as cronicas de narnia vol vi - a cadeira de prata

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C. S. LEWIS AS CRNICAS DE N`RNIA VOL. VI A Cadeira de Prata Traduªo Paulo Mendes Campos Martins Fontes Sªo Paulo 2002

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C. S. LEWIS

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

VOL. VI

A Cadeira de Prata

TraduçãoPaulo Mendes Campos

Martins FontesSão Paulo 2002

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As Crônicas de Nárnia são constituídas por:

Vol. I � O Sobrinho do Mago

Vol. II � O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa

Vol. III � O Cavalo e seu Menino

Vol. IV � Príncipe Caspian

Vol. V � A Viagem do Peregrino da Alvorada

Vol. VI � A Cadeira de Prata

Vol. VII� A Última Batalha

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Para Nicholas Hardie

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ÍNDICE

1. ATRÁS DO GINÁSIO

2. A MISSÃO DE JILL

3. A VIAGEM DO REI

4. UMA REUNIÃO DE CORUJAS

5. BREJEIRO

6. AS TERRAS AGRESTES DO NORTE

7. A COLINA DOS FOSSOS ESTRANHOS

8. A CASA DE HARFANG

9. UMA DESCOBERTA QUE VALEU A PENA

10. VIAGEM SEM SOL

11. NO CASTELO ESCURO

12. A RAINHA DO SUBMUNDO

13. O SUBMUNDO SEM RAINHA

14. O FUNDO DO MUNDO

15. O DESAPARECIMENTO DE JILL

16. REMATE DE MALES

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ATRÁS DO GINÁSIO

Era um dia tristonho de outono e Jill Poleestava chorando atrás do ginásio de esportes.

Chorava porque alguém andara mexendocom ela. Como não vou contar uma história deescola, tratarei de falar o mais depressa possívelsobre o colégio de Jill, assunto que não é nadasimpático.

Era um �colégio experimental� parameninos e meninas. Os diretores achavam que ascrianças podiam fazer o que desejassem.Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze daturma que só queriam atormentar os outros. Láacontecia de tudo: coisas horríveis que, numaescola comum, seriam descobertas e punidas. Masali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia

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feito, o responsável não era expulso nemcastigado. O diretor achava que se tratava de�interessantes casos psicológicos� e passava horasconversando com tais alunos. E estes, seencontrassem uma resposta adequada para dizerao diretor, acabavam se tornando privilegiados.

Por isso Jill estava chorando naquele diatristonho de outono, na alameda úmida que vai dofundo do ginásio de esportes à mata de arbustos.Ainda não tinha acabado de chorar quando, asso-viando, um menino surgiu do canto do ginásio,mãos nos bolsos, quase dando um tropeção nela.

� Está cego? � perguntou Jill.

� Opa, desculpe... também não precisava...� e aí notou a cara da menina. � Ei, Jill, o que hácom você?

Jill só fez uma careta, a careta que a gentefaz quando quer dizer alguma coisa, mas senteque vai acabar chorando se falar.

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� Só podem ser eles, como sempre � disse omenino, carrancudo, afundando ainda mais asmãos nos bolsos.

Jill concordou com a cabeça. Não erapreciso falar mais nada. Já sabiam de tudo.

� Olhe aqui � disse o menino �, de nadaadianta que nós...

Falava como quem começa um sermão. Jillirrompeu numa crise de nervos (o que é comumacontecer às pessoas quando são interrompidasdurante um acesso de choro).

� Deixe-me em paz e cuide da sua vida.Ninguém lhe pediu para meter o bico. Você émesmo muito bacana para me ensinar o que eudevo fazer. Vai dizer, na certa, que a gente devechaleirar eles, fazer o que eles quiserem, comovocê faz.

� Caramba, Jill! � disse o menino,sentando-se na relva espessa e pulando logo, poisa relva estava toda molhada. Seu nome

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infelizmente era Eustáquio Mísero; mas não eraum mau sujeito.

� Jill, você está sendo injusta. Por acaso eufiz alguma coisa ruim este ano? Não fiquei dolado do Daniel no caso do coelho? E não guardeisegredo no caso da Gabriela... mesmo debaixo detorturas? E não fiquei...

� Não sei, nem quero saber! � soluçou Jill.Eustáquio, vendo que ela ainda não estava bem,ofereceu-lhe uma pastilha de hortelã e começou achupar outra. Jill já enxergava tudo com maisclareza.

� Desculpe, Eustáquio. Confesso que sófalei aquilo de maldade. Você foi muitobonzinho... este ano.

� Então, esqueça o ano passado. Admitoque já fui um sujeito muito diferente. Puxa vida!Como eu era chato!

� Para ser franca, era mesmo.� Acha que eu mudei?

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� Acho, e não sou só eu que acho. Todomundo diz o mesmo. Ainda ontem no quarto,Eleonor ouviu Adélia dizer que você está mudadoe que iam pegá-lo no ano que vem.

Eustáquio sentiu um tremor. Todos noColégio Experimental sabiam o que era ser pegopela turma da pesada.

� Por que você era tão diferente no anopassado?

� Aconteceram comigo coisasestranhíssimas � disse Eustáquio, misterioso.

� Como assim?Ele ficou calado durante um tempão.� Escute, Jill, tenho ódio deste lugar, mais

do que uma pessoa pode ter ódio de qualquercoisa. Você também, não é?

� Ora, se tenho!� Assim sendo, acho que posso ter toda

confiança em você.� Quanta gentileza!

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� Pois é, mas acontece que é um segredopara lá de assustador. Jill, você é boa de acreditarem coisas... quer dizer... nas coisas que fariam osoutros aqui cair na gargalhada?

� Nunca me aconteceu... mas acho que sou.� Iria acreditar em mim, se eu dissesse que

já estive fora deste mundo?� Não estou entendendo bulhufas.� Bem, vamos esquecer os mundos.

Suponha que eu dissesse que já estive num lugaronde os animais sabem falar e onde há... hum...encantamentos, dragões... bem, essas coisas queaparecem nos livros de fadas.

Eustáquio sentia-se como um noveloembaraçado, um novelo vermelho.

� Como você chegou lá? � perguntou Jill,também um pouco encabulada.

� Da única maneira possível: magia. Euestava com dois primos meus. Fomossimplesmente levados, assim. Eles já tinhamestado lá antes.

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Como tinham passado a cochichar, era maisfácil acreditar, mas, repentinamente, Jill foiapanhada por uma tremenda suspeita (tão violentaque, por um instante, virou uma onça):

� Se eu descobrir que está querendo mefazer de boba, nunca mais falo com você durantetoda a minha vida! Nunca, nunca, nunca!

� Juro que não estou! Juro por tudo que ésagrado!

� Está bem, eu acredito.� E promete não contar para ninguém!

� Quem é que você está pensando que eusou?

Estavam muito nervosos. Mas, quando Jillolhou em torno e reparou o céu tristonho deoutono, com as folhas gotejando, e lembrou-se deque não havia esperança no Colégio Experimental(faltavam ainda onze semanas para as férias),disse:

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� Mas, afinal de contas, de que adianta?Não estamos lá: estamos aqui. E não há nenhumjeito de ir para lá. Ou há?

� É por isso mesmo que estamos aquiconversando. Quando voltei do tal lugar, alguémdisse que os meus dois primos nunca mais iriamlá. Era a terceira vez que iam, entende? Mas essealguém não disse que eu não ia voltar. Se nãodisse é porque achava que eu ia voltar. Não me saida cabeça a idéia de que nós... poderíamos...

� Dar um jeito para que a magia aconteçade novo?

Eustáquio fez que sim.� Quer dizer que a gente podia desenhar um

círculo no chão, escrever umas letras dentro... erecitar umas fórmulas mágicas?

Eustáquio ficou atento por um instante:� Estava pensando em coisa parecida. Mas

agora estou vendo que esse negócio de círculo ede fórmulas não dá certo. Só há uma coisa a fazer:temos de pedir a ele.

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� Quem é ele?

� Lá naquele lugar ele é chamado deAslam. Mas vamos em frente. Ficamos um aolado do outro, assim, e estendemos os braços paraa frente com as palmas das mãos viradas parabaixo, como fizeram na ilha de Ramandu...

� Ilha de quê?� Depois eu conto. Acho que ele gostaria

que olhássemos para o oriente. Onde é o oriente?� Sei lá.� Gozado, as mulheres não sabem nada de

pontos cardeais

� Você também não sabe � replicou Jillindignada.

� Sei, sei e muito bem. É só você não meinterromper. Já vi tudo. Lá é o oriente, onde estãoaquelas árvores. Agora você tem de repetirminhas palavras.

� Que palavras?

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� As palavras que eu vou dizer, é claro.Agora... Aslam, Aslam, Aslam!

� Aslam, Aslam, Aslam � repetiu Jill.

� Por favor, deixe que nós dois...Nesse momento uma voz do outro lado do

ginásio gritou:� Jill ? Eu sei onde ela está. Só pode estar

choramingando atrás do ginásio. Vou pegar ela.Jill e Eustáquio entreolharam-se,

mergulharam debaixo das árvores e começaram aescalar a encosta íngreme da mata de arbustos auma velocidade de campeões. (Devido aoscuriosos métodos de ensino do ColégioExperimental, lá não se aprendia muitoMatemática ou Latim, mas todos sabiamdesaparecer rapidamente e sem ruído, quando elesestavam atrás de alguém.)

Depois de um minuto de correria,detiveram-se para ouvir e concluíram quecontinuavam sendo perseguidos.

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� Se ao menos a porta estivesse aberta! �suspirou Eustáquio, e Jill concordou com acabeça.

No fim da mata de arbustos havia um altomuro de pedra, com uma porta que dava para umterreno relvado. Essa porta quase sempre estavatrancada, mas já fora encontrada aberta uma ououtra vez. Ou só uma vez, quem sabe. Massempre havia uma grande esperança de que nãoestivesse trancada. Seria a oportunidademaravilhosa para que os alunos, sem serpercebidos, escapassem dos domínios do colégio.

Jill e Eustáquio, fatigados e desarrumados,pois tinham corrido quase de gatinhas por debaixodas árvores, chegaram ofegantes ao muro. Aporta, fechada, como de hábito.

� Não vai adiantar nada � disse Eustáquio,com a mão na maçaneta, para suspirar emseguida: � O-o-oh!

A porta abriu-se. E eles, que não desejavamoutra coisa, agora ficaram apalermados, pois

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deram com uma paisagem muito diferente da queesperavam.

Esperavam encontrar uma encosta cinzentaindo juntar-se ao céu tristonho do outono. Em vezdisso feriu-lhes os olhos o clarão do sol, queentrava pelo portal como a luz do verão quando seabre a porta da garagem. As gotas deslizavamcomo contas pela relva. Via-se melhor o rosto deJill lambuzado de lágrimas. A luz do sol pareciachegar de um mundo diferente. Mais macia era arelva. Umas coisas reluziam no céu azul comojóias ou borboletas gigantescas.

Apesar de esperar por alguma coisaparecida, Jill sentiu-se amedrontada. Eustáquiodemonstrava o mesmo dizendo com dificuldade:

� Vamos, Jill.

Será que podemos voltar? Não há perigo?Uma voz gritou lá de trás, cheia de maldade eescárnio:

� Já sei que você está aí, Jill. Não adianta seesconder.

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Era a voz de Edite, que não pertencia àturma da pesada, mas era subserviente e delatora.

� Depressa! � exclamou Eustáquio. �Segure minha mão.

Antes que ela soubesse bem o que estavaacontecendo, foi puxada para fora dos domíniosdo colégio, dos domínios do seu país, dosdomínios do mundo.

A voz de Edite sumiu de repente como seapaga a voz de um rádio que se desliga. Outrosom dominou os ares. Vinha das coisas quereluziam no alto: pássaros, para dizer a verdade.Faziam um barulho de algazarra, que, no entanto,parecia música, música de vanguarda, de que agente não gosta logo. Contudo, apesar da cantoria,havia, envolvendo tudo, uma espécie de silêncioprofundo. Este, combinado à leveza do ar, levouJill a imaginar se não estariam no cume de umaalta montanha.

Segurando a mão da menina, Eustáquioavançava. Arregalavam os olhos para todos oslados. Arvores imensas, mais altas do que cedros,

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erguiam-se à direita e à esquerda, deixandoabertas algumas brechas para a visão. Sempre amesma paisagem: relva lisa, pássaros de coramarela, com azulados de libélulas, ou plumagemde arco-íris e sombreados azuis... e o vazio. Erauma floresta solitária.

Na frente não havia árvores, só o céu azul.Caminharam sem falar até que Jill ouviu a voz deEustáquio:

� Cuidado! � E viu-se empurrada para trás.Estavam à beira de um precipício.

Jill era uma dessas meninas felizes quepossuem a cabeça boa para grandes alturas. Podiaparar sem tremer à beira de um abismo. Nãogostou, portanto, do puxão de Eustáquio (�comose eu fosse uma criança�), e soltou a mão docompanheiro. Notando que ele ficou branco,chegou a sentir desprezo:

� Que é que há? � E, para mostrar que nãotinha medo, parou na beirinha do precipício (unspalmos além da própria coragem) e olhou parabaixo.

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Só então percebeu que Eustáquio tinharazão de ficar branco, pois não há em nossomundo um penhasco como aquele. Imagine-se àbeira do precipício mais alto que você conheça.Imagine-se olhando lá para baixo. Pense agora oseguinte: o abismo não acaba onde devia acabar,mas continua, mais fundo, mais fundo, vinte vezesmais fundo. E lá embaixo você nota umascoisinhas brancas; à primeira vista parecemcarneiros; olhando melhor, descobre que sãonuvens, nuvens imensas e gordas. Enfiando oolhar entre as nuvens, você consegue afinal verum pouquinho do fundo do abismo, mas é tãodistante que se torna impossível afirmar se é feitode relva, de árvores, de terra ou de água.

Jill ficou olhando de boca aberta. Não deuum passo para trás por medo do que Eustáquio iriapensar. Mas � decidiu logo � �que me importa oque ele vai pensar?� O jeito era afastar-se daqueleabismo e nunca mais zombar de quem tem medode altura. Tentou, mas não conseguiu sair dolugar. As pernas pareciam feitas de massa. Estavatudo dançando diante de seus olhos.

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� Que está fazendo, Jill ? Caia fora daí, suaboboca! � gritou Eustáquio. Mas a voz parecia virde muito longe. Sentiu que ele procurava agarrá-la. Jill, no entanto, não tinha mais o domínio dosbraços e das pernas.

Houve um instante de agonia na ponta dopenhasco. O medo e a tontura impediam que elasoubesse de fato o que estava fazendo, mas deduas coisas se lembraria a vida toda, e sonhariacom elas: uma, de que se libertara, com umsafanão, das mãos de Eustáquio; outra, de queEustáquio, no mesmo instante, tinha perdido oequilíbrio, precipitando-se, com um grito deterror, em pleno abismo.

Felizmente não teve tempo de pensar noque havia feito. Um imenso animal de coresbrilhantes apareceu à beira do precipício. Estavadeitado e (coisa estranha) soprando. Não estavarugindo ou bufando: simplesmente soprando coma boca escancarada, como se fosse um aspiradorde pó trabalhando para fora. Jill estava tão pertoda criatura que podia sentir as vibrações no

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próprio corpo. Por pouco não desmaiou. E atéqueria desmaiar, mas o desmaio não depende danossa vontade. Por fim, lá embaixo, viu umpontinho escuro afastando-se do penhasco,flutuando ligeiramente para cima. A medida quesubia, mais se afastava, movendo-se a grandevelocidade, até que Jill acabou por perdê-lo devista. Parecia que a criatura ao lado soprava opontinho para longe.

Virou-se e olhou. A criatura era um Leão.

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A MISSÃO DE JILL

Sem olhar para Jill, o Leão levantou-se edeu uma última soprada. Depois, satisfeito comseu trabalho, voltou-se e entrou lentamente nafloresta.

� Só pode ser um sonho, tem de ser umsonho � disse Jill para si mesma. � Vou acordaragorinha mesmo. � Mas não era sonho. � A gentenunca devia ter atravessado o portão. Duvido queEustáquio conheça melhor este lugar do que eu. E,se conhecia, não tinha nada que me trazer para cásem me dizer antes como era. A culpa não éminha se ele caiu no abismo. Se tivesse medeixado em paz, não teria acontecido nada. �Lembrou-se novamente do berro de Eustáquio aocair e debulhou-se em lágrimas.

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Chorar funciona mais ou menos enquantodura. Porém, mais cedo ou mais tarde, é precisoparar de chorar e tomar uma decisão. Ao parar,Jill sentiu uma sede enorme. Havia chorado decara contra o chão, mas agora estava sentada. Asaves não cantavam mais. O silêncio seria total,não fosse um barulhinho insistente que parecia virde longe. Ouviu com atenção e teve quase certezade que se tratava de água corrente.

Levantou-se e olhou em torno, atenta.Nenhum sinal do Leão, mas, com tantas árvorespor ali, podia ser que ele estivesse por perto. Asede era intolerável e ela juntou coragem paralocalizar a água. Na ponta dos pés, escondendo-sede árvore em árvore, espreitando por todos oscantos, avançou. A floresta estava tão quieta quenão era difícil descobrir de onde vinha o ruído.Numa clareira corria o riacho, brilhante como umespelho. Apesar da visão da água multiplicar suasede, não correu logo para beber. Ficou paradinha,como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: oLeão estava postado exatamente à beira do riacho,cabeça erguida, patas dianteiras esticadas. Não

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havia dúvida de que a vira, pois olhou dentro dosolhos dela por um instante e virou-se para o lado,como se a conhecesse há muito tempo e nãoprecisasse dar-lhe muita atenção.

Ela pensou: �Se eu correr, ele me pega; seeu ficar, ele me come.�

De qualquer forma, mesmo que tivessetentado, não teria saído do lugar. Não tirava osolhos de cima do Leão. Quanto tempo durou issonão saberia dizer. Pareciam horas. A sede era tãoforte que chegou a pensar que pouco se importariaem ser comida pelo animal, desde que dessetempo de beber um bom gole.

� Se está com sede, beba.Eram as primeiras palavras que ouvia desde

que Eustáquio falara com ela à beira do abismo.Por um segundo procurou descobrir quem falara.A voz voltou:

� Se está com sede, venha e beba.Lembrou-se naturalmente do que dissera

Eustáquio sobre os animais falantes daquele outro

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mundo e percebeu que era a voz do Leão. Não separecia com a voz humana: era mais profunda,mais selvagem, mais forte. Não ficou maisamedrontada do que antes, mas ficou amedrontadade um modo diferente.

� Não está com sede? � perguntou o Leão.� Estou morrendo de sede.� Então, beba.� Será que eu posso... você podia... podia

arredar um pouquinho para lá enquanto eu mato asede?

A resposta do Leão não passou de um olhare um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso aodefrontar o corpanzil) como pedir a umamontanha que saísse do seu caminho.

O delicioso murmúrio do riacho era deenlouquecer.

� Você promete não fazer... nada comigo...se eu for?

� Não prometo nada � respondeu o Leão.

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A sede era tão cruel que Jill deu um passosem querer.

� Você come meninas? � perguntou ela.� Já devorei meninos e meninas, homens e

mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos �respondeu o Leão, sem orgulho, sem remorso,sem raiva, com a maior naturalidade.

� Perdi a coragem � suspirou Jill.

� Então vai morrer de sede.� Oh, que coisa mais horrível! � disse Jill

dando um passo à frente. � Acho que vou ver seencontro outro riacho.

� Não há outro � disse o Leão.Jamais passou pela cabeça de Jill duvidar

do Leão; bastava olhar para a gravidade de suaexpressão. De repente, tomou uma resolução. Foia coisa mais difícil que fez na vida, mas caminhouaté o riacho, ajoelhou-se e começou a apanharágua na concha da mão. A água mais fresca e puraque já havia bebido. E não era preciso bebermuito para matar a sede. Antes de beber, havia

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imaginado sair em disparada logo depois desaciada. Percebia agora que seria a coisa maisperigosa. Ergueu-se de lábios ainda molhados.

� Venha cá � disse o Leão.E ela foi. Estava agora quase entre as patas

dianteiras do Leão, olhando-o diretamente nosolhos.

Mas não agüentou isso por muito tempo edesviou o olhar.

� Criança humana � disse o Leão �, ondeestá o menino?

� Caiu no abismo � respondeu Jill,acrescentando: �...Senhor. � Não sabia comotratá-lo e seria uma desfeita não lhe dartratamento algum.

� Como foi isso?� Ele estava querendo me segurar, para eu

não cair.� Por que você chegou tão perto do abismo,

criança humana?

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� Eu queria fazer bonito, senhor.� Gostei da resposta, criança. Não faça

mais isso. � Pela primeira vez a face do Leãomostrou-se um pouco menos severa. � O meninoestá bem. Foi soprado para Nárnia. A sua missão éque ficou mais difícil.

� Qual missão, por favor?� A missão que me fez chamá-los aqui, fora

do mundo de vocês.Jill ficou intrigadíssima, achando que o

Leão a tomava por outra pessoa. Não tinhacoragem de revelar isso, apesar de sentir quepodia dar numa confusão medonha.

� Diga o que está pensando, criança.� Eu estava imaginando... quer dizer... não

está havendo um engano? Acontece que ninguémchamou a gente aqui. Nós é que pedimos para vir.Eustáquio disse que devíamos chamar... alguém...não me lembro do nome... e que esse alguémtalvez nos deixasse entrar. Foi o que fizemos, eentão encontramos a porta aberta.

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� Não teriam chamado por mim se eu nãohouvesse chamado por vocês.

� Então o senhor é o Alguém? � perguntouJill.

� Sim. Mas ouça qual é a sua missão.Longe daqui é o reino de Nárnia. Ali vive umvelho rei, que anda em aflição por não deixar umfilho, um príncipe de seu próprio sangue, quevenha a ser rei depois dele. Não tem herdeiro, poisseu único filho foi seqüestrado há muitos anos.Ninguém em Nárnia sabe onde está esse príncipeou mesmo se continua vivo. Mas está vivo.Ordeno que vocês procurem o príncipe atéencontrá-lo, para trazê-lo de volta, ou atémorrerem, ou até voltarem a seu próprio mundo.

� Mas como? � perguntou Jill.

� Vou lhe dizer. Estes são os sinais pelosquais hei de guiá-la na sua busca. Primeiro: logoque Eustáquio colocar os pés em Nárnia,encontrará um velho e grande amigo. Devecumprimentar logo esse amigo; se o fizer, vocêsdois terão uma grande ajuda. Segundo: vocês

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devem viajar para longe de Nárnia, para o Norte,até encontrarem a cidade em ruínas dos gigantes.Terceiro: encontrarão uma inscrição numa pedrada cidade em ruínas, devendo proceder comoordena a inscrição. Quarto: reconhecerão opríncipe perdido (caso o encontrem), pois será aprimeira pessoa em toda a viagem a pedir algumacoisa em meu nome, em nome de Aslam.

O Leão parecia ter acabado de falar. Jillachou que devia dizer alguma coisa:

� Certo, muito obrigada.� Criança � disse o Leão, com a voz mais

amável do que antes �, talvez não esteja tão certoquanto você imagina. Seu primeiro cuidado élembrar-se de tudo. Repita para mim, pela ordem,os quatro sinais.

Jill não se saiu muito bem. O Leão acorrigiu e fez com que repetisse outra vez, e maisoutra, e mais outra, até que a menina decorou tudodireitinho. Mostrava-se pacientíssimo, e Jill teve acoragem de perguntar:

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� Por favor, como é que eu vou paraNárnia?

� De sopro. Vou soprá-la para o Oeste,como soprei Eustáquio.

� Será que eu chego a tempo de contar-lheo primeiro sinal? Aliás, acho que isso não temimportância. Se ele encontrar um velho amigo,fatalmente irá falar com ele... é ou não é?

� Você não tem tempo a perder. Tem de irimediatamente. Venha. Caminhe até a beira doabismo.

Se não havia tempo a perder, a culpa era deJill, e ela sabia disso. �Se eu não tivesse bancadoa boba, Eustáquio e eu teríamos ido juntos, e eletambém teria ouvido as instruções todas.�

Era assustador chegar à beira do abismo,principalmente porque o Leão não ia na frente,mas ao lado dela � e sem fazer o menor ruído comas patas.

Já perto do precipício, ouviu uma voz atrásde si:

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� Fique quieta. Daqui a pouco soprarei.Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os aoamanhecer, antes de dormir e, caso acordar,durante a noite. Por mais estranhos que sejam osacontecimentos, de maneira alguma deixe deobedecer aos sinais. Em segundo lugar, aviso-a deque falei, aqui na montanha, com a maior clareza:não o farei sempre em Nárnia. O ar aqui namontanha é limpo, e aqui o seu espírito também élimpo; em Nárnia, o ar será mais pesado. Cuidadopara que o ar pesado não confunda seu espírito.Os sinais que aprendeu aqui surgirão sob formasbem diferentes ao depará-los lá. Éimportantíssimo conhecê-los de cor e desconfiardas aparências. Lembre-se dos sinais, acredite nossinais. Nada mais importa. Agora, Filha de Eva,adeus...

A voz tornara-se mais branda ao fim da falae agora sumira de todo. Jill olhou em torno. Paraseu espanto viu o penhasco mais de cem metros láatrás; o Leão era um pontinho dourado. Ela haviacerrado os dentes e fechado os punhos, esperandouma terrível lufada; mas o sopro do Leão foi tão

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delicado que ela nem chegou a notar o momentoem que deixou a terra. Sentiu medo só por uminstante de medo. Era tão longe o mundo láembaixo, que não podia ter com ele a menorrelação. Flutuar na respiração do Leão era umadelícia. Podia deslizar de frente ou de costas,revirar-se à vontade, como se fosse dentro d�água.Não havia vento e o ar era cálido. Sem barulho esem turbulência, era uma sensação bem diferentedo que a de viajar de avião. Parecia mais com umaviagem de balão, até melhor, mas Jill nuncaentrara num balão.

Ao olhar para trás pôde avaliar a altura damontanha onde estivera. Perguntava a si mesmacomo uma montanha tão colossal não estavacoberta de neve e gelo. Essas coisas deviam serdiferentes naquele mundo. Olhando para baixo,não podia distinguir se estava flutuando sobre omar ou sobre a terra, tão alto estava.

� Nossa! Os sinais! � disse subitamente. �Melhor repeti-los.

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Passou por um estado de pânico durantedois segundos, mas ainda era capaz de dizer ossinais com perfeição. Estava tudo bem, pensou,recostando-se no ar como se fosse um sofá edando um suspiro de satisfação.

� Bem � disse Jill para si mesma algumashoras mais tarde �, devo confessar que dormi.Dormi no ar, veja só! Será que isso já aconteceu aalguém no mundo? Acho que não. Ora bolas, vaiver que o Eustáquio também dormiu! Nessamesma rota, só um pouquinho antes de mim. Voudar uma espiada lá embaixo.

Parecia uma vasta planície azul-escura. Nãose percebiam montes, mas havia coisasesbranquiçadas que se moviam devagar. �Devemser nuvens�, pensou, �mas muito maiores que asdo abismo; são maiores porque estão mais perto:devo estar indo para baixo. Que sol chato!�

O sol, que estava lá no alto no começo daviagem, feria-lhe os olhos, baixando à sua frente.Eustáquio tinha razão quando disse que Jill (nãosei se as meninas em geral) não era muito

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entendida em pontos cardeais. Se o fosse, aosentir o sol nos olhos deveria saber que viajava nadireção oeste.

Olhando a planície azul lá embaixo, notouque existiam aqui e ali uns pontos bem brilhantes,mais pálidos. �É o mar�, pensou, �os pontosdevem ser ilhas.� E eram. Teria sentido inveja sesoubesse que Eustáquio já havia apreciadoaquelas ilhas de um navio, e até percorrido umaou outra. Mais tarde, começou a observarpequenas rugas na planura azul; rugas quedeveriam ser ondas imensas se estivesse entreelas. Juntando-se ao horizonte, estendia-se umalinha cada vez mais espessa e acentuada. Era oprimeiro sinal da grande velocidade em queviajava. A linha que se acentuava, ela sabia, sópodia ser a terra.

Súbito, da esquerda (pois o vento era sul),uma grande nuvem branca veio a seu encontro, namesma altura em que ela se achava. Antes desaber onde se encontrava, mergulhou naquelenevoeiro frio e úmido. Por um instante nem

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conseguiu respirar. Foi piscando que encontrou,do outro lado, a luz do sol.

Suas roupas estavam molhadas: vestia umcasaco esporte, suéter, saia-calça, meias e bonitossapatos. Foi descendo, descendo, e notou comsurpresa alguma coisa pela qual já devia estaresperando: ruídos. Até aquele instante viajara emabsoluto silêncio. Agora, pela primeira vez, ouviao marulhar das ondas e o grito das gaivotas.Sentia também o cheiro do mar. A terra estavacada vez mais próxima, com montanhas à frente eà esquerda. Eram baías e cabos, campos, matas epraias. O espraiar das ondas, cada vez maisintenso, abafava os demais alaridos do mar.

A terra surgiu bem à frente � estavachegando à desembocadura de um rio. Voava apoucos metros da água. A crista de uma ondagolpeou-lhe os pés e a espuma molhou seu corpo.Já perdia velocidade. Deslizava na direção damargem esquerda do rio.

Havia tanta coisa para ver que eraimpossível observar tudo: um lindo relvado, um

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navio tão brilhante que parecia uma jóia imensa,torres e ameias, bandeiras agitando-se ao vento,uma multidão, roupas festivas, armaduras, ouro,espadas, música. Mas viu tudo embaralhado. Aprimeira coisa que percebeu com nitidez foi queestava em pé, sob ramos de árvores, à beira do rio;a poucos metros, achava-se Eustáquio.

Seu primeiro pensamento foi: �ComoEustáquio está sujo e desarrumado!� Depois:�Como estou molhada!�

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A VIAGEM DO REI

O que fazia Eustáquio parecer tãoencardido e desalinhado (e Jill também, caso sevisse no espelho) era o esplendor do ambiente.

De uma brecha da montanha, a luz do solpoente jorrava sobre a relva lisa. Do outro lado darelva, com seus cata-ventos cintilando, erguia-seum castelo de numerosas torres, o mais belo queJill já havia visto. Perto ficava um cais demármore branco; amarrado a este, um navio alto,com o castelo de proa e a popa empinados, tododourado e carmesim, com uma grande bandeira nomastro central e flâmulas no tombadilho; escudosprateados enfileiravam-se no cais. A prancha deembarque fora colocada e um velho preparava-separa subir a bordo. Usava luxuoso manto

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escarlate, deixando entrever a malha de prata.Tinha na cabeça uma pequena coroa de ouro. Abarba cor de lã quase batia-lhe na cintura.Mantinha-se firme, apoiando a mão no ombro deum senhor ricamente vestido, mais novo que ele.Muito velho e frágil, parecia que uma lufada devento poderia carregá-lo, e trazia os olhosmarejados.

Na frente do rei � que se virará para falar aopovo antes de embarcar �, havia uma poltronasobre rodas, atrelada a um burrinho pouco maiorque um cachorro. Sentado na poltrona estava umanãozinho gordo, vestido com o mesmo luxo dorei. Por ser muito gordinho e estar refesteladoentre almofadas, parecia uma trouxa de peles, deseda e veludo. Era tão velho quanto o rei, porémmais saudável e animado, de olhos espertos. Acabeça, sem um fio de cabelo, lembrava umagrande bola de bilhar banhada pelo crepúsculo.

Mais atrás, os nobres postavam-se numsemi-círculo, com roupagens e armaduras dignasde se ver. Lembravam mais um canteiro de flores

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do que gente. Mas o que fez Jill abrir mesmo aboca e arregalar os olhos foi o próprio povo, se éque povo é a palavra certa. Pois só um em cincoera gente humana. Os outros eram criaturas quenão vemos em nosso mundo: faunos, sátiros,centauros. Jill havia visto aquelas figuras emlivros. E havia também anões, e uma porção deanimais que ela conhecia bem: ursos, castores,toupeiras, leopardos, camundongos, numerosospássaros. Pareciam, entretanto, algo diferentes dosanimais que conhecemos por esses nomes. Algunseram bem maiores; os camundongos, porexemplo, erguiam-se nas patinhas traseiras emediam meio metro de altura. Mas não só por issopareciam diferentes. Pela expressão de suas caras,via-se que sabiam falar e pensar como nós.

�Que coisa!�, pensou Jill. �Quer dizer que étudo verdade! Mas... será que são amigos?�Acabara de observar nos arredores uns doisgigantes e outras criaturas que não sabia o queeram.

