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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 As aventuras de O Fantasma e Tarzan na África: uma história de amor e dominação análise de cartuns publicados por Ziraldo no Jornal do Brasil (1968) Marcos Rafael da Silva 1 Para iniciar gostaria de tecer alguns breves comentários a respeito do tema proposto para esta comunicação, à luz das polêmicas em que o artista gráfico Ziraldo Alves Pinto esteve envolvido nesses últimos meses. Em fevereiro desse ano, Ziraldo produziu um desenho para estampar as camisetas de um tradicional bloco de carnaval carioca. Na composição figurava Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, desenhada sensualmente, e um gato posicionado entre as pernas dos personagens segurando um porrete, trata-se do gato da cantiga de roda. Há ainda duas flores, um cravo e uma rosa que ladeiam a composição, uma pela esquerda e outra pela direita O nome do bloco “Que merda é essa” é apresentado com uma alteração, ao invés da palavra “merda”, Ziraldo desenhou um M com um asterisco, espécie de comedimento da sua parte. A proposta do bloco era a do questionamento da postura racista de Monteiro Lobato, além da alusão às relações interpessoais com a metáfora do cravo-rosa, e do Atirei o pau no gato. O samba-enredo do bloco “Proibido proibir” declarava esse desejo de não censura, de não cerceamento; por liberdade. Contudo, o desenho gerou uma série de questões que envolvem a própria produção de Monteiro Lobato, considerada por muitos como racista, e o desenho em si. Apesar de não possuir um instrumental teórico que dê conta dessas questões, acho indispensável, porém, me manifestar nesse sentido, pois como pesquisador deste autor, tenho me deparado com várias outras polêmicas que circulam sua carreira, sejam por seus desenhos, sejam por suas declarações, vide, por exemplo, o conflito entre ele e grupos feministas na década de 80, a respeito de uma charge publicada no Pasquim 2 . 1 Mestrando do PPG de História Social/FFLCH-USP. Graduado em História, FACVEST/SC. 2 A charge em questão foi publicada no Pasquim, na edição de 3 de outubro de 1980, sob o título de O Piche. Nela constam duas mulheres “pichando” um muro com dizeres parecidos, porém com conotações completamente diversas. A mulher da esquerda, baixa, gorda e de cabelos curtos e crespos escreve no muro: Nosso corpo nos pertence. A mulher da direita, representada graficamente com sensualidade, alta, cabelos compridos e esvoaçantes, cintura fina, pernas longas, quadril avantajado, escreve: Nossos corpos nus pertencem. O movimento feminista, alvo direto da charge, foi pra cima de Ziraldo acusando-o de machista, na forma de retratar a mulher, e na intenção de dizer que os corpos belos, diga-se de passagem, femininos pertenceriam aos homens. A polêmica é discutida, do ponto de

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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1

As aventuras de O Fantasma e Tarzan na África: uma história de amor e dominação

– análise de cartuns publicados por Ziraldo no Jornal do Brasil (1968)

Marcos Rafael da Silva1

Para iniciar gostaria de tecer alguns breves comentários a respeito do tema

proposto para esta comunicação, à luz das polêmicas em que o artista gráfico Ziraldo

Alves Pinto esteve envolvido nesses últimos meses. Em fevereiro desse ano, Ziraldo

produziu um desenho para estampar as camisetas de um tradicional bloco de carnaval

carioca. Na composição figurava Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, desenhada

sensualmente, e um gato posicionado entre as pernas dos personagens segurando um

porrete, trata-se do gato da cantiga de roda. Há ainda duas flores, um cravo e uma rosa

que ladeiam a composição, uma pela esquerda e outra pela direita O nome do bloco

“Que merda é essa” é apresentado com uma alteração, ao invés da palavra “merda”,

Ziraldo desenhou um M com um asterisco, espécie de comedimento da sua parte. A

proposta do bloco era a do questionamento da postura racista de Monteiro Lobato, além

da alusão às relações interpessoais com a metáfora do cravo-rosa, e do Atirei o pau no

gato. O samba-enredo do bloco “Proibido proibir” declarava esse desejo de não censura,

de não cerceamento; por liberdade.

Contudo, o desenho gerou uma série de questões que envolvem a própria

produção de Monteiro Lobato, considerada por muitos como racista, e o desenho em si.

