aroldo plínio gonçalves técnica processual e teoria do processo - ano 1992

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AROLDO PLÍNIO GONÇALVESPROFESSOR TITULAR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA

FACULDADE DE DIREITO DA UFMG - JUIZ PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - MG

t é c n ic a p r o c e s s u a le

TEORIA DO PROCESSO

AIDE EDITORA

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Ia edição — 1992

G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943Técnica Processual e teoria do processo/

Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro :Aide Ed., 1992.

220 p.

1. Direito processual civil. I. Título.

CDD-341.45

ISBN: 85-321-0071-6

I BIBLIOTECAS a T p | i ; 'í j- íf | RSGsSTRO: ' ^ 3 3 ^ 5 Í0ATA:Jsi„# o$ /99

PUBLICAÇAO N °146 tacetVO : *Reservados os direitos desfl^èíTfÇãQ^ara jíAIDE EDITORA E COMÉRCIO DE LIVROS LTDA.Rua Siqueira Campos 143 — 2° andar — Lojas 22 e 23 Tels.: 235-2440 - 236-5986 - 256-2975 FAX: (021) 237-4585 Copacabana — 22033 — Rio — RJ

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Impresso no Brasil P rinted in B razil

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INTRODUÇÃO

O movimento de renovação do Direito Processual, que eclo- de em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e novas reflexões sobre antigas questões da construção doutriná­ria.

Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicis­mo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a visão do processo como estrutura técnica que se põe como instrumento para o exercício da jurisdição.

Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem um destino comum. Não se passam como as ações e reações explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias. Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e nem sempre vão apenas na direção contrária, 'mas abrem-se em

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um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos. Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste século, o movimen­to da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considera­da arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris, no movimento hipp ie , nos w oodstockes, e em tantas outras ma­nifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos das revoluções.

O movimento dè renovação do Direito Processual parece cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se torna o elemento menos importante, confrontado com uma or­dem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica. Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas, e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importan­te, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se fez urgen­te, porque é preciso transformar as condições sociais. E o meca­nismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de finalidades políticas e sociais.1 MARX é sempre relembrado, na

1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos insti­tutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processuaL apto a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A Instrumentalidade do Processo" 2~ ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA-

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passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11a tese: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo'1. Mas não será lembrado que MARX não cha­mava os teóricos como agentes da transformação e sim os operá­rios do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário, ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formula­dos. GALILEU não foi processado pela força >de qualquer teoria de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL, "foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem com as idéias que coloca em circulação3 limita-se à sua honesti­dade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias.

Os movimentos de renovação deste século, no campo da cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da Histó­ria, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS vê como uma criação humana enlouquecida19 e que tem sido motivo de muitas angústias.

MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" inSynthesis - Direito do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, n - 4187, pp. 46147.

2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro, Trad. de Brenno Silveira, 3“ ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 55.

3 A questão é levantada por MICHEL VIRRALY - La Pensée Juridique, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1960.

4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da

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Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTI­NHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se entretido com a literatura grega,5 o Ocidente carrega essa sina. Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por haver cedido à sua sedução e faz o seu m ea cu lpa , repudiando-a. Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentos ir­racionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a razão.

A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrou- se pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostás adequadas a seus problemas, o fato não poderia ser tributado à razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a dire­ciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os crimes não basta destruir as pedras.

O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma

sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS CASTOKIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade, trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Edito­ra de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado está na p. 144.

5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15, pp. 36/37.

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não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa, porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contí­nua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimi­na-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios. Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reco­nhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele a detém cativa.7

A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus mem­bros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. A indignação que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade con­temporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições.

O direito material, enquanto cânone de conduta e de orga­nização social, será fator de transformação, se assim for construí­do pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O

6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3a ed., 1981.

7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Cons­ciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

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processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os con­flitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E esse Direito é o único p o d er capaz de limitar a atuação do Poder.

Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre na Alemanha, o F reirecht de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de PHILIPP HECK, mas foi~também ela que, a partir de 1933, inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e confiou no senso inato do juiz à condition qu 'il so it d e p u re race et q u ’il s'inspire, non p a s d ’urt in div idu alism e désuet, m ais d e la com m unauté n ation ale , que admitiu que a lei é um aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un d ro it non écrit qu i se dégage d e Vâme du peu p le a llem an d et qu i est con form e au x necessités d e la vie nationale, d ro it claire- m ent reconnu, ou m ieux, senti et énergiquem ent réa lisé p a r le ju g e a llem am fí. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurí­dico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939, tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no sentido de que o juiz vinculasse à lei, ressalvando-se que ele $’inspire d e 1’esprit d e la nouvelle p h ilosoph ie et non p lu s des prín cip es in d iv idu alistes surannés du siècle p a ssé? Essa nova filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo.

O século XX rompeu com o mito do século passado de que a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes,

8 Número inaugural de l ’Akademie fü r dentsches Recht, ju in 1934, p .6, article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académie, intitulé D er deutsche Richter Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théo- ríe Générale et à la Philosophie du Droit, 4~ ed., Neuchâtel: D elachaux et Niestlé, 1967, p. 196.

9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 196.

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imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao con trário de depor co n tra o con h ecim en to científico, essa postura anseia pelo seu progresso, p o r sua contínua com plem entação, e conduz àquela palavra de fé, de que fala BACHELARD, do cientista que termina o seu dia de trabalho dizendo: "Amanhã saberei".1®. E nessa profissão de fé a ciência recupera a sua dim ensão hum ana. Todo con h ecim en to , em qualquer área, é fruto de m uitos esforços conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e se ren o­vam , e, n ão raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas co n cep çõ es repudiadas ou com o resposta a elas.

T oda afirm ação sobre a inutilidade, a im propriedade ou im possibilidade d o reexam e de conceitos só pod e ser tom ada co m o um a atitude de renúncia ou com o um a atitude autoritária, ou, ainda, co m o m anifestação de extraordinária pureza, da qual um a das form as se revela naquela fé inabalável n o dogm a que leva as pessoas a m orrerem p or suas verdades. Essa fé é a dos santos, m as n ão dos cientistas, pois, lem brando novam ente BA­CHELARD, "verdades inatas não poderiam intervir na ciência"11. A liberdade da investigação científica não pode ser tolhida, e m esm o a lei, quando fixa definições e estabelece con ceitos, não p od eria im pedir a ação da doutrina jurídica. Poderia, p or certo , ten tar im pedir a sua divulgação, com o ocorreu com a censura, quando legalm ente admitida, mas a própria história dem onstia que a liberdade de pensam ento, mesmo quanclo n ão en contra sua correlata garantia de com unicação, en contra ou tros cam i­n h os para se expandir.

A autonom ia d o D ireito Processual, com o seu bem dem ar­cad o cam p o de investigação, com conceitos e categorias p ró ­prias, não p od eria constituir razão para se dispensar um a revisão de seus principais institutos. A revisita a eles n ão é m ovida p or

10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cutural, 1974, p. 334.

11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334.

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diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHE- RING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que per­dem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também, de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas princi­palmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",— expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo, porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as transformações sociais possam se fazer não de modo caótico, mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade que a época alcança.

No momento em que uma ciência renuncia a continuar investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria, como competência explicativa da realidade, quando clarificar a realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavel­mente, a missão social comum de qualquer ciência.

A retomada do exame de alguns dos conceitos já considera­dos seguramente estabelecidos no Direito Processual pode com­portar certas surpresas. A importância crescente que os institutos do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negli­genciar seu próprio progresso justamente quando as formas de solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam.

Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven­

12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186.

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tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Proces­sual Civil. Mas prétende deixar uma contribuição sobre a nova concepção de processo como procedimento realizado em con­traditório entre as partes, que exige que se pensem novamente alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a pró­pria concepção de procedimento, de relação jurídica processual, da ação, da relação entre o direito material e o processo. Preten­de, também, a partir de uma nova concepção de processo, refle­tir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos.

A nova concepção de processo será trabalhada com base na obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupa­ção de se citar passagens no original, a não ser quando a oportu­nidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se relevarem os aspectos mais importantes que j ustificariam a trans­crição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do autor citado e do controle de sua autenticidade. O método escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a preferência é por essa última, em coerência com o que se enten­de ser a função social da ciência.

A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINA- MARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensa­mento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros da nova geração.

Não se negará, em nenhum m om ento, o direito fundamen­tal da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca em questão são os problemas da construção jurídica e de sua fundamentação.

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As possíveis elucidações sobre as ainda presentes insuficiên­cias o u con trad içõ es d o quadro conceituai utilizado pela d outri­na d o D ireito Processual Civil para estabelecer as relações entre p roced im en to e p rocesso, que incidem inevitavelm ente em dife­rentes m od os de se con ceb er o processo, e que se refletem n o con ceito de ação , e que se projetam na finalidade d o p rocesso, p o d erão se constitu ir em contribuição tanto p ara a Ciência d o D ireito Processual, co m o para o tratam ento de questões de o r­dem prática, tão necessária nesse m om ento em que a nova o r­dem co n stitu cio n al brasileira abriu ex ten so cam p o d e p os­sibilidades de alterações n o Direito Processual, aqui referido co m o sistem a norm ativo.

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CAPÍTULO I

CIÊNCIA E TÉCNICA

1.1. A CIÊNCIA

A divisão do campo do conhecimento, no curso da História, gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de termino­logias para designá-las de acordo com variados critérios referi­dos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto da investigação científica.

Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreen­são do tema que se põe como objeto deste estudo.

E, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre teóricas e práticas, ou especulativas e práticas.

A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na doutrina jurídica,13 que contrapõe às ciências teóricas as práti­cas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam

13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev. e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, 1° v., pp. 264 e s.

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para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação dos resultados adquiridos por aquelas.

Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aris- totélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego teXvn, de que derivou a palavra "técnica").

Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transforma­ções por que as duas concepções passaram na experiência histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é con­cebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do neces­sário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível. Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a expressão arte à ação possível que tem como objeto a produ­ção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se produzir alguirík coisa.14

Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquí­cios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada para resultados determinados.

Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teóri­ca, embora a atividade humana -encontre procedimentos para a aplicação prática das aquisições do conhecimento.

Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendi­da como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda ciência se quer como uma competência explicativa de uma deter­minada realidade, seja ela natural ou cultural.

Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do

14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L .l, in Obras, trad. de Francisco de P. Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977.

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BIBLIOTECA PUCMINAS/BETIM

termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas disputas inúteis, no campo do Direito.15

Em uma das cinco acepções registradas por LAIANDE — quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habili­dade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de genera­lidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram a conclusões concordantes que não resultam de convenções arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradual­mente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação definidos".16

A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, tam­bém, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus resultados são sujeitos àverificabilidade.

HUISMAN e VERGEZ, com base em LAIANDE , afirmam que "a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para conhecer, para explicar o que é".17

Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ­

15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte. Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o termo Direito comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse co­nhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito.

16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et CHtique d e la Philosophie, Paris: Presses IJniversitaires de France, 1972 - verbete: Science.

17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia - Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8a ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42.

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to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produ­zi-lo.

Quando se diz que a ciência é uma procura, uma investiga­ção, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirma­ção, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é, antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (em­bora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomi­na instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, no­ções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade pene­tra na mente humana senão pela representação que se tenha dela, por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na medida em que novos conhecimentos são produzidos.

A ciência, considerada já não como atividade, mas como con­junto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das desco­bertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação.

Assim, as duas acepções do termo, como atividade que produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fun­damentados, se complementam.

Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas defini­ções propostas, em síntese magistral, por BRONOWSK1

"Toda ciência é a procura da unidade em seme­lhanças ocultas".18

18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal,

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"A Ciência é um processo de criação de novos conceitos que unificam a nossa compreensão do mundo".19

A atividade essencial da ciência é essa procura das seme­lhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, dò que se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realida­de. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é classicamente definido como uma unidade mental pela qual se representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciên­cia exerce a sua atividade criadora.

É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um processo. A antiga concepção de ciência como saber definitiva­mente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confir­ma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfei­ção, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade que admite, e requer, processos de correções sobre todo co­nhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação seguida da decomposição.

Os processos e métodos utilizados na atividade científica são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submeti­dos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na história da humanidade.20

Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 19.

19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil Ribeiro da Silva, BeLo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida­de de São Paulo, 1977, p. 114.

20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não uni saber infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens

*

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1.2. A TÉCNICAA palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE,

que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um objeto, é por ele definida com dois sentidos:

"Conjunto de procedimentos bem definidos e transmissíveis destinados a produzir certos re­sultados julgados úteis"

imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a forima mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro saber "pelas nojas da necessidade lógica e da validade universal". O verda­deiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensí- vel, o mundo das idéias que são modeLos dos conceitos e da realidade empírica. A ele, Platão julga possível ascender, como mostra pela teoria da anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rememo- ração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena. Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio Correia, 8- ed., Coimbra: Armênio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entre­tanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja "doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAU- FRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve: "...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao con­trário, é acesso direto ao que existe de propriamente sendo naquilo que é..., ou seja, àquilo que sempre se comporta invariavelmente em relação a si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socrátieos - Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, 2~ ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 163/169. Em relação à alétheia, a doxa era opinião sem fundamento, pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme, a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investi­gação do método adequado para a busca de Alétheia, iniciada, no Ociden­te, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias.

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"Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz particularmente dos métodos organizados que se fundam sobre um conhecimento científico cor­respondente"21.

A noção geral da técnica é de conjunto de meios adequados para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos idôneos para a realização de finalidades.

É bastante difundida a concepção de que a adequação dos meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficá­cia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica ge­nuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o seu destino.22

Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque, depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão recentes estudos de MAX WEBER sobre os processos de raciona­lidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a consecução de finalidades desejadas.

Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência" significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen­

21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulciire cit., verbete: Technique (subst.).

22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion a l Estúdio del Derecho - Vigesimuquinta Edicion Revisada, México: EditorialPorrua S.A 1975 p 317.

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tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser aceita.

É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em ABBAGNANO.23

Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resul­tados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto de conhecimentos, organizado e ordenado.

1.3. RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E TÉCNICA

A concepção de que a ciência revela as relações entre os fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciên­cia do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MAYNEZ— supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é teoricamente correlato.

Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demons­trando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento.

DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos

23 Cf. NICOLA ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev. por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio .. .et al., 2_ ed., São Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica.

24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que, prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se

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bastante significativos para dem onstrar um postulado que é qua­se intuitivo, quando se reflete sobre os processos culturais e os resultados deles derivados: o de que "historicam ente a prática precede a teoria, a técnica precede à ciência".

O p ro cesso de racionalização da técnica iria levá-la a pos­sibilitar que a ciência se tornasse, realmente, um "saber aplica­do". Ao alcançar essa etapa, a ciência engendra novas técnicas e a técn ica , racion alizad a, p erm ite tan to o crescim en to d o co ­nhecim ento científico co m o a m elhor aplicação da ciência, con ­form e finalidades previam ente concebidas.

A partir desse p on to de confluência, é possível se fazer um a ciência da técnica e é tam bém possível se obter tanto o aprim ora­m en to de antigas co m o a prod u ção de novas técnicas pela aplica­ção d o con h ecim en to fornecido pela ciência.

Entretanto, deve ser ressaltado que essa possibilidade é apenas o que se disse: um a possibilidade.

MAX W EBER,25 a quem se deve uma sistem atizada investiga­ção dos p rocessos da crescente racionalização da civilização oci­dental, dem on strou co m o essa tendência não é suficiente para afastar as form as irracionais em vários de seus dom ínios, dentre eles o d o D ireito.26

multiplicar em dimensão insuspeitada. »

25 MAX WEBER - Bssais sur la Théorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A Sociologia do Direito (Recbtssoziologie) que constituiu um capítulo da Wirtscbaft u n d Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada sepa­radamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber havia confiado a um de seus aLunos, como relata JULIEN FREUND, a quem se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte deste rodapé.

26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racio­nalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamura- bi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente

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De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciên­cia, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeira­mente, se construir a si mesma, como competência explicativa da realidade que se fez objeto de sua investigação.

com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração, porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribu­nais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a ir­racionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material, oferecendo quatro hipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do. Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (nâo importando sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3- O direito formal irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se â revelação do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elabo­rados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation d u droit selon M ax Weber, in Formes de Racionalité en-Droit, Archives d e Phílóso- phie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92.

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CAPÍTULO II

CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA

2.1. RELAÇÃO ENTRE CLÊNCLA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA

O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a- sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação1 deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamen­

te, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo de construção.

No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma,

s lhe correspondia.Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idô­

neos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si mesma.

u Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entrecoerências e contradições, puseram em pauta as questões das relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o '

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direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade indi­vidual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito manifestado na experiência, do direito positivo, com existência no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de refle­xões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a própria existência da sociedade humana, as formas de sua orga­nização e de solução de seus conflitos.

2.2. OS CAMPOS DA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO

O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que a doutrina ainda separa por critérios diferentes.27 mas nos qua­dros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões

27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit., 2~ v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p. 18 e s., GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armê­nio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p .185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN, FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion a l Derecho, 8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUIS RECASÉNS SICHES - Tratado General d e Filosofia D el Derecho, Quinta Edicion, México: Edito­rial Porrua, S.A., 1975, p .l60 e s. Sem pretender esgotar os quadros do saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda, outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTONIO HERNANDEZ GIL-Meto­dologia de la Ciência del Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352.

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internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus funda­mentos; aí, Sociologia Jurídica se preocupou com as relações entre os fatos sociais e a normatividade; a Ciência do Direito restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas possibilidades se voltam também para o passado, pela História do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preo­cupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica, que já pretende se sistematizar como campo autônomo do co­nhecimento jurídico.29

O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades que se põem para o trato da técnica processual.

2.3. DOGMÁTICA JURÍDICA E TEORIA GERAL DO DIREITO

A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente reali­zado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo",30 em síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do

28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p. 185.

29 Cf. PIERRE CATAIA - L Hnformatique et la mcionalíté du Droit, in Archives de Philosophie d u Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit, Paris: Sirey, 1978, pp. 295/321.

30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976, pp. 16/17.

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direito positivo",31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direi­to, no século passado, como mostra RADBRUCH32.

Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídi­cos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momen­to, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos gerais comparecem com certa uniformidade em todos os siste­mas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade — desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem

31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p. 185.

32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 189-

33 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968, pp.88191, p. 130.

34 Cf. JOHN AUSTIN -Lectures on Jurispm dence, London: R. Campbell, 1885. Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p .121 e s; W. FRIEDMAN - Tbéotie Générale du Droit, Paris: Librairie Générale de Droit et d e Jurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciên­cia do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano, Rio de Janeiro: Forense, 1966; p. 109 e s.; ALBERT BRIMO - Les Grands Courants de La Philosophie du Droit et de UÉtat, Paris: Ed. A Pedone, 3 a ed., 1978, p. 276 es.

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jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjun­to .»

Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a Dogmática Jurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto de investigação o Direito positivo36 e, por isso, estão no quadro da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu i como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de umu ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo.37

J 2.4. A TÉCNICA JURÍDICAc ■

JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutri­nas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda década do século XX, considera que o estudo da ciência do Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da grande revolução do pensamento jurídico.38

A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e

35 Cf. PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science du Droit, Luxem bourg: Office des Imprimés de L ’État, 1960, p.73

36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria General del Derecho - Trad. p o r el Dr. Jose Safra Valverde, M adrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science du Droit., Luxembourg: Office des Imprimés de L'État, 1960, pp.74/75.

37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado, Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5~ ed., p. 17.

38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science du Droit et Romantisme - Les Conflits des conceptions juridiques en France de 1880 à 1’heure actuelle, Paris: Librairie de R ecueil Sirey, 1928, pp.268/269-

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passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos intelectuais da construção jurídica.39

A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PAS- QUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito transforma em regras claras e práticas as diretivas da política jurídica"40.

Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de ramos do Direito positivo.

É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos: interpretação, Construção e Sistematização, a que correspon­dem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos concei­tos jurídicos41.

Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental

39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY, que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo método da libre recherhe scientifique, poderão encontrar soluções para os problemas da,elaboração, buscando os critérios da integração, que serão utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY -Science et Techni- que en Droit Ptivé Positif 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à técnica de elaboração teórica e lógica, compreendendo o estudo das fon­tes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN DABIN, na clássica obra La Technique de 1'élaboration du droit p ositif - Bruxelles: Bruylant et Paris: Sirey, 1935.

40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 163-

41 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a siste­mática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta, citando BUCKHARDT, Methode u n d System como. "Construire, c'est alors ram ener les élements camctéristiques du cas concret au x notions abstrai- tes incluses dans la règle ou dans 1‘institution jutidique", op. cit., p .170.

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teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituí­ram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava sem explicação, ou, antes, explicado como une a ffa ire d esprati- ciens, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre casos concretos ou a dar solução para os~conflitos sociais, sub­metidos à decisão do Poder.

Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos constituíam o savoir fa ir e daqueles que elaboram e praticam o Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis— a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d ’autres mots, la p ra tiq u e ju d ic ia ir e et adm in istrative42.

Sua descrição dessa atividade é significativa para demons­trar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica resplandescia:

"Considérée com m e pratique du droit, la techni- qu e ju rid iqu e consiste à appliquer• le droit, à l ’exé- cuter, à le m ettre en oeuvre. C’est l ’ h ab ilitép ratiqu e du m agistrat, d e l ’avocat, du notaire, du fon ction - naire... C espraticien s n ’on tp as la m êm e liberté qu e ceux qu i fo n t Office d e législateur et leur art se d is­tingue sensiblem ent d e 1’art d e la législation. Pour lespraticien s, ils'ag it avant tout d e sa isir la réa lité d es fa its et des situations concrètes, d e m anier les règles d e droit avec intelligence et d e fa ir e em ploi ju d ic ieu x du pou voir d iscrétionn aire qu i leur est

42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47.

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laissé. Leur art est la pru den ce ju rid iqu e, la iuris pru den tia au sens etym ologique du terme"43.

E muito compreensível que, em decorrência dos resultados do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha as­sumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica, sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindo- lhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedican­do-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas, elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizan­do ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma, o procedimento de aplicação não fosse mais do que une a ffa ir e des praticiensf44.

A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se prepara­va na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pan- dectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transfor­mar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria Geral do Processo45.

43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48.

44 Tal concepção não foi superada, como demonstra, ilustrativamente, K. STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La

Justice en France, Mutations de l'appareil Judiciaire et Lutte d e Classes", avec la collaboration de GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceei p a rce q u ’il traite d u fonctionnem ent de l ’appareiljudiciaire, qui est une question tetre à teire et non p a s d e questions qui intéressent la philosophie d u droit (justice, droit objectif, intérêt général, sujet de droit, responsabi- lité...)" Cf. Comptes Rendues, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23 ■ Form es de Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.43V433.

45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA., ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual.

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Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurí­dica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de meios idôneos para o trato do Direito.

O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletivi­dade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que re­presenta a comunidade jurídica, a sociedade politicamente orga­nizada pelo Direito.

A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu traba­lho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formula­dos, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade, unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicá­vel a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao con­junto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídi­cos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críti­cas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legisla­dor. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e em construção criadora46.

Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamen­te valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a

- São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991-

46 Çf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion a l Derecho, Oc- tava Edicion, Buenos Aires: Editorial Penot, 1975, pp. 149/167, sobre a elaboração do conceito, v. RAJFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé: Librería y Editorial Castellví S.A , 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op. cit., p. 188 e s.

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aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da aplicação do Direito47.

2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA

2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃOAlgumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e,

conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avalia­da, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões, referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que des­pertaram polêmicas.

Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso concreto como premissa menor e a sentença como conclusão48.

47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explica­do.^..) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasi­leiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Proces­sual: quarta série - São Pauto: Saraiva, 1989, p. 12. Sobre a dignidade da dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CAS­TRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os práticos, e Redenti, que punha como questão de primeira ordem a neces­sidade de que o Direito se fizesse concreto: Ma prim a di tutto bisogna chcil códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge, Cf. JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4~ ed., 2~ tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 1989, pp.7118.

48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse

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É compreensível que, na falta de uma construção científica mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação" estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao silogismo.

As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável, a questão axiológica que permeia todo o direito49.

O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou imprová­vel, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogis­mo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria

dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN epi Théories relatives au raisonnem ent judiciaire, surtoüt en droit continental, depuis le Code Napoléon jusqu 'à nos jours, primeira parte de sua obra Méthode du Droit-Logique Jurídique-Nouve/le Rhêtoríque, Paris: Dalloz, 1979, pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por CLAUDE DU PASQUIER, que, no capítulo destinado à L’application dn Droit, estuda os mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juri- diques multiples; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer une règle, c ’est transposer su r un caspartiadier et concret la décision incluse dans la règle abstraite" ..."Cette application comporte donc unpassage de l'abstrait au concret, d u general auparticulier, b ref une déduction, Son instrument est le syllogisme" in op. cit., p. 126.

49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses argumentos, como as de COÍNG, em Gnmdzüge der Rechtsphilosophie, sobre as "situações-tipos".

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possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo;, o teimo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar em estranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferi­das. «

É claro que não se nega que o "argumento", no sentido estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da deci­são judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica) conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto para se inferir a sentença.

De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria aparecer como algo aterrador.

A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser relegada a permanecer à margem de uma ciência qiie se propôs a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma­

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na, e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da razão.

Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensa­mento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que fala ORTEGA Y GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito.

Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurá­vel esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas, que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento, da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verifica­ção e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência.

2.5.2. UM INSTRUMENTO PARA UM RACIOCÍNIOA lógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência

experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que é a busca do conhecimento.

ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando o critério temporal como metodologia da exposição, para pene­trar nas especificidades de cada um, começando pelos precurso­res da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão, e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos, pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís­

50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.

51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a seguir.

52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente em 1662 La Logique ou ia r t de Penser, mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal.

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tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreen­der, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbó­lica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que, "agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga deno­minação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica.

A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal contemporânea, mas máis do que o nome, é conveniente esclare­cer alguns dos pontos por ela estabelecidos.

1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência normativa54. Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de recolher as "leis do pensamento"55. O pensamento, como proces­so mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para construir o método da livre associação, pode passar por movi­mentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição, que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não alcançadas por critérios objetivos de descrição.

2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclu­sões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a cor­reção do resultado já completado56. Propõe-se, assim, "a estabe­lecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan­

53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Rus­sell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309.

54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.

55 Sobre esse sistema de lógica que se dá como objeto presidir "as leis formais do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito - Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8- ed., p. 297 e s.

56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. - São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21.

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do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomati- zada57."

3- A lógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas, mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente, também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existên­cia, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o que é evidente em um campo do conhecimento póde não o ser em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas diferentes.

4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da dedução. As verdades da lógica são formais, porque referidas não ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argu­mento, como um sistema proposicional de premissas e conclu­sões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalida­de", e pela forma de relações entre proposições que são premis­sas e proposições que são conclusões.

5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal58, mas se

57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.

58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enuncia­do, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade, em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares cor­respondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

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desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos, no argumento59.

6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma premissa (uma proposição que será usada como base para se inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma propo­sição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado).

7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela-

Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica: "Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendi­mento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier, 3" ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionan­do-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240; no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad. do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987, pp. 169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do sum m um genus? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓ­TELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se conce­ber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica, geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nomina- lismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito.

59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento. E aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicio- nais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT BLAN- CHÉ, op. cit. pp.310/311.

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ciónada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isola­da, porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclu­são60.

8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões. O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o argumento indutivo pretende oferecer apenas uma pro­babilidade da afirmação da conclusão61.

9. A dedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção de objetos que possuem algumas características específicas co­muns. O que é necessário na identificação dos objetos para integrá-los a uma classe é que compartilhem de características, qualidades, determinações específicas. Assim como o problema da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do co­nhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão.

<50 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., p. 23-

61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/39-

62 ROBERT BLANCHÉ mostra como a aflição de FREGE, que é considerado o criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL, seu grande divulga­dor, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um puro pensamento, não reconhecido como verdadeiro, não pode ser uma premissa. É só quando eu reconheci como verdadeiro um pensamento que ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser empregadas como premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BO- CHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., pp.307/308. "A lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos univer­sais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência particular". (RUSSELL, Vimportante philosophique de la logique, Re v. de métaph., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309. E sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos. Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis-

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10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta, segundo determinadas características de que compartilham, mas pode também pertencer a uma outra classe, de elementos dife­rentes, quando uma característica é tomada como totalidade dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia d^s classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu63.

A preocupação com o levantamento desses dez tópicos, escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pen­samento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência, e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum benefício para seu desenvolvimento.

mo lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell consti­tuíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da lógica. Cf. op. cit., pp.309/310.

63 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma variedade de outras classes.

64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a lógica tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no pensamento", p.256.

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CAPÍTULO III

CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E TÉCNICA PROCESSUAL

3.1. A CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO

Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racio­nalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetiva­mente definidos e delimitados pelas normas integrantes do pró­prio sistema.

O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordena­mentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das garantias constitucionais, importa na superação do critério de aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julga­dor, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo "Fenômeno Magnaud”65. Esse critério é substituído por uma

65 Le phénom ène M agnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edi­ção do Méthode d'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif, analisou os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château- Ttiierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram como le bonjuge

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, técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos não- subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos mem- bros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma

I segurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de inteligência, cultura é sensibilidade invulgares, quer estejam

| diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos predicados.

A aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, que, em fins do século passado, despertou na teoria do Direito um intenso interesse em torno da figura do juiz, de sua missão e de seus deveres perante a lei injusta, passou, também, por sua fase de racionalização, no plano do Direito positivo e da doutrina que sobre ele se desenvolvia.

A ciência do Direito Processual teve, como qualquer ciência, sua fase de construção, que lhe permitiu desenvolver suas técnir- cas para investigar o seu objeto, constituído pelas normas que organizam e disciplinam a própria técnica da aplicação do Direi­to pelo Estado, através dos órgãos da jurisdição.

Sobre essa realidade normativa, dada pelas leis que organi­zam e disciplinam a jurisdição e o instrumento de sua manifesta­ção, o Direito Processual — enquanto ciência, na acepção de atividade que produz conhecimento — trabalha, elabora seus conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre semelhanças não aparentes em seu campo de investigação, de­senvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão da matéria, criando, assim, categorias e institutos jurídicos, e organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobra­

Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes: Les Jugem ents d u Président M agnaud (1900) e Les Nouveaux Jugem ents du Président M agnaud (1904). Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser o bom juiz favorável aos miseráveis e severo com os privilegiados. Não se preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN LogiqueJuridiqtte - NouvelleRhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp.71/72.

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mento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, consti­tuir-se em novas disciplinas autônomas.

Na reflexão sobre a Ciência e a Técnica do Processo, convém relembrai- com EDUARDO J. COUTURE, que "a ciência do processo não é só a ciência das petições, das provas, das apelações, das execuções, das formas e dos prazos. Seria difícil construir uma ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindo- se, apenas, desses elementos. Antes, porém, de chegar a eles, a ciência do processo necessita assentar uma série de proposições de conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência — o processo— não pode ser concebido, nem chegar a ser realizado"66.

3.2. A NECESSIDADE DA DISTINÇÃO ENTRE A CIÊNCIA E SEU OBJETO

Como a expressão "direito processual" é utilizada para de­signar mais de um objeto, sendo empregada para denotar tanto uma ciência, ou seja, uma atividade de conhecimento ou um conhecimento organizado, quanto para designar o próprio com­plexo normativo que constitui o seu objeto, surgem alguns pro­blemas no seu uso.

O Direito Processual, no sentido de ciência, enquanto con­junto de conhecimentos, organizado como disciplina, no senti­do didático-metodológico, que se insere entre outras disciplinas, classificadas no campo do Direito Público, não "governa a ativi­dade jurisdicional", e não "cria órgãos jurisdicionais", não "cria" ou "regula o exercício dos remédios jurídicos que tornam efetivo todo o ordenamento jurídico"67, porque a ciência, considerada

66 Cf. EDUARDO J. COUTURE - Interpretação das Leis Processuais, Trad. da Dra. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 157.

67 A discordância se manifesta aqui em relação aos conceitos expostos na valiosa obra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI

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co m o atividade de conhecim ento, ou considerada com o con ju n ­to organizado de conhecim entos, não tem essa função.

C onsiderado com o com plexo de norm as, objeto d o c o ­nhecim ento da ciência que dele se ocupa, o Direito Processual tem a função criadora que toda n orm a possui, no sentido de con ferir significado jurídico a determ inadas situações produzi­das p o r fatos e atos que recebem a valoração normativa.

3.3. A NORMA PROCESSUAL

As norm as jurídicas são classificadas com base em diversos critérios, que perm item sejam recolhidas e sistematizadas, den­tre ou tros, os referentes a sua form a de produção, a seu âm bito de validade, a seu grau de obrigatoriedade, à garantia de sua exigibilidade, à m atéria p o r ela regulam entada, ao objeto de sua disciplina, a sua posição na hierarquia d o sistem a norm ativo.

Tom ando o objeto de sua regulam entação com o p o n to de referência, a doutrina desdobra os critérios de classificação pela pluralidade da m atéria disciplinada. Nesse sentido fala em n o r­m as de direito m aterial, ou substancial, e em norm as de D ireito Processual. Relacionando as duas categorias, com base em crité­rios ditos de com plem entação, denom ina as norm as de direito m aterial co m o norm as substantivas, norm as primárias, norm as de prim eiro grau, e as norm as processuais norm as secundárias, n orm as de segundo grau, norm as instrum entais.

É interessante verificar que as teorias, em bora utilizando a m esm a denom inação, nem sem pre falam a m esm a linguagem sobre essa classificação. Alguns autores invertem a posição das norm as, den tro do quadro definido pelo critério, e denom inam norm as de prim eiro grau, norm as primárias, as norm as p roces­

GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 48.

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suais, e reservam a qualificação de normas secundárias, de se­gundo grau, às normas materiais68.

E, ainda, oportuno ressaltar que as duas categorias de nor­mas são plenas de substância, de conteúdo, de matéria.

Essas constatações são suficientes para que se dê razão a FAZZALARI quando afirma que a qualificação das normas em normas de primeiro grau e de segundo grau é meramente con­vencional69.

Ambas disciplinam condutas, inserem-se no mesmo ordena­mento jurídico e se complementam mutuamente. ‘

A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que com­portam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta, qualificando-a como lícita e como ilícita, tendo como matéria ás

68 Nessa posição encontra-se LÉON DUGUIT, que distingue as regras estabe­lecidas pelo grupo social em normativas e construtivas ou técnicas. As primeiras são imperativos que impõem uma abstenção ou uma ação, cons- tituindo-se como condição da manutenção da vida em sociedade. Delas, conforme expõe, tem consciência cada indivíduo que, por mais primitivo que seja, sabe que, se não se conformar a elas, o grupo reagirá contra ele. O grupo pode estabelecer regras para assegurar diretamente ou indireta­mente a execução da norma. Normas construtivas ou técnicas são aquelas estabelecidas para assegurar na medida do possível o respeito e a aplicação das regras normativas. As normas construtivas ou técnicas organizam, fixam competências, criam as vias para a aplicação de sanções jurídicas, fixam condições sob as quais os detentores da força podem intervir, determinam o poder e o alcance das decisões. A regra construtiva é en somm e le règle organique de la contm ínte e por ela se define a própria existência do Estado: il n'y a d'Etat que s ’il y a monopole de la contrainte, et il y a État des que ce m onopole existe. Cf. LÉON DUGUIT - Traité d e Droit Constitu- tionnel, Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie Éditeurs, 1927, v.I, pp. 106/108. HANS NAWIASKI entende que as normas de direito material são apenas seminormas, normas parciais, que só em conjunto com as normas processuais e executivas se convertem em normas jurídicas com­pletas. Cf. HANS NAWIASKI - Teoria General del Derecho, traduccion de la segunda edicion en lengua a/em ana p o r el Dr. Jose Safra Valverde, Ma­drid: Ediciones Ria/p S.A, 1962, pp.35/38.

69 Cf. ELIO FA22ALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp.91/96.

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3.4. A JURISDIÇÃO

O Estado exerce a função jurisdicional, sobre o mesmo fundamento que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem jurídica instituída, as funções legislativa e administrativa.

As ordens jurídicas contemporâneas proclamam que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, que a sobera­nia pertence ao povo ou à nação. O Estado, enquanto repre­sentante da áociedade politicamente organizada pelo Direito, assume o poder em nome da nação, legisla, estatuindo deveres, garantindo direitos, ordenando a vida social, administra, gerindo os negócios públicos e exerce a função jurisdicional, pela qual reage contra o ilícito e promove a tutela de direitos.

É preciso, entretanto, ressaltar que, nas ordens jurídicas soberanas, ou seja, no Estado de Direito, o poder legitimamente constituído se exerce nos limites da lei, e a função jurisdicional, que traz implícito o poder uno e indivisível do Estado, que fala pela nação, se exerce em conformidade com as normas que disciplinam a jurisdição.

"Toda jurisdição, exercida em qualquer esfera, provém do Estado" — diz NELSON SALDANHA — pelo que "o próprio pro­blema dos pressupostos processuais, vistos sob certo ângulo, nos levaria a esse problema: o processo existe, com seus elemen­tos necessários, pelo fato de se darem sob a égide do Estado (ou dentro do ordenamento jurídico demarcado pelo Estado) as situações e os conflitos que pedem que o processo exista"70.

70 Cf. NELSON SALDANHA - Estado de Direito, Liberdades e Garantias. São Pauló: Sugestões Literárias, 1980, p. 66.

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O antigo conceito de Estado foi referido à junção de duas noções.- status, no sentido original de situação, condição, e res p op u li-res p ú b lica , a coisa pública, que se sintetizaram no Status-res p ú b lica , em que a situação de organização política da sociedade se corporifica no Estado71. As doutrinas contra- tualistas, dos séculos XVII e XVIII, com HOBBES, LOCKE e ROUSSEAU, contrapuseram o estado de "natureza" ao estado "social" ou "político", o direito natural ao direito positivo, civil, adquirido — expressões utilizadas para designar o direito exis­tente no estado "social" ou "político" — na tentativa de estabe­lecer um fundamento racional para o poder. Embora divergin­do sobre o caráter social do estado pré-político, negado por HOBBES, com violência a manifesta e latente do hom o lupus hom in i, e afirmado por LOCKE e ROUSSEAU, sobre o caráter cordial do ser humano, o seu ponto de convergência se deu na construção teórica do "pacto social". Tais doutrinas são expressões de uma época em que dominava o voluntarismo, e a necessidade de se buscar um fundamento de legitimidade para o poder, sem referi-lo a um direito "divino", que permitis­se de alguma forma limitar, teoricamente, seu exercício pelo Direito, foi trabalhada sob as concepções disponíveis na épo­ca. Na época contemporânea, surgem várias teorias sobre o Estado, e a tese da cisão entre Estado e sociedade, cuja formu­lação mais expressiva é devida a MARX — o Estado sendo concebido como instrumento de opressão da classe dominan­te —, tem recebido várias análises da Ciência Política e da Sociologia Jurídica. Uma delas tem se desenvolvido sobre o conceito de racionalidade do Estado contemporâneo, baseada na legitimação pelo procedimento em detrimento da comple­xidade social, o que caracterizaria a crise resultante da contra­posição entre a superlegalidade política e a legalidade consti­

71 Essas expressões históricas são levantadas por ENRICO REDENTI, em Di­ritto Processuale Civile, 1 - Nozione e Regole Genemli, Bologna: Giuffrè Editore, 1980, pp.3/4.

