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Art since 1900 BOIS, Yve-Alain, BUCHLOH, Benjamin H.D., FOSTER, Hal e KRAUSS, Rosalind. Art since 1900. Modernism, antimodernism, postmodernism. Londres: Thames & Hudson, 2004. Alexandre Sá Há, inevitavelmente, na maioria dos textos e dos livros um desejo-cobiça (no melhor sentido do termo), fundamentado em sua responsabilidade recôndita (espera-se), que produz uma faísca criativa que por sua vez desemboca em um alvo, um objeto, um eixo de desenvolvimento que permeia sua pesquisa (quando necessária), sua escrita, suas análises, seus enredos e desenredos, sua produção e sua publicação. Por vezes, essa aspiração, em sua ingenuidade de veemência, termina obscurecendo parte dos riscos que são naturais a todo e qualquer movimento de ultrapassagem, que se desvela no momento preciso em que nos deslocamos desse tal ideário subjetivo para a objetividade instrumental (e não menos defectível) da palavra. Essa talvez seja de uma das questões inerentes ao ato de escrever que deve ser sempre observada com cuidado, sem afã e de maneira absolutamente afiada. Todo autor merece de alguma maneira ter consciência de que o suporte escolhido para sua construção artística é (como todo suporte) inevitavelmente material, ligado então a uma série de elementos formais que são suscetíveis às mais diversas intempéries. E mesmo que sua experiência estética, ao ser produzida, não dependa unicamente da materialidade crua da realidade histórica do mundo, mesmo que seus instrumentos sirvam para desencadear um processo mental de reflexão e refinamento poético, seu meio de funcionamento (e seu estágio primeiro de encantamento, why not?) se realiza na concretude da realidade. E essa realidade, quando se refere à real idade da palavra e do texto como signo inelutável, traz consigo suas lâminas de tempestades lingüísticas, da mesma maneira que sua libertação próspera e não menos caótica. Se essa tal escrita ainda se constrói amparada por um enorme passado repleto de referências, e se aquele que escreve tornou-se referência para aqueles que se aventuram pelo exercício de lê-lo, a responsabilidade diante dos olhos que virão se faz ainda mais forte e mais potente. Contudo, essa responsabilidade de maneira alguma implica necessidade de rigidez, de segurança absoluta (afinal, todo exercício artístico é fruto de uma insegurança diante do que se realiza como o(h!)bjeto e diante daquilo que se apresenta como autor/proponente) e de posições confortáveis diante de um domínio do assunto que se deseja tratar. Aquele que escreve, de mãos dadas com aquele que lê, pode dar-se ao direito de se lançar num vácuo oblíquo (próprio de todo conhecimento) entre si e a obra que se instaura na clareira da experiência em meio aos sujeitos desse exercício. A escrita (e neste aspecto torna-se bastante próxima da leitura) precisa mergulhar em sua época para que seu funcionamento jamais se torne embriagado diante de uma situação que se coloca. E agora, especificamente já, a deriva, a errância, a dúvida e o paradoxo são pressupostos incontestáveis daquilo que se denomina contemporâneo. Art since 1900 insere-se nesta profusão de discursos, nesta horizontalidade textual em que estamos submersos e, curiosamente, torna-se vítima de sua carga incontestável de consciência diante de si e de sua intelectualidade admirável. A reunião dos quatro grandes historiadores vivos (que talvez ainda não tenham tido tempo para desconstruir suas mitologias pop-pessoais) termina em alguns momentos gerando uma tensão tão forte de genialidades e de certezas epistemológicas, que parecem sufocar os autores e os leitores em suas respectivas histórias recheadas de convicção. O livro sabe aquilo a que se propõe e, talvez por sua extensão e pela tal cobiça-desejo-que-poderia- ser-virtude, termina se contentando em assumir suas proposições e tentando enquadrá-las em todos os cantos possíveis. É claro que sabemos que ao longo da História da Arte houve por muito tempo, um “texto” subliminar que fundamentava as obras e os artistas. Esse “texto”, amparado em seu tempo, REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS EBA UFRJ 2005 220

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Artigo Alexandre Sá sobre Yve-Alain Bois

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Art since 1900

BOIS, Yve-Alain, BUCHLOH, Benjamin H.D.,FOSTER, Hal e KRAUSS, Rosalind. Art since1900. Modernism, antimodernism,postmodernism. Londres: Thames & Hudson,2004.

Alexandre Sá

Há, inevitavelmente, na maioria dos textos edos livros um desejo-cobiça (no melhor sentidodo termo), fundamentado em suaresponsabilidade recôndita (espera-se), queproduz uma faísca criativa que por sua vezdesemboca em um alvo, um objeto, um eixo dedesenvolvimento que permeia sua pesquisa(quando necessária), sua escrita, suas análises,seus enredos e desenredos, sua produção e suapublicação. Por vezes, essa aspiração, em suaingenuidade de veemência, terminaobscurecendo parte dos riscos que são naturaisa todo e qualquer movimento de ultrapassagem,que se desvela no momento preciso em quenos deslocamos desse tal ideário subjetivo paraa objetividade instrumental (e não menosdefectível) da palavra.

Essa talvez seja de uma das questões inerentesao ato de escrever que deve ser sempreobservada com cuidado, sem afã e de maneiraabsolutamente afiada. Todo autor merece dealguma maneira ter consciência de que osuporte escolhido para sua construção artística é(como todo suporte) inevitavelmente material,ligado então a uma série de elementos formaisque são suscetíveis às mais diversas intempéries.E mesmo que sua experiência estética, ao serproduzida, não dependa unicamente damaterialidade crua da realidade histórica domundo, mesmo que seus instrumentos sirvampara desencadear um processo mental dereflexão e refinamento poético, seu meio defuncionamento (e seu estágio primeiro deencantamento, why not?) se realiza naconcretude da realidade. E essa realidade,quando se refere à real idade da palavra e dotexto como signo inelutável, traz consigo suaslâminas de tempestades lingüísticas, da mesmamaneira que sua libertação próspera e nãomenos caótica.

Se essa tal escrita ainda se constrói amparadapor um enorme passado repleto de referências,e se aquele que escreve tornou-se referênciapara aqueles que se aventuram pelo exercíciode lê-lo, a responsabilidade diante dos olhosque virão se faz ainda mais forte e mais potente.Contudo, essa responsabilidade de maneiraalguma implica necessidade de rigidez, desegurança absoluta (afinal, todo exercícioartístico é fruto de uma insegurança diante doque se realiza como o(h!)bjeto e diante daquiloque se apresenta como autor/proponente) e deposições confortáveis diante de um domínio doassunto que se deseja tratar. Aquele queescreve, de mãos dadas com aquele que lê,pode dar-se ao direito de se lançar num vácuooblíquo (próprio de todo conhecimento) entresi e a obra que se instaura na clareira daexperiência em meio aos sujeitos desseexercício. A escrita (e neste aspecto torna-sebastante próxima da leitura) precisa mergulharem sua época para que seu funcionamentojamais se torne embriagado diante de umasituação que se coloca. E agora, especificamentejá, a deriva, a errância, a dúvida e o paradoxosão pressupostos incontestáveis daquilo que sedenomina contemporâneo.

Art since 1900 insere-se nesta profusão dediscursos, nesta horizontalidade textual em queestamos submersos e, curiosamente, torna-sevítima de sua carga incontestável de consciênciadiante de si e de sua intelectualidade admirável.A reunião dos quatro grandes historiadores vivos(que talvez ainda não tenham tido tempo paradesconstruir suas mitologias pop-pessoais)termina em alguns momentos gerando umatensão tão forte de genialidades e de certezasepistemológicas, que parecem sufocar osautores e os leitores em suas respectivashistórias recheadas de convicção. O livro sabeaquilo a que se propõe e, talvez por suaextensão e pela tal cobiça-desejo-que-poderia-ser-virtude, termina se contentando em assumirsuas proposições e tentando enquadrá-las emtodos os cantos possíveis.

É claro que sabemos que ao longo da Históriada Arte houve por muito tempo, um “texto”subliminar que fundamentava as obras e osartistas. Esse “texto”, amparado em seu tempo,

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em seu espaço, em seu metro de cantigas, emsua atmosfera, em sua situação social,econômica, política e filosófica, serviu comoelemento primordial para que o público pudesseentão compreender aquilo que desfilava diantede seus olhos. Essa escritura estava presente nostrabalhos, da mesma maneira que em seupúblico e na vida que unia os dois eixos deexperimentação (artista e observador).Gradativa, e fundamentalmente na épocamoderna, essa escrita entra em crise, e a leituraque se fazia possível e a ligação estreita demútuo (re?)conhecimento existente no objeto enaquele que o observa desaparecem. Entra emcrise e em ebulição. A arte moderna traz esteparadigma bastante conhecido, e talvez atécansado, da autonomia da arte, da arte queinvestiga a si mesma através de seus elementosformais e que busca eliminar qualquer elementoque esteja sobrando em seu processo deexposição e auto-análise.

Todos já sabemos, ou pelo menospressentimos, que uma idéia de “purezagreenberguiana” é absolutamente utópica, já quea arte, mesmo quando preocupada com seuslimites e com seus mecanismos internos defuncionamento, jamais pôde desligar-secompletamente do conjunto de elementos quedeterminavam a ambiência de sua formação. Artsince 1900 se propõe exatamente a isto:pesquisar, explicitar e enumerar o conjuntorizomático (em alguns momentos ofuscado) deacontecimentos e de reflexões teóricas quepermearam a arte moderna. É isso que o livropropõe e é isso que ele apregoa em suaintrodução com os quatro ensaios deincontestável qualidade sobre a questão dapsicanálise, da história social, doformalismo/estruturalismo e do pós-estruturalismo/desconstrução. Tais textos,escritos por Hal Foster, Benjamin Buchloh, Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss, respectivamente,indicam o caminho desejado e fundamentamparcialmente as metodologias que serãoadotadas ao longo de seus “microcapítulos”, oumelhor, de suas entradas divididas por anos.Essa introdução merece considerável atenção,pois é aí que os autores clarificam a mudança naabordagem que desejam e que a princípioencontraremos nas infindáveis páginas seguintes.

Por outro lado, a aplicabilidade de tais questõesao longo dos anos por vezes se torna tediosa, jáque o que termina ocorrendo é uma inevitávelsupremacia do texto, do discurso e dosconceitos que tentam, todo o tempo, se imporcomo elementos imprescindíveis (eabsolutamente auto-sustentáveis) àcompreensão dos trabalhos. Coisa essa que, deantemão sabemos, nem sempre é assim. Se porum lado tínhamos uma história da arte baseadano clichê da forma moderna, aqui surge umrisco enorme de estarmos diante de umahistória moderna da arte que supõe ser possíveluma autonomia inconteste do texto.

