Áreas de proteção ambiental e Áreas de preservação...

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IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília - DF – Brasil ______________________________________________________ Áreas de Proteção Ambiental e Áreas de Preservação Permanente como Instrumento Legal de Regulação Urbano-Ambiental? Ester Limonad (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE) Doutora em Planejamento Urbano e Regional (USP), Pós-Doutorado em Geografia Humana (UB), Professora Associada I, Pesquisadora do CNPq [email protected] Josélia Alves (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE) Mestre em Urbanismo (UFRJ), Professora Assistente, Universidade Federal do Acre, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF [email protected] Resumo O crescimento populacional e as tendências recentes da urbanização brasileira apontam para uma crescente pressão sobre Áreas de Preservação Permanente – APPs. Em particular, a partir da ocupação de restingas, dunas, manguezais, lagoas, encostas, várzeas de rios, córregos urbanos e nascentes de mananciais, com a aquiescência do Poder Público. Por vezes tal ocupação ocorre inclusive no interior de APAs (Áreas de Preservação Ambiental) já instituídas e estabelecidas. Embora as APAs e as APPs tenham por meta garantir a função social e ambiental da propriedade e sejam potenciais instrumentos poderosos de regulação urbano-ambiental, ambas enfrentam diversos obstáculos para sua instituição legal em áreas urbanas ocupadas ou em vias de ocupação. Obstáculos que compreendem desde conflitos entre distintas esferas de decisão e gestão a planos de ordenamento territorial e ambiental equivocados, que tendem a identificar áreas não ocupadas e não-urbanizadas com áreas a serem urbanizadas. A meta desse trabalho é apontar os conflitos existentes entre a aplicação da legislação ambiental em áreas urbanas e as formas de ocupação e uso do solo vigentes. Nesse sentido se tratará de caracterizar o potencial das APAs (Áreas de Preservação Ambiental) e APPs (Áreas de Preservação Permanente) relativas ao tema. Enquanto objetos referenciais de análise serão abordados um caso de ocupação de área de preservação ambiental (APA Litoral Norte-BA) e um caso de ocupação de área de preservação permanente (micro-bacia do Igarapé Fundo, na cidade de Rio Branco-AC). Palavras-chave preservação ambiental, urbanização, legislação ambiental

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IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília - DF – Brasil ______________________________________________________

Áreas de Proteção Ambiental e Áreas de Preservação Permanente como Instrumento Legal de Regulação

Urbano-Ambiental?

Ester Limonad (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE)

Doutora em Planejamento Urbano e Regional (USP), Pós-Doutorado em Geografia Humana (UB),

Professora Associada I, Pesquisadora do CNPq [email protected]

Josélia Alves (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE)

Mestre em Urbanismo (UFRJ), Professora Assistente, Universidade Federal do Acre,

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF [email protected]

Resumo O crescimento populacional e as tendências recentes da urbanização brasileira apontam para uma crescente pressão sobre Áreas de Preservação Permanente – APPs. Em particular, a partir da ocupação de restingas, dunas, manguezais, lagoas, encostas, várzeas de rios, córregos urbanos e nascentes de mananciais, com a aquiescência do Poder Público. Por vezes tal ocupação ocorre inclusive no interior de APAs (Áreas de Preservação Ambiental) já instituídas e estabelecidas.

Embora as APAs e as APPs tenham por meta garantir a função social e ambiental da propriedade e sejam potenciais instrumentos poderosos de regulação urbano-ambiental, ambas enfrentam diversos obstáculos para sua instituição legal em áreas urbanas ocupadas ou em vias de ocupação. Obstáculos que compreendem desde conflitos entre distintas esferas de decisão e gestão a planos de ordenamento territorial e ambiental equivocados, que tendem a identificar áreas não ocupadas e não-urbanizadas com áreas a serem urbanizadas.

A meta desse trabalho é apontar os conflitos existentes entre a aplicação da legislação ambiental em áreas urbanas e as formas de ocupação e uso do solo vigentes. Nesse sentido se tratará de caracterizar o potencial das APAs (Áreas de Preservação Ambiental) e APPs (Áreas de Preservação Permanente) relativas ao tema. Enquanto objetos referenciais de análise serão abordados um caso de ocupação de área de preservação ambiental (APA Litoral Norte-BA) e um caso de ocupação de área de preservação permanente (micro-bacia do Igarapé Fundo, na cidade de Rio Branco-AC).

Palavras-chave preservação ambiental, urbanização, legislação ambiental

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O crescimento populacional e as tendências recentes da urbanização brasileira apontam para

uma pressão crescente sobre as Áreas de Preservação Permanente (APPs), em particular, a

partir da ocupação de restingas, dunas, manguezais, lagoas, encostas, várzeas de rios, córregos

urbanos e nascentes de mananciais. Muitas vezes isso ocorre com a aquiescência do Poder

Público. Por vezes, tal ocupação soe ocorrer no interior de Áreas de Proteção Ambiental (APAs) já

instituídas, estabelecidas com planos de manejo e zoneamento econômico-ecológico definido.

Não obstante as APAs e as APPs tenham por meta garantir a função social e ambiental da

propriedade e possuam um potencial poderoso de regulação urbano-ambiental, ambas enfrentam

diversos obstáculos para sua instituição legal de fato, seja em áreas urbanas ocupadas ou em

vias de ocupação, seja em áreas não ocupadas. Obstáculos que compreendem desde conflitos

entre distintas esferas de decisão e gestão a planos de ordenamento territorial e ambiental

equivocados, que tendem a identificar áreas não ocupadas e não-urbanizadas como potenciais

áreas para a urbanização ou para o desenvolvimento de atividades diversas de cunho

“sustentável”. Rótulo questionável, que muitas vezes contribui mais para legitimar a ocupação e

degradação ambiental do que para promover a preservação e proteção ambiental.

A meta desse trabalho é apontar alguns conflitos existentes entre a aplicação da legislação

ambiental em áreas de proteção e preservação ambiental (APAs e APPs) e as formas de

ocupação e uso do solo vigentes. Nesse sentido se tratará de caracterizar o potencial das APAs

(Áreas de Preservação Ambiental) e APPs (Áreas de Preservação Permanente) relativas ao tema.

Enquanto objetos referenciais de análise serão abordados um caso de ocupação de área de

preservação ambiental (APA Litoral Norte-BA) e um caso de ocupação de área de preservação

permanente (micro-bacia na cidade de Rio Branco-AC).

As APPs (áreas de preservação permanente) do ponto de vista jurídico legal são espaços, tanto

de domínio público quanto privado. Considerando-se a função ambiental da propriedade, definida

pelo Código Florestal (Lei n° 4.771 de 15/09/1965), a definição legal de APPs pelo poder público

municipal e estadual poderia contribuir para limitar o direito de propriedade, sem que seja

necessária a desapropriação das áreas de preservação permanente, por não inviabilizarem

totalmente o exercício do direito de propriedade.