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tucional72. O dimensionamento da "crise", sob a concepção da "democracia" como espaço da liberdade que não anula mas per­mite a manifestação de conflitos, tem se expandido na reflexão jurídica73, e é sob esse enfoque que a idéia do contraditório se desenvolveu como elemento fundamental do conceito de processo.

Os três enfoques mencionados, referidos a momentos his­tóricos distintos, foram escolhidos para demonstrar que a ques­tão da legitimidade do poder pode ser contemplada sob prismas diferentes. Entretanto, quaisquer que possam ser as teorias de­senvolvidas sobre o Estado, dificilmente será possível concebê-lo sem a função jurisdicional, ainda que se mudem as formulações sobre os modelos instrumentais de sua atuação. E a função jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expres­são de um poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela norma jurídica.

No que tem de específico, a função jurisdicional substitui a autodefesa, eliminando o recurso da autotutela, da vingança privada, da represália. Do primitivo rito da religião doméstica, do culto dos deuses lares, quando a represália era uma das formas de obrigação para com os Manes, pela vingança de san­gue realizada pelo membro do clã ofendido contra qualquer representante do clã de onde partira a ofensa, vingança neces­sária para o repouso da alma da vítima74, às mais antigas leis que

72 Cf. GUSTAVO GOZZI - Estado Contemporâneo, in Dicionário de Política - NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, trad. de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis Gerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2a ed., 1986, pp.401/409.

73 Cf. JOSÉ EDUARDO FARIA - Sociologia Jurídica: Crise do direito e praxis política, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp.56/58.

74 Cf. FUSTEL DE COULANGHS - A Cidade Antiga, Trad. de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Heraus, 1975, pp.17132. Sobre as primitivas sanções transcendentes à sociedade, derivadas do princípio da retribuição, cf. KELSEN - Teoria Pura do Direito, cit., pp.53-59-

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hoje são conhecidas, as da Cidade-Reino deEshnunna, tombado sob o exército de H am m u rab f3, o Estado foi se organizando juridicamente, e avocando, progressivamente, a repressão dos atos repudiados pelo grupo social. Dentre as flutuações históri­cas da racionalidade e da irracionalidade, de que fala WEBER, o Estado organizou sua função jurisdicional dirigida a dar respos­tas à sociedade sobre as condutas valoradas negatiyamente, que seriam qualificadas de ilícitos, e, em conseqüência, assumiu a tutela dos direitos da sociedade. "Direitos da sociedade" é expressão intencionalmente escolhida, para que nela se introdu­zam os direitos individuais e coletivos, em suas várias clas­sificações: sociais, culturais, econômicos e políticos, cujo reco­nhecimento e ampliação se observa como uma tendência comum nas sociedades contemporâneas.

Baseando-se na mesma concepção de RUDOLF VON JHE- RING, a quem reconhece o título de l e plus g ran d juriscon su lte d e VAllemagne m oderne, segundo a qual o Direito ex a composto de dois elementos: a regra (Norm) e a realização da regra pela força (Z w ang), DUGUIT conclui que, se o Estado tem o monopó­lio da força sobre seu território, não são regras de direito senão aquelas que têm, atrás delas, a força estatal76.

O caráter de universalidade da sanção jurídica, frente a outros tipos de sanção que estão presentes enj outras formas normativas, é lapidarmente posto em evidência por MIGUEL REALE, quando, discorrendo sobre a pluralidade de ordens nor­mativas, e de ordens jurídicas grupalistas. extra ou intra-estatais, demonstra que se pode escapar às sanções grupais renunciando-

75 Cf. - As Leis de Eshntmna, Introdução, texto cuneiforme em transcrição, tradução e comentário de EMANUEL BOUZON, Petrópolis: Vozes, 1981.

76 DUGUIT entende que o momento da organização do Estado coincide com aquele em que as regras construtivas, ou técnicas, que estabelecem a via para a repressão da conduta rejeitada pelo grupo se correlacionam com as regras normativas. Cf. Traité de Droit Constitutionnel troisième édition, Tome I - La Règle de Droit - Le Problème de L 'État, Paris: Ancienne Libraire Fontemoing& Cie, Éditeurs, 1927, p .101.

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se aos grupos, mas não se pode renunciar ao Estado, porque mesmo se se abandona o território nacional, junto ao retirante segue uma série dê normas de seu sistema jurídico77.

Podem ser aparados os excessos das doutrinas que conce­bem o Direito tão-só com a garantia da sanção, pois mesmo ao se investigar apenas o sistema jurídico positivo, sem o recurso a outros critérios axiológicos78, que não sejam os dele decor­rentes, constata-se que uma pluralidade de preceitos (em evidên­cia comparecem os constitucionais), ainda que não assegurados pelas sanções de normas do sistema, atuam como limite à ação dos indivíduos e, sobretudo, como limite à atuação do Poder. O sentido lógico de "princípio" — o que está posto como funda­mento e limite, para se evitar a regressão do raciocínio ao infinito —, é perfeitamente aplicável ao Direito, quando se trata de "princípios jurídicos". Os preceitos constitucionais, que se apre­sentam como princípios jurídicos, balizam o sistema normativo, impedem sua projeção, através de normas que com ele possam ser incompatíveis, em direção contrária aos fundamentos do sistema, e limitam a atuação do poder, pois no Estado fundado sobre o Direito, o poder se exerce nos "limites" determinados pela lei. Os princípios constitucionais, mesmo quando tidos co­mo não-auto-aplicáveis, já possuem eficácia intrínseca porque, obstando a criação de normas jurídicas infraconstitucionais que os contrariem, não permitem possam as leis se projetar além do sistema jurídico, em direção contrária a ele.

Pode-se confirmar, ainda, a cada instante, a observância do Direito sem a manifestação da sanção, pois não se pode negar

77 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 1976, pp.76/78.

78 Não se nega que as doutrinas axiológicas têm sido extremamente preciosas para provocar o "re-pensar" do papel da coação no Direito. Nesse sentido, v. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Direito e Coerção, Belo Horizonte, 1956, que sustenta a tese de que apenas ao Estado Totalitário pode-se atribuir o monopólio do "direito" como força, porque a lei pode ter sua vis coativa, mas não é, em sua essência, a própria força.

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efeitos jurídicos aos atos lícitos cumpridos espontaneamente, que se desenvolvem e se esgotam sem o apelo à proteção jurisdi­cional. E esses, em uma sociedade dotada de certa estabilidade, prevalecem sobre as situações de litígio que, quando não resolvi­das na esfera particular, são levadas à apreciação do Estado, através da provocação da função jurisdicional.

A jurisdição se organiza para a proteção de direitos e das liberdades, asseguradas na ordem jurídica, contra o ilícito, e ilícito, em qualquer campo do Direito, é a inobservância da conduta normativamente valorada como devida, cuja ocorrência na prática, se se admitir a liberdade do reino humano, não estárá fora da esfera do possível.

3.5. O PROCESSO

O D ireito Processual, como ramo autônomo do co­nhecimento jurídico, desenvolve sua investigação sobre a norma que ordena e disciplina a jurisdição, a norma que regula o exercício do Poder Jurisdicional, e, por isso, não é raro que se diga que seu objeto é a norma que disciplina o processo. A jurisdição, entretanto, é organizada para que o Estado, através dos órgãos jurisdicionais, se manifeste em situações que envol­vem conflitos litigiosos e em situações em que, havendo ou não divergências, encontra-se ausente o litígio.

Por isso. a afirmação de_que o processo constitui o objeto por excelência do estudo do Direito Processual deve ser tomada com certo cuidado, pois para se compreender o seu alcance é necessário se entender o que se está designando como "proces­so".

A questão se reveste da maior importância, por várias ra­zões. Primeiro, pode considerar-se que vem posta no próprio ordenamento jurídico positivo, quando destina suas noxmas a reger a "jurisdição contenciosa e voluntária", a regular o "proce­dimento comum" e os "procedimentos especiais", o "processo"

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de conhecimento, de execução e cautelar79. Em seguida, obser- va-se que já se encontra consolidada, no plano teórico, a propos­ta de um novo tratamento das relações entre procedimento e processo, que suscita nova reflexão sobre seus conceitos. Por fim, a Constituição da República de 5 de outubro de 1988, ao atribuir, no art. 22, item I, competência privativa à União para legislar sobre Direito Processual, e no art. 24, item XI, competên­cia concorrente80 aos Estados e ao Distrito Federal, para legislar

79 O art. I2 do Código de Processo Civil expressamente estatuiu que a jurisdição civil, "contenciosa e voluntária", seria exercida em conformidade com suas normas. Essas normas, como decorre dos arts. 270 e 271, se destinaram a regular o "procedimento comum" e os "procedimentos espe­ciais", o "processo" de conhecimento, de execução e cautelar, e o art. 1.211, ao delimitar o âmbito espacial e temporal de sua validade, dispôs que o Código rege o "processo" civil. Além de delimitar o quadro da atuação do Poder Jurisdicional, tra2endo para seu âmbito relações litigiosas e não litigiosas, a norma do Código de Processo Civil especificou a sua matéria, apontando o objeto de sua disciplina: procedimento e processo.

80 RAUL MACHADO HORTA distingue, na repartição das competências, o modelo clássico e o que denomina de moderno, que se caracteriza por compreender a legislação exclusiva da Federação e a legislação concor­rente ou comum, em uma competência mista, a ser exercida pela União e pelos Estados-membros. É ela que configura o Federalismo de equilíbrio, em que a descentralização tende a ampliar as matérias da legislação co­mum à União e aos Estados-membros, ficando no domínio da União a legislação de normas gerais e no dos Estados-membros, a complementação da legislação federal. Cf. Organização Constitucional do Federalismo in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, n^s 28/29, 1985/1986, pp.9/31. Estudando as possíveis hipóteses de incompati­bilidade entre a lei federal e a lei estadual, JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO demonstra que, quer na competência privativa, quer na compe­tência concorrente, a questão se acerta pelo princípio da hierarquia das leis, esgotando-se, quanto à competência privativa e exclusiva, pela decla­ração de inconstitucionalidade da lei estadual incompatível com a lei federal e na competência concorrente pelo predomínio da lei federal válida. Cf. JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Teoria Geral do Fede­ralismo - Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982, pp.68/69- Em relação à extensão, JOSÉ AFONSO DA SILVA classifica as competências em exclusiva, privativa, comum, cumulativa ou paralela, concorrente, e suplementar: a privativa é enumerada como própria de uma entidade com possibilidade de delegação, ou de competência suplementar, a competência comum,

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sobre "procedimentos em matéria processual", desperta um no­vo interesse sobre procedimento e processo como objeto das normas estudadas pelo Direito Processual, que ultrapassa o cam­po acadêmico.

Anote-se que a doutrina processual brasileira já vislumbra, nos arts. 22, I, e 24, XI, da Constituição da República de 5 de outubro de 1988, distinção entre "norma processual" e "norma procedimental"81.

cumulativa ou paralela, significa a faculdade de legislar ou praticar certos atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistin­do, pois, num campo de atuação comum às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência da outra, que pode assim ser exercida cumulativamente, a competência concorrente possui dois elementos constitutivos: 1. a possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; 2. a primazia da União no que tange à fixação de normas gerais; a competência suplemen­tar, que é correlativa da competência concorrente, significa o poder de formular normas que desdobrem o conceito de princípios ou normas gerais ou que supram a ausência ou omissão destas. Essa é a dos §§ 1° a 4~ do art. 24 da Constituição de 1988. Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA - Curso de Direito Constitucional Positivo - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, pp.413/415.

81 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8 - ed. rev. e atual.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, P- 83.Desta "técnica e teoria..." vai resultar, no final, que a Constituição de 05 de outubro de 1988, abre, definitivamente, as portas para a edição de Códigos Estaduais de Processo (civil e penal). Outra não pode ser a conclusão que se extrai de leitura do art. 24, item XI e parágrafos, do texto constitucional em vigor, que dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, concorrentemente, sobre "procedimentos em matéria processual", ou em outras palavras, legislar sobre "procedimentos em processo jurisdicional". Para maior clareza vejam-se os capítulos IV e VI seguintes, onde estão explicitados os sentidos dos termos "procedimento" (gênero) e "processo" (espécie), não havendo "distinção" entre eles, mas relação de inclusão (todo processo é um procedimento). Fica, pois, aos "legisladores estaduais" o cumprimento da missão que lhes foi deferida, cabendo-lhes discutir, votar e aprovar, o quanto antes, as Codificações locais de processo (civil e penal). No que concerne à "distinção" entre "norma processual" e "norma procedimental", ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMAR-

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Essa interpretação só poderia se ajustar a um contexto teó­rico em que procedimento e processo são tratados como realida­des independentes e distintas. Em uma concepção de procedi­mento que comporta o processo, a diferenciação teórica entre normas de procedimento e normas de processo perde todo o significado, mesmo diante das disposições constitucionais referi­das. O processo será uma espécie de procedimento, e assim se poderá compreender que a matéria processual sobrequèincide a competência concorrente é a matéria do Direito Processual, enquanto norma que disciplina o processo jurisdicional.

A norma processual é a que disciplina a jurisdição e seu instrumento de manifestação, o processo, mas a própria exten­são do conceito de processo ainda não se esgotou na doutrina.

CO incidem em leve equívoco, resultante, talvez, do fato de que o Consti­tuinte de 1988 tenha se utilizado das expressões legislar sobre "direito processual" (art. 22, item I) e "procedimentos em matéria processual" (art. 24, item XI) e da falsa suposição de que haja "distinção" entre "procedimen­tos" e "processo". Não, não há, o vínculo é de inclusão ou fica mais bem explicitado se se recorrer ao auxílio da "lógica da relação entre classes..." (v. retro 2.5.2, n25 9 e 10 e adiante 6.3.1 fin e). Frise-se, e bem, que, com o art. 22, item I, o Constituinte de 05 de outubro de 1988 dispôs, isto sim, que é da competência privativa da União legislar sóbre "direito processual" em "processo administrativo", em "processo legislativo" e em "processos jurisdicionais” exclusivamente federais (os das justiças federais - comum e especializadas) ; nos "processos jurisdicionais" das Justiças Estaduais editará normas em concorrência com as Codificações Estaduais, civis e penais (art. 22, XI e parágrafos).

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CAPÍTULO IV

PROCESSO E PROCEDIMENTO

4.1.PROCESSO E PROCEDIMENTO:MULTIPLICIDADE DE ACEPÇÕES

4.1.1. PROCESSOO termo processo é muito rico em acepções. É empregado

na linguagem comum, na linguagem científica, na linguagem filosófica e na linguagem jurídica (com maior ou menor rigor), com uma variedade tão grande de sentidos que, quando se pretende dar-lhe uma conotação específica, é conveniente deter­minar a acepção em que é utilizado.

Na linguagem corrente, fala-se indiferentemente em proces­so como etapa, como desenvolvimento, como método, como movimento, como transformação. Na linguagem científica, com suas conotações específicas, o termo é amplamente utilizado em qualquer domínio do conhecimento. Pode-se lembrar que, na informática, por exemplo, a idéia sugestiva de processo inte­grou-se à linguagem da ciência na expressão processamento de dados, como técnica de transformação de dados (números) em informações, informações obtidas de variáveis quantitativas ou qualitativas, depois que os dados são organizados, pois os núme­

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ros sozinhos não dizem nada. Processamento de dados, proces­sador de textos, são exemplos frisantes dos mais recentes usos do vocábulo, que denotam a intensa carga simbólica sugerida pela palavra processo.

Na linguagem filosófica, NICOLA ABBAGNANO82 registra três sentidos para o termo: 1. "Procedimento, maneira de operar ou de agir", exemplificando com extratos da Sum m a T beologica de Sto. Tomás de Aquino, "o Processo de composição e de resolução" que indica "o método que consiste no descer das causas ao efeito, ou no subir, de novo, do efeito às causas", e "processo ao infinito" "para indicar o subir de novo de uma causa para outra sem parar". 2. "Transformação ou desenvolvimento" exemplificando com WHITEHEAD (Process an d Reality, 1929): "Processo da história". 3. "Uma concatenação qualquer de even­tos", exemplificando com expressões de campos científicos "Processo de digestão", "Processo químico".

Em LALANDE, o vocábulo é registrado significando: Suite d e phénornènes présen tan t une certain e unité ou se reprodui- san t avec une certain e régu larité83.

Em meio às variedades da acepção do termo, pode-se perce­ber uma constante implícita em seu sentido: a de movimento e de conseqüente desenvolvimento e transformação, o que se con­trapõe à inércia, à imobilidade e à inalterabilídade.

Que a vida, a realidade, a experiência humana, as paixões, os sentimentos e, também, o conhecimento, enfim, tudo que pertence a este mundo sublunar84, possuam seus "processos", no

82 Cf. NICOLA ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, cit., verbete: Processo.

83 ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Paris: Presses Universitaires de France, 1972 - verbete: Procès ou Proces- sus.

84 Lembrando a filosofia grega pré-socrática que via as transformações ou o movimento (como processo de geração e corrupção, isto é, de gênese e destruição) no mundo sublunar, e o imutável no mundo supralunar, o céu das estrelas fixas, a quintessência.

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sentido de movimento, de desenvolvimento e de transformação, já o havia percebido HERÁCLITO — "tudo flui", "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio"85, e, na filosofia moderna, é difícil imaginar que algum pensador o tenha exposto com maior ardor do que HEGEL86.

No Direito, a palavra está também impregnada desse simbo­lismo, mesmo quando tecnicamente empregada, embora seu uso indiferenciado, em diversificadas situações, a tenha tornado um dos termos mais equívocos do campo jurídico.

4.1.2. PROCEDIMENTOA palavra procedimento, na linguagem comum, assume fre­

qüentemente o mesmo sentido registrado por ABBAGNANO na primeira acepção do termo processo.- "maneira de operar ou deagir".. — ---------- ------— ------

Em geral, a doutrina do Direito Processual relembra a ori­gem etimológica do termo procedimento: "procedere" — pros­seguir, seguir em frente, para dela fazer derivar a palavra "proces- sõ^com idêntico sentido etimológico. Esquece-se, entretanto, de indicar um outro significado que etimologicamente o vocábu-

85 O eterno fluir das coisas, como tônica de seu pensamento, é expresso em diversas assertivas. Cf. a reunião dos fragmentos da filosofia pré-socrática, com comentários de vários filósofos modernos e para Ae RÁCLITO, sobre­tudo, HEGEL, NIETZCHE e HEIDEGGER: "Os Pré-Socrátícos — Fragmen­tos, Doxografia e Comentários", seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, 2 - ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp.92-136.

86 Cf. As bases de seu sistema, principalmente os conceitos desenvolvidos no Prefácio à Fenomenologia do Espírito, foram retomadas em sua Filosofia do Direito, em cujo prefácio explicita o que é a filosofia, essa "rosa na cruz do sofrimento presente", que tem a sua missão em "conceber o que é, porque o que é é a razão" e "tudo que é racional é real e tudo que é real é racional", e cujo Prefácio se ocupa do movimento dialético do conceito - Cf. HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, Trad. de Orlando Vitorino, s/l: Livraria Martins Fontes Ltda., 1976, p .l a 51. Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇAL­VES - Introdução Ontológica, in Natureza Jurídica dos Recolhimentos Para o Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço - Belo Horizonte, 1977 (Tese de Doutoramento), pp.1/91, principalmente pp.6/15.

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Io procedimento comporta, e em sentido próprio mesmo, não apenas figurado, extraído de TITO LÍV1O, e ainda hoje tão co­mum em nossa língua, quando se usa o verbo proceder como transitivo indireto (isto procede de...) e, embora o retorno às origens das palavras nem sempre auxilie o aclaramento de con­ceitos, a retomada do tema, pelo sentido de derivação, com­preendido no termo procedimento, pode se revelar de alguma utilidade.

No latim, processus, -a, -um, é partiçípio passado de p ro ce­do, e processus, -us, é substantivo. A origem de processo é, portanto, do verbo procedo, -is, -ere, -cessi, -cessutn, que teve dois sentidos próprios e alguns sentidos figurados. O primeiro sentido próprio, utilizado por CÉSAR (De B ello G allico) e CÍCE­RO (T usculanae), corresponde a avançar, alongar-se; o segundo, usado por TITO LIVIO, refere-se a prolongar, continuar. Na mesma raiz, há, no latim, o verbo progigno, -is, -ere, -genui, -genitum, com o sentido próprio de: prolongar a raça engen­drando, gerar, assim empregado por CÍCERO (De D ivinatione) , e o adjetivoprognatus, -a, -um, com o sentido próprio de: saído de, descendente dè, como utilizado por HORÁCIO (Sátiras)87.

Proceder é, também, "originar-se", "descender de" e procedi­mento é, também, "o originar-se", e "o descender de".

Essa lembrança pode ser de alguma utilidade no tratamento dos novos conceitos que serão examinados.

4.2. PROCEDIMENTO E PROCESSO:DUAS TENDÊNCIAS TEÓRICAS DISTINTAS

A postura da doutrina contemporânea sobre o modo de se compreender o procedimento e o processo, sobre os critérios que devem ser utilizados para a conceituação de cada um deles,

87 Pode-se consultar o Dicionário Escolar Latino-Português do Professor ER­NESTO FARIA.

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sobre a relação que pode existir entre eles, é básica para a adoção de todo um quadro conceptual, um sistema de conceitos, que servirá como instrumental teórico para o tratamento do proces­so.

As doutrinas particulares, quando possuem fundamentos comuns, podem ser agregadas em escolas ou em correntes de um determinado campo do pensamento jurídico. Podem ser, ainda, designadas genericamente como "doutrina", mas a essa expressão se ajunta um determinado qualificativo, que será a marca pela qual se reconhecem os fundamentos que, sendo por elas compartilhados, sustentam diversas construções teóricas so­bre um dado tema, que se põe como objeto do conhecimento. As diferenças internas que apresentem não serão importantes para impedir seu recolhimento dentro de uma mesma tendência de pensamento.

É nesse sentido que se pode falar na existência, no campo do Direito Processual, de duas tendências distintas, firmadas sobre dois fundamentos teóricos diferentes, cada uma delas trabalhando com base em seus conceitos, suas definições, suas categorias, seus institutos. As diferenças do quadro teórico não incidem apenas no conceito isolado de procedimento e de processo, mas alcançam temas fundamentais d]5 Direito Proces­sual. E necessário se ressaltar^ entretanto, que essa diferença de tratamento dado aos temas decorre, lundamentalmente, da con­cepção qué~s’e ãdote sobre procedimento e sobre processo, por­que é por ela que se começará a estabelecer todo um sistema de conceitos de que o Direito.Processual necessita para suas cons­truções jurídicas.

No desenvolvimento do Direito Processual Civil como ciên­cia autônoma, a doutrina, sob a influência de BÜLOW, reagiu contra a postura tradicional deséculos passados, que absorvia o processo no procedimento e consideraváestecõmomera suces­são de atos que compunham o rito da aplicação judicial do direito. Em progressivos passos, buscou estabelecer a distinção

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entre processo e procedimento, e encontrou, em critérios teleo- lógicos, a base da diferenciação. .— ___

Essa distinção perdurou por muito tempo de foima quase soberana, até que começou a despontar, dentro da doutrina, uma outra proposta pela qual era possível se considerar as rela­ções entre procedimento e processo. Em movimentos concer­nentes a desenvolvimento de idéias, falar-se em pioneirismos é algo bastante arriscado, mesmo porque, como ocorre em geral, as idéias que conduzem a mudanças são latentes nos sistemas precedentes, e, ademais, não sé fez úm levantamento histórico com esse objetivo. Mas dentre os autores mais divulgados, pode- se encontrar em REDENTI um esforço bem conduzido em dire­ção a essa nova visualização do procedimento e do processo, e em FAZZALARI, o sistema aperfeiçoado dessa nova postura88.

4.2.1.PROCEDIMENTO E PROCESSO:A DISTINÇÃO BASEADA EM CRITÉRIO "TELEOLÓGICO"

A linha doutrinária que separa o procedimento do processo firmou-se sobre o critério teleológica, pelo qual se atribui finali­dades ao processo e se considera o procedimento delas destituí­do. Nela, o procedimento é "puramente formal", algo que tanto pode ser uma técnica, como os atos de uma técnica, como a ordenação de uma técnica, enfim, separa-se do processo como idéia impregnada de finalidades por ser estranho a qualquer teleologia89.

S8 O tema não encontrou, ainda, suficiente divulgação na doutrina brasileira, onde sequer aparece dentre as grandes preocupações por ela manifestadas ou dentre as perspectivas abertas no estudo do processo, inventariadas e examinadas por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA em "Os Temas Funda­mentais do Direito Brasileiro nos anos 80: Direito Processual Civil" - e "Sobre a Multiplicidade de Perspectivas no Estudo do Processo" in Temas de Direito Processual, Quarta Série, São Paulo. Saraiva, 1989, pp.1/10 e pp. 11/21.

89 Assim, como se lê em N1CETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO recordare­mos que mieníras la idea de proceso responde a una contem plación teleológica, la de procedimiento obedece a un enfoque formalista. Cf.

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Essa posição predomina na doutrina processual brasileira contemporânea, em que_Q-p£Ocedimento comparece como técni­ca que "disciplina, organiza ou ordena em sucessão lógica o processo"90, á técnica de "ordenação e racionalização da ativida­de á ser desenvolvida" (...) "forma imposta ao fenômeno proces­sual"91. A doutrina pátria, em sua expressão mais jovem e bri­lhante, aprofundou o conceito do procedimento como "meio extrínseco" de desenvolvimento do processo, "meio _pelo qual a . lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo", até reduzi-lo a manifestação exterior do processo, "sua realidade fenomenológica perceptível"92. ^ jb&ujy. ^ctu í) 1ÁÀO-

Em contraposição, ao processo é atribuída natureza teleoló­gica, "nele se caracteriza sua finalidade de exercício do poder", como "instrumento através do qual a jurisdição opera (instru­mento para a positivação do poder)"93.

A distinção pelo critério teleológico propicia ao processo a abertura de um leque de finalidades94, dentre as quais a atuação do direito95, mas suscita, dentre outras questões, um problema para o qual não se encontra resposta adequada. E que, se o

Estúdios Procesales, Madrid: Editorial Tecnos, 1975, p. 455. No mesmo sentido, reporta-se à sua obra Processo, autocomposición, pp. 127-9-

90 WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL - Comentários ao Código de Processo Civil, 2 - ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1979, v. 3, p. 9-

91 WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL, op. cit., p. 10.

92 ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p. 247.

93 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p.247.

94 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - A Instrumentalidade do Processo, 2~ ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

95 JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA refere-se às finalidades que não são excluídas perante o fim público do processo, em As Bases do Direito Processual Civil in Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 3/15.

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procedimento se constitui em meio necessário, (pois não se aboliu, ainda, a necessidade da existência do procedimento), para a existência, ou o desenvolvimento, ou a ordenação, do processo, tem, então, o caráter teleológico que toda técnica intrinsecamente comporta, como meio idôneo para atingir fina­lidades. Mesmo considerado como série de atos, como forma de ordenação, como meio de se estamparem osãtos do processõ, õ procedimento estaria impregnadojde sentido teleológico,,por­que sua finalidade, já explícita em sua funcionalidade, não.pode­ria ser negada.

4.2.2. A BASE DA DISTINÇÃOPELO CRITÉRIO TELEOLÓGICO

As reações contra as posições tradicionais do século pas­sado geraram múltiplos resultados e um deles foi o estigma que se abateu sobre o procedimento.

Se o procedimento envolvera o processo, a ponto de deluí- lo na mera sucessão de atos, a reação veio tão forte que provocou a postura doutrinária exatamente em pólo contrário. A doutrina processual mòderna, em sua larga maioria, diluiu o procedimen­to no processo. O processo absorveu-o e anulou sua importân­cia.

Não obstante, essa postura não supera o quadro do século passado, pois continua operando dentro dele, embora nela já se note a integração de vários conceitos renovados, que fazem pensar em um passo ensaiado para um novo itinerário, que ainda não se completou. Mesmo trazendo latentes as inovações da construção jurídica que se reelaboraram nas últimas décadas, essa linha doutrinária trata o processo com apelo a uma catego­ria conceituai do século passado, a da relação jurídica, que já passou por graves críticas na teoria do Direito e que é absoluta­mente imprópria para explicar as posições que assumem os sujeitos envolvidos no processo.

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4.2.3-PROCEDIMENTO E PROCESSOVISTOS SOB UMA PERSPECTIVA LQÇIfA

A evolução dos conceitos de procedimento e de processo, como se percebe na exposição dos itens anteriores, não se fez em trajeto linear, mas foi bastante assemelhada a uma dialética de oposição, em que a antítese se levanta contra a tese, para negá-la, até que advém o momento da síntese, que absorve as afirmações e as negações em uma nova tese.

Como assinala ELIO FAZZALARI96, o desenvolvimento dos contornos dos dois institutos e o próprio "emprego apropriado dos dois termos tardaram muito". O conceito de procedimento mudou, acompanhando o desenvolvimento da realidade norma­tiva, do Direito positivo, e não foi por acaso que as maiores contribuições, para sua alteração, vieram do campo do Direito Administrativo, que iria se inspirar justamente no modelo de processo, buscado nos domínios do Direito Processual. Entre­tanto, a dõutrinã~jrocéssuãTníãoextraiu dessa mudança as con­seqüências adequadas para definir o processo. Mesmo diante de um novo conceito de procedimento, os processualistas não aproveitaram essa contribuição para a conceituação do processo e, necessitando de um suporte teórico para defini-lo, prenderam- se ao antigo modelo da relação jurídica processual97. Esse "veMio e antigo clichê pandectista", na expressão de FAZZALARI, teria imperado, ainda, conforme expõe ele, em alguns decênios deste século98.

Entretanto, não se pode tratar a questão no passado, como o faz FAZZALARI, porque a relação jurídica ainda predomina, mas, agora, não já com a sua antiga soberania, sobre toda a doutrina.

96 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp. 72/73.

97 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 72/73-

98 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 73-

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Pelo critério lógico, as características do procedimento e do processo não devem ser investigadas em razão de elementos finalísticos, mas devem ser buscadas dentro do próprio sistema jurídico que os disciplina. E o sistema normativo revela que, antes que "distinção", há entre eles uma relação de inclusão, porque o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se pode ser dele separado é por uma diferença específica, uma propriedade que possui e que o torna, então, distinto, na mesma escala em que pode haver distinção entre gênero e: espécie. A diférença específica entre o procedimento em geral, que pode ou não se desenvolver como processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste doelemento que o especificado. contraditório/Ò processo é um procedimento, mas não qual- quer procedimento; é o procedimento de que participam aque- les que são interessados nõatõTihãl, de caráter imperativo, por ele preparado, mas náo apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interes­ses em relação ao ato finaLsão opostos. ___

Fica evidente que essa concepção trabalha com um novo conceito de procedimento e dele extrai um novo conceito de processo.

Ao se concluir este tópico, não se pode deixar de registrar as palavras dirigidas por FAZZALARI à própria ciência do Direito Processual, ante a constatação de um fato que os processualistas de ambas as correntes já perceberam, o da crescente tendência da sociedade contemporânea para resolver suas questões (suas qu aestion es) adotando o modelo do processo, com o contradi­tório que o especifica:

"Insomma, la nostra era assiste a lia d iffu sion e d el processo in tutti i settori delV ordinam ento, spe- cie, p er cosi dire, in qu alli p iú cald i; e il f uturo ne fa r à sentire m aggiortnente il bisogno. R im ane, p er- ciò, com pito d elia dottrin a approfon díre e p erfezio- n are i m oduli p rocessu ali (ciò d i p artecip az ion e

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degli interessati, in contraddittorio, alV iter d i fo r- m azion e d i un ato), enucleare principi, o ffrirli a chi f a le leggi ed a chi deve applicarle'm

A doutrina do Direito Processual, por certo, não recusará o papel que constitui a missão social de toda a ciência de elucidar, de .esclarecer, de aperfeiçoar e aprofundar a realidade, objeto de sua investigação, e, depois, tornar o resultado de seu trabalho — o conhecimento, por mínimo que seja — disponível, não só para os que devem fazer as leis e os que irão aplicá-las, mas para a própria sociedade.

*99 Cf. FAZZAIARI, op. cit., pp. 14/15. Impende insistir na Codificação Estadual

de Processo (civil e penal), em face da diretiva de política jurídica emanada do texto da Constituição de 05 de outubro de 1988 (art. 24, XI e parágra­fos). E isto porque, como se deixou bem claro, não há "distinção" entre "norma processual" e "norma procedimental" ou entre "processo" e "proce­dimento". "Procedimento" é gênero, "processo" é espécie. Como se insistiu, a marca ou sinal específico está no "contraditório" e a relação é de "inclu­são". Como já está no rodapé 81, importa destacar, mais uma vez, que, com o art. 22, item I, o Constituinte de 05 de outubro de 1988 dispôs, isto sim, que é da competência privativa da União legislar sobre "direito processual" em "processo administrativo", em "processo legislativo", e em processos jurisdicionais exclusivamente federais (os das Justiças Federais comuns e especializadas); nos processos jurisdicionais das Justiças Estaduais editará normas em concorrência com as Codificações Estaduais, civis e penais (art.22, XI e parágrafos).

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CAPÍTULO V

O PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA

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5.1. RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL

CHIOVENDA ao lançar as bases da ciência do Direito Proces­sual Civil, flxou o conceito de processo como relação jurídica.

"IIprocesso civile con tiene un rapporto giuridi- co. E V idea g ià inerente a l iudicium rom an o; non- chè a lia defin izion e cbe d e l g iu d iz io d av an o i nostri processualisti m edievali: Iudicium est actu s trium personarum , actoris, rei, iu d icis (Búlgaro, De iudi- ciis, § 8). E V idea cbe la dottrin a e la p ra tica espri- m evano g ià inconsapevolm ente co lla p a ro la litis- pendenza, in tesa qu esta com e la p en d en za d ’una lite n ellap ien ezza d ei su oi effetti g iu ridici. Litispen- denza e rapporto g iu rid ico p rocessu a le son o concet- ti ed espressioni non equ ivalen ti m a coincidenti"100.

100 GIUSEPPE CHIOVENDA - Istittizioni. di Diritto Processuale Civile, volume I, I Concetti Fondamentali - La Dottrina Delle Azioni-Ristampa Inalterata Delia 2a Edizione, Napoli: Casa Editrice Dott. Eugênio Jovene, 1940-XVTII, p.50.

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A figura da relação jurídica que já se constituíra como um dogma na doutrina civilista, para explicar direitos e deveres, faculdades e obrigações, e alcançara outros ramos do Direito, alastrou-se também pelo Direito Processual Civil que a adotou sem grandes polêmicas.

A profundidade com que a idéia do processo como "relação jurídica" arraigou-se na ciência do Direito Processual Civil pode ser apreendida na exposição de CÂNDIDO R. DINAMARCO: "A doutrina da relação jurídica processual nasceu na Alemanha há pouco mais de um século e tem hoje ampla aceitação em toda a literatura do mundo romano-germânico. Embora a idéia já andasse pela doutrina do processo, dela não se tinha senão mera intuição e foi apenas no século passado que se observou a sua existência — ressaltando-se que se trata de relação nitidamente distinta da de direito substancial, da qual difere, em seus pres­supostos, em seu objeto e em seus sujeitos".101

Essa idéia intuída no século passado brotava realmente do espírito da época, como se verá, e encontrou sua formulação nas teses de WINDSCHEID, no momento que se conciliou uma de­terminada noção de Direito subjetivo, que se firmava também segundo o espírito da época, com a de processo. Mas a ampla aceitação a que se refere DINAMARCO, dessa que, na sua exposi­ção, é uma "formulação, clara e convincente, quase elementar no estágio atual da ciência do processo"102, começou a encontrar suas objeções em outros campos da reflexão jurídica, quando o pilar do conceito de relação jurídica, o Direito subjetivo, nas dimensões concebidas no século passado, foi posto em questão.

A descoberta das semelhanças não aparentes e das relações existentes entre os conceitos com que a ciência do Direito Processual Civil trabalha tem sido retardada, talvez porque o Direito Processual Civil tenha se acomodado nos progressos

101 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, vol. 1, 2~ ed. rev. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 95.

102 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, cit. p. 95.

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que já obteve, dando por encerrada sua reflexão sobre a adequa­ção de seu próprio instrumental técnico para capturar o objeto de sua investigação.

EDUARDO COUTURE, afirmando que La doctrin a dom i­n an te con cibe e l p roceso com o una relación ju r íd ic a I03, men­ciona os argumentos que se levantaram contra tal concepção e tenta demonstrar que a relação é uma "união real ou mental, vínculo que aproxima uma coisa da outra, permitindo que mantenham sua individualidade". Entretanto, não é só de uma correlação, de uma interação, que se"fala quando se emprega o termo relação jurídica, mas de vínculo entre sujeitos. COUTURE o demonstra: C uando en e l lenguage d e l d erecho p ro cesa l se h ab la d e relación ju ríd ica , no se tien de sino a sen a lar e l víncu­lo o ligam en qu e une entre s í a los su jetos d e l p roceso y sus p o d er esy d eberes respecto d e los diversos actosp rocesa les. (...) Se hab la , entonces, d e la relación ju r íd ica p rocesa le en e l sen ti­d o apu n tado d e orden ación d e la con ducta d e los su jetos d e l p roceso en sus con exion es recíprocas; a l cúm ulo d e p od eres y fa cu lta d es en qu e se h a llan unos respecto d e los o tros104.

Os gráficos que representam as relações paralelas, as formas angulares de relação, são repetidos habitualmente para caracteri­zar a relação jurídica processual, ressaltando, justamente, esse vínculo entre sujeitos do qual fala COUTURE.

As teorias que trabalham com os antigos conceitos de rela­ção jurídica e de Direito subjetivo, na clássica acepção, são ainda predominantes na ciência do Direito Processual105. OSKAR VON

103 Cf. EDUARDO COUTURE - Fundam entos Del Derecho Procesal Civil, terce- ra edición (póstuma), Reimpresión inalterada, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1974, p. 132.

104 Cf. EDUARDO COUTURE, op. cit., pp. 133/134.

105 Cf. OSKAR VON BÜLOW - La Teoria de las Excepciones Procesales, Los Presupuestos Procesales. Trad. de Miguel Angel Rosas Lichtschein, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1984, J. RAMIRO PODETi'1 - Teoria y Técnica del Proceso Civily Trilogia Estructural de la Ciência del Proceso Civil, Buenos Aires: EdiarSoc. Anón. Editores, 1963, UGO ROCCO

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BÜLOW, J. RAMIRO PODETTI, UGO ROCCO, SALVATORE SATTA CARNELUTT1, LIEBMAN ... seria longa a relação dos nomes repre­sentativos da doutrina já clássica, que se encontram nessa linha, e dela não diverge, nesse ponto, a doutrina processual brasileira.

CARNELUTTI recorda que a intuição da conexão entre rela­ção jurídica e processo, tendo germinado na Alemanha e se transplantado para a Itália, continuou sendo cultivada. E faz a crítica da concepção de processo como relação jurídica, e da doutrina que sustenta que no processo a relação jurídicá assume

-significado diferenciado. Entretanto, sua resposta ao problema é a pluralidade de relações jurídicas geradas no processo: La sitn- p le v e r d ã d d e q u e e l p roceso no es una relación ju ríd ica sino qu e gen era una red, p o r no decir una m aran a d e relacion es ju ríd icas, no está en absolu to con solidada en la ciên cia d el derecbo p rocesa l; y esto bastaria p a ra dem on strar todo e l cam i- no qu e esta c iên cia h a d e recorrer todav ia a p esa r d e conside- rarse muy av a n z a d a 10 . Em suas obras, percebe-se que há uma pronunciada intuição de que o conceito de Direito subjetivo deveria ser retrabalhado, mas seu quadro conceituai é ainda o de supra-ordenação e de subordinação, do caráter imperativo do Direito subjetivo, de obrigações como sujeições107.