O leitor pode então estar se perguntando se oresenhista que lhe fala não estaria caindo emcontradição, pois, se no começo de seu discursoapontava para a palavra e seu funcionamentorelativamente perigoso, agora terminadefendendo que o texto mesmo não é capaz deabarcar a carga de significância de uma eraespecífica... É claro que minha resposta a isso éabsolutamente óbvia e (perdoem-me asinceridade) repleta de chavões. O que talvezfalte ligeiramente ao livro é uma certacompensação lúcida entre o que se escrevesobre aquilo que se discute e as obras (em suaformalidade inelutável), já que é essa conjunçãode forças teóricas e plásticas que torna possível acompreensão (mesmo que suposta) de umaépoca determinada. Por vezes temos a sensaçãode que a moldura teórica termina soterrandoaquilo que provavelmente deveria envolver e,em casos extremos, sentimos a presença quaseconstrangedora de um corpo-conceito que atodo custo tenta fundamentar um conjunto detrabalhos visuais que respondem por si só,gerando uma inevitável superficialidade àsavessas. Vale lembrar que esse risco apontado,de descompasso (e de tempero, why not?) entreas análises, se mostra ainda mais fortemente nasegunda metade do livro, em que os trabalhosperdem de vez suas próprias forças para darlugar a uma teoria pressupostamente autônoma.É importante lembrarmos que a história nãopode ser entendida apenas como um campo dediversas narrativas entrecruzadas, mas sim comoum espaço de tensionamento de múltiplosacontecimentos, de propostas as mais diversas ede efeitos inimagináveis, fundado na relaçãoentre imagem e texto.

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Resenhas

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Por certo não poderíamos de forma algumadesconsiderar a importância desse livro(levemente desajeitado em seu tamanho, pesoetc.), bem como sua organização absoluta e suadensidade teórica que funcionam como ummanual de sobrevivência para leitorescompletamente engajados nas artes visuais (pormais paradoxal que pareça). O livro é divididoem duas partes: de 1900 a 1945 e de 1945 emdiante. Ao final de cada parte, há um debatehonesto com os autores, em que podemosperceber as nuanças teóricas de cada um e suasrespectivas divergências. É dividido por anos(sem que isso implique uma cronologia teóricano sentido estrito), e para cada ano existe umaquantidade considerável de informações extras ede símbolos que indicam a possibilidade deligação com outro momento específico, paraque o leitor possa assim criar sua própria rota deleitura. Vale lembrar que existem alguns anosnão contemplados (como, por exemplo, 1905,1978 e 1979), e outros com mais de umaentrada (1959, 1984). E traz ainda no final umglossário, para que possamos entender (se éque esse verbo ainda nos cabe) os termosutilizados, e uma lista bibliográfica suplementar.No geral, o livro é repleto de qualidades (porvezes contestáveis), até mesmo em sua quase-impossibilidade de leitura total, que desafia oleitor a todo instante e que o instiga a irgarimpando informações, colhendo teorias e irconstruindo seu próprio fluxo (infindável) dereflexões e incertezas. Certamente, é um livroque atende a seus desejos, incluído o de tornar-se uma obra de referência, mas que, se utilizadasozinha, como objeto de compreensão da artemoderna, jamais conseguirá cumprir seu papel.

P.S. No dia 28 de julho de 2006, dentro doevento Incorpo(R)ações, curado por mim,Beatriz Lemos e Daniela Mattos, realizei umaação com esse livro. Ficava lendo-o (paraproduzir esta resenha) enquanto tomavaconta de uma sala repleta de fotografias quetinham como questão (que também era omote da exposição) o corpo como local deinvestigação poética.

Vez por outra, convidava alguém de maneiraaleatória e pedia para que abrisse o livro aoacaso e escolhesse alguma ilustração. Feito isso,colocava uma folha de papel de seda sobre olivro e escrevia uma única palavra queconseguisse abarcar parte do conteúdo daquelaentrada específica e pedia gentilmente para queo público/agente desenhasse o que lentamentelhe surgia, como que num desejo dedesconstrução teórica e construção poética.

Ao longo da ação, sussurrava (enquanto faziacarinho) no leitor/artista a música “Não sonhomais”, de Chico Buarque, numa referênciairônica a nossa inevitável impotência diante doenredo histórico que nos serviu de legado eescudo (mesmo próximo, mesmo distante) e denossa cobiça de compreensão épica.

Dada

Museu Georges Pompidou, Paris, 2005.

Cezar Bartholomeu

A exposição Dada, iniciada em Paris, percorreuposteriormente Zurique, Berlim, Hanover,Colônia e Washington, terminando suaitinerância em setembro de 2006 no Moma,em New York.

Dada foi proposta como uma mostra exaustiva(senão definitiva) do dadaísmo, desejosa de,pela amplidão, recriar o vigor dos ambientes dasdiversas manifestações dadaístas. Seu principalinteresse esteve na capacidade de reunir e nomodo de tentar relacionar um número enormede obras, cuja maior parte provém da coleçãodo próprio Beaubourg. A versão parisiense,assim, talvez seja a mais condizente com aconstrução conceitual de seu curador,Laurent Le Bon.

A exposição começa a partir de uma ante-sala,com duas possibilidades de acesso definidas pelaqualidade dos objetos apresentados: fotos,revistas, manifestos e notas de artista foramcolocados à esquerda, em um longo corredornegro que acompanha o espaço expositivo,posicionando na margem estes, que na verdadenão são apenas documentos, mas rastros querecuperam manifestações de outra ordemmaterial, diferentes daquela da obra tal comoconcebida classicamente. A curadoria, assim, seisentou de problematizar esse modo derecuperação – o que são esses documentos?são obras? fazem parte de obras? o conceito deobra perde o sentido? – questão crítica querelaciona o dadaísmo à arte contemporânea.

Na organização desse corredor, na verdade, jáse observava uma (outra) primeira organizaçãoda exposição: por capitais. Assim, chama-se a

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atenção para as diversas cidades nas quais seconcentrava a produção dadaísta. Ironicamente,marca-se dessa forma um paralelismointeressante entre a intinerância da exposição(patrocinada em Paris pela griffe Yves SaintLaurent), o aspecto internacionalizado dodadaísmo e ainda o modo pelo qual se opta porexplicar tal ocorrência como internacionalizada.

Se, de outro modo, penetramos a mostra porseu centro, somos confrontados diretamentepor uma grande série de salas brancas. As obrassituavam-se nesse grande espaço central,preenchido por cubículos de mesmo tamanho,que dividiam homogeneamente a exposiçãosegundo diferentes temas, definidos por cidades,artistas, grupos ou meios. Essas pequenas salasnão apenas mapeavam a produçãoconceitualmente, mas tinham como funçãoreduzir a escala (sobretudo o pé-direito) doBeaubourg, de modo a adequá-la à das obras.Essa adequação, no entanto, não é de caráterilusionista – a todo momento é percebida comorecurso que atinge diretamente a escala humanano espaço mais amplo do museu.

Essas estruturas, por serem vazadas nos quatrocantos, implicavam um percurso indeterminadopara o espectador, ainda que claramentecircunscrito às possibilidades do modular e doserial, e a uma entrada e uma saída (de modoque a linearidade da exposição fosse apenasaparentemente afetada). Essa matriz fria é aprincipal estratégia conceitual da curadoria, quefaz aí ver uma orientação didática exterior àsobras (exterioridade marcada principalmente nasobras tridimensionais), reproduzindo um modode exibir clássico. Contra tal formadomesticadora poucas obras (aquelas decaráter mais formal), contraídas, escapam; apartir de tais espaços reagem ativamente àpresença do espectador e o surpreendem,indicando sua força e atualidade. Justamenteas obras que menos apostam no embateformal são as mais prejudicadas.

O contraste é ainda mais evidente serelacionamos esses espaços a outros dois queconstituem a exposição. Simétrico ao corredorem que se situam os documentos, foi fabricadoum outro, lateral, escuro, pelo qual podem serpercorridos trabalhos sonoros. O prazer devisitar esse corredor não esconde, entretanto, oisolamento que o constitui (um isolamento quetambém é conceitual) e tem como base umaconsideração reacionária da forma e da forma

expositiva. A simetria em relação aosdocumentos, nesse caso, é sintomática.

A evidência de tal consideração se confirma nofinal da exposição – no espaço aberto que sesitua ao final das saletas temáticas, isolado doscorredores. Como final da exposição econclusão, nesse espaço se situam as obras deDuchamp. Fora das circunscrições físicas econceituais propostas pela curadoria, obrasfundamentais são expostas de modocompletamente diverso do resto da exposição.As obras de Duchamp são exibidas na qualidadede arte que existe contemporaneamente nomuseu contemporâneo.

A hierarquia entre as seções da exposição éevidente e não contribui para a visão darelevância contemporânea do dadaísmo comoproposto pela curadoria. Ao contrário, de modointrigante, revela a atribuição de um conceitoclássico de obra-prima à obra de Duchamp quepermite dissolver categorias (entre documento,obra no sentido clássico e obra em um sentidocontemporâneo) e que justifica sua 'remoção' domuseu clássico; para estas obras, a história daarte abre a possibilidade (e o fantasma) de seuanacronismo. Obras-chave como Roda debicicleta, Porta-garrafa, Fresh widow ou Grandevidro constituem o problema histórico – o que édadaísmo ? – pelo nada simples confronto entreobras, suas formas e seus conceitos. E talconfronto não se dá sem corroboração deestratégias curatoriais: nesse espaço convivemdocumento, cinema, objetos, dispositivoscenográficos, painéis brancos (que, mais do quesimular salas, se mostram como espaços quenão se formam), descontinuidades, a cada casoreforçando diferenças, num embate querepercute alto e faz pensar na submissão dasoutras obras e artistas à hierarquia e àhomogeneização do resto da exposição. Essahierarquia que constitui Dada como exposição,infelizmente, faz assemelhar toda a produçãocuja contemporaneidade não se manifestaimediatamente, sua negatividade negada nasimulação de um museu modernista e de umpercurso lógico; o vigor dos ambientes dadaestá claramente dado como autópsia.