Uma primeira aproximação ao tema indica que estão sendo buscadas soluções relativas ao tema

das APPs, sobretudo no campo jurídico, do âmbito federal ao municipal. No entanto, observa-se

que mesmo com a degradação sócio-ambiental decorrente da instalação de condomínios de luxo,

resorts e assentamentos habitacionais precários em APPs, esses casos não tem sido tratados de

forma clara. Isso sucede, seja em APAs que abrangem áreas urbanas, como ocorre no município

de Petrópolis, seja em APPs no interior de APAs em processo de urbanização, como se pode

verificar no Litoral Norte da Bahia, ou ainda em APPs onde a urbanização tende a se consolidar

como é o caso da APP urbana de Rio Branco, capital do Acre. Nessas APAs o Poder Público

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Municipal tende a fazer concessões a interesses diversos, em nome de um desenvolvimento local,

que muitas vezes tende a comprometer os recursos naturais do município. Para tanto, apela-se à

função social da propriedade, em detrimento de sua função ambiental.

Assim, o equacionamento do impacto da urbanização em APAs e APPs carece de uma

abordagem crítica em diversas escalas. Pois, se por um lado cabe ao poder público e à sociedade

administrar o problema, muitas vezes há conflitos de interesses que tendem a comprometer a

regulação e preservação ambiental.

No caso das APPs, Ackermann e Bitar (2005), com base em uma pesquisa realizada em São

Paulo, ressaltam que, embora haja controvérsias, alguns pontos já são aceitos. Destacam entre

esses o fato da aplicação das normas relativas a APPs dever ser diferenciada para o ambiente

urbano. Para esses autores, segundo essas normas, uma APP em ambiente urbano deveria se

destinar preferencialmente para fins de lazer, recreação e criação de áreas verdes. Prevêem,

ainda, que o uso e a autorização para ocupação do solo em APPs, situadas em regiões

urbanizadas, devem se limitar a locais degradados, mediante indução de projetos que contribuam

para a recuperação das funções ambientais outrora desempenhadas por elas. Enfim estabelecem,

que o uso e a autorização para a ocupação do solo em APPs, devem estar condicionados à

utilidade pública e ao interesse social. Mesmo essas normas diferenciadas, porém, não

necessariamente evitam a ocupação e degradação de APPs urbanas, como ocorre na Micro-Bacia

do Igarapé Fundo, onde todas as APPs ao longo desse Igarapé foram transformadas pelo Plano

Diretor da Prefeitura Municipal de Rio Branco no Acre (2006) em Áreas de Especial Interesse

Social – AEIS.

No caso das APAs a questão é deveras mais complexa, uma vez que muitas compreendem

diversos municípios, o que tende a implicar em uma superposição de competências municipais e

estaduais, às quais se soma a competência federal no caso de municípios costeiros e áreas

florestais. O conflito nesse caso desponta a partir da aprovação de loteamentos, planos de uso do

solo em áreas de preservação ambiental, sem que se contemple as áreas de preservação

permanente aí existentes, como ocorre na APA Litoral da Bahia.

Para dar consecução a nosso objetivo inicialmente serão abordadas as formas de regulação

ambiental existentes relativas à preservação ambiental em APAs e APPs, a seguir se tratará dos

problemas enfrentados na APA Litoral Norte da Bahia e nas APPs de Rio Branco, capital do Acre.

O texto se encerra com algumas considerações críticas relativas às práticas de uso e ocupação

do solo em APAs e APPs.

Formas de Regulação Ambiental Atualmente há um amplo leque de leis e normas destinadas a regular a ocupação e uso do solo e

contribuir para a preservação dos diversos tipos de áreas protegidas. No que concerne à

urbanização das áreas litorâneas, margens de rios e áreas onde existe uma vegetação protetora

aplicam-se além da legislação federal, leis estaduais, municipais, planos diretores e leis orgânicas.

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Em razão de seu caráter regulador geral será dada ênfase à evolução da legislação que concerne

à regulação de Áreas de Preservação Permanente (APP) e Áreas de Preservação Ambiental

(APA), sistematizada adiante no Quadro I.

A preocupação com o ambiente natural no Brasil não constitui novidade. No início do século XX os

Estados do Paraná (Lei 706, de 01/04/1907) e de Sergipe (Lei 656, de 03/11/1913) elaboraram , a

partir de um viés produtivista (CARVALHO, 2007, p.1), Códigos Florestais destinados a regular

utilização racional de suas florestas (COPPETEC, 2002, p. 65). Foi apenas em 1934, durante o

governo do Presidente Getúlio Vargas, que se aprovou o primeiro Código Florestal nacional,

através do Decreto n° 23.793 de 23/01/1934.

O fato inédito para a época é que esse Código Florestal limitava o direito da propriedade privada

e já se preocupava em preservar o que designava de florestas "protectoras"1, que com o Código

Florestal de 1965 (Lei Nº 4.771, de 15/09/1965), um ano após o golpe militar de 1964, passaram a

ser definidas como Áreas de Preservação Permanente (APP).

Em sua reformulação, em 1965, o Código Florestal Federal explicita mais claramente as áreas a

serem protegidas e define com base nas florestas “protectoras” as Áreas de Preservação

Permanente e as Reservas Legais (RL) que não se confundem, nem se superpõem. Uma vez que

a reserva legal é a reserva de mata a ser preservada nas propriedades rurais, equivalente a 20%

da área da propriedade.

Para Medeiros (2006), a definição das APPs e da Reserva Legal pelo Código Florestal de 1965

representou uma tentativa de conter os avanços sobre as florestas. As APPs ao declarar como

“intocável todos os espaços cuja presença da vegetação garante sua integridade (serviços

ambientais)” e a Reserva Legal ao transferir “para os proprietários rurais a responsabilidade e o

ônus da proteção”.

Vinte anos mais tarde, em 1985, através da Resolução CONAMA n° 04, de 18/09/1985, o

Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) transforma as APPs em Reservas Ecológicas.

Essa resolução além de estabelecer conceitos ambientais legais dá poderes aos estados e

municípios para definir normas mais restritivas em relação às Reservas Ecológicas.

Atualmente a legislação ambiental brasileira possui diferentes figuras jurídicas relativas à

regulação ambiental. Entre as normas que permitem a ocupação humana e limitam o direito de

propriedade destacam-se, além das Áreas de Preservação Permanente (APPs), as Áreas de

Proteção Ambiental (APAs). As APAs assim como as APPs podem ser de domínio público ou

privado Embora ambas impliquem em uma limitação do direito de propriedade relativo à

ocupação, exploração e uso do solo, sua instituição não requer a desapropriação de terras.

1 BRASIL. Decreto n 23.793, de 23/01/1934o . “Art. 4º Serão consideradas florestas protectoras as que, por sua localização, servirem conjuncta ou separadamente para qualquer dos fins seguintes: a) conservar o regimen das aguas; b) evitar a erosão das terras pela acção dos agentes naturaes; c) fixar dunas; d) auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado necessario pelas autoridades militares; e) assegurar condições de salubridade publica; f) proteger sitios que por sua belleza mereçam ser conservados; g) asilar especimens raros de fauna indigena.”.

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Não obstante essas semelhanças ambas diferem em termos da base jurídica legal para defini-las

e em termos do tipo de áreas que abrangem.

