as cláusulas gerais, uma perspectiva histórico-construtiva do direito privado contemporâneo

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AS CLÁUSULAS GERAIS, UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CONSTRUTIVA DO DIREITO PRIVADO CONTEMPORÂNEO Ricardo Cavedon 1 [email protected] Resumo: O presente trabalho busca traçar uma análise histórica da construção da ciência jurídica até alçar vertente de sistema aberto, incorporando conceitos vagos os quais dependem de colmatação valorativa por parte do intér- prete aplicador da norma jurídica. Com ênfase na Teoria Geral do Direito, analisar-se-á a história do pensamento jurídico e as primeiras previsões de cláusulas gerais nas codificações oitocentistas, para só então traçar um paralelo com o que a doutrina contemporânea vem entendendo por cláusulas gerais e conceitos indeterminados, cabendo posteriormente a análise de como estes conceitos jurídicos se expressam no atual direito civil-constitucional. Palavras-chave: Cláusulas Gerais; Conceitos Jurídicos Indeterminados; Colmatação Valorativa; Codificações; Nova Hermenêutica; Neoconstitucionalismo; Neopositivismo; Interpretação Evolucionista; Integração Valorativa. GENERAL CLAUSES: A HISTORIC-CONSTRUCTIVE OF THE PRIVATE CONTEMPORANEAN LAW Abstract: This paper searches to trace a historic analysis of the building of the legal science till raising part of the open system, incorporating vague concepts that depend on the clogging evaluative by the interpreter applicator of the legal norm. With emphasis on the General Theory of the Law, we will analyze the history of the legal thought and the first forecasts of general clauses in the eight-hundredist encodings, and only then draw a parallel with what the contemporary doctrine is understood by general clauses and undetermined concepts, fitting later analysis of how these legal concepts are expressed in the current civil-constitutional law. Keywords: General Clauses; Undetermined Legal Concepts; Clogging; Evaluative; Encodings; New Hermeneu- tics; Neo-constitutionalism; Neo-positivism; Evolutionist; Evaluative Integration. 1. Introdução A experiência jurídica nos limiares da época clássica foi muito mais ligada à práxis do que a uma preocupação de construção sistemática. O então chamado “direito das gentes”, oriundo do ius civiles, direito aplicado unicamente aos cidadãos romanos, com as invasões bárbaras, e a notória influência da 1 Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-Graduado em Direito Civil e Empresarial e Ba- charel pela mesma Instituição. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Assessor jurídico de Desembargador no TJPR desde 2007. REDES - REVISTA ELETRÔNICA DIREITO E SOCIEDADE http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes Canoas, vol. 1, n. 1, nov. 2013

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  • AS CLUSULAS GERAIS, UMA PERSPECTIVA HISTRICO-CONSTRUTIVA DO DIREITO PRIVADO CONTEMPORNEO

    Ricardo Cavedon [email protected]

    Resumo: O presente trabalho busca traar uma anlise histrica da construo da cincia jurdica at alar vertente de sistema aberto, incorporando conceitos vagos os quais dependem de colmatao valorativa por parte do intr-prete aplicador da norma jurdica. Com nfase na Teoria Geral do Direito, analisar-se- a histria do pensamento jurdico e as primeiras previses de clusulas gerais nas codificaes oitocentistas, para s ento traar um paralelo com o que a doutrina contempornea vem entendendo por clusulas gerais e conceitos indeterminados, cabendo posteriormente a anlise de como estes conceitos jurdicos se expressam no atual direito civil-constitucional.

    Palavras-chave: Clusulas Gerais; Conceitos Jurdicos Indeterminados; Colmatao Valorativa; Codificaes; Nova Hermenutica; Neoconstitucionalismo; Neopositivismo; Interpretao Evolucionista; Integrao Valorativa.

    GENERAL CLAUSES: A HISTORIC-CONSTRUCTIVE OF THE PRIVATE CONTEMPORANEAN LAW

    Abstract: This paper searches to trace a historic analysis of the building of the legal science till raising part of the open system, incorporating vague concepts that depend on the clogging evaluative by the interpreter applicator of the legal norm. With emphasis on the General Theory of the Law, we will analyze the history of the legal thought and the first forecasts of general clauses in the eight-hundredist encodings, and only then draw a parallel with what the contemporary doctrine is understood by general clauses and undetermined concepts, fitting later analysis of how these legal concepts are expressed in the current civil-constitutional law.

    Keywords: General Clauses; Undetermined Legal Concepts; Clogging; Evaluative; Encodings; New Hermeneu-tics; Neo-constitutionalism; Neo-positivism; Evolutionist; Evaluative Integration.

    1. Introduo

    A experincia jurdica nos limiares da poca clssica foi muito mais ligada prxis do que a uma preocupao de construo sistemtica. O ento chamado direito das gentes, oriundo do ius civiles, direito aplicado unicamente aos cidados romanos, com as invases brbaras, e a notria influncia da

    1 Mestrando em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran. Ps-Graduado em Direito Civil e Empresarial e Ba-charel pela mesma Instituio. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paran. Assessor jurdico de Desembargador no TJPR desde 2007.

    REDES - REVISTA ELETRNICA DIREITO E SOCIEDADE http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redesCanoas, vol. 1, n. 1, nov. 2013

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    filosofia estica, foi-se aos poucos se alargando durante quase um milnio numa fuso entre usos e costu-mes dos povos germnicos, constituindo a expresso do que hoje chamamos de direito natural, um direito originrio da natureza do homem. O saber jurdico da poca, at pela influncia aristotlica, resumia-se at

    ento a uma atividade eminentemente prudencial, baseada na arte da contradio.

    Foi somente na Idade Mdia, principalmente com o movimento renascentista, que o carter sistem-tico do direito comeou a se aflorar. 2

    Com o surgimento das universidades, e tendo em base o iderio iluminista, o movimento jusracio-nalista (direito natural fundado na autoridade da razo) erigiu campo na cincia jurdica, dando seus pri-meiros passos em busca de uma sistematizao. Sua maior contribuio foi exatamente a noo do carter de sistema. 3

    Construdo ao longo de dois milnios, o direito oriundo da razo tambm contribuiu para desvincu-lar a cincia jurdica dos dogmas religiosos, abrindo caminho na linha da histria para o vindouro movi-mento das codificaes cujo maior esplendor foi o monumento das ordenaes civis francesas o cdigo

    napolenico.

    O jusracionalismo, ao mesmo tempo em que contribuiu para o movimento das codificaes, con-cedeu ainda um fundamental alicerce para o formalismo jurdico do sculo XIX. Foi notria a influncia

    e repercusso do direito racional na cincia jurdica. Com os seus ideais lanados em textos escritos, amplamente estruturados numa perspectiva sistemtica, o jusracionalismo abriu campo para a doutrina positivista.

    O direito positivo, contudo, quando totalmente integrado em textos escritos, passou a refutar por completo os princpios e valores que detinha por origem, era a expresso do legalismo jurdico. Liberto dos juzos de valores extra legem, sem poder lutar contra o jugo da lei positiva, reflexo de sua prpria racionalidade, a cincia jurdica baseada na razo, ao mesmo tempo em que teve seu pice, conheceu tambm sua destruio. 4 O direito natural foi relegado, ento, a mero fator ocasional da histria, com o positivismo legalista do sculo XIX passando a resolver o problema da justia na questo da validade da lei positiva.

    A teoria da subsuno (cujo raciocnio bsico a extrao de uma concluso lgica silogstica, uti-lizando-se a confrontao de uma previso legal casustica com um caso concreto) passou a dominar o

    2 Pode-se citar no medievo a interpretao literal do corpus juris civiles (compilao de textos e leis escritas realizada pelo imperador romano Justiniano) realizada pelo movimento dos glosadores e ps-glosadores (comentadores e humanistas), que viam os textos do corpus como a nica fonte de interpretao do direito ento existente. A tcnica que utilizavam era unica-mente gramatical, literria, e exprimia dos textos escritos um sentido unvoco e gramatical. As glosas, nesse sentido, eram os comentrios a estes textos.3 Nesse sentido: WIECKER, Franz. Histria do Direito Privado Moderno, 3 edio, Fundao Calouste Gui Benkian, Lisboa, Traduo de A. M. Botelho Hespanha, p. 665.4 Nesse sentido, Luis Roberto Barroso: O advento do Estado liberal, a consolidao dos ideais constitucionais em textos escri-tos e o xito do movimento de codificao simbolizam a vitria do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representam, tambm, a sua superao histrica. No inicio do sculo XIX, os direito naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milnios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. J no traziam a revoluo, mas a conservao. Considerado metafsico e anticientfico, o direito natural empurrado para a margem da histria pela onipotncia positivista do sculo XIX. (BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e Filosficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Ps-modernidade, teoria crtica e ps-positivismo), in: A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas / Lus Roberto Barroso (organizador) 3 ed. Revista Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 22/23.

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    mtodo de interpretao e aplicao do direito. A ideia de que as regras jurdicas eram extradas de uma norma superior da hierarquia e dali deduzidas, no se podendo questionar a justia desta deduo em razo de ser a lei vlida (e presumidamente justa) na hierarquia das fontes, foi o cerne proficiente que necessi-tava a cincia jurdica positivista para alcanar a centralidade e univocidade de aceitao por parte dos estudiosos da poca. 5

    Eis porque a cincia jurdica assumiu, definitivamente, o carter de sistema fechado, tendo-se ex-pressado nesta poca por requintados processos lgicos e em essncia hermticos.

    Somente o final do sculo XIX e primeira metade do sculo XX marcaram a ruptura metodolgica

    caracterizada pela limitao do mtodo subsuntivo, diante de seu inegvel reducionismo.

    Com as mutaes sociais engendradas pela primeira grande guerra, os Juzes se viram perante a r-dua tarefa de ajustar o direito legal ao novo modelo social, emergindo da um direito praeter (quando em confronto com suas prprias lacunas) ou mesmo contra legen (quando em confronto com os novos valores e princpios que vinham surgindo). 6

    Na expresso de Franz Wiecker, a teoria que se construiu a partir de ento foi denominada de acha-mento da soluo jurdica (Rechtsfindung), segundo a qual, a cada norma legal subjazeria um acto de valorao de interesses e uma opo voluntarista entre vrias valorizaes possveis dos interesses opostos das partes em conflito. 7 Foi a expresso do movimento ento denominado de jurisprudncia dos interesses.

    Larenz classificou o movimento como uma espcie de reao ao mtodo exegtico de interpretao

    da lei, predominante no sculo XIX, questionando o reducionismo do mtodo subsuntivo e suas limita-es. 8

    Paralelamente, foram verificados movimentos que buscavam a desvinculao total do juiz de regras

    predeterminadas de julgamento, como o naturalismo jurdico e a jurisprudncia teleolgica.