É bem verdade que o catálogo que acompanhaa exposição está mais próximo de suas boasintenções. Aí a tematização parece operar demodo diferente: a cada uma das categoriascorresponde um texto leve, que visa elucidá-lasde modo amplo (sob o espectro frouxo deuma crítica cultural). Tais textos efetivamente

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tornam-se entradas interpretativas para odadaísmo – históricas, geográficas, conceituais.Antes que restritivo, o catálogo, realçado porum preço acessível, evidencia o esforço doagrupamento das obras. Mas a principalcaracterística a ser notada éT*(el*(ão hár)TjT*0.0093 Tcespaço. As, rproduçõtesdes obrao dmirnao)TjT*0.0073 Tc[(cadapágirn es paecem ntrnsbordar)99.1(,)]TJjT*arrefecenadoraotmentativasdeshierarquização er

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espaço, nove ou 10 anos de pesquisa de Paik(1961-1970, 1971-1980 e 1989-2000). Apesarda tentativa de aconchegar o visitante com umambiente lounge, a longa duração dos programasdificilmente era acompanhada até o final. Outroponto problemático da organização espacial‘apertada’ da exposição deu-se em relação aoáudio dos vídeos, que muitas vezes vazavam deum ambiente para outro. Quando um vídeoacabava ou era originalmente sem som, passavaa ser ‘dublado’ pelos vídeos exibidos nas outrassalas. Mesmo assim, a mistura dos ambientessonoros ativou uma espécie de diálogo entre asprojeções, criando por vezes uma interessante(e dissonante) paisagem sonora; ainda que talsituação não parecesse intencional na concepçãoda montagem. Nas divisórias entre as salas haviaespécies de ‘janelas’, que possibilitavam aosespectadores uma olhadela no vídeo exibido aolado; com isso criou-se outra possibilidadeinteressante de relação entre os vídeos, agoraclaramente intencional.

Paik, que inicia suas pesquisas artísticas nosanos 50 nas áreas de música e performance,gradua-se em História da Arte e da Música emTókio, aprofundando seus estudos naAlemanha, inicialmente em Munique, ondeencontra Stockhausen; e depois em Colônia,onde conhece John Cage e começa a explorara imagem em movimento em meados dadécada de 1960.

Nos vídeos realizados na primeira décadaapresentada, 1961-1970, Paik explora essa mídiae suas potencialidades de modo mais ‘formal’,como é o caso de Early Color TV Manipulations,que data de 1965-1971, e Digital Experiment atBell Labs, de 1966. Em ambos os casos o artistaadota elementos como um ponto branco emum fundo preto ou grafismos estroboscópicosutilizados à exaustão, criando resultados queremetem a uma composição pictórica, em umaespécie de “pintura” luminosa e em movimento.Em outros vídeos da mesma época, como FilmVideo Works # 3: Missa Zen, Eletronic Moon 2and 3, realizado entre 1967 e 1969, a presençada ação corporal não só de Paik mas de outrosperformers, bem como a superposição detalheres e outros objetos, é sutil, intensamentepoética e – em grande medida – crítica. Aimagem da lua, apresentada com “Claire de laLune”, de Paul Verlaine como trilha, mostra

sombras de dedos, um seio e uma colher‘tocando’ a superfície lunar – que é ao mesmotempo estroboscópica e caleidoscópica –,remetendo diretamente à controversatransmissão televisiva do homem na lua. Acercada investigação em performance na obra emPaik, puderam ser vistas cenas das parceriasentre ele e Charlotte Moorman, exibidas namostra por vídeos como TV Cello Première, de1971, e Topless Cellist – Charlotte Moorman,de 1995.

A mostra foi, inegavelmente, recheada de‘momentos sublimes’ para os que têm interessena gênese da Arte Contemporânea, abrangendoum período extremamente prolífico em suahistória: as décadas de 1960 e 1970.

Majorca Fantasia, de 1989, Living with the LivingTheatre, de 1989, e A Tribute to John Cage, de1973, são indeléveis documentos de umaprodução em movimento, um acúmulo deconceitos e experiências que aindaconseguem, com turbulenta potência, semanter em estado de devir.

No livro Happening & fluxus: Polyexpessivité etpratique concrète des arts,1 de Olivier Lussac,lançado em Paris pela editora L´Harmattan em2004, o autor se utiliza de aproximações entrediversos elementos e linguagens artísticas,situando a música experimental como umimportante dado para a compreensão donascimento dos happenings e do Grupo Fluxus– formado durante a década de 1960 por umainfinidade de artistas, localizamos em GeorgeMaciunas uma de suas mais representativas eatuantes figuras, além de Ben Vautier, CaroleeSchneemann, Dick Higgins, George Brecht, LaMonte Young, Nam June Paik, Shigeko Kubota,Yoko Ono, entre tantos outros.

Lussac aponta todo um desdobramento delinguagens no campo da arte, antescategorizadas hermeticamente, traçando umagenealogia do hibridismo que se dá entre aslinguagens artísticas a partir das vanguardas doséculo 20. Dividindo o livro em três partes quese desdobram em quatro ou cinco capítulos, oautor assume sua proposta desde aapresentação, como uma análise –pluridisciplinar e transversal – das origens dohappening, nela abarcando possíveis

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singularidades provenientes das implicações quetraz. Olivier destaca ainda que sua investigaçãoatenta para os fundamentos teóricos,antropológicos e estéticos da performance, bemcomo para as relações possíveis entre as artesvisuais, a poesia e a música.

“Da action-painting à atitude na arte”, destaca-secomo um dos mais interessantes capítulos, emque o autor aborda o célebre texto “O Legadode Jackson Pollock”, do ‘inventor’ do happening,Allan Kaprow – para cuja criação extraiu de suasexperiências na pintura e na análise da obra dePollock elementos importantes –, emcontraponto ao artigo “The American ActionPainter”, do crítico Harold Rosenberg,considerando que este último finalmenteperscruta as possibilidades da expressão action-painting e as idéias e conceitos nelaengendrados. Segundo Lussac, o artigo deRosenberg “fala da tela como evento, um atoinseparável da biografia do artista”. Ainda nessecapítulo aponta com propriedade: “a arte podetornar-se ação, fundada em escolhas queintervêm no espaço real”. Outros pontosimportantes no livro se encontram nos capítulosem que Lussac trata do fundamental “UntitledEvent”, de 1952, de Jonh Cage, bem como deseu antológico curso de composiçãoexperimental na School of Social Research. Deacordo com o autor, o evento, realizado em1952 no Black Mountain College e intitulado“Untitled Event” – no qual Cage atuou tantocomo ‘ator’ quanto como ‘autor/maestro’,regendo e indicando aos outros participantessuas ações, usando movimentos, sons eelementos visuais na composição –, seria oprimeiro happening da história. Apesar dediversos autores concordarem com essaclassificação, é possível considera-lo um “proto-happening”. O termo happening foi cunhadopor Kaprow – aluno de Cage na School of SocialResearch – por ocasião de seu “18 Happeningsin 6 parts” realizado em 1959 e desencadeandouma posterior transformação do happening emuma espécie de linguagem, usada por outrosartistas da época, até mesmo ao Brasil, nasegunda metade da década de 1960.2

Os trabalhos analisados são apresentados aoleitor por descrições do autor, já que o livronão traz, com exceção da capa e dosdiagramas, imagens das obras investigadas.

Lussac sobrepõe a seus relatos citações detextos de alguns artistas e ainda de outrospensadores da arte.

Pela lente do autor, o livro documenta questõesseminais para a história da arte contemporâneae, mais especificamente, o surgimento daperformance como linguagem artística, a partirdo ‘borrar’ das fronteiras, fato ‘ido, tido, dito,dado, consumido e consumado’.3

1 Os trechos citados foram traduzidos pela resenhista.

2 MATESCO, Viviane. “O corpo na Arte BrasileiraContemporânea” In: Bousso, Daniela (org.) Metacorpos, SãoPaulo: Paço das Artes, 2003.

3 Excerto da música “Acrilírico”, de Caetano Veloso e RogérioDuprat, gravada em 1969 no disco Caetano Veloso, tambémconhecido como ‘álbum branco’.

Márcia X: clichês

Márcia X. revista. Paço Imperial, Rio deJaneiro, 10 de novembro de 2005 - 29 dejaneiro de 2006.

Felipe Scovino

Márcia X. revisitada “Mais uma exposiçãoretrospectiva, com dezenas de obrascomprimidas num espaço sufocante. Excesso deinformação, beirando o desnecessário”, penseiquando li nos jornais sobre essa exposição,apesar de Márcia X. ter sempre atraído minhaatenção. E qual não foi a minha surpresa quandome deparei com uma obra tão viva e potentequanto qualquer produção contemporânea.Márcia fez, nos anos 80, o caminho inverso datão proclamada “volta à pintura”. E o maisimpressionante é que não vacila um só instante.Seu trabalho atravessa, de forma única, aspreocupações sobre as fronteiras da arte e seulugar nesta última década. Márcia X. estáinteressada na ironia, no jogo sarcástico que ocircuito e os agentes da arte viraram. Suapostura é ácida, ao usar o deboche, tão comumna cultura brasileira, como elemento de criaçãopara seus trabalhos, que envolvem íconesreligiosos, erotismo e elementos infantis, mas demaneira alguma querendo criar ou reforçar otão temido “símbolo de uma identidade nacionalna Arte”. Próxima das ações de Jeff Koons ou de

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Maurizio Cattelan quando realiza Os Kaminhassutrinhas (1995), a artista provoca uma certaatitude antiinstitucional e a procura de brechasno cotidiano para desafiar seus parâmetros deorientação. Essa rede irônica está maisinteressada na provocação do Outro do quesimplesmente numa rasa atitude de diversão dopúblico ou provocação contra o espaço doMuseu. A multiplicidade de ações de sua ironiaveio propor tensões, iminências e táticas contraatitudes esgotadas, sempre a nos defrontar comuma certa conduta de pensamento: ainvestigação por excelência do objeto de arte,mas como vontade de surpreender, expor ereinventar a própria existência. A ironia, emMárcia X., é possibilitar estratégias de circulação,deslocar elementos de seu plano habitual devivência, dirigir o poder de fogo para umasituação em que se extingue a obrigatoriedadede existência de um sentido por ser aquilo umaobra de arte, simplesmente porque aquilo podenão ser uma obra de arte.

As performances de Márcia X. ocupam lugarde destaque no cenário brasileiro: parecemafirmar que a arte não se reduz ao objeto queresulta de sua prática, mas ela é essa práticacomo um todo. Prática estética que abraça avida como potência de criação em diferentesmeios em que opera. O objeto desfetichiza-see se reintegra ao circuito da criação, como umde seus momentos e de importância igual àdos demais. Ele perde sua autonomia, “éapenas uma contaminação de idéias”, ressalta aartista, que será ou não ‘atualizada’ peloespectador. Márcia X. põe em xeque osgêneros de performance e a própria atuaçãoda mulher no campo das artes visuais. Destoado ícone de musa ou artista sensível/frágil, parauma obra vigorosa que toca duas convençõessociais e morais muito delicadas no universobrasileiro: a infância e o sexo. Mas o campo desua invenção não se dá no plano sociológico;sua atuação é subjetiva, imprimindo um caráterautobiográfico. Estamos diante de Márcia, desua história, e para isso temos que deixar emsuspenso uma certa “moralidade”, temos deestar abertos à recepção, temos que emprestaro corpo ao mundo. É preciso entender suasperformances como uma unidade de sentido,construída em cada experiência e, pela própriaexperiência, perpetuada em seu potencial designificação. Justamente essa dimensãocomunicativa do fenômeno é o que permitecriar uma vivência relacional, em meio à qualse estabelece a sintonia entre o espectador e o

objeto. A obra de Márcia X. está interessadanas empathias, as relações de afinidade ou deoposição que possam surgir, a ressonância quea obra possa suscitar. A artista estudaminuciosamente a disposição dos elementoscomponentes de suas ações, que deverão estarconformados de tal maneira que consigamconvocar, atingir, tocar, mover, incitar e, numapalavra, vincular o espectador, fazendo-oinstaurador do campo relacional que constitui omundo vivido, experimentado, desejado,imaginado por Márcia.