5.2. A QUESTÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA *

O modelo clássico de relação jurídica construiu-se sobre a idéia de que é ela um enlace normativo entre duas pessoas, das

- Tratado de Derecho Procesal Civil, Bogotá: Temis Buenos Aires: Depal- ma, 1970, SALVATORE SATTA - Diritto Processuale Civile, nona edizione riveduta ed ampliata a cura di Caimine Punzi, Padova: CEDAM, 1981.

106 Cf. CARNELUTTI - Derecho y Proceso, Trad. de Santiago Sentis Melendo, Bueno Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1971, p. 41.

107 Cf. CARNELUTTI, op. cit., pp. 16/17. Na nota 32 da p. 17, há referências às obras anteriores que tentaram aprofundar tais conceitos.

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quais uma pode exigir da outra o cumprimento de um dever jurídico.

O desenvolvimento desse modelo é bem descrito por CLAU- DE DU PASQUIER108, que relembra a lição de ORTOLAN (1802- 1873), segundo a qual "Todo direito tem necessariamente um sujeito ativo e um ou vários sujeitos passivos, e sejam eles ativo ou passivos, somente podem ser pessoas"109.

Nascia, assim, a teoria dos dois sujeitos, que começaria a ser aperfeiçoada quando ROGUIN nela incluiu um terceiro elemen­to: a prestação. A confluência de direitos e deveres para a presta­ção permitia a afirmação do ju s et ob ligatio sunt correlata .

A-tearia_daxelação jurídica não se distineuiu. em suas bases fundamentais, das construções do Direito privado dõ~seculõ~ passado, impregnadas das concepcões-iadividualistas .da_época.

JOÃO BAPTISTA VILLELA descreve como essas concepções, assentadas na "idéia de concorrência", se refletiram no Direito: "O princípio cardeal que tudo informava era o da obrigação concebida como vínculo jurídico exercitável pelo constrangi­mento." Não se vislumbrava outra forma de se organizarem as relações sociais e humanas senão pela opressão, pelos elos de uma tirânica dominação de que, conforme diz, nem o Direito de família com seu conteúdo ético e afetivo escapava. "Todos os direitos da ordem privada, segundo a idéia individualista, se reduzem àquela formulação dos clássicos COLIN e CAPITANT lembrada ainda por BERTRAND: Tacu Idades_0.u-prerr0gatiya.s- pertencentes a um indivíduo e das quais ele pod_e_pxevalecer-se em relação a seus semelhantes!'!10.

108 Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théorie Générale et à la Philosophie du Droit, 4~ ed., Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1967, p. 102 e s.

109 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 102.

110 Cf. JOÃO BAPTISTA VILLELA - Por uma nova teoria dos contratos, in Revista Forense, vol. 261, ano 74, jan.-fev.- mar. de 1978, pp.27/35, v. especialmen­te p. 32.

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O conceito de relação jurídica foi elaborado nesse quadro. Seus elementos se definiram com a contribuição definitiva de WINDSCHEID para as novas bases científicas do Direito subjeti­vo, a partir das quais o "vínculo de exigibilidade", ligando "sujeito ativo" e "sujeito passivo", por um poder da vontade, se estrutura­va para logo se alastrar por todo o campo do Direito.

5-3. A QUESTÃO DO DIREITO SUBJETIVO

"Nous nous som m es longuem ent attard és sur cette heure p riv ilég iée d e V histoire du d ro it subjec­tif, ou cet en fan t m onstrueux sem ble sortir d es lim -bes"111

As palavras de MICHEL VILLEY dão a dimensão das muta­ções que, desde sua gênese, iriam fazer do direito subjetivo uma criatura monstruosa do Direito, até que a ciência jurídica desper­tou para a necessidade de refletir sobre a sua própria criação, recuperando-a ajustada aos novos tempos — à la recherche d e V horizont th éoriqu e , como se expressa FRANÇOIS LONG- CHAMPS sobre as novas "vias que levam a esse tema sedutor"112.

A idéia do direito subjetivo tem a sua fase mais profícua, conforme narra HELMUT GOiNG, no A ufklarung , no iluminis- mo, em que floresce o direito natural do ('acionalismo113. Mas sua gênese é mais remota e tem sido referida pela doutrina que

111 Cf. MICHEL VILLEY - La Gcnèse du Droit Subjetif chez Guillaum e d'Oc- carn, in Archiues de Philosophie du Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p. 127.

112 Cf. FRANÇOIS LONGCHAMPS - Quelques Observations sur Ia nolion de droit subjectif dans la doctrine, in Archiues de Philosophie du Droit, tome IX Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.70.

113 Cf. HELMUT GOÍNG - Signification de la notion de droit subjectif, trad. p a r N. Poulantzas, in Archives de Philosophie du Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 19 6 í, pp. 1/15.

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se dedica ao tema a GUILHERME DE OCCAM, que segundo MICHEL VILLEY foi, provavelmente, o primeiro a definir o direi­to subjetivo e a edificar sobre ele uma teoria. As teses de GUI­LHERME DE OCCAM, formuladas para demonstrar a heresia de João XXII, em defesa de Michel de Césène e da Ordem Francisca- na, destinaram-se a sustentar que Jesus Cristo e os apóstolos tinham o uso dos bens, sem deles ter a propriedade. A revolta dos Franciscanos contra o papa de Avignon, na defesa da idéia da pobreza e do poder profano, conduziu-o à concepção de um direito inserido em uma hierarquia de poderes, na qual os confe­ridos pelas leis humanas podiam ser renunciados. O poder se organizava hierarquicamente em três planos: no primeiro, estava a p otestas ab so lu ta , fonte de toda ordem jurídica, que era a liberdade de Deus; no segundo, os ju ra p o li, constituídos pelo poder dos homens, e no terceiro, os ju ra fo r i , pelos quais o governante recebia, por delegação do povo, o poder legislativo. As leis positivas engendravam o dom inium e o ju s u ten di, e os direitos subjetivos, no sentido estrito, garantidos pela sanção da autoridade estatal, importando em p otestas v in dican di. Os di­reitos subjetivos, como poder, admitiam renúncia e, enquanto direitos assegurados pela lei, poderiam ser reivindicados114.

De OCCAM, no século XIV, a WINDSCHEID, no século X3X, as transformações se fizeram na quebra da hierarquia do regime feudal, e o s d i r e i t o s s u b je t i v o s do racionalismo foram pensados em termos de uma liberdade absoluta que, derivada do direito natural, ou a ele identificada, se opunha ao próprio__Direito positivo e ao Estado.

Com WINDSCHEID, o conceito de..direito subjetivo deu origem ao dgjcelação jurídica, já no sentido prenunciado por OCCAM. O antigo vinculum ju ris aperfeiçoou-se como o vínculo normativo que liga sujeitos, em dois pólos, passivo e ativo7atfi-

114 Cf. MICHEL VILLEY - La Genèse du Droit Subjectif chez GuiUaume d ’Oc- cam, in Arcbives de Philosophie du Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, pp- 116/125.

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buindo ao sujeito ativo o poder de exigir do sujeito passivo uma determinará conduta e impondo a este o dever cie prestá-la.

Como afirma HELMUT GOiNG: En Allem agne, on est venu, depu is W indscheid, à une rupture entre la fa ço n de voir du d ro it p riv é et du droit d e la procédure. C’est p orqu oi on a rem placé la notion d ’actio p a r celle de "Anspruch". Le sens d e celle-ci consiste ic i dan s le d ro it su bjectif à exiger d ’au tru i qu ’il fa s s e qu elqu e chose, ou q u ’il s ’abstien n e115.

Vê-se por que o conceito de direito de ação, que iria surgir das posturas divergentes entre WINDSCHEID e MLJTHER, nasce sob o signo de um conceito de relação jurídica engendrado por uma noção de direito subjetivo. Essa opção ressurgida com WINDSCHEID conciliava o direito subjetivo da A ufklarung , po- der absoluto decorrente da liberdade, com o poder de exigir de outrem ações e*omissões. Com a clássica obra "A ação do direito romano do ponto de vista do direito civil", de 1856, WINDS­CHEID lançava as bases da moderna concepção de direito subje­tivo, como narra FRANZ WIEACKER110.

São conhecidas as objeções feitas à teoria de WINDSCHEID por outras teses que pretenderam aperfeiçoar o conceito de

L direito subjetivo (de VON HERING, DAB1N, JELLINEK, dentre outras) mas, na procura de novos fundamentos, a doutrina não feria nenhum ponto essencial do conceito, estabelecido como

'poder absoluto sobre a própria conduta ou como prerrogativa sobre a conduta alheia117.

115 Cf. HELMUT GOYNG - Signification de la notion dc droit subjectif - trad, p a r N. Poulanlzas, in Archives de Philosophie du Droit, Tome !X - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.9-

116 Cf. FRANZ WIEACKER - Storia del Diritto Privato Moderno conpartico/are riguardo alia Germania, volume secondo, traduzione italiana di llmber- to Santarelli (§ § 1-19, tomo 1) e Sandro - A Fusco (§ 20-fine, tomo II), Milano: Giuffrè Editore, 1976, p. 145.

117 Em seu desenvolvimento, no século passado, a partir da clássica obra de WINDSCHEID o direito subjetivo foi concebido como faculdade jurídica abstrata, unia facultas agendi que o titular usava sem prestar contas a

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Do campo do Direito Privado o conceito ganhou o do Direito Público, e nessa passagem foi fundamental a contribui­ção da obra clássica de JELLINEK - System d er Subjektiven Of- fen tlich en Rechte, de 1892. O transporte se deu com a mesma conotação do vínculo normativo entre sujeitos e da exigibilidade da prestação: o particular, no pólo ativo da relação jurídica, podendo exigir do Estado, no pólo passivo da relação jurídica, uma determinada prestação.

5- 4. AS DIFICULDADES NA APLICAÇÃO DO MODELO CLÁSSICO DE RELAÇÃO JURÍDICA E DO CLÁSSICO CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO .

A teoria da relação jurídica em breve se revelou insuficiente para responder às situações jurídicas que, à evidência, não cor­respondiam a vínculos entre sujeitos. O problema do direito de piopriedade recebeu novãsTõrmúlações, mas o pátrio poder, a nacionalidade, o direito à honra e, genericamente, o que mais tarde se denomínaxia direitos pexsonalíssimos ficavam sem res­postas adequadas peXovinculum iuris.

LEON DUGUIT demonstra que a noção que está na base do

ninguém, ou como poder garantido porque dotado de exigibilidade. Deve- se, ainda, a WINDSCHEID. a base da classificação dos direitos subjetivos: absolutos, seriam os direitos que existem contra todos; relativos, os que existem contra uma pessoa ou um número determinado de pessoas. Quan­to aos direitos subjetivos relativos, a doutrina não encontrou qualquer ponto para colocar em dúvida o vínculo jurídico que, nos direitos obriga- cionais, ligava dois sujeitos (ou mesmo uma pluralidade de pessoas, por­que as relações jurídicas, bilaterais ou plurilaterais, se caracterizam pela bipolaridade das situações dos sujeitos). Mas a respeito dos direitos subje­tivos absolutos, a construção foi acidentada, havendo teses que sustenta­vam a relação jurídica imediata do sujeito com a coisa; propostas de substituição dos conceitos tradicionais e adoção de uma nova definição dos direitos reais como direitos correlatos de uma obrigação passivamente universal; negação da existência de uma obrigação, no sentido específico do termo, nesse tipo de relação.

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conceito de relação jurídica é a da autonomia da vontade, que constitui o fundan^éhto dé tcídõ õ sistema individualista do sécu­lo passado, da noção de contrato à noção de liberdade118, ex­traindo do Código Civil francês os postulados que sustentam suas conclusões. As conseqüências decorrentes do princípio da autonomia da vontade, conforme discorre, levou ao dogma da doutrina do século passado, com heranças no vinculum ju ris dos romanos, que não permitiu que o Direito fosse concebido senão como uma relação entre sujeitos, dos quais um deve uma prestação negativa ou positiva que o outro pode exigir119.

Das dificuldades que a doutrina encontrou para sustentar essa tese, perante situações que exigem proteção em razão de seu fim social e que devem ser garantidas pelo Direito, mesmo sem a existência de qualquer relação entre as pessoas, fala DU- GUIT, ressaltando as concepções de MICHOUD, sobre a ir­realidade das noções de Direito objetivo e direito subjetivo, e sua indispensabilidade para a ciência do Direito; de PLANIOL, sobre a excepcional situação dos direitos reais e, por fim, a jurisprudência administrativa e judicial que se formou em Fran­ça, permitindo a criação de fundações de Direito privado, através

118 DUGUIT contesta a doutrina que denomina individualista e que funda toda- 'norm a na autonomia da pessoa humana. Nega, expressamente, essa auto­

nomia, que, se existe, conforme diz, é um simples fato, e fatos não fundam normas. Em lugar da autonomia, propõe, sob a inspiração de DURKHEIM (La Division du Travail Social, 1891), o princípio da solidariedade social como fundante da norma social. Essa será moral, econômica ou jurídica, pelo grau de reação produzida, no interior do grupo social, à sua violação. Toda regra social torna-se norma jurídica quando penetra na consciência da massa de indivíduos, componentes de determinado grupo social, a noção de que o grupo pode intervir, ou o próprio grupo ou aqueles que detêm a força mais concentrada dentro dele, para reprimir a violação daquela regra. Cf. LÉON DUGUIT -Traité de Droit Constitutionnel, Paris: A ncienne Librairie Fontem oing & Cie, Éditeurs, 1927, v.I, pp. 65/116.

119 Cf. LÉON DUGUIT - Las Transformaciones del Derecho (Público y Priva­do), trad. Las Transformaciones del Derecho Público, p o r Adolfo G. Posa­da y Ramónjcién, Las Transformaciones del Derecho Privado, p o r Carlos G. Posada, Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., 1975, p. 216.

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de testamento, contra as concepções dos civilistas e da própria disposição do Código de Napoleão, que no art. 906, § 2a, exigia, para a validade da disposição testamentária, que o beneficiário fosse ao menos concebido antes da morte do testador. O início dessa construção jurisprudencial se deu pelo célebre caso do reconhecimento, pelos Tribunais franceses, da validade do ato que culminaria na criação da Academia Goncourt, o testamento deixado pelo escritor Edmond Goncourt (1822-1896), que, re­presentando também a vontade de seu irmão, o escritor Jules Goncourt (1830-1870), dispunha que todos os seus bens deve­riam ser vendidos para a criação de uma sociedade literária que teria renda e a obrigação de premiar, a cada ano, uma obra da literatura.

Os argumentos utilizados, quando os herdeiros dos irmãos Goncourt pretenderam invalidar o ato, a polêmica criada em tomo da impossibilidade de existência de direitos sem sujeitos, e os fundamentos dos arestos são amplamente relatados por DUGUIT, para demonstrar como se realizou uma profunda trans­formação nas concepções jurídicas, ao se admitir a possibilidade de que o sistema jurídico proteja e garanta certas situações, em razão de sua finalidade social, e sem que haja relação entre

. . 190sujeitos .O conceito de relação jurídica, com suas conotações indivi­

dualistas e seu precário alcance, é rejeitado por DUGUIT de modo absoluto, tanto pela sua fundamentação quanto pela sua estreiteza, que o torna inaplicável aos atos jurídicos que se pro­jetam fora das figuras criadas pela autonomia da vontade. Em vários capítulos da obra aqui referida, (Las Transform acion.es...) cita, como exemplo, o "contrato" de adesão, o "contrato" coletivo de trabalho, e outras figuras, a que a doutrina, mais tarde, acres­centaria, com muita facilidade, prazos, capacidade, e tantas ou­tras.

120 Cf. DUGUIT -Las Transformaciones... cit., pp. 216/220.

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5.5. A5 REAÇÕES DA DOUTRINA E A FORMULAÇÃO DE NOVAS PROPOSTAS

As reações que surgiram no campo doutrinário, inspiradas em questões teóricas e questões de ordem prática, discutidas nos Tribunais, que, como se mostrou, desafiavam soluções, foram direcionadas para um ponto: a superação do conceito de relação jurídica. Os fundamentos, entretanto, em que se assentaram as propostas, se diversificaram, e doutrinas que partiram de bases diferentes chegaram também a conclusões diferentes. Quando se compara a doutrina de KELSEN com as de BONNECASE, DU- GUIT, JÈZE e ROUBIER percebe-se que em comum só tiveram um ponto essencial: a rejeição do conceito de relação jurídica.

5 .6. A NEGAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA PELA SUA REDUÇÃO A UMA CONEXÃO DE NORMAS E A CORRELATA NEGAÇÃO DO DIREITO SUBJETIVO

Em sentido diametralmente oposto ao adotado pelas dou­trinas tradicionais, KELSEN analisa o conceito de relação jurídica e os possíveis empregos da expressão, para demonstrar que, em todas as hipóteses em que se poderia falar em relação jurídica, o que existe não é uma conexão de vontades, um vínculo entre sujeitos, mas uma conexão de normas que determinam a condu­ta dos indivíduos.

Começando pela análise da concepção tradicional, KELSEN afirma que: "Dizer que dever e direito se correspondem significa que o direito é um reflexo do dever, que existe uma relação entre dois indivíduos dos quais um é obrigado a uma determinada conduta em face do outro"121.

Desse ponto de partida, mostra a estreiteza da concepção

121 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, 5a ed., trad. de João Baptista Machado, Coimbra: Armênio Amado - Editor Sucessor, 1979, p. 231.

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tradicional, porquanto há "relações jurídicas", isto é, determina­das pela norma, não só entre dois indivíduos mas entre o indiví­duo que tem competência para criar normas gerais e os que têm competência para aplicá-las, entre indivíduos que têm competên­cia para imposição de atos coativos e indivíduos contra os quais esses atos se dirigem.

Essa extensão da relação jurídica não significa, entretanto, outra coisa que a relação entre sujeitos de deveres. A relação entre o sujeito do dever de criar ou aplicar a norma e o sujeito de direitos estabelecidos por essa norma é duplamente reflexa, pois esses direitos não são reflexos imediatos do dever do órgão aos quais incumbe a criação ou a aplicação da norma, mas dos próprios deveres estatuídos por essa mesma norma.

Por outro lado, afirma, não há qualquer posição de supra- ordenação oh de infra-ordenação entre esses sujeitos, pois os órgãos, a quem incumbe criar ou aplicar a norma, somente podem atuar no exercício de um poder jurídico, ou seja, estão subordinados à norma que lhes confere poder ou competência para o exercício da função. Assim, não são esses órgãos que estatuem os direitos conferidos ou os deveres impostos mas, sim, a própria norma que lhes adjudicou tal competência. Não há, verdadeiramente, relação entre sujeitos, mas apenas relações entre normas, e entre as condutas que são por elas reguladas, formando o seu conteúdo.

Prosseguindo em sua análise, examina uma outra pos­sibilidade de "relação jurídica" entre a conduta de dois indiví­duos: "Quando a ordem jurídica confere ao indivíduo, em face do qual um outro está obrigado a conduzir-se de determinada maneira, o poder jurídico de, através de uma ação, iniciar um processo que conduza à norma individual, a estabelecer pelo tribunal, pela qual é ordenada a sanção prevista pela norma geral e a dirigir contra o indivíduo que se conduz contrariamente ao dever"122.

122 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234.

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A "relação jurídica" entre o indivíduo dotado do poder jurí­dico e o indivíduo obrigado não é, entretanto, "outra coisa senão a conexão ou relação entre a conduta que consiste no exercício deste poder jurídico, a ação, e a conduta contra a qual a sanção é dirigida, o delito; isto é, a conexão entre dois fatos determinados pela ordem jurídica como pressupostos para sanção"123.

A distinção da teoria tradicional que via na relação entre o Estado, representado pelo tribunal, e o réu, uma relação de supra-ordenação e de subordinação é, segundo diz, a mesma que existe entre o autor e o réu, pois o poder de instaurar a ação, ou "o poder jurídico do titular do direito de ação consiste na sua competência para intervir na produção da norma individual que ordena a sanção a dirigir contra o indivíduo que se conduz contrariamente ao dever"124.

Assim, a relação de supra-ordenação e infra-ordenação "na­da mais é senão a supra-ordenação e infra-ordenação que existe entre a ordem jurídica e os indivíduos cuja conduta ela regula", ou seja, o fato de que a conduta desses indivíduos forma o conteúdo das normas da ordem jurídica, e a autoridade que se representou foi apenas a autoridade da ordem jurídica, que obriga e confere poderes125.

A terceira possibilidade de uma "relação jurídica" se dá "quando a obrigação de um indivíduo em face do outro está numa interconexão determinada pela ordem jurídica, com a obrigação deste outro, em face do primeiro"126. KELSEN exem­plifica com o contrato de compra e venda em que a obrigação de prestar a coisa está em conexão com a obrigação de pagar o preço. Essa relação jurídica nada mais é do que a conexão entre

123 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234.

124 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234.

125 Cf. KELSEN, op. cit., p. 235.

126 Cf. KELSEN, op. cit., p. 235.

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normas que prescrevem a conduta do vendedor e do compra­dor.

Por última hipótese de "relação jurídica", KELSEN toma a relação da vida, em crítica à teoria de VON JHERING, do direito subjetivo como interesse juridicamente protegido.

Cor o o direito subjetivo não é o interesse protegido, mas a própri ■*. proteção, que consiste nas normas, também toda e qualquer relação da vida não é extrinsecamente regulada, mas toma forma no direito, através da norma. E nada mais é, então, =do que um instituto jurídico, um complexo de deveres jurídi­cos e de d: rei tos subjetivos, "no sentido técnico do termo", ou seja, como KELSEN repete à exaustão, o reflexo daqueles deve­res.

Sob qualquer ângulo, nessa perspectiva normativista, a rela­ção jurídica será sempre negada e seu conceito substituído por uma conexão de normas jurídicas, enquanto conexão de condu­tas reguladas pelas normas.

Em correlação com a negação da relação jurídica, KELSEN rejeita a concepção tradicional de direito subjetivo. De início, demonstra que não há base para a distinção tradicional entre direito subjetivo absoluto e direito subjetivo relativo, pois ambos se unificam no mesmo conceito, sendo que "um ju s in rem é também um ju s in p erson am ", podendo se considerar, em tal distinção, apenas uma relação primária entre sujeitos, e secun­dariamente, a conduta do sujeito em relação à coisa127. A partir da unificação dos conceitos demonstra a precariedade das construções tradicionais e, na linha de sua concepção de direi­to centrada no ilícito, em que a norma é vista sob o aspecto coativo, uma vez reduzido o conceito de direito subjetivo à unidade conceituai, KELSEN lhe retira a substância, conceben­do-o como um "reflexo do dever jurídico".

127 Cf. KELSEN, op. cit., pp. 190/193-

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5. 7. A TEORIA DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS

Em bases diferentes da adotada por KELSEN, mas destinan­do-se, também, à superação do conceito de relação jurídica, desenvolveu-se a teoria das situações jurídicas. Ela não excluirá a faculdade, ou o dever do campo do Direito, que não é concebido apenas como um instrumento coativo, mas não aceitará, tam­bém, a clássica concepção de relação jurídica como vínculo entre sujeitos, e do direito subjetivo como poder sobre a conduta de

"oütremrComo toda construção doutrinária, passou ela pela fase

polêmica de elaboração, desde a tese de JULIEN BONNECASE128, que dividia as situações jurídicas em concretas e abstratas, para nessas incluir os direitos de liberdade, de personalidade, en­quanto faculdades jurídicas abstratas, até a de PAUL ROUBIER, que demonstrou que situações jurídicas não nascem automa­ticamente da lei, e que ofereceu a contribuição definitiva para o tratamento teórico do tema.

ROUBIER rejeitou a proposta de BONNECASE, entendendo que não era possível falar-se em situações jurídicas abstratas, que são apenas complexos normativos. Somente o ato jurídico é susceptível de criar a situação jurídica. As fontes genéticas do Direito criam as normas, e estas definem os atos que dão nasci­mento às situações legais, mas não são em si mesmas essas situações.

128 "La situation jurídique concrète - definiu BONNECASE - qui absorbe la notion de rappon de droit concret est, p a r opposition à la situation ju ríd iq u e abstraite, une m anière d'être dérívéé p o u r une personne déter- m inée d ’u n acte jurídique ou d ’un fa it jurídique qui a fa it jo u er à son profit ou à son encontre les règles d ’une institutionjurídique et lui a du coup conféré effectivement les avantages et les obligations inhérents a ux

fonctionnem ent d e cette institution. Autrement dit, tandis que la situa­tion ju ríd iq u e abstraite est simple manière d ‘être théoríque, une voca- tion, pouirait-on dire, à bénéficier éventuellement d 'une institution, la situation ju ríd ique concrète est une réalité positive". JULIEN BONNECASE - Introduction à 1'Étude du Droit, Paris: Sirey, 2~ ed. 1931, pp. 105/106.

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Na doutrina francesa, ROUBIER destaca duas grandes con­tribuições para o desenvolvimento da teoria das situações jurídi­cas, vindas do campo do Direito Público: a de LÉON DUGUIT e a de GASTON JÈZE. DUGUIT, no clássico Traité d e D roit Constitu- tionnel, rejeitando a teoria da relação jurídica, como uma cons­trução do individualismo do século passado, e a concepção clás­sica de direito subjetivo, que via como mera metafísica, dividiu as situações jurídicas em legais ou objetivas, que derivariam direta­mente da lei, e individuais ou subjetivas, que resultariam de manifestações individuais de vontade129. GASTON JÈZE, cuja doutrina se formou na mesma linha, indicou as diferenças entre a situação subjetiva ou individual e a situação objetiva ou legal. A situação jurídica subjetiva ou individual, em sua concepção, é particular e temporária, sendo fixada a partir de um ato de declaração individual de vontade, como, por exemplo, a aquisi­ção de um bem, de que pode derivar a situação de adquirente ou de legatário; a situação jurídica legal é geral e permanente, sendo fixada para todos, da mesma maneira, como por exemplo a situação do proprietário ou dos cônjuges130.

PAUL ROUBIER131, apontando as dificuldades apresentadas por essa divisão quando confrontada com a questão da ir- retroatividade das leis. demonstrou que as situações jurídicas, cujo número é infinito, cabendo a cada ramo do direito determi­ná-las e definir seus efeitos, têm um ciclo de desenvolvimento que se cumpre em três momentos: o da constituição, o da produ­ção dos efeitos e o da extinção. No que concerne ao momento da

129 Cf. DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, Paris, 1927, vol.I, pp. 200/307. Cf. também Las Transformaciones... cit.

130 Cf. Os trabalhos de JÈZE, Les Príncipes Généraux du Droit Adm inistratif 2a ed., 1914, e numerosos artigos publicados na Revue d u Droit Adminis­tratif de 1913 a 1924, são amplamente citados por ROUBIER, em sua clássica obra Les Conflits des Lois dans le Temps - tome Premiei-, Paris: Libraire du Recuei!, Sirey, 1929, p3*'i6 e s.

131 PAUL ROUBIER - Théorie Générale du Droit, Paris: Sirey, 1946.

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constituição, ou da extinção, a questão a ser resolvida, conforme diz, incumbe ao legislador. Este se coloca diante de simples fatos que podem ser, indiferentemente, naturais ou humanos. A lei discriminará entre esses fatos e atos aqueles que são susceptíveis de produzir a constituição ou a extinção da situação jurídica e os que são vistos como incapazes para engendrá-la132. Em relação à produção dos efeitos, o interesse de ROUBIER se concentra em estudá-los enquanto referidos à possibilidade ou à impos­sibilidade de serem alcançados pela nova lei, pois a sua investiga­ção é dirigida ao problema da irretroatividade das leis.

Das quatro categorias de situações jurídicas especiais estu­dadas por ROUBIER133, é oportuno recordar que as situações jurídicas concorrentes têm um caráter duplo, no sentido de que interessam simultaneamente a duas pessoas, como o crédito que interessa ao mesmo tempo ao devedor e ao credor, a prescrição que terá efeito simultâneo sobre o patrimônio daquele a quem beneficia e daquele contra quem opera. E, ainda, convém relem­brar que as situações jurídicas dependentes surgem como conse­qüência de uma outra situação jurídica, de tal modo que a lei que governa sua constituição pode ser vista como governando os efeitos desta que a gerou. Assim o direito ao nome, a obrigação alimentar são, como exemplifica ROUBIER, conseqüências de certas situações de estado, como casamento, parentesco; como a constituição de uma tutela é conseqüência da situação jurídica da menoridade.

A superioridade da categoria da situação jurídica sobre a da relação jurídica, para o tratamento dos temas do Direito, é de­monstrada por ROUBIER em razão de sua amplitude. Todas as leis são feitas para determinar certo número de situações jurídi­cas que podem ser unilaterais ou oponíveis a todas as pessoas,

132 Cf. PAUL ROUBIER - Les Conflits des Lois dans le Temps, cit., tom epremier, pp. 346/381.

133 As permanentes, as concorrentes, as dependentes e as retroativas, Cf. ROUBIER, op. cit., p.406 e s.

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que podem ser constituídas pela ocorrência de um fato, ou de um ato ou de uma pluralidade de fatos e atos, e que não pode­riam ser explicadas pela categoria da relação jurídica porque não decorrem de vínculo entre sujeitos.

Em todas as propostas, a teoria das situações jurídicas se estruturou não como vínculo jurídico entre dois sujeitos, com o poder de exigibilidade de um sobre a conduta do outro. A situa­ção jurídica forma-se por fato jurídico ou ato jurídico, produzido segundo a lei que governa a sua constituição. E, uma vez consti­tuída, é ela o complexo de direitos e deveres de uma pesspa, direitos e deveres que não se confinam mais no plano abstrato e genérico da norma, mas que se realizam na situação de um determinado sujeito. Assim, na situação jurídica de advogado, nascem para uma pessoa direitos e deveres, que não são os mesmos de uma pessoa que se encontra na situação de comer­ciante ou de empregado.

Nas situações jurídicas concorrentes, pode-se qualificar o statu s ou a posição jurídica de que um determinado sujeito é titular. Em uma situação jurídica de parentesco, por exemplo, perante a lei, pode-se falar na posição jurídica do filho, com seu complexo de direitos e deveres, e na posição jurídica do pai, igualmente com seu complexo de direitos e deveres, como se pode falar na situação jurídica do serviço público, na posição jurídica da Administração Pública, com seu complexo de direitos e deveres, e na posição jurídica do servidor público, igualmente com seu complexo de direitos e deveres.

Os exemplos seriam infinitos como infinitas são as pos­sibilidades que nascem das normas, que se criam para organizar a vida social e regular a conduta, tanto quando definem a compe­tência para a prática de atos, como quando valoram os atos como lícitos ou ilícitos.

Pode-se lembra, aqui, que a doutrina das situações jurídicas não encontrou terreno fértil no Brasil, pelo tempo e pela forma em que foi aqui introduzida. A tentativa de sua aplicação não teve grande sucesso, quando o Decreto-lei n2 4.657, de 04 de setem­

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bro de 1942, alterou a Lei de Introdução ao Código Civil e substituiu, no art. ó2, a doutrina dos direitos adquiridos, cons­truídos sobre a concepção de direito subjetivo, pela das situa­ções jurídicas134. Era a tese de PAUL ROUBIER, adotada na refor­ma do Código Civil francês. No Brasil, as situações jurídicas penetraram no Direito sob a vigência da Constituição de 1937, que abolira a proteção especial que, no plano da norma constitu­cional, era conferida ao direito adquirido perante os efeitos da lei nova. Sem essa proteção, a situação jurídica esteve na letra da Lei de Introdução ao Código Civil até 1957, mas na letra: apenas, porque a Constituição de 1946, em seu art. 141, § 3a, reintrodu- ziu a garantia do direito adquirido no sistema brasileiro e, con­frontado com o preceito constitucional, o artigo da Lei de Intro­dução ao Código Civil não poderia subsistir no sistema. Os juristas brasileiros nunca deixaram de trabalhar com o conceito de direito adquirido, mesmo quando o Direito brasileiro o subs­tituiu pelo critério da situação jurídica135 e, depois que a Consti­tuição de 1946 o recuperou, seu retorno na lei infraconstitucio- nal se deu com a alteração da Lei de Introdução ao Código Civil de 1957136.

134 O texto era o seguinte: "A lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfei­to".

135 Cf. VICENTE RÁO - O Direito e a Vida dos Direitos, 2 - ed., São Paulo: Ed. Resenha Universitária, 1976, v.I, Tomo III, p.370.

136 Observe-se que a resistência da doutrina brasileira às inovações da época do Estado Novo manifestou-se, também, em outros campos. Assim, em relação ao Anteprojeto de Código de Obrigações, conforme análise de JOÃO BAPTISTA VILLELA: "A circunstância de que o Anteprojeto se tenha produzido em tempo de restrição às liberdades públicas terá concorrido, possivelmente, para uma certa indisposição que se formou a seu respeito e para que sobre ele se cerrasse cômoda, porém imerecida cortina de silên­cio, após a reconstitucionalização do País, em 1946." Cf. Introdução in Anteprojeto de Código de Obrigações, Arquivo do Ministério da Justiça. Ano 41 - n2 174, Outubro/Dezembro 1988, p .11.

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5 8 . DIREITOS SUBJETIVOS E SITUAÇÃO JURÍDICA

A teoria das situações jurídicas nasceu para superar a dou­trina da relação jurídica e para fornecer um critério ”mais objeti­vo"137 para se falar em direitos, não em "direitos objetivos", no direito como norma, mas em direitos constituídos para um de­terminado sujeito, que assume sua titularidade.

A expressão direito subjetivo, entretanto, é, pela tradição,- muito forte, e as tentativas de substituí-la por outras não tiveram grandes êxitos na doutrina138.

Contudo, é conveniente assinalar que a teoria das situações jurídicas não pretendeu eliminar a noção do direito que decorre da norma para um determinado titular. Pretendeu, sim, assentá- lo em outras bases, defini-lo em outros termos, porque a reflexão jurídica demonstrou que o direito qualificado de subjetivo, ou com qualquer terminologia alternativa, poderia ser visto como uma faculdade ou como um poder de agir, mas não poderia ser concebido como um "poder sobre a conduta alheia"139.

137 Esse critério "mais objetivo", assim qualificado por BONNECASE e por ROUBIER, tem sido utilizado, amplamente, pela doutrina, que já denomina a linha desses autores de "objetivista", quando fazem o levantamento das teorias sobre a irretroatividade da lei. Nesse sentido, v. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA - Instituições de Direito Civil, (Edição Universitária), vol. I, 2~ ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, p.108 e s.

138 Cf. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral do Direito, Belo Horizonte, Editora Vega, 1976, pp. 258/259-

139 Cabe aqui uma observação sobre as concepções de "poder" desenvolvidas no campo da Ciência Política, como relação que envolve a possibilidade de se "provocar intencionalmente o comportamento de outrem, ou de se exercer influência" sobre a conduta alheia, ou mesmo a mais ampla "pos­sibilidade de agir e de provocar efeitos", registradas por MARIO STOPPINO no verbete Poder, do Dicionário de Política, de NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, trad. de João Ferreira e outros, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2~ ed., 1986. Na teoria da relação jurídica e no conceito clássico de direito subjetivo, o poder já é aquele acolhido pela norma jurídica, já não é fenômeno psicológico ou sociológico, mas jurídico.

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5 .9 .0 PROBLEMA DO DIREITO SUBJETIVO COMO PODER DE EXIGIR A CONDUTA DE OUTREM

Negando que pudesse haver um direito sobre a conduta de outrem, a doutrina se dividiu, na negação de todo direito decor­rente da norma e na busca de novas bases para se falar em um direito decorrente da norma. De qualquer modo, teve neces­sidade de estruturar um novo quadro para superar o antigo conceito de relação jurídica, formada por um vínculo entre sujei­tos, em que se fazia presente o direito de um sujeito ativo exigir de um sujeito passivo uma conduta, ou uma prestação, o que significa o mesmo, e essa necessidade resultou nas tendências já discutidas.

Entretanto, talvez nenhuma construção haja mostrado tão profundamente, com tanta clareza, o que significava essa tentati­va de superação, que nasceu e cresceu em diversas direções, do que a interrogação de GOETHE, lembrada por RADBRUCH quan­do examinou os fundamentos da pena de morte140.

"Wer h at dir, Henker, d iese M acht Über m ich gegeben?'A pergunta perplexa de Margarida, no F au sto l41, é a mesma

que se põe sobre o vínculo da relação jurídica, que liga sujeito ativo e sujeito passivo: Que ser humano possui poder sobre a conduta de outro sèr humano? Que pessoa tem poder sobre o ato de pessoa? Que vínculo pode conferir a um ente que o Direito reconhece como livre, tratando-o como sujeito de direi­tos e deveres, ao lhe reconhecer a personalidade, poder sobre outro ente igualmente livre, porque também dotado de persona­

140 Cf. RADBRUCH - Filosofia do Direito, trad. do Professor L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, Vol.II, pp. 99/108.

141 Cf. GOETHE - Fausto, Trad. de Jenny Klabin Segall, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981. O verso original: Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben? literalmen­te: "Quem deu a ti, Carrasco, esse poder sobre mim?" foi traduzido: "Car­rasco, quem te deu, nas trevas,/Sobre mim tal poder?", p. 198.

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lidade, que o torna igualmente sujeito de seus atos, agente e não instrumento do querer de outrem? Que tratamento é esse que se dá à vontade, a ponto de se torná-la soberana e dominante sobre uma outra vontade, subjugada e dominada? Que pacto pode tornar a vontade, que se constitui na consciente determinação para o agir, senhora de outra vontade?

A substituição do termo vontade pelo termo interesse, pelo pertença-domínio, por qualquer outro termo, não i'esolvia a questão, porque o seu ponto de estrangulamento não estava em se saber õ que O Direito protegia para con ferir tamanho poder a um ser humano sobre outro ser humano, ou a uma pessoa, de direito privado ou de direito público, sobre outra pessoa de qualquer das categorias.

D ireito d e exigir a conduta alheia, ju s in rem , que é também u m ju s in person am , direito de obrigar alguém à prática de um ato, direito de exigir de outrem uma prestação, exigibilidade sobre a conduta de outrem... Não é de causar admiração que a doutrina jurídica reagisse, como podia, e nos limites em que podia.

A doutrina contemporânea reconhece que o único ato im­perativo que pode incidir sobre a universalidade de direitos de uma pessoa é o ato imperativo do Estado, proferido segundo um procedimento regulado pelo Direito, que disciplina o próprio exercício do poder, manifeste-se ele no cumprimento de qual­quer das funções do Estado, legislativa, administrativa ou jurisdi­cional.

Sublinhe-se que esse reconhecimento não tem como conse­qüência a negação de direitos, que existem no plano da norma jurídica material, ou substancial, direitos que dela decorrem e se manifestam, se realizam nas situações jurídicas. E a força impera­tiva de uma vontade particular sobre o ato de outrem que se contesta. É por isso que a função jurisdicional é dita substitutiva. Por ela, a atividade do Estado se substitui à atividade do particu­lar, quando um direito deve ser garantido, ou quando sua pró­pria existência, perante o ato de outrem (ação ou omissão), deve

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ser apreciada e declarada. A atividade do Estado se substitui à do particular quando um dever deve ser coativamente exigido e uma medida reparatória deve ser aplicada. O ato imperativo do Esta­do, o provimento, pode reparar direitos lesados, mas nenhum particular tem poder para, através do predomínio de sua vonta­de, vincular outro sujeito. Só ao ordenamento jurídico se pode reconhecer a força para atos de império, só pelos procedimen­tos, por ele definidos e regulados, tais atos podem ser admitidos. Mesmo quando se pensa na hipótese da legítima defesa, torna-se evidente, no Direito contemporâneo, que é toda submetida a um quadro disciplinado pela lei, que a define, estabelece seus limites e as condições em que ela é permitida.

