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Edgar Rice Burroughs TARZAN O �lho das selvas edição comentada e ilustrada Apresentação, tradução e notas: Thiago Lins Preparação: Juliana Romeiro Inclui 40 ilustrações de Hal Foster

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Edgar Rice Burroughs

TARZANO �lho das selvas

edição comentada e ilustrada

Apresentação, tradução e notas:

Thiago Lins

Preparação:

Juliana Romeiro

Inclui 40 ilustrações de Hal Foster

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mar adentro

Ouvi essa história de alguém que não ganhava nada em contá-la a mim,

ou a qualquer outro. Devo con�ar à sedutora in�uência de uma velha safra

o início dessa narrativa, e à minha própria cética descrença, nos dias que

se seguiram, a continuidade desse estranho relato.

Quando meu festivo an�trião descobriu que havia me contado tanto, e

que eu hesitava em acreditar em sua história, seu orgulho ferido assumiu

a empreitada que o antigo vinho havia iniciado. Desenterrou então evi-

dências por meio de um bolorento manuscrito e de relatórios o�ciais do

Colonial O≈ce britânico,1 a �m de comprovar muitos dos detalhes proe-

minentes de seu relato.

Não digo que a história seja verdadeira, pois não testemunhei os acon-

tecimentos que ela retrata, mas o fato de contá-la a você substituindo os

nomes dos principais personagens por nomes �ctícios é su�ciente para

provar a sinceridade de minha crença de que ela pode ser verdadeira.

As páginas amarelas e mofadas do diário de um homem morto há

muito tempo e os registros do Colonial O≈ce batem perfeitamente com a

narrativa de meu festivo an�trião. Logo, repasso-a esmeradamente a você,

completando-a com esses diversos dados.

1. Departamento governamental criado em 1768 para lidar com as questões referentes às colônias britânicas situadas na América do Norte. Com a perda das mesmas, foi dis-solvido em 1782 — ano anterior à Independência efetiva dos Estados Unidos. Em 1854, um segundo Colonial O≈ce foi criado para administrar a maior parte das colônias britânicas remanescentes (com exceções como a Índia, que possuía seu próprio depar-tamento, o India O≈ce); este foi �nalmente dissolvido em 1966, tornando-se parte do Ministério das Relações Exteriores.

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Caso não a ache crível, ao menos será um dos que, como eu, admitem

que é única, extraordinária e interessante.

Por meio de registros e de um diário, compreendemos que certo jo-

vem nobre inglês, a quem chamaremos de John Clayton, lorde Greystoke,

fora designado para uma investigação peculiarmente delicada sobre uma

colônia inglesa, localizada na costa oeste africana. Os habitantes nativos

dessa colônia estavam sendo recrutados como soldados por outra potência

europeia para integrar o exército nativo, e então eram forçados a trabalhar

exclusivamente na extração da borracha e do mar�m, entre as selvagens

tribos do Congo e do Aruwimi.2

Os nativos da colônia inglesa reclamavam que muitos de seus jovens

eram atraídos por belas e ardentes promessas, mas que poucos entre eles

retornavam para suas famílias.

Já os ingleses que ali se encontravam iam mais longe: a�rmavam que

esses pobres negros eram mantidos em um regime de quase escravidão,

uma vez que, quando o tempo de alistamento expirava, os o�ciais brancos

se valiam de sua ignorância e informavam ainda lhes restarem anos de

serviço.

Então o Colonial O≈ce designou John Clayton para um novo posto

na África ocidental britânica,3 mas suas instruções con�denciais centra-

vam-se numa investigação completa sobre o desleal tratamento dado aos

negros — súditos do Império Britânico — pelos o�ciais de uma potência

europeia aliada. Contudo, pouco importa a razão de ter sido enviado, pois

ele nunca chegou a realizar a investigação — na realidade, não chegou

sequer a seu destino.