Apesar de não possuir um instrumental teórico que dê conta dessas questões, acho

indispensável, porém, me manifestar nesse sentido, pois como pesquisador deste autor,

tenho me deparado com várias outras polêmicas que circulam sua carreira, sejam por

seus desenhos, sejam por suas declarações, vide, por exemplo, o conflito entre ele e

grupos feministas na década de 80, a respeito de uma charge publicada no Pasquim2.

1 Mestrando do PPG de História Social/FFLCH-USP. Graduado em História, FACVEST/SC.

2 A charge em questão foi publicada no Pasquim, na edição de 3 de outubro de 1980, sob o título de O

Piche. Nela constam duas mulheres “pichando” um muro com dizeres parecidos, porém com

conotações completamente diversas. A mulher da esquerda, baixa, gorda e de cabelos curtos e crespos

escreve no muro: Nosso corpo nos pertence. A mulher da direita, representada graficamente com

sensualidade, alta, cabelos compridos e esvoaçantes, cintura fina, pernas longas, quadril avantajado,

escreve: Nossos corpos nus pertencem. O movimento feminista, alvo direto da charge, foi pra cima de

Ziraldo acusando-o de machista, na forma de retratar a mulher, e na intenção de dizer que os corpos

belos, diga-se de passagem, femininos pertenceriam aos homens. A polêmica é discutida, do ponto de

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Pode-se até mesmo pensar na constituição da própria figura pública de Ziraldo, mas isso

foge às dimensões deste trabalho.

Figura 1 Dados da Imagem: ZIRALDO. Que m* é essa?, estampa de camiseta

do Bloco Que merda é essa?, 2011. Fonte: WILBOR. Disponível em: http://wrevolta.blogspot.com/.

Acesso em 14/05/2011.

Dá para perceber a partir da análise do cartaz uma reserva por parte de Ziraldo.

Quando substitui a palavra “merda” por um M com asterisco evita o choque que a

palavra de baixo escalão poderia suscitar, atrapalhando assim a sensação de harmonia

expressada pelos personagens em cena. Outro aspecto relevante é a presença do gato da

cantiga, que mesmo vítima de violência vem confraternizar-se com os demais. Cantigas

de roda, contos de fadas, histórias de terror, já foram estudas por sociólogos,

comunicólogos, historiadores que perceberam uma função social em tais narrativas.

DARTON (2006) estudou os contos de Mamãe Ganso e de Chapeuzinho Vermelho e

percebeu que, entre outras coisas, as histórias possuíam um caráter prático bastante

evidente: evitar que as crianças fossem vitimas de violência, sobretudo sexual, ao dar

meios a elas para identificar situações de risco.

vista feminino, deve-se acrescentar, por Raquel Soihet em Preconceitos nas charges de O Pasquim:

mulheres e a luta pelo controle do corpo.

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Em suma, o modo como Ziraldo conduziu a situação é preocupante. Ainda mais

quando declara, em sua defesa que "racismo sem ódio não é racismo". Na verdade a

declaração não é errada só na aplicação, pois Lobato desprezava sim negros e mestiços,

é errada no princípio: racismo não tem a ver com ódio, tem a ver com poder.

(WILBOR, 2011) Lobato faz parte de uma geração de pensadores que vislumbravam o

fracasso na miscigenação de raças, na mistura das indolências de índios e negros ao

esforço colonizador e civilizacional do homem branco.

Na história do pensamento brasileiro debruçado sobre a sociedade e sua

cultura, são freqüentes e, às vezes, notáveis os tipos que se criam e recriam,

taquigrafando a difícil e complexa realidade. Assim, a história aparece como

uma coleção de figuras e figurações, ou tipos e mitos, relativos a indivíduos

e coletividades, a situações e contextos marcantes, a momentos da

geohistória, que se registram metafórica ou alegoricamente. Esclarecem ou

ordenam o que se apresenta complexo, contraditório, difícil, como é

habitualmente a realidade histórico-social, em suas formas de sociabilidade

e em seus jogos de forças sociais. (IANNI, 2002)

Seria ingenuidade pensar que apresentar Monteiro Lobato abraçado a uma

mulata é refletir a respeito do racismo, da discriminação, ou da postura do

“politicamente correto” da classe média. Basta ver como está representada

graficamente a mulata. Ela está para Monteiro Lobato como companhia dos momentos

de prazer e gozo, como mulher-objeto. Ao mesmo tempo, trazer essas questões a baila é

fazer pensar sobre elas. Cabe-nos, contudo, a preocupação de trazer também reflexões

mais consolidadas, e fundamentadas teoricamente. Como dissemos antes, por não ser

um estudioso dessas questões coloco-me de um ponto vista pessoal.