As APPs2 abrangem, além das florestas “protectoras” do Código Florestal de 1934, as demais

formas de vegetação natural existentes nas nascentes dos rios (Lei n° 7.754, de 14/04/1989 – ver

Quadro I) e aquelas destinadas, entre outras coisas, a preservar a qualidade das águas, atenuar a

erosão do solo, proteger restingas, manguezais e dunas, bem como funcionar como corredores de

fauna. Definem-se, assim, com base no Código Florestal de 1965, faixas de preservação de

vegetação de dimensão variável com base na topografia3, ou no relevo4, ao longo de cursos

d´água5, nas proximidades de nascentes6 e de reservatórios d’água.

As APPs podem ser classificadas em duas categorias, aquelas que já são assim consideradas a

priori pelo efeito do artigo 2° do Código Florestal e aquelas que necessitam ser declaradas por

ato do Poder Executivo, como prevê o artigo 3º do mesmo Código7.

As APAs, por sua vez, compreendem, geralmente, áreas extensas dotadas de atributos naturais

com um certo grau de ocupação humana. Podem ser instituídas pelas diferentes esferas de poder

(federal, municipal ou estadual), assim, em termos político-administrativos podem abranger

distintos municípios e aglomerações urbanas, e em termos ambientais podem conter outras

unidades de conservação.

Atualmente as APAs são definidas como Unidades de Conservação de Uso Sustentável (Lei n°

9.985 de 18/07/2000 – ver Quadro I), destinadas a conservar a qualidade ambiental e os sistemas

naturais ali existentes, visando à melhoria da qualidade de vida da população local e à proteção

dos ecossistemas regionais. De acordo com a Lei n° 6.938 de 31/08/1981 (ver Quadro I) todas as

2 Instituídas pelo Código Florestal (Lei n° 4.771/65) e alteradas pela Lei n° 7.803/89) as APPs são definidas no Art. 170, VI da Constituição de 1988 e posteriormente sofrem diversas modificações, ver Quadro I. 3 BRASIL Lei n° 4.771/65. “Art. 2°. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: d) no topo dos morros, montes, montanhas e serras; e) nas encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; h) em altitude superior a 1.800 m (mil e oitocentos metros), qualquer que seja a vegetação. 4 BRASIL Lei n° 4.771/65. “Art. 2°. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 m (cem metros) em projeções horizontais; (...)”. 5 BRASIL Lei n° 4.771/65. “Art. 2°. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d´água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja: 1 - de 30 m (trinta metros) para os cursos d´água de menos de 10 m (dez metros) de largura; 2 - de 50 m (cinqüenta metros) para os cursos d´água que tenham de 10 (dez) a 50 m (cinqüenta metros) de largura; 3 - de 100 m (cem metros) para os cursos d´água que tenham de 50 (cinqüenta) a 200 m (duzentos metros) de largura; 4 - de 200 m (duzentos metros) para os cursos d´água que tenham de 200 (duzentos) a 600 m (seiscentos metros); 5 - de 500 m (quinhentos metros) para os cursos d´água que tenham largura superior a 600 m (seiscentos metros) de largura; (...)” 6 BRASIL Lei n° 4.771/65. “Art. 2°. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados `olhos d´água´, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 m (cinqüenta metros) de largura; (...)”. 7 O artigo 3º da Lei nº 4.771/65 , contempla a possibilidade do Poder Público criar APPs, em se tratando de "florestas e demais formas de vegetação natural destinadas: a) a atenuar a erosão das terras ; b) a fixar as dunas c) a formar as faixas de proteção ao longo das rodovias e ferrovias; d) a auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades militares; e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico; f) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçadas de extinção ;g) a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas;h) a assegurar condições de bem estar público".

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APAs devem ter um zoneamento ambiental que defina o planejamento de uso e ocupação do

solo, urbano e/ou rural, e as atividades que nele podem ser exercidas, determinando condições

para tal. Em 1988, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) estabelece através da

Resolução n° 10, de 14/12/1988 (ver Quadro I), que todas as APAs devem ter sempre um

zoneamento ecológico-econômico. Este zoneamento deve conter zonas de vida silvestre, nas

categorias de preservação e de conservação, onde será proibido ou restringido o uso dos

recursos naturais.

Enquanto as APAs podem ser reguladas por leis municipais e estaduais, as APPs somente podem

ser modificadas ou suprimidas com autorização ou licenciamento ambiental prévio por parte do

órgão federal do meio ambiente. Essa medida inclusive foi reforçada na Constituição de 1988, ao

estabelecer que a supressão ou modificação da vegetação protetora de nascentes, ou de dunas

e mangues somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública e mediante legislação

especial (Brasil, Constituição Federal de 1988, Art. 225, § 1º, III – ver Quadro I). Não obstante a

Lei Federal n° 7.803 de 15/08/1989 (ver Quadro I), em seu artigo 22 atribua a fiscalização das

APPs urbanas aos municípios, prevê a participação suplementar por parte do governo federal.

Percebe-se, assim que nem os municípios, nem os governos estaduais possuem competência

para gerir, suprimir ou modificar áreas de preservação permanente, com exceção das APPs

urbanas. Porém, para isso não basta que a área a ser licenciada esteja no perímetro urbano, é

necessário ainda que esses municípios possuam um plano diretor (BRASIL, 1988, art. 182, §1°) e

um órgão ambiental próprio (Decreto 99.274/91 – ver Quadro I). O que exclui uma boa parte dos

municípios brasileiros. Primeiro porque municípios com menos de vinte mil habitantes não

necessitam de plano diretor e, segundo, pelo fato de que muitos municípios, com menos de cem

mil habitantes, muitas vezes sequer dispõem de um órgão ambiental próprio.

É interessante notar que a Resolução n° 04 de 18/09/1985 do CONAMA (ver Quadro I) transforma

as APPs em Reservas Ecológicas (RESEC), além de definir as Áreas de Relevante Interesse

Ecológico (ARIE) estabelecidas pelo Decreto nº 89.336, de 31/01/1984 (ver Quadro I).

Em 1996, foram criadas as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) de modo a

estimular a criação voluntária de áreas protegidas pela sociedade. (ver a respeito do papel

controverso dessas reservas o trabalho de COSTA, 2007).

Em 2000 foi criado o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) (Lei

9.985, de 18/07/2000 – ver Quadro I), que estabelece as Unidades de Proteção Integral e de Uso

Sustentável nas diversas esferas de governo (federal, estadual e municipal) definindo diretrizes

gerais para a criação e gerenciamento dessas unidades de conservação. Enquanto nas primeiras

é limitado e restringido o uso indireto dos seus recursos naturais, nas segundas a proposta é

compatibilizar a utilização dos recursos naturais com a conservação da natureza, sendo

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necessário para tanto um plano de manejo da área. É nessa segunda categoria que inserem-se as

APAs. Além das APAs o SNUC cria um amplo leque de áreas protegidas8.