2. Um dos maiores a�uentes do rio Congo, o Aruwimi chega a ter 1,5 quilômetro de largura e 380 quilômetros de extensão. Chama-se Ituri em sua nascente, próxima ao lago Alberto, na divisa entre Uganda e a República Democrática do Congo.3. A África ocidental compreende os países voltados para o oceano Atlântico e alguns outros que têm em comum a parte ocidental do deserto do Saara. Durante o período colonial, a região era governada, majoritariamente, pelos franceses e pelos britânicos. O Reino Unido exercia seu controle sobre a Gâmbia, Serra Leoa, Gana e Nigéria.

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Clayton era o tipo de inglês que geralmente se associa aos mais nobres

feitos históricos, aos monumentos erigidos entre milhares de vitoriosos

campos de batalha — um homem forte e viril: mental, moral e �sicamente.

Era mais alto que a média, possuía olhos cinzentos e suas feições eram

comuns e fortes — a postura perfeita e a saúde vigorosa eram produtos de

anos de treinamento no exército.

Ambição política foi a causa de sua transferência do exército para o

Colonial O≈ce, e assim o encontramos ainda jovem, incumbido de uma

delicada e importante comissão a serviço da Rainha.

Quando recebeu a nomeação, Clayton �cou feliz e intimidado. O cargo

pareceu-lhe uma merecida recompensa pelo diligente serviço prestado, e

um degrau para postos de maior importância e responsabilidade. Por ou-

tro lado, havia se casado com a honorável Alice Rutherford havia apenas

três meses, e a ideia de conduzir essa bela e jovem moça aos perigos e ao

isolamento da África tropical o desanimava e intimidava.

Em nome de seu bem-estar teria recusado o cargo, mas ela não concor-

daria. Ao contrário, insistiu para que Clayton aceitasse e que, além disso,

a levasse com ele.

Mães, irmãos, irmãs, tias e primos expressaram variadas opiniões so-

bre a questão, mas sobre os muitos conselhos recebidos nada é dito nessa

história.

Sabemos apenas que numa radiante manhã de maio, em 1888, John,

lorde Greystoke, e lady Alice partiram de Dover em direção à África.

Um mês depois chegaram a Freetown,4 onde fretaram uma pequena

embarcação, o Fuwalda, para levá-los até seu destino �nal.

E daqui em diante ninguém mais viu ou soube de John, lorde Greystoke,

e lady Alice, sua esposa.

4. Capital e maior cidade de Serra Leoa, Freetown ainda é um importante porto na costa do oceano Atlântico. Foi capital da chamada África ocidental britânica entre 1808 e 1874, período em que sofreu grande expansão populacional, já que, após o �m da escravidão nos Estados Unidos, muitos ex-escravos se mudaram para Serra Leoa.

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Dois meses depois de terem levantado âncora e partido do porto de Free-

town, meia dúzia de embarcações de guerra britânicas vasculhavam o Atlân-

tico Sul em busca de sinais de seu pequeno barco. Quase imediatamente os

destroços foram encontrados na costa de Santa Helena,5 o que convenceu

o mundo de que o Fuwalda havia naufragado com todos a bordo e fez com

que as buscas terminassem antes mesmo de terem começado — ainda que a

esperança permanecesse em saudosos corações durante muitos anos.

O Fuwalda, uma goleta6 de mais ou menos cem toneladas, era uma em-

barcação de navegação costeira, tipo que é geralmente visto no longínquo

Atlântico Sul, com suas tripulações compostas por refugos do oceano — as-

sassinos e malfeitores de todas as raças e nações. E o Fuwalda não era uma

exceção à regra. Seus o�ciais eram valentões, odiavam e eram odiados pela

tripulação. O capitão, ainda que fosse um competente marinheiro, era um

bruto em seu trato com os homens. Conhecia — ou ao menos se valia de —

apenas dois argumentos quando lidava com eles: um porrete e um revólver.

E é provável que a tripulação que navegava com ele não compreendesse

outra retórica.

Então, no segundo dia após a partida do porto de Freetown, John Clayton

e sua jovem esposa testemunharam, no convés do Fuwalda, cenas que nunca

acreditaram existir fora das páginas dos folhetins sobre lobos do mar. Nesse

dia forjou-se o primeiro elo da inevitável corrente de circunstâncias que

resultaria numa vida quase sem paralelos na história da humanidade.