Ziraldo utiliza-se do humor como elemento constitutivo de sua produção

gráfica. Caricaturas, cartuns, peças publicitárias, histórias em quadrinhos são criadas

para suscitar o riso. O humor como problema filosófico está presente desde a

Antiguidade. Segundo Alberti, a definição do riso como paixão da alma remonta a

Antiguidade, mas foi utilizada até o século XIX. (2002: p. 39)

Ramos (2007) sintetiza, de acordo com Raskin e Attardo, o pensamento

moderno sobre o humor em três grupos de teorias: a da superioridade, a do alívio e a

teoria da incongruência.

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A teoria da superioridade, baseada em autores como Platão, Hobbes e Bergson,

propõe que o riso é gerado na relação de hierarquia entre os participantes de uma

determinada situação. Para Bergson, o cômico cuja manifestação tem-se com o riso, é

necessariamente humano, social e insensível, sendo a insensibilidade justamente a

incompatibilidade do riso com a emoção. (ALBERTI, 2002: 190)

Por exemplo, numa charge publicada por Ziraldo no Pasquim em que figura

Herman Kahn sendo chamado por Tarzan com um Let’s go, Sheeta!, o riso é despertado

no momento que ao ser comparado a um macaco kahn é rebaixado, têm sua humanidade

retida. Nesta composição mista de desenho e colagem, Ziraldo utilizou uma fotografia

feita por Darcy Trigo, em 1970 e que foi veiculada na Revista Veja. O futurólogo

Herman Kahn, conhecido internacionalmente, havia feito prognósticos bastante

sombrios para o Brasil. Por isso, a desforra com o cartum de Ziraldo é completa

justamente porque coloca uma figura publicamente negativa num lugar de submissão,

que podemos supor, causou furor entre os contemporâneos. Assim, o riso é despertado

pela situação vexatória em que é colocada uma das partes. E Ziraldo, a meu ver, utiliza

bem esse recurso na produção de seu humor.

Figura 2 - ZIRALDO. Os Zeróis. Fonte. Pasquim, Rio de

Janeiro,

n. 5, p. 6, julho de 1969.

Figura 3 - Herman Kahn. Foto de Darcy Trigo.

Disponível em

:http://vivipara.blogspot.com/2010/09/premio-esso-de-

fotojornalismo-de-1966.html. Acesso em 14/05/2011.

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A teoria do alívio foi proposta por Freud e parte do pressuposto de que o humor,

o riso é uma manifestação inconsciente de prazer, causando alívio. A teoria da

incongruência é pensando por Schopenhauer, para quem o riso está atrelado ao

pensamento sendo fruto de uma incongruência repentina entre duas formas de

representar o mundo: a abstrata (baseada nos conceitos) e a intuitiva (percepção e

entendimento dos objetos reais). (RAMOS, 2007: 121)

Posiciono-me no grupo que percebe o riso como expressão de superioridade, sob

um aspecto social, que segundo Bergson, estaria relacionado na existência do que

chamou de mecânico e vivo. Não desconheço os limites desta interpretação, sendo

inevitável, no entanto, uma escolha. (ALBERTI, 2002: 184-197)

Os Zeróis Fantasma e Tarzan

Estes cartuns fazem parte de uma série de outros que Ziraldo publicou ao longo

da década de 60, sob o título geral de Os Zeróis. Os Zeróis surgem na esteira do

desenho e do humor, publicados na revista Fatos&Fotos em cores, num bom

acabamento gráfico, para a edição de 13 de maio de 1967. A revista Fatos&Fotos foi

publicada semanalmente em Brasília, editada por Bloch Editores S/A. Em novembro do

mesmo ano aparecem também nas páginas do Jornal do Brasil. Os Zeróis foram

publicados também no Pasquim, na revista Bundas, no OPasquim21, e nas revistas

internacionais Penthouse, Planète e Época. A presença dessas personagens em

diferentes periódicos indica a força comunicativa das mesmas, bem como de seu

criador.