O despertar da doutrina jurídica para a fragilidade do con­ceito de relação jurídica, como vínculo entre sujeitos, vínculo de exigibilidade, não teve como conseqüência necessária, como se viu, a destruição da concepção de direitos decorrentes da norma, mas a modificação de seus fundamentos e a sua visualização sob um novo prisma. O direito que decorre da norma passou a ser visto não mais como um poder sobre outrem, mas uma posição de vantagem de um sujeito "em relação a um bem", posição que não se funda em relação de vontades dominantes e vontades subjugadas, mas na existência de uma situação jurídica, em que se pode considerar a posição subjetiva, a posição do sujeito em relação à norma que a disciplina. *

Já foi explicitado que a teoria da situação jurídica evoluiu de sua consideração como complexo de normas para uma situação constituída por fatos e atos que a lei reconhece como idôneos para sua formação. O "direito subjetivo", ou qualquer outra de­nominação que se dê ao direito que decorre da norma, direito renovado em seus fundamentos sob a concepção de uma posição jurídica de vantagem do sujeito em relação a um bem, surge, não do nada, evidentemente, mas quando é produzido um fato jurí­dico (genericamente considerado) que cria as condições para seu nascimento. Assim, o próprio tempo que, como dizia RAD­BRUCH, não interessa ao direito pelas voltas que a Terra dá em

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torno de si mesma ou em torno do Sol, mas pela significação jurídica que lhe é conferida, pode ser o fato legalmente previsto como idôneo para o nascimento de todo um complexo de direi­tos, nas situações jurídicas de diversas categorias, como idôneo para produzir direitos pode ser o fato humano. A eleição desses fatos é do Estado, através da função legislativa.

Nessa perspectiva, pode-se falar nos direitos que, configu- rando-se como uma posição de vantagem do sujeito em relação a um bem, manifestam-se na situação jurídica, como se pode falar na posição jurídica subjetiva que se qualifica como um dever, ou seja, como uma conduta que, perante a norma, deve ser observada.

Se se quiser manter a clássica terminologia dos direitos "subjetivos", sobre o novo fundamento, são eles posições jurídi­cas do sujeito, de vantagem em relação a um bem. Essas posições jurídicas não se formam do nada, mas são posições derivadas da situação jurídica, que também não se forma do nada, mas do ato (ou fato) a que a lei confere força para tanto. São, portanto, posições apreendidas quando se confronta o ato do sujeito com a qualificação que a norma lhe confere, como poder ou faculda­de. Como se disse, quando se fala em dever e na posição subjeti- va a ele concernente, não se está referindoa uma condutasubju- gada a outrem, mas a uma conduta que deve ser observa, porque qualificada, pelos cânones normativos,-eomo-devida-.—-

A classificação das posições jurídicas de vantagem de um sujeito em relação a um bem, segundo as possibilidades de sua manifestação, teoricamente consideradas, pode ser feita, porqueo direito que decorre da situação jurídica é sempre uma faculda­de ou um poder. O dever que dela decorre não traz grandes problemas de classificação, pois todo dever significa observância de uma conduta estabelecida pela norma, segundo a valoração dos atos pelo ordenamento jurídico.

Sob o selo da licitude, a posição subjetiva de vantagem do sujeito em relação a um bem deixará de ser uma mera faculdade abstrata, pela realização de uma faculdade que a norma assegura

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ao sujeito, ou por um poder que a norma lhe confere, ou pela conjugação das faculdades ou dos poderes com os deveres que a norma atribui a outrem ou à generalidade das demais pessoas.

FAZZALARI faz, em relação ao ordenamento jurídico italia­no, o levantamento das possibilidades de manifestação, nas si­tuações jurídicas de direito substancial (ou de direito material), do chamado "direito subjetivo", ou seja, da posição de vantagem de um sujeito em relação a um bem. Seu quadro é perfeitamente aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro, e dele se podem obter as seguintes hipóteses: 1. o direito realizado por uma faculdade do titular; 2. o direito realizado por um poder do titular (que corresponde, em termos, ao chamado direito potes- tativo, mas sem a clássica conotação de poder sobre ã conduta de outrem, como, por exemplo, a renúncia a um direito, a confissão judicial); 3- o direito realizado pela obrigação de outro (que corresponde, em termos, ao "direito de crédito", sem a conota­ção do "vínculo" da relação jurídica); 4. o direito realizado pela faculdade do titular e pelos deveres de todos os demais (que corresponde, em termos, ao "direito absoluto" de propriedade); 5. o direito realizado somente pelo dever de todos (nesse critério estão os direitos da personalidade e os direitos reais em que falta a faculdade, como a servidão negativa)142.

Não é demais insistir em. que faculdades e poderes não significam faculdades e poderes de um titular de-direitos. sobre atos de outras pessoas, mas .são_prerrogativas_que derivam da nòfma e que quaiificam o ato do próprio agenteem relação à sua própria conduta. Uma faculdade é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem e realiza-se pelo simples ato (con­duta) sem necessidade de prévias declarações de vontade, sendo que esta constitui a consciente determinação para o ato. Na faculdade essa determinação não necessita ser explicitada, mani­festa-se naturalmente na conduta. Um poder que decorre da

142 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, Quinta Edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1989, p. 264.

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norma é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem, que se realiza pela declaração da vontade do agente, ou seja, quando é condição do ato a manifestação, a exteriorização da consciente determinação que o produziu143.

143 Alarga-se, hoje, o quadro, e aprofunda-se a importância dos direitos indivi­duais, sociais, políticos, culturais e econômicos. Mas a antiga divisão dos direitos subjetivos em absolutos e relativos, privados e públicos, ainda tem sido resolvida pelo critério da oponibilidade do direito ao "sujeito passivo" da "relação jurídica", e continua a basear-se na nota essencial que acompa­nhou o conceito do vínculo entre sujeitos e da exigibilidade da conduta de outrem. Nessa postura, alguns problemas emergentes do Direito positivo contemporâneo continuam sem solução adequada. Assim, na classificação dos direitos subjetivos, entre os relativos, no campo do Direito Privado, foram recolhidos os obrigacionais e, no campo do Direito Público, o direito de ação, o direito de petição e os direitos políticos, entre os direitos subjetivos absolutos, no campo do Direito Privado foram postos os direitos reais e os direitos personalíssimos, e, no campo do Direito Público, a liberdade jurídica, com os seus desdobramentos em vários direitos de liberdade (as liberdades de pensamento, de circulação, de religião, de associação, de comunicação, dentre outras). O antigo problema do direito absoluto foi resolvido pela sua oponibilidade erga omrtes, o que significava o poder do titular sobre a conduta de todos os demais membros da coletividade. Essa concepção, vinda do esquema da relação jurídica, que parecia válida para o direito de propriedade, instituto dotado de uma ampla prescrição normativa protetora, que impede e veda a perturbação dos direitos do proprietário, dirigindo deveres a terceiros, volta a suscitar um antigo problema, quando se trata de outros direitos, que não são dotados de igual proteção, pela indicação dos deveres dos demais feita pela lei. O problema aparece quando uma faculdade normativamente conferida não encontra, também na norma, os correlatos deveres. A res­posta da doutrina, presa à relação jurídica, só poderia ser o recurso à mera faculdade jurídica abstrata, sem possibilidade de concretização como direi­to, a não ser no momento em que é turbada. A solução não é coerente, pois se um direito é objeto da proteção legal, isso significa que sua existência precede à violação, e a própria violação só poderia incidir sobre direito existente. A discussão desse tema envolveu, sob outro prisma, a interes­santíssima e atualíssima questão do direito de liberdade, quando definido pelo aspecto negativo, que se exprime pelo brocardo "tudo que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido". A permissão, no senti­do negativo, conforme já explicitara KELSEN (Cf. Teoria Pura do Direito, op. cit., pp. 35/37, e Teoria Geral de Normas, trad. de José Florentino Duarte, Porto Alegre, Fabris, 1986, pp. 123/125) significa somente que nenhuma norma tem tal conduta por objeto, o que resultaria no total

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5.10.A QUESTÃO DA CONCEPÇÃO DO PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA

O problema que se coloca ao se considerar o processo como uma relação jurídica é o problema da própria relação jurídica.

A se admitir o processo como relação jurídica, na acepção tradicional do termo, ter-se-ia que admitir, conseqüentemente, que ele é um vínculo constituído entre sujeitos em que um pede exigir do outro uma determinada prestaçãofou seja, uma condu­ta determinada. Seria o mesmo que se conceber que há direito de um dos sujeitos processuais sobre a conduta do outro, que perante o primeiro é obrigado, na condição de sujeito passivo, a uma determinada prestação, ou que há direitos das partes sobre a conduta do juiz, que, então, compareceria como sujeito pas­sivo de prestações, ou, ainda, que há direitos do juiz sobre a conduta das partes, que, então, seriam os sujeitos passivos da prestação.

A doutrina processual utilizando a figura da relação jurídica

desamparo jurídico do titular daquela liberdade, definida pelo negativo, pois não há como se torná-la eficaz. Para exemplificar com a atualidade do tema no Brasil, basta a lembrança dos direitos e das liberdades públicas que decorrem da liberdade jurídica, que ficavam sem proteção até que, pela Constituição da República de 05 de outubro de 1988, foi instituída a garantia do Mandado de Injunção, que veio como um instrumento para a criação de instrumento, da proteção jurídica; um instrumento que cria instrumento, que faz lembrar a expressão de BERGSON sobre a técnica: des outils qui fo n t des outils. Mas o Mandado de Injunção tem endereço certo quanto aos direitos cuja eficácia visa a garantir. Há direitos, além daqueles que podem constituir objeto de provocação da proteção, que dependem de regulamentação e cuja eficácia não se tornou efetiva. Esses, pelo conceito de relação jurídica, continuam sendo, para os possíveis titulares, mera.faculdade jurídica abstrata, embora não se coloquem no mesmo plano da liberdade definida pelo negativo. Não se pode, entretan­to, deixar de considerar que o problema da eficácia se levanta sobre outro plano, pois tais direitos constitucionalmente garantidos já existem efetiva­mente enquanto atuam como um princípio de limitação à ação do legisla­dor ordinário.

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"trilateral" inovou a velha bipolaridade do vínculo normativo existente na relação jurídica, mas mesmo a inovação não poderia dispensar, na relação "angular" ou trilateral, o vínculo jurídico de exigibilidade entre os sujeitos do processo, vínculo que constitui a marca de qualquer "relação jurídica".

E é esse o ponto significativo da questão. Foi demonstrado que, quer se negue ou se admita o direito subjetivo, já não se pode afirmar que ele se constitui em "poder sobre a conduta alheia". Em conseqüência, não há como se admitir que, no processo, uma das partes possa exigir da outra o cumprimento de qualquer conduta, por um vínculo entre sujeito ativo e sujeito passivo.

O processo não se confunde com a situação de direito material, ou situação de direito substancial, cuja existência ou cujos efeitoS nele se discutem, mas deve se relevar que mesmo na situação de direito material, como se expôs, já não se concebe a possibilidade de que um sujeito possua o poder de exigir a conduta de outro sujeito. E por isso que o particular tem, na função da jurisdição, a possibilidade de pedir que o Estado o substitua, na imposição do ato de caráter imperativo. Assim, mesmo à situação de direito substancial já não se poderia, coe­rentemente, aplicar a figura da relação jurídica que, nascida do individualismo do século passado, constituía-se em vínculo entre sujeitos, vínculo que, mesmo quando dito de "coordenação", expressava, apenas, momentos alternados de subjugação.

No processo não poderia haver tal yínculp entre as partes, porque nenhuma delas pode, juridicamente, impor à outra a prática de qualquer ato processual.

No exercício de faculdades ou poderes, nos atos proces­suais, a parte sequer se dirige à outra, mas sim ao juiz, que conduz o processo. E, do juiz, as partes não exigem conduta ou atos. Mesmo a doutrina tradicional já via a dificuldade de se sustentar o poder da parte sobre a conduta do juiz, resolvendo a questão pela concepção de que a "relação" entre eles, juiz e parte, seria de "subordinação". Não há relação jurídica entre o juiz e a

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/ parte, ou ambas as partes, porque ele não pode exigir delas ' J qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qual-1 quer das partes, resolver suas faculdades, poderes e deveres emI ônus, ao suportar as conseqüências desfavoráveis que possam1 advir de sua omissão.>—'' A análise de algumas hipóteses pode ser ilustrativa dessas

situações, a começar pelos deveres das partes e de seus procura­dores, previstos no Capítulo II, do Título II, do Livro I, do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973. Nenhum deles, nem a boa fé, nem a lealdade, nem a responsabilidade por danos pela litigância de má-fé, nem a responsabilidade por despesas e mul­tas tem a sua origem na manifestação de vontade de qualquer das partes, em vínculo de exigibilidade144. Esses deveres decorrem tão-somente da situação jurídica que confere à pessoa a posição de parte no processo.

O mesmo se poderia dizer quanto aos deveres do juiz, que se podem relacionar, no Código de Processo Civil de 1973, com base nos arts. 125 a 128: assegurar às partes igualdade de trata­mento; velar pela rápida solução do litígio; prevenir ou reprimir atos atentatórios à justiça; decidir; decidir nos limites da lei; decidir nos limites da lide. A relação poderia prosseguir pelo art. 35 da Lei Complementar n2 035, de 14 de março de 1979, que, nos itens I a VI, tanto se refere a deveres no processo como a deveres em relação ao processo (cumprir e fazer cumprir prazos, até o relacionamento do juiz com as partes). Contudo, verifica-se de plano jiu e os deveres do juiz não derivam de^poderes das partes.sobre-seus atos, mas são deveres que decorrem da funcão jurisdicional. Seu fundamento está nas próprias normas que disciplinam ãTütTsdigãõlTõ~pr5céss5rque..é.a-esti:uiura normati­va .em .que ela se manifesta, onde o. exercício do poder , é .a realização do poder de cumprir o dever,_o dever pelo qual o

144 Sobre o tema, v. a excelente exposição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREI­RA - "A Responsabilidade das Partes por Dano Processual no Direito Brasi­leiro" in Temas de Direito Processual, São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 16/33.

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Estado se obrigou, quando assumiu-a-função. de.se substituir ão particular para garantir seus direitos,._para reagir contra o ilícito, exercendo um poder que, como todo poder, no Estado de Direi­to, limita-se pela lei.

Inexistindo vínculo entre sujeitos, pelo qual atos possam ser exigidos, pelo quaS condutas possam ser impostas entre as partes e o juiz, não há como se aplicar ao processo a figura da rdarão-jnridira que, conforme se expôs^.construída no-século., passado, fruto do individualismo jurídico, já não encontra-tei^ reno propício para continuar Vicejando no Direito.

Há ainda que se registrar problemas que surgem quando se explica a natureza do processo pela eclética mistura de dois quadros conceituais diferentes. Posições subjetivas são faculda­des, poderes e deveres que decorrem de uma situação jurídica. Subordinação e subjugação são conceitos que se situam no qua­dro da relação jurídica. Assim, faculdades, poderes e deveres como posições subjetivas decorrem da situação jurídica, que se constitui, como foi visto, sob a disciplina da lei. Faculdades, poderes e deveres, no quadro conceituai da relação jurídica, decorrem de vínculos de subordinação de vontade de um sujeito sobre a vontade do outro. Faculdades, poderes e deveres, na situação jurídica, são qualificação de condutas valoradas como lícitas: faculdades e poderes como possibilidades juridicamente asseguradas, e deveres, como a conduta-a-sei-cumprida. O ato gerado por uma vontade implícita (faculdade), o ato gerado por uma vontade declarada (poder) e o ato de cumprimento da norma (dever) são manifestações exteriorizadas do comporta­mento dos sujeitos, ou seja, conteúdo de condutas.

Quando se usa dentro do mesmo argumento conceitos per­tencentes a categorias jurídicas diferentes, criam-se, inevitavel­mente, dificuldades para a compreensão do próprio argumento. Diante dessas dificuldades, a reflexão jurídica deve indagar o que se pretende dizer com tal linguagem, o que se está chamando por um determinado nome. Sem resolver a questão, ela não tem qualquer condição de prosseguir em seu crescimento.

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A exposição que se fez sobre a teoria das situações jurídicas não levará à afirmação de que o processo é uma situação jurídica. A teoria da situação jurídica cumpre o seu papel quando de- rnõnstía a impossibilidade de se considerar vínculos imperativos entre sujeitos, quando substitui a relação jurídica, mas nem por isso se pode dizer que o processo seja uma situação jurídica145. Situações jurídicas nele estarão presentes, mas não o definem, porque, como instrumento do exercício da jurisdição, ele é uma estrutura normativa que as comporta. É essa estrutura normativa de um procedimento que prepara um ato final, de caráter impe­rativo, um provimento,,realizado em contraditório entre as par­tes, que se estudará a seguir.

*

145 A tentativa de superação da concepção de processo como relação jurídica levou à construção de outras teorias, dentre as quais a da situação jurídica. A visão do processo como "situação jurídica", de GOLDSCHMIDT, encon­trou alentadas críticas na doutrina, dentre as quais as produzidas pela profunda reflexão de HÉLIO TORNAGHI - Instituições de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 387/597. Tanto a concepção de GOLDS- CHMIDT quanto as críticas estão estruturadas sobre o mesmo campo teórico que se pretende superar, e GOLDSCHMIDT o tentou. Situações jurídicas existem dentro do processo, diz TORNAGHI, no que tem toda razão. Mas isso o reconduz à relação jurídica, e o círculo se fecha, sem outra alternativa (a não ser, é claro, das construções mais frágeis, como a do processo como contrato, quase-contrato, instituição, serviço público).

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CAPÍTULO VI

O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO EM CONTRADITÓRIO

ENTRE AS PARTES

6.1. PROCEDIMENTO: ATIVIDADE PREPARATÓRIA DO PROVIMENTO

A caracterização do processo como uma espécie de procedi­mento exigiu a reelaboração do conceito de procedimento. Para edificar este como uma unidade mental, suficientemente genérica, para comportar uma multiplicidade de particularidades, o ponto de partida foi o ato do Estado, dotado de caráter imperativo, para o qual se vólta toda a estrutura normativa que disciplina a atividade constituída pelo procedimento.fO procedimento é uma atividade preparatória de um determinado ato estatal, atividade regulada por uma estrutura normativa, composta de uma seqüência de normas, de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma dinâmica bastante específica, na preparação de um provimento. O provimento é um ato do Estado, de caráter imperativo, produzido pelos seus órgãos no âmbito de sua competência, seja um ato administrativo, um ato legislativo ou um ato jurisdicional. No exer­

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cício das funções administrativa, legislativa e jurisdicional, o Estado pratica vários atos que não se revestem de imperatividade e que são necessários na dinâmica de sua atuação. Mas quando o ato do Estado se destina a provocar efeitos na esfera dos direitos dos administrados, da sociedade, dos jurisdicionados, quando é um ato dotado de natureza imperativa, um ato de poder, tem-se o provimento que, para que seja emanado, válida e eficazmente, deve ser precedido da atividade preparatória, disciplinada no ordenamento jurídico. Em razão de seu caráter imperativo, o provimento se distingue de todos os demais atos (sejam atos dos órgãos da administração, dos órgãos legislativos e dos órgãos judiciários), pois no Estado de Direito o poder se exerce nos limites da lei e o Estado cumpre suas funções dentro do quadro legal que disciplina suas atividades.

A atividade preparatória do provimento é o procedimento que, normalmente, chega a seu termo final com a edição do ato por ele preparado, por isso, esse mesmo ato dé caráter imperati­vo geralmente é a conclusão do procedimento, o seu ato final.146

6.2. A RENOVAÇÃO DO CONCEITO DE PROCEDIMENTO

A renovação do conceito de procedimento já vinha despon­tando na doutrina do processo, mas de um modo incompleto, indiferenciado, ou ainda bastante informe, com várias questões não resolvidas ou resolvidas de forma insatisfatória.

Em estudos publicados a partir de 1936, ENRICO REDENTI já vislumbra o procedimento sob uma nova ótica,147 entendendo

146 Cf. FAZZA1ARI - Istituzioni d i Diritto Processuale, Quinta Edizione, Pado- va: CEDAM-Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1989, pp. 7/8.

147 Conforme menciona REDENTI, os Profili, publicados pela Giuffrè em 1936, foram os progenitores do Diritto Processuale Civili, publicado pela primeira vez em 1947 e o projeto do amplo Trattato delia giustizia civile não chegou a ser concluído. Cf. Proemio alia Terza Edizione e Proemio alia segonda Edizione, in Diritto Processuale Civile, Terza edizione ag-

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o processo como a atividade destinada à formação do provimen­to jurisdicional. A lei se ocupa de determinar os atos que devem compor essa atividade, quando são legalmente necessários ou simplesmente consentidos, como devem ser coordenados e com­binados entre eles. A atividade preparatória do provimento en­volve atos do próprio autor do provimento e dos outros sujeitos que devem concorrer para a sua formação, por isso sua disciplina se dá por vários esquemas normativos. Esses esquemas, segundo REDENTI, propostos para as diversas possibilidades de proces­sos, devem tomar o nome dè'^rbcêdimento, que se entende como il m odulo legale d e l fen om en o in astratto148.

Os paradigmas ou módulos legais, como diz REDENTI, não se encontram sempre perfeitamente traçados e prontos para o uso, no texto da lei. Muitas vezes é necessário construí-los pela via da interpretação, com auxílio de critérios gerais, com e i l buon g eom etra p rocede alie sue triangulazione d a lla conoscenza d i la ti e d i an goli.149

O "módulo legal", o modelo normativo capaz de comportar toda a variedade de procedimentos, se elabora pela mesma ativi­dade de generalização e abstração desenvolvida na formulação de qualquer conceito. Sua construção é possível a partir das espécies de procedimentos previstos pela lei, que, conforme diz REDENTI, podem ser recolhidos ou distinguidos em grupos ou subgrupos (fam iglie), em razão da classificação dos provimentos finais que visam a formar.150

giomatci e rielaborata da Tito Carnacini e Mario Vellani, 1 - Nozione e Regole Generali, Giuffrè Editore, 1980.

148 Cf. REDENTI, op. cit., pp. 99/100.

149 Cf. REDENTI - U Giudizio Civile con Pluralità di Parti, Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1960, pp. XI/XII. A obra é reimpressão da edição original de 1911. No prefácio feito para a reimpressão, REDENTI refere-se ao problema da configuração dos paradigmas das ações civis, que por uma visão "planimetrica del sistema stesso viene a ttovarsi inposizione marginale" Cf. p. XI.

150 Cf. REDENTI ■ Diritto Processuale Civile, cit. p. 100.

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Também LIEBMAN já revela uma certa aproximação dessa nova concepção, quando discorre sobre a estrutura do procedi­mento, em que os atos processuais formam elos de uma cor­rente. Mas a aproximação de LIEBMAN é apenas relativa, pois sua doutrina separa o processo do procedimento, mantendo quanto a este a concepção antiga, ainda dominante na teoria processual, quando enuncia que o termo processo é mais amplo, porque pode compreender mais de um procedimento.151

O ato estatal de caráter imperativo para cuja preparação todo procedimento se volta é o seu motivo,-sua ratio, mas não é elemento próprio para que dele se deduza a específica dinâmica do procedimento, que não é um mero encadeamento de atos.

A contribuição definitiva para a renovação do conceito de procedimento, no Direito Processual, orgânica, sistematizada, coerente e lógica, vem de ELIO FAZZALARI, que partiu de uma bem estruturada visão do ordenamento jurídico e de um quadro conceituai muito bem definido para investigar as formas pos­síveis de "enucleação", ou de conexões de normas, ou seja, de agrupamentos normativos vistos quanto à especial forma do entrelaçamento dessas normas; dos atos por elas regidos, não só na qualificação de sua juridicidade, mas na sua predicação quan­do tais atos são correlacionados com tais normas, para a caracte­rização do procedimento e do processo.

FAZZALARI preocupa-se em definir previamente os con­ceitos que utiliza no desenvolvimento de sua argumenta­

151 Cf. LIEBMAN - Manual de Direito Processual Civil, Vol. I, tradução e notas de Cândido R. Dinamarco, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp. 228/229. Essa posição aproximada também se verifica em ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRlNl GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMAR- CO, quando, vendo o processo como uma relação jurídica, incluem, em seu conceito, o procedimento. Cf. op. cit. 253.

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ção, porque estes, muitas vezes designados com o mesmo nome dos conceitos tradicionais, não possuem a mesma conotação e, conseqüentemente, referem-se a realidades jurídicas diferentes.

A norma jurídica, do ponto de vista de sua estrutura lógica, é contemplada não apenas como "cânone de valoração de uma conduta", isto é, como regra vinculante e exclusiva que expressa os valores da sociedade,152 mas também em relação à conduta por ela descrita, a que se liga a valoração normativa. Sendo o ato sinônimo de conduta (que tem no comportamento o seu conteú­do), dessa valoração resulta a qualificação do ato jurídico como lícito (o uso do próprio bem), ou como devido. A posição do sujeito em relação à norma permite falar em posição subjetiva, ou posição jurídica subjetiva, e qualificar a conduta como facul­dade ou poder, se é valorada como lícita, e como dever, se é valorada como devida.

Da posição do sujeito em relação ao objeto do comporta­mento descrito na norma, FAZZALARI extrai o conceito de direito subjetivo, não como um poder sobre a conduta alheia, ou de direito à prestação decorrente de relação jurídica, mas como uma posição de vantagem do sujeito assegurada pela norma, posição que se apreende pelo "objeto do comportamento" des­crito na norma relacionado ao sujeito. Se da norma decorre uma faculdade ou um poder, para o sujeito, sua posição de vantagem incide sobre o objeto daquela faculdade ou daquele poder que a norma lhe conferiu153.

O quadro conceituai com o qual FAZZALARI trabalha será explicitado, na medida em que for conveniente para a clareza desta exposição.

Entretanto, é importante sublinhar, desde já, que os atos lícitos qualificados como faculdades ou poderes nada têm a ver com a concepção tradicional de direitos subjetivos, e que seu

152 Cf. FAZZALARI, op. cit. pp. 19126.

153 Cf. FAZZALARI, op. cit. pp. 46/50.

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contraponto não é o ilícito. Os atos lícitos constituem poderes, se consistem em declarações de vontade (uma confissão judicial)e, faculdades, se consistem em atos em que a vontade, embora presente, como em qualquer ato válido, não necessita ser decla­rada porque é implícita como "consciente determinação do agen­te de ter o comportamento descrito na norma".154 Os exemplos oferecidos por FAZZALARI auxiliam a distinção: as partes têm poder de "proferir juramento decisório", faculdade de alegar fatos e dever de exibir prova.155 Quando há conseqüências legais vinculadas à falta do exercício dos poderes e faculdades, desfavo­ráveis ao titular do ato, surge a figura do ônus. Como diz FAZZA­LARI, os poderes e faculdades caracterizam-se como ônus, quan­do à falta de seu exercício a lei processual liga uma conseqüência desfavorável ao titular do ato. Ao sujeito é dado cumprir ou não o ato, mas a falta de cumprimento se resolve na possibilidade de dano para ele156.

O segundo ponto que merece relevo é a explicitação de que a qualificação do ato como lícito (poderes e faculdades) não se faz em contraposição ao ilícito. O ilícito não é incluído na estru­tura do procedimento e do ponto de vista lógico, nem o poderia ser, pois não poderia compor o conceito de ato jurídico. E é sobre atos jurídicos que se fala no procedimento, são eles que o compõem em todo o seu iter , até o momento final. E claro que não se exclui o ilícito da experiência do Direito, mas nela ele comparece como inobservância da conduta devida, descrita pela norma substancial, pela norma de direito material. Terá ele, naturalmente, assim como o direito material cuja tutela é reque­rida, suas relações com o ato final, o provimento, no processo, mas não integra a sua estrutura.157

154 Cf. FAZZALARI, op. cit. p. 338, v., ainda, p. 330 e p. 401.

155 CF. FAZZALARI, op. cit., p. 401.

156 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 401.

157 Cf. A concepção de norma jurídica, como cânone de conduta, vinculativa (no sentido de que a conduta deve se conformar a ela) e exclusiva (porque

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^ O procedimento não é atividade que se esgota no cumpri­mento de um único ato, mas requer toda uma série de atos e uma série de normas que os disciplinam, em conexão entre elas, regendo a seqüência de seu desenvolvimento. Por isso se fala em procedimento como seqüência de normas, de atos e de posições subjetivas.

se sobrepõe a outras normas) de que decorre a juridicidade, em FAZZALA­RI, lembra STAMMLER, na definição do Direito como um querer vinculati- vo, entrelaçante, autárquico e inviolável, e também pela opinio iuris vel necessitatis, toda linha de pensamento, de diversas tendências que, pelas contribuições do historicismo jurídico, se formou sobre a juridicidade. O ilícito não é realçado nessa juridicidade, senão como elemento que a rompe. Nesse ponto FAZZALARI está mais próximo da linha humanista, com a qual concilia sua abordagem lógica da norma, e em posição absolu­tamente distanciada de KELSEN. Mesmo a norma penal em FAZZALARI, como norma de conduta, refere-se à conduta devida, e sua expressão lógica que liga o ilícito à sanção não descreve a norma substancial, mas a norma jurisdicional. Ressalte-se que no campo do estudo da estrutura lógica da norma e das funções que decorrem de sua vinculação com a conduta regida, há excelente contribuição de NORBERTO BOBBIO - Teoria do Ordenamento Jurídico, trad. de Cláudio de Cicco (capítulo 1) e de Maria Celeste C.J. Santos (capítulo 2 a 5), São Paulo: Polis, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1989- KELSEN, que já havia desenvolvido o tema, em tópicos da Teoria Pura do Direito, teve seus trabalhos sobre a norma recolhidos em publicação póstuma sob o título de Teoria Geral das Nor­mas. As funções da norma jurídica, que são estudadas do ponto de vista teleológico ou sob o prisma formal, na Ciência do Direito, enquanto referidas ao sistema jurídico, estão ali descritas como funções da norma, enquanto dever-ser de conduta, em relação à própria conduta por ela disciplinada. Por esse critério, KELSEN classifica as funções da norma como de: 1) Imposição de uma conduta, em que imposição é sinônimo de prescrição, que se diferencia de descrição, enquanto se remete a algo que deve ser. Toda proibição pode ser descrita como imposição, precisamente como imposição da conduta ou de sua omissão, porque o conceito de conduta compreende "o fazer e a omissão passiva de uma ação". A imposi­ção compreende, assim, a prescrição e a proibição: a imposição do fazer — a prescrição, e a imposição do omitir aquele fazer — a proibição. 2) Autorização — que é o ter poder para a conduta. 3) Permissão — o ter a conduta consentida. A permissão compreende dois sentidos: o sentido positivo e sentido negativo. (O sentido negativo, para KELSEN, não é função na norma; para BOBBIO, gera problema do espaço vazio. Significa

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O ato de caráter imperativo, um provimento, tem no proce­dimento sua fase preparatória, mas não é, entretanto, suficiente para esgotar sua definição. A atividade que precede sua emissão, ou edição, ou emanação, é constituída de atos que são disciplina­dos segundo um modelo normativo próprio, que determina sua especial forma de coordenação e de conexão, no desenvolvimen­to, ou, no iter do procedimento, até o ato final.

Essa especial forma de coordenação será descrita a seguir, mas, antes, convém recordar que, para FAZZALARI, o procedi­mento não é um conceito particular de uma disciplina, maíLum conceito geral do Direito, e deve ser "colhido", extraído, de um complexo de normas que incidem sobre atos e posições subjeti­vas que preparam o provimento, que é, como se viu, um ato do Estado, emanado de seus órgãos, na órbita de sua competência, dotado de caráter imperativo.

Não é excessivo ressaltar que a expressão "posição subjeti­va" contém um sentido muito específico. Não se refere à posição de sujeitos em uma relação com outro sujeito ou à posição de sujeitos em um quadro qualquer de liames. Posição subjetiva é a posição de sujeitos perante a norma, que valora suas condutas como lícitas, facultadas ou devidas.

No procedimento, os atos e as posições subjetivas são nor- mativamente previstos e se conectam de forma especial para tornar possível o advento do ato final, por ele préparado. Não só

que a conduta nem é proibida, nem imposta. O ser permitido aí é o ser Livre. Em KELSEN, o sentido positivo da autorização pode significar que uma norma que proíbe uma conduta definida é abolida, ou que a norma que proíbe tal conduta é limitada por outra (Ex. a proibição de matar e a legítima defesa). A limitação da proibição importa em permissão. Essa função é reduzida à função de derrogação (que aparece com o a 4~ espé­cie), ou seja, a abolição ou limitação da validade, norma que proíbe uma conduta definida. Isto porque a permissão não pode ser cumprida nem violada. Sobre os desdobramentos e a importância de cada uma dessas funções KELSEN fala longamente, mas prosseguir no tema desviaria o propósito dessa exposição. Cf. KELSEN - Teoria Geral das Normas - trad. de José Florentino Duarte, Porto Alegre: Fabris, 1986, pp. 120/144.

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o ato final, em sua existência, mas a própria validade desse ato e, conseqüentemente, sua eficácia, dependerão do correto desen­volvimento do procedimento.

A forma especial de conexão dos atos e posições subjetivas normativamente previstas, que torna possível a identificação de qualquer procedimento, é descrita por FAZZALARI:

"II procedimento si coglie qu an do ci trova di fronte a una serie d i nortne, ciascuna delle quali regola una determ inata condotta (qu alifican dola co­m o lecita o doverosa), m a enuncia com e presupposto delia própria incidenza il compimento d i un ’attività regolata d a altra nor?na delia serie, e cosi via f in o a lia norma regolatrice d i un ato finale"158

ÍQuando o pressuposto para a incidência de uma norma é o

cumprimento de uma atividade prevista na norma anterior da série do complexo normativo, não se está diante da simples ordenação de uma cadeia normativa, que poderia ser linearmen­te concebida.

Pressuposto, em linguagem filosófica e da lógica, é premissa não explícita, e essa, como se mostrou, em tópico anterior, é a proposição da qual são extraídas outras proposições, pelo processo de inferência, e, como se recordou, as conclusões po­dem se tornar novas premissas de novas conclusões, na cadeia de proposições, no raciocínio dedutivo159. Essa é a noção funda­

158 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 57/58.

159 FAZZALARI trabalha com a lógica, como ele próprio declara quando expli­cita a eleição de seu método: D alparticolare algenerale, d a lgen era le al particolare: è il método delia doppia scala che, quattro secoU fà , ci ha insegnato Bacone. Cf. op. cit., p. 16. Mas está visto que não trabalhou com a lógica das classes, no desenvolvimento do raciocínio que o levou a relacionar o processo com o procedimento, através da extração da espécie do gênero, quando ao invés de unia relação, que levaria à inclusão, proce­deu a uma cisão.

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mental para a apreensão do novo conceito de procedimento. Foi ele inicialmente referido como uma estrutura que prepara um ato final imperativo, o provimento, e essa estrutura é constituída de tal forma que, na cadeia normativa que disciplina os atos e as posições subjetivas, a incidência de uma norma só poderá se verificar validamente sobre os atos da seqüência, se a norma anterior houver sido observada e cumprida, na sua previsão de atos que poderiam ter sido exercidos ou que deveriam ter sido cumpridos. Em outras palavras, na seqüência normativa que compõe a estrutura do procedimento, a observância da incidên­cia da norma que prevê o ato que pode ser exercido ou deve ser cumprido é pressuposto, é condição de validade, da incidência de outra norma que dispõe sobre a realização de outro ato, sendo deste o pressuposto, assim até que o procedimento se esgota atingindo seu ato final, quando se verificaram todos os pressupostos normativamente previstos para a emanação do provimento. A observância da incidência da norma significa que os atos que ela permite são realizados ou têm a possibilidade de sua realização garantida, e o atos que ela estatui como devidos são realizados, quando não se permite a sua conversão em ônus.

Se o procedimento fosse considerado apenas como uma série de normas, atos e de posições subjetivas, o ato jurídico isoladamente considerado poderia produzir nele seus efeitos. Mas o procedimento é mais do que uma mera seqüência norma­tiva, que disciplina atos e posições subjetivas, porque faz depen­der a validade de cada um de sua posição na estrutura, que requer o cumprimento de seu pressuposto. O ato praticado fora dessa estrutura, sem a observância de seu pressuposto, não pode ser por ela acolhido validamente, porque não pode ser nela inserido.

6.3.1.0 PROCESSO COMO ESPÉCIE DO GÊNERO PROCEDIMENTO

Como foi exposto, FAZZALARI caracterizou os provimentos como atos imperativos do Estado, emanados dos órgãos que

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exercem o poder, nas funções legislativa, administrativa ou juris­dicional. O procedimento, como atividade prepâratória do provi­mento, possui sua específica estrutura constituída da seqüência de normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato nela previsto.

O provimento implica na conclusão de um procedimento, pois a lei não reconhece sua validade, se não é precedido das atividades preparatórias que ela estabelece. Mas o provimento pode ser visto como ato final do procedimento não apenas porque este se esgota na preparação de seu advento. Pode ser concebido como parte do procedimento, como seu ato final, c o m o o último ato de sua estrutura./É na possibilidade de se enuclearem os provimentos, em conjunto, segundo essa ótica, pela qual eles são o próprio ato final do procedimento, que FAZZALARI encontra a perspectiva própria para o estudo do processo.1*50

O processo começará a se caracterizar como uma "espécie" do "gênero" procedimento, pela participação na atividade de preparação do provimento, dos "interessados", juntamente com o autor do próprio provimentoy1 Os interessados são aqueles em cuja esfera particular o ato está destinado a produzir efeitos, ou seja, o provimento interferirá, de alguma forma, no patrimônio, no sentido de universum ius,l(A dessas pessoas.

A primeira aproximação do conceito de processo é assim desenvolvida:

"Se, poi, a l proced im ento d i fo rm az ion e d e l provvedim ento, a lie attiv itàpreparatorie attraverso le qu a li si verificano ipresupposti delprovvedim en-

160 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 7/8.

161 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 54.

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to stesso, sono ch iam ati a participare, in una o p iú fa si, an cbe gli interessati, in contraddittorio, coglia- m o Vessenza d e l "processo": che è, appunto, un p ro ­cedim ento a l quale, oltre alVautore d e li’atto finale, partecipano, in contraddittorio fr a loro, g/'interes- sati, cioè i destinatari degli effetti d i tale a tto" }62

O processo começa a se definir pela participação dos interessados no provimento na fase que o prepará, ÕLrseja, no proclidimêntQ. Mas essa definição se concluirá pela apreensão da específica estrutura legal que inclui essa "participação, da qual se extrairá o predicado que identifica o processo, que é o ponto de sua distinção: a participação dos interessados, em contraditório en tre eles:

! "Se, poi, i l procedim ento è regolato in m odo che vipartecip ino anche coloro nella cui sfera g iuridica 1’atto fin a le è destinato a svolgere effeti (talché l ’au- tore d i esso d ebba tener conto delia loro attività), e se tale partecipazion e è congegnata in m odo che i contrapposti interessati (quelli che asp iran o a lia em anazione d e li ’atto fin a le — interessati in senso stretto — e quelli che vogliono evitaria — contro- interessatij siano sul p ian o d i sim m etrica parità ; allora il proced im ento comprende il contradditto­rio, si f a p iú articolato e complesso, e d a l genus procedimento è con sen tito en u c leare la species processo.163

Chega-se, assim, ao processo como "espécie"164 de procedi­

162 FAZZALARI op. cit., p. 8.

163 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 57/58.