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Foi quando se lembrou de Aslam e dossinais.

� Eustáquio! � cochichou, agarrando-lhe obraço. � Eustáquio, rápido! Está vendo algumconhecido seu por aí?

� Ah, você de novo? � disse Eustáquio,com desagrado (tinha certa razão para isso). �Será que não pode ficar quieta? Quero escutar.

� Deixe de ser pateta, Eustáquio. Não hátempo a perder. Não está reconhecendo aquialgum velho amigo? Porque você tem de ir e falarcom ele imediatamente!

� Não estou entendendo nada.� Foi Aslam... o Leão... que mandou � disse

Jill, aflita. � Estive com ele.� Ah, esteve com ele? Que é que ele disse?� Disse que a primeira pessoa que você ia

ver em Nárnia era um velho amigo, e devia falarcom ele imediatamente.

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� Acontece que não há nenhum conhecidomeu aqui; aliás, nem sei ainda se isto aqui éNárnia.

� Pensei que você já tinha estado aquiantes.

� Então pensou errado.� Pois fique sabendo que você me disse...� Pelo amor de Deus, vamos ouvir o que

eles estão dizendo.O rei falava com o anão, mas Jill não podia

ouvir o que dizia. Pelo jeito, o anão nãorespondeu, apesar de sacudir a cabeça váriasvezes. O rei ergueu a voz e dirigiu-se a toda amultidão; mas sua voz era tão velha e trêmula queela entendeu pouquíssimo � e ainda por cima elefalava de pessoas e lugares desconhecidos.Terminado o discurso, o rei inclinou-se e beijou oanão nas duas faces, reergueu-se, levantou a mãodireita como se abençoasse o povo, e subiu para onavio com passadas incertas. Os nobresdemonstravam grande emoção. Agitavam-se

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lenços e ouviam-se soluços por todos os lados. Aprancha foi recolhida, trombetas soaram na popa,e o navio afastou-se do cais. (Estava sendorebocado por um barco de remos, mas Jill não oviu.)

� Bem, agora... � disse Eustáquio, mas nãoprosseguiu, pois naquele instante uma coisabranca � Jill imaginou que fosse um papagaio depapel � veio planando e pousou aos pés domenino. Era uma coruja branca, enorme, da alturade um anão de bom tamanho.

A coruja piscou os olhos, espreitando comose fosse míope, a cabeça meio de lado. A voz eracomo um pio suave:

� Turru, turru! Quem são vocês?� Meu nome é Eustáquio, esta é Jill.

Poderia ter a gentileza de dizer onde estamos?

� No reino de Nárnia, no castelo real deCair Paravel.

� Foi o rei que embarcou agora mesmo?

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� Turru, turru! � confirmou a coruja,balançando a cabeça com tristeza. � Mas quemsão vocês? Há alguma coisa meio encantada emvocês. Eu os vi chegando: voando. Estavam todostão entretidos com a partida do rei que ninguémviu. Só eu. Eu vi.

� Fomos enviados por Aslam � falouEustáquio, em voz baixa.

� Turru, turru! � exclamou a coruja,ruflando as penas. � Isso é demais para mim, e tãocedo! Minha cabeça não é muito boa antes doanoitecer.

� Fomos enviados para procurar o príncipeperdido � informou Jill, que já se achava ansiosapara entrar na conversa.

� Só estou sabendo disso agora � falouEustáquio. � Que príncipe?

� É melhor que vocês venham logo falarcom o lorde regente � disse a coruja. � É aquelelá, sentado na carruagem com o burrinho; éTrumpkin, o anão.

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A ave abriu caminho, murmurando para simesma: �Turru, turru! Não consigo pensar comclareza. É cedo demais!�

� Qual é o nome do rei? � perguntouEustáquio.

� Caspian X � respondeu a coruja.Jill não entendeu por que Eustáquio levou

um grande susto e ficou como se se sentisse mal.Não houve tempo de fazer perguntas; já estavamperto do anão, que recolhia as rédeas, pronto pararetornar ao castelo. Os nobres, dispersos, seguiamem grupos na mesma direção, como depois de umjogo de futebol.

� Turru! Alô! Lorde regente! � chamou acoruja, abaixando-se um pouco e levando o bicopara perto do ouvido do anão.

� Ei? Que é que há? � perguntou o anão.� Dois estrangeiros, senhor � respondeu a

coruja.

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� Escoteiros!? Que história é essa? �estranhou o anão. � Só estou vendo dois filhoteshumanos. Que desejam?

� Meu nome é Jill � disse a menina,adiantando-se, doida para explicar a importantemissão que os trazia.

� O nome da menina é Jill � disse a coruja,na voz mais alta possível.

� Que história é essa? Ardil? Quem fez oardil?

� Não, meu senhor, não há nenhum ardil. Éuma menina... O nome dela é Jill.

� Fale alto � disse o anão. � Não fique aízumbindo no meu ouvido. Quem fez o ardil?

� NINGUÉM � berrou a coruja.� Calma, calma; não é preciso berrar. Não

sou tão surdo assim. Mas por que você vem medizer que ninguém fez um ardil?

� Melhor dizer para ele que o meu nome éEustáquio � disse o menino.

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� Este, senhor, é Eustáquio.� Batráquio? � perguntou o anão, irritado. �

E isso é motivo para trazê-lo aqui? Hein?� Não é batráquio � disse a coruja �, é

EUSTÁQUIO.� É eu ou é ele? Não estou entendendo

coisa nenhuma. Vou dizer-lhe uma coisa,Plumalume... � era o nome da coruja. � Quandoeu era moço, aqui neste país os animais falantessabiam falar de verdade. Não era esse blá-blá-bláconfuso. Isso não era permitido, entendeu? Urnus,traga minha corneta acústica.

O pequeno fauno, que permanecera otempo todo quietinho ao lado do anão, estendeu-lhe uma corneta de prata. Parecia aqueleinstrumento musical chamado serpentão, pois otubo tinha de ser enrolado no pescoço do anão. Acoruja, ou Plumalume, cochichou para ascrianças:

� Minha cabeça agora está ficando melhor.Não digam nada a respeito do príncipe

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desaparecido. Explicarei para ele depois. Agora iadar tudo errado, tudo, tudo, turru, turru!

� Bem � disse o anão �, se tem algumacoisa razoável para falar, Plumalume, podecomeçar. Respire fundo e procure não falardepressa demais.

Com o auxílio das crianças, e a despeito deum acesso de tosse do anão, Plumalume explicouque os estrangeiros haviam sido enviados porAslam, em visita ao reino de Nárnia. O anão logoolhou para eles com uma nova expressão.

� Enviados pelo próprio Leão? � disse ele.� E vieram... hum... daquele Outro Lugar... alémdo Fim do Mundo... não é?

� Exatamente, meu senhor � berrouEustáquio na corneta.

� Filho de Adão e Filha de Eva, é ou não é?Mas como no Colégio Experimental não se

falava em Adão e Eva, Jill e Eustáquio nãosouberam o que responder. O anão, entretanto,

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não parecia ter notado o pormenor. Segurando asmãos de ambos, disse:

� Muito bem, meus caros: é uma alegria tê-los aqui. Se o meu bom rei, bom e infeliz, nãotivesse acabado de partir para as Sete Ilhas, seriadele a satisfação em recebê-los. A presença devocês teria devolvido a mocidade ao meu senhor...pelo menos por um instante, um pequeno instante.Bem, já está passando da hora do jantar. Vocêsme dirão o que desejam na reunião do Conselhoamanhã de manhã. Plumalume, providencieaposentos e roupas próprias e mais o que forpreciso para os nossos convidados de honra. Alémdisso, Plumalume, chegue aqui...

O anão colocou a boca perto do ouvido dacoruja, pretendendo falar em segredo; mas, comoacontece com certos surdos, não dominava ovolume de sua voz, e as crianças ouviram o quedisse:

� Providencie também um banhocaprichado para eles.

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Depois disso, o anão tocou o burrinho nadireção do castelo; também muito gordo, o animalpartiu numa pisada que ficava entre o trote e obamboleio. O fauno, a coruja e as criançasseguiram um pouco mais devagar. O solescondera-se e o ar começava a ficar frio.

Atravessaram a relva e um pomar nadireção do portão norte de Cair Paravel, queestava aberto. Dentro estendia-se um pátiogramado. Viam-se luzes das janelas do grandesalão à direita e de outras salas à frente. Umajovem muito simpática foi chamada para cuidar deJill. Não era muito mais alta do que ela própria ebem mais magra, embora fosse totalmentedesenvolvida. Conduziu a menina para um quartoredondo numa das torres, onde havia umabanheira embutida no chão, madeiras perfumadasqueimando na lareira e um candeeiro penduradoda abóbada do teto por uma corrente de prata. Ajanela dava para oeste do estranho reino deNárnia, e Jill ainda viu reflexos do sol poentefulgindo atrás de montanhas distantes. Ansiava

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por novas aventuras, sentindo que mal tinhacomeçado.

Depois de tomar banho, pentear os cabelose vestir as roupas que lhe foram separadas (quealém de bonitas eram perfumadas e faziambarulhinhos gostosos quando ela semovimentava), Jill teria voltado à janeladeslumbrante, mas foi interrompida por umapancada na porta.

� Entre. � E quem entrou foi Eustáquio,muito bem lavado e magnificamente vestido comos trajes de Nárnia (dos quais, aliás, parecia nãogostar muito).

Jogando-se numa cadeira, disse, meiozangado:

� Até que enfim! Estou há um tempãoprocurando você.

� Bem, agora já me achou. Não éformidável, Eustáquio? Nem dá para falar! � Porum instante ela havia esquecido os sinais e opríncipe desaparecido.

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� Ah, acha isso? Pois acho que o melhor eraa gente não ter vindo � replicou o menino.

� Mas por quê?� Não agüento ver o rei Caspian assim

velho e decrépito. É... é apavorante.� Mas por que você sofre com isso?� Você não pode entender. Não pode, é

claro. Esqueci de contar-lhe que este mundo temum tempo diferente do nosso.

� Troque isso em miúdos.� O tempo que a gente passa aqui não leva

tempo em nosso mundo. Entendeu? Vou explicarmelhor: mesmo que fiquemos aqui durante muitotempo, quando voltarmos para o colégio será omesmo momento em que saímos de lá...

� Que falta de graça!� Não amole. E quando você estiver em

casa... em nosso mundo... não saberá quantotempo está passando aqui. Pode ser uma pá deanos em Nárnia e só um ano na Inglaterra. Os

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meus primos explicaram tudo para mim, masbanquei o bobo e me esqueci. Parece quepassaram setenta anos em Nárnia depois que saídaqui. Está entendendo agora? É pavoroso voltare descobrir que Caspian é um velhinho.

� Ah, quer dizer que o rei era amigo seu! �disse Jill, fulminada por um pensamento horrível.

� Devo confessar que era � respondeuEustáquio, infeliz. � Amigo até demais. Da últimavez, ele era só um pouquinho mais velho do queeu. Agora encontro aquele velhinho de barbabranca e não me sai da cabeça a manhã em quecapturamos as Ilhas Solitárias. Ou a luta com aSerpente do Mar. Oh, é de doer! É pior do que seele estivesse morto.

� Chega! É ainda muito pior do que vocêimagina! � Jill mostrava toda a sua impaciência. �O caso é que já perdemos o primeiro sinal.

Eustáquio naturalmente não podia entender.Então Jill contou-lhe toda a conversa com Aslam,os quatro sinais, a missão de procurar o príncipe.E concluiu:

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� Agora está entendendo? Você viu umvelho amigo, exatamente como Aslam disse;devia ter ido falar com ele imediatamente. Ora,como não foi, tudo está dando errado, desde oinício.

� Mas como eu podia saber?� Muito simples: se tivesse prestado

atenção quando tentei falar, estaria tudo certinho.� Ah, é claro! E se você não tivesse

bancado a idiota na beira do abismo, quase meassassinando... É isso mesmo, assassinando!...também teria dado tudo certinho...

� Foi ele a primeira pessoa que você viu,não foi? Deve ter chegado horas antes de mim.Não viu ninguém antes?

� Cheguei apenas um minuto antes de você.Ele deve tê-la soprado com mais força. Para tiraro atraso, o seu atraso.

� Deixe de ser bobão, Eustáquio... Ei, o queé isso?

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Era o sino do castelo tocando para o jantar.A briga, que prometia ser das boas, foi logointerrompida, felizmente. Estavam os dois comexcelente apetite.

Jamais haviam visto uma coisa tãodeslumbrante. O próprio Eustáquio, que jáestivera em Nárnia, passara todo aquele tempo nomar, e não chegara a conhecer o esplendor e ahospitalidade dos narnianos em seu próprio reino.As flâmulas pendiam do teto e as iguariasentravam com o som de trombetas e tímpanos. Assopas eram de dar água na boca, sem falar nospeixes fabulosos, nas finas caças, nas aves raras,nos pastéis, sorvetes, geléias, frutas, nozes, vinhose refrescos. O próprio Eustáquio animou-seadmitindo que era um banquete �pra lá de legal�.

Terminada a imensa refeição, um poetacego contou uma história chamada O cavalo e seumenino, que se passava em Nárnia e no reino doscalormanos, na Idade de Ouro, quando Pedro erao Grande Rei em Cair Paravel. (Não tenho tempo

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de contá-la no momento, mas é uma história quevale a pena ouvir.)

Quando subiram para os quartos,bocejando, Jill falou:

� Aposto que a gente vai dormir feito umapedra.

Isso mostra que jamais temos idéia do quepoderá acontecer-nos daqui a pouco.

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UMA REUNIÃO DECORUJAS

É engraçado: quanto mais uma pessoa estácom sono, mais tempo leva para cair na cama,especialmente se existe no quarto o conforto deuma lareira. Jill pensou que, se não se sentasse umtempinho diante do fogo, seria incapaz até de tirara roupa. Sentou-se e não teve mais vontade delevantar-se, apesar de repetir para si mesma: �Vápara a cama, menina!� Foi quando se sobressaltoucom um barulhinho na janela.

Ergueu-se, correu as cortinas, vendo aprincípio só a escuridão lá fora. Depois deu umsalto para trás: uma coisa grande lançava-secontra a janela, golpeando a vidraça. Passou-lhepela cabeça uma idéia muito desagradável:

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�Imagine só se existem mariposas gigantes nestepaís! Ai!� Mas a coisa voltou e ela teve quase acerteza de ter visto um bico, e era este bico quegolpeava a vidraça. �E um passarão�, pensou.�Será uma águia?� Não estava para visitas, nemmesmo de uma águia, mas abriu a janela e olhou.No mesmo momento, com um ruído farfalhante, acriatura pousou no peitoril, enchendo todo o vãoda janela. Era a coruja.

� Quietinha! Turru, turru! Sem barulho �disse a coruja. � Agora diga-me: é verdade aquiloque disse?

� Sobre o príncipe? É, é pra valer. � Poislembrava-se agora da cara do Leão, do qual quasese esquecera durante o banquete e a história de Ocavalo e seu menino.

� Ótimo! � disse a coruja. � Então nãopodemos perder tempo. Tem de sair logo. Vouacordar o outro humano. Volto aqui em seguida.Melhor trocar essas roupas elegantes e vestir coisasimples para viajar. Não demoro nada. Turru,turru! � E, sem esperar resposta, partiu.

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Jill, pouco habituada a aventuras, nempensou em desconfiar da coruja: a idéia excitantede uma fuga à meia-noite fez com que esquecesseo sono. Vestiu o suéter e a saia-calça � havia nocinto um canivete que poderia ser útil �,escolhendo também algumas coisas que havia noquarto. Pegou uma capa, que lhe batia nos joelhos,um capuz (�pode chover�, pensou), alguns lençose um pente. Sentou-se e ficou à espera. Já estavasentindo sono de novo, quando a coruja voltoupara dizer:

� Estamos prontos.� Melhor você ir na frente � disse Jill. �

Ainda não conheço todas as passagens aqui.� Turru! Está pensando que vamos por

dentro do castelo? Nada disso. Tem de montar emmim. Vamos voando.

� Oh! � exclamou Jill, de boca aberta, nãogostando nada da idéia. � Sou muito pesada paravocê.

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� Turru, turru! Não seja boba. Já carregueio outro. Vamos. Mas primeiro apague essa luz.

Apagada a luz, a noite ficou menos escura,meio cinzenta. A coruja postou-se no peitoril, debico para fora, e abriu as asas. Jill teve de ajeitar-se sobre o corpo curto e grosso, apertando osjoelhos sob as asas da ave. As penas eramquentinhas e macias, mas não havia nada em quese agarrar. Pensou: �Será que Eustáquio gostou dovôo?�

Com um assustador mergulho no vazio,ambas deixaram a janela. As asas abanavam pertodas orelhas de Jill, e o ar da noite, meio frio eúmido, batia-lhe no rosto.

O céu estava encoberto, mas um fulgorprateado mostrava as nuvens que tapavam a lua.Os campos embaixo eram cinzentos; as árvorespareciam negras. O ar abafado era sinal de chuva.

A coruja deu uma volta e o castelo surgiuna frente dela. Havia poucas janelas iluminadas.Passaram por cima e cruzaram o rio. O ar ficava

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mais frio. Jill pensou ter visto o reflexo branco dacoruja na água. Logo voavam sobre a floresta.

A coruja abocanhou qualquer coisa que Jillnão podia ver.

� Por favor! Pare de sacudir desse jeito!Quase caí.

� Mil perdões. Agarrei um morcego. Nãohá nada mais alimentício do que um morceguinhorechonchudo. Quer que eu pegue um para você?

� Muito obrigada � respondeu Jill com umarrepio.

Voavam agora mais baixo e uma coisaescura avultava-se diante delas. Jill só teve tempode ver que era uma torre, em parte arruinada ecoberta de hera, pois logo em seguida teve deabaixar a cabeça para não bater no arco de umajanela cheia de teias de aranha. Estavam numlugar escuro e bolorento no alto da torre. Nomomento em que deslizou de cima da coruja,adivinhou (como às vezes acontece) que o localestava repleto. Vozes começaram a falar de todos

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os cantos: �Turru! Turru!� Repleto, portanto, decorujas. Foi um certo alívio quando uma vozmuito diferente disse: � É você, Jill ?

� É você, Eustáquio?� Acho que já estamos todos aqui � disse

Plumalume. � Vamos dar início à sessão.� Turru, turru! Quem está certo és tu! Aqui

não tem urubu! � disseram várias vozes ao mesmotempo.

� Peço a palavra � disse Eustáquio. � Antesde mais nada quero dizer uma coisa.

� Turru! Quem está certo és tu! � disseramas corujas.

E Jill para ele:

� Manda brasa. � Acho que oscompanheiros todos aqui... as corujas todas aquinão ignoram que Caspian X, no tempo damocidade, navegou para o Extremo Oriente. Bem,tive a honra de acompanhá-lo nessa viagem, nacompanhia ainda de Ripchip, o rato, do fidalgoDrinian e muitos outros. Sei que parece difícil de

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acreditar, mas as criaturas não envelhecem emnosso mundo no mesmo ritmo que no seu mundo.O que pretendo dizer é o seguinte: sou fiel ao rei,e se esta reunião de corujas tiver qualquer carátersubversivo, minha presença aqui é um equívoco.

� Turru, turru! Somos todas fiéis ao rei,como tu!

� Então, por que motivo estamos aqui? �indagou Eustáquio.

� Muito simples � respondeu Plumalume. �Dá-se o seguinte: se o lorde regente, o anãoTrumpkin, souber que vocês pretendem procurar opríncipe desaparecido, não os deixará partir. E háde mantê-los confinados, sob vigilância.

� Essa não! � exclamou Eustáquio. � Nãovai dizer que Trumpkin é um traidor? Ouvi muitosobre ele, nos velhos tempos. Caspian... o rei,digo... tinha nele uma confiança absoluta.

� Mas não é isso � disse uma voz. �Trumpkin não é um traidor. O que se passa é oseguinte: mais de trinta dos nossos melhores

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guerreiros � centauros, bons gigantes e tantosoutros � já empreenderam várias viagens embusca do príncipe. Nem um só voltou! O rei disse,por fim, que não permitiria que os mais valentesnarnianos fossem aniquilados por causa de seufilho. Ninguém mais pode ir: é uma proibiçãoreal.

� Tenho certeza de que nos deixará partir �disse Eustáquio � se souber quem eu fui e quemme enviou.

� Quem nos enviou � acrescentou Jill.

� Acredito que sim � ponderou Plumalume.� Mas o rei está ausente; Trumpkin observará aletra da lei. Trata-se de um anão verdadeiro comoa verdade, mas é surdo como uma porta e... umapimentinha. Não conseguirá convencê-lo de queagora é o tempo adequado para abrir uma exceçãona lei.

� Não se esqueça � observou alguém � deque ele prestaria atenção ao que disséssemos, poissomos corujas, e todos sabem como as corujas sãosábias.

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� É, mas agora ele está tão velho quesimplesmente dirá: �Você não passa de um pinto.Eu me lembro de quando você era ainda um ovo.Não venha com lições para cima de mim. Orabolas!�

A coruja que disse isso imitou tão bem avoz de Trumpkin, que foi uma gargalhada geral.As crianças começaram a perceber que osnarnianos olhavam para Trumpkin como alunosolham para um professor rabugento, do qual todossentem medo, mas de quem no fundo todosgostam.

� Quanto tempo o rei passará fora? �perguntou Eustáquio.

� Ah, se eu soubesse! � respondeuPlumalume. � Há rumores de que o próprio Aslamfoi visto nas ilhas (em Terebíntia, acho). O reidisse que fará tudo para vê-lo antes de morrer, afim de aconselhar-se sobre seu sucessor ao trono.Mas receamos que ele não encontre Aslam emTerebíntia e continue a viagem até as Sete Ilhas eas Ilhas Solitárias... e siga em frente. Ele nunca se

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refere ao assunto, mas sabemos todos que jamaisse esqueceu da viagem ao fim do mundo. Nofundo do coração, deseja ir até lá outra vez.

� Assim sendo, é inútil esperar a volta dorei � disse Jill.

� Inútil! � concordou a coruja. � Oh, o quefazer? Se ao menos vocês tivessem falado comele! Teria arranjado tudo... talvez mandaria umexército acompanhá-los.

Jill ficou calada, esperando que Eustáquiotivesse a gentileza de não contar para as corujaspor que motivo isso não acontecera. Ele andouperto de contar, resmungando em voz baixa:�Culpa minha é que não foi.� Mas disse em vozalta:

� Muito bem. Temos de dar um jeito. Mashá uma coisa que desejo saber: se esta reunião éleal e acima de qualquer suspeita, por que tem deser tão secreta, numa torre em escombros, nacalada da noite?

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� Turru, turru! � piaram diversas corujas. �E onde haveríamos de fazer a reunião? E não é sóna calada da noite que as pessoas se encontram?

Plumalume interveio:

� Acontece que a maioria das criaturas aquiem Nárnia têm hábitos pouco naturais. Fazemcoisas durante o dia, em plena luz do sol (oh!),quando todos deviam estar dormindo. Resultado:à noite ficam tão cegas e estúpidas que não searranca delas uma só palavra. E por isso que ascorujas têm o bom senso de fazer suas reuniõesnas horas noturnas.

� Já vi tudo � disse Eustáquio. � Está bem,vamos continuar. Conte-nos tudo sobre o príncipedesaparecido.

Uma velha coruja, e não Plumalume, foiquem narrou a história.

Há cerca de dez anos, ao que parece,quando Rilian, filho de Caspian, era muito jovem,numa manhã de primavera, foi com a mãe acavalo para o norte de Nárnia. Levaram consigo

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numerosos escudeiros e damas de companhia.Não levaram cães, pois não iam caçar, masfestejar a primavera. À tarde chegaram a umaclareira onde jorrava a água pura de uma fonte; aídescansaram, comeram, beberam e riram. Como arainha sentisse sono, estenderam-lhe mantos narelva; o príncipe Rilian e os outros afastaram-se afim de não despertá-la com suas risadas econversas. Uma grande serpente surgiu da densafloresta e picou a rainha na mão. Ao ouvir o gritode dor, todos correram até ela. Rilian, espada empunho, partiu no encalço do animal, que eragrande, reluzente e verde como veneno. Mas aserpente deslizou para dentro das moitas espessase desapareceu. Ele voltou para perto da mãe,encontrando todos aflitos em torno dela. Era tardedemais.

Rilian, ao vê-la, compreendeu que nenhummédico do mundo poderia fazer qualquer coisa.Enquanto lhe restava ainda um pequeno hausto devida, a rainha tentou dizer-lhe algo. Mas, incapazde articular com clareza, morreu sem transmitir

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sua última mensagem. Tudo não durou mais quedez minutos.

A rainha morta foi transportada para CairPa-ravel e pranteada dolorosamente pelo filho,pelo rei e por todo o reino de Nárnia. Fora umagrande dama, cheia de sabedoria, de graça ealegria. O rei Caspian trouxera a noiva doExtremo Oriente. Diziam que corria em suas veiaso sangue da estrelas.

O príncipe sofreu terrivelmente e, a partirde então, estava sempre a percorrer a cavalo asfronteiras do Norte, à caça da venenosa serpente.Ninguém dava grande atenção a isso, apesar de opríncipe voltar extenuado e agitado de suasperegrinações. Um mês depois da morte de suamãe, entretanto, alguns passaram a notar certamudança nele. Trazia nos olhos uma expressão dequem tivera visões; e, embora passasse todo o diafora, seu cavalo não demonstrava se ressentir dasduras caminhadas.

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Seu maior amigo, entre os velhos fidalgos,era Drinian, que fora capitão do navio de seu paina grande viagem para o Oriente.

Uma noite Drinian disse para o príncipe:� Vossa Alteza deve cessar de caçar a

serpente. Não há vingança em destruir um brutoirracional. É desperdício de energia.

O príncipe respondeu:� Drinian, nesta última semana quase me

esqueci por completo da serpente.

Drinian quis saber qual era, então, o motivoque continuava a atrair o príncipe às matas doNorte. E ele respondeu:

� Vi nas matas do Norte a criatura maisbela que jamais existiu.

� Meu bom príncipe � replicou Drinian �,permita que amanhã eu o acompanhe, para quetambém possa ver a bela criatura.

� Com grande prazer � concordou Rilian.

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No dia seguinte, selaram os cavalos epartiram a galope para as matas, apeando namesma clareira na qual a rainha encontrara amorte. Drinian estranhou que, dentre todos oslugares, o príncipe escolhesse aquele. Ali ficaramaté o meio-dia, quando Drinian viu a mais belacriatura que jamais existiu. Estava ao pé da fontee nada disse, mas fez um sinal para o príncipe,como se pedisse que se aproximasse. Era alta,viçosa, coberta por uma veste verde como veneno.O príncipe olhava para ela como se estivesse forade si. Subitamente, no entanto, a damadesapareceu, sem que Drinian soubesse como.Ambos voltaram para Cair Paravel.

Drinian estava convencido de que aquelamulher fulgurante era maléfica. Pensou muito sedevia ou não contar a aventura para o rei, pois nãoqueria bancar o intrigante. Mais tarde arrependeu-se muito de ter silenciado o episódio, porque, nodia seguinte, o príncipe Rilian partiu sozinho enão voltou. Nunca mais foi visto em Nárnia, nemnas terras vizinhas. O cavalo e o manto tambémnão foram encontrados. Penando na sua amargura,

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Drinian procurou o rei e disse-lhe: �Senhor, mate-me logo como grande traidor; pelo meu silêncio,causei a destruição de seu filho.� E contou-lhetudo. Com um machete de guerra, Caspianprecipitou-se sobre ele para matá-lo; Drinianesperou impassível o golpe mortal. Subitamente,porém, o rei lançou fora o machete e bradou: �Jáperdi minha rainha e meu filho; devo tambémperder o meu amigo?� Caiu nos braços de Driniane ambos derramaram lágrimas de dor e verdadeiraamizade.

E essa a história de Rilian. E quando acoruja terminou de contá-la, Jill foi logo dizendo:

� Aposto que a serpente e a mulher eram amesma pessoa.

� Turru, turru! � concordaram as corujas.� Mas não acreditamos que haja

assassinado o príncipe � disse Plumalume �, poisnão se encontraram ossos...

� Sei disso � falou Eustáquio �, pois Aslamcontou para Jill que ele está vivo em algum lugar.

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� Isso é até pior � disse a mais velha dascorujas. � Significa que ela dispõe do príncipe etrama algum plano terrível contra Nárnia. Hámuito, muito tempo, no princípio de tudo, umafeiticeira branca, vinda do Norte, condenou nossoreino à neve e ao gelo durante cem anos. Essaoutra deve ser da mesma laia.

� Muito bem � disse Eustáquio. � Jill e eutemos de encontrar o príncipe. Conto com a ajudade vocês?

� E vocês sabem por onde começar?� Sabemos que temos de tomar a direção

norte. E sabemos que devemos atingir a cidade emruínas dos gigantes.

Foi um turru-turru-turru por todos oscantos. As corujas começaram a falar ao mesmotempo. Sentiam muito, mas não podiamacompanhar as crianças: �Vocês viajam de dia enós viajamos de noite. Não dá pé, não dá pé.�

Uma coruja chegou a dizer que, mesmo alina torre, já não estava tão escuro como no

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princípio. A reunião prolongara-se por muitotempo. Ao que parece, a mera menção de umaviagem à cidade em ruínas dos gigantes haviaarrefecido o entusiasmo das aves. Mas Plumalumeinterveio:

� Se eles querem ir nessa direção... pelacharneca de Ettin... devemos levá-los até umpaulama. São as únicas criaturas que poderãoajudá-los de fato.

� Turru, turru! Quem está certo és tu!� Então, vamos � disse Plumalume. � Eu

levo um. Quem leva o outro? Tem de ser hoje ànoite.

� Eu levo: até a terra dos paulamas! � falououtra coruja.

� Está pronta? � perguntou Plumalume paraJill.

� Acho que Jill caiu no sono � disseEustáquio.

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BREJEIRO

Jill estava mesmo dormindo, depois de terbocejado o tempo todo durante a reunião. Nãogostou nem um pouco de ser acordada e de se vernum campanário empoeirado e escuro, cheio decorujas. Gostou ainda menos quando ouviu quedeviam partir para algum lugar que não pareciaser a cama � nas costas da coruja.

� Ora, vamos, Jill � disse Eustáquio. � Émais uma aventura, afinal de contas.

� Já estou cheia de aventuras � respondeu amenina, zangada.

Mas acabou subindo em Plumalume, e ovento frio da noite deixou-a totalmente desperta(por algum tempo). A lua sumira e não haviaestrelas. Muito atrás, Jill conseguiu distinguir uma

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janela acesa, sem dúvida de uma das torres deCair Paravel. Isso lhe deu saudades daquelequarto maravilhoso. Colocou as mãos sob a capa,aconchegando-se. Eustáquio, a uma certadistância, conversava com a sua coruja. �Nemparece cansado�, pensou Jill, sem saber que oclima de Nárnia devolvia ao menino a força queadquirira quando navegara com o rei Caspianpelos mares orientais.

Jill tinha de dar beliscões em si mesma paramanter-se acordada, temendo escorregar e cair dodorso de Plumalume. Quando as corujas chegaramao fim da viagem, ela pulou para o chão firme.Soprava um vento danado de frio. Não se via umaárvore.

� Turru! Turru! � chamava Plumalume. �Acorde, Brejeiro, rápido. É da parte do Leão.

Por um longo tempo não houve resposta.Depois, ao longe, surgiu uma luzinha, quecomeçou a aproximar-se. E uma voz:

� Olá, corujas! O que há? Morreu o rei? Háinimigo em Nárnia? Enchente? Ou dragões?

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A luz vinha de uma lanterna, mas Jill podiadistinguir muito pouco da pessoa que a segurava.Parecia alguém feito só de pernas e braços. Ascorujas conversavam com ele, mas Jill estavacansada demais para prestar atenção. Tentoureanimar-se um pouquinho quando percebeu quese despediam dela. Nem mesmo mais tardeconseguiu se lembrar do que acontecera: sabiaapenas que entrara com Eustáquio por umaportinha e (oh, até que enfim!) pôde estender-sesobre alguma coisa macia e quente. E de uma vozque dizia:

� Aí ficam vocês. O melhor que podemosdar. Chão frio e duro. E até úmido, é de seesperar. Não dá para tirar uma pestana, é claro,mesmo que não caia uma tempestade daquelas ouque a cabana não venha abaixo. Ajeitem-se comopuderem...

Mas Jill caiu no sono antes que a vozterminasse...