Ziraldo ao nomear essas personagens de Os Zeróis, numa junção de zero e herói,

sublinha o caráter satírico das mesmas, pois é no momento da leitura do título/nome

dessas personagens que fica claro que se trata de personagens de humor. Além de

referenciar a seu próprio nome. A sonoridade do título também é alcançada com a

utilização da letra Z. Ao passo que eles são zero em heroicidade, entendido no sentido

da narrativa trivial proposta por Flávio Kothe (1987), são dez em humanidade. Assim, a

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expectativa criada reforça o efeito de humor causado. Os Zeróis desmistificam, embora

seu criador afirme não desejá-lo (CIRNE, 1972), os super-heróis norte-americanos,

dotando-lhes de extrema humanidade.

Parodiando os super-heróis americanos, Os Zeróis acabam por levantar questões

importantes das relações interpessoais, bem como na conjuntura do período. Sendo que

as abordagens das questões são das mais diversas, desde sexualidade, divórcio,

infidelidade, ligadas, portanto, às problemáticas do comportamento, que naquele

período histórico eram contestadas sobremaneira, até questões da esfera do político. A

força física, ou melhor, a ausência da força física também é explorada, numa atitude

extrema de ironia, uma vez que é justamente a força sobre-humana que diferencia o

homem comum do super-herói dos quadrinhos.

Os cartuns que serão analisados fazem referências à presença estrangeira nos

países africanos, apesar de não fazer distinção entre quais. Pode-se tomar, portanto, que

nossos personagens estão na África, sendo pouco importante para o entendimento dos

mesmos saber o local exato onde se passa a narrativa. Os cartuns em questão foram

publicados no Jornal do Brasil em 1968.

O Jornal do Brasil é fundado em 9 de abril de 1981, nos tumultuados anos após a

proclamação da República. Apesar de não ter contribuído para a implantação do novo

regime, o periódico manifesta-se como atuante partidário da consolidação do mesmo.

Contudo, a história do Jornal do Brasil vai ser marcada por diversas reviravoltas,

ligadas, sobretudo, às mudanças da direção do jornal. Um exemplo sintomático é o

empastelamento sofrido sob a direção de Rui Barbosa que atacava veementemente o

governo de Floriano Peixoto. (SODRÉ, 1999: 284)

O jornal volta a ser publicado em 15 de novembro de 1894, sob a direção da

firma Mendes & Cia. A data não foi escolhida despropositadamente, mas exprimia o

desejo da nova direção de coadunar-se junto ao novo regime, e deixar para trás a pecha

de jornal monarquista. O Jornal do Brasil teve importância capital na história da

editoração gráfica brasileira, por suas inovações que serviram de modelo gráfico a

diversos periódicos. Exemplo dessas inovações editoriais é a publicação em dezembro

de 1902, de um romance policial quadrinizado, ilustrado por Julião Machado. Trata-se

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de Os Irmãos da Luva Vermelha, que era apresentado com letras desenhadas sem serifa,

em caixa alta, o que dava um aspecto “limpo” às palavras, tornando-as mais evidente ao

leitor. A estrutura das histórias era composta na vertical, formada por dois ou três

quadros com desenhos, sendo que o texto era posicionado na lateral das ilustrações

(SODRÉ, 1999: 285).

Além das duas edições diárias, a empresa ainda publicava uma edição semanal

ilustrada, a Revista da Semana; uma edição mensal de informações úteis, o Guia Mensal

do Jornal do Brasil, e uma edição anual com desenhos em cores e em preto e branco, o

Anuário Ilustrado do Jornal do Brasil.

Em relação às ilustrações o Jornal do Brasil foi pioneiro a utiliza-las como forma

de comunicação, pois suavizava o esquema sólido do texto impresso, sobretudo quando

disposto da forma que era. A popularização da fotografia anos mais tarde, vai fazer cair

a utilização dos desenhos nos jornais sem, no entanto, deixar de marcar presença. A

existência de cartunistas como Belmonte, Péricles, J. Carlos, Millôr, Ziraldo atesta isso.

Este cartum (figura 4) foi publicado no Jornal do Brasil em 08 de janeiro de

1968, e consiste no diálogo entre o personagem Fantasma e sua “eterna” noiva Diana.

Figura 4 – ZIRALDO. Fonte: Caderno B, Jornal do

Brasil. Rio de Janeiro, 08/01/1968.