Dois marinheiros lavavam o convés do Fuwalda, o contramestre ocu-

pava seu posto e o capitão havia parado para conversar com John Clayton

e lady Alice.

5. Descoberta em 1501, a ilha de Santa Helena foi um dos principais territórios britâ-nicos ultramarinos, permanecendo colônia inglesa até 1981. Localizada em meio ao Atlântico Sul — mais próxima da África do que das Américas —, �cou conhecida por ter sido o local de exílio e morte de Napoleão Bonaparte após sua derrota na batalha de Waterloo (1815).6. Pequena embarcação, geralmente com apenas dois mastros, com o casco a�lado e gávea localizada na proa.

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Em 1888, o jovem lorde Greystoke e sua esposa partiram de Dover em direção à África. Ele fora designado para investigar o suposto

tratamento desleal dado aos súditos negros de uma colônia inglesa localizada na costa oeste africana. Lorde Greystoke nunca chegou a

realizar a investigação — na realidade, não chegou sequer a seu destino.

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Os homens trabalhavam, aproximando-se de costas do pequeno grupo

que conversava. O grupo não percebeu a aproximação. Os marinheiros che-

garam cada vez mais perto até que, por �m, um deles postou-se exatamente

atrás do capitão. Em outra oportunidade, teria passado despercebido e esse

estranho relato jamais teria acontecido.

Mas justo nesse instante, depois de se despedir de lorde e lady Greys-

toke, o capitão virou-se e, ao mesmo tempo, tropeçou no marinheiro e

estatelou-se no convés, derrubando o balde da faxina e se encharcando

de água suja.

Por um instante a cena foi engraçada, mas só por um instante. Com

uma salva de imprecações e o rosto vermelho de a�ição e ódio, o capitão

reergueu-se e, dando um golpe terrível, derrubou o marinheiro no convés.

O homem era pequeno e bastante velho, logo a brutalidade do ato foi

mais do que exagerada. Seu companheiro, contudo, não era nem velho

nem pequeno: era enorme como um urso, usava um ameaçador bigode

negro e tinha um pescoço de touro entre os ombros maciços. Quando viu

o colega cair, curvou-se e, com um pequeno rosnado, saltou sobre o capitão,

deixando-o de joelhos com um único golpe.

De vermelho, o rosto do capitão tornou-se branco, porque se tratava

agora de um motim, e isso ele já enfrentara ao longo de sua brutal carreira.

Sem se dar ao trabalho de levantar, sacou o revólver e atirou a esmo na di-

reção da montanha de músculos que se erguia diante dele. Contudo, ainda

que ele fosse rápido, John Clayton também o era, e a bala que deveria alojar-

se no coração do marinheiro atingiu-lhe a perna — lorde Greystoke havia

segurado o braço do capitão assim que viu a arma brilhar ao sol.

Clayton e o capitão começaram a discutir; o primeiro deixava claro

que estava enojado com a brutalidade dispensada à tripulação e que não

permitiria que algo semelhante acontecesse enquanto ele e lady Greystoke

permanecessem a bordo.

O capitão estava a ponto de proferir um insulto, mas, ao pensar melhor,

sombrio e carrancudo, girou nos calcanhares e se retirou. Não queria se

opor a um o�cial inglês, pois o poderoso braço da Rainha brandia um ins-

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trumento de punição que ele compreendia e que temia: o longo alcance da

Marinha inglesa.

Os dois marinheiros se levantaram, o mais velho ajudando seu cama-

rada ferido. O maior deles, que era conhecido como Black Michael entre

seus companheiros, testou a perna cuidadosamente, e, percebendo que

aguentava seu peso, virou-se para Clayton soltando um rude agradecimento.

Apesar do tom grosseiro, a intenção era sincera. E mal concluiu seu

pequeno agradecimento, saiu mancando em direção ao castelo de proa,7

como se quisesse evitar qualquer outra discussão sobre o assunto.

Não o viram por muitos dias, nem o capitão dignou-se a falar com eles

muito mais do que alguns necessários resmungos. Assim como faziam antes

do infeliz acontecimento, o casal continuou realizando suas refeições na

cabina do capitão, mas este tomava o cuidado de nunca estar disponível

para comer com eles.