    Tambm a tcnica legislativa alterou-se substantivamente.

    Ao legislador no mais era possvel antever todos os inmeros conflitos, necessidades e interesses,

    do multifacetado meio social. O casusmo legislativo, que previamente define casos especficos para regu-lao legislativa, prprio do legalismo jurdico, foi aos poucos se tornando insuficiente.

    Com a superao do mito de completude das codificaes, e a supervenincia de um nmero cada vez maior de legislaes extravagantes, destinadas a regular os novos institutos surgidos com a evoluo 5 As lacunas (aparentes) deveriam sofrer uma correo no ato interpretativo, no pela criao de nova lei especial, mas pela reduo de um caso dado lei superior na hierarquia. Isto significava que as leis de maior amplitude genrica continham, logi-camente, as outras, na totalidade do sistema. Mediante o estabelecimento de uma premissa maior, a qual conteria a diretiva legal genrica, e de uma premissa menor, que expressaria o caso concreto, exsurgiria de um raciocnio lgico subsuntivo a manifestao de um juzo concreto ou deciso, sem haver valoraes e muito menos criao pelo intrprete. (cf. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. A cincia do direito, 2 ed., So Paulo Atlas, 2008, p. 33).6 Ver WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, 3 edio, Fundao Calouste Gui Benkian, Lisboa, Traduo de A. M. Botelho Hespanha, do original intitulado Privatrechtsgeschichte Der Neuzeit Unter Besonderer Bercksichtigung Der Deutschen Entwicklung, 2 edio, Revista Vandenhoeck & Ruprecht, Gttingen, 1967, p. 665.7 WIECKER, Franz. Histria do Direito Privado Moderno, op. cit., p. 666.8 Cf. LARENZ. Karl. Metodologia da cincia do direito. 3 edio. Trad. Jos Lamego. Fundao Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1997, p. 63-82.

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    econmica e social, 9 ia-se formando um direito especial, paralelo ao direito comum estabelecido pelo Cdigo Civil, 10 e essas novas previses nem sempre encontravam abrigo certo e definido em textos pre-viamente antevistos pela tcnica da subsuno.

    Assim, ante fragmentariedade dos interesses sociais, o legislador via-se cada vez mais obrigado a estabelecer legislaes abertas, vagas, utilizando-se de clusulas gerais, as quais necessitavam de colma-tao valorativa para preenchimento de suas hipteses, e conseqncias do caso concreto.

    Passou-se a exigir, cada vez mais, do intrprete/aplicador da lei uma maior sensibilidade para fato-res sociais afetos concretude e realidade muitas vezes vulnervel de determinadas camadas sociais, no preenchimento do caso concreto.

    A incorporao definitiva de princpios estruturantes, com forte vis valorativo e fora normativa,

    necessrios para manter a integridade lgica e construir um sistema baseado em alicerces fortes capazes de permear as exigncias agora de um sistema axiologicamente aberto, fizeram-se cada vez mais presentes

    na realidade jurdica do direito a partir da segunda metade do sculo XX.

    O ps-positivismo, o neoconstitucionalismo, e a principiologia so expresses que procuram trans-mutar o sistema fechado do positivismo em algo permevel, perene e mutvel s exigncias da complexi-dade social.

    A cincia jurdica passou a se estruturar em normativas dependentes de valoraes. O intrprete no somente valora a hiptese, como cria a conseqncia, ou cria a hiptese e valora a conseqncia, pauta-do em situaes concretas e integraes axiolgicas, as quais nem sempre se encontram abstratamente previstas. Da que surgem os chamados conceitos vagos, abertos, discricionrios, e, especificamente, as

    clusulas gerais.

    A proposta do presente trabalho delinear o paradigma das clusulas gerais, que ora passam efeti-vamente a sobrelevar importncia na estruturao do sistema, necessitando de premissas axiolgicas que circunscrevam o denominado reenvio efetivado com o intrprete11, para os quais os valores constitucionais (solidariedade, dignidade, estado democrtico, etc.) e os direitos fundamentais so invocados, juntamente com as teorias que concedem eficcia horizontal a estes direitos.

    Ao final, tentar-se- expor algumas situaes na atual codificao civil que remetem o intrprete

    valoraes outras (extra-sistemticas) e so vetorizadas pela fonte da jurisprudncia e da doutrina.

    2. Premissas metodolgicas A evoluo da cincia jurdica e a adoo de seu carter de sistema.

    certo que no perodo da prxis romana houve inmeras tentativas para dar cientificidade ao direito.

    9 Nesse sentido, Ricardo Luiz Lorenzetti aponta: A crise das vises totalizadoras fez explodir todo o texto unificado. Os interesses so individuais ou setoriais, perfeitamente diferenciados uns dos outros. No plano individual, o legislador depara-se com problemas. Se tivssemos que tomar uma deciso legislativa sobre temas polmicos, seramos obrigados a fazer uma lei para cada um desses indivduos. (...) O problema das denominadas leis promocionais, que subsidiam algumas atividades especficas, produziu uma fragmentao de direitos e privilgios, que, por sua vez, provoca novas presses setoriais, para obter equiparao com o que foi alcanado por outro grupo ou super-lo. (LORENZETTI. Ricardo Luiz. Fundamentos do Direito Privado. So Paulo, Ed. Revista dos Tribunais., 1998, p. 53-54).10 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4 edio. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 06.11 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 274

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    Entretanto, uma das peculiaridades da cincia jurdica clssica encontrava-se justamente na sua ausncia de cientificidade, em razo de seu carter essencialmente dialtico, cuja racionalidade a levava tipicamen-te para um saber eminentemente prudencial. 12

    Por certo, os romanos, a partir de suas conquistas, recolheram muito da experincia de outros povos antigos. Demoraram, contudo, sculos para realizar a compilao de todo o seu legado de modo completo e penetrante. Desde o sculo IV, o imprio teria se dividido definitivamente, ficando, de um lado, o imprio

    do ocidente, com sede em Roma, e de outro, o imprio do oriente, com sede em Constantinopla.

    A queda de Roma, por volta do ano de 476, simbolizou o fim do imprio ocidental (e o incio da Ida-de Mdia), perodo caracterizado pela invaso e o estabelecimento de uma srie de reinos germnicos no ocidente. 13 Durante muito tempo na Idade Mdia, com a derrocada das velhas instituies da antiguidade, e a influncia crescente dos povos germnicos, os quais conservavam seu prprio direito consuetudinrio,

    o direito romano manteve-se reduzido a um direito consuetudinrio provinciano, o direito romano vul-gar. 14

    O imprio romano do oriente, contudo, resistiu por muito tempo, tendo seu termo somente com a queda de Constantinopla em 1453 (o que marca o incio da Idade Moderna). E foi l que as compilaes de Justiniano (565), materializadas pelo Corpus iuris civilis, segundo Caenegem, expressaram um dos mais clebres projetos legislativos da Histria (...) o resultado final de dez sculos de evoluo jurdica. O

    Corpus iuris civilis assumiria o papel de mensagem para os juristas futuros, expressando a compilao de uma seleo substancial das obras de juristas clssicos e da legislao imperial. 15

    Na Alta Idade Mdia, o mundo romano, notadamente com as invases brbaras, foi largamente alcanado por culturas diversas. Este perodo caracterizou-se eminentemente por uma sociedade arcaica, feudal e agrria. Importantes progressos ocorreram no curso dessa transformao do Ocidente, marcados pelo desenvolvimento do mercado e do comrcio, pela derrocada dos regimes individualistas e a diminui-o dos poderes dos senhores feudais, com a paulatina centralizao do poder pelas autoridades monrqui-cas, segundo lembra Caenegem:

    O estado nacional soberano tornou-se a forma dominante de organizao poltica (...) A emergncia de autoridades nacionais deu-se custa do imprio e impediu as tentativas germnicas de restaurar o poder universal do Imprio Romano. Esse mesmo desenvolvimento significou tambm a dimi-nuio do poder dos senhores feudais enquanto o governo central afirmava-se e fortalecia-se. A

    organizao da Igreja seguiu uma tendncia centralizadora semelhante. (...) A economia poltica fechada e essencialmente senhoril foi substituda por uma economia de mercado. Isso foi sustenta-do (...) pela renovao e transformao da atividade econmica em geral, ajudada pelo surgimento de numerosas cidades. (...) 16

    A evoluo social foi notria. Caenegem assevera que expanso econmica correspondeu uma expanso urbana. Anota que o ... sucesso comercial dos negcios urbanos passou a regular a marcha do desenvolvimento econmico do pas. Houve um profundo desenvolvimento intelectual. O nvel cultural geral elevou-se de maneira considervel, o que se refletiu particularmente na alfabetizao e no uso cres-

    12 Cf. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. A cincia do direito, 2 ed., So Paulo Atlas, 2008, p. 21.13 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introduo Histria do Direito Privado: op. cit., p. 09-10.14 CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao direito privado. 2 edio. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 25-6.15 CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao direito privado, op. cit., p. 25-6.16 CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao direito privado. 2 edio. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 43-4.

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    cente da lngua vernculo. 17

    O pensamento racional tambm continuou a ganhar terreno. Foi tambm nesse perodo que as uni-versidades surgiram e espalharam-se por toda a Europa, trazendo consigo uma disciplina intelectual base-ada nas grandes obras filosficas e jurdicas da Antiguidade greco-romana. O pensamento antigo passou a

    ser objeto de estudos intensos, o que culminou com a Renascena. Com o aparecimento do mtodo cient-fico moderno, que era experimental, houve a libertao enfim dos dogmas e dos argumentos baseados na

    autoridade. 18

    A ascenso do absolutismo com a centralizao paulatina do poder fez com que a atividade legi-ferante se tornasse cada vez mais intensa, constituindo-se em contrapartida uma espcie de burocracia jurdica, cada vez mais regionalizada, dando um cunho muito particular e especfico ordem jurdica de

    ento.

    Com o surgimento das universidades, e o iderio do iluminismo, o movimento jusnaturalista moder-no propriamente dito, expressado na Europa ocidental por volta do sculo XVII, ganhou fora, e a cincia jurdica comeou a dar seus primeiros passos em busca de uma sistematizao. 19

    A era moderna sobressaia-se espelhando uma nova concepo para o direito natural cuja origem no era a natureza, como na antiguidade, nem o direito divino, como no medievo, mas um fundamento nico constitudo e integrado exclusivamente pela razo humana. 20 O jusracionalismo provocou uma revoluo cultural. 21

    Foi principalmente com o iderio de Hugo Grotius e de Samuel Pufendorf, caracterizando o jus-naturalismo como um direito eminentemente racional, que a cincia jurdica e o pensamento sistemtico realizaram uma integrao mais profunda, isso por volta do sculo XVII, tendo-se as primeiras noes de um contedo sistemtico do direito.