Quando as crianças acordaram no diaseguinte perceberam que tinham dormido num

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lugar seco e quente, em camas de palha. Aclaridade entrava por uma abertura triangular.

� Estamos em terra? � perguntou Jill.

� Na cabana de um paulama � respondeuEustáquio.

� Na cabana de quem?� Um paulama. Não me pergunte o que é

isso. Não consegui vê-lo ontem à noite. Vamosprocurá-lo.

� Como é chato acordar hoje com a roupade ontem � disse Jill, sentando-se.

� Engraçado: eu estava pensando como ébom a gente não ter de se vestir.

� Nem de se lavar, na certa � replicou Jill,com ar de pouco caso.

Mas Eustáquio já estava de pé, bocejando eespreguiçando-se, e logo caiu fora da cabana. Jillfez o mesmo. O que encontraram lá fora era bemdiferente do pedacinho de Nárnia visto navéspera. Estavam num terreno muito plano, cheio

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de inumeráveis ilhazinhas, cortadas porincontáveis canais. As ilhas eram cobertas decapim e cercadas de juncos. Nuvens de avespousavam e revoavam dos juncos: marrecos,narcejas, galinholas e garças. Viam-se por alimuitas cabanas iguais àquela em que passaram anoite, mas separadas a uma boa distância umasdas outras, pois os paulamas apreciam muito aprivacidade. A não ser a floresta, a muitosquilômetros de distância, não se via uma sóárvore. Para o leste, o alagadiço estendia-se nadireção de pequenas colinas arenosas. Ao norteficavam outras colinas esmaecidas. O resto eraalagadiço plano. Um lugar de dar tristeza numatarde de chuva. Visto ao sol matinal, com umvento refrescante, o ar repleto com os pios dasaves, era ainda um lugar solitário, mas tinha seusencantos.

As crianças ficaram mais animadas. Jillperguntou:

� Onde andará esse tal de paralama!

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� Paulama � respondeu Eustáquio,orgulhoso de saber o nome certo. � Acho... olhelá, só pode ser ele.

Viram logo o paulama, sentado de costaspara eles, a uns cinqüenta metros, pescando. Nãoera fácil distingui-lo, assim tão quietinho e por serquase da mesma cor do alagadiço. Disse Jill :

� Acho que o melhor é bater um papo comele.

Sentiam-se um pouco nervosos, masEustáquio concordou. A medida que seaproximavam, a figurinha virou a cabeça,mostrando um rosto magro e comprido, sembarba, bochechas encovadas, boca apertada enariz pontudo. Usava chapéu alto, pontudo comouma torre de igreja, de abas enormes. O cabelo, seé que se pode chamar de cabelo, caído sobre asgrandes orelhas, tinha uma tonalidade cinza-esverdeada, e os tufos lisos lembravam juncosmiúdos. A expressão era solene: via-se logo quelevava a vida a sério.

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� Bom dia, meus hóspedes. É verdade quequando eu digo bom dia não estou querendo dizerque não vá chover... ou nevar... ou trovejar.Aposto que vocês não conseguiram dormir nemum pouco.

� Pois dormimos muito bem � respondeuJill. � Passamos uma noite maravilhosa.

� Ah! � replicou o paulama, sacudindo acabeça. � Sei que você está querendo bancar adurona. Faz muito bem. Aprendeu a sorrir nadesventura.

� Qual é o seu nome, por favor? �perguntou Eustáquio.

� Brejeiro. Mas não tem a menorimportância se esquecerem. Não me custa nadacontinuar dizendo que meu nome é Brejeiro.

As crianças sentaram-se a seu lado,percebendo então que as pernas e os braços deleeram compridíssimos; apesar de o tronco não sermuito maior que o de um anão, ele devia ser, empé, mais alto que a maioria dos homens altos.

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Seus dedos das mãos eram ligados por umamembrana, como os dedos de um sapo, e domesmo jeito eram seus pés descalços, que elebalançava dentro da água lodosa. Usava roupas dacor da terra, que eram muito folgadas para ele.

� Estou tentando pegar umas enguias parafazer um cozido, mas acho que não vou pegarcoisa alguma. E, mesmo que pegasse, vocês nãoiam gostar de enguias.

� Por que não? � perguntou Eustáquio.� Ora, como é que vocês poderiam gostar

da nossa comida? De qualquer maneira, enquantofico aqui tentando, os dois podiam tentar acendero fogo; não custa nada tentar! Tem lenha detrás dacabana. Deve estar danada de úmida. Podemacender o fogo dentro da cabana e chorar com afumaceira, ou podem acender o fogo do lado defora, e aí a chuva chega e apaga tudo. Aqui está aminha binga; suponho que não saibam mexer comisso?

Mas Eustáquio aprendera essas coisas emsua aventura anterior. As crianças apanharam a

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madeira (que estava sequinha) e fizeram fogomais depressa do que se costuma. EnquantoEustáquio atiçava as chamas, Jill foi passar umaágua no rosto no canal mais próximo. Depois foi avez do menino. Sentiam-se muito melhor, mascom uma fome daquelas.

O paulama juntou-se a eles. Apesar dopessimismo, trouxe uma dúzia de enguias, jálimpas. Pôs uma panela grande no fogo e acendeuum cachimbo. Os paulamas fumam um tabacomuito forte e esquisito (misturado com lama,dizem), e as crianças notaram que a fumaça nãosubia, pelo contrário, espalhava-se pelo chãocomo um nevoeiro. A fumaça escura fezEustáquio tossir.

� Bem � disse Brejeiro �, essas enguias vãolevar um tempo enorme para cozinhar; vocês sãocapazes de desmaiar de fome. Conheci umamenina... mas é melhor não contar essa história.Coisa que eu não gosto é de deprimir os outros.Para disfarçar a fome, podemos também falar dosnossos planos. Querem?

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� Queremos! � gritou Jill. � Você podeajudar-nos a encontrar o príncipe Rilian?

O paulama fez uma careta, encovandoainda mais as bochechas:

� Bem, não sei se vocês chamam isso deajuda. Acho que ninguém é capaz de ajudarpropriamente. O lógico é a gente não ir muitolonge numa viagem para o Norte logo nesta épocado ano, com o inverno na porta, e outras coisasmais... Mas não devem desanimar por causa disso:com tantos inimigos, e montanhas imensas, e rioscaudalosos, e a dificuldade de achar o caminhocerto, e a falta de comida, ora, com tanta coisadesagradável, nem vamos dar atenção ao frio dematar. Afinal de contas, se a gente não chegarmuito longe, também não vai precisar voltarcorrendo.

As crianças notaram que ele falava �nós� enão �vocês�. Perguntaram então ao mesmo tempo:

� Você vem com a gente?

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� Oh, vou, naturalmente, é preciso. Achoque jamais veremos o rei de novo em Nárnia,agora que partiu para o exterior. E estava tossindomuito. E depois tem o Trumpkin, que já estábastante decadente. E vocês hão de ver: após esteverão de fogo, a colheita só poderá ser muitoruim. E para mim não será nenhuma surpresa seum inimigo nos atacar. Podem escrever o quedigo.

� E como a gente começa? � perguntouEustáquio.

A resposta veio com muita lentidão:� Bem... todos os outros que procuraram o

príncipe Rilian começaram pela mesma fonteonde lorde Drinian viu a dama. Quase todos forampara o Norte. Ora, como nenhum deles voltou, nãopodemos saber o que se passou.

� Devemos começar � falou Jill �encontrando uma cidade de gigantes, em ruínas.Foi o que disse Aslam.

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� Começar encontrando, não é? �perguntou Brejeiro. � Será que não é permitidocomeçar procurando a cidade?

� Foi exatamente o que eu quis dizer.Depois de achada a cidade...

� Ah, depois! � exclamou Brejeiro comsecura.

� Ninguém sabe onde fica a cidade? �perguntou Eustáquio.

� Eu não sei de ninguém. Mas não voudizer que nunca ouvi falar dela. Não precisampartir da fonte; vão pela charneca de Ettin. É ondefica a cidade em ruínas, se é que fica em algumlugar. Mas já fui bem longe nessa direção, comoquase todo mundo, e nunca topei com ruínaalguma.

� Onde fica a charneca de Ettin? �perguntou Eustáquio.

� Lá para as bandas do Norte � respondeuBrejeiro, apontando com o cachimbo. � Estãovendo aqueles montes e aquelas lascas de

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penedos? Pois lá é o começo de Ettin. Mas daquipara lá há um rio no meio, o rio Ruidoso. Não hápontes, é claro.

� Espero que a gente consiga vadeá-lo �falou o menino.

� Bem, já foi vadeado � admitiu o paulama.

� E talvez encontremos em Ettin quempossa ensinar-nos o caminho � disse Jill.

� Perfeito! Quem possa!...� Que espécie de gente vive lá? � indagou

Jill.

� Não cabe a mim afirmar que eles nãoestão certos, ao modo deles � respondeu Brejeiro.

� Mas o que são eles? � insistiu Jill. � Hátanta gente esquisita neste país! Estouperguntando se são animais, passarinhos, anões ousei lá o quê.

O paulama deu um longo assovio:

� Fiu! Você não sabe? Pensei que ascorujas tinham contado... São gigantes.

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Jill estremeceu. Jamais se dera bem comgigantes, mesmo nos livros, e já se encontraracom um durante um pesadelo. Notando depois acara de Eustáquio bastante esverdeada, achou queele estava pior do que ela (o que a fez sentir-semais corajosa).

� O rei há muito me disse � falou Eustáquio�, quando andei com ele pelos mares, quederrotara esses gigantes e os forçara à submissão.

� Verdade � confirmou Brejeiro. � Nãoestão mais em guerra conosco. Desde quefiquemos do lado de cá do rio Ruidoso, nãotocarão em nós. Mas do lado de lá... Sempre podehaver um jeito. Se não chegarmos muito pertodeles, se algum deles não perder a cabeça, se nãoformos vistos, poderemos caminhar um bompedaço.

� Olhe aqui � disse Eustáquio, perdendo ocontrole, como costuma acontecer com as pessoasamedrontadas. � Não acredito na metade do queestá falando; as camas da cabana também nãoeram tão duras nem a lenha estava molhada.

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Aslam não nos teria enviado se o risco fosse tãogrande.

Esperou que o paulama lhe respondesseenraivecido, mas não:

� É isso aí, Eustáquio. E assim que se fala.É ver a coisa pelo lado melhor. Só que devemoster muito cuidado com os nervos, já que teremosde atravessar tantas dificuldades juntos. Nãoadianta brigar, pelo menos não desde já. Sei queas expedições desse tipo acabam em geral dessemodo: um esfolando o outro antes da hora.Quanto mais tempo a gente suportar...

� Bem, se é tão pouca sua esperança �interrompeu o menino �, é melhor ficar. Jill e eupodemos ir sozinhos...

� Não banque o burro, Eustáquio � atalhoua menina, apavorada com a idéia de que opaulama pudesse tomar as palavras dele ao pé daletra.

� Não tenha receio � falou Brejeiro. � Eclaro que eu vou. Não posso perder essa

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oportunidade. Só irá me fazer bem. Eles sempredizem... os outros paulamas dizem... que eu soumuito volúvel; que não levo a vida muito a sério.Já disseram milhões de vezes: �Brejeiro, você étodo empáfia e fanfarronada, um brincalhão.Precisa aprender que a vida não é só rã e enguiana barriga, e mais nada. Precisa achar algo que lhesofreie um pouco. Estamos falando pelo seupróprio bem, Brejeiro.� É o que dizem sempre.Pois aí está a minha sorte: uma jornada para oNorte, na hora em que o inverno está começando!À procura de um príncipe que provavelmente nãose encontra lá! Passando por uma cidade emruínas que ninguém nunca viu!... Não podia sermelhor! Se uma aventura dessas não consertar umsujeito, é porque não tem mesmo conserto.

E esfregou as mãos de sapo como seestivesse falando em ir a uma festa ou ao circo.

� E agora � acrescentou �, vamos ver comoestão aquelas enguias.

Pois foi uma refeição gostosíssima. Nocomeço o paulama não acreditou que eles

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poderiam gostar; quando comeram tanto que nãopodia haver mais dúvida, começou a achar queaquilo poderia não lhes cair bem.

� Comida de paulama, veneno para gentehumana. Está na cara.

Depois tomaram chá em latas, como osoperários bebem café na estrada, e Brejeiro deuumas boas goladas numa garrafa preta e quadrada.Perguntou se as crianças queriam provar, mas acoisa parecia repugnante.

O resto do dia foi empregado empreparativos para a partida na manhã seguinte,cedinho. Brejeiro, sendo de longe o mais alto,carregaria três cobertores, com um bom pedaço detoucinho enrolado dentro. Jill devia levar assobras das enguias, uns biscoitos e a binga.Eustáquio carregaria duas capas, a dele e a dela,quando não precisassem vesti-las. Eustáquio (queaprendera a atirar um pouco na viagem aoOriente) levou o arco número dois de Brejeiro,que ficou com o melhor, dizendo que mesmoassim (com aquele vento, com as cordas úmidas,

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na luz de inverno, os dedos gelados) apossibilidade de acertarem em alguma coisa erauma em cem.

Ele e Eustáquio levavam espadas.Eustáquio trouxera a que deixaram para ele noquarto em Cair Paravel. Jill teve de contentar-secom um canivete. Ia saindo briga por causa disso,mas o paulama, esfregando as mãos, foi logodizendo:

� Já sabia disso; é o que acontece em geralquando as aventuras começam.

Calaram-se logo. E foram dormir cedo nacabana. Dessa vez a noite para as crianças não foide fato excelente. Pois Brejeiro, depois de dizer�acho que ninguém vai fechar o olho esta noite�,começou na mesma hora a roncar alto e semparar. Quando Jill conseguiu por fim adormecer,sonhou o resto da noite com perfuratrizes deasfalto, cachoeiras e trens expressos atravessandotúneis.

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AS TERRAS AGRESTES DONORTE

Na manhã seguinte, às nove horas, trêsfiguras solitárias podiam ser vistas procurando ocaminho através do rio Ruidoso sobre pedras ebaixios. Era um riacho raso e barulhento; nemmesmo Jill chegou a molhar mais do que o joelhoquando atingiram a outra margem. Uns cinqüentametros além, começava uma elevação de terrapedregosa e penhascos.

� Acho que é este o nosso caminho � disseEustáquio. E apontou para a esquerda, para ondeum regato descia por um desfiladeiro raso.

O paulama balançou a cabeça:

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� É na encosta desse desfiladeiro que osgigantes costumam viver. Para eles, o desfiladeiroé como uma rua. Melhor seguirmos em frente,apesar de ser um pouco íngreme.

Acharam um lugar por onde podiam subiragarrando-se às pedras e, em dez minutos,chegaram ofegantes lá em cima. Deitaram umolhar saudoso para o vale de Nárnia e viraram-separa o Norte. A vasta e solitária charnecaestendia-se em todas as direções. À esquerda oterreno era mais rochoso. Puseram-se a caminho.

Era uma terra boa para caminhar ao solmortiço do inverno. A medida que adentravam nacharneca, a solidão crescia: ouviam-se pios depássaros e via-se um ou outro falcão. Na metadeda manhã, pararam para descansar perto de umriacho, e Jill começou a imaginar que, afinal decontas, as aventuras podiam ser divertidas. E disseisso.

� Ainda não tivemos aventura alguma! �falou o paulama.

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Caminhadas depois do primeiro descanso �assim como as manhãs na escola depois do recreioou as viagens de trem depois da baldeação �nunca são como eram antes. Quando se puseramoutra vez a caminho, Jill observou que a bordarochosa do desfiladeiro estava mais próxima. E aspedras eram menos achatadas, mais verticais,como se fossem pequenas torres. E tinham formasmuito engraçadas!

�Acho�, pensou ela, �que essa históriasobre os gigantes começou com essas rochasengraçadas. Se a gente chegasse aqui aoescurecer, seria facílimo tomar aquelas pedras porgigantes. Olhem aquela ali! Não custa imaginarque aquele bola de pedra em cima é uma cabeça.Uma cabeça grande demais para o corpo, mas quenão ficaria de todo mal num gigante horroroso. Eaquelas moitas desgrenhadas � devem ser ninhosde pássaros � passariam por cabelos e barba. Eaquelas coisas penduradas de cada lado parecemmesmo orelhas. Orelhas monstruosamentegrandes, mas gigante deve ter mesmo orelhas deelefante. E... ooooh!�

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Ficou gelada. A coisa se mexia.

Era de fato um gigante. Não havia maisdúvida: tinha virado a cabeça. Jill chegara aperceber a cara estúpida e bochechuda. Eramgigantes, não eram rochas, aquelas coisas. Unsquarenta ou cinqüenta, enfileirados. Tinham ospés pousados no fundo do desfiladeiro e oscotovelos apoiados na borda, como fazem ospreguiçosos na beirada de um muro depois doalmoço.

� Em frente! � cochichou Brejeiro, quetambém os notara. � Não olhem para eles!Aconteça o que acontecer, não corram! Cairão emcima de nós como um raio.

E assim continuaram, fingindo que nãotinham visto os gigantes. Era como atravessar oportão de uma casa onde houvesse um cachorroferoz, só que muito pior. Os gigantes nãodemonstravam raiva... nem bondade... nem omenor interesse. Nem davam sinal de que tinhamnotado os viajantes.

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Aí � zim, zim, zim �, um pesado objeto veiozunindo e um grande calhau explodiu uns vintepassos na frente deles. Depois � pimba! � caiu umoutro, cinco metros atrás.

� Estão apontando para nós? � perguntouEustáquio.

� Não � respondeu Brejeiro �, e estaríamosmais seguros se estivessem. Estão tentando acertarali, naquele monte de pedras à direita. Não vãoacertar nunca. Têm uma pontaria desgraçada.Passam a manhã quase toda brincando depontaria. É a única brincadeira que são capazes deentender.

Foi um mau pedaço. A fila de gigantesparecia não acabar nunca, e não paravam de darpedradas. E, além do perigo real, as caras e osvozeirões já eram suficientes para apavorarqualquer um. Jill fez tudo para não olhar.

Depois de quase meia hora, os gigantes,pelo jeito, começaram a brigar. Foi o fim doconcurso de pontaria, mas não é nada agradávelestar a um quilômetro de gigantes brigando.

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Agridem e escarnecem uns dos outros compalavras sem sentido, de vinte sílabas cada uma.Berram, espumam e saltam enfurecidos, fazendo aterra estremecer. Ferem-se uns aos outros nacabeça com martelões de pedra. As cabeças sãotão duras que os martelos saltam, e os monstrosdeixam cair o martelo e uivam de dor com osdedos machucados. Mas são tão estúpidos quevoltam a repetir a mesma coisa um minuto depois.

De qualquer forma foi bom, pois depois deuma hora os gigantes estavam tão machucadosque se sentaram e começaram a chorar. Sentados,ficaram com a cabeça abaixo da borda dodesfiladeiro, e assim não foram mais vistos. Mas,mesmo um quilômetro à frente, Jill continuava aouvi-los uivar e abrir o berreiro, como se fossembebês enormes.

Acamparam naquela noite em plenacharneca. Brejeiro ensinou às crianças como fazero melhor uso dos cobertores, dormindo uma decostas para a outra. (De costas, uma aquece aoutra, e podem-se jogar os dois cobertores por

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cima.) Mas estava gelado mesmo assim, e o chãoera duro e encaroçado. Disse-lhes o paulama que,para se sentirem melhor, bastaria lembrar queseria ainda muito mais frio quando seaproximassem mais do Norte. Mas isso não serviude consolo.

Caminharam através de Ettin por muitosdias, poupando o toucinho e alimentando-seprincipalmente de aves (não eram, naturalmente,aves falantes) que Eustáquio e o paulamaderrubavam. Jill chegava a invejar a habilidade deEustáquio. Como havia riachos sem conta pelocaminho, água é que não faltava. Jill lembrou-sede que nos livros, quando as pessoas se alimentamde caça, nunca se faz referência ao trabalhomalcheiroso, demorado e sujo que é depenar elimpar uma ave abatida. O melhor é que nãotinham encontrado mais gigantes. Um deles osviu, mas deu uma gargalhada gigantesca econtinuou a tratar da vida.

Por volta do décimo dia, chegaram a umlugar no qual a paisagem mudava. Tinham

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atingido a borda norte da charneca, que dava paraum território mais íngreme e penoso. No fundo deuma encosta havia penhas: além destas, uma terrade montanhas altas, negros precipícios, valespedregosos, abismos tão fundos e estreitos queficavam escuros, e rios que jorravam de gargantasressoantes para o fundo de sinistrosdespenhadeiros. Não é preciso dizer que foiBrejeiro quem apontou para um punhado de nevenas encostas mais distantes.

� Mas haverá mais neve para o Norte, semdúvida � acrescentou.

Levaram algum tempo para atingir o sopéda encosta. Olharam então do alto dos penhascospara um rio que corria embaixo, de oeste paraleste. Ladeado de precipícios, era verde esombrio, pontilhado de rápidos rios e cachoeiras.O rugido das águas estremecia a terra.

� O melhor de tudo � disse Brejeiro � éque, se quebrarmos o pescoço ao descer dopenhasco, estaremos salvos de morrer afogados norio.

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� E aquilo ali? � disse Eustáquio derepente, apontando rio acima, à esquerda. Todosolharam e viram o que menos esperavam � umaponte. E que ponte! Era um vasto e único arcotranspondo o abismo e firmado no topo de doispenhascos. O ponto culminante do arco elevava-seacima dos topos à mesma altura que está da rua aabóbada de uma catedral.

� Puxa! Só pode ser uma ponte de gigantes!� exclamou Jill.

� Ou de feiticeiras, é mais provável �replicou Brejeiro. � Precisamos estar atentos aosfeitiços num lugar como este. Parece umaarmadilha. Aquilo pode virar névoa e sumirquando estivermos no meio da travessia.

� Oh, francamente, deixe de bancar o pé-frio � falou Eustáquio. � Por que diabo aquilo nãopode ser uma ponte de verdade?

� E você acha que algum dos gigantes quevimos até agora teria cabeça para construir umaponte como aquela? � perguntou Brejeiro.

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� E não poderia ter sido construída poroutros gigantes? � perguntou Jill. � Quer dizer:por gigantes que existiram há séculos e tinhammuito mais cabeça que os modernos? Só podemser os mesmos que construíram a cidadegigantesca que andamos procurando. Se é assim,devemos estar no caminho certo: a velha ponteleva à cidade velha!

� Grande idéia, Jill � disse Eustáquio. � Sópode ser isso. Vamos.

Quando chegaram em cima, verificaramque a ponte era sólida. As pedras eram enormes edeviam ter sido talhadas por bons pedreiros,embora o tempo as tivesse rachado edesconjuntado. A balaustrada já devia ter sidocoberta de entalhes, dos quais restavam algunstraços: gigantes, minotauros, lulas, centopéias edivindades medonhas. Brejeiro, apesar decontinuar desconfiado, decidiu atravessá-la comas crianças.

A subida até o ponto mais alto do arco eralonga e penosa. Em muitos lugares as grandes

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pedras tinham caído, abrindo buracos apavorantespelos quais se via, lá embaixo, o rio a espumejar.Uma águia passou voando sob os pés deles.Quanto mais subiam, mais frio sentiam, e o ventoera tão forte que dificultava a caminhada. Pareciasacudir a ponte.

Do alto viram na encosta à frente os restosde uma estrada que se dirigia para o coração dasmontanhas. Diversas pedras do pavimento tinhamdesaparecido; tufos de capim cresciam entre asque ficaram. E na direção deles, a cavalo, vinhampela velha estrada duas figuras do tamanho de umadulto humano.

� Continuemos � disse Brejeiro. � Numlugar como este todo mundo deve ser inimigo,mas não devemos dar demonstração de medo.

Quando chegaram ao fim da ponte episaram na relva, as duas figuras estranhasestavam bem próximas. Uma era um cavaleirocom armadura completa e a viseira abaixada. Aarmadura e o cavalo eram negros; não haviaemblema no escudo, nem flâmula na lança. A

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outra era uma dama montada num cavalo branco,um cavalo tão bonito que dava logo vontade debeijar-lhe o focinho e oferecer-lhe um torrão deaçúcar. Mas a dama, que montava de lado e usavaum comprido e esvoaçante vestido verde, eraainda mais bonita.

� Bom dia, estr-r-angeiros � murmurou adama numa voz mais doce que o canto dospássaros, trilando os �erres� gostosamente. �Alguns de vocês são peregrinos nesta terraagreste?

� Pode ser, madame � respondeu Brejeiro,muito empertigado, em posição defensiva.

� Estamos procurando a cidade arruinadados gigantes � declarou Jill.

� A cidade ar-r-ruinada? � fez a dama. �Que idéia! Que pretende fazer, se encontrá-la?

� Precisamos encontrá-la... � começou Jill,logo interrompida por Brejeiro.

� Com o seu perdão, madame. Acontece,porém, que não a conhecemos, nem a senhora,

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nem o seu companheiro... sujeito calado, hein... ea senhora também não nos conhece. Assim,melhor não confiar a estranhos nossos negócios.Parece que vai chover, não é mesmo?

A dama riu o riso mais comunicativo, maismusical que se pode imaginar:

� Muito bem, meus filhos, parabéns peloguia sábio e solene que possuem. Não lhes queromal por fechar seu coração, mas eu abrirei o meupara vocês. Já ouvi muitas vezes referências àgigantesca cidade arruinada, mas jamais encontreiquem me ensinasse o caminho para lá. Estaestrada conduz ao burgo do castelo de Harfang,onde vivem gigantes amáveis. São tão bonzinhos,educados e sensatos como os de Ettin são bobos,perversos, selvagens e dados a bestialidades. EmHarfang talvez vocês possam saber qualquer coisasobre a cidade arruinada, talvez não; de qualquerforma, lá encontrarão bons alojamentos eanfitriões amáveis. Seria mais sensato passar aítodo o inverno ou, pelo menos, permanecer algunsdias para que descansem e se recuperem. Lá

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encontrarão banhos de vapor, caminhas macias,grandes lareiras; e o que há de bom, assado oucozido, doce ou salgado, estará na mesa quatrovezes por dia.

� Que beleza! � exclamou Eustáquio. � Sóde pensar em dormir de novo numa cama!

� Pois é... e banho quente?! � acrescentouJill. � Será que eles nos convidam? Nós nem osconhecemos...

� É simples � respondeu a dama. � Diga-lhes que Ela, a Dama do Vestido Verde, mandalembranças e duas crianças do Sul para a Festa doOutono.

Jill e Eustáquio ficaram comovidos:� Muito obrigado, muito obrigado... quanta

gentileza...

� De nada, meus anjos. Mas tomem umcuidado: não cheguem tarde demais em Harfang;eles fecham os portões poucas horas depois domeio-dia e não abrem para ninguém.

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As crianças agradeceram mais uma vez,com os olhos a luzir, e a dama acenou-lhes adeus.O pau-lama tirou o chapéu pontudo e fez umareverência, muito empertigado. O cavaleiro caladoe a dama conduziram os cavalos para a entrada daponte com um grande tropel de cascos.

� Pois muito bem! � falou Brejeiro. � Dariaum saco de rãs para saber de onde ela vem e paraonde vai. Não é o tipo que a gente esperaencontrar nas vastidões dos gigantes, não é? Nãopode ser boa coisa!

� Besteira! � disse Eustáquio. � Mulherfabulosa. Pense numa comida quentinha... quartosaquecidos. Só espero que Harfang não estejamuito longe.

� Também acho � disse Jíll. � E que vestidoesplêndido! E o cavalo!

� E daí? � fez Brejeiro. � Se a gentesoubesse um pouquinho mais sobre ela não serianada mau.

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� Pois eu ia perguntar! � disse Jill. � Mascomo é que eu poderia fazer isso se você não quiscontar-lhe nada a nosso respeito?

� Isso mesmo � concordou Eustáquio. �Você ficou aí feito um pedaço de pau, bancando oantipático! Não gostou deles?

� Deles? Eles quem? � estranhou opaulama. � Só vi uma pessoa.

� Vai dizer que não viu o cavaleiro? �perguntou Jill.

� Vi uma armadura. Se era ele, por que nãoabriu a boca?

� Deve ser tímido � explicou Jill. � Podeser também que ele fique satisfeito só de olharpara ela, só de ficar ouvindo aquela voz linda demorrer. Eu faria o mesmo se fosse ele.

� Pois eu � replicou Brejeiro � estou sóimaginando o que a gente veria levantando aviseira do elmo e olhando lá dentro.

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� Deixe disso � atalhou Eustáquio. � Nãoviu a forma da armadura? Só podia ter uma coisalá dentro: um homem.

� E não poderia ser um esqueleto? �perguntou o paulama, com uma entonaçãolúgubre. � Ou talvez, nada. Nada que fossevisível. Um alguém invisível.

� Francamente, Brejeiro � falou Jill numsobressalto. � Você tem cada idéia.

� Deixe-o para lá � disse Eustáquio. � Eleestá sempre esperando o pior, e está sempreerrado.

Vamos pensar nos gigantes amáveis echegar em Harfang o mais cedo possível. Gostariade saber a distância que nos separa do castelo.

E quase acabaram caindo numa daquelasbrigas previstas por Brejeiro: Jill e Eustáquio játinham estado às turras antes, mas agora odesentendimento era de fato sério. Brejeiro nãoqueria ir para Harfang de maneira nenhuma. Nãosabia (disse) o que significava ser �amável� na

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cabeçorra de um gigante. Além disso, segundo ossinais de Aslam, nada havia a respeito dehospedar-se com gigantes, amáveis oudesagradáveis. Por sua vez, as crianças (cansadasde ventanias, de chuvaradas, de aves assadas nosacampamentos, do chão duro) estavamindiscutivelmente decididas a uma visita aosgigantes amáveis. Por fim, Brejeiro acabouconcordando, mas sob uma condição: os doistinham de prometer de pedra e cal que, a não serque a proibição fosse levantada, jamais revelariamaos gigantes de onde vinham e que estavam àprocura do príncipe Rilian. A promessa foi feita eeles prosseguiram.

Depois da conversa com a dama, as coisaspioraram de duas maneiras: o caminho era muitomais áspero e cruzava vales estreitos, onde ovento norte os castigava; nada se encontrava quepudesse ser usado como lenha e não havia bonslugares para passar a noite; o terreno era todopedregoso, causando dores nos pés durante o dia edores no corpo todo durante a noite.

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Em segundo lugar, fosse qual fosse aintenção da dama ao referir-se às delícias deHarfang, o efeito sobre as crianças não foi nadabom. Não pensavam em outra coisa, só em camasquentes, banhos, jantares, aconchego. Já nemfalavam mais em Aslam ou no príncipe perdido.Jill deixou de repetir os sinais todas as noites emanhãs. A princípio, dizia para si que estavacansada demais; depois, simplesmente seesqueceu de tudo. A idéia de passar uma boa vidaem Harfang, em vez de mantê-los mais felizes eanimados, produziu o efeito contrário: aumentou-lhes a insatisfação, tornando-os mais impacientese irritados.

Uma tarde chegaram finalmente a um lugaronde o desfiladeiro abria-se e escuros abetoserguiam-se de cada lado. Tinham atravessado asmontanhas. Diante deles estendia-se uma planíciedeserta e pedregosa; além, montanhas distantes,cobertas de neve. E entre eles e as montanhaslongínquas elevava-se uma pequena colina comuma chapada irregular.

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� Olhem! Olhem! � gritou Jill, apontandopara além da planície.

Lá, na penumbra do crepúsculo, todosviram luzes. Luzes! Não a luz da lua, nem a luz defogueiras, mas uma acolhedora fileira de janelasiluminadas. Quem nunca atravessou dias e noitesnuma terra deserta, dificilmente poderá saber oque eles sentiram.

� Harfang! � bradou Eustáquio, triunfante.� Harfang! � gritou Jill, excitada.

� Harfang � repetiu Brejeiro numaentonação sombria e aborrecida. � Masacrescentou logo: � Oba! Gansos selvagens!

Puxou o arco do ombro num segundo ederrubou um ganso gordo. Era tarde demais parater a esperança de alcançar Harfang naquele dia.Assim, comeram carne quente ao pé do fogo eentraram na noite mais animados. Quando o fogose extinguiu, a noite ficou fria de doer; aodespertarem na manhã seguinte, os cobertoresestavam endurecidos pela geada.

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� Não se preocupem � disse Jill, batendo ospés. � Hoje à noite tem banho quente.