Perversão, sacralidade, erotismo, humor negrosão ações que se vão misturando e sobrepondoumas às outras, e sobra para o espectador umestado que fica entre o incômodo, o riso e aperplexidade. E deve ter sido assim que JohnCage reagiu ao assistir, na platéia da Sala CecíliaMeireles, à entrada da artista no palco(Tricyclage), pedalando um velocípede duranteum concerto em sua homenagem, em 1985.

A exposição apresenta, de maneira exemplar, aatuação de uma unidade na obra da artista: abanalidade – e talvez seja aí que resida suapotência. Em Reino animal (2000) e Ação deGraças (2001), uma série de provocações éiniciada a partir destes elementos cotidianos(pelúcia, brinquedos, animais de plástico), masque são retirados de uma situação já esperadapara ser transformados, serializados, em objetosde caráter afável, numa primeira aproximação,embora com alto poder de fogo, para olhosmais cristãos (?), digamos assim. São,definitivamente, banais porque estão no mundocomo qualquer outro objeto, sua presença émundana. A artista lida com a cultura daacumulação, de um certo excesso e ao mesmotempo desperdício das coisas: são fragmentosque habitam o universo das sobras e dosesquecimentos. É a situação de resíduo erepetição desses materiais que a atrai. E apossibilidade de trabalhá-los ou reapresentá-loscomo matéria do cotidiano. De um cotidiano,digamos, perverso. São resíduos de leitecondensado, tinta, líquido branco, manchas, emque o acaso da matéria se encontraharmonicamente com o espaço.

A nota triste da exposição é ter sido umahomenagem póstuma a uma artista que mereceuma produção crítica mais abrangente sobre suaobra. Contudo, não podemos esquecer quemeses após o fechamento dessa mostra foiaberta, no CCBB-RJ, a exposição coletivaErótica: os sentidos da arte, que contou com a

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obra Desenhando com terços (2000-01), jáapresentada na mostra anterior. Essa obra, queusa terços para desenhar numa áreadeterminada pênis no chão, sofreu diversosataques de um grupo cristão obscuro (Opusdei), que deu um ultimato ao Banco do Brasil:ou eles retiravam a obra, ou uma série defechamento de contas bancárias aconteceria. OBanco não pensou duas vezes e castrou MárciaX., provocando uma série de discussões sobre alegitimidade da obra, sua ética e moral. Ao largodessas discussões, importantíssimas, a maiorperplexidade, porém, é o obscurantismo doscritérios que pautam a atuação cultural deentidades privadas que investem o dinheiropúblico da cultura. Esse tipo de ação deve serreformulado, e atitudes mais democráticas efrutíferas devem ser elaboradas. Será que umaação tão importante e intricada quanto aprodução cultural não necessitaria de umaentidade/grupo autônomo para discutir critériose processo de seleção, tornado esse acessodemocrático e rico, em vez de deixarmos nasmãos de banqueiros ou pessoas do gênero?

Tropicália: umarevolução na cultura

brasileira1

London, Barbican Art Gallery, 16/02 - 21/03/2006Transnational Art, Identity and Nation ResearchCentre, University of the Arts, London.

Michael Asbury

Cercada de muitas expectativas, a exposiçãoTropicália: uma revolução na cultura brasileirachegou a Londres coincidindo com a visita oficialdo presidente Lula ao Reino Unido e com asdeliberações em curso acerca do assassinato deJean Charles.i Tal expectativa foi em certosaspectos similar àquela relacionada aodesempenho do Brasil na Copa do Mundo, emque um grande potencial acabou emdesapontamento. Como as intermináveisdiscussões que procuram diagnosticar a derrotado time nacional, a exposição oferece aoresenhista uma oportunidade de discutir arelação entre prática curatorial e disseminação

de uma história da arte que, apesar da crescenteatenção internacional, parece ser semprerepresentada de modo decepcionante.

Carlos Basualdo, o curador, propôs efetuar obalanço de um ‘movimento’ e estabelecersua pertinência hoje, apresentando oselementos formativos, protagonistas e atuaisramificações da Tropicália.

Tropicália foi, entretanto, mais do que ummovimento nas artes plásticas, e isso estárefletido no diversificado programa paralelo deeventos no Barbican. De fato, é questionável seTropicália foi afinal um movimento no campo daarte. A exposição efetivamente reuniu umconjunto de filmes ‘documentários’ de festivaisde música, design gráfico, instrumentos musicais,cenários teatrais e arquitetura. Esses materiaisforam associados ao tema da exposiçãomediante uma pressuposição subjacente: oressurgimento, durante o final dos anos 60, danoção de antropofagia, de Oswald de Andrade.2

Entretanto, se nos anos 20 o manifesto sereferia primeiramente à absorção domodernismo europeu, nos anos 60 ressurgecomo um meio para a negociação de umaposição crítica à luz da cultura de massanorte-americana e frente à reação à mesmapelos autonomeados guardiões da identidadecultural brasileira.

Muitas das obras em exposição conectavam-se aoutro pressuposto, que associa o ‘movimentotropicalista’ à exposição Nova objetividadebrasileira, apresentada no Museu de ArteModerna do Rio de Janeiro em 1967. Aparticipação nessa exposição parece ter sido umdos pré-requisitos de Basualdo para a seleçãodos artistas ‘históricos’ da presente mostra. Essaassociação foi convincente a princípio, já que foiali que Hélio Oiticica exibiu pela primeira vezsua instalação Tropicália. Contudo, apesar demanter conexão com a herança construtiva deOiticica, a instalação é bastante distinta de seutrabalho do período neoconcreto (1951-1961),fato que não é evidenciado na exposição.

Na montagem do Barbican, a Tropicália deOiticica foi localizada no espaço central daexposição, e a ela foi anexado outro ambientedo artista, Éden. Essa configuração acompanhouexatamente a de sua exposição de 1969 na

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Whitechapel, em Londres. A inclusão de ambasas instalações serviu implicitamente parailuminar o fato de que, enquanto Oiticicarealizava sua exposição no East-End londrino,os músicos Caetano Veloso e Gilberto Giltambém se encontravam em Londres,exilados pelo regime militar.

O cantor/compositor Caetano Velosoapropriou-se do título Tropicália para uma desuas composições lançadas em 1968. Naquelemesmo ano o álbum Tropicália ou Panis etCircensis, de Caetano, Gil e Os Mutantes, foitambém lançado, fazendo com que música earte se tornassem associadas, e florescesse ointercâmbio intelectual entre o artista, osmúsicos e seus amigos mútuos, tais comoRogério Duarte, Torquato Neto e WalySalomão. Apesar desse intercâmbio, Tropicáliapermanece conhecida primordialmente no Brasilpor sua repercussão dentro do campo damúsica popular, tornando-se costumeiramenteidentificada como Tropicalismo.

Um fato que possivelmente escapou à intençãocuratorial de Basualdo é que a justaposição dosambientes de 1967 e 1969 de Oiticica tambémindica uma transição dentro do pensamento doartista, distanciando-se de uma ênfase tropicalistae aproximando-se de proposições maispuramente experienciais. Apesar de um dosPenetráveis no Éden homenagear Caetano e Gil,as conotações abertamente tropicais não estãomais presentes. Em vez disso, o foco doambiente está na vivência, em que lazer e atémesmo preguiça são oferecidos comoplataformas abertas para o comportamentocriativo.3 Se Oiticica é geralmente associado aseus conceitos de participação pela cultura docarnaval e sua experiência de vida na favela, suarelevância como figura-chave na arte do século20 é de alguma maneira limitada por essasconotações. A prática de Oiticica foiacompanhada de um exercício prolífico daescrita, constantemente reformulando conceitos,analisando a recepção do trabalho ereorientando o desenvolvimento de suas‘intervenções’. Tais mudanças estratégicas são oque de fato demarcam a produção do artistacomo um todo, antes e além da Tropicália.

De modo a expandir a significação do‘movimento’, a exposição Tropicália e a literaturaa ela relacionada fazem referência a outroseventos que ocorreram em 1967, ano em que

ocorre a Nova objetividade. Inclui-se aqui ofilme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e apeça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade,dirigida por José Celso Martinez Corrêa, que decerto modo foram redutivamente apresentadosna exposição sob a égide do tropicalismo.

Sendo membro do comitê organizador da Novaobjetividade, Oiticica assina o ensaio para ocatálogo, no qual delineia uma série de itensrelacionados à natureza diversa e contraditóriadas práticas de vanguarda no Brasil. Oswald deAndrade e a noção de antropofagia efetivamenteaparecem nos parágrafos de abertura do ensaiode Oiticica – entretanto, sua presença ali se dácomo meio de conexão da herança construtiva,fundamental para a geração de Oiticica, com a‘Nova Figuração’, predominante entre os jovensartistas naquela exposição. A Tropicália deBasualdo também propõe a conexão com opassado construtivo, mas o faz à custa da‘Nova Figuração’. Essa, com exceção deAntônio Dias, foi suprimida no Barbican, ecomo conseqüência perdem-se inúmeraspossibilidades de desdobramento.

As pinturas de Rubens Gerchman, como aicônica A Bela Lindonéia, de 1966, empregandotemas populares que exploram o mau gosto e okitsch, e o levaram a ser convidado paradesenhar a capa do disco Tropicália ou Panis etcircencis, não figuraram na exposição.4 WesleyDuke Lee, uma das figuras inspiradorassubjacentes ao conceito da Nova objetividade,proposto por Oiticica em 1967, esteve ausente.Outra omissão foi Antônio Manuel, que foiconvidado por Oiticica a integrar seu trabalhodentro da própria instalação Tropicália, de 1967.Manuel recusou o convite de Basualdobaseando-se no fato de que, se a exposiçãotratava de arte contemporânea, ele,naturalmente, preferiria mostrar algo de seutrabalho mais recente.5

Outras importantes figuras daquele períodocomo Anna Maria Maiolino e WaldemarCordeiro foram muito mal montados. Seustrabalhos, tão distintos, foram localizados lado alado, prejudicando a excepcional trajetóriacriativa de cada um dos artistas. Além das óbviaslimitações de um espaço expositivo, que é,afinal, problemático, o enfoque curatorialenfatizou certos preconceitos estéticos e

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associações sociopolíticas em detrimento deum levantamento mais amplo e complexo daarte do período.