Os demais o�ciais — homens rústicos, iletrados, um pouco melhores do

que a desprezível tripulação a quem subjugavam — evitavam com satisfação

qualquer interação com os polidos nobres ingleses, o que fazia com que os

Clayton �cassem sozinhos a maior parte do tempo.

Essa postura vinha ao encontro do que esperavam, contudo também

os isolava da vida da pequena embarcação, e se tornava impossível estar

ciente dos acontecimentos diários — que culminaram rapidamente em uma

tragédia sangrenta.

Havia uma atmosfera diferente no barco, algo inde�nível que pressa-

giava algum desastre. Aparentemente, até onde os Clayton percebiam, tudo

corria conforme o usual, mas havia uma espécie de contracorrente que os

guiava em direção a algum perigo desconhecido — os dois sentiam o mesmo,

mas não falavam sobre isso com o outro.

No segundo dia após o ferimento de Black Michael, Clayton veio até o

convés a tempo de ver o corpo sem vida de um dos membros da tripulação

7. Plataforma elevada localizada na parte frontal do navio. As primeiras embarcações que ostentaram os castelos — de proa ou de popa — tinham vantagem sobre as demais, pois as plataformas ofereciam aos soldados uma posição superior, de onde alvejavam mais facilmente as embarcações inimigas.

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ser carregado enquanto o contramestre, com um enorme porrete em suas

mãos, permanecia olhando furiosamente para o pequeno grupo de mari-

nheiros taciturnos.

Clayton não fez perguntas — não precisava fazê-las — e, no dia seguinte,

conforme os contornos de um grande encouraçado8 britânico apareciam

no horizonte, decidiu que ordenaria que lady Alice e ele lá embarcassem,

pois, aos poucos, temia que nada além de sofrimento pudesse advir de sua

estadia no ameaçador e sombrio Fuwalda.

Por volta do meio-dia, encontravam-se a uma curta distância da em-

barcação, mas quando Clayton decidiu pedir ao capitão que o colocasse

a bordo da mesma o ridículo da situação tornou-se aparente. Qual razão

daria ao o�cial no comando do navio de sua majestade para que voltasse

na direção de onde acabara de vir?

Por Deus, o que aconteceria se dissesse aos o�ciais da embarcação in-

glesa que dois marinheiros indisciplinados haviam sido severamente pu-

nidos por seus o�ciais? Eles não fariam nada além de rir do caso e pensar

que só havia um motivo pelo qual desejava deixar o navio: sua covardia.

John Clayton, lorde Greystoke, não pediu para ser transferido para o

navio de guerra inglês, e mais tarde, naquele mesmo dia, viu-o sumir no

longínquo horizonte, mas não antes de ter seus maiores medos con�rmados.

Isso fez com que amaldiçoasse o falso orgulho que o impedira de lutar

pela segurança de sua jovem esposa algumas horas antes, quando estava

ao alcance das mãos: uma segurança que agora estava perdida para sempre.

Foi no meio da tarde que o velho marinheiro, o mesmo que o capitão

derrubara dois dias antes, aproximou-se de Clayton e sua mulher enquanto

estes, da balaustrada do Fuwalda, observavam o grande navio desaparecer

ao longe. O velho polia os balaústres, e, conforme se aproximava de Clayton,

disse em um sussurro:

8. Navio de guerra de grande porte, altamente blindado e armado com peças de artilha-ria de longo alcance. Maior, com melhor artilharia e proteção — devido à sua couraça

— que os cruzadores e contratorpedeiros, foi a embarcação mais poderosa durante a segunda metade do séc.XIX e início do séc.XX.

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— Vai pegá fogo aqui nesse barco, pode acreditá. Vai pegá fogo.

— O que você quer dizer com isso, companheiro? — retrucou Clayton.

— Ué, num tá vendo o que tá acontecendo? Num vê esses �lho do capeta,

esse capitão e os o�cial massacrando a tripulação? Duas cabeça estourada

ontem e três hoje. Black Michael tá novo em folha e ele não é homem de

ter medo, pode acreditá.