Para Medeiros (2006) a criação do SNUC em 2000, pode ser interpretada como uma tentativa de

consolidar em uma única lei a vasta legislação relativa à criação e gestão das áreas de

protegidas. Porém embora o SNUC tenha contribuído para integrar e sistematizar a gestão das

unidades de conservação, ao não contemplar e integrar as APPs e RLs, manteve a

desarticulação pré-existente. Além disso, ao extinguir as Reservas Ecológicas, o SNUC põe fim a

uma aparente duplicidade estabelecida entre a Resolução CONAMA n° 4, de 18/09/1985, (que

transformou as APPs em Reservas Ecológicas) e o Código Florestal de 1965 (Lei n° 4.711 de

15/09/1965), que estabelece as APPs (ver Quadro I).

Um ano mais tarde, em 24 de agosto de 2001, o governo federal edita uma Medida Provisória (MP

2166-67) que vai contra o estabelecido no Código Florestal de 1965, ao permitir a inclusão das

áreas das APPs no percentual de Reserva Legal, desde que não implique em conversão de novas

áreas para o uso alternativo do solo. Enquanto o Código Florestal de 1965 estabelece que ambas

não se superpõem. O que resulta em uma possibilidade de se reduzir as áreas de mata e de

vegetação original a serem preservadas em propriedades rurais. Possibilidade essa reforçada, por

outro dispositivo dessa mesma Medida Provisória permitindo modificar o percentual da Reserva

Legal, estabelecido pelo Código Florestal de 1965 em 20%, dependendo da área do país em que

se encontre a propriedade rural. No caso da Amazônia Legal essa Reserva Legal chega a 80% da

área da propriedade rural.

QUADRO I – BRASIL LEGISLAÇÃO REFERENTE ÀS ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL E ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (1934-2006) Lei/Resolução/Decreto Dispositivos Decreto n 23.793 de 23/01/1934o Código Florestal de 1934

Revogado pela Lei n° 4.711 de 15/09/1965 Lei n° 4.771, de 15/09/1965 Alterada pela Lei n° 7.803, de 15/08/1989

Código Florestal de 1965 Dispõe sobre as Áreas de Preservação Permanente (APPs) "Art. 2° - Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural (...)” Art. 5° e 6° revogados pela Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000

Lei n° 6902, de 27/04/1981 Dispõe sobre a criação de Estações Ecológicas, Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e dá outras providências.

Lei n° 6.938, de 31/08/1981 Alterada pelo Decreto n° 99.274 de 06/06/1990

Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. “Art. 18 - São transformadas em reservas ou estações ecológicas, (...), as florestas e as demais formas de vegetação natural de preservação permanente, relacionadas no artigo 2° da Lei n° 4.771, de 15/09/1965”. (Revogado pela Lei n° 9.985, de 18/07/2000).

Decreto nº 89.336, de 31/01/1984. Dispõe sobre as Reservas Ecológicas e Áreas de Relevante Interesse Ecológico, e dá outras providências.

Lei n° 7.754, de 14.04.1989 Estabelece medidas para proteção das florestas existentes nas nascentes dos rios e dá outras providências

8 Em seu artigo 8° o SNUC define as seguintes modalidades de Unidades de Proteção Integral: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; e Refúgio da Vida Silvestre. Já as Unidades de Uso Sustentável estão definidas no artigo 14 da mesma lei e, são as seguintes: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Florestas Nacionais; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e Reserva Particular do Patrimônio Natural.

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Resolução CONAMA n° 004, de 18/09/1985 Revogada pela Lei n° 9985 de 18/07/2000

Transforma as APPs (áreas de preservação permanente) em Reservas Ecológicas (Art. 1°, Art. 3° e Art. 4°. Estabelece definições legais de conceitos ambientais. Art. 1º - São consideradas Reservas Ecológicas as (...) as áreas de florestas de preservação permanente mencionadas no Artigo 18 da Lei nº 6.938/81, bem como as estabelecidas pelo Poder Público de acordo com o (...) Artigo 1º do Decreto nº 89.336/84. Art. 5º - Os Estados e Municípios, através de seus órgãos ambientais responsáveis, terão competência para estabelecer normas e procedimentos mais restritivos que os contidos nesta Resolução, com vistas a adequá-las às peculiaridades regionais e locais”.

Constituição da República Federativa do Brasil, de 05/10/1988

Capítulo 6, Artigo 225, § 4, trata da zona costeira como patrimônio nacional e assegura a sua preservação.

Resolução CONAMA nº 10, de 14/12/1988

Dispõe sobre o zoneamento ecológico-econômico das Áreas de Proteção Ambiental e dá outras providências.

Lei Federal n° 7.661, de 16/05/1988 regulamentada pelo Decreto nº 5.300 de 07/12/2004

Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro Conjunto de procedimentos que, através de instrumentos específicos, permite gerir a utilização dos recursos da zona costeira. O seu objetivo é gerenciar, de forma integrada, centralizada e participativa, as atividades sócio-econômicas, de forma a garantir a utilização, controle conservação e preservação dos recursos naturais.

Lei n° 7.803, de 15/08/1989 altera a Lei n° 4.771, de 15/09/1965 em particular no que se refere às Áreas de Preservação Permanente e às Reservas Legais.

Decreto n° 99.274, de 06/06/1990 Regulamenta a Lei n° 6.902, de 27/04/1981, e a Lei n° 6.938, de 31/08/1981, que dispõe, respectivamente, sobre a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e sobre a Política Nacional do Meio Ambiente.

Lei n° 9.605, de 12/02/1998 Lei de Crimes Ambientais: (...) Seção II, Dos Crimes Contra a Flora, Art. 50. Destruir ou danificar florestas nativas ou plantadas ou vegetação fixadora de dunas, protetora de mangues, objeto de especial preservação.

Decreto n° 3.179, de 21/09/1999 Dispõe sobre a especificação das sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências.

Lei n° 9.985, de 18/07/2000 Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação Com base no art. 225 da Constituição Federal de 1988. Estabelece as Unidades de Proteção Integral (Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre) e as Unidades de Uso Sustentável (Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural) (art. 7 a 21).

Medida Provisória n° 2.166-67, de 24/08/2001 Reedição em tramitação no Congresso Nacional

Altera os arts. 1°, 4°, 14, 16 e 44, e acresce dispositivos à Lei n° 4.771, de 15/09/1965. Seu Art. 16 dispõe sobre a possibilidade de modificar o percentual da área de Reserva Legal previsto na Lei n° 4.711 de 15/09/1965 e admite o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual de reserva legal, desde que não implique em conversão de novas áreas para o uso alternativo do solo.

Resolução CONAMA n° 302 de 20/03/2002

Dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno.

Decreto nº 5.300 de 07/12/2004 Regulamenta a Lei no 7.661, de 16/05/1988, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC, dispõe sobre regras de uso e ocupação da zona costeira e estabelece critérios de gestão da orla marítima, e dá outras providências

Resolução CONAMA nº 369, de 28/03/2006

Dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade pública,interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente - APP.