    Pode-se dizer que a maior contribuio do jusnaturalismo moderno para o direito privado europeu foi efetivamente o seu carter de sistema. Segundo o testemunho de Franz Wiecker, a jurisprudncia euro-peia fora at aqui uma cincia da exegese e de comentrios de textos isolados, tendo permanecido assim depois do fracasso do projeto sistemtico do humanismo (glosadores). 22

    O direito natural, contudo, no jusracionalismo, aproximou-se de uma demonstrao lgica de um sistema fechado, tornando-se, em contrapartida, nas palavras de Wiecker, na pedra de toque da plausibi-lidade dos seus axiomas metodolgicos. 23 dizer, a jurisprudncia da poca, a partir de ento, passou a representar um carter lgico-demonstrativo de um sistema fechado, cuja estrutura dominou e domina at

    17 Cf. CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao direito privado. op. cit., 1999, p. 43-4.18 Cf. CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao direito privado. op. cit., 1999, p. 43-4.19 (CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao direito privado. 2 edio. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 165).20 Por meio de um estudo racional, seria possvel descobrir os princpios que deveriam reger a vida em sociedade. A partir desses princpios axiomticos, outros mais especficos poderiam ser deduzidos, construindo-se, assim, um completo sistema de normas. (ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introduo Histria do Direito Privado e da Codificao. Ob. cit., p. 20).21 Cf. WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, 3 edio, Fundao Calouste Gui Benkian, Lisboa, Traduo de A. M. Botelho Hespanha, do original intitulado Privatrechtsgeschichte Der Neuzeit Unter Besonderer Bercksichtigung Der Deutschen Entwicklung, 2 edio, Revista Vandenhoeck & Ruprecht, Gttingen, 1967, p. 228-9.22 WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, 3 edio, Fundao Calouste Gui Benkian, Lisboa, Trad. A. M. Botelho Hespanha, p. 309/310.23 WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, 3 edio, Fundao Calouste Gui Benkian, Lisboa, Trad. A. M. Botelho Hespanha, p. 309/310.

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    hoje os cdigos e os compndios jurdicos.

    A poca do jusracionalismo, que durou por dois sculos (sc. XVII-XVIII), espelhou importante e direta influncia sobre a legislao e a jurisprudncia da maior parte dos povos europeus. Seus maiores

    precursores, Hugo Grcio e Samuel Pufendorf, notadamente, elaboraram as bases de um sistema meto-dolgico autnomo, puramente racional, e por consequncia, completamente livre de dogmas religiosos. Suas reflexes, nitidamente inspiradas em Galileu Galilei (fundador da nova imagem fisicalista do mundo)

    e Descartes (que formulou o conhecimento global do mundo externo) 24, implementaram a fase lgico-sis-temtica do jusnaturalismo (expressado como jusracionalismo, pela nfase na razo humana).

    Mais tarde, Christian Wolf desenvolveria ainda mais o pensamento elaborado por Pufendorf, dando-lhe a conotao de que os princpios do direito somente poderiam ser estabelecidos pelo mtodo cientfi-co.25

    Com o jusracionalismo a cincia jurdica adotou uma construo conceitual, buscando fundamentar suas premissas atravs da exatido matemtica da razo, tornando-se a poucas pocas uma expresso sis-tematizada marcada pela pretenso de ordenao lgica de seus prprios preceitos.

    Segundo Franz Wiecker,

    o jusracionalismo baseia-se, portanto, numa nova antropologia. O homem aparece no mais como uma obra divina, eterna e desenhada semelhana do prprio Deus, mas como um ser natural; a humanidade, no mais (na primeira verso) como participante de um plano divino de salvao ou (na ltima) como participante do mundo histrico, mas como elemento de um mundo apreensvel atravs de leis naturais. 26

    Por certo, o jusracionalismo pretendeu expurgar do ordenamento positivo as normas que considera-va em desacordo com os princpios superiores da razo, assim preparando caminho para uma construo sistemtica autnoma. 27

    Somente com a positivao dos ideais jusracionalistas, que o Estado passou a representar uma es-truturao fundante nas novas bases polticas assentadas na realizao do indivduo e na natureza humana agora reconhecidamente livre e igual.28 O direito passa a no mais inspirar-se em valores extra legen, e o

    24 Descartes, em especial, consumou a matematizao da natureza iniciada pela escolstica tardia, ao tornar sistematizvel, atravs da reduo dimenso sujeito-objecto do Eu pensante e do mundo objectivo extenso, a descrio da imagem do mun-do. Do ponto de vista metodolgico, a construo sistemtica da experincia cientfica apenas se consumou atravs do estrito raciocnio dedutivo que, progredindo a partir dos axiomas, se justificou e orientou constantemente pela observao emprica (da natureza externa, da sociedade humana, da alma humana). (WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, op. cit., p. 285).25 WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, op. cit., p. 361.26 WIECKER, Franz, Histria do Direito Privado Moderno, op. cit., p. 288.27 (...) porque o jusracionalismo , ele prprio, um sistema fechado de verdades (isto , certezas) da razo. Da o objetivo, poltico e ideolgico, que o levou a situar o direito como um sistema que partisse de regras ou princpios gerais, as quais, contra-postas ao direito vigente costumeiro e romanstico -, apenas o validariam se evidenciada a concordncia entre esse e o direito natural, cujos postulados assume como internos, conaturais a uma essncia do prprio direito. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado: sistema e tpica no processo obrigacional. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 137-9).28 (...) no final do sculo XVIII, conjugam-se vrios fatores que iriam determinar o aparecimento das Constituies e infun-dir-lhes as caractersticas fundamentais. Sob influncia do jusnaturalismo, amplamente difundido pela obra dos contratualistas, afirma-se a superioridade do indivduo, dotado de direitos naturais inalienveis que deveriam receber a proteo do Estado. A par disso, desenvolve-se a luta contra o absolutismo dos monarcas, ganhando grande fora os movimentos que preconizavam a limitao dos poderes dos governantes. Por ltimo, ocorre ainda a influncia considervel do Iluminismo, que levaria ao extremo a crena na Razo, refletindo-se nas relaes polticas atravs da exigncia de uma racionalizao do poder. A esto os trs grandes objetivos, que, conjugados, iriam resultar no constitucionalismo: a afirmao da supremacia do indivduo, a

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    Estado, de um dia para o outro, passa de opressor a defensor do esprito humano, em nome do livre merca-do. O Estado conteria em si mesmo a liberdade, a igualdade e a propriedade, devendo garantir a segurana e a ordem, e assegurar a participao calculada do cidado na vida pblica.

    Com o processo de transformao do Estado moderno para o Estado liberal houve uma significativa

    centralizao de suas fontes normativas, bem como da jurisdio, alm do surgimento do constitucio-nalismo, tendo havido nessa medida uma expanso latente no processo burocrtico, como salienta Jos Reinaldo de Lima Lopes:

    o Estado liberal e burgus que emergiu no sculo XIX teve a mesma pretenso totalizante do mer-cado, da moeda e da mercadoria, e obedeceu a uma expanso territorial e funcional contnuas. A burocracia cresceu, o controle disciplinar cresceu, e a atividade do jurista comeou a reduzir-se exegese da legislao. 29

    Os juristas da poca passaram a findar-se num nico objeto - a lei - cujas interpretaes se davam

    atravs de requintados processos lgicos, eminentemente racionais e intelectivos. O esplendor desse pero-do se deu com o advento da conhecida Escola da exegese na Frana e dos pandectistas na Alemanha.

    O auge do positivismo legalista repercutiu no movimento das codificaes. As aspiraes burguesas

    cujo pice se deu nas revolues liberais, passaram a espelhar os interesses predominantes da sociedade da poca. Os cdigos civilistas foram relegados a constituies do direito privado, tudo exprimiam, tudo previam, e de tudo cuidavam.

    No incio do sculo XX, sobreveio o conhecido (sobretudo porque inspirou o Cdigo Civil Brasilei-ro de 1916) Cdigo Civil alemo BGB (Brgerliches Gesetzbuch), de inspirao na tcnica pandetstica de Windscheid. Trouxe em seu bojo conceitos vagos e clusulas gerais, as quais dependiam de preenchimento valorativo pelo intrprete/aplicador.

    Isto ocasionou na poca uma medida de instabilidade. que as clusulas gerais serviam muitas ve-zes para premiar a parcialidade judicial e os interesses ideolgicos, mas nem por isso no podem ser vistas como um avano. Sua aplicabilidade esvaziava de sentido a atividade subsuntiva, sem remeter a uma mo-ral bem definida, vez que a codificao encontrava-se isolada como centro do direito privado. No havia

    princpio unificador. A codificao era o centro do direito privado, e o preenchimento de seus conceitos

    remetia a um subjetivismo judicial nem sempre desejvel. Segundo Wiecker:

    necessidade de limitao do poder dos governantes e a crena quase religiosa nas virtudes da razo, apoiando a busca da racio-nalizao do poder. (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 18. ed., atual. e ampl. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 168).29 O ideal de uma cincia positiva, ou positivista, assenta-se na tradio idealista da filosofia do fim do sculo XVIII. Em primeiro lugar, define-se uma distino entre sujeito e objeto do conhecimento e suas relaes recprocas. Em segundo lugar, prope uma objetividade do conhecimento demonstrvel pela manipulao e pela experimentao. Conhecer saber fazer, reproduzir e prever. A cincia ento destacada da interpretao e da razo prtica, e associada razo instrumental e ao clcu-lo. O universo tem uma linguagem matemtica, e possvel conhec-la, prevendo os fenmenos. O empirismo associa-se, pois, ao idealismo: a descoberta das leis e a formulao das hipteses (elementos ideais) so verificadas, ou falsificadas, como diz Popper, pela experimentao e pela observao. Claro que a observao cientfica polmica por natureza, conhece-se contra o conhecimento anterior. A discusso sobre o positivismo enorme e hoje em dia, quando o positivismo d sinais de esgota-mento, esta discusso ainda maior, pois a prpria tradio filosfica positivista apresenta diversas correntes, e os que propem mtodos no positivistas tambm se alinham em perspectivas diversas. No direito, o positivismo deu aos juristas a sensao confortvel de que estavam ainda atualizados com o desenvolvimento geral do pensamento. Se a cincia medieval se confundia com a especulao gramaticada, e se a cincia moderna se associava geometrizao do mundo, os juristas haviam, a seu tempo, incorporado aquelas concepes de cincia. (...) elegeram um objeto e o privilegiaram: a lei, o ordenamento positivo. (LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito na histria : op. cit., p. 203-4).