164 Lembrando o que foi exposto anteriormente, sobre as doutrinas que consideram o processo mais amplo que o procedimento, incluindo este

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mento realizado através do contraditório entre os interessados, que, no processo jurisdicional, são as partes.

Dentro da linha de raciocínio desenvolvida por FAZZALARI, talvez a relação entre o "gênero" procedimento e a "espécie" processo possa ficar mais bem explicitada se se recorrer ao auxílio da lógica da relação entre classes para a apreensão de seu argumento.

Uma classe se define pelas qualidades, ou propriedades, comuns dos membros que nela se incluem. A classe dos procedi­mentos é constituída pela atividade que possui uma "estrutura normativa" determinada, voltada para a preparação do provi­mento. A classe dos processos (jurisdicionais, legislativos, admi­nistrativos, e outros admitidos pelos ordenamentos jurídicos como os arbitrais) possui em comum a preparação do provimen­to com a participação dos interessados, em contraditório entre eles. Como se disse, anteriormente, a respeito dos princípios lógicos da inclusão, ela é válida se obedecida a hierarquia das classes. O procedimento, como "estrutura normativa" que prepa­ra o provimento, constitui a classe imediatamente superior pela abrangência que comporta, para que nela se inclua a classe dos processos.

É interessante observar que a via encontrada por FAZZALA- RI, que foi a da cisão, quando ceifou o gênero, para extrair de seu

naquele, pode-se testar o resultado apresentado para FAZZALARI. Se se invertesse a proposição, dizendo-se que o processo é o gênero e o procedi­mento a espécie, isso significaria que todos os procedimentos deveriam conter todas as qualidades específicas do processo, o que não seria correto porque há procedimentos que não possuem a especificidade que caracteri­za o processo: o contraditório. O processo, sim, contém as qualidades atribuídas ao procedimento. Por isso, se se diz que "todo procedimento é preparação de um provimento", é possível se dizer que o processo compa­rece como espécie do gênero procedimento porque participa da qualidade que lhe foi predicada. A relação entre gênero e espécie pela quantificação do sujeito do discurso, no juízo, nas antigas formulações do juízo universal (Todo S é P) ou particular (Alguns S são P), ou do juízo singular (S é P) trazia algumas dificuldades, que foram superadas pela lógica das relações entre classes.

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âmago a espécie, importou, implicitamente, em uma relação que é, logicamente, de inclusão, porque a classe dos processos, pela sua qualidade de atividade que prepara o provimento, comparti­lha, com os procedimentos, dessa "específica qualidade" que os define.

O que há de realmente extraordinário nos resultados de suas investigações é a identificação do elemento que permite definir o procedimento e do elemento que constitui a diferença específica do processo, sendo que este é um procedimento.

6.3.2.0 PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO EM CONTRADITÓRIO

— i Há processo sempre onde houver o procedimento realizan­do-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na "simétrica paridade"165 da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos.

A espécie de procedimento denominada processo se subdi­vide, também, em subclasses, e pode-se falar em espécies de processos: processo administrativo, em que se desenvolve a ati­vidade da Administração, processo legislativo, em que se desen­volve a atividade legislativa, processo jurisdicional, em que se desenvolve a atividade do Estado de fazer a justiça, por meio de seus juizes. Há, ainda, os "processos" infra-estatais, que são aque­les que, no campo do Direito Privado, em que prevalece a auto­nomia da vontade, preparam um ato final sem a característica do ato estatal, porque não dotado da imperatividade do provimen­to, mas que tem o caráter de uma deliberação, e cuja dinâmica se faz pelo modelo do processo jurisdicional. FAZZALARI lembra exemplos que mostram a extensão, em tendência crescente, do arquétipo do processo jurisdicional, ao campo do Direito Priva­do para solução de controvérsias, entre outros, nas deliberações internas de partidos políticos, de sindicatos, de associações es­

165 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 80.

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portivas, de sociedades comerciais. Os exemplos poderiam ser multiplicados na realidade social brasileira, em que se observa o movimento ascendente de organização de associações, em vários setores, e a introdução da prática democrática dos debates que precedem as decisões dos grupos.

É claro que a atividade que prepara o provimento, seja administrativa ou jurisdicional, nem sempre constitui processo, pois o contraditório pode dela estar ausente. O provimento

; administrativo e o provimento jurisdicional podem ter como atividade preparatória o simples procedimento, como se,dá,,por exemplo, no âmbito da administração, em relação a um pedido de inscrição em concurso público, um pedido de licença para porte de arma, um pedido de matrícula em Instituição Pública de Ensino e, no âmbito do Judiciário, em relação a um pedido de tutela, enfim, aos atos da chamada "jurisdição voluntária". Mas se ocorrer divergência de interesses sobre o provimento, entre seus destinatários, o procedimento pode se transformar em processo. Observe-se, apenas, que, em relação aos exemplos referentes à matéria de natureza simplesmente administrativa, a transforma­ção do procedimento em processo exigirá, naturalmente, o pres­suposto de sua instauração perante o órgão jurisdicional, onde não houver especialização dos órgãos da Justiça para a aprecia­ção de matéria administrativa. Essa questão não prejudicará a compreensão da transformação do procedimento em processo se se recordar que a jurisdição é una, comportando especializa­ção de órgãos do Poder para seu exercício.

Pode entender-se, então, por que o estudo da jurisdição, ou seja, da norma processual, que é a norma que disciplina seu correto exercício, deve se fazer sobre o processo que, sendo uma espécie de procedimento, oferece, como diz FAZZALARI, a estru­tura mais completa para que sejam reunidos e ordenados coe­rentemente os vários aspectos que envolvem a manifestação des­sa atividade fundamental do poder.166

166 "... Io studio delia giurisdizione (e cosi di quella civile) d ev efa rp ern o sul

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Da manifestação do poder jurisdicional, em razão da maté­ria constitucionalmente organizada, segundo a estrutura dos órgãos jurisdicionais, podem ser apontadas as várias espécies de processo. Nos termos da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, no ordenamento jurídico brasileiro, pode-se falar em processo jurisdicional civil, penal, trabalhista, militar, eleitoral, constitucional e legislativo.167 O processo jurisdicional administrativo — em plano de jurisdição autônoma —, e o arbi­trai não foram contemplados no texto constitucional, que é de onde se extrai, fundamentalmente, a legitimidade dos órgãos que podem atuar no exercício da jurisdição.168

Em relação ao processo de apreciação de inconstitucionali-

processo. IIprocesso è la sola struttura nela quale, e in virtu delia quale, i vari aspetti d i q u ell’attività fondam entalepossono essere coerenziati ed ordinati: con un cambiamento, ma anche, io credo, con un innegabile progresso tispetto ai precedenti sistemi, fondati sul concetto di azione, ancora utile, ma da elaborare e collocare al suo posto, e su quello di rapporto giuridico processuale, orm ai da rípudiare del tutto". Cf. FAZZA­LARI, op. cit., pp. 98/99-

167 JOSÉ FREDERICO MARQUES denomina categorias anômalas de jurisdição não-judiciária as exercidas por órgão administrativo, no contencioso admi­nistrativo que não chegou a se implantar e por órgão legislativo, no julgamento do Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal e Procurador Geral da República, nos termos previstos na Constituição. Cf. Manual de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, 1985-1986, l c vol., p. 2.

168 O art. 114, § 1“ da Constituição de 1988, permitiu às partes elegerem árbitros, frustrada a negociação coletiva. Entretanto, essa arbitragem se coloca no campo das relações privadas, como a própria negociação, pois não substitui o provimento jurisdicional, como se extrai do § 3a do mesmo artigo. A arbitragem, na hipótese referida, é apenas uma fase preparatória de um procedimento, desenvolve-se na fase pré-processual da instauração do dissídio coletivo, mas voluntária e não necessária, pois, inexistindo, não impede seu ajuizamento. Todo o Capítulo XIV, do Título I, do Livro IV do Código de Processo Civil, cuja constitucionalidade poderia ser discutidaperante a Constituição anterior, sob cuja égide o Código entrou em vigor, está revogado, porque mais do que um simples negócio jurídico, prevê o ato imperativo do provimento, e este é, constitucionalmente, reservado ao poder jurisdicional do Estado, cujos órgãos são definidos na Constituição.

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dade da lei em tese, as divergências doutrinárias169 sobre sua natureza, como "processo" ou como processo de "jurisdição vo­luntária", ou seja, simples procedimento, não poderão ser resol­vidas sem o eXame do direito positivo, que determina a estrutura do procedimento em que se dá o controle da constitucionalida- de. As dúvidas, entretanto, não alcançam o Direito brasileiro, pois o contraditório ressalta do art. 103 e parágrafos, da Consti­tuição da República de 05 de outubro de 1988, sendo que o § 32 expressamente determina a prévia citação do Advogado-Geral da União, "que defenderá o ato ou o texto impugnado,:, quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade em tese (abstrata) de norma legal ou ato normativo. E, portanto, um verdadeiro processo, e não um simples procedimento, ou um "processo de jurisdição voluntária".

O procedimento legislativo, conforme observa FAZZALARI, sempre é processo, sempre se realiza como "espécie" processo, sempre se realiza com a participação de parlamentares que re­presentam e reproduzem os interesses divergentes dos grupos e comunidades dos cidadãos. E na sua caracterização que FAZZA­LARI sublinha o valor da própria estrutura do processo para a democracia, o momento em que ele comparece nitidamente como um instrumento para a garantia da liberdade: "Si tratta, dunque non di m eri procedim enti, bensi d i processi. Qui il processo conferma, se m ai ve ne sia bisogno, la sua essenza d i struttura privilegiata p e r la gestione dem ocratica d i attività fondam enta li; e dunque, d i strumento p e r la salvaguardia de-

> lie liberta1,170 .

f.

i. 169 Em linha contrária à de FAZZALARI, CAPPELLETTI sustenta a tese de que "ajurisdição constitucional é uma dentre as grandes manifestações da jurisdi­ção não ‘contenciosa’, latu sensu, ‘voluntária’" Cf. MAURO CAPPELLETTI - O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Compara­do, trad. de Aroldo Plínio Gonçalves, Revisão de José Carlos Barbosa Moreira, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, pp. 125/126.

170 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 580. Não custa repetir, resistir, persistir e insistir na necessidade da urgente edição dos Códigos Estaduais de Processo (civil

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6.4. O CONTRADITÓRIO

A idéia do contraditório não é recente. RUDOLF VON JHE- RING deixou páginas memoráveis sobre a administração da justi­ça, na qual a primeira exigência era a da "justiça no processo". Para ela, para essa justiça interna e intrínseca, a "organização" do processo deveria estar voltada, pois, no processo, era ela a pri­meira e também a única exigência essencial, perante a qual todas as demais, no processo, seriam secundárias. Essa "justiça no processo" é bem explicitada por VON JHERING, quando fala das relações das partes no processo, que, com o juiz, terceiro e não parte, era, segundo entendia, de "subordinação jurídica". Mas a relação entre as partes deveria ser caracterizada pela igualdade jurídica: "devem combater-se com armas iguais e devem-lhes ser distribuídas com igualdade a sombra e a luz".171 O conceito de contraditório, entretanto, é bem atual, e ainda não foi totalmente assimilado, embora seu princípio fundamental, "audiatur (...) et altera pars", "audita a ltera parte", "audi alteram p artem ", seja bastante difundido, e já esteja presente na Teoria Geral do Direi­to, com a conotação bastante aproximada da que lhe seria dada pelo Direito Processual Civil. Assim, na segunda parte de sua "Introduction à la Science du Droit (dividida em Encyclopédie du D roit, em Théorie G énérale du Droit e em Introduction à la Philosophie du Droit)", PIERRE PESCATORE fala sobre le carac- tère contradictoire d e la procédure, explicitando o adágio au ­d ia tu r (...) et altera p a rs , que significa, conforme diz, que uma decisão não pode adquirir a autoridade da coisa julgada para quem não participou do debate judiciário, que o contraditório

e penal), já que esta é a vontade política do Constituinte de 1988 (art. 22, XI) — que cumpre seja rigorosamente respeitada — , voltando em parte, e isto pouco importa, ao regime da Constituição de 1891.

171 Cf. RUDOLF VON JHERING - A evolução do Direito, Salvador: Livraria Progresso Editora, 1956 (Não há menção ao tradutor, mas trata-se da obra cujo título original é Zweck im Recht, de 1878), p. 307.

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possibilita o melhor esclarecimento do juiz, e que, entretanto, significa, sobretudo, a possibilidade que a parte deve ter de se fazer ouvir: "Ce príncipe d o it être entendu toutefois en ce sens que toute p artie interessée do it avoir la possib ilité d e se fa ir e entendre" } 72

A conotação citada como uma aproximação do conceito atual de contraditório explica-se, pois ele exige mais do que a audiência da parte, mais do que o direito das partes de se fazerem ouvir. Hoje, .seu conceito evoluiu para o de garantia de participação das partes, no sentido em que já falava VON JHERING, em simétrica paridade de armas, no sentido de jus­tiça interna no processo, de justiça no processo, quando as mesmas oportunidades são distribuídas com igualdade às par­tes.

O contraditório não é apenas "a participação dos sujeitos do processo". Sujeitos do processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as partes (autor, réu, intervenientes). O contraditório é a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os "interessados", ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provi; mento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.

O juiz é sujeito do processo, é o sujeito que tem a titularida­de não apenas do ato do provimento final, mas de provimentos emitidos no curso do procedimento, sempre que decisões são proferidas, e de outros tantos atos processuais que a lei lhe reserva, na preparação do ato final, enquanto investido na fun­ção jurisdicional, enquanto órgão pelo qual o Estado fala. Sendo sujeito de atos processuais, é claro que ele participa do processo. A participação do juiz, na fase de instrução, que afasta definitiva­mente a possibilidade de que ele seja visto como um simples autômato, é posta em relevo por BARBOSA MOREIRA, que, com base em várias disposições do Código de Processo Civil de 1973,

172 Cf. PI ERRE PESCATORE, op. cit., p. 374.

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demonstra que ele não se limita a "uma postura de estátua"173. A maior participação dos juizes no processo é um direito que, conforme alerta, assiste à própria sociedade, para o qual o legis­lador deve ser sensibilizado e despertado174.

Contudo, saliente-se, a participação do juiz não o transfor­ma em um contraditor, ele não participa "em contraditório com as partes", entre ele e as partes não há interesse em disputa, ele não é um "interessado", ou um "contra-interessado" no provi­mento. O contraditório se passa entre as partes porque importa no jogo de seus interesses em direções contrárias, em divergên­cia de pretensões sobre o futuro provimento que o iter procedi­mental prepara, em oposição. É essa oposição, essa contrarieda­de de interesses, de que o provimento seja favorável a uma e desfavorável à outra, que marca a presença das partes e que tem a garantia de igual tratamento no processo. O contraditório, não é, por isso, a "mera participação no processo". Essa era a idéia originária do contraditório, quando a participação era concebida como o auge das garantias processuais. Participação no processo têm todos os sujeitos do processo, caso contrário não seriam "sujeitos dos atos processuais". Entretanto, a participação em contraditório se desenvolve "entre as pártes", porque a disputa se passã entre elas, elas são as detentoras de interesses que serão atingidos pelo provimento.

O juiz, perante os interesses em jogo, é terceiro, e deve ter essa posição para poder comparecer como sujeito de atos de um determinado processo e como autor do provimento. Essa é uma garantia das partes, que se expressa tanto pelo princípio do juízo natural, e não pós-constituído, tanto pelas normas que contro-

173 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - "Sobre a 'Participação’ do Juiz no Processo Civil", in Participação e Processo, Coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe, São Pauto-. Edito­ra Revista dos Tribunais, 1988, pp. 380/394.

174 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, "Sobre a 'Participação’ do Juiz no Processo Civil", in op. cit., p. 390.

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Iam a competência do juiz. Investido dos deveres da jurisdição, o juiz não entra no jogo do dizer-e-contra-dizer, não se faz contra- ditor. Seus atos passam pelo controle das partes, na medida em que a lei lhes possibilita insurgir-se contra eles. Sublinhe-se, nesse ponto, o profundo sentido do duplo grau de jurisdição como garantia de direitos processuais. O controle das partes sobre os atos do juiz é de suma importância e, nesse aspecto, a publicidade e a comunicação, a cientificação do ato processual às partes (que é, também, garantia processual) é de extrema rele­vância. Entretanto, as partes não se colocam em combate com o juiz, nem este em contraditório com as partes. Ele fala sempre pelo Estado, enquanto investido da função jurisdicional, e os atos decisórios do processo têm o selo da imperatividade. As partes exercem o seu controle sobre ele, pelo remédio legal adequado à riíatureza do ato, mas esse controle se dará sempre através do pedido de pronunciamento do próprio Poder Judiciá­rio, chamado a intervir para a proteção dos direitos processuais. Quando tal controle se faz pela impugnação do ato imperativo, pela via recursal, é o mesmo Poder Jurisdicional, em outro grau, mas sempre o mesmo Poder, a quem incumbe a reapreciação do ato. A revisão recursal não importa, como bem demonstra BARBOSA MO­REIRA "reforma" ou "confirmação" da decisão impugnada, mas em sua substituição!75 Na hipótese de cassação da decisão, ou anula­ção, o provimento em grau de recurso implica na determinação para que a substituição se faça pelo próprio autor do provimento viciado, para que não se suprima grau de jurisdição. De qualquer modo, a revisão não se faz por outro órgão que não o jurisdicional, em qualquer grau de sua manifestação.

O contraditório realizado entre as partes não exclui que o juiz participe atentamente do processo, mas, ao contrário, o exige, porquanto, sendo o contraditório um princípio jurídico, é

175 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - Comentários ao Código de Proces­so Civil, vol. V: art. 476 a 565, 5a ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1985, pp. 384/389.

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necessário que o juiz a ele se atenha, adote as providências necessárias para garanti-lo, determine as medidas adequadas para assegurá-lo, para fazê-lo observar, para observá-lo, ele mes­mo.176 Nessa exigência, convém ressaltar que mesmo as provas

176 Nesse sentido, dispõe o atual art. 16 do Nouveau Code de Procédure Civile da França: Le Ju g e doit, en toutes circonstances, fa ire observer et observer lui-même le príncipe de la contradiction. A nova redação provocou o retorno aos textos de 1971 e 1972, substituindo o art. 16 do novo Código instituído pelo Decreto nc 75-1123, de 05 de dezembro de 1975: "Le ju ge doit en toutes circonstances fa ire observer le príncipe de la contradiction" e sua alínea Ia, que dispensava o juiz de observar "le príncipe d e la contradiction des débats lorsqu'il relève d'office un m oyen d e p u r droit", disposição anulada pelo Conseil d'État, em 12 de outubro de 1979, após reação manifestada por várias associações de advogados, conforme relatam JEAN VINCENT e SERGE GUINCHARD - Procédure Civile, vingtième édi- tion , Paris: Dalloz, 1981, p. 432. Como expõem EMMANUEL BLANC e JEAN VIATTE, o antigo texto de 1971, que foi revigorado, tinha originariamente a seguinte redação: "le juge doit, en toutes circonstances, fa ire observer et observer lui-même le príncipe de la contradiction. Il ne peut fo n d er sa décison sur les moyens de droits autres que d ’ordrepublic qu'il a relevés d'office ou sur les explications complémentaires q u ’il a dem andées, sans avoir au préalable invité les parties à présenter leurs obseivations". Cf Nouveau Code d e Procedure Civile com m enté dans l ’orde des articles, Patis, Librairíe du Journal des Notaires et des Avocats, 1980, p. 33). Sobre os Moyens (conceito muito amplo que designa não apenas motivos e fundamentos, mas os meios de convencimento em geral que comportam várias classificações, estudadas por JEAN VINCENT e SERGE GUINCHARD, op. cit., pp. 400/401) e os Moyens d ’office, foram copiosos os arestos dos Tribunais, que culminaram na revogação da citada alínea: Um tribunal não pode levantar de ofício un moyen não invocado pelas partes e sobre o quai uma delas não haja sido chamada a se manifestar; A Corte deve dar visia -i parte para que apresente suas alegações, desde que levante de ofício u>, m oyen não invocado; Um juiz francês não pode aplicar lei estrangeira por ele invocada de ofício, senão após dar vista às partes para que, em contra­ditório, se manifestem sobre sua aplicação e sua interpretação; Os juizes não podem reter, mesmo a título de informação, contra uma das partes, laudos técnicos que não tenham sido elaborados em contraditório com ela; É vedado aos juizes fundamentar suas decisões sobre uma peça produ­zida por uma parte, que não tenha sido submetida à discussão contraditó­ria. As ementas, que serviram de base à citação, podem ser encontradas no Nouveau Code de Procédure Civile et Code de Procédure Civile, soixante- treiziòme édition, Paris: Dalloz, 1981, nas notas referentes ao art. 16.

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necessárias para a instrução do processo, determinadas de ofí­cio, devem ser postas no debate do contraditório!77

Em recente obra, ADA PELLEGRINI GRINOVER faz um pro­fundo exame da garantia do contraditório na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos da América e no Brasil, salientando, quanto à participação do juiz, a observância do contraditório que alcan­ça as provas introduzidas de ofício, e o zelo pela correta garantia da integral utilização dos prazos!78

A preocupação com o rápido andamento do processo, com a superação do estigma da=morosidade da Justiça que prejudica o próprio direito de acesso ao Judiciário, porque esse direito é também o direito à resposta do Estado ao jurisdicionado, é compartilhada hoje por toda a doutrina do Direito Processual Civil. As propostas de novas categorias e de novas vias que abreviem o momento da decisão são particularmente voltadas

177 LOURIVAL VILELA VIANA, aprofundando a reflexão sobre a extensão do contraditório, levanta a questão da eventual relapsia ou inaptidão do defensor, no processo penal, e indaga se o juiz deve assistir inerte ao fato. Conclui que "no caso de omissão, não houve contraditório (que é garantia assegurada constitucionalmente), não se atendeu à defesa plena (que é também imperativo constitucional)". Cf. Defesa Penal, in Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 14, n - 1, janeiro-de- zembro, 1985, pp. 33/44, v. especialmente p. 4 l ) . A mesma solução quanto à inexistência do contraditório, no cível, aplica-se quando o juiz omite seu dever de assegurar às partes o debate sobre os elementos capazes de influir no convencimento que sustentará a decisão.

178 Cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER - Novas Tendências do Direito Processual - de acordo com a Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Forense Universi­tária, 1990, pp. 17/44. Sobre a necessidade do equilíbrio na fixação dos prazos para que seja viável sua utilização, podem ser relembradas as ponderações de LUÍS EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, de que a redução de prazos não contribui para abreviar o julgamento e é apenas causa de angústia para os advogados. Cf. Comentários ao Código de Processo Civil, 2a ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, vol. VI, arts. 485 a 495, p. 223. A questão é também posta por ALCIDES DE MENDONÇA LIMA: "não se agrava o processo por meio de prazos longos e nem se beneficiam os litigantes com prazos curtos". Cf. Introdução aos Recursos Cíveis, 2a ed., rev. e atual., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, p. 269.

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para a economia e a celeridade como predicados essenciais da decisão justa, sobretudo quando a natureza dos interesses em jogo exige que os ritos sejam simplificados.179 Contudo, a econo­mia e a celeridade do processo não são incompatíveis com as garantias das partes,180 e a garantia constitucional do contraditó­rio não permite que seja ele violado em nome do rápido anda­mento do processo.181

A decisão não se qualifica como justa apenas pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença:'

O juiz, sendo terceiro em relação aos efeitos do provimen­to, não é um "terceiro no processo", no desenvolvimento do procedimento realizado em contraditório para preparar o provi­mento, como não o é em relação ao próprio ato final do provi­mento. Não é um estranho no desenvolvimento do iter proces­sual, pois dele não pode estar ausente, em relação a ele não pode ser alheio; é necessário que esteja presente, atuante nos atos

179 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Manual das Pequenas Causas, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1986, pp. 3/8.

180 Cf. KAZUO WATANABE... (et al.) - Juizado Especial de Pequenas Causas, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985-

*181 A tendência para a celeridade é característica da época. Lembre-se, a

propósito, o instituto do "processo de adesão" que permite o pedido de reparação civil no próprio processo criminal a que o lesado é facultado a aderir e que foi objeto de recente Simpósio realizado em Sarre, na Alema­nha, conforme divulgado por JOÃO BAPTISTA VILLELA na resenha da publicação. "Wi/l, M icbael R. (Hrsg.J. Schadensersatz im Strafverfahren: Rechtsvergleichendes Symposium zum Adhásionsprozess. Kehl am Rhein: Engel, 1990". "In Síntese, Nova Fase, n~ 52, vol. XVIII janeiro-março, 1991, pp. 109/112. No Direito brasileiro as inovações certamente virão com a aplicação do art. 98, item I da Constituição da República de 1988, pela criação dos juizados especiais para a conciliação, o julgamento e a execu­ção de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumai íssimo. A grande abertura para a celeridade, entretanto, está na competência concorrente, prevista no art. 24, XI, da Constituição de 1988, que permitirá novas construções e já constitui um desafio à criatividade dos juristas.

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judiciais que visem a assegurar o desenvolvimento correto e pleno do princípio do contraditório. Fazê-lo observar significará cumprir o dever da jurisdição, para assegurar que o contraditó­rio não seja negligenciado, violado, que a participação das partes em simétrica paridade seja eficazmente garantida182. Observá-lo, ele mesmo, significará que o juiz se submete às normas do processo pelas quais os atos das partes são garantidos, que o juiz não pode se recusar ao cumprimento da norma que instituiu o direito de igual participação das partes, em simétrica paridade.

A necessidade da observância do contraditório também na execução forçada é ressaltada por SÉRGIO LA CHINA, que se preocupa em apontar as normas do Direito italiano e examinar os princípios que visam a impedir a emanação do provimento inaudita altera parte.

O princípio do contraditório, tecnicamente considerado, segundo expõe, se articula em dois tempos essenciais: inform a- zione, reazione ; a primeira, sempre necessária, e a segunda, sendo eventual, devendo ser necessariamente garantida na pos­sibilidade de sua manifestação. 183

O juiz tem o dever de informar e de garantir que a informa­ção seja dada, para que a parte, querendo, possa intervir. E quando se diz querendo, pretende-se realçar que a parte jamais poderia ser obrigada a vir praticar os atos processuais que lhe são destinados, podendo optar por suportar os eventuais ônus de sua omissão. Não se pode perder de vista que o contraditório é a garantia, a possibilidade assegurada da participação das par­tes em simétrica paridade, e uma garantia, considerada do ângu­lo do Estado, é um dever, mas do ângulo do jurisdicionado

182 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - A garantia do contraditório na atividade de instrução - in Temas de Direito Processual: terceira série, São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 65/77.

183 Cf. SÉRGIO LA CHINA, UEsecuzione Forzata e Le Disposizioni Generali d el Códice di Procedura Civile, Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 1970, pp. 391/402, v. especialmente p. 394.

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jamais pode ser identificada a uma coação, porque sempre será proteção assegurada pelo Direito.

A idéia da participação, como elemento integrante do con­traditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desen­volveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera partici­pação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo. Ò contraditório é a garantia da participação das partes, em simé­trica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas os "interessados e os contra-interessados" na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingin­do a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo impe­rativamente em seu patrimônio.

O contraditório não é o "dizer" e o "contradizer" sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no proces­so sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteú­do do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível.

O contraditório é a igualdade de oportunidade no proces- so, é a igual oportunidade^de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei.

E essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridãdê dê participação no processo. ~ ~ ’ -----

As várias espécies de processo não se regem por normas, que prevêem atos e posições subjetivas, iguais "em conteúdo e número", como diz FAZZALARI, normas qualitativa e quantitati­vamente iguais. Há processos mais extensos e processos mais sumários. Mas o contraditório será sempre o mesmo, enquanto igualdade de oportunidades, ou garantia de participação simetri­camente igual.184 "

184 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 85.

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A essência do contraditório, que é a igualdade simétrica de oportunidade dos participantes que sofrerão os efeitos do ato final, do provimento, a igualdade de oportunidade de "dizer e contradizer", não se confunde com o seu objeto, que se constitui das questões que se suscitam sobre os atos processuais. E essas questões devem ser distinguidas da qu aestio , no específico sen­tido de res dubia , que nem sempre se torna questão controversa.

O objeto do contraditório, como elucida FAZZALARI, é constituído das questões relativas aos atos processuais que com­põem a própria atividade processual. Sobre a admissibilidade desses atos, no sentido de que sejam lícitos ou devidos, vale dizer, de que os sujeitos do processo tenham a faculdade, o poder ou o dever de praticá-los, se tais atos são pertinentes ou úteis, formam-se as questões. São questões que incidem sobre os atos dos sujeitos do processo.

A qu aestio ,185 no sentido próprio de quesito, de res du­b ia ,18<5 não se identifica com as questões objeto do contraditório, porque o seu conteúdo incide sobre os requisitos legais do próprio ato, e não sobre a admissibilidade do ato (no sentido exposto, de que o referido ato constitui uma faculdade, um poder ou um dever do sujeito do processo), ou sobre sua opor­tunidade.

A quaestio, no sentido de res dubia , pode ou não compare­cer no processo como objeto do contraditório, pois nem sempre o contraditório se fixa sobre ela.

A sua solução pode resultar do exame dos requisitos legais do ato pelo próprio sujeito que dele seja titular, que faz o prévio controle dos pressupostos legais de sua existência e subsistência jurídica. E, uma vez resolvida, pode ocorrer que a qu aestio sequer seja suscitada no processo. Pode ocorrer, ainda, que ela seja levantada e que seja resolvida sem divergências. Mas, pode

185 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - A Prescrição no Processo do Trabalho, Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ltda, 1987, 2a ed., p. 55.

186 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 86.

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ocorrer a terceira hipótese, que é a da solução disputada, que é a da controvérsia sobre a solução juridicamente correta para resol­ver a res du bia . Nesse caso, em razão da disputa, da controvérsia, a qu aestio passa a ser questão controvertida, e, nesse caso, sobre ela instala-se o contraditório, como o "dizer e contradizer". FAZ­ZALARI adverte sobre a sinonímia imprópria que se estabelece entre "questão e questão controvertida", porque a questão, no sentido próprio de res dubia, não é necessariamente controver­tida. É a manifestação do contraditório em torno dela que faz

- com que o uso das duas expressões questão e questão controver­sa seja, com certa freqüência, indiferenciado, e como a questão controvertida é a mais freqüente nos processos que concreta- mente se desenvolvem, a idéia de contraditório surge impregna­da do sentido de "dizer e contradizer".187

6.5. CONDIÇÕES E RESULTADOS DA CARACTERIZAÇÃO DO CONTRADITÓRIO

O contraditório, como garantia de participação paritária, em simétrica igualdade, das pessoas a que se destina o provimen­to, no processo, supõe, naturalmente, mais de um sujeito, na fase preparatória do ato final.

A doutrina, utilizando os conceitos tradicionais, tem tido difi­culdades para caracterizar a natureza do processo penal, levantan­do até mesmo questões paradoxais, como as postas por CARNE- LUTT1, de que não é ele um processo "de partes" e de que a jurisdição é u n apotestad quepertenece a lju ez y no a lE stad o .188

Essa dificuldade desaparece com o conceito atual do con­traditório. No processo penal, os interessados no ato final são o

187 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 85/86.

188 Cf. CARNELUTTI - Derecho Procesal Civily Penal, Trad. de Santiago Sentis Meleno, Buenos Aires: Ediciories jurídicas Europa-América, 1971, vol. I, p. 70 e vol. II p. 63.

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acusado e o Estado, que atua como parte, através do Ministério Público. Entre eles o contraditório se desenvolve. As questões suscitadas em torno do argumento de que o Estado é também o autor do ato final resolvem-se pela essência do contraditório. Essa essência exige, como diz FAZZALARI, que do processo parti­cipem pelo menos dois sujeitos, um interessado e outro contra- interessado, um dos quais receberá os efeitos favoráveis e o outro os efeitos desfavoráveis do ato final. O autor do ato final pode ser um dos contraditores, mas o que o distingue, como autor do ato e como contraditor, é a sua posição, nessa qualida­de, de simétrica paridade em relação ao outro, ou aos outros contraditores!89 A dupla atividade do Estado, como parte, atra­vés do Ministério Público e como poder, que atua pelo órgão jurisdicional, não prejudica o processo se nele há a gaxantia do contraditório, e é exatamente a presença do contraditório, no processo penal, que necessariamente o caracteriza como proces­so, que faz dele um procedimento realizado em contraditório entre as partes.

Outro tema que se põe à reflexão, à luz do conceito do contraditório, é o da caracterização do processo de execução. FAZZALARI faz ressalvas quanto a ele, porque nele não vislumbrao contraditório. Entretanto, mesmo considerando-o como um procedimento sem contraditório, entende que sua estrutura le­gal é disposta para comportar um verdadeiro processo!90

No ordenamento jurídico brasileiro, não pode subsistir dú­vida de que o processo de execução é processo, em toda a extensão desse termo, e não porque haja nele manifestação do poder jurisdicional. O poder jurisdicional se manifesta em "juris­dição contenciosa" e em "jurisdição voluntária". O que torna o processo de execução um verdadeiro processo é a presença do contraditório, e este emerge de várias questões que incidem

189 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 83/84.

190 Cf. FAZZALARI, op. cit., p, 98.

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sobre a faculdade, o poder ou o dever de praticar um ato, sua oportunidade e utilidade no processo. Surge, igualmente, a res d u b ia sobre a subsistência de atos que, não raro, transformam-se em questão controvertida.

CÂNDIDO R. DINAMARCO demonstra, em outros termos, a presença da controvérsia e do contraditório na execução, quan­do, conforme diz: "O juiz é seguidamente chamado, na realidade, a proferir juízos de valor no processo de execução, seja acerca dos pressupostos processuais, condições da ação ou dos pres­supostos específicos dos diversos atos levados ou a levar a efei­to."191 Em sua exposição, fornece vários exemplos em que ques­tões são resolvidas, e ressalta que a preparação do ato final da execução é feita com a garantia do contraditório.

‘ * -. O processo é o procedimento que se desenvolve em contra- ditório entre os interessados, na fase de preparação do ato final

I e entre o ato inicial do procedimento de execução até o ato final,i aquele provimento pelo qual ela é julgada extinta, está presente

o contraditório, como possibilidade de participação simetrica­mente igual dos destinatários do ato de caráter imperativo que esgota o procedimento. E claro que o provimento, no processo de conhecimento, tem conteúdo distinto do ato final da execu­ção e é mesmo pressuposto substancial desta. Mas é também claro que o ato final da execução se caracteriza como provimen­to, porque incide imperativamente sobre a situação jurídica das partes, produzindo também efeitos sobre o seu universum ius.

Como procedimento realizado em contraditório, o proces­so caracteriza-se por ser uma atividade cuja estrutura normativa (organizada por uma forma especial de conexão das normas e dos atos por elas disciplinados) exige que, na fase que precede o provimento, o ato final de caráter imperativo, seja garantida a participação daqueles que são os destinatários de seus efeitos, em contraditório, ou seja, em simétrica igualdade de oportuni­

191 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, 2a ed., rev. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 107.

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dades, e, pelo "dizer e contradizer", que resulta da controvérsia sobre os atos, seja-lhes assegurado o exercício do mesmo contro­le sobre a atividade processual.

A caracterização do processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes não é compatível com o concei­to de processo como relação jurídica!92 Ressaltou-se, neste capí­tulo, o quanto foi possível, a idéia de contraditório como direito de participação, o conceito renovado de contraditório como garan tia de participação em simétrica paridade, o contraditório com o oportu n idade d e p a rtic ip ação , como direito, hoje revesti­do da especial proteção constitucional. O conceito de relação jurídica é o de vínculo de exigibilidade, de subordinação, de supra e infra-ordenação, de sujeição. Uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamen- te oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é liberdade assegurada. Se o contraditório é garantia de simétrica igualdade de participação no processo, como conciliá- lo com a categoria da relação jurídica? Os conceitos de garantia e de vínculo de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos. O processo como relação jurídica e como procedimento realizado em contraditório entre as partes não se encontram no mesmo quadro, e não há ponto de identificação entre eles que permita sua unificação conceituai.

192 Em sentido contrário v. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, 2~ ed., rev. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, pp. 96/103. Fundamentos do Processo Civil Moderno, 2a ed. - São Paulo.- Editora Revista dos Tribunais, 1987, pp. 64/72.

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CAPÍTULO VII

A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO

7.1. A AÇÃO: RESPOSTA DA CIÊNCIA AO PROBLEMA DE UMA ÉPOCA

O trabalho de investigação científica deve sempre relembrar que as teorias não se constroem no vazio. Elas aparecem sempre para dar, ou pelo menos para buscar, respostas adequadas aos problemas de cada época.

Não foi por acaso que a polêmica sobre a natureza jurídica do direito de ação partiria da Alemanha, e dali se desenvolveria para dar início à construção da ciência do Direito Processual Civil, que tem uma data especial — o 03 de fevereiro de 1903, um local especial — a Faculdade de Direito de Bolonha, um nome especial — GIUSEPPE CHIOVENDA, e, também, um documento especial: o texto da conferência intitulada L'azione nel sistem a dei diritti.

A polêmica entre,WINDSCHEID e MUTHER representou a contraposição de duas posturas teóricas, que a Alemanha pan- dectista, na época, comportava. O movimento pandectista revi­gorava e atualizava o Direito Romano, com base no último Direi­to das Pandectas de Justiniano, e deixou ilustres nomes na histó­

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ria que precedeu à codificação do Direito alemão: PUCHTA, BRINZ, ERNST BEKKER, REGELSBERGER, ARNDTS,' DERNBURG, nomes a que se deveu sua sistematização, GERBER e LABAND, e nomes que ficaram definitivamente inscritos nos temas gerais da Ciência do Direito, um precursor; VON SAVIGNY, o grande divul­gador BERNARD WINDSCHEID e um transformador, RUDOLF VONJHERING193.

No Direito Romano, a partir do século II a.C. antigas legis actiones, reservadas à tutela do direito subjetivo, são substituí­das pelo processo formulário, o processo p e r form ulas, em que um documento escrito "fixa o ponto litigioso” e ”se outorga ao juiz popular poder para condenar ou absolver o réu, conforme fique, ou não, provada a pretensão do autor"194. Ao lado do processo formulário, o Direito Romano conheceu o processo extraordinário', extra ordinem , a princípio reservado para ques­tões administrativas e policiais, mas estendido às questões civis, e, a partir do século III da era cristã, já utilizado amplamente em substituição ao processo formulário, pela sua celeridade e pela sua simplificação195.

Na Alemanha, adotavam-se duas terminologias para a tutela, dos direitos subjetivos, a actio (que rememorava o direito de o

193 Cf. FRANZ WIEACKER - "Storia del Diritto Privato Moderno con particola- re riguardo alia Germania", volume secondo, Traduzione italiana di Umberto Santarelli (§§ 1-19, tomo I) e Sandro - A Fusco (§ 2 0 - fine, tomo II) Milano: Giuffrè Editore, pp. 123/162. Recorde-se que WINDSCHEID foi membro da primeira comissão preparatória do BGB, de 1880 a 1883. Embora sua principal obra seja a Pandecta, de 1862, com a última edição por ele revisada de 1891, sua obra "A ação do direito romano do ponto de vista do direito civil", (L'actio del diritto romano dal ptm to di vista del diritto civile, na tradução italiana da obra de WIEACKER) de 1856, 6 considerada como o marco da fundação científica do moderno conceito de direito subjetivo. Cf. WIEACKER, op. cit., p.145.

194 Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES - Direito Romano, vol I, 4a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978, pp. 282/283, v. também para o processo formulá­rio, pp. 261/327.

195 Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, op. cit., pp. 329/350.