Elaborado por Ester Limonad. Extraído de LIMONAD, 2008

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Porém em 2006, o Conselho Nacional do Meio Ambiente reitera as colocações do Código

Florestal de 1965. Além de limitar o direito de propriedade e restringir as possibilidades de

supressão da vegetação protetora, exige dos proprietários ou ocupantes s a recuperação das

“Áreas de Preservação Permanente - APP’s irregularmente suprimidas ou ocupadas”.

Como uma forma de regular a ocupação predatória nas áreas litorâneas e orientar a ação dos

governos municipais o Governo Federal estabeleceu o Programa de Gerenciamento Costeiro (Lei

n° 7.661 de 16/05/1988) e o Projeto Orla (BRASIL, 2004). Porém, tais ações, aparentemente não

são suficientes para conter a crescente ocupação e uso por atividades diversas, uma vez que os

governos estaduais e municipais identificam áreas de preservação como áreas vazias e passíveis

de ocupação. (LIMONAD, 2007b e 2007c).

Em 2002, as APPs urbanas recebem uma atenção especial por parte do CONAMA, em virtude da

crescente ocupação de áreas próximas a reservatórios artificiais de água. No intuito de coibir tais

ocupações, não previstas pelo Código Florestal de 1965, e embasar legalmente planos diretores

urbanos é editada a Resolução CONAMA n° 302, de 20/03/2002, que estabelece parâmetros,

definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de

uso de seu entorno.

Somente em 2006, cinco anos depois da aprovação da Medida Provisória n° 2.166-67, de

24/08/2001, é aprovada a Resolução CONAMA nº 369 de 23/03/2006. Essa Resolução de certa

forma representa uma tentativa controversa de retomar, em parte, a “intocabilidade” das APPs,

não obstante restrinja os efeitos da Medida Provisória n° 2.166-67, de 24/08/2001, cuja reedição

ainda tramita no Congresso Nacional, atinge a impossibilidade de qualquer tipo de uso e utilização

do solo em APPs urbanas, como se verá a seguir.

A Resolução CONAMA n° 369, de 23/03/2006: da Preservação à Conservação?

Essa Resolução, ao mesmo tempo em que autoriza a supressão de vegetação em APPs, ao se

atribuir o caráter de “utilidade pública” aos espaços e margens dos rios e córregos utilizados como

áreas verdes de domínio público, possibilita a regularização fundiária das habitações de baixa

renda consolidadas, consideradas de “interesse social”. Define, ainda, uma série de condições

para a manutenção e recomposição da floresta nativa, além de estabelecer percentuais de

impermeabilização e de alteração para ajardinamento, entre outros, de forma a manter e/ou

recuperar a função ambiental das APPs urbanas.

Se sua aprovação representou um marco na gestão dos corpos d’água urbanos no Brasil, a

revisão da aplicação do Código Florestal para as áreas urbanas não se encerra aí, pois ainda é

necessário proceder a uma série de ajustes para uma melhor compreensão e aplicação dessa

Resolução em APPs urbanas. Ao menos duas questões exemplificam a dificuldade de sua

aplicação prática: uma refere-se ao próprio entendimento da lei e a outra é de ordem técnica. A

primeira diz respeito ao artigo 2° do Código Florestal, que em seu parágrafo único dispõe que:

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Art. 2° - Parágrafo Único No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.(BRASIL, Lei 4.771/65, Incluído pela Lei nº 7.803 de 18.7.1989 – grifo nosso)

Esse parágrafo único dá margem a diversas interpretações legais. De acordo com uma corrente, o

artigo 2° do Código Florestal (ver nota 6 desse trabalho) indica restrições ”máximas” que poderiam

ser exigidas inclusive para as áreas urbanas. Por conseguinte, o Plano Diretor de cada município

poderia estabelecer limites próprios menos restritivos para o meio urbano (DAMIS,2006) do que

os estabelecidos pela legislação federal. Para outros, esses limites e medidas seriam o limiar

“mínimo” a ser respeitado em APPs, sendo que o município jamais poderia ferir o limiar mínimo

de preservação estabelecido pela legislação federal ou estadual (MARCHESAN, 2007). Já para

uma terceira corrente, o Código Florestal nem se aplicaria às áreas urbanas, pois estas seriam

disciplinadas por seu plano diretor e por suas próprias leis de uso e ocupação do solo.

Araújo (2002) de certa forma sintetiza essa controvérsia. Primeiro, assinala a possibilidade da

esfera municipal adotar limites distintos dos estabelecidos pelo Código Florestal argumentando

que “o termo (limites) não pode ser compreendido como significando as mesmas quantidades

numéricas contidas na norma federal, pois assim não seria a lei municipal senão mera repetição

daquela”. Mais adiante, argumenta no sentido de diferenciar a aplicação dos limites do Código

Florestal em relação às APPs urbanas. Salienta, assim que alguns interpretam os limites

estabelecidos pelo Código Florestal enquanto limites máximos, enquanto outros os vêem como

limites mínimos. Ao mesmo tempo em que reconhece serem esses limites mínimos e não

máximos, o que obriga os municípios a aumentarem as faixas de restrição para não ferir a lei

federal, destaca que os limites impostos pela norma federal destinam-se a “imóveis situados na

zona rural, não só pelo que estipula o parágrafo único do art. 2º do Código Florestal, (...), como

pelo advento da Lei n° 6.766, de 19/12/1979, que determinou, para loteamentos urbanos, uma faixa

non aedificandi de quinze metros ao longo das águas correntes e dormentes” (ARAÚJO, 2002).

Se não há um acordo legal, como fica a interpretação dessa questão por parte dos diversos

segmentos sociais, aí incluídos governantes, técnicos de Prefeituras e de órgãos de

planejamento, assim como por parte dos grupos sociais envolvidos e atingidos diretamente, que

são incentivados a participar da elaboração e implementação de planos diretores e de leis de uso

do solo? Isso sem dúvida, dá margem a distintas soluções por parte do poder público.

Marchesan (2005) assinala que há planos diretores municipais com parâmetros de proteção menos

restritivos que os do Código Florestal. Cita, assim, como exemplo o Plano Diretor de Porto Alegre,

que criou dois conceitos legais diversos – preservação permanente e conservação. Isso teria

permitido ao poder público considerar como áreas de preservação permanente apenas as zonas

que mantiveram seus atributos originais. Essa visão limitada de áreas de preservação, além de

estabelecer um precedente legal para outras prefeituras, sem dúvida abre espaço para amplas

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intervenções por parte do governo municipal, contribuindo para agilizar sua ação de forma

independente do estabelecido legalmente pelas outras esferas de poder.

Em outra linha, temos o Plano Diretor de Rio Branco no Acre, revisado em 2006, que seguiu as

determinações e limites estabelecidos pelo Código Florestal para a definição das APPs. Isto se

deu, em parte, por se entender que os limites da Lei Municipal teriam que ser equivalentes ou

mais restritivos que os estabelecidos pela legislação federal. Por outro lado, também contribuiu

para isso a falta de estudos e parâmetros técnicos no município e na região amazônica que

pudessem indicar ou justificar a mudança dos limites estabelecidos pelo Código Florestal de 1965.