Talvez isso tenha sido mais notório devido àausência das pinturas da série Ônibus, deRaymundo Colares, incluídas originalmente naNova objetividade e excelentes exemplos dacanibalização do legado construtivista por umageração que amadureceu na presença da culturapopular de massa. Segundo Cildo Meireles, aspinturas da série Ônibus, de Colares, são omelhor exemplo no Brasil da hibridização deconstrutivismo e Pop Art.6 Basualdo escolheuem vez disso mostrar a série Gibis (1970) deColares, cujas obras são mais abertamenteinspiradas pelo neoconcretismo e foramlocalizadas na exposição ao lado do Livro daCriação, de Lygia Pape, e dos poemasneoconcretos de Ferreira Gullar, que narealidade datam do período neoconcreto(1960 e 1959).

Nova objetividade reuniu um grupo eclético deartistas e pode-se notar uma distinçãoestabelecida pelo próprio Oiticica entre seuconceito de Tropicália e a exposição como umtodo. Enquanto o crítico e poeta Ferreira Gullare a artista Lygia Clark – figuras-chave nocontexto do movimento neoconcreto (1959-1961) que foram incluídas na exposição de 1967– foram centrais para os anos de formação deOiticica como artista, sua associação com aTropicália parece excessivamente tênue. Foi umagrata surpresa ver esses trabalhos no Barbican,ainda que infelizmente sua significância históricatenha sido prejudicada nesse contexto.

A seleção de trabalhos de arte para a exposiçãoTropicália sugere uma ‘grande narrativa’ parauma história da arte até recentementeconsiderada periférica. Por mais de uma década,a disseminação da arte brasileira no circuitointernacional tem adotado a forma de umessencialismo estratégico, em que toda aprodução contemporânea é reduzida a umdiagrama de influências que conectam Oswaldde Andrade, neoconcretismo, Lygia Clark eHélio Oiticica. Esse é um processo delegitimação que tem sido particularmente bem-sucedido em trazer atenção internacional para ageração de artistas dos anos 80, ainda que sejauma leitura simplista e em certa medidahistoricamente redutiva.

Se várias associações históricas entre Tropicália e‘Nova Figuração’ foram ignoradas, o espaçodestinado à arte contemporânea, tanto noespaço físico da galeria como no catálogo,conduz à constatação de que a estratégiacuratorial foi efetivamente guiada pelacumplicidade com o mercado de arte.7 Ainclusão de artistas jovens que têm pouca ounenhuma conexão com os conceitos articuladosno final dos anos 60 foi encoberta pelo fato deque muitas dessas inclusões contemporâneasforam comissionadas especialmente para aexposição. E foram um tanto literalmenteconectadas ao tema. A Mudança, de Marepe,recupera as primeiras linhas da letra da canção“Tropicália”, de Caetano Veloso, ‘sobre a cabeçaos aviões / sob os meus pés os caminhões’, quese refere ao impacto que a migração internarelacionada à inauguração de Brasília em 1960 eoutros fenômenos socioeconômicosprovocaram sobre as classes desprivilegiadas.Rivane Neuenschwander produziu um trabalho‘participativo’ comissionado para a exposição,baseado em um personagem de revista emquadrinhos (Zé Carioca) de Walt Disney querepresentava a ‘típica’ preguiça carioca. LucasLevitan e Jailton Moreira adicionaram a suainstalação Inclinações Musicais, de 2002/04,composta de capas de CD imaginários mas deexistência possível, alguns itens relacionados àTropicália. O trabalho de Dominique Gonzáles-Foerster, apesar de ter sido comissionado,combinava estranhamente com a exposição. Oespaço alocado para a peça parecia excessivo,considerando as tênues relações com o conceitode Tropicália e o espaço restrito reservado paratrabalhos ‘históricos’ importantes. Gonzáles-Foerster produziu um filme retratando detritostropicais varridos pela água, encontrados naspraias de Salvador. Apesar da trilha sonora deArto Lindsay, o vídeo funciona como um olharexótico ou, na melhor das hipóteses,antropológico. A comissão de Matthew Antezzofoi uma homenagem literal e desinteressante aChacrinha e sua frase de efeito ‘Quem não secomunica se trumbica’. A tapeçaria deChacrinha, produzida em um estúdio mexicano,foi provavelmente inspirada por uma passagemde uma carta de Lygia Clark a Hélio Oiticica.8

Apesar de todos os problemas com a curadoria,Basualdo editou um catálogo informativo, com

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ensaios de alta qualidade preparados sobencomenda, que algumas vezes convergiam emquestionar a própria premissa da exposição.Mesmo com seu excessivo design gráficointerferindo na leitura em alguns momentos, ocatálogo é também extremamente rico dematerial referencial, demandando urgentetradução. Uma das ausências óbvias, no entanto,é o ensaio de Oiticica intitulado ‘Brasil diarréia’,no qual o artista critica a diluição do conceitode Tropicália pela indústria da cultura, quepode ser lido como uma crítica à própriaexposição de Basualdo:

((......)) aa ccrrííttiiccaa qquuee aass iiddééiiaass ddee ““ttrrooppiiccáálliiaa””ggeerraarraamm aaoo ccuullttoo ddoo ““bboomm ggoossttoo”” ((iissttoo éé,, aaddeessccoobbeerrttaa ddee eelleemmeennttooss ccrriiaattiivvooss nnaassccooiissaass ccoonnssiiddeerraaddaass ccaaffoonnaass,, ee qquuee aa iiddééiiaaddee ““bboomm ggoossttoo”” sseerriiaa ccoonnsseerrvvaaddoorraa)) ffooiittrraannssffoorrmmaaddaa eemm aallggoo rreeaacciioonnáárriioo ppeelloossddiilluuiiddoorreess ddaa mmeessmmaa:: iinnssttiittuuiiuu--ssee aa ccaaffoonniicceeeessttaaggnnaattóórriiaa,, jjáá qquuee iinnssttiittuuiirr aa iiddééiiaa ddeeccaaffoonnaa ccoonndduuzz àà gglloorriiffiiccaaççããoo ppeerrmmaanneenntteeddee ccooiissaass ppaassssaaddaass ((oollhhaa--ssee ppaarraa ttrrááss))::hhoojjee hháá uummaa ffeebbrree rreeaacciioonnáárriiaa ddee““ssaauuddoossiissmmooss”” ee ““rreeddeessccoobbeerrttaa ddeevvaalloorreess””,, vveellhhaagguuaarrddiissmmoo ((......))9

Tradução: Daniela Mattos

NNoottaass

1 Tropicália é uma exposição itinerante.

2 Andrade, O. de. ‘Manifesto Antropofagico’, Revista deAntropofagia, n.1, São Paulo, 1928.

3 Oiticica criou o termo Crelazer. Ver Oiticica, H. ‘Aspossibilidades do Crelazer’, in: Brett, G. et al., Hélio Oiticica,catálogo de exposição, Rotterdam: Witte De With Centre forContemporary Art, 1992: 110-120.

4 Além do design gráfico, o disco contém uma música deCaetano e Gil intitulada “Lindonéia”, composta a partir dapintura de Gerchman.

5 Antônio Manuel, em uma das várias conversas com o autor,fevereiro de 2006. Seus comentários, junto aos do crítico dearte inglês Guy Brett, foram publicadas em um artigo doJornal do Brasil intitulado ‘Tropicália Criticada’, 23 defevereiro de 2006.

6 Cildo Meireles em conversa com o autor, Paris 23 dejulho de 2005.

7 Levando em consideração que essa é uma pesquisapertinente a um movimento do final dos anos 60 e início dosanos 70, é surpreendente descobrir, por exemplo, que apenasartistas contemporâneos foram agraciados com imagens

acompanhando suas biografias no catálogo da exposição. Aaparente cumplicidade da exposição com o mercado de artefoi também apontada pelo prof. Agnaldo Farias (USP) duranteum dos seminários de doutorado apoiados pelo AHRC erealizados pelo Research Centre for Transnational Art, Identityand Nation (TrAIN) na University of the Arts, Londres, em 14de março de 2006.

8 A carta (datada de 26/10/68) propõe: “Sua carta mais pareceum programa do Chacrinha, onde tudo acontece ao mesmotempo e tudo é trançado como uma tapeçaria”. In: Figueiredo,L. (ed.). Lygia Clark Hélio Oiticica: Cartas 1964-74, Rio deJaneiro: Editora UFRJ (1996), 1998, 2a ed.: p.63.

9 Publicado em Ferreira Gullar (org.). Arte Brasileira Hoje, Riode Janeiro: Paz e Terra, 1973. Esse e outros importantestextos e escritos do artista estão disponíveis em: Brett et al.,op. cit.:17-20.

Escritos de artistas

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Glória Ferreira e Cecília Cotrim (orgs.), Rio deJaneiro, Zahar, 2006

Patrícia Guimarães

Livro de referência, serve a usos variados, até aser exposto como conjunto de “textos-objeto”,produto de uma curadoria. Como todacoletânea, aceita ser lido desde o início e porinteiro ou em passagens, sendo abordável pormuitas entradas, incluindo aberturas diferentessituadas como préfacio e pósfácio – cada umdesses tópicos lança sua rede própria deconexões, convidando o leitor a fazer o mesmo.Inventariando duas décadas de intensa produçãode escrita por parte de artistas, disponibiliza 51textos de 46 artistas e de dois grupos, “das maisvariadas tendências e latitudes”, ordenados emseqüência temporal, estratégia de esquiva doslabels – marcas de pertencimento, por exemplo,ao distrito da Conceptual Art ou da Land Art – edas distribuições classificatórias de temas econteúdos. A combinatória que dispõe, lado alado, palavras enunciadas de ‘lugares’ tãodistantes entre si como as do brasileiro PauloBruscky, do alemão Joseph Beuys e doamericano Joseph Kosuth, sugere “possíveisdiálogos de uma pluralidade de vozes”.

Qualquer fluxo de leitura faz ouvir uma polifoniaem ressonâncias harmônicas e dissonantes.

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Vozes repetindo temas em variação. Certasafinidades surpreendem, até pelo emprego domesmo vocabulário – vide, por exemplo, aconvergência entre a reflexão de Yves Klein(“Manifesto do Hotel Chelsea”, 1961) sobre omonocromo e a de Hélio Oiticica (“A transiçãodo quadro para o espaço e o sentido deconstrutividade”, 1962) sobre a chegada à corúnica, ambas resultando em expansão da‘pintura’ no tempo-espaço. E ainda, a sincroniaentre o esboço de manifesto Fluxus, escrito porGeorge Maciunas (Neodadá em música, teatropoesia e belas artes, 1962), que preconiza oconcretismo neodadá, e a reconsideração dosentido de construtividade em HO, nodesdobramento das premissas do programaneoconcreto (1959) – dois textos de incentivo àfusão de linguagens entre as artes do tempo e asdo espaço visando à concretude da experiência.