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Fantasma surpreende Diana ao dizer que sentia muito, mas que havia outra em sua vida.

A outra em questão é uma pigmeia. Segundo o dicionário online Dicionário Priberam da

Língua Portuguesa, pigmeia é a variante de gênero de pigmeu designa 1. Anão. 2.

Homem sem importância. Nesse sentido, a surpresa de Diana é ser trocada por uma

mulher-anã, insignificante. O que causa justamente o efeito de humor, é o fato da bela

Diana ter sido trocada por uma mulher “feia” e ao mesmo tempo passional, pois

pendurada no pescoço de Fantasma. Ziraldo trabalha muito bem graficamente suas

personagens, na confecção do desenho utiliza linha média. A linha média é comum a

quase todo tipo de desenho, principalmente na charge, qualquer que seja a sua temática,

ela valoriza a composição. (AGOSTINHO, 1993: 235)

Neste cartum Ziraldo parte da premissa anterior, que suscitou o riso, mas inclui

outros elementos. Tira Diana de cena, e acrescenta pigmeus e pigmeias, todos com uma

função clara na narrativa. No primeiro plano temos torre humana, formada por cinco

pigmeias, Fantasma beija e é beijado. O esforço de agradar ao “homem amado” é

reconhecido por dois pigmeus que assistem a cena, num segundo plano. O diminuto

tamanho dos pigmeus é sobressaltado através de alguns elementos contrastantes. No

caso dos pigmeus do segundo plano é a lança que serve de medida de tamanho, uma

lança desproporcionalmente grande para o tamanho do homem. No primeiro plano, a

Figura 5 – ZIRALDO. Fonte: Caderno B, Jornal do

Brasil. Rio de Janeiro, 08/01/1968.

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mão de Fantasma cobre praticamente todo o corpo da quarta pigmeia, no abraço dado. A

discussão em torno desses cartuns pode ser encarada, e nesse sentido o farei, na chave

da relação de dominação existente entre europeus conquistadores e africanos

conquistados. A história da descolonização da África, mostrada acima, suscita a

reflexão para o fato de que rimos de situações de controle, dominação, expropriação.

Nesse sentido, a teoria da superioridade é exemplarmente demonstrada.

Neste cartum que mostra Tarzan explicando-se a um Mister Gordon irritado traz

a discussão do poder a tona. Tarzan alega que não tinha como saber que aquele era o

nosso tigre, sendo justificada assim sua violência com o animal. A explicação parece

não convencer Mister Gordon, talvez dado o estado que Tarzan deixou o felino. Em

termos de metáfora do poder, poderíamos tomar Mister Brow como representante de

interesses estrangeiros e Tarzan como aquele agente local que garantiria esses

interesses. Ao ameaçar o sucesso da empresa colonial, pensemos em termos políticos,

Tarzan é duramente repreendido. A forma como Ziraldo desenvolve o desenho ajuda

nessa leitura, percebamos o corpo volumoso de Tarzan prostrado diante de um corpo

Figura 6 – ZIRALDO. Fonte: Caderno B, Jornal do

Brasil. Rio de Janeiro, 22/04/1968.

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pequeno, mas de postura firme de Mister Gordon. Nesse sentido o corpo estendido ao

chão do tigre também reforça essa relação de poder, uma vez que Tarzan, que é menor

que Mister Gordon liquida o selvagem animal. É a civilização chegando aos confins do

mundo selvagem, civilizando-o.

Mais uma vez Ziraldo demonstra todo seu talento gráfico na feitura deste

cartum. A história parte de um tema bíblico, divulgado pelo trabalho de missionários

religiosos, mas Ziraldo desvirtua a mensagem missionária e aí reside o efeito de humor

do cartum. No balão de fala lê-se: “JANE! Quer parar de ler êsse livro que aquele

missionário lhe deu”, ele sinaliza esse desvirtuamento, pois Jane tomou os ensinamentos

do missionário para benefício próprio, para seu prazer. Esse fato é realçado pela atitude

de Tarzan, prostrado diante de uma pedra, exausto da aplicação que sua companheira

tomou do que aprender com “aquele” livro. As olheiras presentes no Tarzan ajudam a

sustentar essa leitura.

Figura 7 – ZIRALDO. Fonte: Caderno B, Jornal do

Brasil. Rio de Janeiro, 08/01/1968.