A segunda questão é atinente aos limites adotados para estabelecer as APPs. De acordo com

Pinheiro (2007), nem o Código Florestal, nem a Lei de Parcelamento e Uso do Solo Urbano (Lei

n° 6.766, de 19/12/1979) partiram de uma fundamentação técnica para estabelecer os limites para

os “fenômenos naturais” carentes de APPs. Assinala, ainda, que o Brasil não deveria se contentar

com uma ou duas leis para seu território marcado por uma grande diversidade social, econômica e

ambiental. Propõe, por conseguinte, que se estabeleça “um marco regulador que prima pela

orientação de objetivos e não por informações que trazem determinações, muitas vezes,

cabalísticas, dependendo das forças políticas de ocasião”. Nessa mesma direção, Araújo ressalta

a necessidade de se analisar caso a caso ao se elaborar planos de ocupação de bacias

hidrográficas, alertando que “se a legislação federal for omissa a respeito de limites mínimos para

as APPs e tais planos não vierem a ser elaborados, provavelmente haverá supressão da maior

parte da vegetação que hoje protege os corpos d’água” (ARAÚJO, 2002, p.11)

De fato, as áreas que carecem de proteção, tais como: margens de rios, nascentes, morros,

lagoas, reservatórios artificiais, restingas e seus associados mangues e brejos, etc. precisam ser

melhor analisados, de forma a identificar com maior precisão sua área de impacto, para então se

definir sua correspondente área de preservação permanente. Essa é uma tarefa deveras

complexa, embora possa parecer simples, que envolve várias medições e cálculos apurados ao

longo de um largo período de tempo9.

Considerando-se, ainda, as dimensões continentais, a heterogeneidade econômico-social e a

diversidade de ecossistemas do território brasileiro evidencia-se a necessidade de reflexões mais

acuradas para caso. Uma vez que os próprios limites estabelecidos pelo Código Florestal de 1965

são discutíveis ao se tratar de rios da região Amazônica, onde igarapés urbanos podem

apresentar uma variação de quase cento e oitenta e cinco metros entre as estações de cheia e

vazante, inclusive em áreas urbanizadas ou de expansão urbana, como soe ocorrer no Igarapé

Fundo, em Rio Branco, no Acre. Por outra parte, cabe também refletir, ainda que rapidamente,

sobre a contradição latente entre a função social e ambiental da propriedade em APPs em razão 9 De acordo com MIRANDA (2008), os cálculos para definir os limites da calha de um rio partem das diversas medições pluviométricas em um determinado período de tempo. A partir desses dados, se buscam os valores indicativos da menor e da maior vazão alcançadas pelo referido corpo hídrico naquele período. A partir do ponto de maior cheia se determina a largura da calha do rio. Com base nos limites da calha é que se pode dar início à demarcação da faixa marginal de proteção a qual, segundo o Código Florestal, será de, no mínimo, 30 metros para cada margem.

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da crescente pressão da urbanização e do desenvolvimento de atividades diversas. Para isso, se

tomará, rapidamente, como referência a ocupação urbana na APA Litoral Norte na Bahia e a

ocupação da APP urbana do Igarapé Fundo em Rio Branco, no Acre.

Função Social versus Função Ambiental da Propriedade na APA Litoral Norte/BA

No caso de APPs fora das áreas urbanas tem-se, também um enfrentamento entre a função social

e a função ambiental da propriedade, e isso torna-se patente na crescente degradação de APPs

que pertencem à APA Litoral Norte da Bahia, onde se encontra a Costa dos Coqueiros. Essa área,

ao longo de seus 193 quilômetros de extensão, é recortada por diversos rios e riachos, que

deságuam no mar entre um vasto cordão de brancas dunas, que acompanha a costa. Aí se

encontra uma ampla variedade de ecossistemas, que abrangem desde remanescentes de Mata

Atlântica, restingas, dunas, coqueirais, brejos, lagoas ferruginosas de águas escuras até

manguezais e recifes de coral, que além de abrigar diversas espécies vegetais e animais,

constituem nichos reprodutivos para diferentes espécies de animais.

Desde 2000, entretanto, justamente por suas características naturais e escasso povoamento, o

território dessa APA converteu-se, em pouco tempo, em um dos maiores pólos turísticos em

crescimento do Brasil. Aos volumosos investimentos nacionais e internacionais privados soma-se,

ainda, a implantação de condições gerais para recepcionar o turismo de porte internacional por

parte do governo federal e estadual (ver a respeito LIMONAD, 2007a e 2007b).

Áreas de dunas e restingas, que segundo o Código Florestal seriam legalmente APPs, estão

ameaçadas pela crescente ocupação dispersa de mega-resorts internacionais e de condomínios

fechados de primeira e segunda residência. Assim, em nome dos impactos regionais positivos,

em termos da geração de emprego e renda, decisões tomadas em diferentes esferas de poder

permitiram que a função social da propriedade suplantasse a sua função ambiental.

Com a meta de reduzir as desigualdades sociais, conservar os recursos naturais, estabelecer

canais de participação social e de alcançar uma gestão integrada da APA Litoral Norte, o governo

estadual elaborou, entre outros planos, um minucioso Projeto de Gerenciamento Costeiro para o

Litoral Norte (BAHIA, 2005). A despeito da análise criteriosa e das intenções de conservação

ambiental, o mero exame da Figura 1 explicita a intenção desse projeto.

Aí áreas não ocupadas e não povoadas, entre a orla e a rodovia costeira, são identificadas com

áreas passíveis de ocupação urbana ou para o desenvolvimento de atividades diversas, sem que

haja previsão de manutenção de áreas de preservação ambiental. Isso, em áreas, que por

princípio seria Áreas de Preservação Permanente!

Planos, propostas e ações participativas implementadas na APA Litoral Norte, como esse

macrozoneamento (ver Figura 1), enfatizam o desenvolvimento urbano e definem planos de

ocupação e uso do solo em conformidade com as tipologias do Projeto Orla, embora muitos dos

loteamentos aprovados, na década de 1990, sequer se encontrem ocupados.

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Figura 1 - Macrozoneamento da Apa Litoral Norte - Bahia

Fonte: extraído de BAHIA, 2005, p.46.

Aparentemente a dispersão urbana é aceita pelos órgãos estaduais, pelos agentes e atores

sociais, como um fato dado e consumado. Assim, ao invés de discutir estratégias e soluções

alternativas, de modo a permitir a preservação dos ecossistemas existentes entre as áreas

ocupadas, esses planos conjugam a proposta de uma pretensa preservação ambiental com a

dispersão urbana e se empenham em repartir o território em zonas diferenciadas de urbanização.

Optam assim por uma extensificação e não por uma intensificação da urbanização (LIMONAD,

2007c) em poucos pontos selecionados da costa.