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particular pedir ao magistrado a fórmula em que a proteção estava condensada, e esse direito ao formulário era a actio) e a Klage, ou K lagerecbt — O direito de demanda, de querela, de queixa. A actio, que WINDSCHEID quis substituir por pretensão (Anspructí) significava o direito de se exigir de alguém uma ação ou uma omissão. A Klage não era essa pretensão, mas o direito de ter a tutela jurisdicional do Estado, assim, a actio era dirigida contra o obrigado, e a. Klage, contra o Estado196.

Compreende-se por que a discussão doutrinária durou tan­to tempo, pois, embora diferentes, as bases das duas concepções fundavam-se em um direito que os juristas alemães atualizavam para fins práticos e que encontrou aplicação até 1900, quando se completou a elaboração do BGB, para o qual WINDSCHEID contribuiu oficialmente, integrando a primeira comissão que se dedicara ao projeto.

Um segundo ponto que deve ser ressaltado é o de que o Direito Processual Civil não se desenvolveu à margem dos pró­prios sistemas jurídicos positivos, e sim como parte deles, e, por isso, quando se compara, por exemplo, o direito de ação, no Brasil, de 1891 a 1934, de 1934 a 1937, de 1937 a 1946, de 1946 a 1967, de 1967 a 1969, de 1969 a 1988 e o direito de ação no Brasil a partir de 05 de outubro de 1988, é claro que haveria diferença sobre o que poderia ser dito sobre ele197. A análise de

196 Cf. GIUSEPPE CHIOVENDA - Saggi di Diritto Processuale Civile (1900- 1930) Nuova Edizione Considerevolmente Aumentata dei 'Saggi’ e dei 'Nuovi Saggi’, volume prim o, Roma: Società Editrice - Foro Italiano, 1930, pp. 3/99- Para uma conexão entre o plano histórico e a teoria do Direito v. WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA, Introdução ao Direito (Filosofia, História e Ciência do Direito), vol. II, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1968, pp. 902/903; ENRIQUE AFTALIÓN, FERNANDO GARCIA OLANO e JOSÉ VILANOVA t- Introducción al Derecho, Buenos Aires: La Ley, 1967, 8a ed., pp.759/762.

197 O "direito de ação" foi incluído entre os direitos constitucionalmente garantidos, no Brasil, na Constituição de 18 de setembro de 1946, art. 141, § 4°: "A Lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual". Nesses mesmos termos, foi acolhido no art. 150, § 4~ da Constituição de 24 de janeiro de 1967. Na Emenda Constitu-

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doutrinas históricas deve comportar, portanto, a relatividade histórica, caso contrário corre-se o risco de se ser absolutamente impertinente nas possíveis conclusões que delas se tente extrair, com a certeza de se ser extremamente injusto com os grandes passos dados na obra comum de construção do conhecimento.

As teorias sobre o direito de ação fizeram dela o centro de interesse do Direito Processual Civil. Talvez seja o tema mais discutido nesse ramo do Direito, e, com apoio em CELSO BARBI, pode-se afirmar que "o conceito de ação talvez seja o mais polê­mico entre todos os do Direito Processual"198.

A importância histórica que o conceito de ação teve no desenvolvimento da investigação e da construção científica do Direito'Processual Civil certamente justificou esse imensurável interesse por ele. O lugar ocupado pelo direito de ação, conside-

cional n2 1 de 17 de outubro de 1969, a redação sofreu alterações, no art. 153, § 4~: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido". Na Constituição 05 de outubro de 1988, foi expresso em fórmula lapidar, de extrema felicidade; art. 5~, item XXXV: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Nas Constituições anteriores, não há dispositivo análogo, nas declarações de direitos. A de 1937, no art. 122, item 7, inclui entre os direitos e garantias individuais, em fórmula genérica, "o direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral". A Constituição de 1934 prevê, no art. 113, item 10, da declaração de direitos, o direito de representação garantido "a quem quer que seja". A Constituição de 1891, nos direitos declarados no art. 72, não contém disposição análoga. A Constituição de 1824, no art. 179, item XXX, dispõe sobre o direito de representação e petição, perante o Poder Legisla­tivo e Executivo, e embora contenha disposições da maior atualidade sobre o Poder Judiciário (art. 179, XII) não se refere ao direito de ação em geral. Há, sim, nessas Constituições, as garantias criminais, que, aliás, juntamente com os direitos políticos e as liberdades individuais, foram as primeiras que compareceram nas Declarações de Direito que tiveram repercussão universal (a mais importante delas, historicamente, a de 1789, na França).

198 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI - Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nc 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 16.

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rado, ao lado da jurisdição e do processo, como elemento funda­mental na estrutura científica do Direito Processual Civil199, é, ainda, tão destacado como o foi (embora não se tenha certeza de que o verbo possa ser usado corretamente no passado) o do direito subjetivo, no Direito Civil.

As teorias sobre o direito de ação, construídas sobre o conceito de relação jurídica, não podiam deixar de vislumbrá-lo como um direito subjetivo. E sobre a espécie de direito subjetivo que seria, no amplo quadro da classificação que cresceu à medi­da que o tema se desenvolvia, formularam-se as propostas dou­trinárias. A partir da polêmica entre WINDSCHEID e MUTHER, com seus desdobramentos, surgia a concepção de ação como um direito subjetivo público oponível ao Estado, que assumia o dever, no pólo passivo de uma relação jurídica, de prestar a tutela jurídica, e a conquista da noção de "prestação" jurisdicio­nal se fez básica em vários conceitos, que encerram variações sobre o direito concreto ou abstrato correlato dessa "prestação". CHIOVENDA sempre merecerá destaque especial na história do Direito Processual Civil; com ele, firmou-se a concepção do direi­to de ação como direito subjetivo de natureza potestativa e do processo como relação jurídica e como instrumento de atuação da lei200.

À importância que CHIOVENDA teve no desenvolvimento do Direito Processual Civil pode-se comparar a importância que teve ENRICO TULLIO LIEBMAN, no desenvolvimento do Direito Processual Civil no Brasil. O realce que lhe é devido não se liga apenas a seu magistério na Universidade de São Paulo, que seus discípulos lembram com justo orgulho e especial veneração201

199 Cf. J. RAMIRO PODETTI - Teoria e Técnica del Processo civil Y Trilogia Estructural de la Ciência del Processo Civil, Buenos Aires: EDIAR - Soc. Anón. Editores, 1963, pp. 335/415.

200 Cf. CHIOVENDA. Saggi di Diritto Processitale Civile, op. cit., pp. 18/26, 227/238.

201 Cf. ENRICO TULLIO LIEBMAN, Manual de Direito Processual Civil, I, Tra­dução e notas de CÂNDIDO R. DINAMARCO, Rio de Janeiro: Forense,

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pela figura do Mestre, mediante o qual influenciou profunda­mente a formação de brilhantes processualistas, mas também às possíveis marcas de várias de suas teses no próprio Direito posi­tivo, através do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, que traz a chancela do Congresso Nacional, sob a exposição de moti­vos de um de seus discípulos, o Ministro da Justiça ALFREDO BUZAID.

LIEBMAN distingue o "poder de agir em juízo", "garantia constitucionalmente instituída", "reflexo ex p arte subiecti da ins­tituição dos tribunais pelo Estado", do direito de ação, "direito subjetivo sobre o qual está construído todo o sistema do proces­so", delineado no art. 24 da Constituição italiana, e caracterizado na norma infra-constitucional. Do art. 24 da Constituição italia­na, extrai a "legitimação para agir”, referindo-o à atribuição da tutela dos própVios direitos e interesses legítimos, e o "interesse de agir". "Como", segundo diz, "o direito de agir é concedido para a tutela de um direito ou interesse legítimo, é claro que existe apenas quando há necessidade dessa tutela, ou seja, quan­do o direito ou o interesse legítimo não foi satisfeito como era devido, ou quando foi contestado, reduzido à incerteza ou grave­mente ameaçado202. Nos termos do art. 24 da Constituição (ita­liana), dentre os que podem propor uma demanda encontram-se os "que são titulares de um verdadeiro direito que, com referên­cia a uma situação determinada e concreta, visam a obter um

1984, v. "Palavras do Tradutor". V. CÂNDIDO R. DINAMARCO: "A Formação do Moderno Processo Civil Brasileiro (Uma Homenagem a Enrico Tullio Liebman)", conferência proferida quando LIEBMAN recebeu a Comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul in Fundamentos do Processo Civil Moderno, 2~ ed., São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1987, pp.1/11. V. ainda ADA PELLEGRINI GRINOVER — "O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil", publicado originalmente na Rivista di diritto processuale, 1986, v.4, por ocasião do falecimento de Liebman, in Novas Tendências do Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, pp. 439/442.

202 Cf. LIEBMAN, op. cit., p. 150.

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pronunciamento sobre essa demanda, para que ela seja julgada procedente ou improcedente, sendo com isso negada ou conce­dida a tutela pedida. Esse direito é precisamente a ação, que tem por garantia constitucional o genérico poder de agir, mas em si mesma nada tem de genérico: ao contrário "guarda relação com uma situação concreta, decorrente de uma alegada lesão a direi­to ou interesse legítimo do seu titular(...)203".

A existência da ação, em LIEBMAN, tem como requisitos duas condições: o interesse de agir e a legitimação, e esses requisitos de existência são dados na norma processual204.

. O fato de que LIEBMAN haja admitido que o provimento pode não ser favorável à pretensão do autor não é significativo, pois lesão e ameaça a direitos se provam no processo, e o con­teúdo da decisão final depende, e muito, do que está nos autos. Entre a alegação de uma lesão de direito substancial e o conteú­do de uma sentença há uma relação inegável, mas entre eles h á, também, inegavelmente, todo um desdobrar de atos processuais que preparam as condições do advento da sentença, e também as condições materiais para a formação de seu conteúdo.

Significativa, na verdade, é a cisão feita por LIEBMAN entre "o direito de agir em juízo" e "o direito de ação” delineado no art. 24 da Constituição italiana, tendo sua existência caracterizada na norma infra-constitucional em relação à situação jurídica concre­ta: a ação separada do poder de agir, o corte entre o genérico poder de agir como garantia constitucional e o direito de ação, a "ação como direito ao processo e ao julgamento do mérito"205.

O art. 24 da Constituição italiana, que reserva o direito de agir em juízo para a "tutela dos próprios direitos e interesses legítimos"206 não teve paralelo fiel nas Constituições brasileiras.

203 Cf. LIEBMAN, op. cit., pp.150/151.

204 Cf. LIEBMAN, op. cit., pp. 153/159-

205 Cf. LIEBMAN, op. cit., p.151.

206 Cf. LIEBMAN, op. cit., p. 150.

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Ressalte-se que, embora não haja interesse em se acompa­nhar a evolução constitucional do direito de ação, mesmo por­que isso exigiria um longo desvio do tema central desse trabalho, não se pode deixar de pôr em evidência a premissa de que partia LIEBMAN, por ele próprio explicitada, quando separou o "poder de agir em juízo" e o "direito de ação", no plano constitucional e no do direito infra-constitucional nele alicerçado.

As dificuldades dessa construção, que em LIEBMAN se vin­culam ao problema das doutrinas erigidas sobre a ação, são também enfrentadas por "FAZZALARI, que adota um esquema conceituai distinto, em que repudia o processo como relação jurídica e reelabora o conceito de "direito de ação". E chega a elas, precisamente, quando, discorrendo sobre as medidas juris­dicionais e o provimento, adverte que nem todo processo juris­dicional se desenvolve por inteiro, e seu primeiro exemplo é o da hipótese em que há recusa do provimento207. O tema fica ainda mais claro quando, examinando os pressupostos processuais, FAZZALARI demonstra que "nei processi d i cognizione, i l giudi- ce, p r im a d e emettere, e p e r emettere, il com an do in che la sen tenza consiste, accerta, in epilogo d e l processo, la sus- sistenza d e l dovere, d e l diritto, d elia lesione; si d i contro, g liene risulti la insussistenza, egli non p o trà em ettere la sentenza e dovrà rigettare la dom ando !'208.

A asserfiva de FAZZALARI é compreensível, assim como era a de LIEBMAN, diante do art. 24 da Constituição Italiana, de 1947:

"Tutti posson o agire in g iudizio p e r la tutela dei propri diritti e interessi legittimi.

La d ifesa è diritto inviolabile in ogni stato e grad o d e l procedim ento.

207 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 99.

208 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 259-

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Sono assicurati a i non abbienti, con appositi istituti, i mezzi p e r agire e difendersi davanti a d ogni giurisdizione.

La legge determ ina le condizioni e i m od ip er la riparazione degli errori giudiziari"209.

Há sensível diferença entre o texto da Constituição italiana e o texto da Constituição brasileira. Por este, é logicamente possível afirmar-se que o ato final do processo que seja uma decisão desfa­vorável ao autor-recusa o provimento do pedido formulado sobre o direito substancial, mas não o pedido da apreciação da lesão ou ameaça a direito. Mesmo ocorrendo a hipótese em que não fique acertada a existência do ilícito, se não há causa que impeça o julgamento do mérito, a sentença desfavorável é emitida e o proces­so, no sistema brasileiro, terá se realizado por inteiro.

Quando se sentem as insuficiências das doutrinas sobre o direito de ação, talvez se esteja sentindo também a insuficiência da apreensão da ordem jurídica vigente no contexto em que foram formuladas. Não foi gratuitamente que os autores alemães puderam fazer oposição a WINDSCHEID, mas, ao contrário, ti­nham eles todo o suporte do Klagerecht.

CELSO BARBI anota sobre o direito de ação que "nenhuma das teorias até hoje construídas está isenta de críticas ir­respondíveis"210. A confirmação da assertiva está ria quase gene­ralidade das obras de Processo Civil.

Não se pretende repassar essas críticas, mas em relação ao Código de Processo Civil brasileiro, de 1973, pelo menos duas considerações devem ser feitas, em torno da concepção do direi­to de ação nele acolhida, e que já se fez objeto de polêmica.

209 Cf. O texto utilizado é da Costituzione, que integra a compilação Códice Civile e di Procedura Civile e Leggi Complementari, a cura di F. CARNE- LUTTI, W. BIGIAVI, A. CALTABIANO, Edizione Aggiornata al 10 giugno 1980, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. A Milani, 1980.

210 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI, op. cit., p. 20.

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As condições fixadas pelo art. 3a do Código "Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade" — "interesse" e "legitimidade" — são condições que só poderiam ser apreciadas após a instalação do processo, e assim só podem se tornar questões intraprocessuais. A instauração do processo não depende delas, e nem mesmo podem elas existir antes do processo.

O art. 267, item VI, permite a extinção do processo sem julgamento do mérito "quando não concorrer qualquer das con­dições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual".

Pelo confronto desse artigo com os arts. 890 a 900, 901 a 906, 914, 920 a 940, CELSO BARBI entende haver uma possível contradição na linha do Código, que parecia haver adotado a tese de LIEBMAN, e após parece se adaptar à concepção de CHIOVENDA211. Mas, haverá mesmo tal adoção da tese de LIEB- MAN ou de CHIOVENDA nessas disposições?

O Código do Processo Civil entrou em vigor sob a égide da Emenda Constitucional n2 1, de 17 de outubro de 1969, que na primeira parte do § 4-, do art. 153, dispunha: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual".

O direito de submeter o ilícito, porque lesão a direito é ilícito, à apreciação do Judiciário não se condicionou aos direi­tos substanciais212.

Quando o item VI, do art. 267, do Código de Processo Civil, fala em condições da ação, fala, conseqüentemente, em condi­

211 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI, op. cit., p. 20.

212 Sobre as dificuldades que decorrem do condicionamento do direito de ação à existência do direito subjetivo, que levam à solução de que "não tem ação quem não tem razão", cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI - Ação Declaratória Principal e Incidente, 6 - ed. rev., aumentada e atual., de acordo com o Código de Processo Civil de 1973 e legislação posterior, Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 60/65.

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ções que, como se disse, só podem ser verificadas dentro do processo.

Os procedimentos especiais dos arts. 914, 926, 934, reservam determinadas ações a quem detém uma qualidade jurídica específi­ca, um status decorrente de uma determinada situação jurídica. Assim, também, os artigos que tratam da ação de consignação em pagamento, da ação de depósito e das ações possessórias. Pelas disposições desses artigos não se pode pré-definir a sentença, ou seja, não há qualquer possibilidade de se afirmar de antemão que a sentença será favorável ou desfavorável ao autor. A sentença deverá ser preparada pelos atos do processo, e enquanto esses não se cumprem, não se pode antecipar seu conteúdo.

Não parece, portanto, que possa ser evidenciada a marca de LIEBMAN ou de CHIOVENDA em tais disposições, ou que se possa, por elas, extrair contradições do Código.

Talvez haja chegado o tempo de se tentar visualizar o direi­to de ação sob outros prismas, que permitam uma maior aproxi­mação das novas conquistas da teoria do Direito e da realidade do sistema jurídico, que tem a sua unidade e o seu fundamento no sistema constitucional.

7.2. A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO

O px incípio nem o ju d ex sine actore, que é um princípio da própria jurisdição, disciplinada de forma que o Estado responda ao pedido para fazer cessar o ilícito, para promover a reparação dos direitos lesados e prevenir a lesão de direitos ameaçados, aplicando as medidas jurisdicionais previstas no ordenamento jurídico, exige a iniciativa do sujeito que almeja a tutela jurisdí- cional.

Sobre a natureza do ato inaugural do processo denominado pela doutrina direito d e a ç ã o , travaram-se debates pelo decurso deste século. O direito de ação encontrou, entretanto, o seu momento de revisão em uma reelaboração conceituai mais ajus­

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tada aos progressos verificados no quadro dos conceitos gerais do Direito.

Lembrando a preleção de CHIOVENDA, L 'azione n el siste­m a d e i diritti, de 1903, o estudo de LIEBMAN L ’azion e nella teoria d e l processo civile, de 1950, e outros clássicos, FAZZALARI registra que a relatividade do conceito de ação já se encontra em CALAMANDREI, La relatività d e l concetto d i azionne, de 1939, em ORESTANO, Azione in generale, verbete da E nciclopédia d e l diritto, de 1959, e prevê a aproximação da época em que se reconheça não apenas a historicidade das doutrinas, mas a pró­pria historicidade do problema da ação e da ciência jurídica que o formulou213.

FAZZALARI faz a revisão do conceito de ação tomando co­mo critério a legitimação para agir, que não pode ser concebida como atribuída apenas ao autor, mas se estende a todos os sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para agir não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos.

Entretanto, a legitimação para agir, trabalhada pelo Direito Processual Civil, é espécie do gênero legitimação, que é um conceito geral do Direito, e é por esta base que desenvolve o argumento, no qual procede ao reexame da ação.

A legitimação em gênero é contemplada por FAZZALARI sob um duplo aspecto: o da "situação legitimante" e o da "situação legitimada": "Chiamiamo situazione legittimante ilp u n to d i ag- g an cio d e lia legittim azione a d agire, fu o r d i m etafora d a situa­zion e in base a lia quale si determ ina quaVè il soggeto che, in

213 Cf. FAZZALARI - "Di recente, ORESTANO ha, anzi, aperto l ’affascinante prospettiva di liconoscere, non solo e non tanto la storicità delle varie costruzioni proposte, ma anche la storicità dello stesso problem a d e li’azione e delia scienza giuridica che lo ha posto". Cf. op. cit., p.403- Para FAZZALARI, o "conceito de ação" ainda é útil ("ancora utile, ma da elaborare e collocare al suo posto"), enquanto que a idéia de "relação jurídica processual" deve ser de todo repudiada ("... ormai da ripudiare d el tutto'"). Cf. op. cit., p. 99-

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concreto, p u ò e deve com piere un certo atto, e situazione legitti- mata i l potere, a la fa co ltà , o il devere — o una serie d ei m edesim i-che, d i conseguenza, viene a spettare a l soggeto indi- viduato, v a i dire il contenuto d e lia legittimazione, ciò in cui essa consiste"214.

Não é demais recordar que, na evolução do conceito de situação jurídica, a situação jurídica abstrata, de BONNECASE, foi superada e que a situação jurídica, seja objetiva ou subjetiva, para se constituir, dependerá sempre do cumprimento ou da ocorrência de um ato jurídico ou de um fato jurídico.

A situaçãòlegitimante é uma situação constituída, perante a qual um poder, uma faculdade ou um dever são conferidos ao sujeito, e, conforme considerada por FAZZALARI, permite a indi­cação de quem pode atuar como sujeito em um processo concre- tamente considerado, quem deterá a legitimação para agir em um dado processo215.

Tem-se argumentado que a legitimatio... sustenta-se na per­sonalidade, o "atributo", ou em linguagem mais técnica, a quali­dade pela qual se adquire o status de sujeito, a titularidade de direitos e deveres. Esse argumento é, contudo, absolutamente impróprio e insuficiente, pois a legitimação se dá sempre para determinado processo, para a participação em uma série de

214 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 289-

215 CÂNDIDO R. DINAMARCO utiliza a categoria de situação jurídica para caracterizar a "qualidade de parte", mas em linha diversa da de FAZZALARI, porque insere-a na categoria da relação jurídica processual: "Consiste esta, com o se vê, na titularidade das situações jurídicas ativas e passivas que compõem a relação jurídica processual (faculdades, poderes, deveres, ônus, sujeição). Cf. Litisconsórcio (um estudo sobre o litisconsórcio co ­mum, unitário, necessário, facultativo): doutrina e jurisprudência - 2a ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1986, p.7. Bem cairia, aqui, a afirma­ção que FAZZALARI faz a respeito de CAIANIELLO que, embora aderindo à nova concepção, continua a impiegare anche il vecchio chichè del rappor- to processuale logo senza adesione convinta". (Cf. op. cit., p. 99, rodapé 15).

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atividades preparatórias de um determinado provimento, e de uma determinada medida jurisdicional.

O critério para a determinação da legitimação para agir, no processo jurisdicional civil (podendo ser estendido a qualquer processo), é referido por FAZZALARI ao provimento, e, em con- , seqüência, à medida jurisdicional dele emanada. O provimento será o ponto referencial para que, com base na situação legiti- mante, se identifique quem é o sujeito, dentre os protagonistas \ do processo — as partes, (autor, réu, intervenientes), o juiz, seus j auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exigir —, q u e; pode ou deve cumprir um determinado ato processual.

Em relação às partes, os efeitos do provimento determinam i a legitimação para agir porque esses efeitos incidirão no patri-1 mônio (universum ius) dos sujeitos que dele são os destinatá- > rios, e o princípio do contraditório exige216 que aqueles que sofrerão tais efeitos tenham a oportunidade de participar da fase de sua formação. Por isso, diz FAZZALARI, enquanto são legiti­mados passivos (perante o provimento), tais sujeitos são legiti­mados a "dizer e contradizer", são "legitimados ao processo"217.

Anote-se que a própria concepção de parte já tem seu ponto 't focal de definição deslocado do pedido (parte não é mais apenas "aquele que pede...") para o destinatário do provimento, e, por isso, é sujeito do processo, com a garantia de participação nos atos que o preparam218. 1

216 Exigência hoje posta em princípio constitucional no ordenamento jurídico brasileiro - Constituição da República, art. 5~, LIV e LV.

217 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 289-

218 Sobre a correlação do conceito de parte com o provimento já se lê em PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA: "O conceito definitivo, preciso, de parte só nô-lo pode dar a sentença como ato final e de decisão do proces­so. Pode-se conceituar a Parte, no processo, todo aquele que, neces­sariamente, como destinatário ou como legitimado, compõe o pólo pas­sivo da sentença". Cf. As partes no Processo Civil in Revista Brasileira de Direito Processual, Uberaba (MG), vol. 12, 4~ trim. 1977, pp.109/121, especialmente p. 117.

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A situação legitimante da parte é constituída por dois ele­mentos logicamente encadeados: o da medida jurisdicional re­querida, e o dos sujeitos que serão por ela alcançados, que sofrerão seus efeitos. São eles que permitem a individualização de quem pode estar em juízo para participar do processo que se desenvolve em contraditório.

Quanto à medida jurisdicional, seu estudo só pode ter por base o Direito positivo, pois cada sistema jurídico especifica aquelas que nele são possíveis, e cada espécie de processo con­templa suas medidas. No processo jurisdicional civil, a medida jurisdicional que resulta da sentença condenatória pode se cons­tituir, por exemplo, em um ato de eventual execução forçada que incidirá no patrimônio das partes, beneficiando o autor e atin­gindo desfavoravelmente a esfera patrimonial do devedor ina­dimplente, em um ato de execução forçada que incidirá direta­mente sobre a disponibilidade física de um bem, e um ato que impõe a uma das partes um determinado comportamento como conteúdo de uma conduta. Pode-se, também, transferir os exem­plos para o processo jurisdicional trabalhista, em que as repara­ções de direitos lesados comportam as medidas indenizatórias, a imissão na posse, a reintegração do empregado no serviço, a assinatura de uma Carteira de Trabalho. Em qualquer das hipóte­ses, o patrimônio das partes, como universum ius, é alcançado pelo provimento que, sendo favorável ao autor, impõe a medida jurisdicional requerida.

Em caso de um provimento desfavorável ao autor, obvia­mente a medida por ele requerida não será imposta, mas o provimento, como ato final, de caráter imperativo, de qualquer modo alcança a esfera patrimonial das partes, acertando que, se não ocorreu a lesão, o universum ius não pode sofrer perturba­ção.

Na análise feita por FAZZALARI, no caso concreto, pode ocorrer que o processo, ao invés de se concluir por um provi­mento, termine com um pronunciamento "de recusa", ou que a seqüência de atos fique a meio caminho porque a parte renuncia

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a seu prosseguimento (dentro das hipóteses permitidas na lei), ou porque o juiz se declara incompetente. A autonomia do processo se constata pelo seu resultado: o processo se desenvol­ve embora não chegue à medida jurisdicional, mas se desenvol­ve, mesmo para estabelecer se a medida jurisdicional deve ser, no caso concreto, emitida ou recusada219.

Quanto às partes, perante a situação legitimante, que permi­te a indicação de quem pode estar em juízo, para, em determina­do processo, participar, em contraditório, da formação do provi­mento, através da participação no iter procedimental, deve ser considerado que, além do autor e do réu, há os litisconsortes, e os intervenientes220. E, como parte é aquele a quem se destinam os efeitos do provimento, aquele que suportará ou se beneficiará de tais efeitos em seu universum ius, é oportuno que se façam duas considerações em torno do Direito brasileiro, sobre a ques­tão da legitimação: a primeira, sobre a questão do revel, no Código de Processo Civil, de 1973, em conexão com a Constitui­ção da República de 05 de outubro de 1988, e, a segunda, sobre a "legitimação extraordinária", que começa a assumir uma impor­tância crescente, não porque constitua inovação, mas pelos efei­tos sociais de medidas jurisdicionais em processos recentemente regulados.

O art. 322 do Código de Processo Civil, de 1973, — "Contra o revel correrão os prazos independentemente de intimação. Poderá ele, entretanto, intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontra" — deve ser conside­rado revogado, porque se o contraditório era, anteriormente, apenas um principio processual no Direito Processual Civil bra­sileiro, pela Constituição de 1988 foi elevado a princípio consti­tucional (art. 5°, LV da Constituição)221.

219 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 97 e s.

220 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - Da Denunciação da Lide, Rio de Janei­ro: Ed. Forense, 2a ed., 1987.

221 Ressalte-se que o sistema jurídico brasileiro, nesse ponto, superou os

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Pelo princípio da hierarquia das leis, o art. 322 do Código de Processo Civil perde a eficácia, pois contraria o princípio constitucional do contraditório. É possível que o réu não compa­reça para se defender por uma infinidade de motivos diversifica­dos, que absolutamente não interferem em seu direito de partici­par da formação do provimento. Contudo, constitui enorme incongruência afirmar-se que ele poderá intervir em qualquer fase em que o processo se encontre, se se afirma, também e conjuntamente, que os prazos correm para ele, independente­mente de intimação. Sem se entrar na- questão “das regras da contagem do prazo, já se percebe que seria verdadeiramente incompreensível a garantia de participação ao revel, em fases posteriores àquela em que se caracterizou o efeito da revelia, se não é ele cientificado dos atos que lhe permitam a participação. O art. 322 do Código de Processo Civil contraria o princípio do contraditório e é incompatível com a norma constitucional, pelo que só pode se considerar revogado.

Quanto à "legitimação extraordinária", é necessário considerar que a legitimação para agir, enquanto posição subjetiva decorrente da situação legitimante, da qualidade para ser parte, pode ser objeto de disciplina legal que, em "caráter extraordinário", destina os efeitos do provimento a sujeitos que não participaram do processo. Mas a "legitimação extraordinária" constitui exceção ao princípio do contraditório, que exige que participem do iter que leva à formação do provimento aqueles que são seus destinatários, e, como se configura em exceção, só pode resultar da lei222.

sistemas que vinham dando tratamento mais avançado ao contraditório, transformando-o em norma de Direito positivo, como o Código de Proces­so da França, que, no art. 16, expressamente estipula que o juiz deve, ele mesmo, observar e fazer observar o contraditório.

222 FAZZALARI alerta para a distinção entre legittimazione straordinaria e substituição processual — cf. op. cit. pp. 317/320. A propósito da subs­tituição processual no Direito brasileiro, v. HÉLIO TORNAGHI - Comen­tários ao Código de Processo Civil, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, vol. I, pp. 98/101, 1974.

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É interessante ressaltar que FAZZAIARI, tratando a questão do ponto de vista do Direito italiano, faz ressalvas quanto à via da Justiça civil, para a proteção dos interesses coletivos ou difusos. Não se pode esquecer que o art. 24 da Constituição italiana, já mencionado anteriormente, em sua primeira parte, reserva a legitimação para agir em juízo a todos, "para a tutela de seus direitos e interesses legítimos". A Constituição brasileira é visivel­mente mais ampla, no item XXXV do art. 52, como já se exami­nou, também, anteriormente. Por ele, não se poderá "excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Os direitos lesados ou ameaçados, objeto da proteção jurisdicional, não são, a partir de 05 de outubro de 1988, apenas os direitos individuais, e não apenas para direitos próprios se pode postular a proteção jurisdicional.

Perante 1 norma constitucional, encontram, assim, explica­ção lógica, as disposições do art. 103, itens I, II e III, §§ l 2 a 42, da Lei n2 8.078, de 11 de setembro de 1990. Tais disposições não importam em alteração do conceito de coisa julgada223, mas em uma nova visão do conceito de parte, como aquele ou aqueles que devem receber os efeitos do provimento ou da medida jurisdicional por ele imposta. E evidente que a legitimação pre­vista nos arts. 81 e 82, da referida lei, importa em representação, quando os efeitos da sentença são destinados a se produzirem no patrimônio dos representados.

A propósito, pode-se entender, também, logicamente, pelo

223 Cf. A respeito dos efeitos da sentença, disciplinados no Código de Defesa do Consumidor, começam a despontar na doutrina brasileira construções jurídicas sobre outros fundamentos. V. ADA PELLEGRINI GRINOVER — "Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor” in Livro de Estudos Jurídicos, n2 1, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 2~ ed., 1991, pp. 381/406; PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO — A Coisa Julgada nas Ações Coletivas, in Livro de Estudos Jurídicos, n2 1, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 2~ ed., 1991, pp. 199/207; ADA PELLEGRINI GRINOVER — A Class Actíon Brasileira, in Livro de Estudos Jurídicos, vol. 2, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1991, pp. 22/28.

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novo prisma em que se considera a legitimação para agir e a situação legitimante de que decorre a qualificação jurídica de "parte", a disposição do art. 13 do Código de Processo Civil brasileiro, em sua exata extensão, quando contempla a incapaci­dade "processual", além da irregularidade da representação.

As questões relacionadas com a ilegitimidade da parte, tam­bém, como já se antecipou, são questões do processo, questões que se suscitam, e que constituem o objeto do contraditório, no iter processual. Sobre a ilegitimidade, diversas questões podem ocorrer desde a questão que pode incidir sobre a oportunidade do ato (a alegação da ilegitimidade), até a da preclusão, que se pode constituir em simples questão objeto do contraditório, ou em res du b ia que se converte em questão controvertida.

Recuperando a exposição de FAZZALARI, deve-se, ainda, registrar, perante a situação legitimante, a legitimação do juiz, e, em conseqüência, a de seus auxiliares. Esta se extrai, também, pelo critério do provimento requerido. O juiz deve controlar se pode ser sujeito do processo, se pode desenvolver suas funções de dirigir o iter que conduz ao ato final, ou seja, se pode cumprir o ato de emanar o provimento, com a medida jurisdicional requerida, verificando se ele se inclui, ou não, dentro de sua jurisdição. O exame, a partir do provimento, deve dar relevo, também, ao princípio inerente à jurisdição que exige que o juiz, sendo autor do provimento, seja terceiro, em relação aos efeitos que este irá produzir no universum ius das partes224. E claro que a parcialidade ou a imparcialidade jamais poderá ser totalmente controlada pela lei, mas a lei estabelece as condições objetivas para que a imparcialidade possa ser esperada.

Como a situação legitimante fornece os critérios para se identificar os sujeitos do processo, concretamente considerado, pode-se compreender, logicamente, por que FAZZALARI repele, por absolutamente imprópria, a afirmação de que o autor se reveste da legitimação ativa e o réu da legitimação passiva, pois a

224 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 295/297.

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legitimação para agir é de todos os protagonistas do processo e é "sempre ativa". Somente em relação ao provimento pode-se falar em legitimação passiva daqueles a quem vem imposto225.

A par da situação legitimante, há a "situação legitimada", como desdobramento da legitimação, na construção doutrinária de FAZZALARI.

Enquanto a situação legitimante é contemplada como aque­la em presença da qual um poder, uma faculdade ou um dever são conferidos ao sujeito, a situação legitimada consiste em uma série de poderes, faculdades, deveres, que se põem como expec­tativa para cada um dos sujeitos do processo220.

A legitimação para agir de cada um dos sujeitos do processo tem como conteúdo uma série de atos, poderes, faculdades, deveres. "Tale serie d i a tti costituisce, in fatti, il contenuto d e lia d i lu i legittimazione ad agire, la situazione legittimata d i ciascu- no"22].

É sobre a situação legitimada que será formulada a nova concepção sobre a "ação".

O conceito de processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes permite que se deduza que os atos dos sujeitos do processo, das partes, do juiz e dos auxiliares, são mutuamente implicados, o que decorre da própria estrutura do procedimento e da essência do contraditório.

Da situação legitimante dos sujeitos decorre uma série de atos que, na ordem do processo, a lei processual impõe ou permite a cada participante, e tais atos podem ser vistos do ângulo da posição subjetiva de cada um, quando referidos à lei que os valora, como poderes, deveres, faculdades. Dessa série de poderes, faculdades e deveres, para o autor e para o réu, e para

225 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 300.

226 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 402 (v. nota de rodapé n~ 7 nessa referida página).

227 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 402.

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os intervenientes se delineia, então, uma "posição subjetiva com­posta". Mas, para o juiz, como afirma FAZZALARI, si configura u n ’a ltretta lep osiz ion e, consistente nella serie d ei d i lu i dove- re228.

Conclui, assim, que: La p osiz ion e com posita che f a capo a lia p a r te costitu isce Vazione; qu ella che f a capo a l g iu dice (o a d un suo au siliare) costitu isce la fu n zion e229.

A construção é admiravelmente lógica e coerente. Para se perceber o seu alcance é necessário recordar-se que a situação

. legitimada, em FAZZALARI, corresponde à situação jurídica sub­jetiva, ou posição subjetiva, extraída da específica posição em que se coloca o sujeito efri frente da norma, conceito geral do Direito, aplicável à categoria de situação jurídica. É pela posição subjetiva que o sujeito comparece como titular de um poder, uma faculdade ou um dever. Os atos que são o conteúdo da situação jurídica subjetiva não são atos isolados no processo, mas constituem uma série, e se entrelaçam como pressupostos da incidência de normas que disciplinam outros atos, até o ato final do provimento, na estrutura do processo.

Ressalte-se, mais uma vez, dada a importância do tema, na doutrina de FAZZALARI, que os poderes, faculdades e deveres das partes não resultam de "relações jurídicas", mas constituem os atos lícitos ou devidos que podem ser cumpridos no processo— os poderes como atos que importam na declaração da vonta­de, e as faculdades trazendo implícita a vontade como consciente determinação para o ato. Os poderes, faculdades e deveres das partes não lhes podem ser exigidos. Se a parte preferir não cumprir tais atos pode optar por sofrer as eventuais conseqüên­cias desfavoráveis que poderão resultar do não cumprimento. Quanto ao juiz, seus atos não são valorados como poderes ou faculdades, porque não lhe é dado deixar de cumpri-los. O juiz

228 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 402/403.

229 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 403.

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não pode, como seus auxiliares não o podem, transformar deve­res em ônus, preferindo suportar as conseqüências desfavorá­veis, como é dado à parte. Ele tem o dever de cumprir os deveres da jurisdição. E os deveres da jurisdição exigem que ele haja dentro do processo, que decida nos limites do pedido, nos limites do processo, e nos limites do Direito.

A construção de FAZZALARI sobre a ação, baseada em toda a estrutura do processo como procedimento realizado em con­traditório, supera as doutrinas clássicas, com suas dificuldades não resolvidas230, da ação como um "direito potestativo" que, na concepção tradicional de direito subjetivo, esgota-se no cumpri­mento de um único ato, e, além disto, nessa perspectiva, compa­rece como "direito sobre a conduta alheia", concepção de há muito superada. A alternativa encontrada pela doutrina, de con­ferir caráter "põlítico" ao conceito de ação, não resolvia o proble­ma, senão alijando-o do Direito, ou seja, o problema não era resolvido, mas excluído da cogitação jurídica.

230 É fácil perceber a razão pela qual pouco se falou neste tópico (7.2. A Revisão do Conceito de Ação). O tradicional "direito de ação", com as inúmeras teorias que procuram ou procuraram explicar sua natureza, posto que ancora utile (ainda útil), tende fortemente a tornar-se peça de museu jurídico. E isto porque a cada dia fica mais nítida a consciência de que "ação" e "processo" são fenômenos interdependentes e essa só é importante enquanto vista como um agir em relação aquele (estrutura que se desenvolve em lace de atos praticados em decorrência de posições subjetivas das partes).

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CAPÍTULO VIII

A SITUAÇÃO DE DIREITO MATERIAL E O PROCESSO

A concepção do processo como procedimento realizado em contraditório entre as. partes é erigida sobre um sTstèma~ que se apresenta com um rigor lógico que encontra pòücõs põntõs de comparação. nadoutrina-doDireito.

KELSEN legou à doutrina jurídica, também, um sistema lógico de rara perfeição.

Entretanto, enquanto KELSEN concentrou o estudo da juri- dicidade no ilícito, FAZZALARI trabalha exatamente em linha contrária. O ilícito para ele não é o cânone de conduta. A condu­ta é valorada pelo lícito, e o ordenamento jurídico é o complexo de normas, de faculdades, de poderes, de deveres, o complexo de licitudes. O ilícito nele comparece, mas como a conduta que consiste na inobservância do dever. Mesmo quando trabalha a norma penal, FAZZALARI demonstra que o cânone de conduta, em relação à norma que define, por exemplo, o homicídio, é o não matar, e a norma penal tem, para ele, o caráter de norma processual, porque se dirige ao poder jurisdicional. É um argu­mento, sem dúvida, correto, pois a quem, a não ser ao Estado, pelo exercício da jurisdição, cumpriria a imposição da sanção?

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Com essa observação preliminar, pode-se passar à relação existente entre o processo e a situação substancial, que nada mais é do que a situação de direito material que será discutida no iter do processo, e decidida, no ato final, no provimento.