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    As clusulas gerais constituram uma notvel e muitas vezes elogiada concesso pelo positivismo auto-responsabilidade dos juzes e a uma tica social transpositiva, cujo padro propulsor para o legislador foi constitudo pela organizao dada pelo praetor romano ao judex para determinar o contedo da deciso de acordo com a bona fides. O legislador transformou o seu trabalho atra-vs da referncia boa-f, aos bons costumes, aos hbitos do trfego jurdico, justa causa, ao carcter desproporcionado, etc. em algo de mais apto para as mutaes e mais capaz de durar

    do que aquilo que era de esperar. (...) O reverso das clusulas gerais foi de h muito notado. Se a disciplina dogmtica do juiz se torna mais rigorosa, d-se uma tentativa de fuga para as clusulas gerais (Hedemann), para uma jurisprudncia voltada exclusivamente para a justia e liberta da obedincia aos princpios; em pocas de predomnio da injustia elas favorecem as presses polti-cas e ideolgicas sobre a jurisprudncia e o oportunismo poltico. Mesmo abstraindo destas pocas de degenerescncia, elas possibilitam ao juiz fazer valer a parcialidade, as valoraes pessoais, o arrebatamento jusnaturalista ou tendncias moralizantes do mesmo gnero, contra a letra e contra o esprito da ordem jurdica. 30

    Isso ocorreu exatamente pela ausncia de uma tendncia axiolgica capaz de nortear a interpretao judicial na Alemanha do inicio do sculo XX. No bastava o mero abandono de toda tcnica judicial at ento construda, o que viria somente a agravar a insegurana e o subjetivismo na deciso judicial. Havia a necessidade de uma referncia axiolgica que, no Brasil, somente veio com a Constituio Federal de 1988.

    Sendo assim, se inicia a problematizao da melhor interpretao para os conceitos vagos e a busca de um parmetro axiolgico para circunscrever a aplicao das clusulas gerais, evitando-se assim o to criticado subjetivismo judicial.

    3. O incio da problematizao. Limitao do dogma da subsuno e possvel interpretao evolucio-nista na colmatao de conceitos legais indeterminados

    O recuo do formalismo jurdico manifestou-se, assim, na libertao do juiz da vinculao estrita das hipteses de fato previamente definidas de modo estanque na lei. O estado social de direito alterou a

    funo da lei, e trouxe ao juiz a tarefa de ajustar o texto legal a critrios de justia, cabendo ao intrprete incorporar as valoraes incipientes da nova tica formada no mundo ps-guerra.

    A percepo do reducionismo sofrido pela cincia jurdica com a centralizao da teoria da subsun-o (e das interpretaes subjetivista/objetivista31), e a profuso de ideias contrrias exegese legalista, 32 30 WIECKER, Franz. Histria do Direito Privado Moderno, 3 edio, Fundao Calouste Gui Benkian, Lisboa, Traduo de A. M. Botelho Hespanha, do original intitulado Privatrechtsgeschichte Der Neuzeit Unter Besonderer Bercksichtigung Der Deutschen Entwicklung, 2 edio, Revista Vandenhoeck & Ruprecht, Gttingen, 1967, p. 546.31 Enquanto que o positivismo legalista propunha uma interpretao da lei de acordo com as intenes do seu legislador his-trico, o positivismo conceitualista prope o recurso fico de um legislador razovel, de um legislador que vai integrando (reescrevendo, reinterpretando) continuamente cada uma das normas no seu contexto sistemtico, de modo a que o ordena-mento jurdico de facto constitudo por uma mirade de normas contraditrias conserve sempre a sua integridade e coerncia como sistema conceitual. O sentido da norma decorre, assim, no de intenes subjectivas (do seu legislador histrico), mas dos sentidos objectivos do seu contexto. (HESPANHA, Antnio Manuel. Cultura Jurdica Europia: sntese de um milnio; Fundao Boiteux, 2005, p. 400).32 As escolas anticonceitualistas e antiformalistas, com o naturalismo jurdico, a Escola do Direito Livre, a Escola Teleolgica de Jhering, alm da Jurisprudncia dos Interesses, foram os movimentos que confrontaram o mtodo subsuntivo de aplicao da lei, e travaram crticas ao mtodo exegtico de aplicao do direito.

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    fizeram com que houvesse releituras ao paradigma da codificao, antes expresso de segurana jurdica

    e estabilidade social. 33

    A filosofia mudava, os interesses sociais se alteravam. A conscincia era outra. A concepo vo-luntarista do direito, como expresso da vontade individual, alterava-se. Os interesses transcendentes ao individual eram dignos de proteo, sobretudo, os interesses sociais objetivos (boa f contratual, dimenso social da propriedade, finalidade da instituio familiar, etc.). A lgica, agora, era utilitarista e transindi-vidual. 34

    O conceitualismo e seus dogmas, herdados do formalismo kantiano, que destacava a funo estrutu-rante do conhecimento jurdico, vinham sendo superados. 35

    A atividade judicante alcanava a possibilidade de criao do direito, com medidas prprias de va-loraes pelo aplicador da lei, lanando mo de valores transpessoais (coletivos) ou mesmo inerentes ao sujeito-juiz (voluntarismo judicial).

    O sculo XX foi marcado pela superao da dicotomia interpretao objetivista/subjetivista (ou ligada ao reconstrutivismo da lei ou ligada unicamente vontade do legislador). O mundo jurdico estava em pautas de ver um novo processo de interpretao e aplicao do direito.

    Se o objetivismo redundou nos exageros formalistas do sculo XIX, 36 e o subjetivismo alcanou a vertente de debilitar as estruturas clssicas do Estado de Direito37; a interpretao no Estado Social de Direito via-se em meios de desvincular da vontade do legislador a vontade da lei, lanando mos a um voluntarismo judicial regrado pelos valores e princpios constitucionais38, com o intrprete utilizando-se de valoraes transpessoais (coletiva) para proceder colmatao dos conceitos vagos dispostos nos tex-tos escritos.

    A teoria pura do direito de Kelsen, e seu tempo e a seu modo, operou esta substituio, do volunta-rismo do legislador para o voluntarismo do juiz, na medida em que para Kelsen, a interpretao mais um ato de vontade que de cognio e quando o juiz se decide por uma das possibilidades interpretativas, 33 Nesse sentido, Ricardo Luiz Lorenzetti aponta: O direito civil codificado era auto-suficiente, no necessitava de outros textos para solucionar litgios. (...) Antes, se uma questo no podia ser resolvida segundo as leis civis, recorria-se ao soberano. Agora, ao contrrio, resolve-se mediante leis anlogas ou princpios gerais do direito. Finalmente, o Cdigo foi expresso de uma ordem racional que propunha transcender todos os tempos e latitudes. (LORENZETTI. Ricardo Luiz. Teoria da Deciso Judicial. Fundamentos de Direito. Trad. Bruno Miragem. Notas Cludia Lima Marques. So Paulo, Ed. Revista dos Tribunais., 2009, p. 42-3).34 Nesse sentido: HESPANHA, Antnio Manuel. Cultura Jurdica Europia: sntese de um milnio; Fundao Boiteux, 2005, p. 405.35 Os dogmas conceitualistas (movimento anterior do positivismo legalista jurisprudncia dos conceitos, ou pandectstica) podem ser resumidos por Antonio Manuel Hespanha: (a) a teoria da subsuno (Subsumtionslehre); (b) o dogma da plenitude lgica do ordenamento jurdico; (c) a interpretao objetivista. (cf. HESPANHA, Antnio Manuel. Cultura Jurdica Europia: sntese de um milnio; Fundao Boiteux, 2005, p. 399-400).36 O objetivismo na interpretao da lei e da Constituio exprimiu sempre a posio predileta dos positivistas formais, da-queles que no sculo XIX, confiantes em fatores reinantes de estabilidade, fizeram do dogmatismo e do culto ou reverncia ao texto da lei o mais seguro penhor das instituies produzidas pela estrutura poltica do Estado de Direito. (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22 ed., 2008, p. 455).37 A vontade do legislador, para essa clssica concepo, baseada na vontade do povo, pessoa soberana, o que redundou no voluntarismo judicial, e mais tarde serviu para fundamentar, para a doutrina de Bonavides, os regimes nazistas e fascistas.38 O voluntarismo o trao marcante da corrente subjetivista. Ela se renova no sculo XX, com as modernas escolas de in-terpretao, que substituem o voluntarismo do legislador pelo voluntarismo do juiz. Assim, h sucedido, por exemplo, com os juristas da livre investigao cientfica (Geny), do direito livre (Kantorowicz) e da teoria pura do direito (Kelsen). (BONA-VIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22 ed., 2008, p. 453).

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    essa eleio ou preferncia se d fora da esfera terica, no mbito da poltica do direito. 39

    Karl Engish, comparando a interpretao jurdica objetivista (adotada na poca do formalismo) com os limites do subjetivismo judicial, em um primeiro momento exorta a hiptese de uma interpretao his-trica do preceito, dizendo que quando a vontade do legislador histrico no apreensvel, necessrio adotar-se a soluo mais razovel, a qual, na dvida, deve ser considerada como aquela que o legislador quis. 40

    Aps, reconhecendo que nem sempre isto possvel (achar uma soluo mais razovel e adot-la como a que o legislador quis), consente em pressupor casos em que se teria de proceder a uma adaptao do conceito legal com a poca do intrprete (desvinculando-o ento da vontade do legislador histrico). Ter-se-ia, na lio de Engish, que se verificar se no se ter porventura constitudo um Direito consue-tudinrio que confere ao juiz legitimidade para, despreendendo-se da vontade do legislador histrico, preencher o texto da lei com um sentido ajustado ao momento actual, um sentido razovel, adequado aos fins do Direito. 41

    Ora, em hipteses como estas, ento, o texto teria vida autnoma, porque se desvinculado do seu autor - o legislador histrico - lanando efeitos e consequncias sobre a histria posterior que o autor (o legislador) no poderia sequer imaginar. Aqui se diria, seguindo as lies de Hans-George Gadamer, que seu autor (o legislador) seria apenas um elemento ocasional, e a determinao do verdadeiro sentido do texto somente se daria com a anlise dos efeitos e consequncias que ele teria espelhado na histria posterior. 42

    Em outras palavras, para captar o verdadeiro sentido de um texto, seria imprescindvel um ulterior juzo de adaptao com a realidade social do momento em que ele interpretado, e no com o contexto poltico e social da poca do legislador.