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A COLINA DOS FOSSOSESTRANHOS

É inegável que foi um dia pavoroso. Noalto, um céu sem sol, abafado por nuvens pesadasde neve; embaixo, uma geada escura, e um ventoque soprava como se fosse arrancar-lhes a pele.Ao chegarem à planície, perceberam que essetrecho da velha estrada estava em condições muitopiores. Tinham de achar passagem entre grandesblocos partidos, entre calhaus e pedregulhos. Duracaminhada para pés doloridos. E, por maiscansados que ficassem, o frio era demais para umdescanso.

Lá pelas dez horas os primeiros flocosmiúdos começaram a cair nos braços de Jill. Dezminutos mais tarde caíam com mais intensidade.

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Mais vinte minutos e o chão ficara branco. No fimde meia hora, uma boa tempestade de nevefustigava-os, ofuscando-lhes a visão e prometendodurar o dia todo.

Para que se entenda bem o que se segue, épreciso lembrar que eles não enxergavam quasenada. E não tinham nenhuma visão panorâmica dacolina que os separava do lugar onde as janelasiluminadas haviam aparecido. Tudo o queconseguiam enxergar eram uns passos adiante, eassim mesmo arregalando os olhos. Desnecessáriodizer que seguiam em silêncio.

Quando atingiram o sopé da colina,perceberam qualquer coisa como rochas de ambosos lados. Se tivessem olhado atentamente, o queninguém fez, teriam notado que se tratava depedras quadradas. Estavam todos atentos a umrebordo que lhes barrava o caminho. Devia termais de um metro. O paulama, com suas pernascompridas, não teve dificuldades de subir oobstáculo, ajudando depois os outros � umproblema para estes, pois a neve acumulava-se

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sobre o ressalto. Avançaram com dificuldade �Jill caiu uma vez � por uma extensão de uns cemmetros, chegando a um segundo rebordo. Haviaquatro deles a intervalos bastante irregulares.

Quando se esforçavam para transpor oquarto, não tiveram dúvida de que haviamalcançado a chapada da colina. Até ali a própriaencosta servia-lhes de certa proteção; agorapegavam de cara o vento furioso. Pois a colina,por estranho que possa parecer, era mesmo tãoplana quanto parecera ao longe: como se fosseuma mesa enorme açoitada à vontade pelotemporal. Em muitos lugares o gelo ainda nãoestava bem assentado, e o vento atirava-lhespunhados de neve no rosto. Piorando tudo, asuperfície era cruzada e entrecruzada de valas,que precisavam ser transpostas.

Lutando valentemente, capuz na cabeçaabaixada, mãos enfiadas no capote, Jill percebiaoutras coisas estranhas no alto da colina � coisas àdireita e à esquerda, que lembravam vagamentechaminés de fábricas e penhascos mais eretos do

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que os penhascos devem ser. Mas não estava nemum pouco interessada e não deu a isso a menoratenção. Só pensava nas próprias mãosenregeladas (no nariz, nas orelhas, no queixo) eem banhos quentes e camas em Harfang.

De repente escorregou, deslizando,horrorizada, por uma fenda escura e estreita.Menos de um segundo depois, havia chegado aofundo de uma espécie de trincheira ou fosso deum metro de largura. Apesar de estremecida pelaqueda, uma das primeiras coisas que sentiu foialívio, pois livrara-se da ventania, protegida pelasparedes do fosso. Notou em seguida, é claro, asexpressões aflitas de Eustáquio e Brejeiro, com osolhos arregalados lá em cima.

� Está machucada, Jill ? � gritou Eustáquio.� No mínimo com as duas pernas quebradas

� berrou Brejeiro.Jill se pôs em pé e explicou que estava bem,

mas teriam de dar-lhe um puxão para sair doburaco.

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� Onde você caiu? � perguntou Eustáquio.� Numa espécie de fosso, talvez numa

espécie de corredor ou coisa parecida.� E a coisa vai para o norte � falou

Eustáquio.� Será um caminho? Se for, a gente se livra

deste vento maldito. Há muita neve aí no fundo?� Muito pouca.� O que existe mais na frente?� Um segundinho. Vou dar uma espiada �

disse Jill, avançando ao longo do fosso. Apassagem virava-se bruscamente para a direita.

� Aonde vai dar essa curva?Mas Jill não sentia a menor vontade de

percorrer escuros labirintos subterrâneos,sobretudo depois de ouvir a voz de Brejeiro:

� Cuidado, Jill. Este lugar está com cara decaverna de dragão. Além disso, em terra degigantes devem existir minhocas gigantescas ougigantescas baratas.

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� Acho que isso aqui não vai muito longe,não � falou Jill, voltando apressada.

� Tenho de dar uma olhada � disseEustáquio. � O que você quer dizer com não vaimuito longe?

Ele sentou-se à borda do fosso (já estavamtodos muito molhados, assim não fazia a menordiferença ficar um pouco mais) e saltou lá paradentro. Empurrou Jill para trás e, embora nãodissesse nada, percebeu que ela estava apavorada.Ela acompanhou Eustáquio, tendo o cuidado denão lhe passar à frente.

O esforço acabou em decepção. Dobraramo cotovelo e avançaram uns passos. Aqui haviauma alternativa: seguir ainda em frente ou virar àdireita.

� Não adianta � falou Eustáquio,examinando a entrada para a direita. � Essecaminho nos levará em sentido contrário.

E seguiu em frente, encontrando logodepois um segundo caminho para a direita. A essa

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altura já não havia como escolher: o fosso nãotinha saída.

Jill não perdeu tempo, recuando logo. Opaulama, com seus braços compridos, não teve amenor dificuldade em alçá-los para fora. Mas erahorrível estar lá em cima de novo. Lá embaixo, asorelhas de ambos já começavam a descongelar epor um instante puderam enxergar direito, respirarcom facilidade, falar sem ser aos gritos. Era umadesgraça retornar ao frio devastador. Brejeiroescolheu justamente esse momento para dizer:

� Você ainda sabe de cor aqueles sinais,Jill? O que devemos procurar agora?

� Ora, faça-me o favor. Os sinais que sedanem � protestou a menina. � Creio que équalquer coisa sobre alguém mencionando onome de Aslam. Mas não estou nem um poucodisposta a dar um recital de declamação aqui.

Como se vê, ela invertera a ordem dossinais, pois deixara de repeti-los todas as noites.Se fizesse um esforço, ainda seria capaz de dizê-los: só não sabia mais a lição na ponta da língua, a

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ponto de ir falando os sinais sem pestanejar. Apergunta de Brejeiro aborreceu-a, pois, no fundo,já estava aborrecida consigo mesma por não sabera lição do Leão tão bem quanto deveria.

� Você deve estar embaralhando os sinais �insistiu Brejeiro. � Bem, acho que vale a pena daruma olhada nesta colina...

� Não! � retorquiu Eustáquio. � Esta não éuma boa hora para se olhar a paisagem! Vamosem frente, caramba!

� Oh! Olhem, olhem, olhem! � gritou Jill.

Na direção norte, bem acima do lugar ondeestavam, via-se uma fileira de luzes. Não haviamais dúvidas; tratava-se de janelas, janelinhas queos faziam pensar nas delícias de um quarto, ejanelonas que os faziam pensar em espaçosossalões com lareiras crepitantes, sopa quente elombos fumegantes.

� Harfang! � exclamou Eustáquio.� Perfeito! � comentou Brejeiro. � Mas eu

estava dizendo...

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� Oh, cale a boca! � replicou Jill, zangada.� Não temos um minuto a perder. Não se lembrado que disse a dama? Temos de chegar cedo,temos e temos. Vai ser de morte, mesmo, seficarmos do lado de fora numa noite como esta.

� Ainda não é bem noite... � iniciouBrejeiro. Mas as duas crianças começaram aseguir aos

trambolhões, tão depressa quanto possível.O paulama ia atrás, falando sempre, embora nãofosse mais possível entender o que dizia. E nemqueriam. Pensavam em banhos, camas e bebidasquentes. A idéia de um atraso era insuportável.

Apesar da pressa, levaram longo tempopara cruzar o topo da colina. Depois tiveram dedescer para o outro lado. Só então tiveram aoportunidade de ver o que era Harfang.

Harfang ficava no alto de um elevadorochedo. Apesar de possuir muitas torres, pareciamais uma casa enorme que um castelo. Eraevidente que os gigantes amáveis não receavamum ataque. Havia janelas no paredão externo

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quase rentes ao chão � coisa que não encontramosem fortalezas sérias. Havia até umas bizarrasportinhas, aqui e ali, que permitiam entrar nocastelo sem ter de atravessar o pátio. Issomelhorou o moral de Jill e Eustáquio. O lugarparecia mais amistoso e menos proibitivo.

A princípio, o rochedo alto e íngreme osassustara, mas reparavam agora que existia umcaminho mais suave à esquerda. Foi uma escaladapenosa depois da longa jornada, e Jill quasechegou a desistir; Eustáquio e Brejeiro tiveram deajudá-la nos últimos cem metros. Finalmentepararam diante do portão do castelo. A portalevadiça estava erguida e a entrada era franca.

Por mais cansados que estejamos, é precisoter nervos de aço para entrar na morada de umgigante. E, apesar de todas as suas advertênciasanteriores sobre Harfang, foi Brejeiro quemdemonstrou mais coragem.

� Agora, agüentem a mão. Não mostremsinal de medo, de jeito nenhum. Já fizemos a coisa

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mais imbecil do mundo vindo até aqui. Mas... jáque aqui estamos, temos de fazer cara de valentes.

Com essas palavras o paulama paroudebaixo do arco do portão, onde o eco poderia daruma ajuda a sua voz, e gritou com o resto de suasenergias:

� Ei! Porteiro! Gente buscando pousada!Enquanto esperava que alguma coisa

acontecesse, tirou o chapéu, sacudindo da abauma grossa camada de neve. Eustáquio cochichoupara Jill :

� Ele pode ser um pé-frio... mas não hádúvida de que é ousado.

Abriu-se a porta, deixando passar umdelicioso brilho de fogo, e o porteiro apareceu. Jillmordeu os lábios para não dar um berro. Não eraum gigante propriamente enorme, quer dizer, eramais alto do que uma macieira, mas menor do queum poste. Cabelos vermelhos, eriçados, umatúnica de couro com aplicações de metal, joelhosde fora (muito cabeludos) e coisas parecidas com

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perneiras. Inclinando-se, esbugalhou os olhos paraBrejeiro:

� E que tipo de criatura é essa?Jill tomou coragem, gritando para o

gigante:

� A Dama do Vestido Verde saúda o rei dosgigantes amáveis: aqui manda duas crianças doSul e este paulama (o nome dele é Brejeiro) para aFesta do Outono. Caso não haja, é claro, algumainconveniência...

� Oooh! � respondeu o porteiro. � Agora éoutra história. Entrem, pequeninos, entrem, porfavor. Fiquem na portaria enquanto mando umrecado para Sua Majestade.

E olhou para as crianças com curiosidade,acrescentando:

� Caras azuis... Não sabia que existiamcaras dessa cor.

� Nossa cara está azul assim é de frio �disse Jill. � Essa não é a nossa cor de verdade.

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� Então entrem e se aqueçam. Entrem,camarõezinhos.

A porta fechou-se atrás, e isso não foi nadaagradável; mas tudo esqueceram ao depararemcom o que mais desejavam ver desde a ceia danoite anterior � uma lareira! E que lareira! Eracomo se quatro ou cinco árvores inteiras ardessemlá dentro, tão quente que não foi possível dar maisdo que uns passos. Deixaram-se cair pesadamenteno chão de tijolos, dando grandes suspiros dealívio.

� Garoto! � disse o porteiro para umgigante que estava sentado no fundo da sala comos olhos a saltar das órbitas. � Leve correndo estamensagem ao aposento real. � E repetiu aspalavras de Jill.

O jovem gigante, depois de dar uma olhadafinal nas crianças e soltar uma grande risada, saiucorrendo. O porteiro dirigiu-se ao paulama:

� Cá para nós, seu Sapo, acho que você estáquerendo algo quentinho. � E apareceu com umagarrafa preta muito parecida com a do próprio

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Brejeiro, só que vinte vezes maior. � Espere aí,espere aí. Se eu lhe der um cálice você vai morrerafogado. Espere aí. Este pequeno saleiro vairesolver. Mas não comente isso lá dentro.

O saleiro não se parecia muito com osnossos e serviu bem como cálice, ao ser colocadono chão do lado de Brejeiro. As crianças achavamque este ia recusar, tal era sua falta de confiançanos gigantes amáveis. Porém ele murmurou:

� É tarde demais para tomar precauções,agora que estamos presos aqui dentro. � E cheiroua bebida. � Não cheira mal. Mas isso não querdizer nada. Melhor provar. � Deu uma golada. �Bom. Mas pode ser só o primeiro golpe. � Deuuma golada maior. � Ah! Será a mesma coisa atéo fim? � Outra golada. � Lá no fundo deve serhorrível, é claro. � E bebeu o resto. Lambeu osbeiços e observou para as crianças: � Isso é umteste, estão entendendo? Se eu ficar torto, ouestourar, ou virar lagartixa, ou qualquer coisaparecida, aí vocês não devem aceitar nada aquidentro.

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O gigante, que estava muito em cima paraouvir os cochichos de Brejeiro, deu umagargalhada gigantesca e disse:

� Boa, seu Sapo, bebeu feito um homem!� Homem coisa nenhuma! Paulama! �

respondeu Brejeiro numa voz meio sumida. � Enem sapo! Paulama!

A porta abriu-se e o jovem gigante entrou:

� Eles devem ir imediatamente para a salado trono.

As crianças puseram-se de pé, mas Brejeiropermaneceu sentado, a resmungar:

� Paulama. Paulama. Um paulama derespeito. Um paulespeito.

� Mostre a eles o caminho, garoto � disse oporteiro. � É melhor carregar o seu Sapo. Elebebeu um pouco mais do que podia.

� Bebi coisa nenhuma! Estou bem �protestou Brejeiro. � Sapo coisa nenhuma!Paulespeito.

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Mas o jovem gigante o agarrou pela cinturae fez sinal para que as crianças o seguissem.Assim, sem muita dignidade, cruzaram o pátio.Brejeiro, preso na mão do gigante, dando unsvagos chutes no ar, parecia mesmo um sapo.

Entraram no portal do castelo principal como coração a pular. Depois de vários corredores,percorridos em acelerado, a fim de acompanhar as

passadas gigantescas, entraram piscando naluminosidade de uma sala enorme, onde lâmpadascintilavam e o fogo crepitava na lareira,refletindo-se tudo no teto dourado.

Gigantes, que não era possível contar nomomento, estavam em pé, à direita e à esquerda,todos suntuosamente vestidos. No fim da sala, emdois tronos, estavam sentadas duas coisasimensas, que deviam ser o rei e a rainha.

A uns cinco metros do trono, pararam.Eustáquio e Jill fizeram reverênciasdesajeitadíssimas; o jovem gigante,cuidadosamente, colocou Brejeiro no chão, onde opaulama ficou mais amontoado do que sentado.

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Com suas pernas e braços muito compridos,parecia, para dizer a verdade, uma enorme aranha.

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A CASA DE HARFANG

� Vá em frente, Jill, e faça o que é preciso �murmurou Eustáquio.

Ela estava com a boca tão seca que nãopôde articular uma palavra. Acenou rispidamentecom a cabeça apontando para Eustáquio.

Achando que jamais a perdoaria, Eustáquiopassou a língua nos lábios e gritou para o reigigante:

� Com licença de Vossa Majestade, a Damado Vestido Verde, por intermédio de nós, mandasaudações e diz que Vossa Majestade apreciaria anossa participação na Festa do Outono.

O rei e a rainha olharam um para o outrocom um ar de inteligência e sorriram de um jeito

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que não foi do total agrado de Jill. Estavagostando mais do rei que da rainha. Ele usavauma bela barba encaracolada, tinha um nariz deáguia e, para um gigante, sua aparência até queera boa. A rainha era horrendamente gorda, tinhaum queixo gordo e duplo e uma cara gorda todaempoada � o que normalmente já não é bonito,ficando dez vezes pior numa pessoa dez vezesmaior. O rei botou a língua de fora e lambeu osbeiços. Todo mundo faz isso: acontece porém quea língua dele era tão grande e vermelha, e puloupara fora tão inesperadamente, que a pobre Jilllevou um susto.

� Oh, que boas crianças! � disse a rainha.�Vai ver, ela é que é simpática�, pensou Jill.

� Verdade, verdade! � replicou o rei. �Excelentes, excelentes crianças! São bem-vindas àminha corte. Apertem a minha mão.

Estendeu a mãozona, muito limpa e cheiade anéis, mostrando, no entanto, umas unhaspontudas. Não foi possível um aperto de mão.

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� E que coisa é esta? � perguntou o rei,mostrando Brejeiro.

� Res..pei..to..la..ma � protestou Brejeiro.� Oh! � gritou a rainha, juntando a saia até

os tornozelos. � Que coisa mais horrível! Estáviva!

� É uma pessoa de bem, Majestade, dou-lhea minha palavra � interveio Eustáquio, afobado. �Gostará mais dele quando o conhecer melhor.Tenho certeza.

Espero que você não fique desapontadocom Jill se eu lhe disser que, nesse momento, elacomeçou a chorar! Tinha seus motivos, coitada:seus pés, mãos, orelhas e nariz estavamcomeçando a degelar; neve derretida encharcavasuas roupas; não tinha comido praticamente nadadurante aquele dia; e as pernas doíam tanto queela mal se agüentava em pé. De qualquer modo,parece que foi o melhor que poderia ter feitonaquele momento, pois a rainha interveio:

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� Ah, coitadinha! Senhor meu rei, é umamaldade o que estamos fazendo com nossoshóspedes, deixando-os aqui em pé. Servos!Levem-nos. Precisam de comida, de vinho e debanho. Consolem a menininha com pirulitos ebonecas, tudo o que for bom � morangos comcreme, bombons, passas, cantigas de ninar,brinquedos. Não chore, meu benzinho, você assimvai ficar feia para a Festa do Outono.

Jill ficou indignada com aquela referênciaaos brinquedos. E, embora bombons e morangoscom creme não fossem nada maus, torceu paraque alguma coisa mais substanciosa fosse servida.Mas a intervenção gaiata da rainha deu excelentesresultados, pois Brejeiro e Eustáquio foramimediatamente erguidos por serviçais; coube a Jilluma gigantesca dama de honra. Foram carregadospara os quartos.

O de Jill era mais ou menos do tamanho deuma igreja e seria mesmo um pouco sombrio senão dispusesse de uma crepitante lareira e de umgrosso tapete escarlate. Coisas deliciosas

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começaram a acontecer. Foi entregue aoscuidados da velha ama da rainha, que, do ponto devista dos gigantes, era só uma mulherzinhavergada pelo tempo; do ponto de vista humano,era uma giganta que não chegava a bater com acabeça no teto. Eficiente era, e muito. Jill só ficoudesejando que ela parasse de falar coisas assim:�Que bebê mais lindo!� � �Levante o bracinho.� ��Mais um instantinho só, minha bonequinhaadorada.�

Ajudou a colocar Jill na banheira.Felizmente a menina sabia nadar e aproveitou aomáximo o banho tépido. Quanto às toalhasgigantescas, por um pouquinho ásperas que sejam,também valem a pena, pois são metros e metrosde pano. Nem é necessário enxugar-se nelas: bastaenrolar-se e ir aproveitar as delícias da lareira. Asroupas que ela vestiu, limpas, quentinhas e lindas,eram meio grandes, mas, sem dúvida nenhuma,tinham sido talhadas para gente humana e nãopara gigantes. O que fez Jill pensar: �Se a Damado Vestido Verde freqüenta o palácio, eles devem

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estar acostumados com hóspedes do nossotamanho.�

Viu pouco depois que estava certa a esserespeito, pois mesa e cadeira de dimensõesnormais para uma criatura humana adulta foramtrazidas para ela; garfos, facas e colheres eramigualmente da medida humana.

Que maravilha sentar-se, sentindo-seagasalhada e limpa! De pés ainda descalços, erauma delícia andar pelo tapete gigante. Mergulhounele até os tornozelos e não podia existir coisamelhor para pés doloridos. A refeição � que talvezdeva ser chamada de jantar � consistiu em caldo,carne de peru, pastelão, castanhas assadas e frutas,à vontade.

Só houve uma coisa aborrecida: a amaentrava e saía a todo momento, trazendo de cadavez um gigantesco brinquedo, bonecas imensas(maiores do que a própria Jill ), um cavalo de pausobre rodas (do tamanho de um elefante), umtambor (que parecia uma caixa-d�água), umcarneiro de lã... Eram grosseiros, muito malfeitos

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e tingidos de cores berrantes. Jill, que osdetestava, disse inúmeras vezes que não os queria.Mas a ama respondia:

� Tuc-tuc-tuc. Meu benzinho vai gostar debrincar quando estiver descansadinha. Sei disso,sei disso. Tic-tic-tuc. Agora caminha, bonequinhalinda.

Não era uma cama gigante, apenas umadessas camas esquisitas que ainda podem servistas nos hotéis fora de moda. Parecia minúsculano enorme aposento. Jill pulou alegremente paracima dela, perguntando:

� Ainda está nevando?� Não, minha graça. Agora está chovendo.

A chuva vai acabar com essa neve horrorosa.Amanhã a bonequinha vai poder brincar lá fora. �A ama ajeitou as cobertas de Jill e deu boa-noite.

Não há nada pior do que ser beijada poruma giganta, ficou pensando Jill, mas não pormuito tempo, pois logo adormeceu.

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A chuva caiu durante a noite toda,chicoteando as janelas do castelo. A menina nãoouviu nada, dormindo profundamente até meia-noite. Quando chegou essa hora morta e só oscamundongos faziam um pouco de barulho nacasa dos gigantes, teve um sonho. Sonhou quetinha acordado naquele mesmo quarto, com oclarão da lareira iluminando o enorme cavalo depau. E, por conta própria, o cavalo veio rodandoem cima do tapete, parando perto de seu rosto. Ejá não era mais um cavalo, mas um leão tãogrande quanto o cavalo. Depois não era mais umleão de brinquedo, mas um leão de verdade, oLeão de Verdade, tal qual o vira na montanhaalém do fim do mundo. Um cheiro bom encheu oquarto. Mas Jill estava confusa, embora nãosoubesse por quê, e lágrimas correram por seurosto, molhando o travesseiro. O Leão disse-lheque repetisse os sinais, mas ela os esqueceracompletamente. Foi tomada de horror. Aslamagarrou-a com as mandíbulas (ela sentia seuslábios e sua respiração, mas não os dentes) elevou-a até a janela. A lua brilhava. Em letras

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grandes, estampadas no mundo ou no céu (nãosabia dizer ao certo), estavam estas palavras:DEBAIXO DE MIM. Aí, o sonho desapareceu.Acordou bem tarde na manhã seguinte e já não selembrava mais do que sonhara.

Já havia tomado a primeira refeição quandoa ama abriu a porta e anunciou:

� Aqui estão os amiguinhos para brincarcom a bonequinha.

Entraram Eustáquio e o paulama.

� Bom dia � disse Jill. � Dormi umasquinze horas. Estou me sentindo muito melhor, evocês?

� Eu também � respondeu Eustáquio �, masBrejeiro queixou-se de dor de cabeça. Ei, suajanela tem um banco para olhar a vista... Sesubirmos nele poderemos dar uma olhada lá fora.

E foi o que fizeram. Ao deparar com aquelavisão, Jill exclamou:

� Ai, que coisa assustadora!

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O sol brilhava e a neve tinha sido quasecompletamente lavada pela chuva. Embaixo,estendida feito um mapa, estava a chapada quetinham percorrido com tanta dificuldade navéspera. Vista do castelo, não podia haver dúvidade que se tratava das ruínas de uma cidadegigantesca. Parecera lisa porque ainda conservavaum pouco da velha pavimentação. As bordaslaterais eram o que sobrava das paredes deimensos edifícios, certamente palácios e templosno passado. Um pedaço de parede, com mais decento e cinqüenta metros de altura, aindapermanecia em pé; era o que tinham tomado porum penhasco. O que parecera chaminés defábricas eram colunas enormes, partidas emdiferentes alturas; os fragmentos jaziam perto dasbases como monstruosas árvores tombadas. Osrebordos que tinham galgado no lado norte dacolina eram os restos dos degraus de uma escadade gigantes. Para completar, em letras grandes eescuras ao longo da pavimentação, estavamescritas estas palavras: DEBAIXO DE MIM.

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Os três entreolharam-se desapontados.Depois de dar um assovio curto, Eustáquio disse oque todos estavam pensando:

� Segundo e terceiro sinais pifados.Foi então que, de repente, Jill se lembrou

do sonho. E disse, desesperada:

� A culpa é minha... Parei de repetir ossinais na hora de dormir. Se tivesse prestadoatenção a eles, teria visto logo que isso aí era umacidade, mesmo com aquela neve toda.

� Pois eu sou pior ainda � disse Brejeiro. �Eu vi que era... ou quase... Parecia mesmo umacidade em ruínas.

� Você é o único que não tem culpa alguma� disse Eustáquio. � Tentou fazer com que a genteparasse.

� Não tentei com bastante força � replicouo paulama. � Devia ter feito isso, ora essa! Comose não fosse fácil segurar vocês!

� A verdade é a seguinte � disse Eustáquio:� A gente estava tão ansioso para chegar aqui, que

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não demos bola para mais nada. Eu, pelo menos.Desde o momento em que encontramos aquelamulher com o cavaleiro que não dizia bulhufas,não pensamos mais em coisa nenhuma. E quaseesquecemos o príncipe Rilian.

� Para mim � comentou Brejeiro �, era issoo que a mulher estava querendo.

� O que não entendo direito � disse Jill � éa gente não ter visto o letreiro. Será que ele sóapareceu depois? Será que Aslam não o colocouaí durante a noite? Tive um sonho tão esquisito!

E contou a eles o sonho. Eustáquioexclamou:

� Sua boboca! Nós vimos o letreiro! Nósandamos no letreiro. Entramos na letra E deDEBAIXO lá onde você caiu. Andamos no fundodo E, viramos primeiro à direita, a primeiraperninha, depois viramos outra vez para a direita,a perninha do meio, depois fomos até o fim do E evoltamos. Como somos idiotas!

Eustáquio deu um chute e continuou:

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� Nada feito, Jill. Sei o que você estavapensando porque eu estava pensando a mesmacoisa. Você estava pensando como seria bom seAslam só tivesse colocado as instruções naspedras da cidade em ruínas depois que a gentetivesse passado. Assim, a culpa seria dele, e nãonossa. Ótimo, não é? Nada disso. Temos deaceitar as coisas como elas são. A gente tinhasomente quatro sinais para seguir e já falhamosnos três primeiros.

� Está querendo dizer que eu falhei! �replicou Jill. � E é a pura verdade. Estouestragando tudo desde que você me trouxe paracá. Desculpe, desculpe, desculpe, mas, dequalquer jeito, quais são as instruções?DEBAIXO DE MIM não faz muito sentido.

O paulama interveio:

� Faz! O sentido é este: devíamos terprocurado o príncipe debaixo da cidade.

� Mas como fazer isso? � perguntou Jill.

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� Aí é que está � respondeu Brejeiro,esfregando as mãos de sapo. � Como fazer issoagora? Se a gente estivesse com a cabeça no lugarao passar pela cidade em ruínas, teríamos achadoum jeito, uma portinha, uma gruta ou um túnel;teríamos encontrado alguém que nos ajudasse.Pode ser que até o próprio Aslam, quem sabe. Ofato é que a gente teria entrado de qualquermaneira debaixo daquelas pedras. As instruçõesde Aslam sempre funcionam: nunca houve umaexceção. Como fazer isso agora, é um casocompletamente diferente.

Jill falou:

� Bem, já que é assim, acho que temos devoltar...

� Facílimo! � ironizou Brejeiro. � Paracomeçar, é só tentar abrir aquela porta...

Olharam todos para a porta e viram logoque nenhum deles poderia alcançar a maçaneta. E,mesmo que pudesse, não iria ter força suficientepara virá-la.

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� Quem sabe eles nos deixam sair... sepedirmos? � disse Jill.

Ninguém respondeu nada, mas todospensaram: �E se não deixarem?�

Não era uma idéia simpática. Brejeiro tinhaverdadeira repulsa por qualquer idéia que oslevasse a contar aos gigantes o verdadeiro motivoda sua visita. Sem contar, não teriam decertopermissão para ir lá fora. Contar não podiam, porcausa da promessa. E todos concordavam que nãohaveria jeito de escapar do castelo durante a noite.Com as portas dos quartos fechadas, seriamprisioneiros até o amanhecer. Poderiam, é claro,pedir que deixassem a porta aberta, mas isso iriadespertar suspeitas.

� Nossa única chance � disse Eustáquio � étentar cair fora durante o dia. Será que os gigantesnão gostam de tirar uma soneca durante a tarde?Será que na cozinha não existe uma portinhaaberta?

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� Isso não é bem o que eu chamo de umachance � replicou o paulama. � Mas é a única quetemos.

Na verdade, o plano de Eustáquio não eratão despropositado quanto se pode pensar. Se agente pretende sair de uma casa sem ser visto,durante a tarde é de certo modo melhor do quedurante a noite. É mais provável encontrar janelase portas abertas. Se você for apanhado, semprepode fingir que não pretende ir longe e que está aíà toa. Mas é muito difícil fazer um gigante ou umapessoa» grande acreditar nisso, se você forapanhado em cima da janela depois da meia-noite.

� Temos primeiro de desfazer asdesconfianças

� falou Eustáquio. � Devemos fingir queadoramos estar aqui e que estamos ansiosos pelaFesta do Outono.

� A festa é amanhã à noite � informouBrejeiro.

� Ouvi um deles dizendo isso.

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� Já vi tudo! � exclamou Jill. � Devemosfingir que não pensamos noutra coisa. É ficarperguntando sobre a festa o tempo todo, encher deperguntar. Eles vão pensar que somos mesmocrianças, e assim ficará mais fácil.

O paulama suspirou:

� Alegres! É isso: devemos bancar osalegrões! Como se não tivéssemos a menorpreocupação. Os brincalhões. Vocês dois nemsempre estão de bom humor. Já notei. Eu mostrocomo é ser alegre. Assim, ó... � E fez uma carasinistra de enterro. � Se prestarem atenção emmim, não custarão a aprender. Aliás, eles já meacham muito divertido, é ou não é? Tambémvocês, aposto que me acharam um tiquinhobêbado ontem... Pois dou minha palavra que euestava... bem, em grande parte... representando.Senti que isso de algum modo poderia terutilidade.

As crianças, ao se referirem mais tarde aessas aventuras, nunca tiveram certeza de que aafirmação de Brejeiro fora realmente sincera. Mas

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estavam certas de uma coisa: na hora, Brejeiroestava crente de que dizia a verdade.

� Perfeitamente: alegria é a palavra deordem � arrematou Eustáquio. � No momento, oproblema é encontrar alguém que abra aquelaporta. Enquanto estivermos representando ebancando os inocentes, devemos descobrir tudo oque for possível.

Nesse exato instante a porta se abriu. Aama entrou toda espalhafatosa:

� Então, meus bonecos, que tal ir ver o rei esua corte partirem para a caça? É uma beleza!

Não perderam tempo: deixando a ama noquarto, desceram a primeira escada que apareceu.Pelo barulho dos cães de caça, das trompas e dasvozes gigantescas, acharam logo o caminho dopátio. Os gigantes estavam a pé, pois não hácavalos gigantes naquelas bandas do mundo. Oscães eram do tamanho comum. Jill, nãoencontrando cavalos, ficou a princípio muitodecepcionada, pois sabia que a rainha gordalhonade maneira alguma participaria de uma caçada a

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pé, e não seria nada promissor tê-la em casa o diatodo. Mas, em seguida, viu a rainha recostadanuma espécie de liteira sobre os ombros de seisjovens gigantes.

Vinte ou trinta gigantes, inclusive o rei,estavam reunidos, prontos para a caça, falando erindo numa algazarra de ensurdecer. A altura deJill, mexendo os rabinhos, latindo, fungando,estavam os cachorros.

Brejeiro estava para assumir uma daquelasposes que só ele mesmo achava irresistivelmentealegres e descontraídas (o que poderia terentornado o caldo), quando Jill �ligou� o seu maisadorável sorriso infantil e correu para a liteira darainha, berrando:

� A senhora não vai embora, não é?... Asenhora vai voltar?

� Claro, querida, volto logo à noitinha �respondeu a rainha.

� Oh, que bom! � gritou Jill. � E nóstambém iremos à festa amanhã, não é? Mal posso

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esperar. Que bonito aqui! rainha, enquanto asenhora estiver passeando, a gente pode correr aípelo castelo? Por favor!