Modulações do mesmo problema: a relaçãoentre o trabalho e o “sentido verbal”. As várias“poéticas disruptivas” dos anos 60/70 coincidemno desinteresse pelos limites formais, pelasquestões de ‘medida’. Adotam a desmedida,então, assimilando o discurso crítico a suaprática, somente para situar o conceito de ‘arte’em lugar inespecífico. Em dicções diversas –ensaio, carta, manifesto, entrevista, “quase-ficção”, “texto-objeto” –, a “tomada da palavrapelo artista” expõe a dobra entre teoria epoética, entre conceito e sensação, entrepensamento e ação. Poéticas críticas, ou seja,reflexivas, tendem a dobrar-se e desdobrar-seem inúmeras imagens e em discursos, e até empolíticas – leia-se, por exemplo, o manifesto-poema de Claes Oldenbourg (“Sou a favor deuma arte”, 1961), que submete o conceito dearte a uma espiral de indeterminação, repetindouma espécie de mantra: “sou a favor de umaarte que seja místico-erótico-política, que váalém de sentar seu traseiro num museu/queevolua sem saber que é arte/que tenha a chancede começar do zero/sou a favor de uma arteque cresce num vaso, que desce do céu à noitecomo um raio e retumba...” e muito mais.

Confira o tema da desmedida na escrita dopintor americano Jasper Johns (“Reflexões sobreDuchamp”, 1969), herdeiro assumido do não-artista francês. De acordo com Johns, MarcelDuchamp “trouxe a dúvida para o ar queenvolve a arte”, “atacando as idéias de objeto,

de artista e espectador com igual intensidade” –essa “pode ter sido sua ‘grande obra’”. Nada aestranhar se a antiobra duchampiana, por efeitode um jogo de linguagem, converte-se emobra/assinatura definitiva. ‘Que as palavras setornem nonsense’, escreve John Cage (“O futuroda música”, 1975), parceiro de jogo do ‘autor’do readymade. A propósito do uso de palavras,de sua escuta e enunciação, o não-compositorCage separa a função útil de comunicar davocação poética da linguagem originária:“palavras quando comunicam não chegam a terefeito algum”; quando deixam de sentenciar elimitam-se a nomear, abandonando a“organização militar da sintaxe”, entãotornam-se coisas inúteis como “árvores eestrelas”.1 “A desmilitarização da linguagem,grave preocupação musical”, sentencia,sugerindo que as palavras-nomes nascem damodulação rítmica aleatória entre sonoridadese sentidos indeterminados.

A deriva das palavras e das coisas no tempo-espaço surge também como tema no relato deRobert Smithson (“Uma sedimentação damente, projetos de terra”, 1968). Processos damente e da terra assemelham-se, segundo oalcance ilimitado aqui conferido à Land Art: “osnomes de minerais e os próprios minerais nãose diferem” porque em seu começo está “umnúmero abissal de fissuras” – “palavras abrem-seem uma série de falhas, em um terreno departículas”, de tal modo que “as certezas dodiscurso didático são arrastadas na erosão doprincípio poético”.

Em diálogo, outra voz, talvez mais difundida: adidática da Conceptual Art (Joseph Kosuth &Art&language) assimila a arte à “ordem do dito”e expõe a fratura na linguagem da arte em“idéia” e “aparência”, porém, privilegiando a“concepção” em detrimento do “resíduo físico”.Filia-se à poética de Duchamp, que lançou no arque envolve a arte a lógica do paradoxo, própriada linguagem verbal: sentidos em contrasteproliferam em torno da matéria do dito ou doescrito, ao lado das aparências.

Aplica-se à cena artística dos anos 60/70 – e aorecorte que o livro opera – o seguintecomentário de John Cage: “As cercas caíram, eos rótulos foram removidos. Um aquário

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atualizado tem todos os peixes nadando em umtanque gigantesco”. Água e música evocamsentidos de conexão.

1 P. 341.

Prague Biennale 2Expanded painting /acción directa

Catálogo publicado por Giancarlo Politi Editore,Itália, 2005.

Pedro Meyer Barreto

Durante os meses de maio a setembro de 2005ocorreu a segunda Prague Biennale, exposiçãode arte paralela à Bienal Internacional de Praga.O evento, que teve como mote principal a“pintura expandida / ação direta”, procurouocupar uma posição alternativa e foi promovidosem os auspícios oficiais, contando basicamentecom contribuições financeiras de empresaprivadas, incluindo galerias de arte.

A relevância da Prague Biennale está natentativa da curadoria de conciliarcontemporaneamente a pintura e açõesartísticas múltiplas, de naturezas diversas. Aomesmo tempo, por ter tido menor dimensãodo que a Bienal Internacional de Praga, oconjunto de obras selecionadas é mais afinadocom o eixo temático.

Os artistas relacionados à pintura expandidaeram em absoluta maioria europeus e norte-americanos; os relacionados à ação direta, namaior parte, latino-americanos, com produçãogeralmente performática e política.

Giancarlo Politi e Helena Kontova, curadores-chefes, formularam o subtítulo “PinturaExpandida” inspirados no ensaio de RosalindKrauss “Escultura em campo expandido”,republicado, aliás, no catálogo da exposição.Para Politi e Kontova, a preocupação da pinturahoje, diferente da moderna, que teria

investigado a natureza pictórica, é saber comopode ser feita, quais suas possibilidades. Para oscuradores, a prática e a teoria de artecontemporânea demonstram ser falsa aobservação de que a pintura tem agenda própriae ocupa posição marginal no circuito da arte. Omeio pictórico é capaz de absorver, mediar etransformar impulsos de outras disciplinas e, nãosendo apenas receptivo, pode levar outros arespara novas mídias.

Do núcleo Expanded Painting, um subgrupo emdestaque foi o dos jovens pintores alemães. Aprincipal referência comum entre esses artistas éterem estudado em uma das seguintes escolas: aHochschule für Grafik und Buchkunst, emLeipzig, e a Hochschule für Bildende Künst, emDresden, ambas na Alemanha Oriental.Recentemente, os pintores de Leipzigalcançaram estrondosa fama internacional, sendoapontados em matéria de capa pela revista Art inAmérica1 como o primeiro grupo artísticoconsistente revelado no século 21.

Lydia Hempel, em seu ensaio Painting Today,afirma que as pinturas estão na frente do debatea respeito da morte da pintura. A exposição dasnovas pinturas alemãs na Prague Biennale tentaexplicar algo da pintura hoje. O assunto vai alémde definições nacionais e puras questõespictóricas. Porém, notar as especificidades locaise nacionais é crucial em um contexto deapreciação histórico e global. Young British Art eYoung German Art são holofotes que criamtermos temáticos, ajudando assim a discutirquestões gerais.

Para Hempel, bom treinamento nas técnicasartísticas pode ser apenas uma das explicaçõespara o sucesso de muitos jovens artistasalemães, o que, porém, nada tem a ver coma iconografia socialista ou polaridades entreleste e oeste (uma das características maisreferidas ao grupo de Leipzig). Contudo, omovimento não pode ser reduzido a umexotismo pós-comunista. O fato relevante nanova presença da pintura emergiu de umadistância produtiva e troca de conhecimentosentre leste e oeste alemães.

A autora reconhece em Gerhard Richter umafigura central para os novos rumos da pintura.Richter corteja do alto os desenvolvimentos

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determinados pelo discurso conceitual edesconfia da persistência da pintura. Ele rejeita asubjetividade, a expressividade gestual e o pesodo sentido na arte abstrata dos anos 60. Nãorejeita, porém, a pintura, e sua resistência emjustificações enfáticas e visões idealísticas da artee do artista leva-o a trabalhar com recursosfotográficos e a mídia como pré-imagens.

Hempel reconhece esse processo como umachave para entender o caminho de muitospintores hoje. Com base na fenomenologia dapercepção e nas concepções pictóricas da teoriada mídia, essa maneira de trabalhar constitui umtratamento lógico para a representação criativa,desconfia do fundamento das imagens e darealidade, e expressa um ceticismo generalizadosobre a confiabilidade da percepção humana.Ceticismo sobre a percepção e uma atitudecrítica voltada para a concepção do trabalho, eos mecanismos institucionais são parte do legadoespiritual da vanguarda. A apreciação da novapintura não está baseada no conhecimento doque o meio é; também não basta apenasquestionar ou encobrir o ilusionismo, mas simconscientemente trabalhar com ele.

O autor do ensaio que define o eixo temáticoAcción Direta, Marco Scotini, com o título“Acción Directa: Latin-American Social Sphere”esclarece de imediato a região do globo maisrepresentada no conjunto de artistas.O pontode partida foi uma grande mobilização popularocorrida em Praga em setembro de 2000.Depois das manifestações de Seattle nos EUA,esse foi o primeiro protesto na Europa contra anova ordem global.

Para Scotini, a seleção dos trabalhos pretendeuexpandir a reflexão sobre o espaço global, comoterreno aberto para experimentação e ação. Ocurador concentrou-se na América Central e doSul, região de extrema precariedade econômicae urgência política, e onde, segundo ele, maisdo que em qualquer outro lugar, se torna difícilseparar a prática artística, o trabalho material, aação política e a cultura. A exposição quisapresentar também hipóteses críticas esugestões de interpretação do capitalismocontemporâneo em geral, desejou contrastaráreas de conflito a partir de uma condição deunidade global e procurou proporcionar diálogoentre diferentes realidades.

Marco Scotini apresenta cinco plataformastemáticas: informação direta, auto-organização,desobediência, virtuosidade, público participante.Assim, procurou relacionar a produção artísticae a ação política, iniciativa individual eparticipação coletiva, legalidade e ilegalidade,democracia e terror. Por fim, o curador sepergunta se movimentos marcantes na recentedemocracia latino-americana (como os sem-terra no Brasil) têm alguma coisa em comumcom a emergência das práticas artísticas atuais.

Em princípio, encontrar uma exposiçãorelevante no cenário europeu que atenta paraquestões latino-americanas é interessante. Este éum momento em que se evidencia um olhar: oocidental, hegemônico, dirigido aos “outros”,periféricos.Como ocupamos o lugar do “outro”,temos a oportunidade de criticar essa posição eaceitar ou não suas representações.

Infelizmente, o estereótipo não é ultrapassado, esomos olhados de uma maneira fechada. NaPrague Bienalle a parte correspondente à pinturaexpandida, salvo raras exceções (como ospintores chineses), só é composta por europeusou norte-americanos, dando a impressão deque na América Latina ou em outros cantos domundo não se faz pintura consistente. Ocontrário ocorre na seleção do eixo “açãodireta”: além dos artistas latinos, metade dosartistas era de europeus, norte-americanos ouresidentes em algum país nessas regiões. Aleitura razoável é de que não são apenas oslatinos que transformam o objeto de arte nosentido tradicional; os países ricos do Ocidentetambém promovem situações artísticas nosentido de uma mobilização poético/política.Obviamente não é estereotipada a visão da arteeuropéia de si mesma, só que, ao olhar paranós, sua capacidade de inteligibilidade fica turva.Ainda outra interpretação para esse cortetemático, focado nos latinos e na política, é quetalvez para os dominadores do sistema global aarte engajada seja a única condição possível naperiferia pobre.