    Se os textos legais no modelo de Estado atual so lanados cada vez mais com conceitos vagos ou abertos, inafastvel a ideia de que os ditos conceitos legais indeterminados tero de ser colmatados mediante valoraes. E mais, dependendo da dimenso da indeterminao, possvel sustentar uma total desvinculao do intrprete/aplicador da lei ou mesmo da vontade do legislador histrico. Karl Engish, a este respeito, alertou:

    As leis, porm, so hoje, em todos os domnios jurdicos, elaboradas por tal forma que os juzes e os funcionrios da administrao no descobrem e fundamentam as suas decises to-somente atravs da subsuno a conceitos jurdicos fixos, a conceitos cujo contedo seja explicitado com

    segurana atravs da interpretao, mas antes so chamados a valorar autonomamente e, por vezes, a decidir e a agir de um modo semelhante ao do legislador. E assim continuar a ser no futuro. Ser sempre uma questo duma maior ou menor vinculao lei. 43 (grifos nossos).

    39 Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, 1934, apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22 ed., 2008, p. 451-452.40 ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Fundao Calouste Gulbenkian. Lisboa. Traduo J. Baptista Macha-do. 7 edio, 1996, p. 182.41 ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 183.42 Sobre a histria dos efeitos de Hans-George Gadamer ver: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Histria da filosofia. So Paulo: Paulinas, 1990-1991. V. 3: Do romantismo at nossos dias, p. 632.43 ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 207.

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    Nesse aspecto, os conceitos dos textos legais, para Engish, muito raramente so absolutamente de-terminados (o autor considera como tais os conceitos numricos, de medida ou os referentes a valores monetrios - muito comuns no direito de Trnsito ou no estabelecimento de valores pecunirios). Em sua maior parte, nos fala o autor, os conceitos legais so predominantemente indeterminados, pelo menos em parte. 44

    A indeterminao, contudo, pode se dar em relao pluralidade de sentidos (e nestes casos, deve-se interpretar a partir do contexto do caso), ou em relao impreciso mesma dos limites do conceito (indeterminao em sentido estrito). 45 A, diga-se, h de se falar em indeterminao quando a subsuno, em virtude da pluralidade e complexidade das consideraes a fazer, pode pr em causa a univocidade do resultado, 46 e no to simplesmente quando a interpretao do conceito levante dvidas, caso em que caberia atividade judicial a tarefa de eliminar esta dvida (nesse sentido, inclusive, j tratava Kelsen).47

    A indeterminao em sentido estrito, portanto, ser aferida quando houver pluralidade de sentidos de uma palavra que exprime o conceito (quando bastar utilizar-se de uma interpretao progressista ou evolucionista48), ou quando houver uma impreciso dos limites do conceito (o que Phillip Heck denomina de halo do conceito49), mas devendo esta ltima impreciso levar a dificuldade (ou impossibilidade) de se encontrar um nico resultado com a utilizao da subsuno, e no meramente levantar dvidas que podero ser dirimidas pelo rgos judicial. 50

    Assim, estes conceitos que possuem seus limites imprecisos51 podem ser conceitos descritivos, ou normativos. Os conceitos descritivos so facilmente determinveis pela observncia da realidade, pois diz Engisch que designam descritivamente objetos reais ou objetos que de certa forma participam da rea-lidade, isto , objetos que so fundamentalmente perceptveis pelos sentidos ou de qualquer outra forma percepcionveis. 52 Os conceitos normativos, contudo, operam aquilo que o autor denominou de refe-rncia a valores, a saber, a referncia do contedo e da extenso de todo o conceito jurdico s especificas

    idias valorativas do Direito. 53

    Desse modo, os conceitos indeterminados normativos (de limites imprecisos) que fazem/levam o intrprete a uma referncia valorativa, acabam por se remeter a institutos do direito. Ou seja, a valorao que os permeia so valoraes encampadas pelo direito. Contudo, estas valoraes encampadas pelo di-reito, podem ocorrem de maneira direta ou indireta. Direta quando o sentido normativo preenchido pelo prprio significado do conceito, como por exemplo: Casamento, funcionrio pblico, menor, etc.

    Indireta quando o conceito, apesar de descrever um fato ou ato do mundo tangvel, necessita se referir 44 ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 209.45 Nesse sentido: ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., nota n. 03, p. 259.46 Nesse sentido BACHOF, citado por ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., nota n. 03, p. 260.47 Assim, mesmo, sustentava a teoria pura de Kelsen, na medida em que para ele caberia ao julgador a escolha de um dos sen-tidos, para dirimir a dvida, e realizar a subsuno, mediante a discricionariedade prpria do julgador. 48 Como aquela em que o intrprete faz um juzo posterior de adaptao da norma ao contexto social em que interpretada (hoje se diria em relao ao contexto axiolgico constitucional).49 Com Phillip Heck, podemos distinguir nos conceitos jurdicos indeterminados um ncleo conceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noo clara do contedo e da extenso dum conceito, estamos no domnio do ncleo conceitual. Onde as dvidas comeam, comea o halo conceitual. (ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 209).50 Tudo conforme ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 209.51 Chamados pelo autor de conceitos relativamente determinados (quando ao halo conceitual de Heck). E que deferem-se dos absolutamente determinados, quanto ao ncleo conceitual.52 Tudo conforme ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 210.53 Tudo conforme ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 210.

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    normatividade do direito para dar sentido ao conceito (por exemplo, coisa alheia, significa que pertence

    a outrem, ou seja, necessrio pressupor o regime jurdico da propriedade). 54

    Agora, h os conceitos indeterminados normativos que efetivamente necessitam de uma valorao advinda ou do subjetivismo do intrprete (conceitos discricionrios), ou de uma valorao preexistente no seio da coletividade. 55 Estes conceitos, sim, necessitam de preenchimento valorativo, e somente a se estar a referir limitao teoria da subsuno.

    Abre-se, assim, o questionamento de qual mtodo de interpretao caracterstico a ser usado para se aferir o preenchimento valorativo, e qual a pauta de valores utilizada para o balizamento deste preenchi-mento.

    A doutrina moderna vem, aos poucos, respondendo estes questionamentos de modo a remeter o intrprete a princpios jurdicos e valoraes advindas da Constituio, mediante uma interpretao que opera reenvios. Partiremos, ento, primeiramente, para a definio da metdica interpretativa, para somen-te aps tentar conceituar as clusulas gerais e diferenci-las dos ento conceitos legais indeterminados.

    4. A ruptura das codificaes. O declnio das aspiraes burguesas, e a ascenso das pautas axiolgicas constitucionais. Neoconstitucionalismo e neopositivismo. A nova hermenutica e as clusulas gerais.

    As codificaes oitocentistas eram tidas como constituies do direito privado, pois pautavam

    seus valores fundamentais no indivduo e na sua relao com o patrimnio, 56 assumindo o papel de es-tatuto nico e monopolizador das relaes privadas. Almejavam a completude, destinando-se a regular atravs de situaes-tipo, todos os possveis centros de interesse jurdico de que o sujeito privado viesse a ser titular, de modo que o direito pblico no viria de nenhuma forma interferir na esfera privada. 57 Este mundo da segurana, retratado pelas grandes codificaes privadas, entra em declnio na Europa j do final

    do sculo XIX, conforme preleciona Gustavo Tepedino:

    Os movimentos sociais e o processo de industrializao crescentes do sculo XIX, aliado s vi-cissitudes do fornecimento de mercadorias e agitao popular, intensificadas pela ecloso da

    Primeira Grande Guerra, atingiriam profundamente o direito civil europeu, e tambm, na sua es-teira, o ordenamento brasileiro, quando de tornou inevitvel a necessidade de interveno estatal cada vez mais acentuada na economia. O Estado legislador movimentava-se ento mediante leis

    54 Cf. ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 212.55 ENGISCH. Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Ob. Cit., p. 213.56 O direito privado clssico, nas palavras de Gustavo Tepedino, se ocupava em regular a atuao dos sujeitos de direito, nota-damente o contratante e o proprietrio, os quais, por sua vez, a nada inspiravam seno ao aniquilamento de todos os privilgios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expanso da prpria inteligncia e personalidade, sem restries ou entraves legais. (...) Ao direito civil cumpriria garantir atividade privada, e em particular ao sujeito de direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutveis nas suas relaes econmicas. Os chamados riscos do negcio, advindos do sucesso ou do insucesso das transaes, expressariam a maior ou menor inteligncia, a maior ou menor capacidade de cada indivduo. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4 edio. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 02-03)57 O Cdigo Civil de 1916, bem se sabe, fruto da doutrina individualista e voluntarista que, consagrada pelo Cdigo de Napoleo e incorporada pelas codificaes posteriores, inspiraram o legislador brasileiro quando, na virada do sculo, redigiu o nosso primeiro Cdigo Civil. quela altura, o valor fundamental era o indivduo. (...) o Cdigo Civil Brasileiro, como os outros cdigos de sua poca, era a Constituio do direito privado. De fato, cuidava-se da garantia legal mais elevada quanto disciplina das relaes patrimoniais, resguardando-as contra a ingerncia do Poder Pblico ou de particulares que dificultassem a circulao de riquezas. O direito pblico, por sua vez, no interferiria na esfera privada, assumindo o Cdigo Civil, portanto, o papel de estatuto nico e monopolizador das relaes privadas. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4 edio. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 02-03)

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    extracodificadas, atendendo s demandas contingentes e conjunturais, no intuito de reequilibrar o

    quadro social delineado pela consolidao de novas castas econmicas, que se formavam na ordem liberal e que reproduziam, em certa medida, as situaes de iniqidade que, justamente, o iderio da Revoluo Francesa visava a debelar. 58

    Pautada pela efervescncia social e cultural, num mundo onde a industrializao latente desestrutu-rou a estabilidade formada pela unio dos interesses anteriormente priorizada, a sociedade como um todo passa a no mais reger-se por uma nica e exclusiva classe hegemnica, desaparecendo o sujeito social nico a ser ouvido, o sujeito comum, aquele desenhado na esteira da Revoluo Francesa pelo princpio da igualdade, abstrata, frente lei. 59 A sociedade torna-se, a poucas pocas, um mundo massificado, complexo; massificao social corresponder o desenvolvimento irreversvel de um novo pluralismo social. 60

    Isso corresponde a dizer que a sociedade passou a deter peculiaridades que transpassaram a unidade concreta das relaes sociais 61, na medida em que a lei no mais representa uma nica e cristalina classe hegemnica.