No processo civil, a situação jurídica de direito substancial, ou situação jurídica de direito material, ou simplesmente situa­ção substancial, é dada pela conexão entre a inobservância de um dever jurídico, o ilícito, e o direito por ela lesado ou ameaça­do. O direito, objeto da lesão ou ameaça, no processo civil, é um direito subjetivo, mas não mais considerado na acepção tradicio­nal, e sim no sentido, já exposto, de posição de vantagem de um sujeito em relação a um bem. Essa posição subjetiva resulta ou da norma que a confere a um sujeito ou do endereçamento, pela norma, de obrigações (conteúdo de deveres) a outro ou outros sujeitos, em determinadas situações jurídicas231, ou da conjuga­ção das duas hipóteses.

A relação entre a situação jurídica de direito material e o processo deve ser tratada com certo cuidado. Em uma primeira aproximação, tende-se a pensar que ela é o pressuposto do processo de conhecimento.

A confirmação ou a refutação de tal afirmação dependeria, entretanto, do exame de cada ordenamento jurídico, que possui as suas especificidades.

É interessante verificar, por exemplo, a mudança da concep­

231 FAZZALARI relaciona as possibilidades de se apreender o direito subjetivo, nas várias espécies de sua manifestação, que se menciona, a seguir, mas com a observação de que a expressão "direito realizado", por ele utilizada, deve ser entendida no sentido de direito que se constitui para o titular, em oposição a um direito abstratamente considerado: o direito realizado por uma faculdade do titular; o direito realizado por um poder do titular (classicamente dito direito potestativo); o direito realizado pela obrigação de outro (o "direito de crédito"); o direito realizado pela faculdade do titular e pelos deveres de todos os demais (o "direito absoluto"); - o direito realizado somente pelo dever de todos (nesse critério estão os direitos da personalidade e os direitos reais em que falta a faculdade, como a servidão negativa). Cf. op. cit., p. 264.

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ção do direito de ação, na doutrina francesa, ante as novas disposições dos arts. 30, 31 e 32, doNouveau Code deP rocédu re Civile. E não deixa de ser surpreendente a constatação de que esses artigos são reproduções textuais dos arts. 2-, 3a e 4- do Decreto de 20 de julho de 1972, como expõem EMMANUEL BLANC e J. VIATTE. Analisando-os, os dois processualistas fran­ceses discorrem sobre a evolução das teorias da ação e mostram que a assimilação da ação à realização de um direito subjetivo, tradicionalmente partilhada pela doutrina clássica, foi abandona­da. A ação, em princípio concebida comõ uriTtneio de éxêrcício de um direito, est devenue le d ro it d ’accès devan t la ju stice en vue d e lu i soum ettre les préten tion s les p lu s diverses"202.

No ordenamento jurídico italiano, FAZZALARI demonstra que a situação substancial não é condição prévia para a instaura­ção do processo jurisdicional civil, pois a lei processual requer a exposição do pedido, mas não a exposição dos fatos e do direito, como condição para o processo, podendo ela ser feita em fase posterior à sua inauguração233.

No Brasil, a lei processual exige que a inicial contenha os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, bem como o pedido e suas especificações (Código de Processo Civil, art. 282, III e IV) e situa a falta do pedido ou da causa de pedir dentre os elemen­tos que caracterizam a inépcia da inicial, que é cau sa de indeferi­mento (Código de Processo Civil, art. 295 ,1, Parágrafo único, I).

Contudo, essa constatação ainda não basta para que se considere a situação de direito material como pressuposto do processo civil, no Direito brasileiro. A inicial inepta nem sempre é indeferida de plano, o que não é raridade234. Ademais, o pró-

232 Cf. EMMANUEL BLANC-JEAN VIATTE - Nouveau Code de Procédure Civile com m enté dans Vordre des articles, Paris: Librairie d u Jo u rn a l des Notai- res et des Avocats, 1980, p. 45.

233 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 258.

234 ALCIDES DE MENDONÇA LIMA levanta as questões referentes à inicial inepta na Justiça do Trabalho, em que a Reclamação se faz por petição ou por termo, e o juiz despacha a inicial marcando audiência. Entende que, no

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prío Código de Processo Civil admite essa hipótese, quando no art. 301, III, prevê que o réu, em sua defesa, alegue, preliminar­mente, a inépcia da inicial, e não limita a alegação da inépcia a qualquer uma das hipóteses possíveis, descritas nos itens do parágrafo único do art. 295. Obviamente, a alegação de inépcia da inicial já supõe o contraditório, e, portanto, o processo em franco movimento.

Pelo Código de Processo Civil brasileiro, está visto que a situação de direito substancial não constitui pressuposto para a instalação do processo.

A questão deve ser examinada, também, pelo prisma consti­tucional, e, por este, não se pode subtrair da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 52, XXXV, da Constituição). Não é, portanto, o ilícito, o pressuposto do processo, ou o direito lesado ou ameaçado.

A apreciação do Judiciário confirmará ou negará a existên­cia do direito lesado ou ameaçado, mas o direito de acesso ao Judiciário está garantido, independentemente da prévia consta­tação da existência do ilícito, da lesão ou da ameaça a direitos.

A rejeição da inicial inepta, como se disse, pode ocorrer no curso do processo, e não poderia ser sequer a mera afirmação do ilícito, da lesão ou ameaça a direito, o pressuposto do processo, porque dentre as causas de inépcia está a falta de pedido ou da causa de pedir.

Pode-se confirmar, então, que situação de direito material não é pressuposto do Processo Çivil brasileiro.

A situação de direito substancial comparece nos atos do

caso de inépcia, o Juiz Presidente da JCJ não poderia indeferi-la, sem a audiência dos vogais, porque somente pode agir isoladamente nas execu­ções. Cf. Processo Civil no Processo do Trabalho, 3~ ed. atual, de acordo com a Constituição Federal de 1988, São Paulo: LTr, 1991, PP- 35/36. Ressalve-se, porém, o entendimento de que, em face da Constituição de outubro de 1988 (arts. 111 e 117), está revogado o art. 877 da CLT, sendo competente a JCJ tanto para o processo de conhecimento como para o de execução e para o cautelar.

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processo, mas não como pressuposto desses atos e sim como objeto de alegações e provas, como conteúdo do contraditó­rio235.

A res in iudicium dedu cta não é, também, pressuposto da sentença que põe (ou deveria pôr) fim ao processo, pois os casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, sem aprecia­ção da situação de direito substancial, estão previstos no art. 267 do Código de Processo Civil.

A propósito desse artigo, é oportuno abrir-se um parênte­se para registrar que as disposições de seus itens II e III são absolutamente incompatíveis com o princípio do contraditó­rio, constitucionalmente acojhido. O contraditório não pode ser considerado como dever das partes de cumprirem atos processuais. Já se disse sobre faculdades, poderes e deveres que se tornam ônus, quando a parte não os utiliza. O contradi­tório é a oportunidade de participação paritária, e não de participação coativa. Se os prazos processuais são os da lei, se existe o instituto da preclusão, se o juiz tem o dever de decidir, que é um dever da jurisdição, e que está explícito no art. 5a, XXXV, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, não se explica por que o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito, nas hipóteses mencionadas. Por incom­patíveis com o art. 5a, XXXV e LV, os referidos itens devem ser considerados como revogados236.

Se a situação de direito material, constituída por um direito subjetivo, no sentido que já se definiu, lesado ou ameaçado, não é pressuposto do processo ou da sentença, o é, entretanto, da sentença de mérito, do provimento e da medida jurisdicional requerida, seja ela acolhida ou rejeitada.

Seja o provimento favorável ou desfavorável ao autor, ele

235 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 260.

236 Em casos que tais em face do impulso oficial (art. 262 do CPC) e do que dispõe o art. 5°, XXXV, da Constituição de 1988, caberia ao juiz prover de imediato sobre o mérito, julgando conforme o estado do processo.

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acerta a situação de direito substancial, confirmando a existência do ilícito e do direito lesado ou ameaçado, para impor as medi­das requeridas para sua reparação ou para determinar a cessação da ameaça, ou nega a existência do ilícito e da lesão ou ameaça a direito, negando a medida requerida.

Nesse ponto, é conveniente que se registre, novamente, a distinção entre o Direito italiano e o Direito brasileiro, pela diferença da norma constitucional dos dois sistemas. No Direito italiano, conforme já se mencionou, o art. 24 da Constituição 'destina o direito de "agir em juízo" à tutela dos próprios direitos ou interesses legítimos, o que possibilitou várias interpretações no sentido de que, se constatada a inexistência do direito, não poderia haver provimento.

FAZZALARI resolveu a questão distinguindo a leg ittim a- z ion e a d ag ire e a leg ittim azion e a l p rovved im en to. Esta últi­ma não ocorrerá no caso em que se constata a inexistência do dever e, ou, direito subjetivo (ou que o autor e o réu não são, respectivamente, titulares do direito e do dever) e, conseqüen­temente, da lesão ao direito. Entretanto, o processo existiu, como existiu a ação, como série de posições subjetivas das partes, que o acompanha do princípio até o momento do provimento237.

A questão que se apresenta no confronto entre processo válido e provimento desfavorável, relevante perante o Direito positivo italiano, pelos termos do art. 24 da Constituição que funda aquele ordenamento jurídico, poderia ter recebido trata­mento teórico sobre bases diferentes no Direito brasileiro.

Não obstante, a investigação da doutrina processual no Brasil transcorreu em linha paralela com a doutrina italiana e seus resultados merecem uma reflexão mais detida.

237 "Le attività processuali esnberanti — cosi quelle spese p e r istruire il mérito — andranno considerate inutiliter gestae, ma non mai invalide p e r carenza di legittimazione a d agire". Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 49- No mesmo sentido, v. pp. 299/301.

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Verifica-se, por exemplo, que AMILCAR DE CASTRO238 ofe­receu, quanto ao problema dos atos processuais úteis, solução aparentemente semelhante à proposta de FAZZALARI, mas mani­festa e profundamente distinta quanto à fundamentação, em conseqüência da concepção diferente sobre a relação entre pro­cedimento, processo e ação.

A aparente semelhança está na admissão por AMILCAR DE CASTRO da movimentação válida mas "inútil" do processo: "(...) formado um procedimento por pessoa carecedora de ação, o mesmo, por falta da legitimação para agir, não deve ser tido como nulo, ou anulável, mas inteiramente inútil a essa pessoa que não pôde atingir o alvo em mira"239.

A semelhança é, como se disse, apenas aparente porque em FAZZALARI não há movimentação inútil, mas "exuberante" do processo, podendo-se falar em inutilidade da gestae e não na inutilidade do processo para uma pessoa, porque não é por esse critério que o processo cumpre seu destino como estrutura que prepara o provimento.

A diferença verdadeiramente marcante entre ambos trans­parece em nível mais profundo, na própria concepção de "ação, de processo ou procedimento", que, para AMILCAR DE CASTRO, como para a doutrina brasileira predominante, constituem "reali­dades jurídicas inconfundíveis, com aparência definida, uma in­dependente da outra"240.

Em FAZZALARI, como se viu, a ação não possui essa inde­pendência do processo, mas é nele que se realiza, como desdo­bramento da legitimação para agir dos sujeitos do processo (juiz, auxiliares, Ministério Público quando a lei o exigir, partes). A legitimação para agir, que é de todos, se especifica em ação e

238 Cf. AMILCAR DE CASTRO - Comentários ao Código de Processo Civil, Vol VIII, Arts. 566 a 747, 3~ ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983, pp. 6/8.

239 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 7.

240 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 6.

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função, dada a posição jurídica dos sujeitos do processo. En­quanto a "função" é dada pela série de atos que correspondem à posição jurídica legitimada do sujeito investido da função juris­dicional — o juiz — a ação se forma pelo complexo de posições jurídicas legitimadas das partes, complexo que resulta da atua­ção conjunta e interdependente dos sujeitos do iter do processo, e por isso não pode ser dele isolada.

Ressalte-se que AMILCAR DE CASTRO aceita, como pres­suposto de seu argumento, o de que o procedimento é acessível a todas as pessoas, que a faculdade de recorrer ao Poder Judiciá­rio é de todos que tenham supostamente um direito lesado ou ameaçado, e separa os atos processuais válidos dos atos proces­suais úteis, com base em interesses, distinguindo os escopos das partes, que, conforme afirma, é o de "defenderem seus próprios direitos, e a finalidade do processo, que é de ordem pública241,

j Não se pode desconhecer a precariedade do critério do| interesse, de ordem individual e de ordem pública242 para sej explicar o processo existente quando há carência de ação ouI quando se constata a "pretensão infundada", critério pelo qual1 AMILCAR DE CASTRO distingue os "escopos particulares e finali­

dade pública", no processo. Percebe-se que o argumento é posto como alternativa quase necessária de uma concepção que separa processo, procedimento e ação243.

' 241 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 6.

242 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - A Prescrição no Processo do Trabalho, 2~ ed., Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ltda., 1987, p. 35- A dificuldade é da mesma natureza do problema que se suscita quando se fala em interes­ses de "ordem pública e "ordem privada" para se diferenciar algo que sempre tem marcadamente o caráter público, como ocorre com as pró­prias normas.

243 Cf. AMILCAR DE CASTRO: "se o procedimento é independente da ação, a (alta de um dos elementos desta não pode determinar a anulação daquele".(...) "Por conseguinte, nada mais razoável do que uma pessoa, sem o direito de ação, poder movimentar processo válido, mas inútil, ou prejudicial a si mesma". "A ação e o processo são conceitos autônomos, independentes (...) pode a pessoa não ter ação, e não obstante figurar como sujeito de

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Tal postura, dominante na doutrina, correlaciona-se com a necessidade que teve o movimento de construção do Direito Processual C iv i], centralizado no direito de ação, inde­pendentemente de suas divergências internas sobre a natureza de tal direito, de conciliar, coerentemente, o direito de se provo­car a atuação do Judiciário com a possibilidade da pretensão infundada244.

As tentativas de superação dessa dificuldade sugeriram vá­rias teses na doutrina brasileira, desde a dos atos úteis e inúteis do processo, acima lembrada, até a do fundamento ideológico que teria pretendido legitimar a "universalização do procedimen­to ordinário", excluindo os processos sumários, levantada por OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, quando, conforme sustenta, "toda ação é una e abstrata"245.

A utilidade do processo e a sua instrumentalidade são, por essas doutrinas que têm a atenção voltada para o "direito de

procedimento válido (...) na hipótese de carência de ação, o procedimento permanece válido, precisamente para continuar evidenciando que não havia relação social ameaçada, ou violada, entre o autor e o réu, preen­chendo seus fins (...) o Estado mantém também a organização da lide judiciária para que se verifique e declare se à pessoa assiste, ou não, o chamado direito subjetivo que suponha ter", op. cit. p. 7.

244 JOSÊ OLÍMPIO DE CASTRO FILHO suscita o problema indagando até onde se pode falar em abuso de direito daquele que demanda sem ter razão. Diante da questão lembra NICETO ALCALA-ZAMORA Y CAST1LLO, quando diz "que a rigor não se devia nem falar em direito de ação, mas em faculdade, poder, ou possibilidade de ação". Cf. Abuso do Direito no Processo Civil, 2a ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 40.

245 Cf. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA - Curso de Processo Civil, vol. I, Porto Alegre: Fabris, 1987, pp. 59/115. V. especialmente pp. 96 e 97. "Hoje, porém — afirma —, transcorridos alguns anos, a maior novidade científica, no campo do processo civil, passou a ser, justamente, a busca de formas especiais de tutela jurisdicional indicadas pelos processualistas como espé­cies de "tutela diferenciada", que outra coisa não é senão a redescoberta tardia de que a todo direito corresponde, ou deve corresponder, uma ação (adequada) que efetivamente o "assegure", proclamando-se, mais uma vez, a função eminentemente instrumental do processo". Cf. op. cit., p. 98,

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ação", medidas pelo "direito material", sem que se cogite de outra finalidade cumprida de forma muito útil pelo processo quando se constata que o direito material, para o qual foi postulada a proteção, não teve sua existência confirmada no ato final do provimento.

No sistema brasileiro a Constituição não destina o direito de se pedir a tutela jurisdicional do Estado à existência de um direito material. Ò Poder Judiciário é provocado para "a aprecia­ção de lesão ou ameaça a direito"240.

—O princípio nem o iu dex sine actore, que condiciona a ma­nifestação da jurisdição à iniciativa de quem pretende a tutela jurisdicional, não é apenas um apêndice do sistema constitucio­nal brasileiro, pois explica-se já a partir do capu t do art. 5~ da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, em que há a promessa de garantia, aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-

246 É oportuno observar que a expressão "ameaça a direito" do art. 52, XXXV, da Constituição da República de 1988, abre um amplo campo para a tutela preventiva de direitos que, como demonstra BARBOSA MOREIRA, não se identifica com a tutela das medidas provisórias em razão do caráter defini­tivo que lhe é peculiar, e que é preventiva justamente porque, ao contrário da tutela sancionatória, é capaz de resguardar o direito contra a própria consumação da lesão. O avanço da Constituição nesse aspecto é notável, pois se a proteção de direitos submetidos à ameaça já encontrava garantias contra atos ilegais ou abusivos do poder (pelo Mandado de Segurança preventivo para os direitos líquidos e certos não amparados pelo Habeas Corpus, pela Ação Popular), na esfera particular, ressaLvando-se a nuncia- ção de obra nova, foi limitada, pelo Código de Processo Civil de 1973, à proteção da posse e da propriedade, com injustificada omissão dos direitos que não possuem caráter patrimonial. Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREI­RA, Tutela Sancionatória e Tutela Preventiva, in Temas de Direito Proces­sual, Segunda Série, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 21/29; Processo Civil e Direito à Intimidade, in loc. cit., pp. 3/19- De se ressaltar, ainda, a amplia­ção, pela Constituição de 1988, dos instrumentos das garantias de direitos pela introdução de novos institutos processuais submetidos à sensível análise deJ.J. CALMON DE PASSOS em "Mandado de Segurança Coletivo, Mandado de Injunção, Habeas Data (Constituição e Processo)", Rio de Janeiro: Forense, 1989-

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dade, à segurança e à propriedade, nos termos dos itens I a LXXVII, com seus dois parágrafos. A disposição do item XXXV não comportaria, portanto, qualquer interpretação no sentido do exercício espontâneo da jurisdição247, pois a atuação do Poder Judiciário é posta entre as garantias dos direitos e liberda­des declarados.

E certo que, nos termos do dispositivo constitucional, o objeto da apreciação judicial é o direito lesado ou ameaçado e o ilícito, como dever não observado, causa da lesão ou da ameaça. O caráter substitutivo da função jurisdicional confere a essa apreciação sua dimensão tutelar. Contudo, quer se ponha em relevo o direito subjetivo, quer o ilícito que o lesa ou ameaça, o "objeto da apreciação" não se confunde com o próprio "ato da apreciação", e por isso, nos termos postos pela Constituição brasileira, o agir em juízo não pode se condicionar ao prévio reconhecimento da existência do direito alegado. Significa dizer que a existência do direito para o qual se pleiteia a tutela pode ser confirmada ou negada pelo provimento, sem que se necessite indagar sobre a existência útil ou inútil do processo. Este cum­prirá sua finalidade ao chegar a seu final com a participação das partes, participação revestida da garantia do contraditório, quer se confirme a existência do direito, da lesão ou da ameaça, caso em que não se poderá negar a tutela, quer se verifique a inexis­tência do direito, da lesão ou da ameaça, quando o provimento será emitido, mas a medida jurisdicional requerida será rejeita­da.

O art. 93, item IX da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, exige que "todos os julgamentos dos órgãos do

247 CÂNDIDO R. DINAMARCO refere-se ao dilema criado, quando se examina o escopo da jurisdição de atuação da vontade da lei; como esta não pertence ao domínio dos litigantes, chegar-se-ia ao exercício espontâneo da jurisdição. Crê que a solução poderia ser buscada não no plano do direito, mas no da sociedade ao qual ele se destina. Cf. A Instrumentalidade do Processo, 2a ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, pp. 228/229.

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Poder Judiciário" sejam públicos e fundamentadas todas as deci­sões, sob pena de nulidade, permitindo que a lei limite a presen­ça, em determinados atos, às partes e seus advogados, ou somen­te a estes, quando o interesse público o exigir.

Sobre a publicidade dos atos judiciários, ALCIDES DE MEN­DONÇA LIMA, analisando o dispositivo constitucional, observa que ela tem sido considerada, "tradicionalmente, como exigência democrática, instituída como decorrência da Revolução France­sa", pelo que o sigilo, quando admissível, constituindo exceção, deve sempre vir expresso em lei248. Ressalta, entretanto, a inova­ção introduzida pela Constituição de 1988, no Direito brasileiro, pela extensão da expressão "todos os julgamentos", q ie repele a votação secreta, em todas as circunstâncias, mesmo naquelas anteriormente admitidas pelo sistema jurídico, como em matéria administrativa “referente à remoção, disponibilidade, aposenta­doria de juizes, ou recusa de promoção por antiguidade249.

A doutrina brasileira tem visto, na exigência constitucional de publicidade e fundamentação das decisões, a oportunidade do controle popular sobre os atos judiciais, ou uma "função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas qu isquis d e popu lo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões250.

248 Cf. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA - O Poder Judiciário e a Nova Constitui­ção. Rio de Janeiro-. Aide Ed. 1989, p. 39-

249 Cf. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, op. cit., p. 40.

250 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER, CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 67. Cf. também BARBO­SA MOREIRA - A Motivação das Decisões Judiciais Como Garantia Inerente ao Estado de Direito, in Temas de Direito Processual: segunda série, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 83/95. Convém advertir para o risco ou o perigo dos "julgamentos públicos", que podem ser afetados pela natural vaidade dos juizes. "Julgamento público1' não deve ser confundido com "julgamen­to fundamentado" ou com "julgamento cuja fundamentação deve ser

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Não há dúvida de que o caráter público das decisões (que nem sempre se confunde com o caráter público do julgamento, exigido no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1988), acompanhado de sua fundamentação, é uma garantia que, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produzida pela Revolução Francesa, resguarda a socie­dade contra o autoritarismo e o arbítrio que se manifestavam em nome da lei.

Não se pode deixar de considerar, contudo, que a funda­mentação da decisão é uma proteção constitucional especial­mente dirigida às partes. Elas receberão os efeitos dk séntênça em seu patrimônio, em seu universum ius, efeitos sustentados sobre a apreciação da situação de direito material discutida em contraditório, e se lhes é garantido, pelo contraditório, a partici­pação nos atos processuais que preparam o provimento, é uma conseqüência dessa garantia que as partes saibam por que um pedido foi negado ou por que uma condenação foi imposta. Elas viveram o processo, ou tiveram a garantia de vivê-lo, participa­ram do seu desenvolvimento, reconstruindo a situação de direito material sobre que deveria incidir o provimento e, nessa recons­trução, fizeram, juntamente como juiz, o próprio processo, na expectativa do provimento final. Não é, portanto, demasiado que se tenham as partes como os primeiros destinatários da garantia da fundamentação das decisões.

Se houver possibilidade de recurso, o contraditório conti­nuará garantido e se não houver, o contraditório terá cumprido sua finalidade, permitindo que se saiba por que se nega um suposto direito e por que se condena, em nome do Direito.

necessariamente publicada", para o controle das partes e dos jurisdiciona- dos em geral (crítica nos autos ou em órgãos normais de divulgação — imprensa, revistas e livros jurídicos — ou melhor, o controle "endoproces- sual" e o controle "extraprocessual" das decisões judiciais).

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CAPÍTULO IX

A INSTRUMENTALIDADE TÉCNICA DO PROCESSO

9-1. O PROCESSO COMO TÉCNICA

O procedimento jurisdicional, como atividade disciplinada por uma estrutura normativa voltada para a preparação do provi­mento, com a participação, em contraditório, de seus destinatá­rios, é uma técnica criada pelo ordenamento jurídico, e traba­lhada pela ciência do Direito Processual, que, em sua função de formular conceitos, categorias e institutos concernentes a toda a atividade da jurisdição, deve se esmerar em fornecer o melhor instrumental teórico para que o processo se torne a técnica mais idônea possível no cumprimento de sua finalidade.

A norma processual disciplina o exercício da jurisdição, e a preocupação de se fazer com que a ciência do Direito Processual ofereça a sua técnica instrumental para o aperfeiçoamento da instrumentalidade técnica do processo tem sido externada de várias formas na doutrina251. De modo evidente ou ainda obscu-

251 Investigando as tendências do processo no Direito Comparado, MAURO CAPPELLETTI ressalta que o processo não é um fim em si mesmo: es un

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ro, quase intuitivo, a doutrina jurídica vem percebendo a profunda e crescente importância do processo como modelo ideal de partici­pação dos próprios destinatários na formação, na execução e na aplicação de seu direito. Seja o processo legislativo, seja o adminis­trativo, seja o jurisdicional, sua instrumentalidade técnica é a mes­ma: a de poder se elaborar, com a melhor estrutura possível, a mais adequada e ágil, para dar respostas ao fim para o qual se instaura: a emanação de um ato do Estado, de caráter imperativo, para cuja formação concorrem, em contraditório, aqueles que receberão, na esfera de seus direitos, os efeitos'de tal ato. ~

O processo que se põe como estudo do Direito Processual Civil é o processo jurisdicional, porque o Direito Processual Civil tem como objeto de investigação a norma que regula o exercício da jurisdição.

Uma técnica é valorada segundo sua idoneidade para a realização de suas finalidades. Será uma boa ou má técnica, conforme seja hábil a cumprir os seus fins, ou conforme se revele ineficaz para esse objetivo. De qualquer modo, a avaliação deve ser feita pela ciência, como atividade consciente e capaz para a produção do conhecimento e a correção de seus pontos de

instrumento excogitado al objeto de componer Ias litis garantizando la efectividad — la observancia, y la reintegración para el caso de inobservan- cia — del derecho substancial. Considera a presença do processo no ordenamento jurídico de todas as nações civilizadas como o sintoma fun­damental de que os povos renunciaram a confiar à força e à vingança a proteção de seus direitos para entregá-la ao juiz e acrescenta: Pcro este caracter d e la instrum entalidad d el derecho procesal, e de la instrumen- talidad, p o r consiguiente, de la técnica misma del proceso, implica una consecuencia importante: lo mismo que cualquiera otro instrumento, así tam bién aquel instrumento que es el derecho procesal, para ser eficaz o sea p a ra conseguir cum plir eficazmente su finalidad, debe adaptarse a la particular naturaleza delpropio objeto. En otras palabras, debe asum ir aquellas técnicasy valerse de aquellos institutos que son los más idôneos p a ra el objeto de la garantia del derecho substancial'. Cf. MAURO CAPPE- LLETTI - E l Proceso Civil en el Derecho Comparado - Las Grandes Tenden- cias Evolutivas - Trad. de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, Edicio­nes Jurídicas Europa-America, 1973, p. 18.

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estrangulamento. A responsabilidade da ciência do Direito Processual, em relação ao processo, não é, portanto, pequena.

9-2. A FINALIDADE DO PROCESSO JURISDICIONAL

O processo jurisdicional civil, como procedimento que se realiza em contraditório entre as partes, para a formação do provimento jurisdicional, tem, no corxeto desenvolvimento das atividades preparatórias da sentença, a sua primeira finalidade. Essa afirmação não pode ser tomada como uma simplificação que poderia conduzir à inexata conclusão de que a técnica se desenvolve pela técnica e para a técnica, ou seja, de que ela se produz e se consome a si própria e nisso se esgota. Tal conclusão só poderia advir da falta do alcance do significado contido na realização do procedimento em contraditório entre as partes.

Como se viu, em capítulo anterior, o contraditório tem a sua essência e o seu objeto. Onde ele está presente, o processo jamais será uma estrutura vazia, um esqueleto "descarnado", uma construção sem conteúdo. E pelo desenvolvimento do contradi­tório que o processo se desenvolve, e o contraditório é pleno de vida. É no âmago da coesão entre sua essência e seu objeto que o direito material, que será apreciado e decidido na sentença, é discutido, que o jogo dos interesses divergentes torna-se real, que as partes desvelam os direitos materiais que afirmam ter, e que se contrapõem nas afirmações dos direitos materiais que são mutuamente negados.

A essência do contraditório, a garantia de uma participação simetricamente igual nas atividades que preparam a sentença, e seu objeto, a questão que pode se transformar em questão con­trovertida, incidem, naturalmente, no plano processual. A parti­cipação é participação no processo e a questão é questão do processo, sobre ato do processo. Mas aí está a grandeza do contraditório. A sua presença no procedimento que prepara o provimento possibilita que as partes construam, com o juiz, o

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autor do ato estatal de caráter imperativo, o próprio processo, e que, assim, participem da formação da sentença.

A finalidade do processo jurisdicional é, portanto, a prepa­ração do provimento jurisdicional, mas a própria estrutura do processo, como procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes, dá a dimensão dessa preparação: como a partici­pação das partes, seus destinatários, aqueles que terão os seus efeitos incidindo sobre a esfera de seus direitos.

A estrutura do processo assim concebido permite que os jurisdicionados, os membros da sociedade que nele comparecem, como destinatários do provimento jurisdicional, interfiram na sua preparação e conheçam, tenham consciência de como e por que nasce o ato estatal que irá interferir em sua liberdade; permite que saibam como e por que uma condenação lhes é imposta, um direito lhes é assegurado ou um pretenso direito lhes é negado.

A instrumentalidade técnica do processo, nessa perspectiva do Direito contemporâneo, não poderia, jamais, significar a téc­nica se desenvolvendo para se produzir a si mesma. A instrumen­talidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sen­tença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos.

9 3 . A PROTEÇÃO DE DIREITOS

Tem-se afirmado que chegou o momento de se dispensa­rem os formalismos para que os direitos sejam assegurados e o processo adquira efetividade.

A história do Direito demonstra, com dados objetivos, que, com formalismos rigorosos (o processo formulário)252 ou sem

252 Há excelente exposição na obra de JOSÉ CARLOS MOREIRAALVES - Direito Romano, Rio de Janeiro: Forense, 4~ ed., 1978.

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qualquer formalismo (os processos que WEBER denominou de "direito formal irracional", do direito Salomônico, passando pelo K ad i, chegando aos "tribunais revolucionários")253 os processos tiveram uma enorme eficácia para uma pluralidade de fins. Com formalismos ou sem formalismos foram eficazes para condenar em nome de muitos nomes: em nome de razões sociais e em nome de razões de Estado, em nome do pecado e em nome de Deus; em nome de incompreensíveis signos e em nome de mis­teriosos, formidáveis e insondáveis nomes.

Historicamente, com formalismos ou sem formalismos, os ordenamentos jurídicos já permitiram que o processo tivesse como finalidade a salvação da alma e a salvação da sociedade. Das finalidades transcendentes, não se tem perdido a memória, quando o juízo de Deus se manifestava nas Ordálias. E não está tão afastada a época em que os procedimentos da Santa Inquisi­ção, que torturava para obter a confissão e para purificar a alma do condenado, antes de entregá-lo ao braço secular, se faziam em nome de um "bem maior" da sociedade: em nome da fé, e em nome de Deus.

A atual estrutura normativa do processo está predisposta para que as partes que dele participam em contraditório, sendo os destinatários da sentença, contribuindo para sua formação, saibam por que pode ela constituir o ato de condenação, por que pode ela impor uma reparação, por que pode ela rejeitar um pedido de proteção a um suposto direito. Os sujeitos do proces­so que se realiza como um procedimento em contraditório sa­bem, hoje, em nome de que nome o ato final do processo condena ou declara que não há base para se condenar. E estão garantidos de que a condenação ou a rejeição do pedido de que ela se imponha se fará dentro da mais cristalina regra de uma estrutura normativa que assegura, através de suas formas, a sua participação em todas as atividades que preparam a sentença,

253 Remete-se ao estudo de JULIEN FREUND - La rationalisation d n droit selon Max Weber in Archives... citado.

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não de modo arbitrário, mas de modo a que seus atos sejam reciprocamente controlados, em sua oportunidade e em sua subsistência. Essa é a forma de um jogo democrático que permite a manifestação das divergências no iter da formação de um ato final que produz efeitos na esfera de direitos de seus destinatá­rios, mas com a garantia de simétrica igualdade de oportunida­des desses destinatários nos atos preparatórios daquele que se revestirá de caráter imperativo.

A primeira proteção que o ordenamento jurídico necessita oferecer aos jurisdicionados é a proteção de seu direito de, quando destinatário dos efeitos da sentença, participar dos atos que a preparam, concorrendo para sua formação, em igualdade de oportunidades.

9.4. A PROTEÇÃO DE DIREITOS MATERIAIS

O processo terá a finalidade de proteger os direitos substan­ciais, os direitos subjetivos lesados ou ameaçados, se a sua exis­tência se confirmar, no iter que prepara a formação da sentença. Nessa hipótese o juiz não poderá negar a proteção requerida, desde que, observando os deveres da jurisdição, aplique as me­didas nos limites que o ordenamento jurídico as comporte.

O juiz tem o dever de se ater ao pedido è de se ater às espécies de medidas jurisdicionais autorizadas pela norma. Ele atua como órgão do Estado e fala pelo Estado, e, assim como não pode penetrar na esfera dos direitos dos jurisdicionados, para protegê-los, sem ser solicitado, não pode decidir além do que foi pedido pela parte, que tem a liberdade de dispor sobre os limites da proteção requerida. O juiz não pode impor medida não auto­rizada pelas normas porque, sendo órgão do Estado, tem o dever de cumprir o Direito legitimamente criado pela nação pela qual o Estado fala.

Na hipótese de se verificar a inexistência do direito para o

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qual a proteção foi requerida, logicamente, ela não poderá ser concedida.

Entretanto, em ambas as alternativas, o processo, como procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes que, sendo os destinatários do provimento, participam do iter de sua formação, permite que saibam por que o conteúdo do ato final, ato imperativo do Estado, consistiu na proteção do direito ou na rejeição da proteção pleiteada.

Essa questão é da mais intensa importância para se pôr em relevo a necessidade de se garantir, juridicamente, a liberdade.

O processo, na perspectiva histórica, quando seu ato final era constituído unilateralmente pelo Estado, ainda que esse ato tivesse o conteúdo na maior consonância com o direito material, não poderia deixar de ser uma estrutura propícia à práticas autoritárias25! Quando os direitos e as garantias individuais foram se consolidando, o processo se aperfeiçoou na exigência de que nele estivesse presente o direito à ampla defesa, com as medidas a ela inerentes.

Hoje, a instrumentalidade técnica do processo requer mais do que a garantia de participação das partes. Requer que essa participação se dê em contraditório, com igualdade de oportuni­dades, e que dela resulte essa conseqüência cujo alcance neces­sita ser apreendido em toda sua extensão, que é a participação dos destinatários da sentença em sua própria formação.

Entre uma decisão "justa", tomada autoritariamente, e uma decisão "justa", construída democraticamente, não pode deixar de haver diferença, quando se crê que a dignidade humana se realiza através da liberdade.

254 Sérias reservas são feitas aos arts. 263 (primeira parte) e 295 (itens I a IV) do CPC brasileiro.

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9-5. A PROTEÇÃO DO DIREITO LESADO OU AMEAÇADO

Para a proteção de direitos, contra o ilícito, a inobservância da conduta juridicamente valorada como devida, organiza-se a jurisdição. Que proteção não é imposição, confirma-o o princí­pio nem o iudex sin e actore, que condiciona a interferência do Estado na esfera dos direitos dos jurisdicionados, através do exercício da função jurisdicional, à provocação dos próprios jurisdicionados. Observado tal princípio, é claro que a função jurisdicional, como já se falou, exerce-se em processos "conten­ciosos" e em procedimento de "jurisdição voluntária", manifesta- se em processos onde há conflitos de interesses contrapostos (ou litígios), e onde, havendo ou não divergências, os interes­sados desejam a mesma decisão; enfim, manifesta-se pelo proce­dimento que se desenvolve em contraditório entre as partes e em procedimento que se realiza sem o contraditório.

No processo jurisdicional civil de conhecimento, o ato final do provimento, para ser favorável ao autor, e impor a medida jurisdicional postulada, tem como pressuposto a constatação, através do contraditório, do direito lesado ou ameaçado e do ilícito, que, em qualquer campo do Direito, sempre se caracteri­zará pela inobservância da conduta legalmente prevista como cânone ou modelo para o comportamento.

O provimento tem, como pressuposto de sua validade, o correto desenvolvimento do procedimento que o prepara, realiza­do em contraditório entre as partes, e, quando se confirma, no contraditório, a existência do direito lesado ou ameaçado, e do ilícito, de que decorreu a lesão ou que se constitui em ameaça a direito, a medida jurisdicional é imposta para impedir que perdure a lesão ou a ameaça, para determinar a reparação da lesão e a cessação da ameaça ao direito, para cuja proteção foi requerida.

Sob a inspiração de CHIOVENDA, a doutrina do Direito Processual Civil, discorrendo sobre os escopos255 do processo,

255 Cf. GIUSEPPE CHIOVENDA - Saggí di Diritto Processuale Civile (1900-

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sedimentou a idéia de que o escopo do processo é o de atuar o direito material, e não tardou a lhe acrescentar a pacificação com justiça, de conflitos sociais, e outras finalidades, nesse plano de valoração.

Duas considerações são oportunas sobre a imprecisão de tal concepção. Já se demonstrou que a finalidade do processo não pode ser confundida com a finalidade da medida jurisdicio­nal imposta pelo provimento. O processo atuará o direito mate­rial se constatado, pelo correto procedimento e através do con­traditório, que há um direito substancial que deve ser atuado. Caso contrário, não há, obviamente, como atuar um direito ine­xistente.

Já foi posta em relevo a distinção entre a ordem constitucio­nal italiana e a brasileira. Pelo art. 52, item XXXV, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, não se pode endossar a afirmação de que o processo se desenvolva para atuar o direito material. Desenvolve-se para permitir a preciação do Poder Judi­ciário sobre lesão ou ameaça a direito, e a forma dessa aprecia­ção se dá pelo provimento.

O segundo ponto de reflexão volta-se para as afirmações sobre os escopos do processo que agregam à atuação do direito material a pacificação com justiça.

Ainda que se estenda o escopo da jurisdição — o da pacifi­cação — ao instrumento de sua manifestação — o processo, dizer-se que a finalidade deste é pacificar com justiça suscita uma questão imediata. Os direitos garantidos no processo não se confundem com o direito material que será objeto de exame na sentença.

Quando atuado o direito material, se constatada a sua exis­tência no procedimento desenvolvido em contraditório e, cum­prido o pressuposto da medida jurisdicional, esta for imposta, a

1930) Nuova Edizione Considerevolmente Aumentata dei "Saggi" e dei "Nuovi Saggi", volume primo, Roma: Società Editrice - Foro Italiano, 1930, v. sobretudo, pp. 230/233-

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justiça que decorrerá da atuação da lei terá a mesma medida que tem a justiça do direito substancial.

A atuação do direito poderá ser valorada como justa, se justo for o direito a ser atuado. A palavra justiça possui um apelo emocional muito forte, mas a afirmação que se fez não pode causar surpresa se se olha para trás na história, ou se se relan- ceia, também, o olhar sobre o tempo presente.

A valoração da justiça do direito material não é finalidade do processo. Pode comparecer na sentença, que o processo prepara, mas nos limites dos deveres da"jurisdição, porque o exercício do poder jurisdicional, como o exercício de qualquer poder, se faz dentro da disciplina da lei, e o poder jurisdicional não é mais o poder de Salomão, mas sim o poder de se cumprir o dever da jurisdição.