A rainha disse �pode�, mas a gargalhadados nobres quase abafou sua voz majestosa.

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9

UMA DESCOBERTA QUEVALEU A PENA

Os outros concordaram mais tarde que Jilltinha sido mesmo maravilhosa naquele dia. Assimque o rei e os outros caçadores partiram, elacomeçou a fazer uma visita �turística� pelocastelo, indagando tudo, mas de um jeito tãoinocente e criançola que ninguém poderiasuspeitar de uma intenção secreta. Apesar de falarsem parar, não se deve afirmar que conversava:tagarelava e ria infantilmente. Fez agradinhos atodo mundo: lacaios, porteiros, mucamas, damasde honra, velhos lordes gigantes que já nãocaçavam mais. Agüentou os beijos e os agarros devárias gigantas, muitas das quais, parecendo sentirpena dela, suspiravam �coitadinha�, sem no

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entanto explicar o porquê. Ficou especialmenteamiga do mestre-cuca e descobriu o fatoimportantíssimo de que havia uma porta dando dacopa para fora do castelo; não era precisoatravessar o pátio ou passar pelo grande portão deentrada.

Na cozinha bancou a gulosa, comendotodos os beliscos e raspas que o cuca e osajudantes lhe ofereciam com satisfação. Lá emcima, entre as damas, perguntava sobre que roupausar na grande festa, até que hora poderia ficar, sedevia dançar com algum gigante pequenininho.Depois (ficava vermelhinha quando se lembravadisso mais tarde), inclinava a cabeça para umlado, toda boboca (os adultos, gigantes ou não,acham isso muito engraçadinho), e, enrolando oscachinhos e fazendo um trejeito, perguntava: �Ah,eu queria tanto que a festa fosse amanhã mesmo;você não? Vai demorar muito para chegar?� E asgigantas todas achavam isso um amor; algumastapavam os olhos com o lenço como se fossemchorar.

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� Eles são uma gracinha, nessa idade �disse uma giganta para outra. � Chega a ser umapena...

Eustáquio e Brejeiro também se esforçarammuito, mas a verdade é que as meninas fazem essetipo de representação muito melhor que osmeninos. E os meninos ainda fazem melhor queos paulamas.

Na hora do almoço aconteceu uma coisaque os deixou ainda mais ansiosos para dar o fora.Almoçaram no grande salão numa mesinhaespecial, perto da lareira. Numa mesa enorme, umpouco adiante, comiam também uns seis gigantes.A conversa deles era tão barulhenta que ascrianças deixaram de prestar atenção ao quediziam, do mesmo modo que a gente se �desliga�da barulhada do tráfego na rua. Estavam comendocarne fria, uma caça que Jill nunca tinha provadoantes, mas estava gostando.

De repente Brejeiro virou-se para os dois, ea cara dele estava tão pálida que era possível

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enxergar a palidez sob o aspecto enlameado desua fisionomia.

� Parem de comer � disse ele �, nem maisuma garfada!

� Que está acontecendo? � perguntaram.� Não estão ouvindo o que os gigantes

estão dizendo?�Que bom pernil macio�, disse um.�Então aquele cervo era um mentiroso�, disse ooutro. �Por quê?�, perguntou o primeiro. �Ué,quando foi agarrado, ele implorou: �Não mematem, minha carne é muito dura, vocês vãodetestar�.�

Jill só entendeu tudo quando Eustáquioarregalou os olhos e exclamou:

� Epa! Estamos comendo um cervo falante!

A descoberta não produziu sobre os três umefeito idêntico. Jill, que era novata naquelemundo, sentiu pena do pobre cervo e pensouhorrores dos gigantes que o haviam matado.Eustáquio, que lá estivera antes e que fizera pelomenos uma grande amizade com um bicho

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falante, ficou indignado com aquele crime asangue-frio. Mas Brejeiro, narniano de nascença,sentiu-se muito mal, como se sentiria um serhumano que tivesse almoçado um bebê.

� Provocamos a ira de Aslam � disse ele. �É o que acontece quando não obedecemos aossinais. Pesa sobre nós uma maldição. O melhorque poderíamos fazer era cravar estas facas emnossos corações � se isso nos fosse concedido.

Pouco a pouco, até Jill passou a aceitar esseponto de vista. Uma coisa foi certa: ninguém quiscomer mais.

Estava chegando a hora decisiva da qualdependeria a esperança de fugir. Todos seencontravam nervosos. Postaram-se na passageme esperaram. Os gigantes ficaram ainda um bomtempo no salão, depois de terminado o almoço. Ocareca contava um caso. Ao final, os três, comoquem não quer nada, foram caminhandodevagarzinho para a cozinha. Ainda havia uma páde gigantes na copa, lavando e arrumando ascoisas. Foi de morte esperar que terminassem o

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trabalho. Por fim lavaram as mãos e se foram, umatrás do outro. Só ficou na cozinha uma velhagiganta, que mexia numa coisa, mexia em outra,até que os três compreenderam, horrorizados, queela não tinha a intenção de sair.

� Bem, meus amorecos � disse ela �,façam-me um favorzinho: vejam se a porta dacopa está aberta.

� Está � respondeu Eustáquio.� Ótimo. Assim o gatinho pode entrar e sair

quando quiser.

A giganta sentou-se numa cadeira, pôs ospés sobre uma banqueta, dizendo:

� Acho que vou dar um cochilo. Se a drogadaquela caçada não acabar cedo demais...

As crianças se animaram quando ela sereferiu ao cochilo, mas ao ouvi-la mencionar avolta dos caçadores quase desfaleceram.

� A que horas eles costumam voltar? �perguntou Jill.

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� Ninguém sabe. Mas fiquem quietinhos, sóum pouco, meus amorecos.

Os três foram para o fundo da cozinha, deonde teriam deslizado para a copa se a giganta nãoabrisse os olhos para espantar uma mosca.

� Só depois que ela estiver dormindomesmo! � murmurou Eustáquio.

Agrupados num canto, ficaram observando.A idéia de que os gigantes poderiam chegar aqualquer momento era de arrepiar. E a giganta serevirava sem parar!

�Não agüento mais isso�, pensou Jill,procurando com os olhos alguma coisa que adistraísse. Bem em frente, estava uma mesa limpacom duas travessas e um livro aberto em cima.Travessas gigantescas, é claro. Jill achou que umadelas daria uma boa cama. Subiu no banco ao ladoda mesa e deu uma espiada no livro. Leu oseguinte:

PATO ASSADO � Esta ave realmentedeliciosa pode ser feita de várias maneiras.

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�Um livro de receitas�, refletiu Jill semmaior interesse e espiou por cima do ombro. Osolhos da gigante permaneciam fechados, mas nãodemonstravam que ela estivesse de fato dormindo.Jill deu outra espiada no livro, que era escrito emordem alfabética. Acima de pato assado, estavauma receita que fez seu coração ficar gelado.

PASTELÃO HUMANO � Este elegantebipedezinho há séculos é apreciado peladelicadeza de seu paladar. Constitui umatradição da Festa do Outono e é servidoentre o peixe e o assado. Para temperarpastelão humano...Não conseguiu ir adiante. Virou-se. A

giganta sofria um acesso de tosse. Jill deu umacotovelada nos outros dois e apontou o livro.Ambos subiram no banco e curvaram-se sobre aspáginas imensas. Eustáquio estava ainda lendocomo fazer de um homem um delicioso pastelão,quando Brejeiro mostrou o que vinha logo abaixo:

PAULAMA SUPERCOZIDO � Grandesmestres da culinária não recomendam este

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animal para o consumo dos gigantes, porcausa de sua consistência fibrosa e dosabor de lama. No entanto, esse sabor podeser reduzido...Jill fez aos dois um sinal. A boca da giganta

estava meio aberta e de seu nariz saía um barulhoque, naquele momento, era mais doce do que amúsica mais linda: ela roncava.

A questão agora era andar na ponta dos pés,não se afobar, respirar leve, passar pela copa(copa de gigante cheira muito mal) e ganhar a luzfraquinha de uma tarde de inverno.

Chegaram ao alto de um caminho agresteque descambava numa ladeira. Do lado direito docastelo, felizmente, podia-se ver a cidade emruínas. Em poucos minutos encontravam-se denovo na estrada larga e íngreme que descia doportão principal do castelo. Podiam ter uma vistacompleta das janelas daquele lado. Se fossemumas poucas janelas teriam alguma chance de nãoserem vistos, mas o caso é que eram umascinqüenta. Também percebiam agora que a

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estrada e toda aquela extensão do terreno entreeles e a cidade em ruínas não poderiam servir deproteção nem a uma raposa; era tudo pedra ecapim. Para piorar, usavam as roupas arranjadaspelos gigantes � menos Brejeiro, para quem nadaservira. Jill usava uma veste verde, de tonalidadeviva, com um manto escarlate debruado de pelicabranca. Eustáquio ia de calção escarlate, túnica emanto azuis, uma espada de punho� dourado e umgorro emplumado.

� Que cores mais lindas! � resmungouBrejeiro. � O pior arqueiro do universo não errariaos dois. Por falar nisso, vamos sentir falta dosnossos arcos muito em breve. Meio leves tambémestas roupas, não?

� Levíssimas, estou tiritando de frio �respondeu Jill.

Poucos minutos antes, lá na cozinha, elaachava que, se conseguissem escapar do castelo,estaria tudo resolvido. Agora compreendia queestava apenas no começo da parte mais perigosada aventura.

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� Ânimo firme! � falou Brejeiro. � Nãoolhem para trás. Sem pressa. Aconteça o queacontecer, não corram. Vamos fingir que sóestamos dando uma voltinha; se encontrarmos umgigante, não é de todo impossível que ele nãodesconfie de nada. Mas, se parecer que estamosfugindo, estaremos fritos.

A distância até a cidade em ruínas pareciamaior. Ouviram um barulho. Jill perguntou o queera.

� Trompas de caça � cochichou Eustáquio.� Nada de correr! � falou Brejeiro. � Só

quando eu mandar.

Jill não resistiu à vontade de dar umaolhadela para trás. A menos de um quilômetro, oscaçadores retornavam, à esquerda.

Continuaram a passo. De repente ouviu-seum grande clamor de vozes e gritos. Brejeirobradou:

� Já nos viram: corram!

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Jill juntou as saias compridas � �Que coisamais chata fugir desse jeito!� � e correu. Nãohavia engano possível. Já podia distinguir amelodia das trompas. Ouvia a voz do rei,berrando: �Peguem, peguem, não deixem fugirmeus pastelões.�

Era a última na corrida, atrapalhada com ovestido, escorregando em pedras soltas, os cabelosentrando na boca, o peito doendo. E as trompascada vez mais próximas. Tinha agora de subir acolina, galgando a encosta pedregosa queconduzia ao primeiro degrau da escada dosgigantes. Não sabia o que poderiam fazerchegando lá, mas não adiantava pensar nisso.Sentia-se uma caça: com a cachorrada atrás dela,tinha de correr até não poder mais.

O paulama ia na frente. Chegando aoprimeiro degrau, deu uma parada, olhou à direita,e entrou velozmente por uma fenda; ascompridíssimas pernas, quando desapareceram,fizeram lembrar outra vez uma aranha. Eustáquio,depois de certa hesitação, sumiu atrás dele. Jill,

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cambaleando e ofegante, chegou ao local umminuto depois. A fenda nada tinha de convidativa:aberta entre a terra e a pedra, tinha menos de ummetro de comprimento e pouco mais de trintacentímetros de altura. Era preciso raspar o chãopara entrar. Levava algum tempo. Jill tinha acerteza de que seu calcanhar seria agarrado porum cachorro antes de chegar lá dentro.

� Rápido. Pedras. Tampem a saída.Era a voz de Brejeiro no escuro, a seu lado.

Só chegava ao buraco a luz cinzenta que coavapela fenda. Jill ainda conseguia ver as pequenasmãos de Eustáquio e as grandes mãos de sapo deBrejeiro a empilhar grandes pedras com a rapidezdo desespero. Entendeu logo a importânciadaquilo e começou a ajudar. Antes que os cãescomeçassem a latir e ganir, a boca da fenda estavatampada. Agora, naturalmente, a luz se fora.

� Mais adiante, depressa � comandou a vozde Brejeiro.

� De mãos dadas � gritou Jill.

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� Boa idéia � falou Eustáquio, mas não foimuito fácil encontrar as mãos no escuro.

Os cães já fungavam lá fora.� Vamos ver se podemos ficar em pé �

sugeriu Eustáquio.Podiam. Brejeiro estendeu a mão para trás a

Eustáquio, este estendeu a mão para Jill, que teriapreferido mil vezes ser a do meio, e não a última.Começaram a avançar experimentando o chãocom os pés e tropeçando para a frente naescuridão. Brejeiro deu com uma parede de rocha.Viraram-se um pouco para a direita eprosseguiram. Existiam outras curvas e voltinhas.Jill não tinha o menor senso de direção, ignorandopor completo onde ficara a boca da caverna.Ouviu-se a voz de Brejeiro:

� O problema é saber o que seria melhor:voltar (se for possível) e proporcionar um grandeprazer aos gigantes; ou enfrentar os dragões quedevem existir neste buraco. De minha parte...

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Tudo aconteceu num átimo. Ouviu-se umgrito selvagem, um ruído de pedras despencando,e Jill viu-se a escorregar, escorregar, escorregarsem esperança, cada vez mais velozmente, poruma descida cada vez mais íngreme. E não erauma descida macia e firme, mas feita de pedrinhase detritos. Ia escorregando mais deitada do que empé. E quanto mais os três deslizavam para baixo,mais coisas se desconjuntavam, mais barulhento,mais empoeirado, mais precipitado ficava aqueleescorregar sem fim. Jill pensou que as pedras queela ia descolando ao passar deviam estarmachucando horrivelmente Eustáquio e Brejeiro.Deslizando a uma velocidade espantosa, estavacerta de que se partiria em pedacinhos quandochegasse ao fundo.

Nem tanto. Ela tinha ferimentos por todo ocorpo, é verdade, e a coisa espessa e úmida emseu rosto parecia sangue. Havia tanta terra, tantapedra e tanta coisa ao redor dela, e até em cima,que não conseguiu levantar-se. A escuridão eratanta que dava no mesmo abrir ou fechar os olhos.Silêncio absoluto.

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Foi o pior momento da vida de Jill, que sepôs a imaginar se estaria ali sozinha... se osoutros...

Percebeu movimentos perto. Os trêscomeçaram, com a voz trêmula, a verificar sealguém tinha quebrado algum osso.

� A gente não vai ficar em pé nunca mais �disse a voz de Eustáquio.

� Já notaram como está quentinho aqui? �Era a voz de Brejeiro. � Devemos ter escorregadoum bocado, um quilômetro, por aí.

Depois de um silêncio, voltou a voz deBrejeiro:

� Minha binga sumiu.Nova longa pausa. A voz de Jill :

� Estou com uma sede danada.Nenhuma sugestão. Não havia nada a fazer:

isso era óbvio. Por enquanto, não se sentiam tãohorrorizados quanto seria de se esperar: é porquese encontravam exaustos.

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Muito tempo depois, sem o menor aviso,ouviu-se uma voz completamente estranha.Sentiram logo que não era a única voz no mundopela qual secretamente esperavam: a voz deAslam. Era uma voz escura, monótona ecavernosa, que perguntou:

� Que fazem aqui, criaturas do Mundo deCima?

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VIAGEM SEM SOL

� Quem está aí? � bradaram os três.� Sou o guardião do Submundo e comigo

estão armados cem terrícolas � foi a resposta. �Digam logo: quem são vocês e qual a missão queos traz ao Reino Profundo?

� Caímos aqui sem querer � disse Brejeiro,com toda a sinceridade.

� Muitos caem e poucos retornam às terrasensolaradas � replicou a voz. � Preparem-se: irãocomigo à rainha do Reino Profundo.

� Ela deseja alguma coisa de nós? �perguntou Eustáquio, cauteloso.

� Não sei � respondeu a voz. � A ela nãofazemos perguntas: obedecemos.

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Enquanto dizia essas palavras, ouviu-se obarulho de uma pequena explosão, e uma luz fria,cinzenta e um tanto azulada invadiu a caverna. Aesperança de que o porta-voz estivesse sócontando vantagem a respeito dos cem homensarmados morreu no momento. Jill viu-se de olhospregados numa multidão compacta. Eram de todosos tamanhos, desde pequenos gnomos que malchegavam a trinta centímetros de altura a figurasimponentes, mais altas que um homem. Todoscarregavam forcados e eram horrendamentepálidos e imóveis quais estátuas. Afora isso eramtodos diferentes: alguns tinham rabo, outros não;alguns usavam grandes barbas; outros tinham orosto redondo e liso, grande como uma abóbora.Havia narizes compridos e pontudos, narizesmoles e compridos como pequenas trombas enarigões embolotados. Vários deles tinham umchifre no meio da testa. Mas, sob um aspecto,eram todos parecidos: ninguém seria capaz deimaginar expressões tão tristes. Eram tão tristesque, depois do primeiro susto, Jill quase se

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esqueceu de ter medo deles. Sentia até certavontade ou obrigação de animá-los um pouco.

� Bem! � interveio Brejeiro, esfregando asmãos. � É disso que estou precisando. Se essescaras não me ensinarem a levar a vida a sério, nãosei quem seria capaz disso. Olhem só aquele alicom bigode de foca... ou aquele outro...

� Sentido! � comandou o chefe dosterrícolas. Não havia mais nada a fazer. Os trêsviajantes perfilaram-se e tocaram-se nas mãos.Precisamos encontrar uma mão amiga nummomento como esse. Os terrícolas cercaram-nos,pisando com pés grandes e moles; alguns péstinham dez dedos, outros doze, outros nenhum.

� Marchem � comandou o guardião. E elesmarcharam.

A luz fria vinha de uma grande bola naponta de um varapau, conduzido à frente dobatalhão pelo mais alto dos gnomos. Sob essa luznada estimulante, puderam reparar que seencontravam numa gruta natural, cujas paredes eteto se retorciam em mil formas fantásticas.

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O chão pedrento ia descendo à medida queavançavam.

Era pior para Jill que para os outros: elatinha horror a escuridão e a grutas. Então, quandoa caverna ficou mais baixa e mais estreita, e oporta-luz colocou-se de lado, enquanto os anõesagachavam-se (todos, menos os menorzinhos) edesapareciam numa pequena fenda escura, elasentiu que não ia agüentar mais.

� Não posso entrar aí! Não posso! Nãoposso! Não entro! � gritou.

Os terrícolas nada disseram, só apontaramas lanças para ela.

� Agüente firme, Jill � falou o paulama. �Esses caras maiores não iam entrar nesse buracose ele não se alargasse mais adiante. E há umavantagem nessa coisa de subterrâneo: chuva nãoteremos.

� Oh, você não entende; eu não posso.

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� Lembre-se do que eu senti naquelepenhasco, Jill � falou Eustáquio. � Você vai nafrente, Brejeiro, e eu vou atrás dela.

� Perfeito � respondeu o paulama, pondo-sede joelhos e mãos no chão. � Você toca em meuscalcanhares, Jill, e Eustáquio toca nos seus. Assimnos sentiremos mais seguros.

� Seguros! � exclamou Jill entrando afinalna fenda.

Que lugar mais repugnante! Foi precisoquase arrastar o rosto no chão por um tempo quepareceu meia hora, embora não tivesse sido defato mais do que cinco minutos. E como eraquente ali; Jill sentiu-se sufocada. Por fim umaluzinha apareceu à frente; o túnel foi ficando maislargo e mais alto e eles chegaram, sujos eavermelhados, a uma caverna tão vasta que nemparecia uma caverna.

Era banhada por uma luminosidade vaga emodorrenta; já não precisavam da estranhalanterna dos terrícolas. O chão, com uma espéciede musgo, era macio, e dele cresciam muitas

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formas estranhas, altas e cheias de ramos como asárvores, mas com a consistência de cogumelos. Aluz, cinza-esverdeada, parecia irradiar dessasformas e do musgo, e não dava para iluminar oteto da gruta, que devia estar muito lá no alto.Seguiam agora por esse lugar macio e sonolento.E muito triste, mas de uma tristeza que trazquietude, como certas músicas suaves.

Passaram por dezenas de animais esquisitosestendidos sobre a relva, mortos ou adormecidos.Muitos lembravam dragões e morcegos, masBrejeiro não sabia distingui-los.

� Esses bichos são daqui mesmo? �Eustáquio perguntou ao guardião. Este mostrou-semuito surpreso por lhe terem dirigido a palavra,mas respondeu:

� Não. São bichos que chegaram aquiatravés de abismos e grutas, vindos do Mundo deCima para o Reino Profundo. Muitos descem atécá, mas poucos retornam às terras ensolaradas.Dizem que todos despertarão ao final do mundo.

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Ao dizer isso, sua boca selou-se; no grandesilêncio da gruta, as crianças sentiram que nãoteriam a audácia de falar outra vez. Os pédescalços dos anões, palmilhando o musgoespesso, não faziam o menor ruído. Os estranhosanimais não produziam o menor som ao respirar.

Depois de terem andado vários quilômetros,chegaram a uma parede de pedra com um arcoque dava para uma outra gruta. Mas era bemmelhor do que a última entrada. Penetraram numacaverna menor, comprida e estreita, com a mesmaforma e o mesmo tamanho de uma catedral. Aí,tomando quase todo o espaço, estava um homemimenso a dormir profundamente. Era muito maiordo que qualquer um dos gigantes, mas o rosto nãoera igual ao dos gigantes: era nobre e belo. Seupeito arfava um pouco sob a barba de neve que ocobria até a cintura. Uma luz prateada (ninguémviu de onde vinha) caía sobre ele.

� Quem é este? � perguntou Brejeiro. Haviatanto tempo que ninguém dizia uma palavra, queJill ficou a imaginar como ele tivera coragem.

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� Este é o velho Pai Tempo, que já foi reido Mundo de Cima � respondeu o guardião. �Agora está mergulhado aqui no Reino Profundo,sonhando com as coisas que são feitas no mundosuperior. Muitos caem aqui, mas poucos retornamàs terras ensolaradas. Dizem que despertará nofim do mundo.

Passaram em seguida a uma outra gruta,depois a uma outra, e outra, tantas que Jill perdeua conta, mas sempre descendo. E cada gruta eramais baixa que a precedente, até que só depensarem no peso e na profundidade da terraacima deles sentiam-se sufocados.

Chegaram finalmente a um lugar no qual oguardião ordenou que o varapau de luz fosse denovo aceso. Entraram numa gruta tão larga eescura que nada podiam enxergar, a não ser, àdireita, uma pálida faixa de areia cercando umaágua parada. Perto de um pequeno caís estava umbarco sem mastro e sem velas, mas cheio deremos. Foram obrigados a embarcar na proa, numespaço vago à frente dos bancos dos remadores.

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� Uma coisa eu gostaria de saber... �observou Brejeiro. � Se alguém de nosso mundo...lá de cima, quero dizer... já fez esta viagem.

� Muitos já tomaram o barco das praiaspálidas � replicou o guardião � e...

� Já sei � interrompeu Brejeiro �, poucosretornaram às terras ensolaradas. Não precisamais dizer isso. Você é um sujeito de idéia fixa,não?

As crianças chegaram-se para mais perto deBrejeiro, uma de cada lado: tinham dito lá emcima que se tratava de um pé-frio, mas aliembaixo ele era o seu único conforto.

A lanterna pálida foi pendurada no meio daembarcação; os terrícolas pegaram os remos e obarco começou a deslizar. A lanterna poucoadiantava: nada avistavam à frente; só água, lisa eescura, a desmaiar na escuridão total.

� Que será de nós? � perguntou Jill,agoniada.

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� Não se deixe abater agora, Jill � disse opau-lama. � Há uma coisa da qual você devesempre se lembrar: estamos de novo seguindo otexto. Devíamos ir por baixo da cidade em ruínas,e cá estamos. Estamos novamente de acordo comas instruções.

Serviram-lhes então comida � uma espéciede bolacha que não tinha gosto de nada. Depoisum a um pegaram no sono. Quando acordaram,tudo continuava na mesma: os anões remando, obarco deslizando, a escuridão. Quantas vezesacordaram e dormiram, e comeram e dormiram denovo, nenhum deles seria capaz de dizer. E o piorera isto: parecia agora que tinham passado a vidainteira naquele barco, naquela escuridão, semsaber se o sol, o céu azul, o vento e os pássarosnão passavam de um sonho.

Já estavam quase desistindo de teresperança ou medo de qualquer coisa, quandoviram luzes à frente: luzes sinistras como aquelada lanterna. Uma luz de repente aproximou-se eperceberam que estavam cruzando um outro

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barco. Encontraram vários outros. Depois,arregalando os olhos até doer, viam que algumasluzes iluminavam o que parecia um conjunto decais, muros, torres e gente a caminhar. Aindaassim, quase nada se ouvia.

� Caramba! � exclamou Eustáquio. � Umacidade!

Uma estranha cidade. Tão poucas as luzes etão distanciadas umas das outras, que mal dariampara iluminar umas poucas casas em nossomundo. Os pequenos trechos iluminadoslembravam lampejos de um grande portomarítimo. Num lugar, havia vários barcos sendocarregados ou descarregados; em outro, fardos demercadorias e armazéns; num terceiro, paredes ecolunas que sugeriam grandes palácios e templos.E, onde caísse a luz, viam-se centenas deterrícolas acotovelando-se em silêncio através deruas estreitas, praças largas, ou galgando lançosde escada. O movimento contínuo produzia umaespécie de ruído macio à medida que o barco seaproximava. Música nenhuma. Nem som de sino.

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Nem o ruído de uma roda. A cidade era tão quietae quase tão escura quanto o interior de umformigueiro.

Depois que o barco parou à beira do cais, ostrês foram levados para terra e conduzidos àcidade. Multidões de terrícolas (não existiam doisiguais) roçavam por eles nas ruas, exibindo carastristes e grotescas. Nenhum deles demonstrou omenor interesse pelos estrangeiros. Os anõespareciam tão ocupados quanto tristes, embora Jillnão conseguisse entender o que faziam. Mas amovimentação continuava, com pressa, comempurrões, com o macio ruído � pá-pá-pá � daspassadas.

Chegaram finalmente ao que parecia umgrande castelo, embora poucas luzes estivessemacesas. Cruzaram um pátio e subiram pornumerosas escadarias, chegando a uma salasombriamente iluminada. Mas a um canto � quealegria! � havia uma arcada com uma luz bemdiferente: a luz cálida, amarelada e honesta daslâmpadas usadas pelos homens. A luz mostrava o

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patamar de uma escada que subia em caracol entreparedes de pedra, e parecia vir do alto. Doisterrícolas postavam-se nos dois lados do arcocomo sentinelas ou lacaios.

O guardião caminhou até os dois e falou,como se fosse uma senha:

� Muitos mergulham no Subterrâneo.Os dois responderam em coro a contra-

senha:

� E poucos retornam às terras ensolaradas.Depois conversaram até que um dos anões deguarda disse:

� Já lhe afirmei que a rainha saiu daqui emsua grande missão. Melhor conservar essesviajantes na prisão até que ela volte. Poucosretornam às terras ensolaradas.

Nesse momento a conversa foiinterrompida pelo que pareceu a Jill o maismaravilhoso ruído do mundo. Vinha de cima, doalto da escadaria, e era uma clara e ressoante vozhumana, a voz de um homem jovem.

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� Que confusão você está fazendo aíembaixo, Mulungu? Ah! Mundanos de Cima! Quevenham aqui imediatamente!

� Queira Vossa Alteza ter a fineza derecordar � começou a dizer Mulungu, mas foibruscamente interrompido.

� Minha Alteza gosta antes de tudo de serobedecido, seu velho resmungão. Traga-osimediatamente.

Mulungu balançou a cabeça, fez um sinalpara que os três o seguissem, e começaram asubir. A cada degrau a intensidade da luzaumentava, mostrando reflexos dourados atravésde delicadas cortinas no alto da escada. Osterrícolas abriram as cortinas e se colocaram doslados. Os três entraram. Acharam-se numa belasala, ricamente atapetada, com uma lareiracrepitante e uma mesa onde reluziam uma garrafade vinho vermelho e cristais. Um jovem decabelos louros levantou-se para cumprimentá-los.Era de bonita aparência e parecia ao mesmotempo destemido e bom, embora algo em sua

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expressão revelasse que havia alguma coisaerrada. Vestia-se de preto.

� Bem-vindos! � bradou. � Mas esperemum momentinho! Perdão! Já vi vocês, as duascrianças, e este outro aí, antes. Não eram vocêsque estavam na ponte de Ettin quando passei acavalo com a minha dama?

� Oh... você era o cavaleiro negro que nãofalava nada! � exclamou Jill.

� E era aquela dama a rainha doSubterrâneo? � perguntou Brejeiro, em tom nãomuito amistoso.

Eustáquio, que estava pensando a mesmacoisa, explodiu:

� Nesse caso, foi uma sujeira da parte delater mandado a gente para um castelo de gigantesque pretendiam colocar-nos no cardápio. Que malfizemos a ela, era o que eu desejava saber...

� Como? � disse o cavaleiro negro,franzindo a testa. � Se você não fosse umguerreiro tão jovem, rapaz, íamos decidir esta

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afronta num duelo de morte. Não tolero uma sópalavra contra a honra da minha dama. Mas deuma coisa pode estar seguro: ela jamais diria umapalavra com má intenção. Você não a conhece. Éum poço de virtudes, de verdade, de clemência, deconstância, de coragem, de bondade, de tudo.Digo aquilo que sei. Só a bondade dela paracomigo, que jamais poderei retribuir-lhe, dariauma linda história. Mas vocês aprenderão aconhecê-la e a amá-la. Agora lhes pergunto: quemissão os traz às Terras Profundas?

Antes que Brejeiro a impedisse, Jill soltou overbo:

� Por favor, estamos procurando o príncipeRilian, de Nárnia. � E só então se deu conta doquanto se arriscara. Mas o cavaleiro não semostrou interessado, dizendo vagamente:

� Rilian? Nárnia? Que país é este? Nuncaouvi falar neste nome. Deve estar a milhares dequilômetros das partes do Mundo de Cima que euconheço. Mas que idéia estranha a de procurar,como é mesmo o nome?... o príncipe Bilian?

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Trilian?... no reino da minha dama. Tanto quantoeu saiba, esse homem não está por aqui. � E deuuma risada alta ao dizer isso.

Jill disse para si mesma: �Acho que é issoque está errado na cara dele! Será que ele é meiomaluco?�

� Disseram-nos para procurar umamensagem nas pedras da cidade em ruínas �informou Eustáquio. � E lá encontramos aspalavras DEBAIXO DE MIM.

O cavaleiro riu-se ainda com mais vontade.

� Pois estão completamente errados. Essaspalavras não significam nada para a busca devocês. Se tivessem perguntado à dama, ela lhesteria aconselhado melhor. Pois essas palavras sãoo que resta de um texto mais longo, que, nosvelhos tempos, como ela bem se lembra, consistianestes versos:

Sob a Terra agora destronado estou,Embora tenha tido, quando vivo,A Terra inteira debaixo de mim.

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� Conclui-se claramente � continuou ocavaleiro � que algum grande rei dos antigosgigantes, que ali jaz enterrado, ordenou que esseepitáfio fosse talhado na pedra; com o tempo,sobraram apenas três palavras. Engraçado é teremacreditado que essas palavras pudessem ter sidoescritas para vocês.

Foi como jogar água fria em Eustáquio eJill, pois parecia-lhes agora muito improvável queas palavras tivessem alguma coisa a ver com a suaperegrinação; tudo não passava de um acaso.

� Não liguem para ele � disse Brejeiro. �Não existem acasos. Nosso guia é Aslam; e eleestava presente quando o rei ordenou que as letrasfossem gravadas; e já sabia todas as coisas queviriam, inclusive esta.

� Esse guia de vocês deve ter vivido umbocado, meu amigo � disse o cavaleiro com maisuma das suas risadas, que Jill já começava a acharum pouco irritantes.

� Pois me parece, Alteza � observouBrejeiro �, que a sua dama também deve ter

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vivido um bocado, já que se lembra dos versoscomo foram gravados.

� Muito perspicaz, Cara de Sapo! � disse ocavaleiro, dando um tapinha no ombro de Brejeiroe caindo outra vez na risada. � E a verdade é queacertou no alvo. Ela é de raça divina, acima davelhice e da morte. Por isso mesmo ainda soumais reconhecido a ela, ao conceder a ummiserável mortal como eu a sua infinita bondade.Pois saibam que sou um homem atormentado porestranhas aflições, e ninguém, a não ser a rainha,teria paciência comigo. Prometeu-me um grandereino no Mundo de Cima, e, quando eu for rei, elame dará a mão em casamento. Mas é uma histórialonga demais para ser ouvida em pé e em jejum.Ei, servos! Tragam vinho e comidas de Cima paraos meus convidados. Sentem-se, por obséquio.Sente-se nesta cadeira, gentil senhorita. Vocêssaberão de tudo.