    No mais se puderam acomodar num nico e exclusivo cdigo todos os interesses em que converge o multifacetado meio social. Custou-se a perceber, nas palavras de Martins-Costa, que no teria mais sentido, nem funo, o cdigo total, totalizador e totalitrio, aquele que, pela interligao sistemtica de regras casusticas, teve a pretenso de cobrir a plenitude dos atos possveis e dos comportamentos devidos na esfera privada, prevendo solues s variadas questes da vida civil em um mesmo e nico corpus legislativo, harmnico e perfeito em sua abstrata arquitetura. 62 Por certo o dogma da identidade entre o direito e a lei foi definitivamente superado.

    Notadamente, a multiplicidade de textos legais, nas palavras de Judith Martins-Costa, abalou fundamentalmente a estrutura codificada, 63 uma vez que a cada interesse presente na sociedade, frente a cada sujeito social dissonante, forte e ao mesmo tempo independente, correspondeu um micro-sistema legislativo multidisciplinar, o que mais tarde, na lio da autora, viria, juntamente com outros fatores, a impossibilitar a integridade lgica do sistema, esboando-se ento um mundo marcado pela inseguran-a, onde a imprevisibilidade das decises judiciais no raro afronta a estabilidade social. 64

    58 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4 edio. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 04.59 ... no h apenas um nico sujeito social a ser ouvido, no h mais um sujeito comum, como aquele desenhado na esteira da Revoluo Francesa pelo princpio da igualdade, abstrata, frente lei. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado: sistema e tpica no processo obrigacional, op. cit., p. 281)60 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 280.61 As expresses usadas por Judith Martins Costa, de unidade formal do Estado e unidade concreta das relaes sociais refletem a sociedade oitocentista, assentada na propriedade fundiria e no liberalismo econmico, com uma unssona classe hegemnica, dotada de um sistema jurdico completo, pleno, total, harmnico e autorreferente das leis civis. O cdigo era tido como a Constituio da vida privada, e, portanto, a unidade das relaes sociais representada pela unidade da classe hege-mnica se refletia na unidade legislativa que o cdigo continha. (cf. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 277).62 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 282.63 As leis se multiplicam no s em nmero, mas na modalidade expressiva e sinttica. A sua linguagem mltipla e discordan-te, prolixa e ambgua, declamatria e programtica est, enfim, completamente esquecida do desejo voltariano da lei claire, uniforme et prcise. Afasta-se para longe o mito de uma linguagem unitria, matematizante, desenvolvida segundo regras de interpretao precisas que atuem, para o intrprete, como critrios constantes e unvocos de leitura. (MARTINS-COSTA, Ju-dith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 282).64 Hoje vive-se, diversamente, no mundo da insegurana. Esta no reside apenas na circunstncia da multiplicidade de textos legais que abalaram a estrutura codificada, mas, fundamentalmente, na impossibilidade de manter-se, no universo em que vive-mos, a integridade lgica do sistema. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado: sistema e tpica no processo

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    Neste mundo da imprevisibilidade, a complexidade das demandas exige do legislador e do intrprete maior sensibilidade para fatores sociais afetos concretude e realidade muitas vezes vulnervel de de-terminadas camadas sociais, de sorte que a tcnica legislativa e a fundamentao do sistema alteraram-se substancialmente, com a incorporao de princpios estruturantes, com forte vis valorativo e fora nor-mativa, tratando-se agora de um sistema aberto, permevel, perene e mutvel de acordo com as exigncias da complexidade social.

    O direito do novo sculo um sistema aberto a valores. Canaris observa que essa abertura vale tanto para o sistema cientfico quanto para o sistema da ordem jurdica, a propsito do primeiro, a abertura significa a incompletude (e a provisoriedade) do conhecimento cientifico, e a propsito do ltimo, a muta-bilidade dos valores jurdicos fundamentais. 65

    Essa ideia de abertura traduz a permeabilidade do ordenamento jurdico a elementos externos, a valoraes principiolgicas, e intersubjetivas. A autoconteno do judicirio representou reflexo dos hor-rores do mundo ps-guerra, e a preocupao com os valores fez com que fosse alado a dignidade da pes-soa humana a principio unificador do sistema, a se irradiar em todas as relaes sociais, seja entre poder

    pblico e individuo, seja entre particulares (eficacia horizontal dos direitos fundamentais).

    A tcnica legislativa at ento eminentemente casustica66, abriu lugar discusso acerca de valores e princpios normativos atuantes no universo jurdico.

    Trazidos ao ordenamento mediante conceitos vagos, programticos, elsticos, etc., e interpretaes evolucionistas, os valores integrativos das normas, em conformao com o arcabouo constitucional, for-mam o novo paradigma da cincia do direito.

    O neoconstitucionalismo, embasado na nova concepo trazida pelo ps-positivismo67, promoveu uma nova releitura da constituio, alando-a como pauta axiolgica, como tbua de valores capaz de nor-tear a aplicao de textos legais infraconstitucionais. dizer, as legislaes infraconstitucionais passaram a somente deter validade material se constitucionalmente recepcionadas, ou seja, se em harmonia com as valoraes subjacentes ordem constitucional. E a Constituio passou a regular toda a interveno estatal na economia, inclusive lanando princpios e diretrizes que alcanariam o direito privado, maculando ou ao menos relativizando a separao entre as esferas do direito pblico e privado.

    Hoje, se observa, segundo Martins-Costa, uma crescente atuao da rbita estatal na regulao do

    obrigacional. Op. cit., p. 276).65 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. Fundao Calouste Gul-benkian, 3 edio, Lisboa, 2002, p. 281.66 O casusmo legislativo a que se refere quando o legislador antev determinados casos especficos (hipteses ou preceito primrio) e previamente define abstramente suas conseqncias fticas (preceito secundrio).67 O ps-positivismo o marco filosfico do neoconstitucionalismo. Segundo Luis Roberto Barroso: A superao histrica do jusnaturalismo e o fracasso poltico do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexes acerca do Direito, sua funo social e sua interpretao. O ps-positivismo busca ir alm da legalidade estrita, mas no despreza o direito posto. Procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafsicas. A interpretao e aplicao do ordenamento jurdico ho de ser inspiradas por uma teoria de justia, mas no podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de ideias ricas e heterogneas que procuram abrigo neste paradigma em construo incluem-se a atribuio de normatividade aos princpios e a definio de suas relaes com valores e regras; a reabi-litao da razo prtica e da argumentao jurdica; a formao de uma nova hermenutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximao entre o Direito e a filosofia. BARROSO, Lus Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do Di-reito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponvel em: . Acesso em: 21 fev. 2010.

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    mundo dos privados mediante, inclusive, o estabelecimento de polticas pblicas e a elaborao de nor-mas diretivas e a aceitao efetiva da fora normativa da Constituio sobre o direito privado, inclusive

    para o efeito da aplicao direta de seus princpios na legislao ordinria. 68

    Assim, ainda seguindo a doutrina de Martins-Costa, as codificaes no mais espelham, em suas

    palavras, a estrutura que, geometricamente desenhada como um modelo fechado pelos iluministas, en-controu a mais completa traduo na codificao oitocentista. Hoje a sua inspirao, mesmo do ponto de

    vista da tcnica legislativa, vem da Constituio, farta em modelos jurdicos abertos. Sua linguagem, di-ferena do que ocorre com os cdigos penais, no est cingida rgida descrio de fattispecies cerradas, tcnica da casustica. Um cdigo no-totalitrio tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que ligam a outros corpos normativos mesmo os extrajurdicos e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam,

    dialeticamente, aos princpios e regras constitucionais. 69

    Por certo, alguns valores j se inscreviam no sistema desde longa data, mas sofreram releituras, e ou-tros passaram a ter uma nova dimenso, sendo incorporados recentemente, mediante a praxis da aplicao das clusulas gerais e dos conceitos jurdicos indeterminados. 70

    Assim, o Cdigo Civil Brasileiro de 2002 incorporou inmeros conceitos jurdicos indetermina-dos e clusulas gerais, tornando-se imprescindvel, conforme a lio de Tepedino, que se realize uma inter-referncia interpretativa entre a codificao e a Constituio, in verbis:

    O novo Cdigo Civil brasileiro, inspirado nas codificaes anteriores aos anos 70, introduz inme-ras clusulas gerais e conceitos jurdicos indeterminados, sem qualquer outro ponto de referncia valorativo. Torna-se imprescindvel, por isso mesmo, que o intrprete promova a conexo axiol-gica entre o corpo codificado e a Constituio da Repblica, que define os valores e os princpios

    fundantes da ordem pblica. Desta forma, d-se um sentido uniforme s clusulas gerais, luz da principiologia constitucional, que assumiu o papel de reunificao do direito privado, diante da

    pluralidade de fontes normativas e da progressiva perda de centralidade interpretativa do Cdigo Civil de 1916. Dito diversamente, as clusulas gerais do novo Cdigo Civil podero representar uma alterao relevante no panorama do direito privado brasileiro desde que lidas e aplicadas se-gundo a lgica da solidariedade constitucional e da tcnica interpretativa contempornea. 71

    68 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado: sistema e tpica no processo obrigacional, op. cit., p. 282).69 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 285.70 BARROSO, Luis Roberto, op. cit., Revista Acadmica Brasileira de Direito Constitucional, p. 42. Cita-se, por relevante, trecho de sua entusiasta doutrina: As denominadas clusulas gerais ou conceitos jurdicos indeterminados contm termos ou expresses de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um incio de significao a ser complementado pelo intrprete, levando em conta as circunstncias do caso concreto. A norma em abstrato no contm integralmente os elementos de sua aplicao. Ao lidar com locues como ordem pblica, interesse social e boa f, dentre outras, o intrprete precisa fazer a valorao de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade ftica, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a soluo no se encontra integralmente no enunciado normativo, sua funo no poder limitar-se revelao do que l se contm; ele ter de ir alm, integrando o comando normativo com a sua prpria avaliao. As clusulas gerais no so uma categoria nova no Direito de longa data elas integram a tcnica legislativa nem so privativas do direito constitucional po-dem ser encontradas no direito civil, no direito administrativo e em outros domnios. No obstante, elas so um bom exemplo de como o intrprete co-participante do processo de criao do Direito. Um exemplo real, amplamente divulgado pela imprensa: quando da morte da cantora Cssia Eller, disputaram a posse e guarda do seu filho, poca com cinco anos, o av materno e a companheira da artista. O critrio fornecido pela Constituio e pela legislao ao juiz era o de atender ao melhor interesse do menor. Sem o exame dos elementos do caso concreto e sua adequada valorao, no era possvel sequer iniciar a soluo do problema. (BARROSO, Lus Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponvel em: . Acesso em: 21 fev. 2010).71 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 07-8.