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A descolonização africana no contexto da Guerra Fria: prelúdio

O filósofo Jean-Paul Sartre foi um dos mais ferrenhos críticos da política

colonialista posta em prática pelas nações europeias. A Europa do século XVI se faz

moderna, no momento em que se lança ao mar e “descobre”/conquista novos

continentes, subjugando populações inteiras na Ásia, na África e na América, isso em

nome de Deus, da Coroa, do Lucro e do Poder. Essa história de dominação vai marcar o

imaginário de centenas de milhares de indivíduos, que terão suas vidas transformadas a

partir do contato com o europeu. Temos uma experiência história parecida, no que tange

a colonização, o que nos possibilita perceber a dimensão de tal experiência, e o quanto

ela significa para a formação daquilo que somos. Assim, como avalia Maria Yeda

Linhares

Esse persistente esforço de expansão, encabeçado por portugueses,

espanhóis, franceses ingleses e holandeses, resultou na extensão das

fronteiras marítimas da Europa e na acumulação de capitais por

parte de seus comerciantes, produtores de manufaturas e

banqueiros.(LINHARES, 2004: 220)

A empresa colonizadora vai perdurar, com altos e baixos, até o início do século

XX, quando as duas grandes guerras desestabilizam o poder das nações imperiais. E é,

sobretudo, com o final da Segunda Guerra Mundial, após o desgaste econômico e

político da Europa, arrasada com a guerra, que esse painel irá mudar, novos atores

entrarão em cena, neste caso Estados Unidos e União Soviética, duas grandes

vencedoras da Segunda Grande Guerra. Ambos ambicionarão as colônias europeias na

África e na Ásia como novos mercados para seus produtos, além de aliados para a

disputa ideológica que ora se abria, Capitalismo versus Socialismo, grande característica

do período pós-segunda guerra mundial, a chamada Guerra Fria.

A nomenclatura Guerra Fria é atribuída ao jornalista norte-americano Walter

Lippmann, para designar um período da história mundial caracterizado politicamente

pelo conflito entre as duas potências surgidas com o final da Segunda Guerra Mundial,

Estados Unidos e União Soviética. (MUNHOZ, 2004: 263)

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No contexto africano e asiático terá destaque a luta contra a dominação

imperialista. Sendo que os países africanos e asiáticos em questão terão apoio dos

Estados Unidos e da União Soviética para sua contenda. Este apoio não se reveste de

caráter filantrópico, longe disso, mas sim do mais puro interesse em abrir novos

mercados consumidores. Assim, a dominação europeia deixa a cena e entra a dominação

norte-americana e soviética.

Entretanto, como fenômeno histórico, não podemos de deixar de valorizar a ação

de líderes locais na luta contra a dominação. A Segunda Guerra trouxe também o germe

do nacionalismo aos países africanos e asiáticos, que fez proliferar os movimentos

emancipatórios, cujo objetivo é alcançar a autodeterminação dos seus povos.

Enfim, a produção de humor é paradoxal no sentido de que produz seu efeito

cômico através do desvirtuamento da ordem, ao mesmo tempo da exposição daquele de

que se ri ao ridículo. Talvez resida aí o fato de ser tão difícil analisar esse fenômeno,

pois escapa pelos meandros da gargalhada. Os cartuns de Ziraldo suscitam o riso ao

expor indivíduos que foram vítimas das mais variadas formas de violência. Seja pela

incorporação de uma modelo de beleza, no caso do modelo identificado pelas pigmeias

em relação ao Fantasma, seja pela catequização imposta aos grupos autóctones dos

territórios conquistados a partir do século XVI, na África, na América, na Oceania. Essa

história conhecemos bem.

Os cartuns de Tarzan e Fantasma nos ajudam a discutir tais temas a partir do

momento que o artista decide retratá-los. O contexto em que foram publicados

redimensiona essa opção, pois tratar do poder durante um regime militar demonstra

afinação com as preocupações do período. E esse é uma das grandes contribuições dos

cartunistas à análise do período, pois estes conseguem como poucos captar essas

preocupações dando-lhes um sentido, na maioria das vezes, crítico e contundente.

Apesar das restrições e censuras os cartunistas conseguiram fazer-se ouvir, talvez

protegidos pela ambígua máscara do cômico, que pode ser instrumento de crítica, mas

ao mesmo tempo elemento de passividade, de conservação.

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Referências Bibliográficas

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