Felizmente encontramos uma atitudegeopolíticaartística menos equivocada na BienalInternacional de Praga. Diferente do circuitoalternativo, na exposição oficial da capital tchecao curador que escolheu os artistas brasileirosparticipantes foi outro brasileiro; assim, a

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estrutura do olhar não é de “outro” para“outro”, e sim de “nós” para o “outro”.Fernando Cocchiarale2 fez um recorte de obrasligadas à pesquisa sonora e de ambiente, e ostrabalhos selecionados são experimentaçõescontemporâneas que não se encaixam emsuportes tradicionais e não podem ser lidascomo uma produção periférica, condicionada àpolítica. Compõem uma perspectiva instigantedo que pode ser a arte hoje, aqui ou nomundo, independente de fronteirasrigidamente delimitadas.

Revista Art in America, julho 2005.

Catálogo da International Biennale of Contemporary Art,publicado por National Gallery in Prague, 2005.

Big Bang: destruição ecriação na arte doséculo 20Museu Nacional de Arte Moderna do CentroGeorge Pompidou, Paris.

15 de junho de 2005 a 27 de março de 2006.

Sheila Cabo Geraldo

Como se organiza uma coleção museológica dearte na contemporaneidade? Que critérios deexposição são necessários e bastantes,sobretudo se essa coleção contém obras queestejam, cronológica e historicamentecompreendidas entre o início do século 20 e odo 21? Partindo da identificação do que seria odesafio do século passado em arte, que nosatinge hoje, ou seja, a destruição de paradigmase o desafio da permanência da arte, a curadoriade Big Bang adota o nome da teoria que explica,pela explosão, a criação do universo e, pelaprimeira vez, como escreve o diretor do MuseuNacional de Arte Moderna do Centro GeorgePompidou, Alfred Pacquement, organiza acoleção segundo uma nova historiografia, comcritérios temáticos, a exemplo do que jáocorrera na Tate Modern, em Londres, que em2000 foi inaugurada com sua coleção subdividida

em quatro grandes áreas assim organizada: 1)Landscape, Matter, Environment; 2) Still Life,Object, Real Life; 3) History, Memory, Society; 4)Nude, Action, Body.

Diante da necessidade de renovação do prédiode Renzo Piano e Richard Rogers, que em 2007fará 30 anos, a direção do Centro programou-se para fazê-la em turnos, no período entre2005 e 2007, até que as obras estejamterminadas, e o Museu reinaugurado em suatotalidade. Mas o desafio de funcionar emcaráter parcial incluiu o de repensar a curadoriae a exposição do acervo, que não apenas foiexposto parcialmente, mas também de maneiranova e instigante. Descartando a tradicionalmuseografia cronológica, assim como a que seorienta pela especificidade dos meios, Big Bangnão foi organizada por décadas nem porcoleções de fotografia, artes plásticas, novasmídias, etc. Seus temas seguem, de algumamaneira, a mesma preocupação que dá título àexposição, que, em si, já é uma pista sobre oque viria a ser a ordem adotada: umaaproximação que, partindo dos temasDestruction; Construction/Déconstruction;Primitivisme/Archaïsme; Sexe; Guerre; Subversion;Mélancolie; Réenchantement, nos remete aosconceitos de descontinuidade, ruptura, limiar,limite e transformação, que, como defendeuFoucault1 para a história, são condições deuma aproximação que se dá por relações naarte do século 20, assim como na que seproduz nos dias atuais.

Haveria, como paradoxo da destruição dasformas e do vocabulário tradicional, umavontade de reinstaurar a arte em um estatutoprimeiro, denominado pela curadoria origem.2

Longe de qualquer historicidade linear, a origemnão está ali entendida como um passadodistante, mas um território acessível dopresente, por meio de modalidades de acessodiversas, que incluem a sexualidade, a violência,as experiências sensíveis, o primitivo, a loucura,o popular, o cotidiano: lugares de experiênciasque se constituem regenerativas, onde o artista,em sua singularidade, e a arte, em suaautonomia, vão se nutrir. Assim, os temas sãoaqueles que a curadoria depreende, enquantosintomas, como sendo os da busca dos artistaspela arte em suas possíveis e diversas origens,ou o ser em si da arte, cuja temporalidade é um

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“a qualquer hora”, e a espacialidade é “um lugarqualquer”: diversidades que constituem um“agora” no sentido benjaminiano. Dessamaneira,“a obra de arte é colocada no centro dahistória, enquanto sujeito que se revela múltiplo,irredutível a todas as tentativas de reificação”.3

A despeito de toda crítica que se possa fazer nosentido de denunciar as estratégias deespetacularização da arte pelas instituiçõesmuseológicas, sobretudo a partir do últimoquarto do século 20, como alerta DouglasCrimp,4 a instituição museu, hoje, assim comoa história da arte, que lhe tem dado a direçãoteórica, determinando as condições dodiscurso moderno, aguardam uma análisearqueológica, no sentido foucaultiano, para quepossam sobreviver enquanto história e museuno tempo contemporâneo.

O Big Bang da arte, ou seja, a destruição e acriação na arte no século 20, foi a forma de fugirdos resquícios do colecionismo que deu origemaos museus de arte, mas também dos padrõesidentificados com a história e a história da arte,cronologicamente seqüenciadas eevolutivamente projetadas, que direcionaramas iniciativas curatoriais e museográficas dosséculos 18, 19 e mesmo de grande parte doséculo 20, como identificamos no Louvre, deParis, no Metropolitan Museum, de NovaYork, e na Tate Britain, de Londres, para citarsó três dos museus paradigmáticos na históriada arte ocidental.

A constatação que Arthur C. Danto5 fez do fimde uma certa narrativa sobre a arte, que dealguma forma coincide com a de Hans Belting6

ao discutir a possibilidade de permanência dohistoricismo na história da arte hoje, é a mesmaque se depreende das iniciativas tanto da TateModern quanto do Pompidou. Ora, oPompidou, um Museu de Arte Moderna, comoa Tate Modern, na esteira da dúvida sobre o fimda história na contemporaneidade – que étambém a dúvida da arte e da história da arte –procuram, como escreveu Belting, formas desobrevivência para a o museu, o que acabasendo também a procura da arte e dahistória da arte.

Partindo da constatação de que a realidade daobra é que se impõe, mas percebendoigualmente que a obra de arte é, em si, uma

ficção, já que sua existência e seu valordependem do sentido que admitem no tempo,na cultura e na história, é fácil concluir que aprópria história da arte é uma ficção, abrindo-separa infindáveis experimentações. SegundoBelting, “A arte é uma ficção histórica, como jáprovou Marcel Duchamp, do mesmo modo quea história da arte, o que André Malrauxdescobriu sem querer quando escreveu sobre o‘museu sem paredes’”.7 Sendo assim, libertosda necessidade de uma certa tradiçãohistórica, há que se procurar a ficção que dêconta da cultura artística moderna, mas,sobretudo, da contemporânea, que se liga àcultura artística como um todo e nãonecessariamente pelo método da procura datradição, da influência, do desenvolvimento,da evolução, da fonte e da origem.

Big Bang, que ocupou um andar do Pompidouno período de junho de 2005 a março de 2006,foi organizada nos oito grandes temas acimacitados, que aglutinam cerca de 900 obras emtorno de conceitos. Cada um desses temas sesubdivide em vários subtemas. Destruição, porexemplo, inclui Corpo desencantado,Desfiguração, Caos, Cidade Abstrata, Espaçogeométrico, Monocromo e Grade. Em Corpodesencantado, estão colocados no mesmoespaço quatro estágios do relevo em bronze Nude costa, de Matisse, que datam do período1909-1950, as Antropometrias de Yves Klein, de1960, o trabalho Dez Lizes, de Andy Warhol, de1963 e o trabalho de Marlene Dumas, Sanguemisto, de 1996. Warhol, Duchamp, Giacometti,Picasso e Matisse são artistas que aparecem emvárias salas, sob vários temas e subtemas,corroborando a concepção de que são as obrase suas relações que estão em foco, o que leva ovisitante a uma experiência que extrapola arecepção de informação histórico-estilística,facilmente decodificável, assim como leva ofreqüentador habitual a uma verdadeiravertigem, pois lhe tira o chão garantido pelahistória da arte moderna, que se organizouem torno da identificação dos movimentos devanguarda e, depois, pelas ressonânciasdesses movimentos.

Associando obras de artistas de diferentesépocas, movimentos e meios, em umprocedimento que faz virem à tona infindáveissentidos – e tece outros, novos – não só para asobras conhecidas, como também para atrajetória dos artistas e, sobretudo, para opróprio conceito de arte e de história da arte,essa parece ser uma exposição que, tratando de

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um acervo de arte dos séculos 20 e 21, temcomo mirada aquela que carrega os problemase debates de seu tempo, mas, também, a utopiada permanência da arte, como do museu dearte. A curadoria expõe o projeto de LeCorbusier, para a Capela de Ronchamp, umprojeto de ruptura, mas também o de Libskindpara o Museu Judaico de Berlim, um projeto dememória e redenção. Expõe, ainda, a obra deBill Viola Cinco Anjos para o Milênio, compradaem conjunto pelo Centre Pompidou, peloWhitney Museum of American Art e pela TateModern, uma instalação em vídeo, que está nomódulo Réenchantement e encerra a mostra.Talvez essa seja a ponte para a mostra quesubstituiu Big Bang no Centro, ou seja, aexposição Le mouvement des images, que seiniciou em abril deste ano e vai até janeiro dopróximo. Dentro do mesmo projeto temático,partindo dos conceitos de imagem,reprodutibilidade e movimento, a exposição sesubdivide nos temas Narrativa, Montagem,Projeção e Desfilamento. Filmes de vanguarda,filmes experimentais, vídeos de artistas einstalações relacionam-se comaproximadamente 200 obras de pintura,escultura, fotografia, arquitetura e design,construindo um caleidoscópio em suasdiferentes temporalidades e suportes técnicos.

A questão é saber se o Pompidou vai manteressa proposta de curadoria depois de 2007,quando os dois andares destinados ao museuestiverem funcionando plenamente. Já a Tate,acaba de mudar a disposição de sua coleção,dividindo-a em focos temáticos, mas cada umreferente a uma cronologia. Assim, States of Fluxconcentra a época e os trabalhos do Cubismo,do Futurismo e do Vorticismo. Sob Poetry andDream estão os trabalhos referentes aoSurrealismo e afins. Os outros focos são:Material Gestures, reunindo as obras classificadastanto como expressionistas abstratas quantocomo arte européia informal, e Idea and Object,abrigando minimalistas e desdobramentos. Essaé uma proposta que tanto dinamiza a coleção,como declarou Vicente Todoli, diretor da TateModern, como também contemporiza comaqueles que bradam contra mudanças radicaisno tratamento das coleções em museus.