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    Hoje, o ordenamento como um todo sustentado por princpios e valores fundantes que agasalhados pela Constituio contm fora normativa genrica e status de normas jurdicas.

    As normas-princpio, ademais, so tidas como um sustentculo, uma base inquebrantvel, os prin-cpios so ordenaes que se irradiam e imantam nos sistemas de normas, so - como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira - ncleos de condensao nos quais confluem valores e bens constitucionais 72.

    Mais um vez, Luis Roberto Barroso explicita:Os princpios do unidade e harmonia ao sistema; integrando suas diferentes partes e atenuando tenses normativas. De parte isto, servem de guia para o intrprete, cuja atuao deve pautar-se pela identificao do princpio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genrico ao

    mais especfico, at chegar formulao da regra concreta que vai reger a espcie. Estes os papis

    desempenhados pelos princpios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intrprete. 73

    Com efeito, os princpios foram acobertados pelo ordenamento jurdico como bases estruturais que sustentariam a partir de ento a convivncia humana. Incorporados nas legislaes dos Estados mundiais e nas Constituies, os princpios jurdicos abriram campo de pesquisa para uma nova concepo legislativa e de prxis jurdica. Sua fora normativa exsurgiu de seu enquadramento hierrquico-normativo como espcies de normas, gerais ou constitucionais, assim como o so as regras. 74

    72 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23 ed. So Paulo: ed. Malheiros, 2004, p.92.73 BARROSO, Luis Roberto, ob. cit., Revista Acadmica Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, 2001, p. 43. 74 As regras se aplicam mediante subsuno. So proposies normativas que contm um comando objetivo na forma de tudo ou nada, ou so aplicadas na sua plenitude ou so violadas. Conforme assevera Barroso, se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir de modo direto e automtico, produzindo seus efeitos. No incidir, no entanto, se for invlida, se houver outra mais especfica ou se no estiver em vigor (BARROSO, Luis Roberto, ob. cit., Revista Acadmica Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, 2001, p. 44). Quando h conflito entre as regras, se aplica uma em detrimento da outra, que violada. Assim sendo, quando a situao no pode ser regida simultaneamente por duas disposies legais que se contraponham, h trs tradicionais critrios que devem ser aplicados, conforme ensina Norberto Bobbio: o da hierarquia pelo qual a lei superior prevalece sobre a inferior; o cronolgico onde a lei posterior prevalece sobre a anterior; e o da especializao em que a lei especifica prevalece sobre a lei geral (BOBBIO, Norberto, Teoria do ordenamento jurdico, 1990, p. 81 e ss). Os princpios, entretanto, segundo Robert Alexy, devem se aplicar de forma mais ou menos intensa e de acordo com as possibilidades jurdicas existentes, sem nunca excluirem-se mutuamente, no comprometendo jamais a validade que detm no ordenamento jurdico. (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 1997, p. 81 ss). Quando ocorre coliso entre os princpios, em funo de seu maior grau de abstrao e amplitude, os critrios anteriormente narrados no so plenamente satisfatrios. No se pode simplesmente aplicar um em detrimento do outro. Por esse motivo, entra em cena a tcnica denominada ponderao de valores ou ponderao de interesses, pela qual se busca estabelecer o peso relativo de cada um dos princpios contrapostos, devendo-se aplicar no caso concreto cada qual na medida de suas possibilidades e valores condizentes e harmonizveis com a situao especfica. Dessa forma, no h que se falar em excluso mas sim em ponderao entre princpios. Devendo-se levar em conta sempre a importncia que os bens jurdicos cotejados tm no caso concreto bem como as peculiaridades de cada situao em especfico. Isso pode ser percebido no julgamento do HC n. 82.424/RS. O STF identificou um conflito envolvendo os princpios da dignidade da pessoa humana e da liberdade de expresso. No houve nesse caso, em momento algum, diga-se, excluso de um princpio em detrimento de outro, ou, sequer que existe hierarquia entre ambos. Houve que foram ponderados por meio de uma aplicao gradual. Como bem reconheceu o Ministro Marco Aurlio em seu voto, as colises entre princpio (sob essa tica) somente podem ser superadas se algum tipo de restrio ou de sacrifcio forem impostas a um ou aos dois lados. Enquanto o conflito entre regras resolve-se na dimenso da validade, (...) o choque de princpios encontra soluo na dimenso do valor, a partir do critrio da ponderao, que possibilita um meio-termo entre a vinculao e a flexibilidade dos direitos. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC n. 82.424/RS). Sem embargo, tal desenvoltura deve por certo, sempre e inelutavelmente, balizar-se pelos mais rgidos critrios outorgados pelos postulados da razoabilidade, proporcionalidade e proibio dos excessos (normas de segundo grau), esses que servem de parmetros para a aplicabilidade das normas (de primeiro grau) no sistema jurdico. Assim, seguindo a doutrina de Humberto vila, possvel distinguir os postulados (de maneira simplria) da seguinte forma: a) razoabilidade se caracteriza pelo exame concreto-indivi-dual dos bens jurdicos envolvidos em razo da particularidade ou excepcionalidade do caso individual; b) proporcionalidade se refere a um exame abstrato da relao meio-fim, e a c) proibio dos excessos diz respeito a que uma norma ao ser aplicada no pode invadir o ncleo essencial de um principio de ordem fundamental do cidado. (ver VILA, Humberto. A teoria dos princpios e o direito tributrio. Revista Dialtica de Direito Tributrio, So Paulo, v. 125, p. 33-49, fev. 2006).

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    E, por sua vez, os conceitos vagos (entre os quais estariam as clusulas gerais e os conceitos legais indeterminados), da mesma forma, so pontes que, legislativamente incorporadas, permeiam valores im-plcitos ou mesmo expressos em princpios constitucionalmente recepcionados para o interior do sistema. Se aplicam por intermdio deles - princpios, mediante um processo de reenvio a uma valorao tipici-zante (Martins-Costa)75 ou mesmo a um valor constitucional76, e trazem linguagem legislativa uma nova concepo de lei, mais aberta, mais perene e atual, e muito mais ligada equidade, por ser moldvel e adaptvel ao caso concreto, na forma da mensurao equitativa do intrprete. Na pertinente ponderao de Martins-Costa:

    Notadamente na segunda metade deste sculo, a tcnica legislativa foi radicalmente transformada, assumindo a lei caracteristicas de concreo e individualidade que eram prprias dos negcios pri-vados: no mais a lei como kanon abstrato e geral de certas aes, mas como resposta a especficos e determinados problemas. Irrompem na linguagem legislativa indicaes de valores, de progra-mas e de resultados desejveis para o bem comum e a utilidade social, terminologias cientficas,

    econmicas, sociais, compatveis com os problemas da idade contempornea. Tem sido observada a formulao, nos cdigos civis mais recentes e nas leis especiais, de certos tipos de normas que fo-gem ao padro tradicional, enucleado na definio, o mais perfeita possvel, de certos pressupostos

    e na correlata indicao punctual e pormenorizada de suas consequncias. Estas normas buscam a formulao da hiptese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos tm significados in-tencionalmente imprecisos e abertos, os chamados conceitos jurdicos indeterminados. Em outros casos verifica-se a ocorrncia de normas cujo enunciado, ao invs de traar punctualmente a hip-tese e as suas consequncias, intencionalmente desenhada como uma vaga moldura, permitindo, pela abrangncia de sua formulao, a incorporao de valores, princpios, diretrizes e mximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, bem como a constante formulao de novas normas: so as chamadas clusulas gerais.77

    A interpretao, portanto, ganhou nova perspectiva. A atividade hermenutica, que no mundo oi-tocentista estava fortemente ancorada a um modelo esttico, baseado na letra posta da lei, alou rumo progressivo. O texto legal, antes ampliado condio de objeto exclusivo da interpretao jurdica, hoje mero caminho para o intrprete percorrer: Se quiser chegar a uma concluso eqitativa, dever permear o texto legal, pela abrangncia de suas formulaes, com valores e princpios constitucionais, ou mximas de conduta orindos de elementos valorativos tipicizados78.

    Isso corresponde a dizer que o intrprete agora no mais se apega unicamente ao literal e objetivo (oriundo da lei ou da vontade do legislador), mas se subjaz da principiologia e das valoraes adjacentes ao ordenamento, para colmatar os conceitos jurdicos abertos ou indeterminados e as clusulas gerais ope-

    75 Por valorao tipicizante podemos entender seguindo a doutrina de Martins-Costa a regra social que detendo relevo e re-calcitrncia no seio da sociedade, so objetivamente vigentes no ambiente social, formando um arqutipo devidamente operado pela fonte jurisprudencial. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 334-7)76 Apresentam-se os valores constitucionais da solidariedade, da dignidade, da funo social, do Estado Democratico de Direito.77 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 285-6.78 Expresso que enfatiza uma aspirao social relevante para o direito, porque constitui um modelo jurdico, ou estrutura normativa que ordena fatos segundo valores, numa qualificao tipolgica de comportamentos futuros, a que se ligam de-terminadas conseqncias, em funo de valores imanentes ao prprio processo social. Os modelos so gerados por quatro fontes a legal, a consuetudinria, a jurisdicional e a negocial -, as quais resultam das quatro diversas formas de manifestao do poder de decidir atributo fundamental do conceitos de fonte no direito -, a saber: a) o poder estatal de legislar; b) o poder social, inerente vida coletiva, o qual se revela, na fonte consuetudinria, atravs de sucessivas e constantes formas de com-portamento; c) o poder (estatal) que se revela atravs do Judicirio; d) o poder negocial, que se expressa mediante o poder tem a vontade humana de instaurar vnculos reguladores do pactuado com outrem. As fontes de produo jurdica seja a lei, a jurisdio, o costume ou o negcio jurdico, geram modelos jurdicos. (cf. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 332-3).

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    rativamente dispostas nas legislaes.

    As prescries legais agora podem no mais se reduzir a uma simplria subsuno operada atravs de dedues silogsticas, pois a complexidade social ostenta valores nem sempre facilmente observveis. H por certo srias limitaes na tcnica casustica, ante o infindvel nmero de diplomas legislativos

    especificadores que abarcam uma complexa rede de interesses nem sempre convergentes.

    Em outras palavras, a tcnica de regulao casustica (em que h uma perfeita especificao ou

    determinao dos elementos que compe o fattispecie) 79, por si s, insuficiente para uma satisfatria regulamentao social, o que vem exigindo por parte dos legisladores cada vez mais o uso de tcnicas legislativas permeadas de conceitos vagos, programticos, em branco, os quais demandam muito mais do intrprete na funo de criao do direito, do que a mera subsuno do preceito legal especfico ao caso

    concreto. 80

    A nova hermenutica, portanto, repercute no novo paradigma do direito civil, trazido pelas expres-ses do direito civil-constitucional.