Função Social da APP Urbana do Igarapé Fundo em Rio Branco/AC Compete aos municípios “promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e

controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. No entanto, mesmo quando

existem instrumentos legais de regulação e controle, como os Planos Diretores, esses

instrumentos não são capazes de acompanhar a dinâmica da ocupação urbana. O poder público

local, de forma geral tem graves deficiências em termos de recursos humanos e financeiros, não

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está capacitado para a gestão ambiental urbana e o controle sobre ocupações de áreas

ambientalmente frágeis. Mesmo atualmente, quando vários municípios brasileiros com mais de

20.000 habitantes revisaram, elaboraram ou estão elaborando seus Planos Diretores, com base

no Estatuto da Cidade, Lei n° 10.257 de 10/07/2001, o desafio para adequar desenvolvimento

urbano com proteção ambiental, na busca por cidades mais sustentáveis, continua.

Na Amazônia, onde a maior parte da população concentra-se nas pequenas e médias cidades,

são muitas as deficiências e dificuldades das prefeituras em regular e controlar a ocupação e uso

do solo. Mesmo em Rio Branco, uma capital, a despeito de alguns estudos e projetos realizados

em APPs, ainda não se definiu a calha dos rios e córregos na área urbana. Em conseqüência,

não se estabeleceu o limite das APPs. Essa demarcação restringe-se praticamente a solicitações

específicas para fins de aprovação de projetos e loteamentos, ficando as medições (com a

utilização de trena), a critério de alguns poucos fiscais da Prefeitura. Reside aí, aparentemente,

um dos principais entraves no processo de gestão dessas áreas na cidade de Rio Branco: a

carência de estudos e informações técnicas precisas e confiáveis, não apenas sobre os corpos e

cursos d’água, mas da bacia hidrográfica a que pertencem. A falta de um consenso e a

sobreposição da legislação ambiental e urbana contribuem, também, para dificultar a definição

dos limites das áreas que, em princípio, deveriam ser protegidas.

Na micro-bacia do Igarapé Fundo, em Rio Branco no estado do Acre, aproximadamente 60,5%

das residências estão dentro das faixas de preservação (ver Figura 2). Esse Igarapé, além de ser

o mais atingido por ocupações desordenadas e de ser um rio totalmente urbano, tem

características hidrológicas que o tornam ainda mais emblemático dos problemas comuns aos

igarapés. Se durante o período seco apresenta uma largura média que varia entre três metros nas

cabeceiras e seis metros na foz, no período das chuvas transforma-se. Na época das chuvas o

Igarapé Fundo chega a alcançar cento e oitenta e cinco metros de largura (MESQUITA, 2001,

p.23), causando grandes enchentes, como ocorreu em 1998, quando 86% da micro bacia

hidrográfica foi inundada. Na Figura 2 pode-se observar a intensidade de ocupação na área

inundável, que corresponderia à APP do Igarapé Fundo.

O Igarapé Fundo atravessa aproximadamente doze bairros, com tipologias construtivas de

padrão diversificado. Encontram-se aí conjuntos habitacionais populares da COHAB-AC, bairros

de classe média e bairros “nobres” ao lado de bairros de "invasão"10. Em alguns trechos o seu

leito foi canalizado, em outros, aterrado, muitas vezes por iniciativa do próprio Poder Público.

Em 2006, o Ministério Público impetrou uma Ação Civil Pública contra a Prefeitura Municipal de

Rio Branco para promover a recuperação do Igarapé Fundo. Isso deveria seria feito através da

recuperação da mata ciliar, da retirada do lançamento de esgotos e da demolição das construções

localizadas nas APPs, entre outras coisas. Em conseqüência dessa ação a Prefeitura Municipal

implementou algumas ações pontuais e localizadas nesse igarapé. Ainda nesse mesmo ano, o

10 Designação local para designar assentamentos irregulares, chamados de “favelas” em outras cidades brasileiras.

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Plano Diretor, institui as Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) e, subseqüentemente,

transforma as APPs das margens do Igarapé Fundo em AEIS.

Figura 2: Planta da Micro-Bacia do Igarapé Fundo, na estação seca, 2006. Em verde estão as áreas com alta reversão ao estado natural, em amarelo as áreas com média reversão ao estado natural e em azul as áreas de baixa viabilidade de retorno ao estado natural Fonte: Prefeitura Municipal de Rio Branco, Plano de Recuperação das APPs.

Em 2007, o governo estadual obteve recursos da ordem de trinta milhões de reais, do Plano de

Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal para promover a regularização fundiária

das APPs do Igarapé Fundo através de um projeto a ser implementado em três etapas11. O que

contribui, de forma decisiva, para a consolidação da ocupação dessas APPs urbanas.

De acordo com o nível de ocupação e a possibilidade de intervenção das margens e imediações

do Igarapé, as APPs receberam três distintas classificações: áreas com alta reversão ao estado

natural, áreas com média reversão ao estado natural e áreas de baixa viabilidade de retorno ao

estado natural (ver Figura 2). Esse tipo de classificação denota a intenção da Prefeitura em

recuperar, ainda que parcialmente, as APPs, fazendo-as “voltar ao seu estado natural“. Porém,

embora se pretenda recuperar as APPs, há que se considerar que, além de não haver um estudo

11 Os recursos do PAC devem financiar a implementação das duas primeiras etapas. As quais compreendem a implantação de uma área de lazer com ciclovias, circulação de pedestres, praças, quadras esportivas, macrodrenagem com instalação de rede de esgoto da Bacia, regularização fundiária das APPs, educação ambiental , limpeza e desobstrução do Igarapé com retirada de entulho, plantio de árvores na mata ciliar.

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aprofundado da bacia hidrográfica, o objetivo principal do projeto é promover a regularização

fundiária. Por conseguinte, a intenção do Poder Público em recuperar as APPs deve ser

relativizada, ainda mais considerando-se o fato de que todas as APPs do Igarapé Fundo foram

transformadas em AEIS. O que leva a função “social” da propriedade a prevalecer sobre sua

função “ambiental”, mesmo que isso comporte um certo grau de risco ambiental relacionado à

perda de vidas e de bens materiais em possíveis inundações e enchentes. Nesse sentido, Araújo

(2002, p.9) reconhece a impossibilidade de que “muitos assentamentos humanos informais não

poderão ser regularizados exatamente no mesmo local em que se encontram”, salientando, ainda,

a necessidade de se ponderar, caso a caso, os impactos sociais e ambientais decorrentes da

permanência da população.

Por um lado, evidencia-se a necessidade de uma discussão relacionada à preservação dessas

áreas ribeirinhas, que por princípio legal são APPs, mas que em nome do interesse “público e

social” encontram-se ocupadas. Porém, essa é uma discussão mais específica a ser desenvolvida

oportunamente em outros trabalhos. Por outro lado torna-se patente a necessidade de uma

discussão de caráter estratégico, relacionada ao tipo de cidade e de urbanização que se deseja.

Planejamento e Gestão Ambiental: Afinal qual Urbanização se Deseja?

A ampla gama de leis relativas às APPs e às APAs pode ser vista como um indicador da

diversidade de interesses em jogo em diferentes conjunturas políticas, uma vez que o discurso

ambiental assume diferentes matizes, cada um com uma agenda política concreta. Assim, a

despeito da vasta legislação ambiental existente a ocupação urbana tem avançado de forma

alarmante no litoral do Nordeste, contribuindo para um aumento do desmatamento, destruição de

ecossistemas diversos, aumento da erosão, arrasamento de dunas, restingas e degradação de

rios e corpos d’água diversos.