NNoottaass

1 Foucault, Michel. A arquelogia do saber. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2005. 7ª edição.

2 Grenier, Catherine. “Le Big Bang Moderne”. In Big Bang:Destruction et création dans l’art du 20e siècle. Paris:Édition du Centre Pompidou, 2005.

3 Idem.

4 Crimp, Douglas. “Sobre las ruinas del museo”. In Posicionescríticas: ensaios sobre las políticas de arte y la identidad.Madrid: Akal, 2005.

5 Danto, Arthur Coleman. After the end of art. Princeton:Princeton University Press, 1997.

6 Belting, Hans. “A história da arte no novo museu: a buscapor uma fisionomia própria”. In O fim da história da arte.São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

7 Idem.

Le mouvement desimagesValéria de Faria Cristofaro

Com a exposição Big Bang – Destruction etcréation dans l'art du 20e siècle, realizada em2005, o Centre Pompidou – Musée nationald’art moderne – estreou a apresentação deseu acervo por meio de demarcaçõestemáticas e não cronológicas, confrontandoobras de períodos diversos sem distinção demeios. Com a mostra Le mouvement desimages – art et cinema, inaugurada em abril de2006, o Pompidou renova esse projetopropondo uma releitura da arte do século 20 apartir do cinema.

Para mostrar como a experiência da imagem éirreversivelmente afetada pelo cinema, aextraordinária coleção de filmes do Pompidou,que abrange tanto a história do cinemaexperimental quanto do cinema de vanguarda,além de vídeos de artistas e videoinstalações,apresenta-se como mola motriz da exposição.Em um corredor central no espaço expositivoestão dispostos 14 filmes de artistas dos maisexpressivos das vanguardas históricas,fornecendo rara oportunidade de ver reunidosmarcos de filmes de artista tais como La Pluie(projet pour un texte) (Marcel Broodthaers,1969), Le Ballet mécanique (Fernand Léger,1923/1924), Anémic cinema (Marcel Duchamp,1925), Bob (Chuck Close, 1973), "70" (RobertBreer, 1970), Hand Catching Lead (RichardSerra, 1968), Gnir Rednow (Joseph Cornell,1955), Le Retour à la raison (Man Ray, 1923),Ein Lichtspiel schwarz-weiss-grau (Laszlo Moholy-

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Nagy, 1930), Walking in an Exagerated Manneraround the Perimeter of a sq, 1967 (BruceNauman, 1968).

Ao redor dessa grande ala agrupam-se 34 salasreunindo, aproximadamente, 250 trabalhosrealizados em linguagens distintas – desenho,pintura, escultura, fotografia, vídeo, além dearquitetura, design e HQ. De fato, são notáveisa grande quantidade de obras em torno dessaconjuntura temática e a capacidade deproposições em percursos originais na históriada arte moderna e contemporânea. A intençãocentral do curador, Phillippe-Alain Michaud, érevelar ligações íntimas e profundas entrecinema e artes visuais. Em sua visão, mais doque espetáculo, o cinema apresenta-se comoum modo de conceber e pensar imagem apartir não de sua fixidez, mas de seu movimentoe reprodutibilidade. O curador considera que,atualmente, quando diversos artistas utilizam ofilme, a indústria cinematográfica e seus suportesde difusão a partir de uma abordagemmultimídia, a experiência do cinema, como aconhecemos durante um século, foi alterada. Omodelo de espetáculo, remanescente do teatrocomo filme projetado em sala para platéiaimóvel, deixou de ser a única experiênciacinematográfica possível. Tornou-se necessárioredefinir o cinema para além de suas condiçõesde existência anteriores, considerando-o nãomais do ponto de vista restrito a sua história,mas, incluindo o crescimento do espetáculo vivoe as artes visuais.

No início do século 21 assistimos a umamigração massiva de imagens em movimentodas salas de projeção para os espaços deexposição, uma tendência advinda da revoluçãonumérica que instaura um duplo fenômeno,tanto da desmaterialização das obras quanto doretorno à teatralidade da cena artística. No textode apresentação da exposição, Michaud sereporta a Walter Benjamin em A obra de arte naera de sua reprodutibilidade técnica para analisarem que contexto a fotografia e o cinema podemocupar um mesmo plano. Em seu argumento, odispositivo fotográfico nasce do encontro de doisprincípios científicos independentes: osinventores da fotografia utilizaram o fenômenoda fotossensibilidade para fixar imagensinsubstanciais formadas na câmera escura,dotando-as de perenidade. No cinema, a

relação dos dois princípios se inverte. Não setrata mais de dar substancialidade e permanênciaà imagem, mas, precisamente, de reproduzirseu caráter não fixo. Nesse sentido, o cinemanão deve ser visto como um prolongamento dafotografia em sua duração, mas umainterpretação divergente do princípio da fixaçãoem associação com o princípio de projeção. Sea fotografia não comporta uma definiçãorelativamente unívoca, o cinema, emrevanche, é fundamentalmente polissêmico ese aplica, de modo simultâneo, a um sistemade formas e a um lugar.

O curador também chama a atenção para apresença de um duplo protocolo inicial nocinema: se, por um lado, há na tela aconcentração de imagens, a superfície e seuslimites, por outro, há um apagamento dasimagens descontínuas em benefício dacontinuidade da repetição, bem como umasupressão da inscrição em prol da projeção. Essadupla operação de desmaterialização apresentao cinema como seqüência de imagens no planotransformada, implicitamente, emprolongamento da fotografia na duração, ememancipação da tipologia das imagens móveisanteriores à era da reprodutibilidade, e em todoum universo de autômatos, de lanternas mágicase jogos óticos.

Em busca de redefinir a experiênciacinematográfica estendida ao universo das artesvisuais, foram eleitos quatro temas principais quese organizam ao redor de componentesfundamentais do cinema – Sucessão(Défilement), Projeção (Projection), Narrativa(Récit) e Montagem (Montage). De acordo como sentido de visita da exposição, a primeiraseção dedica-se ao tema Sucessão enquantodispositivo capaz de inscrever as formas naduração do tempo. Nesse setor estão reunidostrabalhos de Donald Judd (Stack, 1972), AndyWarhol (Ten Lizes, 1963), Arnulf Rainer (PeterKubelka, 1958-1960), Barnett Newman (18cantos, 1963-1964), Bernd et Hilla Becher(Untitled, 1979-1984), entre outros, sempre emdiálogo com questões relativas a continuidade,multiplicidade, ritmo, espaços e temposintermitentes. Também se destacam osencontros face a face entre as obras de HannDarboven (Pour Jean-Paul Sartre, 1975) e Picasso(Oito estudos para pintor e seu modelo, 1907), e,

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ainda, os desenhos de Henri Matisse (Estudospreparatórios para os vitrais da capela deVence, 1948-1949) que suscitam um duplopropósito em relação ao dispositivocinematográfico: para além dos formatoslongitudinais e da repetição dos motivos, atransformação dos desenhos em vitrais (traçoem luz) reproduz a desmaterialização do filmeao se transpor em projeção.

Na seção Montagem estão condensados grandemarcos do Dadaísmo, Surrealismo e Pop Art,entre os quais, Arman (Miaudulation de fritance,1962), Robert Heinecken (Shiva, King of dancersmanifesting as a travestite, 1992), RoyLichtenstein (Modular Painting with Four Panels,1969), Sigmar Polke (Cameleonardo da Willich,1979), Robert Rauschenberg (Oracle, 1962-1965), James Rosenquist (President Elect, 1960-1961). A junção desses trabalhos no contextoda montagem reforça a idéia da construçãocomo agrupamento em confronto de forçasdistantes sob um mesmo plano, reportando-se diretamente às montagens polifônicas deSergei Eisenstein.

Na mesma direção, o duplo sentido deisolamento/agrupamento e a articulaçãoimprevista dos elementos nas colagens efotomontagens de Max Ernst (La Femme 100têtes, 1929), Braque (Le Guéridon, 1911) ePicasso (Violon, 1912) relacionam-seabertamente com a idéia de montagem deFernand Léger em Le Ballet Mécanique (1923-1924). Ressalta-se também a obra gráfica deLéger (Le Réveil Matin, 1914, e Contraste deformes, 1913) que estabelece um diálogoinusitado com design e instalação na sala quereúne Bouteille Verte (Tony Cragg, 1980) e ascadeiras Favela (Fernando e HumbertoCampana, 1991).

A variedade de obras e estilos da seçãoNarrativa reúne, simultaneamente, desenhos deRobert Longo (Men in the cities, 1980/1999),fotografias de Brassaï (Pour un roman policier,vers 1931-1932), Chris Burden (Documentationof Selected Works, 1971-1974), esculturas deAlberto Giacometti (Femme égorgée, 1932-

1940) e Hans Hollein (Valley City, 1964),desenhos de Claes Oldenburg (Paper "GeometricMouse", 1971) e Mimmo Rotella (Batman,1968-1998) e seqüência em quadrinhos doSuperstudio (Quarta città: città astronave, 1971),explorando a capacidade do tema Narrativaenquanto procedimento de discurso econstrução híbrida entre linguagens.

O setor Projeção apresenta grandes destaquesda mostra entre os quais a série de fotogramasde Brancusi (Leda, 1925-1926) e o filme EinLichtspiel schwars-weiss-grau (1930), de LasloMoholy-Nagy, a respeito do qual o artistadeclarou: “todas as formas sólidas se dissolvemem luz”. As fronteiras entre a imagem-forma e aimagem-luz ou, ainda, a imagem virtual e suasrelações entre aparição, ausência, permanênciae perenidade são questões também abordadasno setor Projeção mediante junções a exemplode desenhos e fotografias de DennisOppenheim (Annual Rings, 1968) em confrontodireto com a pintura de Jackson Pollock (Number26 A, Black and White, 1948).

As quatro seções temáticas da exposição sãopermeadas por trabalhos contemporâneosdispostos juntamente com obras relevantes dasvanguardas modernas. Nesse contexto, odiálogo entre o vídeo de “esculturas moles” doaustríaco Erwin Wurm (Positions 59, 1992) e asesculturas metamórficas de Jean Harp (1950-1959) configura uma das salas mais interessantesda exposição. Outros grandes momentos são osencontros entre Marcel Duchamp (Rotoreliefs,1935) e Olafur Eliasson (Your ConcentricWelcome, 2004), e, ainda, Nam June Paik (Zenfor film (Fluxfilm no 1), 1964] em profundasintonia poética com a escultura de WolfgangLaib (Pierre de lait, 1977), e a primorosainstalação de Ingo Maurer (Tableaux Chinois,1989-2006) em associação com asimplicidade comovente do vídeo de AngeLeccia (Fumées, 1995).

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