    Encerrada a poca das codificaes, com as Constituies assumindo o papel de centro do sistema,

    assumindo tambm o papel de referncia axiolgica ao preenchimento de conceitos vagos e das clusulas gerais, pode-se chegar a um delineamento pelo menos tangencial da fundamentao do sistema, e das re-ferncias utilizadas para o preenchimento dos conceitos vagos.

    Nesse sentido, ao mesmo tempo em que finda o problema da referncia para a vagueza conceitual,

    comea uma infinidade de teses que ainda no se encontram passveis sequer se sistematizao. Discus-ses como a do dilogo das fontes, em que aproxima o Cdigo Civil da principiologia ligada ao Cdigo de Defesa do Consumidor, notadamente na rea contratual; como a que perscruta uma clusula de abertura dos direitos fundamentais para alm das constituies, alcanando inclusive legislaes infraconstitucio-nais81, ou seja, no campo do direito civil-constitucional, pelo menos, se abre uma infinidade de discusses que ainda no se encontram sequer parametrizadas, o que faz com que aquele ideal de sistematizao da cincia jurdica, a partir deste novo paradigma do direito, comece a tecer veios de insegurana jurdica, caso no houvesse um postulado unificador, como a dignidade da pessoa humana, 82 para centralizar a 79 O legislador fixa, de modo o mais possvel completo, os critrios para aplicar uma certa qualificao aos fatos, de modo que, em face da tipificao de condutas que promovem, pouca hesitao haver do intrprete para determinar o seu sentido e alcan-ce. Este poder aplicar a norma mediante o processo mental conhecido como subsuno. H uma espcie de pr-figurao, pelo legislador, do comportamento marcante, a ser levado em conta pelo intrprete, uma vez que o legislador optou por descrever a factualidade. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 297).80 (...) o carter de determinao ou tipicidade que caracteriza a casustica (...) vem sendo apontado como um dos principais, seno o principal, fator de rigidez e, por conseqncia, de envelhecimento dos cdigos civis. A razo est, conforme Natali-no Irti, em que o legislador cria um repertrio de figuras e disciplinas tpicas (...) ao qual o juiz pouco ou nada pode aduzir para o disciplinamento do fato concreto. As disposies definitrias, tais como as da casustica, conduzem o intrprete a uma sub-suno quase automtica do fato sob o paradigma abstrato. Tem, portanto, esta tcnica um carter de rigidez ou imutabilidade, o qual acompanha a pretenso de completude a ambio de dar resposta a todos os problemas da realidade. Em contrapartida, s clusulas gerais assinalada a vantagem da mobilidade proporcionada pela intencional impreciso dos termos da fattispecie que contm, do que o risco do imobilismo afastado por esta tcnica porque aqui utilizado em grau mnimo o princpio da tipicidade. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 298).81 Ver nesse sentido: MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocencio Mrtires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional - 5 Ed. 2010, no que se refere ao captulo que trata dos direitos fundamentais, das clusulas ptreas e da reserva legal.82 possvel sustentar, embasado na perspectiva civil-constitucional do direito privado, a existncia de uma clusula geral fun-dante ou que estrutura o ordenamento jurdico contemporneo, a clusula geral de tutela da pessoa humana , prevista no texto constitucional nos artigos 1, inciso III, (a dignidade humana como valor fundamental da Repblica), 3, inciso III e 5, caput (igualdade substancial e formal). Sua funo seria a salvaguarda de um espao privado que proporcione condies ao pleno

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    interpretao do direito.

    5. As clusulas gerais e os conceitos jurdicos indeterminados. Uma conceitualizao possvel. Limita-o ou insuficincia

    Por certo, os conceitos vagos ou indeterminados e, especificamente, as clusulas gerais, so dotados

    de grande mobilidade83, possuindo uma abertura semntica, o que possibilita atividade jurisprudencial, com base em princpios e valores hoje incorporados nas legislaes fundantes dos Estados contemporne-os, construir progressivamente as respostas para os problemas que a realidade apresenta. 84

    Poder-se-ia estabelecer uma distino, para efeitos deste estudo, acerca de conceitos jurdicos inde-terminados e das clusulas gerais, 85 entretanto, bom recordar que no h uma unanimidade na doutrina contempornea acerca da correta nomenclatura destes conceitos, os quais, pela vagueza semntica de seus termos, os denomino simplesmente de conceitos vagos. 86

    desenvolvimento da pessoa, um mnimo vital , que permita a cada ser humano o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Referida clusula geral de tutela da personalidade representa uma referncia interpretativa para todas as situaes nas quais os aspectos ou desdobramentos da personalidade estejam em jogo, uma vez que estabelece a prioridade da pessoa humana no cotejamento de valores em conflito, at por ser a pessoa, conforme Perlingieri, o valor fundamental do ordenamento, que est na base de uma srie (aberta) de situaes existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutvel exigncia de tutela. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 155). Dessa forma, o respeito pela pessoa humana polariza as tendncias jurdicas e interpretativas na contemporaneidade, e suas caractersticas e atributos constituem a personalidade. Nesse sentido, leciona Gustavo Tepedino: Personalidade como valor, j se disse, caracterstico da pessoa humana, atraindo, por isso mesmo, disciplina jurdica tpica e diferenciada, prpria das relaes jurdicas existenciais. J a qualidade para ser sujeito de direito o ordenamento confere indistintamente a todas as pessoas e, segundo opes de poltica legislativa, pode faz-lo em favor de entes despersonalizados. Por isso mesmo, deve-se preferir designar este ltimo sentido de personalidade como subjetividade, expresso que, de resto, no incomum em doutrina (por todos, Francisco Amaral, Direito Civil, p. 220, para quem a personalidade ou subjetividade, significa, ento, a possibilidade de algum ser titular de relaes jurdicas). Em outras palavras, a personalidade, ao contrrio da subjetividade, expresso da dignidade da pessoa humana e objeto de tutela privilegiada pela ordem jurdica constitucional (...) (TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MO-RAES, Maria Celina Bodin de. Cdigo Civil interpretado conforme a Constituio da Repblica, ob. cit., p. 04-5).83 As clusulas gerais tm a funo de permitir a abertura e a mobilidade do sistema jurdico. Esta mobilidade deve ser en-tendida em dupla perspectiva, como mobilidade externa, isto , a que abre o sistema jurdico para a insero de elementos extrajurdicos, viabilizando a adequao valorativa, e como mobilidade interna, vale dizer, a que promove o retorno, dialeti-camente considerado, para outras disposies interiores ao sistema. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 341).84 ... as clusulas gerais (...) legitimam o juiz a produzir normas que valem para alm do caso onde ser promanada concreta-mente a deciso. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 341).85 Os conceitos jurdicos indeterminados, para Judith Martins-Costa, integram sempre a descrio do fato, ou seja, em suas nas palavras, a liberdade do aplicador se exaure no estabelecimento da premissa, de modo que uma vez estabelecida, in concreto, a coincidncia ou a no-coincidncia entre os acontecimentos real e o modelo normativo, a soluo estar, por assim dizer, pre-determinada. O caso seria, pois, de subsuno. No haveria, a, para a autora criao do direito por parte do juiz, mas apenas interpretao. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f no direito privado, op. cit., p. 326). No essa, contudo, a concluso de Karl Engisch quando delineia os denominado conceitos discricionrios (acerca disto ver o capitulo 03 deste trabalho).86 A expresso conceitos gerais no tecnicamente mais adequado, pois no se pode adjetivar generalidade s clusulas ge-rais, na medida em que o termo vagueza semntica mais adequado, porque no constitui uma impreciso qualquer, uma impreciso genericamente considerada. uma impreciso de significado, (...) o conceito de vaguesa um conceito relativo s acepes do termo significado (...) na linguagem jurdica (...) a vagueza ser intencional, ou programtica, sendo utilizada na perseguio de certas finalidades. (...) Diz-se vaga uma norma ou preceito quando no seu enunciado se apresentam ou podem se apresentar casos-limite. (...) O fato de conter expresses ou termos vagos no significa seja a mesma despida das qualidades essenciais s normas jurdicas, como a coercibilidade e a obrigatoriedade. Para que isso ocorra, contudo, preciso que sejam encontrados os critrios de aplicao. Cludio Luzzatti cunhou a expresso vagueza socialmente tpica para indicar os casos de emprego legislativo de expresses programaticamente vagas, verificveis quando algum termo, segundo uma certa inter-pretao, exprime um conceito valorativo cujos critrios aplicativos no so sequer determinveis seno atravs da referncia aos variveis parmetros de juzo e s mutveis tipologias da moral social e do costume. O critrio para a aplicao das normas

  • AS CLUSULAS GERAIS, UMA PERSPECTIVA HISTRICO-CONSTRUTIVA DO DIREITO PRIVADO CONTEMPORNEO

    Redes: R. Eletr. Dir. Soc., Canoas, v. 1, n. 1, p. 143-176, nov. 2013

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    Assim, nos conceitos vagos, ou h o simples preenchimento de um significado (dotado pela carac-terstica da vagueza comum ou socialmente tpica87) pelo intrprete, devendo para tanto o aplicador da lei interpretar evolutivamente o texto, procedendo a uma interpretao, em um primeiro momento que se exaure na significao histrica de um instituto, mas que posteriormente procede a uma adaptao social

    da significao normativa; ou tal como haveria de ocorrer nas clusulas gerais, pode haver uma efetiva criao judicial do direito pelo intrprete/aplicador, e a, detendo uma dimenso de operabilidade, neces-sitando estar expressas, escritas, deslocam o intrprete mediante o que Judith Martins-Costa rotula de

    reenvio a um valor ou princpio que pode estar expresso ou ainda inexpresso (mas que necessariamente existe na rbita constitucional), e que necessariamente possui um carter de sustentculo do ordenamento, uma valorao fundante, de origem, que detm caracterstica estrutural do sistema.

    As clusulas gerais, nesse sentido, teriam a sua fattispecie necessariamente concretizada por valores constitucionais.

    E estes valores, standards ou mesmo princpios, aos quais o intrprete reenviado, possuem fontes oriundas da construo do sistema agora aberto 88, sendo ainda que em um primeiro momento encontrados fora do sistema, mas com a reiterao de casos semelhantes, paulatinamente vetorizados pela jurisprudn-cia para dentro do sistema, operando o que Martins-Costa denomina de ressistematizao de um elemento originalmente extra-sistemtico. Da que na clusula geral h a efetiva criao judicial do direito com nfase no caso concreto. Para a autora,