tem mostrado Deus, por muitas vezes, quequando os animais cometem materia lmente o que é proib ido poresta lei , ta mbém eles incorrem, por seu modo, na s pena s dela, e nom e s m o p o n t o c o m e ç am a de f i nha r , a t é q u e ac ab am m i s e rave l -mente.

Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca dopr imei ro pe ixe que tomasse achar i a uma moeda , com que pagarcert o tr ibuto. Se P edro ha via de t oma r ma is peixe que este , suposto

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que ele era o primeiro, do preço dele, e dos outros podia fazer o

dinheiro, com que pagar aquele tributo, que era de uma só moedade prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhorque se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra primeiroque os dema is?

Ora esta i at entos. Os peixes nã o ba tem moeda no fundo do ma r,nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro;logo, a moeda que este peixe t inh a engolido era de a lgum na vio quef izera naufrág io naqueles mares . E quis mostrar o Senhor que aspena s que S . P edro ou seus sucessores fulmina m cont ra os homens,que tomam os bens dos naufragantes , também os peixes por seum o do a s i nc o r re m , m o rre ndo p r i m e i ro q u e o s o u t ro s , e c o m omesmo dinheiro que engol ira m a tra vessad o na gar gan ta .

Oh que boa doutr ina era es ta para a terra , se eu não pregarap a ra o m ar ! P a r a o s ho m e ns não há m a i s m i s e ráve l m o r t e , q u emorrer com o a lheio a tra vessad o na gar gan ta ; porque é peca do deque o mesmo S. Pedro, e o mesmo Sumo Pontífice não pode absol-ver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que nãosã o ca pazes os peixes, eles contudo a pressam a sua tempora l , comoneste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos

bens dos naufra ga ntes .

VI

Com esta últ ima a dvertência vos despido, ou me despido de vós,meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que não seiqua ndo ouvireis outr o, quero-vos a l ivia r d e uma desconsolação muiantiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o

L evít i co . Na lei eclesiást ica ou ri t ua l do L evít i co , escolheu D eus cer-tos animais, que lhe haviam de ser sacri f icados; mas todos eles ouanimais terrestres ou aves, f icando os peixes totalmente excluídosdos sacri f íc ios. E quem duvida que esta exclusão tão universal eradigna de grande desconsolação e sentimento para todos os habita-dores de um elemento tã o nobre, que mereceu da r a ma téria a o pri-meiro sa cra ment o? O motivo principal de serem excluídos os peixesfoi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os pei-xes geralmente não , senão mortos ; e coisa morta não quer Deus

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que se lhe o fe reça , nem chegue aos seus a l t a res . Também es te

ponto era mui to importante e necessário aos homens, se eu lhespregara a e les. Oh quant as a lmas chegam àq uele a l t a r mor ta s , por-que chegam e nã o têm horror de chega r, esta ndo em pecado morta l !Peixes, dai muitas graças a Deus de vos l ivrar deste perigo, porquemelhor é nã o chega r a o sacri f íc io, que chega r m ort o. Os outros a ni-ma is ofereça m a Deus o ser sa crifica dos; vós oferecei-lhe o nã o che-gar ao sacri f íc io; os outros sacri f iquem a Deus o sangue e a vida;vós sa crifica i-lhe o respeito e a reverência .

Ah peixes , qua nta s inveja s vos tenho a essa na tura l i rregular i-dade ! Q u an t o m e l ho r m e f o r a não t o m ar a D e u s nas m ão s , q u etomá-lo tão indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vosr e con h e ço m u it a s v a n t a g en s . A v os s a b r u t e z a é m e l h or q u e aminha ra zã o e o vosso inst into melhor q ue o meu a lvedrio. Eu fa lo,mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, masvós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós nãoofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofen-deis a Deus com a vonta de. Vós fostes cria dos por Deus, par a servira o homem, e conseguis o f im pa ra que fostes cria dos; a mim criou-- m e p a r a o s e r v i r a E l e , e e u n ã o c o n s i g o o f i m p a r a q u e m ecr iou . Vós nã o have i s de ver a Deus , e poderei s apa recer d i an t edele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero queO hei-de ver ; mas com que rosto hei-de aparecer diante do seudivino aca ta mento, se nã o cesso de O ofender? Ah que q ua se estoupor dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem quet inha as minhas mesmas obr igações , d i sse a Suma Verdade , que«melh or lh e fora n ã o na scer h omem »: Si natu s non fu isset h omo 

i l le . E pois os q ue na scemos homens, respondemos tã o ma l à s obri-gações de nosso nasc imento , contentai-vos , peixes , e dai mui tasgra ça s a Deus pelo vosso.

Bened i cit e, cete, et omn i a quæ moven tu r i n aqu i s, Domino: «Lou -va i, peixes, a D eus, os gra nd es e os pequ enos», e repa rt idos em doiscoros tã o inumerá veis, louva i-o todos un iformement e. Louva i a Deus,porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distin-gu iu em tantas espéc ies ; louva i a Deus , que vos ves t iu de t an tavariedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos osinstr ument os necessár ios para a vida ; louva i a D eus, que vos deu umelemento t ão l a rgo e t ão puro ; louva i a Deus , que , v indo a es temund o, viveu entre n ós, e cha mou par a si a queles que convosco e de

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vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos

conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim,servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; eassim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora.Ámen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba ovosso Sermã o em G ra ça e Glória.

P. e Ant ónio Vieira

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