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NO CASTELO ESCURO

Quando a refeição foi servida (pombo,presunto, salada e doces), e todos começaram acomer, o cavaleiro negro prosseguiu:

� Vocês antes de tudo precisam saber, meusamigos, que nada sei sobre quem fui desde quecheguei a este Mundo Escuro. Não me lembro dequalquer outro tempo no qual não estivessemorando, como agora, na corte desta celestialrainha; tenho a impressão de que ela me salvou dealgum feitiço e para cá me trouxe em virtude desua inexcedível bondade. (Meu amigo Pé-de-Sapo, sua taça está vazia. Permita, por favor, queeu lhe sirva.) Isso me parece muito provável, poisaté o momento sou vítima de um encantamento,do qual só a minha dama tem o poder de livrar-

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me. Há uma hora, todas as noites, na qual o meuespírito transforma-se horrivelmente e, logodepois, o meu corpo. Pelo espírito, passo por umacrise de fúria, que me faria precipitar-me sobre omelhor amigo para matá-lo, caso não meamarrassem. Depois, tomo a forma de uma grandeserpente, esfomeada, venenosa, mortal. (Porfavor, jovem cavalheiro, queira servir-se umpouco de pombo.) Assim me dizem, e deve serverdade, pois a minha dama diz a mesma coisa.Quanto a mim mesmo, não sei de nada, pois,passada a hora, desperto esquecido de meu vilacesso, em perfeitas condições físicas eespirituais... apenas um tanto ou quanto fatigado.(Senhorita, prove um desses bolos de mel quevieram de uma terra bárbara do extremo sul domundo.) A rainha sabe, por virtude de sua artesobrenatural, que me libertarei do encantamentoquando ela mesma me fizer rei de uma terra doMundo de Cima. Essa terra já está praticamenteescolhida, assim também como o lugar da nossaultra-passagem para Cima. Os terrícolastrabalham dia e noite cavando o acesso, e tão

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adiantados estão que os habitantes superioresestão pisando poucos metros acima do MundoEscuro. A hora e vez desses habitantes superioresestá próxima. Ela própria visita a escavação estanoite, e só aguardo um recado para ir encontrá-la.O delgado teto de terra que me separa do meureino será rompido; com ela servindo-me de guiae mil homens à minha retaguarda, avançarei nomeu cavalo para cair de chofre sobre os meusinimigos; eliminarei os principais cabeças,dominarei as praças fortes e, sem dúvida, sereicoroado rei em vinte e quatro horas.

� Que sorte a deles! � exclamou Eustáquio.� Ah, que perspicácia tem este rapaz! �

exclamou por sua vez o cavaleiro. � Palavra dehonra, nunca tinha pensado nisso antes. Estouentendendo o que você quer dizer. � Por ummomento o cavaleiro pareceu levemente, muitolevemente, perturbado; mas seu rosto logo sedesanuviou e rompeu numa daquelas sonorasrisadas: � Que coisa mais cômica e ridícula pensarque eles continuam na vidinha deles, sem lhes

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passar pela cabeça que debaixo de seus campostranqüilos, ali pertinho, está um grande exércitopronto a irromper da terra como água de umafonte! Nunca suspeitaram de nada! Mas, logo quepassar a dor da derrota, eles próprios acabarãoachando graça no que aconteceu.

� Pois eu não vejo a graça � disse Jill. �Para mim você será apenas um cruel tirano.

� Hein? � fez o cavaleiro, rindo-se ainda edando palmadinhas nervosas na cabeça damenina. � A senhorita por acaso dedica-se àpolítica? Nada receie, minha graça. Governareiessa terra sob a constante orientação da minhadama, que será aliás a minha rainha. Sua palavraserá a minha lei, assim como a minha palavra seráa lei do povo por nós conquistado.

� No lugar de onde eu venho � disse Jill,cada vez gostando menos dele �, não é grandecoisa a reputação dos homens mandados pelasmulheres.

� Pois vai pensar diferente quando tiver oseu homem � disse o cavaleiro, achando isso

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engraçadíssimo. � Com a minha dama é diferente.Ficarei contente de obedecer a quem me salvou demilhares de perigos. Mãe alguma no mundo fezpara o filho o que ela fez para mim. Vejam só:apesar de todas as suas obrigações e trabalhos,várias vezes percorreu comigo o Mundo de Cima,para habituar meus olhos à luz do Sol. Vou naminha armadura, com a viseira abaixada, a fim deque homem algum veja o meu rosto e eu não falecom ninguém. Por arte mágica ela descobriu queisso criaria dificuldades à conjuração do sortilégioque pesa sobre mim. Assim, pois, não se trata deuma dama digna do culto fanático de um homem?

� Parece mesmo uma dama fora de série �falou Brejeiro, com uma inflexão que significavaexatamente o oposto.

Já estavam cheios daquela conversa antesque o prato de sopa esvaziasse. Brejeiro pensava:�Gostaria de saber qual a jogada que essafeiticeira está tramando com esse jovem tolo.�Eustáquio pensava: �Que crianção, francamente;amarrado à roda da saia daquela mulher, o

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bobão.� E Jill pensava: �Esse aí é o sujeito maisbobo, mais metido a besta, mais egoísta que vi nosúltimos anos!�

Mas quando terminou a refeição, os modosdo cavaleiro negro haviam mudado. A risadadesaparecera.

� Meus amigos � falou ele �, minha horaestá próxima. Apesar do meu horror de ficarsozinho, tenho vergonha de que me vejam agora.Eles vão entrar e amarrar meus pés e minhas mãosnaquela cadeira. Que se há de fazer? Pois em meuacesso (dizem), eu destruiria tudo o que estivesseao meu alcance.

� Entendo � falou Eustáquio � e sinto muitopela sua maldição, é claro, mas o que esses carasfarão conosco quando chegarem para amarrá-lo?Falavam em trancar a gente na cadeia. E nãoapreciamos muito aquelas escuridões. Preferimosmuito mais ficar aqui até que você... se sintamelhor... se for possível...

� Bem pensado � respondeu o cavaleiro. �O costume é ninguém ficar comigo durante a

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minha hora, a não ser a rainha. Não admitiria queoutros ouvissem as palavras que pronunciodurante o acesso. O problema é convencer osgnomos. Acho que já estão subindo a escada.Entrem por aquela porta e se escondam. Fiquem láaté que voltem e me desamarrem; ou, se quiserem,voltem para cá e assistam ao meu delírio.

Os três aceitaram a sugestão. A porta,felizmente, dava para um corredor iluminado.Experimentaram várias portas e encontraram (oque lhes fazia muita falta) água corrente e até umespelho. Disse Jill :

� Ele nem para nos oferecer uma pia antesda ceia. Egoísta sujo!

� Quero saber uma coisa � disse Eustáquio.� Vamos ficar aqui ou vamos assistir aoencantamento?

� Acho melhor ficar aqui � disse Jill, semdominar, no entanto, a própria curiosidade.

� Nada disso: iremos para lá � falouBrejeiro. � Podemos obter uma informação

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qualquer. Não ponho a mão no fogo por aquelarainha; só pode ser uma bruxa, uma inimiga.Aqueles terrícolas não vão demorar a nos dar umapaulada na cabeça. Há um cheiro forte de perigo ede mentira, de mágica e de traição nesta terra; umcheiro que nunca senti em minha vida. Olho vivo,orelha em pé!

Voltaram ao corredor e empurraramlevemente a porta.

� Tudo bem � disse Eustáquio, querendodizer que os terrícolas não estavam mais por lá.

Voltaram todos assim para a sala ondetinham ceado.

A porta principal agora estava fechada,escondendo a cortina pela qual tinham entrado. Ocavaleiro negro estava sentado numa estranhacadeira de prata, à qual se achava amarrado pelostornozelos, joelhos, cotovelos, pulsos e cintura.Com a testa gotejada de suor, mostrava um rostoangustiado.

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� Entrem, meus amigos � disse ele,erguendo depressa os olhos. � Ainda não chegou oacesso. Não façam barulho, pois falei para ofofoqueiro do camareiro que vocês estavamdormindo. Agora... estou começando a sentir.Depressa! Escutem enquanto sou dono de mim.Durante o acesso, pode ser que eu lhes implore,que os ameace para que me desamarrem. Dizemque faço isso. Posso pedir em nome do que há demais sagrado e do que há de mais horrível. Masnão me obedeçam. Fechem o coração e osouvidos. Enquanto eu estiver amarrado, estarãosalvos. Mas se eu me livrar desta cadeira, tereiprimeiro um ataque de fúria e depois � eleestremeceu � serei transformado em monstruosaserpente.

� De nossa parte pode ficar tranqüilo �disse Brejeiro �, ninguém irá soltá-lo. Nãoestamos com a menor vontade de enfrentar umhomem selvagem e muito menos uma serpente.

� Isso mesmo � disseram Eustáquio e Jill aomesmo tempo.

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� De qualquer jeito � acrescentou Brejeironum cochicho �, é melhor não ficarmos tãoconfiantes. Já estragamos outras coisas. Ele vaificar astuto quando a coisa começar, podem crer.Podemos confiar uns nos outros? Vamos prometertodos que, aconteça o que acontecer, nãotocaremos nessas cordas. Prestem atenção:aconteça o que acontecer, diga ele o que disser!

� Claro! � disse Eustáquio. E Jill :

� Não existe neste mundo nada que ele digaque me faça mudar de opinião.

� Silêncio. Está acontecendo alguma coisa� disse Brejeiro.

O cavaleiro começava a gemer. Seu rostoestava pálido como cal. O corpo se contorcia nasamarras. Por compaixão dele ou por outro motivoqualquer, Jill o achava agora melhor pessoa doque antes.

� Ah � gemeu o cavaleiro � oencantamento... as teias geladas, duras e viscosasda magia negra. Arrastado pelas profundezas da

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terra, pela negra escuridão... há quantos anos? Háquanto tempo estou na fossa? Há dez anos? Hámil anos? Estas larvas humanas que me rodeiampor todos os lados! Oh, piedade! Quero sair, querovoltar. Quero sentir de novo o vento e contemplaro céu... Havia um poço. Quando eu olhava ládentro via as árvores de cabeça para baixo, tãoverdes, e mais abaixo, no fundo profundo, o céuazul.

Falava em voz baixa, mas ergueu a testa efixou os olhos neles, dizendo com voz clara:

� Depressa! Estou bem agora. Todas asnoites é assim. Se pudesse livrar-me desta cadeira,continuaria bem para sempre. Seria outra vez umhomem. Todas as noites eles me amarram, e todasas noites a minha esperança se desfaz. Mas vocêsnão são inimigos. Não sou prisioneiro de vocês.Depressa! Cortem as amarras.

� Não se mexam! � comandou Brejeiro.� Imploro que me ouçam � disse o

cavaleiro, esforçando-se para falar comserenidade. � Disseram que se eu me libertar da

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cadeira iria matá-los e virar uma serpente? Pelaexpressão de vocês, foi o que disseram. Émentira! Agora, neste momento, é que estou emminhas condições normais: durante o resto dotempo vivo enfeitiçado. Vocês não são terrícolas,nem a menina é uma feiticeira. Vão ficar do ladodeles? Cortem as amarras, por obséquio.

� Não se mexam! Não se mexam! �disseram os três.

� Corações de pedra � disse o cavaleiro. �Acreditem em mim: contemplam um desgraçadoque já sofreu mais do que um mortal poderiasuportar. Que mal lhes fiz? Por que ajudam oinimigo a manter-me nesta infelicidade? Osminutos correm. Agora poderão salvar-me.Terminada a hora, ficarei novamente sem juízo...voltarei a ser o brinquedo, o cachorrinho, oinstrumento de uma diabólica feiticeira queplaneja a desgraça dos humanos. E logo hoje, queela não está, vocês me privam de uma chance quepoderá jamais reaparecer!

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� Isso é de matar! Teria sido melhor se agente tivesse ficado lá dentro até que terminasse oacesso � disse Jill.

O prisioneiro começou a esganiçar.� Soltem-me! Quero a minha espada!

Minha espada! Durante mil anos os terrícolas selembrarão da minha vingança!

� O delírio está começando � disseEustáquio. � Espero que estes nós agüentem orepuxo.

� Pois é � disse Brejeiro. � Vai ficar com aforça duplicada. E eu não sou muito bom naespada. Ele vai nos liquidar primeiro e Jill ficarápara enfrentar a serpente.

O prisioneiro estava tão tenso que asamarras lhe cortavam os pulsos e tornozelos.

� Cuidado! � disse ele. � Cuidado! Umanoite parti as amarras. Mas a feiticeira estavaaqui. Livrem-me agora, e serei seu amigo. Docontrário, serei um inimigo mortal.

� Esperto, hein? � falou Brejeiro.

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� De uma vez por todas � bradou oprisioneiro �, peço que me libertem. Em nome detodos os terrores, em nome de todos os amores,em nome dos céus luminosos do Mundo de Cima,em nome do grande Leão, do próprio Aslam, euordeno...

� Oh! � gritaram os três como se doesse.� É o sinal � disse Brejeiro.� A palavra anunciada pelo sinal � replicou

Eustáquio, mais cauteloso.� E agora? � clamou Jill.

Terrível problema. De que valia terprometido jamais libertar o cavaleiro, se ofizessem agora? Por outro lado, de que valia teraprendido o valor dos sinais caso nãoobedecessem a eles? Aslam desejaria que elessoltassem qualquer um... mesmo um doidovarrido... que pedisse em seu nome? Ou poderiaser uma coincidência? E se a rainha doSubmundo, sabendo a respeito dos sinais, tivesseensinado ao cavaleiro o nome de Aslam para

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atraí-los à armadilha? Mas, supondo que fosse defato o sinal... Já tinham falhado em três; seriademais deixar fugir o quarto.

� Se a gente pelo menos soubesse! �suspirou Jill.

� Acho que sabemos � disse Brejeiro.� Acha que dará tudo certo se o

desamarrarmos? � perguntou Eustáquio.� Não, isso eu não sei � respondeu Brejeiro.

� Vejam: Aslam não contou para Jill o queaconteceria. Disse apenas o que fazer. Esse sujeitovai ser a nossa morte, não tenho a menor dúvida.Mas, mesmo assim, não podemos deixar deobedecer aos sinais.

Miraram-se com os olhos luzindo e assimficaram durante aqueles detestáveis instantes.

� Pronto! � gritou Jill subitamente. �Vamos logo. Adeus, pessoal! � Despediram-se,enquanto o cavaleiro começava a berrar e a botarespuma pela boca.

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� Vamos, Eustáquio � disse Brejeiro.Puxaram as espadas e caminharam até o cativo.

� Em nome de Aslam � disseram, passandoimediatamente a cortar as amarras.

Ao ver-se livre, o cavaleiro negro cruzou asala decidido e empunhou a própria espada (queestava sobre a mesa).

� Você em primeiro lugar! � bradou,atacando a cadeira de prata.

Devia ser uma excelente espada. A pratacedeu a seu gume, e num momento só unsfragmentos brilhantes da cadeira restavam nochão. Mas, ao ser destroçada, a cadeira soltou umclarão, trovejando; um cheiro nauseabundopercorreu a sala.

� Fique aí, imundo instrumento de feitiçaria� disse ele �, para que jamais sirva ao tormentode outra vítima.

Observou então seus salvadores; o quehavia de errado na sua expressão, fosse o quefosse, desaparecera.

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� Não me diga! � bradou, ao dar comBrejeiro. � Será que estou vendo na minha frenteum paula-ma... um paulama de verdade, umnarniano?

� Ah, enfim já ouviu falar de Nárnia?! �disse Jill.

� Tinha me esquecido quando enfeitiçado.Bem, agora esta e outras artes do diabo chegaramao fim. Conheço bem Nárnia, estejam bem certos,pois sou Rilian, príncipe de Nárnia, filho deCaspian, o Grande.

� Real Alteza � murmurou Brejeiro,vergando um joelho (e as crianças o imitaram) �,aqui viemos apenas para buscá-lo.

� E quem são os outros dois libertadores? �perguntou o príncipe, voltando-se para Eustáquioe Jill.

� Fomos enviados por Aslam de além dofim do mundo para que o encontrássemos, Alteza� respondeu Eustáquio. � Meu nome é Eustáquio.Viajei com seu pai até a Ilha de Ramandu.

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� Tenho para com os três uma dívida quejamais poderei pagar � disse o príncipe. � Mas...meu pai... ainda está vivo?

� Viajou para o Oriente antes quedeixássemos Nárnia, meu senhor � informouBrejeiro. � Mas Vossa Alteza deve considerar queo rei está muito idoso. Tem uma possibilidade emdez de sobreviver à viagem.

� Está velho, diz você. Por quanto tempoentão estive sob o poder da bruxa?

� Há mais de dez anos que Vossa Alteza seperdeu na floresta ao norte de Nárnia.

� Dez anos! � exclamou o príncipe, levandoa mão ao rosto como se quisesse limpar-se dotempo. � Acredito. Pois agora que sou eu mesmoposso me lembrar de minha existência encantada,embora não pudesse saber quem eu era quandovivia sob a maldição. E agora, meus amigos... ummomento! Ouço as passadas deles nos degraus.Não é de enlouquecer essa pisada de novelo de lã?Feche a porta, rapaz. Não, espere. Tenho umaidéia melhor. Vou tapear esses terrícolas, se

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Aslam me ajudar. Representem de acordo com oque eu fizer.

Caminhou resolutamente e escancarou aporta.

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A RAINHA DOSUBMUNDO

Dois terrícolas surgiram, mas não entraramna sala; postaram-se nos lados da porta e fizeramuma grande reverência. Foram seguidos logo pelaúltima pessoa que os quatro esperavam oudesejavam ver: a Dama do Vestido Verde. Arainha do Submundo estacou imobilizada noportal. Podiam ver seus olhos se movimentandoenquanto ela se inteirava de toda a situação: ostrês estranhos, a cadeira de prata em frangalhos, opríncipe solto, de espada em punho.

Ficou branquíssima, de um branco (pensouJill) que sobe à face de certas pessoas, não quandoestão com medo, mas quando estão furiosas. Por

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um instante fixou os olhos no príncipe, olhos dequem vai matar. Depois pareceu mudar de idéia.

� Saiam � ordenou aos terrícolas. � Nãoquero ser perturbada até que eu chame, sob penade morte.

Os gnomos saíram com suas passadas fofase a rainha-bruxa trancou a porta.

� Como está, meu príncipe? Seu acessonoturno ainda não veio, ou será que passoudepressa? Por que está aí desamarrado? Quem sãoestes estrangeiros? Foram eles que destruíram suacadeira, a sua única salvação?

O príncipe Rilian estremeceu. E não é de seadmirar, pois não é fácil libertar-se em meia horade um sortilégio que nos escravizou durante dezanos. Falando com grande esforço, disse ele:

� Senhora, não há mais necessidade destacadeira. E a senhora, que me falou cem vezessobre a compaixão que sentia por mim, vítima dehorrendas feitiçarias, saberá com alegria que estasacabaram para sempre. Houve, parece, certo erro

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na sua maneira de tratá-las. Estes, meus amigossinceros, libertaram-me. Agora, em perfeitascondições de juízo, há duas coisas que gostaria dedizer-lhe. Primeiro: quanto ao seu desejo deenviar-me à frente de um exército para submeter oMundo de Cima pelas armas e coroar-me rei deuma nação que jamais me fez o menor mal,assassinando seus chefes e derrocando o tronocomo um tirano sanguinário, agora que sou eumesmo, devo declarar que me repugnacompletamente tal vilania. Segundo: sou filho dorei de Nárnia, Rilian, o filho único de Caspian X,e que alguns chamam de Caspian, o Navegador.Assim sendo, senhora, é meu dever partirimediatamente da corte de Vossa Majestade,seguindo para minha pátria. Queira concedersalvo-conduto a mim e a meus amigos, e alguémque nos guie em seu reino de sombras.

A bruxa nada disse, mas andouvagarosamente pela sala, conservando os olhosfixos no príncipe. Ao chegar a uma arca não longeda lareira, abriu-a, apanhando lá dentro umpunhado de pó verde, que atirou ao fogo. Não fez

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o fogo arder muito, mas um aroma muito doce einebriante encheu a sala. Durante a conversa quese seguiu o cheiro foi ficando mais intenso,dificultando o ato de pensar. Em seguida, elapegou um instrumento meio parecido com umbandolim e começou a tocar um repenicadomonótono que se fez despercebido depois depoucos minutos. Também isso atrapalhava oraciocínio. Depois de ter tocado por algum tempo,com o aroma doce cada vez mais forte, começou adizer numa voz macia:

� Nárnia? Nárnia? Ouvi Vossa Altezapronunciar esse nome durante os delírios. Queridopríncipe, você está muito doente. Não há nenhumaterra chamada Nárnia.

� Há sim, madame � interrompeu Brejeiro.� Eu mesmo passei lá minha vida inteira.

� Que interessante! � disse a bruxa. � Masdiga-me por favor uma coisa: onde é essa terra?

� Lá em cima � respondeu Brejeiro,decidido, apontando para o teto. � Mas onde ficaexatamente, não sei.

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� Como assim? � perguntou a rainha, comuma risadinha musical. � Existe então um país láem cima, no meio das pedras e do reboco do teto?

� Não � respondeu Brejeiro, respirandocom certa dificuldade. � O país fica por cima. É oMundo de Cima.

� E onde fica... como é o nome... esseMundo de Cima?

� Oh, deixe de bancar a boba � disseEustáquio, que lutava contra o encantamentoproduzido pelo doce aroma e o repenicar dobandolim. � Como se não estivesse cansada desaber! É lá em cima, lá onde você pode ver o céu,o Sol e as estrelas. Esta é boa! Você já esteve lá!Nós nos encontramos lá!

� Peço seu perdão, irmãozinho � riu-se abruxa, uma delícia de riso. � Não me lembro desseencontro. Quando sonhamos é que costumamosencontrar os nossos amigos em lugares estranhos.Mas, a não ser que sonhemos o mesmo sonho, nãoé razoável pedir que se lembrem.

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� Senhora � disse o príncipe gravemente �,já lhe disse que sou filho do rei de Nárnia.

� E será, meu amigo � disse a rainha numavoz ciciante, como se estivesse acalmando umacriança �, será rei de muitas terras imaginárias.

� Também estivemos lá � falou Jill comimpertinência. Estava furiosa por perceber que ofeitiço ia tomando conta dela.

� E você também é rainha de Nárnia, não é,minha belezinha? � disse a feiticeira, na mesmavoz insinuante, mas meio zombeteira.

� Negativo � respondeu Jill, batendo com opé. � Nós somos de outro mundo.

� Ah, que maravilha! Diga-me, senhorita,onde fica esse outro mundo? Quais os navios ecarruagens que fazem o transporte de lá para cá?

Uma cachoeira de lembranças caiu sobreJill : o Colégio Experimental, sua casa, aparelhosde rádio, automóveis, aviões, engarrafamento,filas. Mas pareciam imagens apagadas e distantes.(Drum-drim-drim, repenicava o bandolim.) Jill

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não conseguia lembrar-se das coisas de nossomundo. E dessa vez não lhe ocorreu que estavasendo enfeitiçada, pois a magia atingira o auge.Surpreendeu-se dizendo (e era um alívio dizê-lo)o seguinte:

� Acho que o outro mundo deve ser umsonho.

� Claro. O outro mundo é um sonho � dissea bruxa, sempre repenicando.

� Um sonho � repetiu Jill.

� Nunca existiu esse mundo � disse afeiticeira. Jill e Eustáquio falaram ao mesmotempo:

� Nunca existiu esse mundo.� Só existe um mundo � continuou a bruxa

�, o meu.� Só existe o seu mundo � disseram eles.

Brejeiro ainda tentava resistir:

� Não sei direito o que você entende porum mundo � disse, como alguém que não respira

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ar suficiente. � Mas pode tocar essa rabeca até queseus dedos caiam no chão; mesmo assim nuncavou me esquecer de Nárnia. E nem do Mundo deCima. Imagino que nunca mais o veremos, pois ébem provável que o tenha obscurecido como fez aeste mundo. Mas vou saber sempre que estive lá.Já vi o céu cheio de estrelas. Já vi o Sol nascendono mar e sumindo atrás das montanhas ao cair danoite. E vi também o Sol ao meio-dia, cujo brilhonos fere a vista.

As palavras de Brejeiro tiveram um efeitoestimulante. Os outros três respiraram de novo ese olharam como pessoas que despertam.

� Que Aslam abençoe o nosso bompaulama � disse o príncipe. � Estivemossonhando. Como iríamos esquecer? Todos nós jávimos o Sol.

� É claro que sim! � gritou Eustáquio. �Muito bem, Brejeiro. Você é o único aqui que nãoperdeu o juízo.

E mais uma vez se ouviu a voz da feiticeiraarrulhando como uma pomba-rola no alto da

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árvore de um velho quintal, às três horas de umasonolenta tarde de verão:

� De que sol vocês estão falando? Essapalavra significa alguma coisa?

� Significa muito! � respondeu Eustáquio.� Poderiam contar-me como é o sol?

(Drum-drim-drum.)� Por obséquio, Majestade � disse o

príncipe, com fria polidez. � Vê aquela lâmpadaredonda e amarela iluminando a sala? O quechamamos Sol é parecido, só que é muito maior emuito mais brilhante e ilumina todo o Mundo deCima. E em vez de estar preso no teto, está soltono céu.

� Solto onde? � E enquanto pensavam naresposta, ela prosseguiu, com uma de suasrisadinhas melodiosas: � Estão vendo? Quandovocês procuram saber o que deve ser realmente otal de sol, não conseguem. Só sabem dizer queparece uma lâmpada. O sol de vocês é um sonho,e não há nesse sonho nada que não tenha sido

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copiado de uma lâmpada. A lâmpada é real; o solnão passa de uma invenção, uma história paracrianças.

� Ah, sim, é verdade � disse Jill com umavoz pesada e sem esperança. � Deve ser issomesmo. � E acreditava que estava sendo muitosensata.

Lenta, gravemente, a feiticeira repetia:�Não há Sol.� E eles nada mais diziam. �Não háSol� � ela repetia, com a voz mais branda eprofunda. Depois de uma pausa e de um conflitoem seus espíritos, todos os quatro disseram:�Certo. Não há Sol.� Era um alívio desistir ereconhecer que o Sol nunca existira.

Nos últimos minutinhos Jill sentira quehavia alguma coisa da qual, a todo custo, tinha dese lembrar. E agora conseguia. Era entretantotremendamente difícil dizê-la. Sentia como seenormes fardos pesassem em sua boca. Por fim,com um esforço que pareceu exauri-la, disse:

� Aslam existe.

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� Aslam? � disse a feiticeira, apressandoligeiramente o repenicado de seu instrumento. �Que lindo nome! Que significa Aslam?

� Aslam é o grande Leão que nos chamoude nosso mundo � disse Eustáquio � e aqui nosenviou em busca do príncipe Rilian.

� Leão, o que é um leão? � perguntou abruxa.

� Ora, não amole � respondeu Eustáquio. �Não sabe? Como é que eu vou descrever um leão?Já viu um gato?

� Claro, adoro gatos � respondeu afeiticeira.

� Bem, um leão é um pouquinho... só umpouquinho, hein... parecido com um gato enormecom uma juba. E é amarelo. E é incrivelmenteforte.

A feiticeira balançou a cabeça:� Acho que o leão de vocês vale tanto

quanto o sol. Viram lâmpadas, e acabaramimaginando uma lâmpada maior e melhor, a que

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deram o nome de sol. Viram gatos, e agoraquerem um gato maior e melhor, chamado leão. Épuro faz-de-conta, mas, francamente, já estãomeio crescidos demais para isso. Já repararam queesse faz-de-conta é copiado do mundo real, domeu mundo, que é o único mundo? Já estãograndes demais para isso, jovens. Quanto ao meupríncipe, um homem feito, que vergonha!Brincando depois de grande! Venham. Esqueçamessas fantasias infantis. Tenho trabalho para vocêsno mundo real. Não há Nárnia, não há Mundo deCima, não há céu, nem Sol, nem Aslam. Agora,cama. E vamos começar vida nova amanhã.Primeiro, cama. Dormir. Dormir bem, umtravesseirinho macio, um sono sem sonhos bobos.

O príncipe e as duas crianças estavam decabeça caída, as faces coradas, os olhossemicerrados; fugira-lhes toda a energia, osortilégio era quase total. Mas Brejeiro, juntandodesesperadamente o resto de suas forças,caminhou até a lareira. E praticou então umaproeza de rara coragem. Sabia que não doeriatanto quanto em um ser humano, pois seus pés

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(sempre nus) eram membranosos, duros e frioscomo pés de pato. Mas sabia que iria doerbastante; mesmo assim o fez: espezinhou asbrasas, apagando um pouco o fogo. Três coisasaconteceram.

Primeiro: o doce e pesado aroma diminuiumuito. O cheiro de paulama assado, que não éinebriante, predominou na sala. O cérebro detodos ficou mais limpo. O príncipe e as criançasergueram as cabeças e abriram os olhos.

Segundo: a feiticeira, num tom terrível,completamente diferente da voz doce que haviausado até então, deu um berro:

� O que está fazendo? Se ousar tocar nomeu fogo outra vez, porcalhão imundo, voutransformar em fogo o sangue de suas veias!

Terceiro: a própria dor esclareceucompletamente a cabeça de Brejeiro, pois não hánada como um impacto doloroso para desfazercertas espécies de magia.

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� Uma palavrinha, dona � disse ele,mancando de dor �, uma palavrinha: tudo o quedisse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo desaber tudo para enfrentar o pior com a melhor carapossível. Não vou negar nada do que a senhoradisse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foifalada. Vamos supor que nós sonhamos, ouinventamos, aquilo tudo � árvores, relva, sol, lua,estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos:ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem umbocado mais importantes do que as coisas reais.Vamos supor então que esta fossa, este seu reino,seja o único mundo existente. Pois, para mim, oseu mundo não basta. E vale muito pouco. E o queestou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem.Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é quea senhora tem razão, dona. Mas quatro criançasbrincando podem construir um mundo debrinquedo que dá de dez a zero no seu mundoreal. Por isso é que prefiro o mundo de brinquedo.Estou do lado de Aslam, mesmo que não hajaAslam. Quero viver como um narniano, mesmoque Nárnia não exista. Assim, agradecendo

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sensibilizado a sua ceia, se estes dois cavalheirose a jovem dama estão prontos, estamos de saídapara os caminhos da escuridão, onde passaremosnossas vidas procurando o Mundo de Cima. Nãoque as nossas vidas devam ser muito longas,certo; mas o prejuízo é pequeno se o mundoexistente é um lugar tão chato como a senhora diz.

� Boa! Viva! Cem por cento, Brejeiro! �gritaram Eustáquio e Jill.

Mas ouviu-se de súbito a voz do príncipe:� Vejam! A feiticeira!Quase ficaram de cabelos em pé.O instrumento caíra-lhe das mãos. Os

braços pareciam ter entrado para dentro do corpo.As pernas estavam entrelaçadas. Os pés tinhamdesaparecido. A cauda do vestido foi-seengrossando e acabou sólida, juntando-se com acoluna de suas pernas entrelaçadas. E essa colunaera mole, revirando-se, como se não possuíssearticulações. Sua cabeça era empurrada para trás,enquanto o nariz ia ficando mais comprido, mais

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comprido; as outras partes do rosto foramsumindo, menos os olhos, agora uns olhosimensos e chamejantes, sem sobrancelhas nemcílios. Tudo isso exige tempo para ser escrito, masaconteceu tão depressa que só houve tempo dever. Antes que se pudesse fazer qualquer coisa, atransformação estava completa: a grande serpente,verde como o veneno, grossa como a cintura deJill, já enrolara três anéis de seu repulsivo corponas pernas do príncipe. Rápida como umrelâmpago, deu um outro bote, tentando agarrar obraço que segurava a espada. Mas Rilian ergueuos braços, safando-se; o nó vivo apertou seu peito,pronto para partir-lhe as costelas.