— O que você diz, meu caro, é que a tripulação planeja um motim? —

perguntou Clayton.

— Motim! — exclamou o velho. — Motim! Eles falam de assassinato, se-

nhor, pode acreditá.

— Quando?

— Tá chegando, senhor, tá chegando, mas não digo quando, e já falei

demais. Mas o senhor foi um bom camarada no outro dia, e pensei que não

fazia mais que obrigação avisá. Mas bico fechado, e, quando escutá os tiro,

se tranque e �que lá dentro. É isso, bico fechado, caso contrário eles me-

tem bala nas costela, pode acreditá — então o velho continuou a trabalhar,

afastando-se dos Clayton.

— Que maravilha o que nos aguarda, Alice — disse Clayton.

— Você deve avisar o capitão imediatamente, John. Talvez o problema

ainda possa ser evitado.

— Imagino que deva, mas ainda assim, por um motivo puramente egoísta,

estou quase inclinado a �car “de bico fechado”. Independentemente do

que �zerem, eles nos pouparão por conta de minha postura em relação a

Black Michael, mas se acharem que os traí, não haverá misericórdia para

nós, Alice.

— Você tem somente um dever, John, e ele repousa no interesse do Impé-

rio. Se não avisar o capitão, estará tomando partido no que vier a acontecer,

como se tivesse ajudado a planejar e também participado.

— Você não compreende, querida — replicou Clayton. — É em você que

estou pensando: esse é o meu principal dever. O capitão atraiu essa situação

para si mesmo, então por que eu deveria arriscar submeter minha esposa a

horrores inimagináveis, numa tentativa provavelmente infrutífera de salvá-lo

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de sua própria loucura? Você não tem ideia, querida, do que acontecerá

quando esse bando de arruaceiros estiver no comando do Fuwalda.

— Mas é seu dever, meu marido, e nenhuma desculpa pode mudar a ver-

dade. Eu seria uma péssima esposa para um lorde inglês caso me tornasse

a razão pela qual o mesmo faltou ao dever. Percebo o perigo que pode se

seguir a isso, mas posso encará-lo ao seu lado, e muito mais bravamente do

que poderia enfrentar a desonra de lembrar sempre que você poderia ter

evitado uma tragédia caso não houvesse negligenciado seu dever.

— Muito bem, Alice, será do seu jeito — respondeu ele, sorrindo. — Tal-

vez estejamos imaginando coisas. Ainda que não goste de como tudo vem

acontecendo a bordo deste navio, talvez não esteja tão ruim quanto parece

estar, é possível que o “velho marinheiro” estivesse apenas verbalizando

os anseios de seu também velho coração maligno, e não o que ocorrerá de

fato. Motim em alto-mar talvez tenha sido comum séculos atrás, mas nesse

bom ano de 1888 é a menos provável entre as opções. Mas lá está o capitão,

entrando em sua cabina. Se for mesmo avisá-lo é melhor que seja logo, pois

tenho pouquíssimo estômago para lidar com esse bruto.

Dizendo isso, Clayton seguiu despreocupadamente na direção da escada

na qual o capitão havia passado, e, logo depois, batia em sua porta.

— Pode entrar — resmungou o aborrecido o�cial.

E quando Clayton entrou e fechou a porta atrás de si:

— Sim?

— Vim informá-lo sobre o assunto de uma conversa que ouvi hoje. Pensei

que, mesmo que não haja nada a ser feito, o senhor deveria ao menos estar

prevenido. Sendo sucinto: os homens pensam em motim e em assassinato.

— É mentira! — rugiu o capitão. — E se o senhor estiver interferindo

novamente na disciplina desse navio, ou se metendo em assuntos que não

lhe dizem respeito, sofrerá as consequências e pode levar a pior. Não me

importo se é um lorde inglês ou não. Sou o capitão deste navio, e, de agora

em diante, não meta o nariz onde não é chamado.

Conforme �nalizava seu discurso, a fúria do capitão atingia um arre-

batamento que deixava seu rosto completamente rubro, e ele guinchou as

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últimas palavras com a voz mais alta que conseguiu — enfatizando suas

observações com golpes estrondosos na mesa, enquanto apontava, com a

outra mão, para o rosto de John Clayton.