Lado a lado com essas leis ambientais há diversos planos de manejo, zoneamentos econômico-

ecológicos, planos de ordenamento territorial, etc. definidos pelos governos de diversos estados e

inclusive, por alguns municípios no intuito de orientar e disciplinar a ocupação e uso do solo como

exige a legislação.

Torna-se patente, portanto, que o avanço da degradação ambiental em APAs e APPs não está

relacionado nem a uma falta de planos diretores, de planos de ordenamento territorial, nem a falta

de recursos. Mas a questões de caráter estratégico relativas, por um lado, à definição do tipo de

área de proteção ambiental e forma de gestão a serem implementadas. E, por outro à definição

ao nível geral do tipo de urbanização e ocupação territorial que deve ser privilegiada.

As áreas litorâneas por suas feições naturais poderiam ser classificadas como APPs, com

exceção das áreas com urbanização consolidada, que corresponderiam à quase totalidade das

capitais estaduais. No entanto, classificar a orla como APP limita o direito de propriedade de forma

muito mais extensa em comparação com outras modalidades de áreas protegidas. As APAs por

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permitirem a ocupação humana e uso do solo compatibilizado com o uso sustentável dos recursos

naturais despontam, assim, como uma alternativa mais interessante para os governos municipais

e estaduais. Uma vez que ao contrário das APPs, que são reguladas por legislação e órgãos

federais, as APAs podem ser reguladas pelos governos estaduais e municipais.

Inclusive diversos governos estaduais transformam áreas litorâneas, passíveis de serem

classificadas como APPs, em APAs com o pretexto de conter a ocupação urbana e preservar o

meio ambiente. Porém, de acordo com a Resolução CONAMA n°10 de 14/12/1988, a regulação

de projetos de urbanização e de atividades de terraplenagem, mineração, dragagem, escavação

que possam degradar o meio ambiente dependem da aprovação de estudo de impacto ambiental

e de licenciamento especial pela entidade administradora da APA, que pode ser o governo

estadual ou municipal.

Além dos procedimentos técnicos, incentiva-se cada vez mais a participação social na elaboração

do zoneamento das APAs na perspectiva de propiciar aos envolvidos sentirem-se participantes

das decisões e da elaboração das normas. Inclusive o próprio Projeto Orla (Brasil, 2004-2006)

preocupa-se em planejar de forma didática o processo de participação social no gerenciamento

costeiro. Sem dúvida essa participação contribui para que os grupos sociais envolvidos sintam-se

responsáveis e apóiem a fiscalização das ações empreendidas e das APAs que contribuíram para

definir. No entanto, a participação desses grupos sociais, de forma alheia a sua vontade, também

pode contribuir para conferir legitimidade a processos que, por vezes, tendem a gerar uma

privatização e apropriação privada de domínios antes acessíveis a todos, como é o caso por

exemplo da criação de RPPNs em condomínios fechados no interior de APAs.

Portanto, a despeito de todos os procedimentos técnicos e de consulta às comunidades

envolvidas, torna-se patente que a decisão quanto à ocupação de uma APA é uma decisão

eminentemente política. Nesse sentido o grau de preservação irá depender dos interesses em

jogo e do grau de mobilização e conscientização dos grupos sociais envolvidos. Por um lado há

que se entender que o Estado não se encontra acima das classes, mas atravessado por distintos

interesses de classe, por vezes antagônicos, que se articulam em alianças constituindo um bloco

hegemônico no poder (GRAMSCI, 1968). Esse bloco no poder para se legitimar atua em prol de

outros setores e grupos sociais, assim como de modo a satisfazer as necessidades e interesses

dos grupos que o compõem.

A decisão de intervenção depende, portanto, por um lado da conjugação de distintos interesses

privados com os grupos que se encontram no poder, e por outro do grau de articulação política e

consciência política e ambiental dos diversos grupos sociais envolvidos e atingidos pelo processo

de ocupação das APAs. Muitas vezes essa decisão envolve uma negociação em que o poder

público faz concessões em troca de uma contrapartida dos grupos de investimento privado

envolvidos. Contrapartida que nem sempre tende a beneficiar os grupos sociais atingidos por

essas ações. Vários municípios, assim, independente do fato de possuírem planos diretores e

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órgãos ambientais próprios, tornam-se reféns de distintos interesses sociais e econômicos em

distintas conjunturas, o que tem permitido licenciamentos ambientais em nome do interesse

público que tendem a privilegiar interesses de certos grupos sociais em detrimento de outros.

A decisão de preservação faz parte, por conseguinte de uma luta política localizada. Nesse

terreno, muitas vezes as decisões técnicas possuem pouco peso frente aos chamados impactos

sociais positivos como a geração de empregos e rendas em escala regional. E a intervenção se

faz “naturalmente” sob a aura do desenvolvimento sustentável, conceito vago, geral e

questionável, que aplicado à urbanização dispersa suscita questões concernentes aos custos

sociais econômicos, à preservação ambiental e ao desenvolvimento social. Assim, áreas não

povoadas ou com pouca ocupação são identificadas como potenciais áreas para a urbanização

com vistas ao desenvolvimento territorial sustentável.

Deixa-se de lado o fato da difusão da urbanização dispersa impactar de forma mais extensa o

meio ambiente do a urbanização compacta. As decisões, portanto, giram em torno de quais áreas

devem ser preservadas ou ocupadas. Não se coloca em discussão, entretanto, outras

possibilidades de ocupação e urbanização que não consumam de forma tão extensiva o meio

ambiente, que não exijam tantos investimentos na extensificação de redes e suportes de

infraestrutura de transportes, abastecimento e comunicações.

Trata-se, enfim, de mais uma faceta dos conflitos em torno da produção social do espaço. Um

confronto onde a preservação das florestas nativas e o desenvolvimento sustentável servem ao

mesmo tempo como argumento para formar reservas ambientais (Reservas de Particulares de

Preservação Natural – RPPN), praias de difícil acesso em condomínios particulares e resorts para

o uso de poucos e para alienar distintos grupos sociais de usufruir esses espaços. Tais unidades

de conservação privadas conformam, assim, territórios exclusivos altamente valorizados, por

lidarem com a raridade do espaço “natural”, contribuindo para uma reprodução social cada vez

mais excludente (COSTA, 2007).

Torna-se patente, assim, que os problemas atuais e a pressão crescente sobre as APPs não são

resultantes apenas de meros problemas técnicos, da falta de planejamento ou da ausência de

mecanismos de regulação. Trata-se, pelo contrário, de decidir qual tipo de urbanização se deseja.

Esse de fato é o nó da questão. E, essa é uma decisão a ser tomada pelo conjunto da sociedade

organizada, e não de forma fragmentada e autonomizada, privilegiando interesses localizados.

Uma decisão em que se privilegie a escala regional, em que se opte entre formas de urbanização

concentrada e formas de urbanização dispersa. Em que se defina ao nível geral o tipo de

urbanização e ocupação territorial que devem ser privilegiadas.

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