O príncipe agarrou o pescoço da criaturacom sua mão esquerda, tentando apertá-lo atésufocá-la. A cara da feiticeira (se é que se podechamar de cara) estava então a um palmo do rostodele. A língua bifurcada tremelicavahorrivelmente para dentro e para fora, sem poderatingi-lo. Com a mão direita, Rilian puxou aespada e golpeou com toda a força. Eustáquio eBrejeiro também puxaram das armas e correram

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em auxílio. Os três golpes foram desferidossimultaneamente: o de Eustáquio (nem chegou aferir as escamas) no corpo da serpente, abaixo damão do príncipe; os golpes deste e de Brejeiro, noentanto, atingiram o pescoço. Não foi suficientepara matar, mas a coisa começou a soltar aspernas e o peito de Rilian. Golpes repetidosdeceparam-lhe a cabeça. A medonha coisacontinuou a enroscar-se e a mover-se muito tempodepois de morta. O chão ficou uma imundície.

O príncipe, quando pôde respirar,agradeceu a cooperação dos amigos. Os trêsvencedores ficaram olhando um para o outro,arfantes, durante longo tempo, sem uma palavra.Jill, com muita sabedoria, sentou-se a um canto eficou quieta, pensando apenas: �Espero nãodesmaiar... não choramingar... nem fazer qualqueroutra coisa idiota.�

� Minha mãe está vingada � disse Rilianpor fim. � Sem dúvida nenhuma, era este omesmo verme que persegui em vão perto da fonteda floresta de Nárnia, há muitos anos. Durante

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todo este tempo fui o escravo da assassina deminha mãe. De qualquer modo, alegra-me que afeiticeira tenha tomado a forma de uma serpente.Não ficaria bem ao meu coração e à minhadignidade matar uma mulher. Mas vamos ver anossa dama.

Referia-se a Jill.

� Senhorita � disse o príncipe, inclinando-se �, louvo a sua grande coragem. Deve corrersangue nobre em suas veias. Venham, meusamigos. Temos ainda um pouco de vinho. Vamosa um brinde e a uma pausa antes de estabelecernossos planos.

� Excelente idéia, Alteza � disse Eustáquio.

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O SUBMUNDO SEMRAINHA

Naquele momento, todos sentiam merecer oque Eustáquio chamou de uma �pausa para umdescanso�. A feiticeira trancara a porta, dizendoaos terrícolas que não a perturbassem; não haviaassim, por enquanto, perigo de interrupção. Oprimeiro problema era naturalmente o péqueimado de Brejeiro. Duas camisas apanhadasno quarto do príncipe, desfeitas em tiras e untadascom manteiga e óleo de cozinha, serviram decurativo.

Depois sentaram-se para espairecer umpouco e discutir os planos de fuga.

Rilian explicou que havia muitas saídaspara a superfície; já havia passado por quase todas

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em diversas ocasiões. Mas jamais fora sozinho,somente com a feiticeira; e sempre alcançara taissaídas depois de uma viagem de barco através doMar sem Sol.

O que os terrícolas diriam se ele fosse até ocais sem a feiticeira, na companhia de trêsestrangeiros, e, sem mais nem menos, pedisse umbarco, ninguém podia imaginar. O mais provávelé que fizessem perguntas embaraçosas. A novasaída, destinada à invasão do Mundo de Cima, erado lado de cá do mar, a uns poucos quilômetros.Estava quase terminada, com pouquíssimosmetros de terra a separá-la do céu aberto. Talvezaté estivesse terminada. Era possível que afeiticeira tivesse voltado para informar-lhe isso epreparar o ataque. E, ainda que a obra nãoestivesse pronta, eles próprios poderiam acabá-laem poucas horas, desde que conseguissem atingi-la sem serem detidos... e desde que não houvesseguardas no túnel.

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� Se querem a minha opinião � começou adizer Brejeiro, imediatamente interrompido porEustáquio.

� Que barulho é esse?� É o que estou me perguntando já há

algum tempo � falou Jill.

Todos de fato já estavam ouvindo o ruído,mas este começara e aumentara tãogradativamente que não sabiam quando operceberam. Durante algum tempo fora apenascomo o farfalhar de brisas ou como o barulho dotrânsito ao longe. Depois era como se fosse o marse espraiando. Então vieram estrépitos e roncos.Agora parecia haver vozes e também um bramidoque não era de vozes.

� Pelo Leão � disse o príncipe Rilian �,parece que esta terra silenciosa aprendeufinalmente a falar. � Foi à janela e afastou ascortinas. Os outros juntaram-se em torno.

Um grande clarão vermelho foi a primeiracoisa que notaram. O reflexo produziu uma

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mancha rubra no teto do Submundo a centenas demetros acima deles, e assim puderam ver um tetorochoso que talvez estivesse oculto nas trevasdesde que o mundo fora criado. O clarão vinha dolado mais distante da cidade, de modo que muitosprédios, imponentes e sinistros, estampavam-sesombrios. Mas o clarão também iluminava muitasruas que se dirigiam para o castelo. Nessas ruasalgo de muito estranho se passava. As multidõescompactas de terrícolas tinham sumido. No lugardelas, figuras disparavam de um lado para outro,sós ou em grupos de duas ou três. Comportavam-se como pessoas que não desejavam ser vistas:emboscando-se na sombra de colunas ou portais elançando-se depois, rapidamente, em novosesconderijos. O mais estranho de tudo, para quemconhece os gnomos, era o barulho. Gritos vinhamde todas as direções. Do cais chegava um bramidosurdo que foi crescendo a ponto de quase fazerestremecer toda a cidade.

� O que está acontecendo? � perguntouEustáquio. � Estão mesmo berrando?

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� Não creio � respondeu o príncipe. �Nunca ouvi nenhum desses salafrários ao menoserguer um pouco a voz em todos esses anos decativeiro. Alguma novidade diabólica, não podehaver dúvida.

� E aquela luz vermelha lá em cima? �perguntou Jill. � Será que alguma coisa estápegando fogo?

� Se você me perguntasse � interveioBrejeiro � eu diria que é o fogo central da terrairrompendo para produzir um novo vulcão.Estaremos bem na boca, é claro.

� Vejam aquele barco! � disse Eustáquio. �Por que vem tão depressa? E não tem remador!

� Olhem, olhem! � bradou o príncipe. � Obarco está em cima da rua! Olhem lá! Todos osbarcos estão entrando pela cidade. O mar estásubindo. Este castelo, louvado seja Aslam, estábem no alto, mas as águas estão subindoterrivelmente depressa.

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� Que diabo pode estar acontecendo? �perguntou Jill. � Fogo e água e aquela genteesquivando-se pelas ruas.

� Vou dizer-lhes o que se passa � disseBrejeiro.

� A feiticeira lançou eflúvios mágicos paraque o seu reino fosse destroçado depois de suamorte. Não se importava muito de morrer, desdeque também morresse queimado, ou enterrado, ouafogado, aquele que a matasse.

� Acertou no alvo, meu amigo � disse opríncipe. � Quando nossas espadas deceparam acabeça da feiticeira, os golpes puseram fim ao seupoder de magia: as Terras Profundas estão searrastando. Estamos assistindo ao fim doSubmundo.

� Exatamente, Alteza � falou Brejeiro. � Anão ser que seja o fim de todos os mundos.

� Espere aí, gente: vamos ficar aqui...aguardando? � perguntou Jill.

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� Não por mim � respondeu o príncipe. �Vou salvar meu cavalo e o da feiticeira (um nobreanimal, que merecia um dono melhor); estão noestá-bulo do pátio. Depois vamos procurar umaterra mais alta e torcer para encontrar uma saída.Cada cavalo poderá levar dois; creio queconseguirão atravessar a correnteza.

� Por que Vossa Alteza não coloca aarmadura? � perguntou Brejeiro. � Não gosto dojeito daqueles ali � e apontou para a rua. Dezenasde criaturas (percebiam agora que se tratava deterrícolas) vinham do caís. Mas não caminhavamcomo uma multidão sem objetivo. Agiam comosoldados de uma tropa de assalto, ocultando-sedepois de cada corrida, procurando não ser vistosdas janelas do castelo.

� Não tenho coragem de meter-me outravez dentro daquela armadura � disse o príncipe. �Cavalguei naquilo como se estivesse dentro de umcalabouço ambulante; aquilo cheira mal, a magiae escravidão. Mas pegarei o meu escudo.

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Deixou a sala e voltou com um estranhobrilho nos olhos:

� Vejam só, meus amigos � e exibiu oescudo para eles. � Há uma hora este escudo eranegro e não tinha emblema. Vejam agora. �Brilhava como prata e, mais rubra do que umacereja, estampava-se nele a figura do Leão. � Semdúvida � continuou o príncipe � isso quer dizerque Aslam será nosso guia, quer nos reserve amorte ou a vida. Ajoelhemos primeiramente parabeijar sua imagem; depois apertemos as mãos unsdos outros, como sinceros amigos que em breve sedespedem. Desceremos em seguida à cidade eaceitaremos o nosso destino.

O príncipe abriu a porta, e desceram asescadas: os três com as espadas em punho e Jillcom seu canivete. Os serviçais tinhamdesaparecido e a sala estava vazia. As luzescinzentas e lúgubres ainda ardiam, não sendoassim difícil vencer uma galeria depois de outra edescer as numerosas escadas. Os ruídos do lado defora do castelo já não eram tão perceptíveis como

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antes. Tudo continuava quieto e abandonado. Sóquando dobraram um corredor que dava para osalão nobre é que encontraram o primeiro terrícola� uma criatura gorda e esbranquiçada, com umacara de leitão, e que estava a deglutir vorazmenteos restos de comida deixados sobre as mesas.Guinchou (e esse guincho também lembrava a vozdos porcos), sumiu para debaixo de um banco,sacudindo a cauda, e antes que Brejeiro oatingisse, disparou na direção da porta sem quepudesse ser perseguido.

Do salão passaram ao pátio. Jill, quefreqüentara uma escola de equitação aosdomingos, sentiu o cheiro de estábulo (um cheirosimpático e familiar quando aspirado num lugarcomo o Submundo).

� Caramba! � disse Eustáquio � Olhem ali!Um belo foguete subia de alguma parte eestourava em lágrimas verdes.

� Fogos de artifício! � exclamou Jill,intrigada.

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� Certo � disse Eustáquio �, mas não vápensar que esses terrícolas estão se divertindo.Deve ser um sinal.

� Um sinal vermelho para nós, apesar deverde � disse Brejeiro.

� Amigos � disse o príncipe �, quando umhomem se lança numa aventura como esta, devedar adeus à esperança e ao medo; do contrário,tanto a morte quanto a libertação podem nãochegar a tempo de salvar-lhe a honra e a razão.Alô, belezas! � com esta frase, abriu o estábulo. �Quieto, Carvão! Calma, Floco de Neve!

Os cavalos estavam assustados com asluzes estranhas e com o barulho. Jill, que sesentira tão acovardada ao caminhar por um buracoescuro, aproximou-se sem medo dos bichosinquietos, ajudando o príncipe a colocar arreios erédeas. Estavam lindos ao cruzar o pátio,meneando a cabeça. Jill montava Floco de Nevecom Brejeiro à garupa. Com um ecoar de cascos,atravessaram o portão principal e ganharam a rua.

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� Bem, não corremos o risco de morrerqueimados � observou Brejeiro, apontando àdireita. � Gosto de olhar sempre o lado bom dascoisas. � A água batia ruidosamente contra asparedes das casas.

� Coragem! � disse o príncipe. � Esta rua éuma boa ladeira. A água subiu apenas até ametade da colina mais alta. Deve subir muito napróxima meia hora e pouco nas próximas duashoras. Tenho mais medo daquilo... � e apontoucom a espada para um comprido terrícola comfocinho de javali, seguido de mais uns seis deformas sortidas, que tinham deslizado de umaesquina e se ocultado na sombra.

O príncipe os conduzia, sempre na direçãodo clarão avermelhado, um pouquinho mais para aesquerda. Seu plano era contornar o fogo (casofosse fogo) e subir às terras altas, na esperança deencontrar o caminho do túnel novo. Ao contráriodos outros três, parecia bem satisfeito. Assoviavae às vezes cantarolava uma velha balada sobre olendário Corin Punhos de Ferro, da Arquelândia.

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A verdade é que estava tão feliz por ter-selibertado da magia negra, que os perigos dopresente não passavam de uma brincadeira. Paraos outros, é claro, a cavalgada era tenebrosa.

Atrás deles ouvia-se o ruído de barcosabalroados ou de prédios que desabavam. Acimavia-se a grande mancha de luz lúgubre. À frente, omisterioso clarão. Da mesma direção chegava umcontinuado alarido de gritos, choros, assovios,risos, guinchos, bramidos. Fogos de artifícioriscavam o ar. Ninguém era capaz de imaginar oque significavam. Nas cercanias, a cidade era emparte iluminada pelo clarão e pelas diferentesluzes dos sinistros lampiões dos gnomos. Masexistiam muitos lugares sem luz alguma,mergulhados em treva. Desses lugares ou paraeles é que saíam ou entravam correndo osterrícolas, sempre de olhos pregados nos quatro,sempre aflitos em busca de esconderijos. Haviacarinhas e carões, olhões de peixe e olhinhos deurso. Havia alguns emplumados, outros peludos,outros com chifres e trombas, alguns com narizem tira, outros de queixo tão comprido que batia

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no peito. Às vezes um grupo chegava bem perto.O príncipe brandia a espada e fingia atacá-los. Eas criaturas, com todos os tipos de pios, guinchose cacarejos, mergulhavam nas sombras.

Quando já tinham subido várias ladeiras ese achavam longe da inundação, quase fora dacidade, a coisa começou a ficar mais séria.Estavam próximos do clarão vermelho, emboraainda não soubessem o que fosse. Os inimigos,entretanto, podiam ser vistos com mais nitidez.Centenas � talvez milhares � de gnomos vinhamna direção deles. Mas aproximavam-se eminvestidas curtas; quando paravam, encaravam osquatro cavaleiros.

� Se Sua Alteza me perguntasse � disseBrejeiro �, eu ia dizer que aqueles caraspretendem cortar a nossa frente.

� É o que eu também acho. E nãopoderemos romper uma coluna tão numerosa.Vamos levar os cavalos para bem perto daquelacasa. Chegando lá, apeie e corra para a sombra. Asenhorita e eu iremos uns passos adiante. É claro

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que algum desses capetas irá nos seguir; entãovocê, que tem os braços compridos, pegue umdeles vivo (se conseguir). Podemos arrancaralguma verdade dele ou saber o que têm contranós.

� Mas os outros todos não vão cair sobrenós para salvar o companheiro? � perguntou Jill,esforçando-se para que sua voz não saíssetrêmula.

� Se acontecer isso, minha dama,morreremos em combate para protegê-la;encomende-se pois à proteção do Leão. Agora,Brejeiro!

O paulama deslizou para a sombra comoum gato. Os outros continuaram. De repente,ouviram-se gritos de gelar o coração, misturados àvoz de Brejeiro: �Quieto! Assim você acaba semachucando. Puxa! Parece um porco entrando nafaca.�

� Boa caçada � exclamou o príncipe,voltando à sombra da casa. � Eustáquio, por favor,segure as rédeas de Carvão.

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Apeou. Os três se olharam em silêncioquando Brejeiro trouxe a presa para a luz. Era umpobre gnominho com menos de um metro. Tinhauma espécie de crista de galo no alto da cabeça,olhinhos rosados, a boca e o queixo tão grandesque parecia um mini-hipopótamo. Se nãoestivessem numa situação tão difícil, teriam caídona gargalhada.

� Bem, terrícola � disse o príncipe,mantendo a espada pertinho do pescoço doprisioneiro. � Agora você vai falar como umgnomo de bem, para conquistar a liberdade.Banque o patife conosco e será um terrícolamorto... � e voltando-se para Brejeiro: � Meucaro, como é que o gnomo poderá falar se vocêestá lhe tapando a boca?

� E também não poderá morder � disseBrejeiro. � Se eu tivesse a mão fraca e mole quevocês humanos têm (com todo o respeito a VossaAlteza). Agora já estaria sangrando. Nem mesmoum paulama agüenta ser tão mastigado.

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� Meu velho � o Príncipe disse para ognomo �, uma mordida e você morre. Deixe queele abra a boca, Brejeiro.

� Oo-ee-ee � guinchou o terrícola. � Solte-me! Solte-me! Não fui eu. Não fui eu que fiz isso.

� Não fez o quê? � perguntou Brejeiro.� O que Vossas Senhorias estão dizendo

que eu fiz � respondeu a criatura.

� Diga-me como se chama � disse oPríncipe � e o que vocês terrícolas estão tramandohoje.

� Ah, por favor, gentis cavalheiros �choramingou o gnomo. � Prometam que nãocontarão à reverendíssima Rainha nada do quevou contar.

� A reverendíssima Rainha, como você achama � disse o Príncipe, muito sério �, estámorta. Fui eu que a matei.

� O quê? � exclamou o gnomo,escancarando sua boca ridícula, espantado. �

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Morta? A feiticeira morreu? E pelas mãos deVossa Senhoria?

Ele deu um profundo suspiro de alívio eacrescentou:

� Bem, então Vossa Senhoria é um amigo!O príncipe puxou a espada um centímetro

ou dois. Brejeiro deixou a criatura ficar de pé. Ognomo olhou para os quatro viajantes, piscandoseus olhos vermelhos, deu uma ou duas risadinhase começou.

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O FUNDO DO MUNDO

� Meu nome é Golgo � disse o gnomo. �Vou dizer tudo o que sei. Há cerca de uma hora,estávamos todos indo para o trabalho � o trabalhodela, quero dizer � quietos e tristes como sempre.De súbito aconteceu um grande estrondo. E cadaum de nós pensou: �Ei, o que é isso? Há anos eanos que não canto, não danço, nem solto umbuscapé! Eu devia estar encantado. Ora, não voucarregar mais este peso, dane-se.� E nós todosatiramos no chão sacos, pacotes, ferramentas. E aítodos vimos aquele grande clarão vermelho. Todomundo pensou: �O que será isso? Qualquer coisadeve ter-se arrebentado e um belo clarão entrouaqui vindo da Terra Realmente Profunda, milharesde metros lá embaixo.�

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� Caramba! � exclamou Eustáquio. � Aindaexistem outros lugares embaixo deste?

� Oh, existem! � respondeu Golgo. �Lindos lugares; é o que chamamos de Bismo. Estepaís, o país da feiticeira, é o que nós chamamos deTerras Rasas. São muito próximas da superfície.Puxa! Horrível! É quase como se a gente estivessevivendo lá fora. Somos apenas pobres gnomos deBismo, trazidos aqui por força dos chamadosmágicos da feiticeira. Ela precisava de mão-de-obra. Tínhamos esquecido de tudo até que oestrondo quebrou o encantamento. A gente nãosabia mais quem era e de onde era. Só pensava oque ela punha dentro das nossas cabeças. Duranteestes anos todos só tivemos pensamentossombrios e tristes. Cheguei quase a esquecercomo contar uma piada ou dançar. Mas noinstante em que o estrondo aconteceu, e umabrecha se abriu, e o mar começou a subir, eu melembrei de tudo. É claro que buscamos logo ocaminho da brecha para voltar à pátria. Vocêspodem ver os meus companheiros lá em cima

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soltando fogos de artifício. Ficarei muitoagradecido se me soltarem logo.

� Que coisa maravilhosa � exclamou Jill. �Que bom a gente ter libertado também os gnomosao decepar a cabeça da serpente. Que bom saberque eles não são de fato sinistros, como o príncipetambém não era... bem, aquilo que ele parecia ser.

� Tudo muito certinho, Jill � disse,cauteloso, Brejeiro. � Mas para mim estes gnomosnão estão apenas fugindo. Parecem mais umaexpedição militar. Olhe bem nos meus olhos, Sr.Golgo: vocês estão ou não estão se preparandopara uma batalha?

� É claro que estamos � respondeu Golgo. �Ninguém sabia que a feiticeira estava morta. Agente acreditava que ela estivesse espiando docastelo. Estávamos tentando cair fora sem servistos. Quando vocês apareceram a cavalo com asespadas, todo mundo pensou: �É agora.� Nãosabíamos que vocês não eram a favor da feiticeira.E estávamos dispostos a lutar até o fim, mas nãodesistir da esperança de voltar para Bismo.

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� Juro que aqui está um gnomo honesto �disse o príncipe. � Pode soltá-lo, Brejeiro. Fiquesabendo, meu bom Golgo, que também estiveencantado como você e seus amigos, e só hápouco me recuperei. Mais uma perguntinha: sabeo caminho para as escavações do túnel novo,aquele por onde a bruxa queria conduzir oexército?

� Riiii � ganiu Golgo. � Claro; conheçoesse caminho horroroso. Vou lhe mostrar ondecomeça. Mas não me peça para ir com vocês:prefiro a morte.

� Por quê? � perguntou Eustáquio, aflito. �Que há de tão terrível?

� Perto demais do Sol � disse Golgo, comum arrepio. � Foi a pior coisa que a feiticeira nosfez. íamos ser levados para o aberto... para o ladode fora do mundo. Dizem que lá não existe teto:só um vasto vazio chamado céu. E as escavaçõesandam tão adiantadas que mais umas picaretadasfuram o resto do teto. Não quero nem chegarperto.

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� Oba, oba! � exclamou Eustáquio. � Agorasim você está falando bonito!

E Jill acrescentou:

� Mas o lugar não é horrível como vocêpensa. Gostamos de lá. Moramos lá.

� Sei disso. Mas pensava que só moravamlá porque não sabiam o caminho para cá. Só nãoacredito que gostem mesmo de lá... de viver comomoscas no topo do mundo!

� Que tal se nos mostrasse logo o caminho?� perguntou Brejeiro.

� Boa idéia � disse o príncipe.Partiram todos. O príncipe e Brejeiro

subiram no cavalo; Golgo abria o cortejo. Àmedida que avançava, ia gritando a boa nova: afeiticeira estava morta e os quatro cavaleiros doMundo de Cima não eram perigosos. Os queouviam iam gritando a sensacional notícia para osoutros e, em poucos minutos, todo o Submundoestava em festa com gritos e vivas; aos milhares,os gnomos vinham saltando, dando cambalhotas,

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plantando bananeiras, rodeando Carvão e Floco deNeve. O príncipe teve de contar a história doencantamento e da libertação pelo menos umasdez vezes.

Foi assim que acabaram chegando à beirada fenda. Tinha mais de trezentos metros decomprimento e uns duzentos de largura. Desceramdos cavalos e foram olhar da beira da fenda. Umcalor forte bateu-lhes no rosto, misturado a umcheiro bem diferente de todos os outrosconhecidos: intenso, agudo, excitante, eprovocava espirros. O fundo da brecha era tãobrilhante que a princípio os deslumbrou; nadapuderam ver. Quando se acostumaram puderamdistinguir um rio de fogo e, nas margens deste,campos e bosques de um fulgor quente einsuportável � embora fosse fosco, comparado aorio. Azuis e vermelhos, verdes e brancos, tudo semisturava. Pelas laterais ásperas da brecha, comopontos escuros contra a luz de fogo, centenas deterrícolas desciam.

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� Meus senhores � disse Golgo (e quandose viraram para ele nada viram durante algunssegundos) �, meus senhores, por que não fazemuma visita a Bismo? Seriam mais felizes lá do quenaquela terra nua e desprotegida lá de cima. Nãoprecisam demorar, se não quiserem.

Jill estava certa de que ninguém dariaatenção ao convite. Mas, horrorizada, ouviu opríncipe dizer:

� Está aí, Golgo amigo, já estou meioinclinado a ir com você. Não devemos perder umaaventura maravilhosa como esta; talvez nenhumhomem mortal tenha visitado Bismo. E eu nãosaberia, à medida que os anos fossem passando,como agüentar o arrependimento de não terexperimentado o que estava ao meu alcance:conhecer as profundezas da Terra. Mas pode umhomem viver lá? Vocês não moram no próprio riode fogo?

� Oh, não! Nós, não! Só as salamandrasvivem no próprio fogo.

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� Que espécie de salamandra? � perguntouo príncipe.

� Difícil dizer de que espécie. Doem navista. Parecem uns pequenos dragões. Falamconosco lá do fogo. São incrivelmenteinteligentes, muito engraçadas e talentosas.

Jill deu uma olhada para Eustáquio. Tinhacerteza de que ele gostaria ainda menos do que elada idéia de descer por aquela brecha. Seu coraçãogelou quando viu que a expressão dele mudara.Parecia-se muito mais com o príncipe do que comEustáquio do Colégio Experimental. Pois todas asaventuras que viveu em sua viagem com o reiCaspian estavam outra vez a excitá-lo.

� Alteza � disse ele �, se aqui estivesse meuvelho amigo Ripchip, ele diria que recusar asaventuras de Bismo seria desacreditar a nossahonra.

� Lá embaixo � disse Golgo � possomostrar-lhes ouro de verdade, prata de verdade,diamantes de verdade.

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� Besteira! � disse Jill grosseiramente. �Como se a gente, mesmo aqui, não estivesse porbaixo das minas mais fundas do mundo...

� Já ouvi falar � disse Golgo � que nacrosta da Terra há uns fiapinhos de metal quevocês chamam de minas. Mas lá encontraramsomente ouro morto, prata morta, diamante morto.Em Bismo eles são vivos e crescem. Lá poderãocomer um galho de rubis ou tomar um suco dediamante. É outra coisa.

� Meu pai foi até o fim do mundo � disseRilian pensativo. � Seria uma coisa formidável seo seu filho fosse até o fundo do mundo.

� Se Vossa Alteza ainda quer apanhar seupai vivo � disse Brejeiro �, e acho que ele gostariadisso, já é tempo de tomar o caminho do túnelnovo.

� Eu, por mim, não vou para aquele buracode jeito nenhum � acrescentou Jill.

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� Bem, se querem mesmo voltar para oMundo de Cima � disse Golgo �, há um trecho deestrada um pouquinho melhor.

� Oh, vamos logo, vamos! � implorou Jill.

� Que se há de fazer? � suspirou o príncipe.� Mas deixo um pedaço de meu coração emBismo.

� Por favor! � insistiu Jill.

� O caminho é todo iluminado � disseGolgo. � Vossa Alteza pode ver o princípio daestrada do outro lado da brecha.

� Por quanto tempo ainda duram as luzes? �perguntou Brejeiro.

Nesse instante uma voz cortante e sibilantecomo a voz do próprio fogo (ficaram a imaginarmais tarde se não seria a voz de uma salamandra)assoviou das profundezas de Bismo:

� Rápido! Rápido! Para o fosso, para ofosso! A fenda está fechando! Rápido! Rápido!

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Imediatamente, com estrépito, as rochasestremeceram. A brecha ficara mais estreita. Detodos os lados gnomos atrasados corriam para ela.Nem esperavam para descer pela rocha; pulavamde cabeça � ou porque um bafo de ar quentesoprava do fundo, ou por outra razão qualquer, ofato é que desciam planando como folhas. Eramtantos que quase ofuscaram o rio de fogo e osbosques de gemas vivas.

� Adeus para todos, já vou indo � gritouGolgo, mergulhando.

A brecha agora era da largura de um riachoe logo depois da largura de uma rachadura naparede. Por fim, como milhares de trens batendoem milhares de molas, a boca de pedra fechou-se.O cheiro quente desapareceu. Estavam sozinhosnum Submundo que agora parecia mais escuro doque antes. As lâmpadas, pálidas e lúgubres,assinalavam a direção da estrada.

� Aposto dez contra um � disse Brejeiro �que já é tarde demais, mas não custa tentar.

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Aposto também que essas lâmpadas não vãoagüentar mais do que cinco minutos.

Puseram os cavalos a galope e seguiram embonito estilo pela estrada em penumbra. Mas ocaminho começou a descer, e teriam pensado queGolgo lhes ensinara errado, caso não avistassem,do outro lado do vale, a fileira de luzesestendendo-se para cima. Mas no fundo do vale asluzes brilhavam sobre a água em movimento.

� Rápido � bradou o príncipe.Galoparam pela encosta. A maré invadia o

vale aos borbotões. Se tivessem de nadar,dificilmente os cavalos o conseguiriam. Mas aágua subira somente um meio metro, e puderamchegar salvos ao outro lado.

Começou aí a lenta e cansativa marchacolina acima, sem outra coisa à vista a não ser asluzes que subiam até se perderem na distância.Atrás, a água se espalhava, transformando emilhas as colinas do Submundo. A cada instantesumia mais uma lâmpada, coberta pelas águas.

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Em breve a escuridão era total, menos na estradaque percorriam.

Embora tivessem excelentes razões paragalopar, os cavalos não agüentariam sem umdescanso. Pararam. Ouviam no silêncio o baterruidoso da água.

� Acho que ele... como é mesmo o nome?...o Pai Tempo... foi coberto pelas águas � disse Jill.� E aqueles animais sonolentos.

� Acho que não � disse Eustáquio. � Não selembra de quanto tivemos de descer para chegarao Mar sem Sol? Acho que a água não chegou àcaverna do Pai Tempo.

� Talvez, talvez � comentou Brejeiro. �Estou mais interessado nas lâmpadas. Parecem umpouco fraquinhas, não é mesmo?

� Sempre foram assim � disse Jill.

� Não, agora estão mais verdes � disseBrejeiro.

� Você não quer dizer que elas vão seapagar, não é? � perguntou Eustáquio.

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� Bem, não se pode esperar que elas durema vida inteira � replicou o paulama. � Mas não sedeixem abater por isso. Estou também de olho naágua, e creio que ela não está subindo tantoquanto antes.

� Grande consolo, meu amigo � disse opríncipe �, se a gente não achar a saída. Peçoperdão a todos. A culpa é minha; por presunção eromantismo atrasei a viagem. Vamos em frente.

Durante algum tempo, Jill ora admitiu queBrejeiro pudesse estar certo em relação àslâmpadas, ora que fosse mera imaginação.

O teto do Mundo de Cima estava tãopróximo que, mesmo com aquela luz mortiça,podia ser avistado. As vastas e enrugadas paredesdo Mundo de Cima já eram visíveis. A estrada osconduzia de fato para um túnel íngreme.Passavam por picaretas, pás, carrinhos de mão eoutros sinais de trabalhos recentes. Se tivessem acerteza de estar saindo do buraco, tudo isso eramuito animador, mas a hipótese de seguir por um

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túnel cada vez mais estreito, mais difícil no casode um retorno, era extremamente desagradável.

O teto já estava tão baixo que Brejeiro e opríncipe lhe batiam com a cabeça. Desceram ecomeçaram a puxar os cavalos. A estrada ficarairregular e tinham de pisar com cuidado. Jill notoua escuridão crescente. Não havia mais dúvida. Osrostos dos outros pareciam estranhos e lívidos nopalor esverdeado. De repente Jill deu um gritinho.Uma luz, a primeira em frente, apagara-se. A detrás também. Estavam na escuridão total.

� Coragem, meus amigos � ouviu-se a vozdo príncipe Rilian. � Vivos ou mortos, Aslam seránosso guia.

� Perfeitamente, Alteza � era a voz de �Brejeiro. E sempre se pode lembrar que há umavantagem em morrer aqui: não se gasta dinheirocom enterro.

Jill mordeu a língua. (Quem não quermostrar o medo que está sentindo, deve ficar emsilêncio; é a voz que nos denuncia.)

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Brejeiro e Eustáquio seguiram na frente debraços estendidos, com receio de um encontrãoindesejável; Jill e o príncipe vinham atrás,puxando os cavalos.

Bem mais tarde ouviu-se a voz deEustáquio:

� Ou os meus olhos estão ficando meioesquisitos ou estou vendo luz lá em cima. Queacham?

Antes que alguém tivesse tempo deresponder, Brejeiro bradou:

� Parem. Cheguei a um lugar que não vaimais para frente. E é terra, não é pedra. Queestava dizendo, Eustáquio?

� Pelo Leão � disse o príncipe �, Eustáquioestá certo. Há uma espécie de...

� Mas não é a luz do dia � falou Jill. � Sóuma luz azul e fria.

� Melhor do que nada � replicou Eustáquio.� Podemos subir até lá?

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� Não dá � disse Brejeiro. � Jill, que tal sevocê subisse nos meus ombros e tentasse chegaraté lá?

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O DESAPARECIMENTO DEJILL

Os outros apenas podiam ouvir, mas nãoviam o esforço feito por Jill para subir aos ombrosdo paulama:

� Tire o dedo do meu olho... Olhe o pé naminha boca... Aí... Agora seguro suas pernas...Firme-se com as mãos na terra...

A sombra de Jill desenhava-se contra a luz.

� Como é? � gritaram todos ansiosos.� É um buraco � gritou Jill. � Espere um

pouco, Brejeiro: é melhor eu ficar em pé nos seusombros, em vez de sentada.

A figura recortou-se mais contra a luz,pondo-se de pé.