Greystoke em nenhum momento se abalou; em vez disso, encarava o

homem nervoso com uma intensidade constante.

— Capitão Billings — disse, en�m —, perdoe minha sinceridade, mas

devo deixar claro que o senhor é um completo imbecil, sabia disso?

Ao que se levantou e deixou a cabina, com a mesma tranquila indife-

rença que lhe era habitual; certamente algo muito mais e�caz do que uma

torrente de insultos, caso o intuito fosse enfurecer um homem da laia de

Billings.

Então, ainda que o capitão pudesse ter facilmente se arrependido do

modo áspero com que falou com Clayton, seu humor estava agora irredutí-

vel, e a última chance de os dois trabalharem juntos em uma meta comum,

a da preservação de suas vidas, havia �cado para trás.

— Bem, Alice — disse Clayton ao reencontrar sua esposa —, se tivesse

poupado meu fôlego, teria também me poupado de ouvir um monte de

bobagens. O camarada provou-se um ingrato. Saltou sobre mim como um

cachorro louco. Por mim, ele e seu maldito navio podem ir para o inferno;

e até que estejamos salvos devo gastar todas as minhas energias cuidando

de nosso bem-estar. Acredito piamente que o primeiro passo necessário

seja ir até nossa cabina e encontrar meus revólveres. Agora lamento termos

guardado as armas maiores junto com o restante das coisas no paiol.

Encontraram o cômodo revirado. Roupas tiradas das malas e caixas

espalhadas por toda a cabina, até mesmo as camas haviam sido revolvidas.

— Obviamente alguém estava mais ansioso pelos nossos pertences do

que nós — disse Clayton. — Deus! Eu me pergunto o que os canalhas esta-

riam procurando. Vamos dar uma olhada, Alice, e ver o que está faltando.

Uma busca completa revelou que nada havia sido levado, exceto os re-

vólveres de Clayton e uma pequena quantidade de munição.

— Essas eram as coisas que mais desejava que tivessem deixado — disse

Clayton —, e o fato de terem vindo atrás delas, e somente delas, nos coloca

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na mais terrível circunstância desde que pisamos pela primeira vez no

casco desse miserável navio.

— O que faremos, John? — perguntou sua esposa. — Não devo pedir que

você fale novamente ao capitão, pois não posso vê-lo sendo insultado outra

vez. É possível que nossa melhor chance de sermos salvos resida em um

comportamento neutro. Se os o�ciais conseguirem reprimir o motim, não

teremos nada a temer, e, caso os amotinados saiam vitoriosos, nossa frágil

esperança está em não nos opormos a eles.

— Você está certa, Alice. Permaneceremos neutros.

Enquanto se esforçavam para arrumar a cabina, Clayton e a esposa

perceberam, simultaneamente, o canto de uma folha de papel surgir sob a

porta. Clayton dirigiu-se a ele e se surpreendeu, pois o papel continuava

seu movimento para dentro do quarto; só então entendeu que estava sendo

empurrado por alguém do lado de fora. Rápida e silenciosamente dirigiu-se

à porta, mas, conforme alcançava a maçaneta, sua mulher segurou seu pulso.

— Não, John — sussurrou. — Eles não desejam ser vistos, então não

podemos nos dar ao luxo de vê-los. Não se esqueça de que estamos sendo

neutros.

Clayton sorriu e abaixou a mão. Ficaram então observando o papel

branco deslizar no chão até parar. Clayton inclinou-se e o apanhou. Era

um papel um tanto encardido, porcamente dobrado em um quadrado de-

sigual. Ao abri-lo, encontraram uma mensagem rude grafada numa letra

tosca, sinal de que a escrita era uma tarefa não habitual para seu redator.

Em poucas palavras, era um aviso aos Clayton para que não dessem

queixa pela perda dos revólveres ou repetissem o que ouviram do velho

marinheiro — sob pena de morte, caso não obedecessem.

— Pre�ro imaginar que �caremos bem — disse Clayton com um sorriso

pesaroso. — Tudo o que podemos fazer agora é sentar e esperar.