É oportuno observar que, desde os fins do século passado, a doutrina jurídica passou a revelar uma grande preocupação com a natureza da função do juiz (não com a natureza da função jurisdicional, mas com o próprio papel do juiz na função de aplicar o direito). Surgiram indagações e respostas sobre o que ele deveria fazer perante a lei injusta, como poderia ter a medida para julgar com justiça.

No princípio do século, a questão se tornou tão importante que toda uma corrente doutrinária se formou em torno da cha­mada Escola do Direito Livre, que, começando por investigar a questão das lacunas, culminou por investigar a missão do juiz, e seu lema se espalhou, soprado pelo espírito do tempo: "pelo Direito ainda que contra a lei". Não mais "pelo direito, além da lei, mas através dela", como queriam os autores mais moderados, mas "ainda que contra a lei".

A cisão entre o Direito e a lei é questão antiga. Não se fala nela sem se rememorar Antígone, e SÓFOCLES nasceu por volta de 496 a.C. O lema "pelo direito ainda que contra a lei" pode ser encontrado em expressões vigorosas já no século XIII, quando a contraposição entre o direito justo e a lei injusta foi organica­mente analisada, sob a lógica aristotélica, por SANTO TOMÁS DE

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AQUINO256. Na verdade, a leitura da história da Filosofia do Direito revela que a questão nunca foi abandonada.

No início do século XX, quando o problema ressurgiu, o Direito Processual Civil estava dando os primeiros passos para consolidar sua autonomia. Compreende-se que toda ânsia pela justiça no processo fosse projetada no papel que se reservava ao juiz. Se o Direito Processual, que seria o direito do exercício da jurisdição, ainda estava se construindo, não havia então base para se discutir a função jurisdicional, dentro das disciplinas jurídicas, e a alternativa encontrada foi o desvio do problema para o "papel-missão do juiz". Não se percebia que o juiz fala pelo Estado, porque está investido da função que é do Estado e que os membros da sociedade precisavam de maior proteção, no processo, do que a projetada na consciência do juiz.

Hoje, a sociedade pede mais do Direito. Ela necessita de bons juizes mas não transfere para a consciência do julgador a medida de seus direitos. Sabe que a sentença "poderá ser justa ou, eventualmente, até injusta", como diz ADA PELLEGRINI GRI- NOVER, o que, obviamente, nunca se deseja. Mas, como pros­segue a processualista, "de qualquer maneira, o que importa é que a sentença se siga necessariamente a um procedimento legi­timado pelo ‘devido processo legal’. Não a um procedimento qualquer. Mas a um procedimento que garanta às partes’ e não somente ao autor, a possibilidade de apresentarem a sua defesa e as suas provas e a possibilidade de influírem sobre a formação do livre convencimento do juiz. Só assim a resposta jurisdicional será, realmente, a resposta adeqüada ao Estado de Direito"257.

256 Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO-La Ley, trad. do Prof. Constantino Fernan- dez-Alvar, Barcelona: Editorial Labor S.A., 1936. A referida obra é parte da Sum m a Theologica, /-//, cc 90-97. V. sobretudo Art. 2, Q.6, p.91, em que a lei injusta não é considerada lei verdadeira, mas corrupção da lei.

257 Cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER - O Processo em sua Unidade-II, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, p. 6l.

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O Direito Processual Civil se desenvolveu, adquiriu autono­mia, conquistou seu próprio domínio de investigação.

Mas, para lembrar que a construção de uma ciência é uma atividade muito humana, que passa também pelas contradições e pelos sonhos humanos, as contradições aparecem dentro da própria autoconfiança que o Direito Processual adquiriu em seus achados e em suas conquistas. Ele não pode se considerar como um domínio do conhecimento pronto e acabado, como se a construção de seu mundo nada mais tivesse para oferecer de novo à sociedade, justamente quando ainda tem, em seu próprio âmago, problemas não resolvidos, e justamente no momento em que a sociedade descobre suas garantias dentro do Estado.

9- 6. A QUESTÃO DOS ESCOPOS METAJURÍDICOS DO PROCESSO

A doutrina processual, no Brasil, tem-se preocupado em atribuir escopos jurídicos, políticos, éticos e sociais ao processo. O grande nome nessa tendência é, certamente, CÂNDIDO R. DINAMARCO, professor respeitado nacional e internacionalmen­te, tradutor de LIEBMAN, autor de preciosos estudos de Direito Processual e do livro "A Instrumentalidade do Processo", que teve e tem admirável projeção nos meios acadêmicos e jurídicos de todo o país.

Quando os argumentos se desenvolvem em nome da justiça social, é por certo difícil vencer o fascínio que eles provocam, principalmente quando vêm revestidos pelo vigor da cultura e pela elegância da forma.

Entretanto, se se pretender que o processo seja, realmente, a melhor técnica possível para, através do procedimento realiza­do em contraditório, assegurar-se a participação dos destinatá­rios do provimento nas atividades que o preparam, contribuindo para sua formação, é necessário que se reflita um pouco sobre os

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novos escopos que já se difundem pela doutrina brasileira, e por outras doutrinas, como atestam os Congressos internacionais258.

Em "A Instrumentalidade do Processo", o Professor CÂNDI­DO R. DINAMARCO propõe que se desenvolva uma nova menta­lidade entre os processualistas modernos em torno da "instru­mentalidade do processo", considerada segundo os fins da juris­dição e do processo. Os fins da jurisdição não seriam apenas jurídicos, mas também sociais, compreendendo a "pacificação com justiça e a educação", e políticos, a participação, a "afirma­ção da autoridade do Estado e de seu ordenamento". O conceito de jurisdição não seria jurídico mas político, já que ela é expres­são do poder do Estado e, assim, "é canalizada à realização dos fins do próprio Estado (.,.)"259. A relatividade social e política tornaria a jurisdição permeável às mutações dos conceitos de "bem comum, justiça, e justiça social", ou seja, os escopos da jurisdição não seriam os mesmos em momentos sociais distintos e em sistemas políticos diferentes260. Entende que há uma ten­dência universal, "quanto aos escopos do processo e do exercício da jurisdição: ‘o abandono das fórmulas exclusivamente jurídi­cas’". Aponta outras tendências e registra a impossibilidade de que os escopos da. jurisdição sejam esgotados nos "sistemas jurídicos, sociais e políticos do mundo"2*51.

A obra é densa e não se pretendeu senão uma pequena abordagem sobre o que se designariam como escopos metajurí- dicos. Esses escopos são inspirados nas contribuições da Socio­logia Jurídica, que, na linha da separação entre Direito e Estado,

258 Foi lembrado, na introdução deste trabalho, o Congresso de Viena, de maio de 1939- Entre ele e o Congresso Internacional de Direito Processuaí, de Gand, de 1977, a discussão evoluiu do papel reservado ao juiz para os papéis atribuídos à jurisdição.

259 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - A Instrumentalidade do Processo, 2a ed.rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 207.

260 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., pp. 206/219-

261 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p. 219-

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alerta para o problema da legitimação pelo procedimento, que acompanhou a racionalização do Estado moderno.

A contribuição de outros campos do conhecimento jurídico para o da ciência do Direito Processual Civil, e de outros campos do conhecimento em geral para o conhecimento do Direito serão sempre bem-vindas. A história das doutrinas demonstra que nenhum campo da ciência cresceu sozinho. Entretanto, quando se fala de jurisdição e de processo, está-se diante do momento em que é o Direito Processual que pode oferecer, hoje, suas * grandes contribuições para os outros "domínios do saber jurídico e de outras áreas da investigação científica. Seria desejá­vel que as conquistas do Direito Processual estivessem disponí­veis para outros importantíssimos domínios que se dedicam a temas vinculados à normatividade e à legitimidade de suas for­mas de expressão, porque seguramente se pode afirmar que hoje ele tem muito a oferecer à sociedade.

No Direito Processual atual, concebido como sistema nor­mativo, o processo já não pode ser reduzido a uma mera legiti­mação pelo procedimento262, não porque se deva dispensar as formas, mas porque o processo já não é mais apenas um rito para justificar uma sentença. A estrutura jurídica que permitiu o de­senvolvimento do conceito de processo construído sobre o con­traditório é resultado de muitas conquistas históricas. O procedi­mento desenvolvido em contraditório entre os interessados na decisão final construiu-se não como uma forma de participação dos jurisdicionais para justificar um ato imperativo final do Esta­do, mas como garantia da participação dos detentores de interes­ses contrapostos, em simétrica paridade, para interferir na for­mação daquele ato.

O Direito Processual estuda as normas que disciplinam o

262 Cf. NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUI­NO - Dicionário de Política, cit., ver especialmente os verbetes "Estabilida­de Política", de LEONARDO MORIINO, e "Estado Contemporâneo", de GUSTAVO GOZZI.

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exercício da jurisdição. A manifestação do poder jurisdicional passou por diversos regimes jurídicos no curso de sua história, e a grande conquista do Direito contemporâneo é a de que, para que as liberdades se realizem dentro do Estado (e não fora dele, ou contra ele), o exercício do poder se submete à disciplina do Direito. É por isso que não é absolutamente vazia a afirmação de que a jurisdição e o processo são conceitos jurídicos, e a ciência do Direito Processual não pode renunciar a seu papel de tomar esses conceitos e trabalhá-los à exaustão, porque estaria se ne­gando a seu papel social de clarificar, de tornar visível e inteligí­vel um tema de profunda importância para a sociedade.

A admissão de escopos metajurídicos da jurisdição e do processo pressupõem, necessariamente, a existência de três or­dens normativas distintas: a jurídica, a social e a política. Os escopos metajurídicos só poderiam ser entendidos, portanto, como escopos pré-jurídicos. Seria possível pensar-se logicamen­te nessa fase pré-jurídica em relação aos momentos de transfor­mação, que preparam o advento de uma nova ordem jurídica. No momento que antecede a cristalização dos valores que serão acolhidos pelas normas, das ideologias que constituirão o con­teúdo das normas, pode-se, por certo, pensar em escopos meta­jurídicos que serão postos no ordenamento jurídico pela norma que funda toda sua legitimidade. A recente experiência brasileira foi um verdadeiro laboratório para a observação da eleição das ideologias que iriam compor a nova ordem estabelecida, sob uma nova Constituição.

Uma vez que o ordenamento jurídico se institui e se conso­lida em normas, condutas e relações humanas, valoradas como lícito ou ilícito, como conduta devida e conduta que inobserva aquela estatuída como cânone valorativo, já não se pode mais cindir o ordenamento da sociedade para, paralelamente à ordem jurídica que ela instaurou, pensar-se em uma ordem social autô­noma e em uma ordem política autônoma. Três ordens sobera­nas distintas não explicariam a soberania de uma nação, que não pode ser fragmentada. Ainda que se possa argumentar com a

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pluralidade de ordens jurídicas, em diferentes escalas, no meio social, elas estarão sempre dentro do ordenamento jurídico so­berano, como ordens intra-estatais.

A ordem política e a ordem social têm o seu fundamento na ordem jurídica, existem dentro do ordenamento jurídico e so­frem a sua regulamentação. Supor o contrário seria o mesmo que se admitir a possibilidade de se afirmar que, na sociedade orga­nizada, o poder se exerce dentro da lei e pela lei, e que o poder não se exerce dentro da lei e pela lei. Já se percebe a impos­sibilidade de se manter as duas assertivas, pois mesmo no caso do abuso do poder, os limites da lei dão a medida para a qualifi­cação de seu exercício abusivo. No Estado contemporâneo de Direito, o poder se exerce segundo a disciplina da lei, seja ela mais rígida ou mais elástica, conforme deixe ao Estado um cam­po mais restrito ou mais amplo de decisão sobre a oportunidade e as formas de suas manifestações. O critério para a aferição dessa maleabilidade será sempre dado pelo Direito, pois é na sua lei fundante, na Constituição, que se encontram a estruturação dos órgãos do poder, a definição de sua competência e os direi­tos e garantias que limitam a sua atuação.

Os ordenamentos jurídicos contemporâneos têm dado um grande realce ao exercício da jurisdição e ao processo, que é o instrumento por excelência de sua manifestação. ITALO ANDO- LINA e GUISEPPE VIGNERA203 demonstram que já se pode falar em um modelo constitucional de processo formado, não mais apenas pela estrutura e organização do Poder Judiciário, mas também, em plano de igual importância, pelas garantias proces­suais dos jurisdicionados, ao lado das garantias do Poder Judiciá­rio e dos juizes investidos na função jurisdicional. A importância da especial garantia da norma processual acolhida no plano constitucional já h á mais de três décadas era ressaltada por

263 Cf. ITALO ANDOLINA - GIUSEPPE VIGNERA - IIM odelo Costituzionale del Processo Civile Italiano, Corso di lezioni, Torino: G. Giappichelli Editore, 1900, passim.

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RENZO PROVINCIALI264. As garantias constitucionais do processo são garantias da própria sociedade, enquanto se coloca como co­munidade de jurisdicionados perante o Estado, que detém a san­ção em sua universalidade. São garantias de que o Estado não invadirá o domínio dos direitos individuais e coletivos, se não for chamado a protegê-los, de que o Estado não instituirá juízos pós-constituídos, de que a privação dos bens da vida que o Direito assegura não se dará sem as formas de um processo devido e de que não se dará sem a participação e o conttole dos destinatários do provimento em sua própria formação, de que não se dará sem a devida explicação aos jurisdicionados sobre os fundamentos de uma decisão que interfere em seus direitos e nas liberdades pelo Direito asseguradas. Se as Declarações de Direito do século XVIII se preocuparam em criar as garantias políticas e criminais dos indivíduos perante o Estado, o século XX, já em fim de milênio, preocupa-se em "assegurar" a aplicação daquelas garantias, já ampliadas. Na base dessa preocupação desenvolveu- se também uma concepção mais ampla de liberdade e de digni­dade dos homens e da sociedade. As relações sociais não são sempre harmônicas e a paz que pelo Direito se almeja não consiste em se abolir a existência dos conflitos, amordaçando-se o pensamento, negando-se as diferenças, para se aniquilar as divergências. O conflito é acolhido e reconhecido, abre-se o espaço para que ele se manifeste, e, do jogo do contraditório, formam-se as decisões que interferem nos direitos individuais e coletivos na vida da sociedade.

Processo é termo de múltiplas acepções, como se demons­trou quando foram discutidas as conotações da palavra, mas o conceito de processo, como "estrutura normativa", composta de normas e de atos, e do provimento final, é jurídico, como jurídi­co é o conceito de jurisdição como função ou atividade do Estado "sob a disciplina do Direito".

264 Cf. RENZO PROVINCIALI - Norme di Diritto Processuale Nella Costituzio- ne, M ilano: Dott. A Giuffrè-Editore, 1959, passim.

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Os chamados escopos metajurídicos, sociais e políticos, acolhidos em regimes diversificados, são, também, sem ne­nhuma dúvida, escopos jurídicos acolhidos nas ordens constitu­cionais que organizam a sociedade.

Assim, por exemplo, quando se traz à colação o modelo socia­lista265, em que o processo inclui, em suas finalidades, a educação para o socialismo, não se pode deixar de considerar que tal finali­dade está prevista na Constituição da União das Repúblicas Socia­listas Soviéticas, de 07 de outubro de 1967, onde se encontram266, a partir do art. 151, as normas que disciplinam a jurisdição. Os Tribunais são constituídos por juizes eleitos e assessores populares eleitos, para um mandato com prazo determinado, respondem perante os eleitores ou perante os órgãos que os elegeram, pres- tam-lhes contas de suas atividades e podem ser por eles demitidos (art. 152). Os juizes e os assessores populares são independentes e estão sujeitos apenas à lei (art. 155), mas essas se fazem segundo as bases do regime social e da política da URSS, definidas na Constitui­ção (arts. 1- a 9a), onde há expressa definição da força orientadora da sociedade, o Partido Comunista, e expresso compromisso com a doutrina marxista-leninista, em toda a atuação do poder do Estado (art. 6a).

Não há outra base na ciência do Direito Processual Civil, para se afirmar a existência de escopos da jurisdição e do proces­so, como instrumento de sua manifestação, a não ser o próprio ordenamento jurídico, dentro do qual se acomodam as ideolo­gias, e, nesse caso, os escopos são todos jurídicos.

A reflexão sobre os chamados escopos pré-jurídicos do processo escapa, por certo, ao objeto de investigação do Direito

265 CÂNDICO R. DINAMARCO reflete sobre ele em várias passagens de "A Instrumentalidade do Processo".

266 Naturalmente fala-se aqui do que se contém no texto de outubro de 1967. Os acontecimentos da Perestroika e da Glasnost e os acontecimentos do final de 1991 não oferecem ainda dados disponíveis para a reflexão sobre os escopos da jurisdição, em épocas posteriores.

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Processual Civil, como ciência que estuda a norma que disciplina a jurisdição. Entretanto, as contribuições que chegam de outras áreas são, como se disse, sempre bem-vindas, e tomam-se rele­vantes quando os elementos existentes em um momento pré-ju- rídico são investigados, identificados e apreendidos depois que são acolhidos pelo Direito e passam a integrá-lo.

Nesse plano a Ciência do Direito dispõe de estudos verda­deiramente preciosos, desenvolvidos sobre a ideologia, em suas várias formas de manifestação, pelo Professor WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA267, que demonstram que há uma "ideologia constitucionalmente adotada", uma ideologia que po­de ser apreendida nos princípios constitucionais que estão na base de todo o ordenamento normativo.

A valoração da conduta, na sociedade democrática, é feita por ela própria' através dos processos admitidos na lei fundante da ordem jurídica, mas é assumida pelo Estado, que detém o poder politicamente organizado pelo Direito.

Nos sistemas democráticos, que se caracterizam pelo pluralis­mo, em diversos planos de atuação da liberdade, que se desdobra em liberdades no Estado e perante o Estado, em liberdades priva­das e públicas, individuais e coletivas, a investigação da ideologia constitucionalmente adotada pode gerar a questão para a qual a doutrina tem despertado a atenção, a das chamadas antinomias constitucionais — a convivência de princípios divergentes e con­

267 Cf. WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOU2A - Direito Econômico, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 32/49; p. 133 e s.; Ideologia e Ordem Econômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, n— 23/25, 1980/1982, pp. 132/154; O Princípio Econômico no Discurso Consti­tucional, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n2 60/61, Jan./Iul. 1985, pp. 271/319; A Experiência Brasileira da Constituição Econômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 32, n2 32, 1989, pp. 59/96; Poder Constituinte e Ordem Jurídico-Eco- nômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, nQ 28/29, Nova Fase, 1985/1986, pp. 51/73 e Revista de Informação Legislativa, Brasília, vol. 23, n2 89, Jan./mai. 1986, pp. 33/48.

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traditórios dentro da mesma ordem instituída, declarados em sua própria base de legitimação.

Os princípios "divergentes" do texto constitucional são ex­traordinariamente significativos, quando se pensa no pluralismo admitido na sociedade, para cuja vida a Constituição se volta. Os princípios contraditórios exprimem uma pluralidade de valores, e se a sociedade é pluralista, e não monolítica, a verdadeira contradição lógica se daria pela sua inexistência268.

É por esse ângulo que se pode entender que o princípio do contraditório integra a vida social e se realiza plenamente na socie­dade, o que torna o seu desenvolvimento um verdadeiro proces­so, quando suas questões são resolvidas com a verdadeira parti­cipação de um povo livre. Nem por outro motivo o modelo renovado de processo, do Direito Processual, como apontou FAZZALARI, conforme já referido, tem se expandido para os setores das deliberações privadas, porque nenhum outro se mos­trou mais adequado para a salvaguarda das liberdades.

Ao se admitir a separação entre o Direito material, pára cuja apreciação o processo se desenvolve, nos casos em que o jurisdicio- nado pede a proteção do Estado, argüindo sua lesão ou ameaça, eo Direito Processual que disciplina o exercício do poder jurisdicio­nal que, através do processo, apreciará o pedido e emanará o provimento, não se pode confundir a finalidade do processo com as diversificadas finalidades do Direito material, ou substancial.

E a finalidade do processo, compreendida em toda a exten­são e profundidade em que se pode entender o princípio do contraditório, ressurgirá de sua própria instrumentalidade técni­

268 A propósito de princípios contraditórios e de antinomias no texto constitu­cional, veja-se a exaustiva análise feita por WASHINGTON PÉLUSO ALBI­NO DE SOUZA em conferência proferida na Faculdade de Direito de Natal (RN), sob o título "Conflitos Ideológicos na Constituição Econômica", aguardando publicação na "Revista Brasileira de Estudos Políticos" (BL ISSN 0034-7191), da Universidade Federal de Minas Gerais (Av. Álvares Cabral, 211, sala 1206 - Belo Horizonte).

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ca. Não é ela pequena, estreita ou dispensável; ao con trário , é enorm e, profunda e necessária.

Essa finalidade perm ite que as partes recebam um a senten­ça, não construída unilateralm ente pela clarividência d o juiz, não dependente dos princípios ideológicos d o juiz, n ão con d icion a­da pela m agnanim idade de um fenôm eno Magnaud, m as gerada na liberdade de sua participação recíproca, e pelo recíp ro co co n tro le d os atos do processo.

A finalidade do processo, co m o p rocedim ento desenvolvi­d o em con trad itório entre as partes, na preparação de um provi­m en to que irá produzir efeitos na universalidade d os direitos de seu destinatário, é a prep aração participada da sentença.

Os resultados dela não são desprezíveis. Por ela os hom ens e a sociedade, dotados de liberdade e de dignidade, p o d erão saber que têm um direito assegurado, que não são con d en ad os e não têm seus supostos direitos rejeitados em n om e de qualquer o u tro nom e, a não ser em nom e d o Direito, d o D ireito que a p rópria sociedade form ulou e d o D ireito cuja existência foi p or ela consentida269.

269 Toda a polêmica questão dos escopos metajurídicos do processo deságua no Direito material. É o Direito material, construído ou reconstruído pelas partes em contraditório ao longo do procedimento, que é aplicado pelo juiz ao caso concreto submetido à sua apreciação. Na atuação deste Direito material é que se atenderá a "fins sociais" ou a "exigências do bem comum", conforme o determina o art. 5~ da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657, de 04 de setembro de 1942). Nisto não há qualquer escopo metajurídico do processo, mas aplicação, como critério de julga­mento, do Direito material, que deverá regular a espécie. Não poderá, porém, o juiz vagamente invocar "fins sociais" da lei ou "exigências do bem comum" sem uma precisa e detalhada especificação de quais sejam estes "fins sociais" ou de qual seja o conteúdo daquilo a que chama de "bem comum". É claro, mais que claro, que o "contraditório" permitirá que as partes influam na construção ou na reconstrução destes "fins sociais" ou destas "exigências do bem comum", mas tudo com os olhos postos no direito substantivo, e que irá reger a solução da lide. Dessarte, os escopos metajurídicos são eminentemente jurídicos e, mais, pertinentes não a nor­mas de processo, e sim a normas de Direito material (civil, administrativo, do trabalho, tributário, comercial...). E, aqui, acaba o conflito!...

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CAPÍTULO '

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. Como atividade humana, a ciência é um processo em permanente e contínuo desenvolvimento e não um conjunto de conhecimentos cristalizados e imobilizados no tempo. A renún­cia da ciência a novas conquistas importa na renúncia a si própria e ao aperfeiçoamento de suas técnicas, porque as transforma­ções no mundo humano são permanentes e é a realidade huma­na que exige seu progresso. A palavra de fé no crescimento da ciência é a da confiança em sua racionalidade, a confiança de que as respostas ainda não encontradas poderão ser alcançadas atra­vés de um esforço conjunto, na reflexão das construções legadas pelo passado e no seu repensar no presente, para que os resulta­dos obtidos possam ser postos à disposição da sociedade.

2. No Direito, a ciência se construiu construindo sua técni­ca, formulando seu instrumental teórico para unificar em mode­los amplos o fenômeno jurídico. De posse dessa técnica, dedi­cou-se a compreender e a elucidar seu objeto, o direito gerado na sociedade pelos órgãos por ela legitimados a elaborá-lo.

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3. A ciência do Direito Processual Civil tornou-se autônoma ao definir seu próprio domínio de investigação e ao adquirir seu próprio instrumental teórico para o tratamento de seu objeto. Sua autonomia, entretanto, longe de significar onisciência, re­presentou o início de um longo caminho de construção doutri­nária.

4. O ordenamento jurídico, naturalmente, não aguardou pela autonomia do Direito Processual Civil para incidir sobre fatos sociais. Tão antigos como o próprio Direito foram os diver­sificados ritos de sua aplicação: o culto doméstico dos Manes, os oráculos, as fórmulas, os procedimentos diferenciados que, com seus ritualismos, chegaram ao século passado.

O procedimento era rito e era forma quando a ciência do Direito Processual Civil começou a se formar, na segunda meta­de do século XIX, período em que o individualismo alastrava-se por todas as formas de relações humanas e caracterizava o pró­prio espírito da época. O instrumental teórico do Direito Proces­sual Civil foi elaborado sobre o que havia de disponível no campo do conhecimento e da realidade jurídica. Em sua resposta aos problemas que deveriam encontrar solução no plano da racionalidade, as doutrinas nascentes utilizaram os conceitos construídos no curso da história. E da Alemanha, de WINDS­CHEID e MUTHER, mais tarde da Itália de CHIOVENDA, expan­diu-se um Direito Processual Civil que se consolidou em torno do conceito do "direito de ação". Este teve a sua base na concep­ção de direito subjetivo que se fora elaborando, a partir da Idade Média, em dois sentidos: como um poder absoluto de que não se presta contas ou como um poder de exigir condutas de outrem. Dessa conexão com a ação surgia a concepção de processo como "relação jurídica".

5. À medida que a construção jurídica resplandecia, o proce­

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dimento, então mero rito, era repudiado. Esgotando-se na for­ma, não merecia um esforço de reflexão mais sério. A ação tornou-se o centro do universo do Direito Processual Civil, e desse centro se irradiaram os conceitos que seriam utilizados no tratamento de seu objeto, mesmo quando este foi identificado na norma processual e no processo.

O Direito Processual Civil brasileiro deve a sua renovação ao brilhantismo intelectual de LIEBMAN. E se desenvolveu em paralelo com a doutrina italiana, que recebera suas bases da Alemanha do século XIX, privilegiando, também, em suas inves­tigações, o direito de ação.

A doutrina do Direito Processual Civil esteve consciente das dificuldades geradas pelas múltiplas teorias da ação, mas não se deteve suficientemente no reexame dos conceitos que estavam em suas bases.

O direito subjetivo, a ação, a relação jurídica, o processo, formavam um quadro conceituai desenhado no século passado para explicar a atividade do Estado que se manifesta na jurisdi­ção.

/ 6. As construções teóricas desenvolveram-se para acompa­nhar a evolução do Direito que as conquistas sociais produziam.

; E aprimoraram-se o suficiente para acolher a grande conquista do Direito contemporâneo que já não nega mas reconhece o conflito e busca resolvê-lo com a participação dos interessados, em contradição. O conceito do contraditório evoluiu. Já não se limita ao direito da parte de ser ouvida, ao direito de se defender, mas erigiu-se como uma garantia dos destinatários da decisão de

| participar do processo, em simétrica igualdade, na etapa prepa- : ratória do ato imperativo do Estado — a sentença —, para influir em sua formação.

7. Os conceitos que responderam a uma realidade normati­

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va do século passado não são adequados para responder à reali­dade normativa do mundo de hoje. O processo foi concebido como uma relação jurídica na circunscrição de um direito marca­do pelo individualismo.

A categoria de relação jurídica, com seu vínculo de sujeição, foi submetida à reflexão e à crítica da doutrina do século XX, exigidas por um direito que se transformou na ampliação das garantias sociais. A reflexão crítica incidiu também sobre a clás­sica concepção de direito subjetivo que era o esteio da categoria da relação jurídica. Ao conceito de relação jurídica como vínculo entre sujeitos foi proposta a alternativa da categoria de situação jurídica, que permite o exame de poderes, faculdades e deveres na correlação da poçição subjetiva com a norma.

8. Surge no quadro dessas renovações uma nova concepção de procedimento, como atividade preparatória do ato do Estado de caráter imperativo, o provimento, disciplinada por uma estru­tura normativa em que as normas se encontram em uma especial forma de conexão. O centro de gravidade do Direito Processual Civil começa a se deslocar. Com base no renovado conceito de procedimento prepara-se um novo conceito de processo.

A grande contribuição para essa construção, orgânica, lógi­ca e sistematizada, vem de ELIO FAZZALARI que, com apoio em um quadro sólido e coerente, formula a concepção do processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes.

9. A jurisdição não é a manifestação de um poder sem disciplina jurídica. Ao contrário, quando o Estado é chamado a exercer a "função" jurisdicional ele age dentro de uma estrutura normativa que regulamenta sua atividade. E essa estrutura nor­mativa está construída para comportar e garantir a participação dos destinatários do ato imperativo do Estado na fase de sua formação. A jurisdição, estudada pelo Direito Processual Civil,

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exerce-se nos limites do ordenamento jurídico, sob sua discipli­na, em uma estrutura normativa, em que os atos e as normas são conectadas em especial forma de.interdependência.

10. A identificação do processo nessa estrutura normativa, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, supera a concepção de processo como relação jurídica. O contra­ditório é oportunidade de participação paritária, é garantia de simétrica igualdade de participação dos destinatários do provi­mento na fase procedimental de sua preparação. A possibilidade assegurada de participação em simétrica igualdade não se conci­lia com vínculo de sujeição.

11. Os conceitos de garantia e de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos, de momentos sociais distintos, de concepções distintas. Pela evolução do conceito de contraditório, a categoria da relação jurídica processual já não é logicamente admitida. Perante o contraditório, não se pode falar em relação de sujeição ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato final do processo, de cuja preparação participam, e não ao juiz. A categoria da relação jurídica já não é própria para a concepção de processo centrada na garantia do contraditório, porque não é com ela compatível: ou existem vínculos de sujeição ou existe liberdade garantida de participação.

12 . O processo, libertado do conceito de relação jurídica, renova-se na renovação do conceito de procedimento. O proces­so é um procedimento, mas não dos ritos e das formas a se justificarem a si mesmos. Um procedimento realizado em contra­ditório entre as partes, que trazem seus interesses contrapostos, seus conflitos e suas oposições à discussão no âmago da ativida­de que se desenvolve, até o momento final, um procedimento

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para a emanação de uma sentença participada, da sentença que é ato do Estado, mas que não é produzida isoladamente pelo Estado e sim resulta de toda uma atividade realizada com a participação, em garantia de simétrica paridade, dos interes­sados, ou seja, dos que irão suportar os seus efeitos.

13. Na concepção de processo como procedimento realiza­do em contraditório entre as partes, renova-se, também, o con­ceito de ação como série de "posições subjetivas compostas", atribuída às partes, no processo, em todo o curso do processo, em correlação com as atividades do juiz, no exercício da função da jurisdição.

■*

14. Na estrutura normativa do processo, os poderes, facul­dades e deveres das partes não podem ser exigidos. Têm elas a liberdade de transformá-los em ônus. Mas a função jurisdicional é do Estado que não pode renunciar ao poder da jurisdição que é o "poder de cumprir o dever" da resposta, o dever de emanar o provimento. Ação e Função: o agir no processo, no curso do processo, com as garantias do processo e sob a disciplina do processo, em uma situação de legitimação.

15. O contraditório foi definitivamente conquistado como um direito das partes, foi consagrado, no Brasil, como garantia constitucional, e se transformou em uma exigência da instru- mentalidade técnica do processo. A idéia que está em sua base é a da evolução da prática da democracia e da liberdade, em que os interesses divergentes ou em oposição encontram espaço garan­tido para sua manifestação, na busca da decisão participada.

16. Enquanto não se podia pensar a função jurisdicional

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com a participação das partes na fase de preparação da sentença, a reflexão jurídica se ateve à missão do juiz, e projetou nele a grande esperança de se retificarem as injustiças do Direito posi­tivo.

17. Com as novas conquistas do Direito, o problema da justiça no processo foi deslocado do "papel-missão" do juiz para a garantia das partes. O grande problema da época contemporâ­nea já não é o da convicção ideológica, das preferências pessoais, das convicções íntimas do juiz. E o d e que os destinatários do provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo juris­dicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade, podendo compreender por que, como, por que forma, em que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos e para impor condenações.

18. A instrumentalidade técnica do processo, como ativida­de regida por uma específica estrutura normativa que prevê a participação dos destinatários do provimento no iter que o pre­para é repensada em uma nova dimensão.

19- Os fins metajurídicos do processo não possuem crité­rios objetivos de aferição no Direito Processual Civil. Se o exercí­cio da função jurisdicional se manifesta sob a disciplina do orde­namento jurídico, e nos limites por ele definidos, "qualquer fim do processo só pode ser jurídico" (Cf. rodapé 268).

20. A concepção do processo como procedimento realizado em contraditório não comporta fins extrajurídicos, porque a preparação participada do provimento válido é juridicamente

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disciplinada. O provimento se forma sob a regulamentação de toda uma estrutura normativa que limita a manifestação da juris­dição e assegura às partes o direito de participação igual, simétri­ca e paritária, na fase que prepara o ato final (Cf., novamente, rodapé 268).

21. Entre o processo e a situação de direito material já não se concebe uma relação de necessidade lógica, e, em conseqüên­cia, a existência dessa situação não é medida cie utilidade-do processo. Ao Judiciário incumbe apreciar lesão ou ameaça a direito, para deferir ou rejeitar as medidas requeridas, e essa função já não se cumpre pelo prévio controle da existência da lesão ou ameaça. Entre o ato de apreciação, o objeto da aprecia­ção e o resultado da apreciação, há diferenças manifestas.

2 1 .1 . O processo cumprirá seu escopo existindo ou inexis- tindo a lesão ou a ameaça alegadas, ou deficientemente alegadas, ou ineptamente alegadas. Em face da estrutura normativa que rege a preparação do provimento, este será emanado, em sua natureza de ato imperativo, se corretamente realizado com a garantia da participação das partes, em contraditório, ainda que a medida jurisdicional requerida não possa ser concedida.

21.2. A finalidade do processo de atuar o direito é condicio­nada à constatação, no iter procedimental, da existência de um direito lesado a ser atuado. E a medida da justiça da decisão será a mesma medida da justiça do direito material.

2 1 .3 . O processo, como procedimento realizado em contra­ditório entre as partes, cumprirá sua finalidade garantindo a emanação de uma sentença participada. Os seus destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juizes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender

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que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do Direito, construído pela própria socie­dade ou que tenha sua existência por ela consentida.

22. Este estudo foi iniciado por uma reflexão sobre a cíclica crise de confiança da cultura ocidental na razão, crise què se estende à racionalidade do Direito. E conclui pela afirmação da necessidade de se recuperar a função social do conhecimento. As práticas caóticas, e as aventuras experimentais, sem maiores compromissos com a fundamentação, quando se destinam a influir no campo social, atingindo liberdades, têm provocado ingentes sofrimentos, muitos deles irremediáveis.

2Í2.1 . O conhecimento fundamentado permite, ao'menos, que seja afastado o argumento autoritário que não se explica senão pela força que o sustenta.

23. A ciência do Direito Processual Civil não traça normas para a sociedade, tal como a racionalidade lógica da ciência não é jamais normativa. Mas ela pode ampliar os horizontes da liber­dade, possibilitando que haja verdadeira escoltfa, lúcida e inteli­gível, entre opções possíveis, da utilização que a sociedade pu­der fazer dos resultados de suas investigações.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO....................................... ........................................

CAPÍTULO I CIÊNCIA E TÉCNICA

1.1. A C iência............................................................................1.2. A Técnica.............................................. - ...........................1.3- Relações Entre Ciência e Técnica...........................-. .

CAPÍTULO II CIÊNCIA JURÍ DICA E TÉCNICA JURÍDICA

2.1. Relação Entre Ciência Jurídica e Técnica Jurídica . .2.2. Os Campos da Investigação do Direito ....................2.3- Dogmática Jurídica e Teoria Geral do Direito . . . .2.4. A Técnica Ju ríd ica ............................................................2.5. O Auxílio da L ó g ica .........................................................

2.5.1. Mitificação e D esm itificação...........................2.5-2. Um Instrumento para um Raciocínio . . . .

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CAPÍTULO IIICIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E TÉCNICA PROCESSUAL

; 3 -1. A Ciência do Direito Processual e seu Objeto . . . . 45l 3-2. A Necessidade da Distinção Entre a Ciência e

seu O b je to ......................................................................... 473.3- A Norma Processual.................................. ... 483.4. A Ju r is d iç ã o ......................................................... ... 503 5. O Processo............................................................•. . . . 55

I CAPÍTULO IVPROCESSO E PROCEDIMENTO

4.1. Processo e Procedimento: multiplicidade deAcepções ............................................................... 59

l 4.1.1. Processo ............................................... ... 59! 4.1.2. Procedim ento.................................................. I 61[ 4.2. Procedimento e Processo: Duas Tendênciasi Teóricas D istintas............................................................. 62| 4.2.1. Procedimento e Processo: A Distinção Baseada

em Critério "Teleológico"................................. 644.2.2. A Base da Distinção pelo Critério

y-j j‘ T e leo ló g ico .................................. ....................... 6622 1 4.2.3- Procedimento e Processo Vistos Sob Uma24 | Perspectiva Lógica ............................................ 67

CAPÍTULO V O PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA

27 5 1. Relação Jurídica Processual............................................ 7028 j 5.2. A Questão da Relação Ju r íd ic a ..................................... 7329 5 3. A Questão do Direito Subjetivo ..................................7531 5 4. As Dificuldades na Aplicação do Modelo Clássico de36 , Relação Jurídica e do Clássico Conceito de36 Direito Subjetivo ............................................................7839 5 5. As Reações da Doutrina e a Formulação de

,! Novas Propostas............................................................... 81

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5.6. A Negação da Relação Jurídica Pela sua Redução a UmaConexão de Normas e a Correlata Negação do Direito Subjetivo............................................................................ 81

5.7. A Teoria das Situações Ju r íd ic a s ................................855.8. Direitos Subjetivos e Situação Jurídica...................... 905-9- O Problema do Direito Subjetivo Como Poder

de Exigir a Conduta de Outrem . ............................915.10. A Questão da Concepção do Processo Como

Relação Ju r íd ica ............................................................... 97

CAPÍTULO VI O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO

EM CONTRADITÓRIO ENTRE AS PARTES6.1. Procedimento: Atividade Preparatória do

Provimento ......................................................................1026.2. A Renovação do Conceito de Procedimento............1036.3. A Contribuição de ELIO FAZZALARI......................... 105

6.3.1. O Processo Como Espécie do GêneroProcedimento ......................................................111

6.3 2. O Processo Como Procedimento Realizado em Contraditório ........................................ ... 115

6.4. O Contraditório............................................................ . 1196.5. Condições e Resultados da Caracterização do

C ontraditório ...................................................................129

CAPÍTULO VTI A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO

7.1. A Ação: Resposta da Ciência ao Problema deUma É p oca......................................................................... 133

7.2. A Revisão do Conceito de A ção ....................................143

CAPÍTULO VIIIA SITUAÇÃO DE DIREITO MATERIAL E O PROCESSO . . . 155

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CAPÍTULO IX AINSTRUMENTALIDADE TÉCNICA DO PROCESSO

9-1. O Processo Como T é c n ic a ..........................................1689-2. A Finalidade do Processo Jurisdicional ................... 1709 3- A Proteção de Direitos ............................................... 1719.4. A Proteção de Direitos M ateriais............................... 1739 5- A Proteção do Direito Lesado ou Ameaçado........... 1759-6. A Questão dos Escopos Metajurídicos do Processo . 179

CAPÍTULO XCONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................. ... 189

BIBLIOGRAFIA............. .................................................................199ÍNDICE DE AUTORES................................................................. 212ÍNDICE.................................................................. ; . ...................220