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� Parece... � começou a dizer Jill, mas derepente ouviu-se um grito, não um grito agudo,mas como se sua boca estivesse sendo abafada.Depois ela começou a gritar alto, mas nãoconseguiam entender o que dizia. O foco de luzpor um segundo sumiu; ouviram ao mesmo tempoum ruído de coisa arrastada e a voz do paulama:

� Depressa! Agarrem as pernas dela!Alguém está puxando Jill para cima! Já! Não,aqui! É tarde demais!

A abertura ficou novamente clara. Jillsumira.

� Jill! Jill! � berraram sem resposta.� Que droga! Por que você não agarrou os

pés dela? � perguntou Eustáquio.� Não sei � gemeu Brejeiro. � Já nasci

fracassado. É o destino. Estava escrito que euseria a causa da morte de Jill, como estava escritoque eu tinha de comer carne de Cervo Falante.Minha culpa, minha culpa!

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� Não poderia ter acontecido nada maistriste e vergonhoso � disse o príncipe. �Entregamos uma valente senhorita às mãos doinimigo, e aqui ficamos nós em segurança.

� Será que eu consigo passar por aqueleburaco? � perguntou Eustáquio.

Havia sucedido a Jill o seguinte: assim quepôs a cabeça para fora, percebeu que estavaolhando como se fosse do alto de uma janela, enão como se fosse de um alçapão no teto.Permanecera tanto tempo no escuro que seusolhos não puderam distinguir logo o que viam, anão ser que não estava diante do mundoensolarado que esperava. O ar pareciamortalmente gelado e a luz era azul e pálida.Havia ainda muito barulho e uma porção deobjetos brancos voando. Foi nesse momento queela pediu para subir aos ombros de Brejeiro.

Feito isso, pôde ver e ouvir muito mais.Havia dois tipos de ruído: a batida rítmica devários pés e a música de quatro rabecas, trêsflautas e um tantã. Percebeu também qual era a

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sua posição. Olhava de um buraco para umterreno em declive. Tudo era muito branco, emuitas pessoas se agitavam de um lado para outro.Aí começou a arquejar. As pessoas eram elegantesfaunos e dríades com os cabelos coroados defolhas a flutuar. Agitavam-se. Não, dançavam �uma dança de figuras e passos tão complicadosque era preciso algum tempo para entendê-la.Súbito ocorreu-lhe que a pálida luz azulada vinhado luar, e que a matéria branca no chão era neve.E, naturalmente, as estrelas luziam no céu escuro.As coisas altas e escuras, além dos dançarinos,eram árvores. Não tinham chegado a um lugarqualquer no Mundo de Cima, mas ao coração deNárnia. Jill achou que ia desmaiar de prazer. E amúsica � uma música agreste e muito suave, mastambém meio fantástica e impregnada de magiacomo o repenicado da feiticeira � aumentava odeslumbramento.

Leva-se tempo para contar, mas curto foi otempo de ver tudo isso. Virou-se logo paratransmitir aos outros a mensagem, gritando:�Parece que está tudo ótimo. Estamos em casa.�

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Não passou do �parece�, e o motivo é o seguinte:rodeando sem parar os dançarinos, havia umbando de anões, todos festivamente vestidos,quase todos de escarlate, com capuzes debruadosde peles, borlas douradas e grandes botas peludas.Enquanto giravam iam atirando bolas de neve(eram as coisas brancas que Jill tinha visto avoar). Não as atiravam nos dançarinos. Atiravam-nas nos espaços vazios, com uma precisãoperfeita. Era a chamada Grande Dança da Neve,que se realizava em Nárnia na primeira noite deneve com luar. Era ao mesmo tempo uma dança euma brincadeira, pois o dançarino que errasse umpouquinho recebia uma bolada de neve na cara, etodos davam risadas. Nas noites mais bonitas,com o luar, o pio das corujas, o tantan do tambor,a festa costumava prolongar-se até o raiar do dia.

Jill calou-se depois do �parece� porque umabola de neve acertara-lhe em cheio na boca. Nãodeu a mínima importância; só que não podia falar,por mais feliz que se sentisse. Depois de recuperara fala, chegou a esquecer-se de que os outrosainda não sabiam sobre aquelas grandes

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novidades: simplesmente inclinou-se para fora doburaco e gritou para os dançarinos:

� Socorro! Socorro! Estamos enterrados nacolina!

Os narnianos, que ainda não tinham notadoo buraco, olharam em várias direções, muitosurpresos. Logo que deram com a figura de Jillvieram correndo e umas dez mãos se estenderampara ela. Jill pulou para fora e deu uns passos,para depois dizer:

� Há mais três lá dentro; e um deles é opríncipe Rilian; cavem, por favor.

Já estava cercada pela multidão quandodisse isso, pois outras criaturas que assistiam àdança chegaram correndo. Esquilos choveram dasárvores, e também corujas. Ouriços apareceramcorrendo, tão depressa quanto lhes permitiam ascurtas perninhas. Uma grande pantera, remexendoa cauda com inquietação, foi a última a juntar-seao grupo.

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Logo que entenderam o que Jill estavadizendo, entraram em atividade.

� Picaretas e pás, pessoal, pás e picaretas! �disseram os anões, disparando para os bosques.

� Acordem as toupeiras. São ótimas paracavar, tão boas quanto os anões � disse uma voz.

� Que foi que ela disse sobre o príncipeRilian? � perguntou outra voz.

� Calma! � comandou a pantera. � A pobrecriança está enlouquecida, depois de tanto tempoperdida dentro da colina. Não sabe o que diz, éclaro.

� Isso mesmo � falou um velho urso. �Disse que o príncipe Rilian era um cavalo!

� Disse coisa nenhuma! � protestou umesquilo atrevido.

� Disse sim! � falou outro esquilo, aindamais atrevido.

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� É v-v-verdade! Não b-b-banque o b-b-bobo! � disse Jill, falando desse jeito porque seuqueixo batia de frio.

Uma das dríades enrolou-lhe um manto depele que um anão deixara cair ao passar correndoem busca de ferramentas. Um fauno obsequiosofoi até uma gruta no bosque buscar-lhe umabebida quentinha. Antes que ele voltasse, os anõesreapareceram com as ferramentas e atacaram acolina. Então Jill ouviu-os gritar: �Ei, o que vocêestá fazendo?� � �Abaixe essa espada, rapaz!� ��Nada disso, menino!� Eustáquio era um poucomais pesado e bem mais desajeitado que Jill eassim, quando olhou para fora, bateu a cabeçacontra o lado da abertura, causando uma pequenaavalancha de neve que caiu na sua cabeça,tapando-lhe os olhos. Por isso, quando conseguiuse safar da neve e viu dezenas de pessoascorrendo rapidamente para o seu lado, tentou sedefender.

Jill correu para o local e não sabia sechorava ou se ria ao dar com a cara de Eustáquio,

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muito pálida e suja; com a mão direita, ele brandiaa espada, ameaçando quem tentasse aproximar-se.

E claro: ele experimentara nos últimosminutos sensações bem diferentes. Ouvira o gritoque antecedeu o desaparecimento da menina.Pensou, com o príncipe e Brejeiro, que ela sópodia ter sido agarrada por inimigos. Lá embaixonão podia saber que a pálida luz azulada era oluar. Achou que o buraco dava passagem a umaoutra gruta, iluminada por uma fosforescênciafantasmagórica e repleta sabe-se lá de quecriaturas maléficas do Submundo.

Assim, quando colocou a cabeça de fora,ajudado por Brejeiro, e brandiu a espada, estavacometendo um ato de bravura. Os outros tambémo teriam feito, caso coubessem na abertura.

� Pare com isso, Eustáquio � gritou Jill. �São amigos, não está vendo? Estamos em Nárnia.Tudo bem!

Só então ele percebeu o que se passava epediu desculpas aos anões.

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� Não há de quê! � responderam os anões,estendendo as mãozinhas cabeludas para ajudá-lo.

Então Jill enfiou a cabeça na pequenaabertura e gritou as boas-novas para osprisioneiros. Quando retirava a cabeça, ouviuBrejeiro resmungar:

� Coitada da Jill! Foi demais para ela: estácomeçando a ver coisas.

Jill e Eustáquio deram-se as mãos, as duas,e respiraram profundamente o ar livre da meia-noite. Um manto foi colocado sobre Eustáquio ebebidas quentes foram trazidas. Os anões quase jáhaviam retirado a neve e o capim que rodeavam oburaco: picaretas e pás dançavam agora no chãocomo os pés de faunos e dríades. Dez minutosapenas! Mas para Jill e Eustáquio já era como seos perigos passados nas trevas do labirinto fossemum sonho. Lá fora, no frio, com a lua e as estrelasno alto (as estrelas de Nárnia, mais próximas doque as estrelas em nosso mundo, parecemmaiores), e rodeados de tantas carinhas alegres,era difícil acreditar no Submundo.

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Antes que tivessem acabado de beber, umasdez toupeiras, recém-acordadas e não muitosatisfeitas, vinham chegando. Logo que souberamdo que se tratava, mudaram de disposição. Até osfaunos ajudaram, carregando a terra em carrinhos.Os esquilos pulavam e dançavam com grandeanimação. Ursos e corujas limitavam-se a darconselhos e a perguntar se as crianças nãogostariam de comer alguma coisa no calor dagruta. Mas os dois faziam questão de esperar osamigos.

Não há quem faça esse tipo de trabalhomelhor do que anões e toupeiras. Para estes aquilonem é trabalho, pois adoram cavar. Nãodemoraram, portanto, a abrir na colina umagrande brecha. O primeiro a emergir do escuropara a luz da lua foi o paulama; depois, puxandoos cavalos, Rilian, o príncipe em pessoa.

Quando saiu Brejeiro, brados surgiram detodos os lados:

� Ei, um paulama... Não é o velho Brejeiro?Aquele Brejeiro da outra banda... Que aconteceu,

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Brejeiro?... Estão buscando você por toda aparte... Trumpkin espalhou por aí avisos,prometendo uma recompensa...

Mas ficou tudo em absoluto silêncio derepente � como acontece no dormitório do colégioquando o chefe de disciplina abre a porta. Poistinham visto o príncipe.

Não duvidaram de quem era ele nem porum momento.

Muitos bichos, muitas dríades e muitosfaunos ainda se lembravam dele nos velhostempos. Os mais velhos até se recordavam de queseu pai, o rei Caspian, quando jovem, era a carado filho.

Apesar de pálido, depois do longo cativeironas Terras Profundas, vestido de preto,empoeirado e cansado, havia no seu rosto algumacoisa que não enganaria ninguém. Essa coisaexistia no rosto de todos os verdadeiros reis deNárnia, que governam em nome de Aslam,coroados em Cair Paravel, no mesmo trono dePedro, o Grande Rei.

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Todas as cabeças se descobriram, todos osjoelhos se curvaram. Logo depois, vieram osvivas, e os gritos, e pulos de alegria, e apertos demão, e abraços, e beijos. Lágrimas emocionadascorreram dos olhos de Jill. A peregrinação, apesarde suas durezas e perigos, valera a pena.

� Por favor, Alteza, há uma ceia preparadanaquela caverna para depois da dança...

� Com muito prazer � disse o príncipe; e naverdade os quatro amigos tinham um apetiteimbatível naquela noite.

A multidão começou a caminhar para acaverna sob as árvores. Jill conseguiu ouvirBrejeiro dizer para os que o rodeavam:

� Não, não, a minha história pode esperar.Não há o menor interesse no que aconteceucomigo. Eu, sim, quero saber de notícias. E deuma vez! O navio do rei naufragou? Há guerracom os calormanos? Apareceram os dragões? �Todos caíram na risada, comentando:

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� É ainda o mesmo Brejeiro! Não mudounem um pouco!

As crianças estavam caindo de fome ecansaço, mas reviveram com o calor da gruta,com a beleza do clarão da lareira, que iluminavaas paredes, o guarda-louças, as xícaras, os pires,os pratos e o chão de pedra lisa.

Mesmo assim, caíram no sono enquanto aceia estava sendo preparada. Enquanto dormiam,o príncipe Rilian contou a aventura para os bichose anões mais velhos e sábios. Souberam então queuma feiticeira perversa (sem dúvida uma domesmo tipo da feiticeira Branca, que trouxerapara Nárnia há muitos anos um inverno sem fim)havia matado a mãe do príncipe e encantado opróprio Rilian. Souberam também que elainvadira Nárnia pelo caminho subterrâneo,planejando subjugar o país por intermédio dopróprio Rilian � que jamais sonhou que o paísonde seria rei (rei só no nome, mas na verdadeescravo da feiticeira) era seu próprio país.

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Souberam também que a feiticeira era aliada dosperigosos gigantes de Harfang.

� A lição de tudo, Alteza � concluiu o anãomais velho �, é que essas feiticeiras do Nortesempre miram o mesmo objetivo: em cada épocada História, mudam apenas de tática.

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REMATE DE MALES

Ao acordar no dia seguinte numa gruta, Jillpassou por um momento horrível, pensando queestava novamente no Submundo. Ao perceber quese achava deitada num leito de relva coberta porum manto de pele, ao dar com o fogo crepitante(recentemente aceso) numa lareira de pedra, evendo mais adiante a luz da manhã entrando pelaboca da gruta, recordou-se da venturosa verdade.

Fora deliciosa a ceia, apesar de todo o sonoque sentira antes que ela terminasse. Tinha a vagaimpressão de anões defronte do fogo comfrigideiras quase maiores do que eles, do chiado edo aroma delicioso de salsichas, e mais salsichas,e mais salsichas. Não salsichas mixurucas, comum pedacinho de pão e molho de soja, mas

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salsichas legais, suculentas, temperadas,estourando de gordas, só ligeiramente tostadas. Ecanecões de chocolate espumoso, batatas ecastanhas assadas, maçãs de forno recheadas compassas; e, depois de tudo, os sorvetes querefrescavam.

Sentou-se e olhou em torno. Brejeiro eEustáquio estavam deitados a pouca distância,ambos a dormir profundamente.

� Vocês dois aí! � gritou a menina. � Vãoficar dormindo o resto do dia?

� Psiu! Psiu! � murmurou uma voz dealgum lugar em cima dela. � Hora de dormir. Tireuma soneca. Não vai fazer turru. Turru!

� Só pode ser � disse Jill, distinguindo ummonte de penas brancas e fofinhas em cima de umvelho relógio �, só pode ser Plumalume!

� Turru, turru! � concordou a coruja,espichando a cabeça para fora da asa e abrindo umolho. � Trouxe uma mensagem para o príncipe.Os esquilos nos levaram a grande notícia.

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Mensagem para o príncipe. Ele já partiu. Vocêstambém devem partir. Bom dia... � e a cabeça dacoruja desapareceu.

Como, pelo jeito, não seria possívelarrancar qualquer informação da coruja, Jilllevantou-se e começou a procurar um modo delavar o rosto e comer alguma coisa. Quase nomesmo instante um pequeno fauno entroutrotando na caverna, fazendo clique-claque comseus cascos de bode no chão de pedra.

� Ah! Acordou finalmente, Filha de Eva! �disse o fauno. � Acho que é melhor acordar oFilho de Adão. Dois centauros se ofereceram paralevá-los até Cair Paravel. � E acrescentou com avoz mais baixa: � Você deve saber que montar umcentauro é uma honraria especialíssima. Não seide mais ninguém que possa dizer o mesmo.Assim, não ficaria bem fazê-los esperar.

� Onde está o príncipe? � foi a primeirapergunta de Eustáquio e Brejeiro.

� Foi encontrar-se com o rei, seu pai, emCair Paravel � respondeu o Fauno que se chamava

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Orruns. � O navio de Sua Majestade está sendoesperado no porto a qualquer momento. Pareceque o rei teve um encontro com Aslam... nãoposso afirmar se em visão ou se com o próprioLeão... antes que se afastasse no mar. Aslamdisse-lhe que encontraria o filho perdido a esperá-lo em Nárnia.

Eustáquio já estava de pé, e Jill começou aajudar o fauno a fazer o café. Um centauro,chamado Mão de Nuvem, famoso curandeiro,viria tratar de Brejeiro, que permaneceu deitado aresmungar:

� Já sei, vai cortar minha perna pelo menosà altura do joelho. Aposto. � Mas era bomcontinuar na cama.

O café da manhã consistiu em ovosmexidos e torradas; e nem parecia que Eustáquiodevorara uma lauta ceia durante a noite.

O fauno, olhando para as valentes garfadasdo menino, observou:

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� Não precisa se apressar tanto, Filho deAdão. Acho que os centauros ainda nãoterminaram a primeira refeição.

� Então esses centauros levantam muitotarde � disse Eustáquio. � Lá pelas dez...

� Nada disso � respondeu Orruns �,acordam antes de raiar o dia.

� Ai, ai, ai! Então eles esperam alguém parafazer a primeira refeição.

� Não, nada disso. Começam a comer noinstante em que acordam.

� Caramba! Então a refeição deles deve serenorme.

� Não está entendendo, Filho de Adão? Umcentauro tem um estômago humano e umestômago de cavalo. E, é claro, os dois estômagosprecisam de alimento. Assim, primeiro de tudo,eles comem presunto, omeletes, torradas, geléias,frutas, mingau, café e cerveja. Depois é quecuidam da parte cavalar, pastando durante umahora e arrematando tudo com farinha de malte,

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aveia e um pacote de açúcar. Por isso é que setrata de uma coisa muito séria convidar umcentauro para passar o fim de semana com agente.

Ouviu-se nesse momento um barulho decascos a ressoar nas pedras. As crianças olharam.Os dois centauros (um de barba negra, outro debarba dourada) estavam a esperá-los na boca dagruta. Muito educadamente, as criançasterminaram depressa a refeição.

Um centauro não é nada engraçado quandoà nossa frente. É solene, majestoso, deixandotransparecer toda a sabedoria antiga que aprendeudas estrelas. Não se alegra nem se irritafacilmente. Mas, quando se enfurece, sua raiva étão terrível quanto um maremoto.

� Adeus, querido Brejeiro � disse Jill,aproximando-se da cama do paulama. � Desculpe-me por tê-lo chamado de pé-frio.

� Eu também peço desculpas � falouEustáquio. � Você foi o maior amigo do mundo.

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� Espero encontrá-lo de novo um dia �acrescentou Jill.

� Não creio muito nisso � replicou Brejeiro.� Acho que nem mesmo a minha cabana vouencontrar de novo. E o príncipe � um ótimosujeito, mas vocês acham que ele vai resistir?Viver debaixo da terra estraga a melhor saúde.Claro. O príncipe não pode durar muito.

� Brejeiro! � disse Jill �, você no fundo éum conversa-fiada. Apesar dessa cara de enterro,tenho certeza de que se sente maravilhosamentebem. Além do mais, fala como se tivesse medo detudo, mas na verdade é valente como... como umleão.

� Por falar em cara de enterro... � começoua dizer Brejeiro, mas Jill, para surpresa dele, deu-lhe um beijo na face cor-de-barro, enquantoEustáquio apertou-lhe a mão.

Em seguida, as crianças correram para oscentauros, e o paulama afundou-se de novo nacama, dizendo para si mesmo: �Nunca poderia

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imaginar que ela me desse um beijo. Por maissimpático que eu seja.�

Montar um centauro é mesmo uma grandehonra (concedida provavelmente só aos doisdesde que o mundo é mundo), mas não é nadaconfortável. Pois ninguém com amor à vida iriainsinuar que um arreio tornaria a coisa melhor; emontar em pêlo não é fácil, especialmente (comono caso de Eustáquio) quando a pessoa nuncaaprendeu a montar.

Os centauros foram muito gentis, apesar degraves; enquanto trotavam pelas terras de Nárnia,conversaram com as crianças, sem voltar ascabeças, discorrendo sobre as propriedades deervas e raízes, sobre a influência dos astros, sobreos nove nomes de Aslam e seus significados, eoutras coisas desse gênero. Apesar de sacolejadose doloridos, Jill e Eustáquio dariam tudo para quea jornada não terminasse. Que beleza! As colinase as clareiras reluzindo com a neve da véspera!Encontrar coelhos, esquilos e passarinhos que

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diziam bom-dia! Respirar o ar de Nárnia! Ouvir asvozes das árvores de Nárnia!

Chegaram finalmente ao rio � que à luz dosol de inverno fluía azul e brilhante � bem maisabaixo da última ponte (que fica numacidadezinha de telhados vermelhos chamadaBeruna). Ali foram transportados numa barcaçapara o outro lado, sob os cuidados de algunspaulamas, que quase sempre se encarregam, emNárnia, dos assuntos aquáticos.

Quando atingiram a outra margem,cavalgaram de novo os centauros e logo estavamem Cair Paravel, onde distinguiramimediatamente aquele mesmo navio reluzente queviram ao pisar em Nárnia pela primeira vez.Parecia um grande pássaro deslizando pelo rio.Toda a corte, a fim de saudar o rei, estava outravez reunida no relvado entre o castelo e o cais.Rilian, que havia trocado sua roupagem negra porum manto escarlate sobre uma blusa de malhaprateada, estava à beira do cais, sem chapéu, à

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espera do pai. O anão Trumpkin sentava-se a seulado, na cadeirinha puxada pelo burro.

Viram logo as crianças que não haveriachance de alcançar o príncipe, cercado pelamultidão. Além disso, sentiam-se agora meiotímidos. Perguntaram então aos centauros sepoderiam ficar montados um pouco mais detempo, do contrário nada veriam. Os centaurosnão fizeram objeção.

Uma fanfarra de trompas prateadas veio doconvés do navio; os marinheiros lançaram umacorda; ratos (ratos falantes, naturalmente) epaulamas puxaram logo o navio, que se encostouao cais. Músicos, ocultos pela multidão,começaram a tocar uma marcha solene e triunfal.Os ratos estenderam, pressurosos, o portaló.

Jill esperava ver o velho rei descer osdegraus, mas alguma coisa devia estaracontecendo. Um nobre de rosto pálido desceu aocais e ajoelhou-se diante do príncipe e deTrumpkin. Os três conversaram alguns minutoscom as cabeças quase coladas; nada se ouvia do

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que diziam. A música continuava, mas eraevidente que todos se sentiam um poucoinquietos. Quatro nobres, carregando algo muitolentamente, surgiram no convés. Quandochegaram ao portaló já era possível distinguir oque conduziam: o velho rei estendido sobre umacama, muito pálido e inerte. A cama foi depostano chão. O príncipe ajoelhou-se e abraçou o pai.O rei Caspian ergueu a mão direita e deu a bênçãoao filho. Todos ergueram vivas, mas não eramovações muito animadas, pois sabiam que algumacoisa ia mal. Subitamente a cabeça do rei baqueounos travesseiros; os músicos pararam de tocar; osilêncio era de morte. O príncipe, ajoelhado ao péda cama, começou a chorar.

Houve murmúrios e agitações. Todos decabeça coberta foram tirando os chapéus, osgorros, os elmos e os capuzes � inclusiveEustáquio. Ouviu-se em seguida um farfalharacima do castelo: o pavilhão narniano, com oLeão em ouro, estava sendo hasteado a meio-pau.Lentamente, implacavelmente, com gemidos de

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cordas e doloridas queixas de trompas, a músicarecomeçou: uma ária de cortar o coração.

As duas crianças escorregaram doscentauros (que nem chegaram a notar).

� Preferia estar em casa � falou Jill.Eustáquio concordou com a cabeça, sem dizernada.

� Aqui estou � disse uma voz profundaatrás deles.

Era o próprio Leão, tão luminoso, real eforte, que tudo o mais começou a parecer pálido,embaçado. Antes que pudesse respirar fundo, Jillse esqueceu do rei morto de Nárnia e se lembrouapenas de como causara a queda de Eustáquio nopenhasco, dos sinais esquecidos, das brigas eimpertinências acontecidas. Queria dizer �sintomuito� mas não conseguia falar. O Leão, com osolhos, puxou as crianças para perto dele e tocou-lhes os rostos pálidos com a língua. E falou:

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� Não pensem mais nisso. Não me zango otempo todo. Vocês cumpriram a missão que lhesfoi confiada.

� Por favor, Aslam � disse Jill �, podemosir para casa agora?

� Podem. Vim para levá-los.Aslam abriu a boca e soprou. Dessa vez não

tiveram a impressão de voar: em vez disso, eracomo se estivessem firmes no chão, e o hálito deAslam soprasse para longe o navio, o rei morto, ocastelo, a neve, o céu de inverno. Todas essascoisas flutuavam no ar como anéis de fumaça.Viram, de súbito, que estavam envolvidos poruma brilhante luminosidade de verão, em cima deum gramado, entre árvores grossas, à margem deum riacho límpido. Perceberam que seencontravam de novo na Montanha de Aslam,muito acima e muito além da terra de Nárnia.Estranho é que a marcha fúnebre do rei Caspianprosseguia, sem que se pudesse dizer de ondevinha. Caminhavam à beira do riacho com o Leãoà frente: ele estava tão belo e a música era tão

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angustiante, que Jill não sabia de onde lhe subiamas lágrimas.

Aslam parou e as crianças olharam para oriacho. Lá dentro, nos seixos dourados do leito dorio, estava o rei Caspian, morto, com a águadeslizando por ele como se fosse um cristallíquido. As longas barbas brancas balouçavamcomo plantas aquáticas. Todos os três choraram.Até o Leão chorou: enormes lágrimas de leão, ecada lágrima era mais preciosa que toda a Terra,ainda que esta fosse um imenso diamante. E Jillobservou que Eustáquio não parecia um meninochorão, mas um homem ferido de dor adulta. Ali,naquela montanha, as pessoas não pareciam teruma idade determinada.

� Filho de Adão � disse Aslam �, vá atéaquele matagal e traga para mim o espinho quepor lá encontrar.

Eustáquio obedeceu. O espinho tinha trêspalmos de comprimento e espetava como umpunhal.

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� Enfie este espinho em minha pata, Filhode Adão � disse Aslam, estendendo uma patadianteira para Eustáquio.

� Devo mesmo fazer isso? � perguntou omenino.

� Sim � respondeu Aslam.Eustáquio apertou os dentes e enfiou o

espinho na pata do Leão, de onde correu umagrande gota de sangue, mais vermelha do que sepossa imaginar. E a gota correu e espalhou-se noriacho sobre o corpo do rei. E este começou atransformar-se: a barba branca ficou cinzenta,depois amarela, depois mais curta e desapareceu;as faces encovadas tomaram cores e formas; asrugas alisaram-se; os olhos abriram-se; olhos elábios sorriram; de repente, o rei ergueu-se,ficando em pé perto deles. Era um homem muitojovem, talvez um rapaz. (Não se podia dizer comcerteza, pois as pessoas não têm uma idadeprecisa no país de Aslam.) O rei passou os braçosem torno do pescoço de Aslam, dando-lhe beijos

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viris de rei, respondidos com beijos agrestes deleão.

Por fim Caspian voltou-se para os outros,rindo-se com espantada alegria:

� Eustáquio! Eustáquio! Quer dizer quevocê conseguiu alcançar o fim do mundo! Queaconteceu com a minha espada que você quebrouna Serpente do Mar?

Eustáquio deu uns passos na direção dele,as duas mãos estendidas, recuando logo com umaexpressão perturbada.

� Olhe aqui � gaguejou o menino. � Estátudo muito bem, mas... é você mesmo? Querodizer...

� Não seja tolo � falou Caspian.

� Mas � prosseguiu Eustáquio, olhandopara Aslam � ele afinal não... morreu?

� Morreu � respondeu o Leãotranqüilamente, quase como se estivesse satisfeito(foi o que Jill achou). � Ele morreu. Isso acontece

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muito, como você deve saber. Até eu morri. Hámuitos poucos que não morreram.

� Ah � disse Caspian �, estou entendendo:você está pensando que eu sou um fantasma ououtro absurdo qualquer. Mas pense melhor: euseria um fantasma em Nárnia, pois de Nárnia nãosou mais. Mas ninguém é fantasma em sua própriaterra. No seu mundo eu seria um fantasma. Será?Já que estão aqui, talvez aquele mundo tambémnão seja mais de vocês.

Uma grande esperança alvoroçou o coraçãodas crianças. Mas Aslam balançou a cabeçafelpuda.

� Não, meus queridos. Quando meencontrarem aqui outra vez, então ficarão. Agora,não. Precisam voltar ao mundo de vocês poralgum tempo.

� Senhor � disse Caspian �, sempre quis daruma espiada naquele mundo. Estarei errado?

� Você não pode mais querer nada deerrado, agora que morreu, meu filho � foi a

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resposta de Aslam. � Poderá espiar o mundo delesdurante cinco minutos � cinco minutos do tempodeles.

Aslam então explicou a Caspian que Jill eEustáquio iriam de volta para o ColégioExperimental, que ele parecia conhecer tão bemquanto eles.

� Minha filha � disse Aslam para Jill �,apanhe um galho daquela moita.

Na mão de Jill a vara transformou-se logonum bonito chicotinho. Aslam prosseguiu.

� Agora, Filhos de Adão, saquem asespadas, mas não usem as pontas, pois eu os enviopara a companhia de crianças e covardes, não paraenfrentar guerreiros.

� Vem com a gente? � perguntou Jill aAslam.

� Eles me verão apenas de costas �respondeu o Leão.

Foram conduzidos pelo bosque e, poucodepois, encontravam-se diante do muro do

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Colégio Experimental. Aslam rugiu fazendo comque o sol tremesse no céu; um pedaço de murocaiu, abrindo uma brecha. Podiam ver a alamedada escola e o telhado do ginásio, sempre sob omesmo sol tristonho de outono.

Aslam virou-se para Jill e Eustáquio,soprou-lhes no rosto e passou-lhes a língua natesta. Depois deitou-se na brecha que havia feitono muro, dando as costas para a Inglaterra edirigindo o olhar senhoril no sentido de suaprópria terra. No mesmo instante Jill percebeu ascarinhas (que já estava cansada de conhecer)correndo sob as árvores na direção deles.

De repente pararam todos e mudaram decara: a mesquinharia, a pretensão, a crueldade, abaixeza, tudo isso desapareceu quasecompletamente das expressões deles, dando lugara uma única expressão: de terror. Pois tinhamvisto um leão do tamanho de um filhote deelefante deitado na brecha do muro; e três figurasarmadas, vestidas com roupas rutilantes, partiampara cima deles. Com a força propiciada por

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Aslam, Jill tacou o chicotinho nas meninas,enquanto Caspian e Eustáquio castigavam osmeninos com as espadas; em dois minutos osfanfarrões já estavam correndo feito doidos, aosgritos.

� Assassinos! Comunistas! Leões! Assimnão vale!

O diretor do colégio (aliás, era umadiretora) chegou correndo para ver o que sepassava. Ao ver o Leão e o buraco no muro, eCaspian, Jill e Eustáquio (que ela nãoreconheceu), teve um ataque histérico. Voltou aogabinete para informar à polícia, pelo telefone,que um leão devia ter fugido de um circo, quebaderneiros arrebentaram o muro armados deespadas, que... No meio da confusão, Jill eEustáquio entraram calmamente e vestiram roupascomuns, enquanto Caspian voltava para o outromundo. O muro, por graça de Aslam, foirecomposto. Quando a polícia chegou, nãoencontrou leão nenhum, nem brecha no muro,nem baderneiros. Ali havia somente uma diretora

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que se comportava como uma louca. Um inquéritofoi aberto. Nesse inquérito surgiram cobras elagartos a respeito do Colégio Experimental; dezpessoas acabaram expulsas. Depois disso, osamigos da diretora perceberam que ela nãoprestava para diretora, e nomearam-na inspetora-geral. Quando viram que ela não era tambémgrande coisa como inspetora-geral, conseguiramelegê-la para a Câmara dos Deputados, onde elaviveu para sempre feliz.

Eustáquio enterrou suas bonitas roupagens,durante a noite, no campo do colégio; Jill preferiucarregar as suas para casa, pensando numa festaespecial.

A partir daquele dia, as coisas melhoraramno Colégio Experimental, que acabou virandouma escola bastante boa. Jill e Eustáquio ficaramamigos para sempre.

Lá longe, em Nárnia, o rei Rilian fez osfunerais do pai, Caspian, o Navegador, o décimocom aquele nome. Rilian governou muito bemuma terra feliz, apesar de Brejeiro (cujo pé ficou

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bom em três semanas) estar sempre dizendo quetempo bom é sinal de tempestade. A abertura nacolina foi mantida aberta; às vezes, nos diasquentes, os narnianos costumavam ir lá combarcos iluminados, e entoavam seus cantos e sedivertiam no escuro mar subterrâneo. E contavamhistórias de cidades que ficavam ainda muito maisabaixo...

Fim do Vol. VI

Próximo volume:

A Última Batalha